Clique aqui para baixar esta edição

Transcrição

Clique aqui para baixar esta edição
ISSN 1517-2422
cadernos
metrópole
cidade, cidadania
governança democrática
Cadernos Metrópole
n. 21
pp. 1-283
1º semestre 2009
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999
Semestral
ISSN 1517-2422
1. Áreas Metropolitanas - Periódicos. 2. Sociologia urbana - Periódicos. I. Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. II. Grupo Pronex “Metrópole: Desigualdades Socioespaciais e Governança
Urbana”
CDD300.5
Periódico indexado na Library of Congress – Washington
cidade, cidadania
governança democrática
PUC-SP
Reitor
Dirceu de Mello
Direção
Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Ana Maria Rapassi
Bader Burihan Sawaia (Presidente)
Bernardete A. Gatti
Cibele Isaac Saad Rodrigues
Dino Preti
Marcelo Figueiredo
Maria do Carmo Guedes
Maria Eliza Mazzilli Pereira
Maura Pardini Bicudo Véras
Onésimo de Oliveira Cardoso
Scipione Di Pierro Netto (in memoriam)
Vladimir O. Silveira
Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Sonia Rangel
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Revisão de espanhol
Vivian Motta Pires
Capa
Raquel Cerqueira
Rua Monte Alegre, 971, sala 38CA
05015-001 São Paulo - SP
Tel/Fax: (11) 3670.8085
[email protected] www.pucsp.br/educ
cadernos
metrópole
EDITORES
Lucia Bógus
Luiz César de Q. Ribeiro
CONSELHO EDITORIAL
Adauto Lucio Cardoso (UFRJ)
Aldo Paviani (UnB)
Alfonso X. Iracheta (El Colegio Mexiquense)
José Antônio Fialho Alonso (FEE)
Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ)
José Machado Pais (Univ. de Lisboa-POR)
Ana Fani Alessandri Carlos (USP)
José Marcos P. da Cunha (Unicamp)
Ana Lucia Nogueira de Paiva Britto (UFRJ)
José Maria C. Ferreira (Univ. Téc. de Lisboa-POR)
Ana Maria Fernandes (UFBA)
José Tavares Correia Lira (USP)
Andréa Catenazzi (Univ.Nac.de General Sarmiento-ARG)
Leila Christina Duarte Dias (UFSC)
Anna Alabart Villà (Universidad de Barcelona-ESP)
Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)
Arlete Moysés Rodrigues (Unicamp)
Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj/Ucam)
Brasilmar Ferreira Nunes (UnB)
Luís Renato Bezerra Pequeno (UFCE)
Carlos Antonio de Mattos (PUC/CHI)
Marco Aurélio A. de Filgueiras Gomes (UFBA)
Carlos José C. G. Fortuna (Univ.de Coimbra-POR)
Maria do Livramento M. Clementino (UFRN)
Cristina Lópes Villanueva (Univ. de Barcelona-ESP)
Marília Steinberger (UnB)
Edna Maria Ramos de Castro (UFPA)
Nádia Somekh (Univ.Presbiteriana Mackenzie)
Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA)
Nelson Baltrusis (Univ. Católica do Salvador)
Erminia T. M. Maricato (USP)
Orlando Alves dos Santos Junior (UFRJ)
Félix Ramon Ruiz Sánchéz (PUC/SP)
Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG)
Fernando Nunes da Silva (Inst. Sup. Técnico/POR)
Ricardo Toledo Silva (USP)
Geraldo Magela Costa (UFMG)
Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG)
Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUC/SP)
Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes)
Heliana Comin Vargas (USP)
Rosana Baeninger (Unicamp)
Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG)
Sarah Feldman (USP)
Jesús Leal (Univ. Complutense de Madri-ESP)
Sérgio de Azevedo (UENF)
Suzana Pasternak (USP)
Tamara Benakouche (UFSC)
Vera Lucia Michalany Chaia (PUC/SP)
Secretaria
Raquel Cerqueira
Projeto gráfico e
Editoração eletrônica
Raquel Cerqueira
Wrana Maria Panizzi (UFRGS)
Colaboradores deste número
Ilza Leão – UFRN
Marcelo J. P. Paixão – UFRJ
sumário
9
Apresentação
dossiê:
cidade, cidadania
governança democrática
Elements for the sociology
of constructed spaces in cities:
the “Conic” in Brasília’s Pilot Plan
13
Elementos para uma sociologia
dos espaços edificados em cidades:
o “Conic” no Plano Piloto de Brasília
Brasilmar Ferreira Nunes
Defending a new theoretical 33 Por um novo enfoque teórico
framework in housing research
na pesquisa sobre habitação
Ermínia Maricato
Metropolitics: an analysis of some 53 Metropolítica: una análisis de algunas
global metropolitan experience
experiencias metropolitanas globales
Óscar A. Alfonso R.
Social demands and urban space occupation. 75 Demandas sociais e ocupação do espaço
The case of Brasília, Federal District
urbano. O caso de Brasília, DF
Aldo Paviani
Cultural heritage urban policies 93 Políticas urbanas de patrimonialização
and counter-revanchism: Old Recife
e contrarrevanchismo: o Recife Antigo
and the Historic Area of the City of Porto
e a Zona Histórica da Cidade do Porto
Rogério Proença Leite
Paulo Peixoto
Housing policy in central areas: 105 Política de habitação nas áreas centrais:
rhetoric versus practice
retórica versus prática
Mariana Fialho Bonates
cadernos metrópole 21
pp. 1-283
1º sem. 2009
Public spaces: new 131 Espaços públicos: novas
sociabilities, new controls
sociabilidades, novos controles
Luciana Teixeira de Andrade
Juliana Gonzaga Jayme
Rachel de Castro Almeida
The foundations of trust: civic engagement, 155 Fundamentos da confiança: associativismo,
political-administrative institutions and social
instituições político-administrativas e capital
capital in the Metropolitan Region of Porto Alegre
social na Região Metropolitana de Porto Alegre
Marcelo Kunrath Silva
Soraya Vargas Côrtes
The confrontation between Participatory 173 O confronto do Orçamento Participativo
com as tradições representativas em São Paulo
Budget and representative traditions in São Paulo
Paulo Edgar da Rocha Resende
Participation and territory management: 197 Participação e gestão territorial: onde
where are the favorable conditions?
se encontram as condições favoráveis?
Cátia Wanderley Lubambo
Flavio Cireno Fernandes
Regularization of urban settlements 219 Regularização de assentamentos urbanos
e sustentabilidade
and sustainability
Manoel Teixeira Azevedo Jr.
Public sphere construction 233 A construção da esfera pública
no planejamento urbano. Um percurso
in urban planning. A historical
histórico na cidade de Santos
path in the city of Santos
Luiz Antonio de Paula Nunes
The construction of public power as private 247 A construção do poder público como espaço
space in the city of Diadema (1983 to 1996)
privado na cidade de Diadema (1983 a 1996)
Joana Darc Virgínia dos Santos
Groups of independent scavengers in the 261 Grupos de catadores autônomos na coleta
seletiva do município de São Paulo
selective collection of the city of São Paulo
Marina Pacheco e Silva
Helena Ribeiro
cadernos metrópole 21
pp. 1-283
1º sem. 2009
Apresentação
O Cadernos Metrópole n. 21 reafirma o caráter interdisciplinar do periódico, reunindo trabalhos de cientistas sociais e planejadores urbanos num debate sobre os temas
da cidadania e da gestão democrática da cidade. Esses temas, cada vez mais caros às discussões contemporâneas sobre as cidades, envolvem, por sua vez, a análise das formas
de sociabilidade e das relações de conflito que se estabelecem e se reproduzem com as
transformações do território e das relações de poder.
No contexto dessas preocupações, o texto de Brasilmar Ferreira Nunes busca
compreender a relação entre o espaço construído e a sociedade na cidade de Brasília,
mostrando como a capital federal moldou-se às necessidades de seus habitantes e como
os espaços edificados – e sua transformação – interferem nos padrões de sociabilidade,
alterando o uso dos espaços e resignificando territórios. Tomando como referência o
Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul – SDS/Conic, o autor discute a relação espaço construído-sociedade, demonstrando que a cidade, em sua dinâmica, altera
as propostas originais do planejamento, adaptando-se às necessidades de seus habitantes
e às formas de sociabilidade cotidianamente estabelecidas. Ainda sobre o caso de Brasília
recaem as preocupações de Aldo Paviani, cujo texto analisa as demandas não atendidas
de moradores de certas áreas do Distrito Federal por serviços de saúde pública, educação, transporte e habitação. Segundo o autor, alguns encaminhamentos se fazem necessários para que o poder público adote políticas globalizantes, superando ações isoladas,
paternalistas ou clientelistas, pois somente “a visão da totalidade ampliará o acesso democrático ao espaço da cidade por parte dos urbanistas, cidadãos e construtores da vida
urbana”.
cadernos metrópole 21
pp. 9-12
1º sem. 2009
apresentação
10
Outra questão central no debate sobre a gestão da cidade e da cidadania refere-se
ao déficit habitacional e às pesquisas sobre habitação. Contribuindo para esclarecer pontos importantes da discussão, o texto de Ermínia Maricato aponta – a partir de cuidadosa
revisão bibliográfica – que a maior parte das pesquisas sobre habitação, embora forneça
um quadro importante sobre a carência de moradias, a segregação, a exclusão social e
as políticas institucionais, aborda prioritariamente a esfera do consumo “ignorando a
centralidade da produção na determinação do ambiente construído”. Maricato discute,
ainda, o impacto da globalização na provisão de moradias e incentiva os pesquisadores
brasileiros a enfrentarem o desafio de realizar estudos que venham suprir as lacunas
apontadas.
Ampliando o debate para o caráter e a dimensão internacionais da metropolização,
Óscar Alfonso destaca que a maior parte da literatura recente se concentra mais na necessidade de atuar sobre o fenômeno metropolitano do que de compreendê-lo. A partir
de um exame crítico de alguns casos concretos, seu artigo analisa, de modo comparativo,
os desafios enfrentados por aglomerações metropolitanas da Europa, da América Latina
e da América do Norte – na busca por alternativas que favoreçam a adoção de políticas
públicas voltadas ao desenvolvimento metropolitano.
Os resultados de outro estudo comparativo entre áreas metropolitanas são apresentados no trabalho de Rogério Proença Leite e Paulo Peixoto, questionando os processos de patrimonialização de centros históricos implantados em áreas degradadas do
Recife Antigo, no Brasil, e na Zona Histórica da Cidade do Porto, em Portugal. O argumento central do trabalho apoia-se na constatação de que “após o período de apogeu
das intervenções urbanas, que agem como um elixir para os problemas de uma realidade
decadente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada por um sentimento de reconquista
do espaço que aniquila as perspectivas depuradoras dessas operações” e contribui para
a avaliação das políticas urbanas de enobrecimento. Trata-se de trabalho instigante que
convida à reflexão acerca das consequências de algumas políticas de intervenção que,
mais do que revitalizar, propõem a mudança do uso dos espaços enobrecidos.
Mariana Fialho Bonates também contribui para a discussão sobre a reabilitação de
áreas centrais analisando programas de intervenção habitacional nos centros de cidades
brasileiras de médio e grande porte. A partir do estudo de situações concretas, a autora
lembra que a ideia de conjugar a política habitacional com a política de preservação dos
sítios históricos de áreas centrais não é recente e levanta hipóteses que explicariam por
que os recursos do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) têm sido aplicados,
em sua grande maioria, em obras de construção de novos conjuntos habitacionais e não
na reabilitação de edifícios abandonados ou degradados.
O texto de Luciana Teixeira de Andrade, Juliana Gonzaga Jayme e Rachel de Castro Almeida aborda o tema das mudanças no uso e o declíneo dos espaços públicos das
grandes cidades, em detrimento dos espaços semipúblicos ou privatizados. Partindo do
estudo das formas de sociabilidade observadas em algumas praças de Belo Horizonte,
as autoras demonstram que, apesar de ainda serem bastante utilizadas como espaços
cadernos metrópole 21
pp. 9-12
1º sem. 2009
apresentação
públicos, seus frequentadores buscam, preferencialmente, a relação entre iguais, reproduzindo nos espaços públicos a segregação socioespacial observada na cidade.
Problematizando o argumento de que a proliferação de organizações sociais seria
uma condição necessária para a geração de confiança e, consequentemente, de capital
social, o texto de Marcelo Kunrath Silva e Soraya Vargas Côrtes estabelece um diálogo
crítico com a obra de Robert Putnam. A partir dos resultados de survey sobre Cultura
Política na Região Metropolitana de Porto Alegre, procuram demonstrar que tal argumento não tem sustentação e ressaltam a necessidade de incorporar a dimensão políticoinstitucional às análises do associativismo, mostrando que não existe uma relação direta
entre o associativismo e a confiança em instituições políticas.
A análise de instrumentos de participação direta da cidadania, como o Orçamento
Participativo, podem representar, segundo Paulo Edgar da Rocha Resende, uma grande
inovação no processo de tomada de decisões de governos locais, ampliando a inclusão de
sujeitos políticos e a justiça na distribuição territorial/social dos investimentos públicos.
A partir da avaliação do funcionamento do Orçamento Participativo do Município de São
Paulo, entre 2001 e 2004, o autor discute as razões pelas quais o Orçamento Participativo, muitas vezes um eficaz mecanismo de participação cidadã nos rumos das cidades,
sofreu contingenciamentos e, consequentemente, perdeu peso no cenário decisório da
maior metrópole brasileira.
Na mesma linha de reflexão proposta por Resende, o texto de Cátia Wanderley
Lubambo e Flavio Cireno Fernandes aborda a questão da participação e da gestão territorial focalizando, mais especificamente, a capacidade de atuação de Conselhos e Fóruns
no sentido de influenciar decisões e ações públicas. A partir de estudo comparativo de
dois Programas de Governo – em municípios localizados em Pernambuco e Santa Catarina –, discutem as condições, expectativas e limitações da implantação de estruturas
de gestão territorial, destacando a influência dos atores políticos locais e de suas bases
eleitorais.
Manoel Teixeira Azevedo Junior, arquiteto e urbanista, apresenta, na sequência,
outra discussão de extrema relevância para todos os que pensam e exercem a gestão do
território em centros urbanos. O autor discute os programas de regularização de assentamentos informais ou de loteamentos irregulares apontando a importância dos instrumentos de política urbana do Estatuto das Cidades para a reversão das várias formas de
ilegalidade urbana e a universalização do direito à cidade.
Analisar as formas de participação da sociedade civil no planejamento urbano da
cidade de Santos, no período compreendido entre os anos de 1945 e 2009, é o objetivo do artigo de Luiz Antonio de Paula Nunes. Seu estudo revela como a construção e
institucionalização de espaços políticos e a criação de comissões e conselhos conduziu à
ampliação da participação popular no planejamento urbano no transcorrer do período
estudado, mudando de acordo com o pensamento urbanístico as ferramentas e os cenários políticos.
cadernos metrópole 21
pp. 9-12
1º sem. 2009
11
apresentação
12
A participação popular, agora no Município de Diadema, na Região Metropolitana
de São Paulo, é também o objeto do estudo da historiadora Joana Darc Virginia dos Santos. A mobilização da população por melhores condições de vida, em especial no que se
refere à infraestrutura, ocupou lugar de destaque ao longo de três mandatos consecutivos de prefeitos do Partido dos Trabalhadores (1982-1996), reunindo experiências com
resultados bastante heterogêneos e que são analisados pela autora em sua investigação
sobre os atores envolvidos.
Em complementação aos textos do dossiê, a cidade de São Paulo volta à cena com
o texto de Marina Pacheco e Silva e Helena Ribeiro sobre os catadores autônomos de
materiais recicláveis. Após a apresentação de informações sobre a importância da coleta
seletiva e a dimensão do problema do lixo na cidade de São Paulo, as autoras elaboram
algumas hipóteses explicativas para a não inclusão de parcela significativa dos catadores
no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura Municipal de São Paulo. Essas hipóteses
apontam, entre outros fatores, para as dificuldades de organização e gestão dos grupos
de catadores e para a ausência de uma ação sistematizada da Prefeitura Municipal de
São Paulo no sentido de incentivar a participação dos catadores no Programa de Coleta
Seletiva oficial. A questão da gestão urbana é novamente colocada, aliando-se à da sustentabilidade urbana e aos desafios que se colocam para a conquista da cidadania.
Ainda que se considerem as especificidades das abordagens, o caráter interdisciplinar das discussões propostas e as peculiaridades dos estudos de caso, os artigos reunidos
neste número apontam, de modo inequívoco, para as conquistas obtidas pelas novas
formas de participação e para as mudanças geradas pelos novos instrumentos de gestão
no âmbito dos processos de governança democrática.
Lucia Bógus
Luiz César de Q. Ribeiro
Editores científicos
cadernos metrópole 21
pp. 9-12
1º sem. 2009
Elementos para uma sociologia
dos espaços edificados em cidades:
o “Conic” no Plano Piloto de Brasília
Brasilmar Ferreira Nunes
Resumo
O presente artigo procura discutir a relação do
espaço construído e sociedade tomando como
referência o Plano Piloto de Brasília e o seu
Setor de Diversões Sul – SDS/Conic. Partindo
da existência de múltiplas determinações na
dinâmica da cidade, procura analisar a relação
entre os usos de um centro comercial na área
tombada de Brasília, o perfil dos seus usuários
que em princípio se chocam com a proposta
original de um ambiente mais sofisticado. Procura mostrar que a cidade, enquanto um fenômeno dinâmico, modifica propostas originais
do planejamento e se adapta às necessidades
de seus habitantes, numa estreita relação espaço e sociedade, de tal maneira que sociabilidades heterogêneas se articulam com espaços
construídos heterogêneos. Mostra ainda que o
Conic contribui para tornar a área tombada do
Plano Piloto uma área urbana, na perspectiva
sociológica: variada, densa e socialmente heterogênea.
Abstract
This paper tries to discuss the relationship
between constructed space and society, using
as reference the Pilot Plan for Brasília and its
Setor de Diversões Sul (SDS-Conic – South
Entertainment Sector). Starting from the
existence of multiple determinations in the
city’s dynamics, we try to analyze the relations
between the uses of a commercial center in the
listed area of Brasilia and the characteristics
of its users which, in principle, collide with
the original proposal for a more sophisticated
environment. Also, we try to show that the
city, as a dynamic phenomenon, modifies the
original planning proposals and adapts to its
inhabitants’ needs, in a narrow space/society
relation, in such a way that heterogeneous
sociabilities articulate with heterogeneous
constructed spaces. Finally, we try to show
that the Conic contributes to make the listed
area of the Pilot Plan an urban area, in the
sociologic perspective: varied, dense and
socially heterogeneous.
Palavras-chave:
Brasília; Conic; edifícios urbanos; sociabilidades urbanas; espaço
construído e sociedade.
Keywords:
Brasília; Conic; urban
constructions; urban sociability; constructed
space and society.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
brasilmar ferreira nunes
Apresentação
14
A sociologia urbana que se produz no Brasil
vem se debruçado com insistência sobre processos sociais que ocorrem nos espaços das
cidades, chamando atenção para aspectos os
mais diversos e variados. Entretanto, curiosamente e com raras exceções, o estudo de
vínculos sociais determinados pelo espaço
construído – praças, imóveis residenciais,
industriais, comerciais, áreas de circulação,
etc. – não prioriza o projeto em si, mas o
considera como um suporte onde as práticas
sociais ocorrem. Particularmente os imóveis,
os edifícios, são vistos como cenários e não
tratados como artefatos que interferem nas
interações que neles possam ocorrer.
Podemos lembrar alguns títulos que
mais se aproximam desse recorte: o de Gilberto Velho (1989), analisando um edifício
em Copacabana no Rio de Janeiro, ainda na
década de 1980, ou ainda, o excelente estudo de Paola Berenstein-Jacques sobre a
arquitetura das favelas nos morros cariocas.
Nesses trabalhos, observamos com detalhes
como o ambiente construído é não apenas
o cenário, mas muito mais do que isso, interfere diretamente nas modalidades de
vínculos e práticas sociais que aí ocorrem.
Curiosamente, a sociologia urbana
pouco tem contribuído para esse debate,
pois somos os que menos se interessam pelo desenho do ambiente construído ou pela
proposta de intervenção no espaço oriunda
dos escritórios de arquitetura. Essa assertiva
é mais instigante ainda se nos dermos conta
de que os profissionais da arquitetura e até
mesmo os que, por razões diversas, impro-
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
visam suas habitações prescindindo de um
projeto, sempre levam em conta o elemento
humano que dele irá usufruir. Entretanto,
as questões associadas à prática de construção, especialmente a arquitetura, é complexa e de difícil discernimento, evoluindo permanentemente em função de vários fatores,
mesmo se o resultado dessas práticas tenha
implicações diretas em nossos ambientes de
vida. Aspecto corriqueiro, pois a arquitetura
é expressão da própria cultura, além do que,
toda ela, mesmo as privadas, tem implicações na qualidade dos espaços públicos.
Pressupomos que essa relativa ausência
de interesse advém do lugar que o “território” e o “espaço” ocupam nas análises sociais, embora sua presença na esfera teórica
seja uma constante entre autores consagrados do campo sociológico.1 De fato e apesar de tudo, os tratamos (o território e o
espaço) invariavelmente como cenário, raras
vezes como agente. A discussão é extensa e profícua; dificilmente se esgotaria nos
quadros de um artigo. Porém, vale lembrar
alguns aspectos que podem contribuir para
esse debate e introduzir o nosso caso em
análise neste texto que se propõe uma avaliação dos usos que se faz de um edifício em
pleno Plano Piloto de Brasília, cidade ícone
da arquitetura moderna no século XX.
Algumas considerações
teóricas como apoio
A sociologia parte do pressuposto de que
sociedade é interação social por meio da
qual os seres humanos se ligam uns aos
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
outros; através desses elos transformam coletivamente o meio natural, dando-lhe uma
função e um sentido. Dessa maneira, o meio
natural se transforma e reflete diretamente
a estrutura social da qual ele é o suporte.
Assim, todo e qualquer território explorado
ou habitado traz em si as marcas das atividades humanas que nele se desenvolvem.
Se levarmos esse argumento para o
espaço da cidade, podemos constatar as diferentes formas que assumem os ambientes
construídos em razão das modalidades e
atividades humanas que neles se implantam.
Durkheim (1987) argumenta que os substratos físicos da vida social devem ser considerados como maneiras de ser que “são
maneiras de fazer consolidadas” que refletem níveis diferenciados de cristalização da
vida social. Ambientes residenciais, industriais, comerciais, de lazer e de circulação
trazem em si valores funcionais, estéticos
e econômicos inerentes aos seus interessados. Portanto, “cada unidade arquitetônica
integra um sistema que não é nunca neutro,
já que carregado de funcionalidades, métodos estruturais e a própria fisicidade das
formas distribuídas no espaço” (Coulquhon,
1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Estamos então em pleno contexto da multidisciplinaridade, pois esse sistema é tratado por
Durkheim como parte da morfologia social,
tal qual a população, as estruturas políticas
e jurídicas, todas elas mais do que reflexos,
são sintomas da realidade social, um fator
ativo que pesa sobre o movimento dos processos sociais. Assim, embora Durkheim se
interesse mais pelas instituições sociais do
que propriamente a cidade, suas análises
trazem subentendida uma problemática do
espaço, o que nos leva a deduzir que quando
pensamos, portanto, a cidade estamos nos
referindo a um ambiente ao mesmo tempo
material e humano.2
Essa discussão, que, aliás, avança
muito além do que aqui se apresenta, foi
tratada por diferentes correntes do pensamento, especialmente os arquitetos, uma
categoria socioprofissional diretamente
envolvida com a produção física/funcional
da cidade. Os modernistas, por exemplo,
chegaram à radical imagem da cidade como
“instrumento de trabalho” e as casas como
“máquinas de morar”, ao ponto de Le Corbusieur argumentar que os projetos de uma
colher ou de uma cidade partiam de um
mesmo problema de design industrial.3 Daí
a se chegar à ideia de que a heterogeneidade que caracteriza sociológica e fisicamente
a cidade pode ser sintoma do caos urbano
seria um passo.
As polêmicas que caracterizam esse debate é de difícil síntese. Podemos, entretanto lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991)
que criticando a visão dos modernistas,
considera a cidade um laboratório (aliás, tal
qual a produção de Chicago já o fazia, estudando as relações sociais urbanas) e que
muitas vezes as soluções para problemas
urbanos podem estar sendo apontadas pelas
próprias características de tais sítios e não
necessariamente em debates intelectuais.
Segundo a autora, não é exatamente “caos”
o que explicaria a complexa diversidade de
ambientes que se encontram em uma metrópole; ao contrário, estaria aí o seu maior
potencial. Aliás, argumento que vai encontrar respaldo em Durkheim, para quem a
divisão do trabalho é tanto mais complexa
quanto maior for a densidade populacional
de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu).
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
15
brasilmar ferreira nunes
Duarte (2002, p. 150) sintetiza com
justeza esse fenômeno quando escreve:
De uma forma ou de outra as cidades
vão se destruindo e se reconstruindo,
de acordo com valores culturais, econômicos e tecnológicos. Essas destruições
e reconstruções respondem ao que aqui
se tem chamado de matrizes espaciais,
isto é, há uma interrelação dos sistemas
que ativam a sociedade e formam uma
matriz que, boa parte das vezes em silêncio, transfigura a cidade.5
16
De imediato, fica patente que a cidade – a
sua estrutura física e social – é um fenômeno dinâmico que se modifica continuamente
em função de modificações nos elementos
que compõem a sua matriz constitutiva. Aos
efeitos sobre o espaço construído de variações nas dimensões sociais, políticas, econômicas, culturais e tecnológicas se somam a
própria determinação do espaço, suas restrições e seus potenciais. Além do mais, as
características do lugar se agrega às identidades de seus usuários, de tal forma que
podemos falar numa simbiose entre o ser
e o estar em algum lugar. Ser carioca ou
ser candango, por exemplo, remete a uma
representação não só cultural mas também
territorial.
Essas questões são pertinentes à nossa
intenção de refletir sobre um edifício construído no Plano Piloto de Brasília, a partir de
uma concepção de espaço urbano presente
nos autores, tanto do plano urbanístico da
cidade (Lúcio Costa) quanto de seus monumentos mais importantes (Oscar Niemeyer).
Referimos-nos ao Conic, um complexo de
lojas e escritórios situado na confluência das
Asas com o Eixo Monumental em Brasília.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
Algumas características
de Brasília e do Conic
O exemplo escolhido aqui é interessante
por várias razões, inclusive pelo fato de
estarmos tratando de uma área do Plano
Piloto que foi priorizado com destaque no
projeto original da capital do país, aquela
que na concepção de seu idealizador deveria se consolidar como um boulevard nos
moldes de cidades europeias. Já se discutiu
bastante sobre a elevada dose de utopia
que estava presente na proposta vencedora para a nova capital. Claro que, sendo na
época um território praticamente vazio,
os arquitetos (tanto Lúcio Costa como os
demais concorrentes no concurso para o
projeto para a nova capital) puderam expor
muito de suas concepções sobre urbanismo
e cidades. A ausência de resistências sociais
à implantação de qualquer um dos projetos – inclusive aquele vencedor – favorecia
a livre imaginação.6
A racionalidade do projeto de Lúcio
Costa tinha pressupostos curiosos, no sentido de que imaginava a possibilidade de um
novo homem naquele espaço novo, portanto a relação espaço e sociedade claramente
demarcada. Além disso, Brasília, sendo capital político-administrativa da nação, iria ser
habitada sobretudo pela burocracia estatal
que, no Brasil, goza de certas condições privilegiadas ante os percalços da conjuntura
econômica: emprego estável e salários relativamente compensadores, além, é claro,
das vantagens que advêm da condição de
funcionário público. Poder-se-ia, portanto,
imaginar esse novo homem, na medida em
que as condições de sua existência material
estariam garantidas de antemão.
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
Entretanto, é impossível supor um
espaço urbano socialmente homogêneo,
mesmo se o seu desenho e a sua arquitetura possam ser padronizados. A dimensão
cultural daquilo que chamamos de matrizes
espaciais não cabem num modelo único de
homem, tendo que se adequar às heterogêneas modalidades de existência social. De
fato, foi o que ocorreu no Distrito Federal:
um crescimento populacional acima de qualquer previsão, composto por migrantes de
diferentes origens socioeconômicas e culturais, polarizados por um Plano Piloto (Brasília) que se apresenta hoje como uma exceção numa área urbana com elevada dose de
heterogeneidade. De um lado, um território
planejado segundo critérios racionais e, de
outro, um universo onde imperam as leis do
mercado, com aquele ar caótico que caracteriza as periferias urbanas brasileiras.
Interessa-nos nessa discussão ressaltar
o elevado peso simbólico que Brasília detém,
praticamente absorvendo toda e qualquer
representação do universo urbano do Distrito Federal externa ao seu Plano Piloto. Ali
se implantaram as representações governamentais, seus edifícios e monumentos, além
de concentrar a maciça oferta de trabalha
formal no Distrito Federal. O cruzamento das Asas Norte e Sul com o Eixo Monumental é a área onde circula diariamente a
população oriunda das cidades satélites que
trabalha no Plano Piloto. O Conic, portanto,
é um lugar privilegiado pela sua acessibilidade, justamente porque a implantação da
rodoviária urbana na área contribui para a
paulatina mudança do padrão de usuário
desse espaço, particularmente nos chamados “Setores de Diversão”.
Temos então um cenário peculiar: área
de moradia de famílias de altas rendas que
lhe dá um caráter socialmente homogêneo,
o Plano Piloto é também local de trabalho
de diversas categorias socioprofissionais,
além é claro do funcionalismo de baixo escalão, moradores das cidades satélites. Essa
mistura faz desse cruzamento onde se situa
o Conic uma das áreas “urbanas” de Brasília,
justamente pela heterogênea composição de
atividades e grupos sociais que ali transitam.
O boulevard imaginado por Lúcio Costa é,
portanto, o principal centro comercial do
Plano Piloto.
Trabalha nos edifícios do Conic uma
população aproximada de 10.000 pessoas
e circulam pela sua área cerca de 150.000
pessoas por dia. De fato, o Conic disputa
com o Conjunto Nacional (aproximadamente 500.000 pessoas/dia) o maior número
de pessoas diárias nas suas dependências.
Evidentemente, esse afluxo nesse espaço
está diretamente ligado à presença da rodoviária urbana com ônibus e outros tipos de
transportes coletivos que unem a Esplanada
a todo o Distrito Federal. Mesmo se a classe média do Plano e dos Lagos não tem o
hábito de circular pelo Conic, não se deve
menosprezar o seu potencial de atração de
pessoas. Ora, a presença de atividades de
prestação de serviços no edifício é exclusivamente pela sua localização privilegiada, que
é o grande trunfo do Conic.
O desenho a seguir permite visualizar esse núcleo central a que estamos nos referindo.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
17
brasilmar ferreira nunes
23
18
17
15 16
14
16
13
11
12
10
32
45
18
9
5
Funarte
1
7
2
Fonte: Iara Martorelli: O projeto “Artes Visuais” da Funarte – CEAD/UNB – Brasília – 2008.
LEGENDA
1- Praça dos Três Poderes
2- Marco da Bandeira
7- Panteão da Liberdade e da Democracia
5- Palácio do Itamarati
9- Catedral
45- Museu Nacional de Brasília
32- Biblioteca Nacional de Brasília
10- Teatro Nacional
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
1211131415161718-
Torre de TV
Funarte
Planetário (desativado)
Clube do Choro
Centro de Convenções
Complexo Esportivo do DF
Memorial dos Povos Indígenas
Memorial JK
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
Cidade ainda em fase de consolidação,
Brasília vive ainda um surto de construção
na sua área central, onde estão se implantando edifícios comerciais de alto luxo, hotéis e shoppings centers justamente nesse
polo central. A área vem se transformando
paulatinamente numa área de alto padrão
de consumo e do terciário sofisticado (consultorias, comércio, clínicas médicas, etc.)
afastando para mais distante atividades menos “nobres”. Os primeiros centros comerciais (Setor de Diversão Sul – Conic e Setor
de Diversões Norte – Conjunto Nacional)
vão perdendo status perante os novos que
se implantam nos arredores. Há, portanto,
um movimento de valorização de novos espaços da cidade e desvalorização de outros,
manifestos no perfil do consumidor médio
que os frequenta.
A inauguração do Conic se deu por volta de 1967, ou seja, sete anos após a inauguração da nova capital, sendo o primeiro
edifício voltado para a Esplanada dos Ministérios. Foi batizado informalmente de Conic
a partir do nome da construtora pernambucana que o edificou, com seu nome numa
enorme placa durante a obra, terminando
por se fixar na memória dos passantes como uma das referências da área. Na época,
Brasília contava com poucos habitantes, a
maioria moradores do Plano Piloto (ainda
em fase de implantação) e algumas poucas
cidades satélites (eram quatro: Taquatinga,
Ceilândia, Sobradinho, Núcleo Bandeirantes
e atualmente são vinte e duas). De fato, a
burocracia do Estado que vinha se instalando
em Brasília ainda era em pequeno número:
os órgãos públicos e as embaixadas foram
chegando devagar, alguns deles resistindo à
mudança, enquanto outros permanecem até
hoje na antiga capital, Rio de Janeiro.
As superquadras mais antigas, da Asa
Sul (108, 308, 208, 408 e as vizinhas),
além de algumas outras esporádicas, não
conseguiam tirar o sentimento de um grande canteiro de obras que ainda hoje surpreende o mais desprevenido visitante da
cidade. Assim, na época, o Conic era de fato
longe e de difícil acesso, não exercendo um
papel de centro de diversões cotidianas e rotineiras tal qual havia imaginado o seu idealizador. Como iremos observar mais à frente, o edifício vai assumindo funções que se
alternam com a consolidação do projeto da
nova capital, em cada momento funcionando
de forma integrada à vida da cidade.
Mesmo assim, apesar de nunca ter se
transformado naquilo que foi planejado,
logo após sua inauguração, o Conic atraiu
embaixadas ainda em fase de implantação
na cidade com suas sedes em construção.
Essa presença atraía restaurantes e lojas
mais sofisticadas, quase que concretizando
a proposta original para o edifício. A história mostra que, na medida em que as embaixadas constroem suas sedes e transfere
dali todas as atividades de rotina, o Conic
experimenta rapidamente um processo de
esvaziamento de suas funções e muda devagar o uso de suas instalações. Começam
a aparecer clubes noturnos, bares pouco
sofisticados, dando início à degradação da
área, na medida em que afasta a classe média do Plano e é esquecido pelas autoridades locais.
Etnografia do Conic7
Chegamos ao Conic no período da manhã para dar uma explorada no prédio,
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
19
brasilmar ferreira nunes
20
caminhando pelas suas galerias comerciais
procurando observar o ritmo de pessoas da
área. Sábado, dia de nossa visita, de fato é
um dia de menor movimento. O comércio
funcionava, mas se sentia que o ritmo era
um pouco mais lento, diferente dos demais
dias da semana, de segunda às sextas-feiras,
quando funcionam as empresas e os escritórios nos andares superiores. O desenho da
área térrea, pela entrada da luz do sol no seu
interior, aproxima-se daquele que se imagina
para pequenas e antigas cidades: passagens,
algumas amplas, outras estreitas, que dão
em pequenas praças a céu aberto, pequenos
becos, esquinas, portanto onde o cruzamento pode dar origem ao inesperado. O lugar,
apesar de não apresentar lixos ou detritos
espalhados pelas vias, não transmite aquele
ar acético típico dos shoppings centers do
Plano Piloto. Há projetos para transformar
as pistas de pedestres mais parecidas àquelas dos shoppings, com a colocação de pisos
em cerâmica ou granitos, talvez procurando
atrair uma clientela de gosto mais dentro dos
clichês típicos da classe média brasiliense.
Uma primeira sensação que vem quando
se caminha por suas ruelas é a diversidade
de comércio, com a presença marcante de
algumas atividades em particular. Assim, entrando pela ala norte do Conic, no nível da
rua, são inúmeros os comércios de óculos,
tanto para venda como para reparação. Entre uma e outra, esporadicamente, encontrase um bar ou um boteco sem muita sofisticação, com suas mesas e cadeiras de fórmica
ou plástico, sem uma harmonia aparente.
Observa-se também um número importante
de salões de cabeleireiros, manicuras ou de
estética em geral. Estes eram os mais procurados naquela hora da manhã, entre nove
e onze horas, com clientelas em todos eles.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
Além dessas atividades comerciais, o
térreo do Conic apresenta, ao longo de suas
ruelas e caminhos, ares de um verdadeiro
centro comercial, com atividades as mais
variadas, tais como lojas de discos, roupas,
sapatos, instrumentos musicais, fotos, fotocópias, papelaria, etc. Cabe destaque a simplicidade das lojas, sem nenhuma preocupação em parecerem sofisticadas, numa clara
indicação de que a clientela que para lá se
dirige está procurando mercadorias cuja necessidade vem antes de um status ou prestígio oferecido por comércios que trabalham
com marcas ou grifes.
Chama a atenção, ainda, a existência de
livrarias especializadas em ciências sociais,
medicina e direito na ala sul do imóvel, além
de um cinema com shows de strip tease e
filmes pornográficos (funcionando a partir
do meio dia indo até altas horas da noite)
ao lado de centros religiosos de cultos evangélicos. As livrarias são de excelente qualidade, com obras representativas de cada
área acadêmica que trabalham. Visitei com
mais cuidado a que oferece obras de ciências
sociais e pude comprovar a excelente qualidade do acervo disponível, além do elevado
domínio dos últimos lançamentos pelo seu
proprietário. Destaca-se, inclusive, a erudição do mesmo, que não só está ciente dos
últimos títulos no mercado como emite opiniões de obras e autores com bastante conhecimento de causa.
A distribuição do comércio pela área
do imóvel obedece à lógica de localização
de atividades comerciais em sítios urbanos
tradicionais. Assim, há uma concentração de
atividades em áreas próximas segundo a natureza do serviço ou do produto ofertado:
lojas de materiais óticos situam-se na entrada norte do imóvel, as livrarias, na entrada
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
sul, no centro espalham-se as roupas, discos,
calçados, etc. num diversificado ambiente
comercial que indica uma lógica locacional
no prédio. Os restaurantes se concentram
mais aos fundos, onde também podem ser
encontrados alguns estabelecimentos especializados, tais como instrumentos musicais,
livrarias religiosas, sedes de partidos políticos e fotocopiadoras. A frente para a praça
externa aparece como uma espécie de vitrine
daquilo que está espalhado pelo interior do
imóvel, ou seja, materiais fotográficos, óticas, roupas, livros e os bares um pouco mais
sofisticados. Essa calçada faz claramente o
papel de uma rua tradicional de cidade, talvez uma das poucas do Plano Piloto.
O subsolo do edifício tem ar de espaço
semiabandonado: muitas lojas fechadas, vazias, algumas situadas em becos com pouca luminosidade, aliás, uma das particularidades de inúmeros edifícios da primeira
fase da cidade. No geral, o subsolo transmite uma sensação de difícil acessibilidade e
em outros momentos foi o lugar preferido
por marginais. O mesmo pode ser deduzido
quando se olha para a lateral sul do prédio
ou a parte detrás do imóvel. Nesta há um
estacionamento e serve também para cargas e descargas de mercadorias. Essa parte
detrás é, curiosamente, a de maior visibilidade para quem olha o Conic a partir do
Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional,
ou mesmo descendo o eixo monumental em
direção à Esplanada dos Ministérios. Uma
visibilidade esteticamente comprometedora pois o bric-a-brac dos anúncios comerciais transmite a impressão de um imóvel
sujo, sem regras ou administração. Claro
que essa impressão é reforçada pela arquitetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou
mesmo pela perspectiva da plataforma da
rodoviária, vista por quem desce o eixo em
automóveis ou ônibus.
O comércio que se encontra no Conic
atende a uma clientela absolutamente heterogênea. Nota-se perfeitamente a convivência de indivíduos de diferentes estratos
sociais, fato de rara constatação no Plano
Piloto, onde vive uma classe média padronizada no estilo de ser, vestir e se comportar
em áreas coletivas. O que se percebe é que
ali os moradores das satélites se sentem familiarizados com a disposição e padrão das
lojas, e a possibilidade de se apropriarem do
espaço sem a sensação de estarem invadindo
um território privado. Essa sensação, visível
nos shopping centers mais sofisticados da cidade (Pátio Brasil, Brasília Shopping, Liberty
Mall e em menor escala no próprio Conjunto Nacional) fica completamente diluído no
Conic, que transmite uma imagem de área
multisocial onde um indivíduo morador do
Plano Piloto convive com aquele das satélites, frequentando ambientes comuns.
A frequência de certos estabelecimentos
do edifício é, no entanto, claramente, determinada pelo status social. Por exemplo, nos
cabeleireiros, o que se percebe é uma clientela mais popular, o mesmo pode também
ser observado em alguns bares, restaurantes
ou igrejas ali existentes. Porém, nas lojas de
tênis, materiais de esportes radicais (skates,
rollers, discos, etc.), a clientela é mais heterogênea, com indivíduos de aspecto típico dos frequentadores dos shoppings mais
sofisticados. Nestes, as rodas de jovens na
porta ou alguns transeuntes que param nas
vitrines indicam um território particular
de “tribos” urbanas que se autoidentificam por um padrão similar de consumo,
de vestimenta, de gosto, enfim, de estética
no seu sentido mais amplo. É um território
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
21
brasilmar ferreira nunes
22
aparentemente democrático, onde o que une
os que ali estão é o interesse comum por
certos produtos e marcas vendidas nas lojas,
definindo certos espaços do Conic pelas características de seus frequentadores.
As livrarias especializadas e a loja
de partituras musicais – “uma das mais
completas do país”, segundo o seu proprietário – têm uma clientela exclusiva: um ambiente calmo, tranquilo como deve ser um
lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A
loja de instrumentos e partituras musicais já
apresenta uma clientela maior, mas o ambiente é peculiar, com pessoas conversando
em voz baixa, vestidos de maneira tradicional sem ostentação, com gestos contidos,
traduzindo uma clientela com certo grau de
sofisticação, habituados talvez a frequentar
ambientes similares em outros centros.
Circulando pelo Conic, pudemos observar a presença de pessoas notáveis de Brasília, entre profissionais liberais, professores
universitários e indivíduos com seleto gosto
musical procurando material original nas livrarias e nas lojas especializadas (disco e de
instrumentos e partituras musicais). Para os
boêmios, pessoas ligadas direta ou indiretamente à atividade artística, funciona ali um
teatro e uma escola de arte dramática. Este
é, sem dúvida, um aspecto particular de um
edifício urbano que foge aos padrões tradicionais dos edifícios da administração federal
na Esplanada ou mesmo de shoppings centers de Brasília, frequentados quase exclusivamente pela classe média. Se agregarmos
ainda a possibilidade de convivência com
diferentes perfis de pessoas atraídas ainda
pela diversidade de seu comércio, o Conic
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
não deixa de ter o seu charme garantido.
Isso, sobretudo, porque os frequentadores
do Conic fazem dali um lugar para estar e
não apenas para passar, como é usual em
shoppings.
Um acontecimento curioso foi a chegada dos evangélicos na área. Inicialmente,
houve uma proposta do Bispo Macedo para
comprar o Cine Atlântida, uma das melhores
salas de cinema da cidade. De fato, o cinema, como todo o conjunto, é tombado pelo
IPHAN, mas o espaço estava ficando ocioso
justamente pela fuga dos espectadores. O
governo do DF encaminhou então à Câmara
Legislativa uma consulta sobre as possibilidades de a Igreja Universal adquirir o Cine
Atlântida numa área do Plano projetada pelo
Lúcio Costa. O parecer da Câmara Legislativa foi positivo, sob o argumento de que
atividades religiosas podem ser entendidas
como teatro, uma diversão do povo, não ferindo as recomendações do projeto original
do Plano Piloto e do edifício. Mesmo se não
concordássemos com a designação de arte
às cerimônias religiosas, do ponto de vista
formal, é diversão, é encontro, é interação.
Não há, portanto, incompatibilidade com o
projeto de Lúcio Costa.8 Por outro lado, a
presença dos fiéis no Conic praticamente
não interfere em nada na rotina do edifício:
chegam, oram e partem sem olhar para o
lado. É um público que não consome, não
se diverte, não se envolvendo com a vida do
imóvel. Mas acaba sendo a única razão para
o Conic estar nas residências de milhões de
brasileiros diariamente, pois as cerimônias
que ali acontecem são televisionadas em cadeia nacional.
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
A invisibilidade do concreto
Compreender essa diversidade de tipos sociais que aí circulam pode ser um exercício
interessante para analisar os efeitos do projeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de
Brasília. Saindo do Conic na pequena praça
que se situa à sua frente, nos damos conta
de que, enquanto morador do Plano Piloto, que passa em automóveis algumas vezes
por semana vindo da Asa Norte em direção
à Asa Sul, o prédio parece invisível. Curioso
que, enquanto o Conjunto Nacional chama
a atenção pelo movimento diurno ou pelos
néons noturnos, o Conic não tem registro
nenhum na nossa memória. Sinto-me incapaz de descrevê-lo enquanto transeunte
rotineiro do lugar. Tudo se passa como se
olhássemos sem vê-lo. É um edifício que,
situado na área mais privilegiada do desenho da Esplanada – com exceção é claro
dos monumentos do Estado –, consegue ser
completamente invisível ao olhar dos transeuntes, motorizados ou pedestres. Só muito recentemente foram instalados anúncios
em néon que se destacam, sobretudo para quem vem do Congresso Nacional, pela
Esplanada dos Ministérios em direção ao
cruzamento dos eixos.
Podemos supor dois aspectos que podem estar na base de compreensão daquela sensação de invisibilidade que o edifício
transmite. Por um lado, um senso estético
hegemônico no Plano que não consegue incorporar nos seus parâmetros alguns princípios de uso do espaço, sobretudo quando vem expresso por indivíduos ou grupos
considerados “exteriores” ao que se toma
por bom-gosto. Certamente, o submundo que o Conic representou passou a ser
a ferida exposta da cultura asséptica que
prevalece no Plano Piloto, que, fora esse
edifício, talvez só possa ser encontrada em
alguns bares tradicionais redutos da boemia
da cidade. Mesmo naqueles onde uma vanguarda da cidade faz ponto, o Conic sempre
foi visto como “muito mais maldito”, muito mais transgressor. E isso, mesmo hoje,
quando, com a chegada das igrejas evangélicas, o lugar passou de profano a sagrado,
com requintes de bom comportamento por
parte dos fiéis frequentadores dos templos
aí localizados.
Por outro lado, é a própria localização
do edifício, uma extensão do Setor Comercial Sul, que como tudo no Plano Piloto parece tão longe, mesmo quando está “logo
ali”. O Conic só se torna uma exceção quando olhado ou da Esplanada, ou do Tea tro
Nacional, ou até mesmo do Conjunto Nacional. Do contrário, ele é apenas uma prolongação do Setor Comercial Sul em direção à
rodoviária, beneficiando-se de uma quantidade enorme de pedestres, consumidores
em potenciais, que fazem o trajeto cotidiano de ida e volta ao Setor Comercial Sul nas
suas rotinas de trabalho. A maioria habitante das cidades satélites, comerciantes, profissionais liberais, bancários, camelôs, jornaleiros, flanelinhas, auxiliares de escritórios,
office boys , enfim, uma multiplicidade de
tipos humanos e atividades que terminam
por serem os verdadeiros responsáveis para
que o Plano Piloto adquira um ar de espaço
urbano, que aliás causou admiração a Lúcio
Costa quando visitou Brasília em fi ns dos
anos 80.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
23
brasilmar ferreira nunes
O imaginado e o
acontecido com o Conic
24
É interessante ressaltar que, com todas as
restrições que porventura se possa fazer ao
edifício, ele é patrimônio da humanidade,
tanto quanto os demais imóveis de porte
que aparecem no projeto original da cidade.
Nesse aspecto, talvez seja essa a única razão
pela qual não tenha ainda sido demolido, como de tempos em tempos se cogita.
Na proposta original de Lúcio Costa, este “Setor de Diversões Sul” estaria selecionado para abrigar livrarias, cafés, boates e outras atividades que pudessem vir a preencher
as necessidades de lazer da futura população
do Plano. É interessante esse aspecto pois,
embora se tenha tido a intenção de diversificar os grupos sociais que viriam habitar a
cidade planejada, os equipamentos de lazer
propostos se dirigiam, em tese, para padrões sofisticados de consumo, numa clara
ambivalência daquilo que a proposta continha. De fato, esse Setor de Diversões é imaginado como algo sofisticado, para atender
padrões também sofisticados de consumo.
A tentativa de se reproduzir um padrão
de uso do espaço próximo de um Quartier
Latin, onde diferentes grupos de funcionários, estudantes, comerciantes, profissionais
liberais se encontram denota uma intenção
de reproduzir algo sofisticado que, fora a
democracia dos espaços das praias urbanas
do Rio de Janeiro, não corresponde à cultura
de lazer da classe média urbana do país. De
qualquer forma, a existência de um teatro,
de uma escola de arte dramática, de livrarias
de diferentes especialidades – científicas,
religiosas, etc. – de cinemas (hoje cedendo
lugar a templos evangélicos), dentre outras
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
modalidades de comércio, que poderia ser
privilégio de consumidores mais exigentes,
não foi suficiente para evitar que, devagar,
o uso do imóvel fosse cada vez mais se popularizando. A esse discurso inicial que planeja uma área com um certo uso para um
grupo com um certo padrão de exigência e
de estética se impregnou a imagem estigmatizada que o Conic apresenta hoje perante
os moradores do Plano Piloto.
Essa imagem estigmatizada se apresenta em duas dimensões: por um lado, pelo
estado de conservação do imóvel, abaixo dos
padrões dos shoppings da cidade; por outro,
pelo perfil médio dos frequentadores do lugar, no geral. Curioso que o Setor Comercial Sul (SCS), ao lado, não provoca tanto
mal-estar, mesmo porque, compondo-se de
diferentes edifícios, o uso e o porte é muito
superior ao do Conic e a sua apropriação é
absolutamente absorvida pelos moradores
do Distrito Federal. Certamente essa absorção se dá também pelo próprio desenho das
ruas e dos imóveis que compõem o SCS que
integra também aqueles espaços “invisíveis”
do Plano Piloto, em torno do qual passamos
quotidianamente ser vê-lo, ao contrário,
portanto, do Conic este sim, situado num
lugar de passagem obrigatório para quem
circula no Plano Piloto, detentor de uma visibilidade evidente.
O processo de
degradação do edifício
e arredores
Num primeiro momento, o fato de se ter
um edifício estigmatizado no centro do
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
Plano Piloto de Brasília, em si, não é uma
questão original. Todas as grandes cidades
do mundo apresentam áreas desvalorizadas,
justamente em locais que, pela sua antiguidade, já contam com infraestrutura urbana
praticamente completa. É, aliás, essa a razão
pela qual a onda de renovação urbana tem
sido observada em praticamente todas as
grandes cidades do mundo ocidental nestas
últimas décadas. Paris, Nova York, Barcelona, São Paulo, Salvador, Recife, dentre outras, passam por processos de gentrificação
de seus espaços degradados, atraindo uma
classe média endinheirada e intelectualizada
que valoriza justamente a estética e o conforto dos velhos imóveis de outros tempos.
Apesar de tímida, a tentativa de renovação
do Conic vai na mesma direção,
Entretanto, fica sempre uma questão
inquietante: por que edifícios ainda recentes,
situados em áreas privilegiadas da cidade,
gozando de facilidade de acesso e de uma
infraestrutura completa e adequada se deterioram com tanta rapidez? É verdade que o
Plano Piloto tem alguns edifícios com características de degradação precoce, mas todos
eles nunca antes ocupados efetivamente.
São muitos deles projetos inacabados, que
se transformam em ruínas antes mesmo de
terem sido inaugurados.
Mas o Conic é diferente. Aqui é, de
fato, um imóvel em pleno uso, com uma
inserção específica na vida da cidade e que
pode ser considerado como um dos mais
ecléticos imóveis do Plano Piloto, pela diversidade de usos e de frequência. Se rompermos com a imagem de shopping center
como aquele lugar superprotegido, fechado,
sem visibilidade externa, o Conic pode ser
considerado um shopping center tal e qual
os demais. Talvez até mesmo uma proposta
de centro comercial e de diversões que foge
aos padrões similares oriundos dos modelos
norte-americanos, além de sua originalidade
arquitetônica, dada as características climáticas do Planalto.
Poderíamos também formular uma outra questão: por que o Conic se deteriora,
enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e
com várias semelhanças de usos, guarda sua
imagem? Mesmo se levarmos em conta que
o público que frequenta o Conjunto Nacional seja também diversificado por origem e
renda (característica, aliás, inevitável, pois a
localização no cruzamento dos eixos e sobre
a rodoviária urbana induz a isso), o edifício
tem muito dos princípios arquitetônicos padronizados para shopping centers. A exceção
são lojas com abertura para as calçadas externas, mas que, por arranjos de fácil execução,
voltaram-se para o interior do prédio. Fora
isso, é um shopping com diversidade de usos
e de frequência dos mais movimentados da
cidade com condições semelhantes ao Conic.
Não deixa de ser, portanto, uma questão que
se coloca quando se pensa nos caminhos que
seguiram um e outro edifício.
Uma das causas dessa diferença pode
ser atribuída ao modelo de gestão adotado
em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional
foi adquirido por um grande grupo que o
transforma naquilo que ele é hoje, submetendo-o a uma única administração, o Conic
é formado por 13 edifícios, logo, 13 condomínios, com 1.700 proprietários, cada
qual com sua parcela de poder na definição
dos rumos do imóvel. Há cerca de dez anos
atrás foi criada uma Prefeitura do conjunto
para centralizar a administração do prédio,
com a função prioritária de acabar com o
estigma de área perigosa e para normatizar
as áreas degradadas. A primeira função foi
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
25
brasilmar ferreira nunes
26
praticamente cumprida: cria-se uma delegacia de polícia dentro do edifício e restringese o tráfico de drogas e prostituição. Podemos, mesmo sem parecer enfáticos, considerar que hoje o Conic é uma das áreas mais
seguras dentro do Plano Piloto.9 Entretanto, o estigma permanece. As razões disso
só poderiam ser encontradas na lógica de
fixação de pré-conceitos no imaginário dos
habitantes da cidade que se enraízam e se
espacializam. O espaço urbano é a concretização do imaginário social que se constrói
no histórico cotidiano e o Conic permanece
ainda como lugar pouco nobre. De qualquer
forma, com a retirada de marginais que ali
tinham suas bases, devagar o Conic vem se
transformando através de remodelação de
aspectos do projeto original,10 numa procura de resgate de sua primeira proposta.
Isso significa que enquanto o Conic não for
transformado esteticamente segundo padrões usuais dos shoppings vizinhos ele permanecerá um “corpo estranho”, separado,
mas funcionalmente necessário, limitado que
está àquela racionalidade do Plano Piloto.
Por outro lado, é essa diferenciação no
uso ante os demais imóveis da área que parece constituir o ponto de apoio mais importante do argumento segundo o qual não se
pode considerar a área da Esplanada dos Ministérios esteticamente unificada. Entretanto, vale ressaltar ainda o potencial de área
alternativa que o Conic contém. Se, por um
lado, conforme destacado acima, a multiplicidade de proprietários dificulta a gestão do
imóvel nos moldes que ocorrem em outros
shoppings centers, por outro, essa condição
pode ser um trunfo que o diferencia das experiências similares no Plano. Sim, porque o
Conic vem, devagar, se tornando uma área
alternativa dentro do Plano Piloto, numa
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
clara diferenciação entre o organizado e o
racional cartesiano que é o Projeto de Lúcio
Costa; de fato, por se tratar de uma área
anárquica, caótica, enfim urbana, e graças
a essa indefinição, uma área com maior liberdade de uso, o edifício começa a seduzir
uma gama de artistas, arquitetos, poetas,
cineastas, etc., atraídos justamente por esta “irracionalidade” e este ar de pretensa
“marginalidade”. Na verdade, uma área que
aparece quase que como um gueto dentro
do Plano Piloto.
Um “gueto” ao inverso
no Plano Piloto
A ideia de “gueto” urbano vem da obra de
Wirth, quando trata das características socioculturais do bairro judeu de Chicago na
primeira metade do século XX. Conforme o
próprio Wirth destaca, o gueto foi, na origem, um lugar de Veneza, um de seus bairros, onde se estabeleceu a primeira comunidade judaica. Transformou-se, ao longo do
tempo, numa instituição reconhecida pelo
costume e definida pela lei. Os dicionários
da língua portuguesa definem gueto como
“bairro em qualquer cidade, onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais”.
Tanto a definição de Wirth como aquela do dicionário não poderiam se adequar à
caracterização do Conic como um gueto. Um
olhar mais apressado diria mesmo que é o
oposto, dada a diversidade de tipos urbanos
que o frequenta e que terminam por dar-lhe
sua identidade. Entretanto, visto no contexto do Plano Piloto, especialmente na Esplanada dos Ministérios, no qual ele se insere,
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
ele aparece justamente como uma exceção
ao padrão estético e funcional da área. Neste sentido, e apenas neste, ele aparece como
um espaço singular que abrange não apenas
os tipos sociais, mas também a sua própria
arquitetura interna que vai sendo criada e
recriada sem a rigidez legal da Esplanada.
Aí sim ele é singular; uma singularidade que
se acentua dada a “distância” do Setor Comercial Sul. Aí ele pode ser visto como um
gueto, um corpo estranho a uma classe média moradora do Plano Piloto, com a diferenciação nos tipos sociais e no uso ante os
demais imóveis da área.
Permanece sempre a pergunta do porque numa área tão privilegiada o “povo brasileiro”11 tomou conta daquele espaço. Uma
das possíveis explicações pode estar no grupo que está por detrás da construção dos
prédios do Conic. Brasília foi um eldorado
para as construtoras quando da edificação
da cidade nos anos 50. Além das grandes
empresas nacionais que se responsabilizaram pelas obras dos edifícios públicos, pelo sistema viário e mesmo pelos blocos dos
apartamentos funcionais, outras empresas
regionais também fizeram fortuna naquele
momento.12 Talvez por razões de economia
ou por valores culturais e estéticos, ou mesmo porque a cidade que se construía naquele
momento, não tinha ainda como exigência a
ostentação de luxo e sofisticação como atualmente ocorre, o fato é que o visual do prédio é simples, sem ostentação. Fica evidente
quando o olhamos que seus idealizadores
não tiveram a estética como diretriz. Aliás,
se olharmos os prédios por eles construídos
no Plano Piloto, certamente, eles estariam
classificados entre os que apresentam uma
arquitetura sem estilo, numa caricatura de
um modernismo caboclo: construções que
envelheceram e perderam o charme muito
rapidamente.
A dinâmica social
do edifício
Há um consenso entre os frequentadores
usuais do Conic, mais particularmente entre
os comerciantes que têm lojas no edifício, de
que se trata de um dos lugares mais seguros
do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial
Sul e o próprio complexo Gilberto Salomão
no Lago Sul área nobre da cidade. Esse argumento pode encontrar princípio de realidade,
sobretudo se levarmos em conta a presença
de um batalhão da polícia militar com uma
delegacia dentro do próprio conjunto edificado: fala-se num efetivo de 500 homens que
se revezam dia e noite na vigília do prédio
e arredores, o que inviabiliza qualquer convívio com criminosos de qualquer estirpe.
Claro que não estamos aqui considerando o
trabalho das prostitutas que ali fazem ponto
noturno, não causando nenhum transtorno
maior aos frequentadores do lugar, inclusive
os evangélicos e suas famílias. Entretanto, o
Conic hoje tem uma imagem estigmatizada,
principalmente junto à classe média tradicional do Plano Piloto, resquício de um período
em que a situação beirava o descontrole. Podemos considerar três fases na vida do edifício a partir de sua inauguração.
Numa primeira fase, o edifício atraía
as embaixadas estrangeiras que tinham ali
seus escritórios de representação, os profissionais liberais, partidos políticos, etc. A
localização privilegiada facilitava a preferência, que se manteve enquanto as sedes oficiais das representações diplomáticas foram
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
27
brasilmar ferreira nunes
28
sendo construídas. Naquele momento, o
local era frequentado pela alta burocracia
do Estado, tinha lojas e restaurantes condizentes com os frequentadores, um retrato
que se aproximava muito daquele imaginado por Lúcio Costa. Esse público com poder
de compra estável e de elevado padrão certamente atrai diferentes atividades para a
área, particularmente aquela que se instala
na segunda fase do edifício.
Nessa fase segunda, o local é invadido pela prostituição, pelo crime, tráfego de
drogas, num período de decadência, responsável pela imagem que o edifício carrega até
os dias atuais. Essa imagem se alastra com
uma certa facilidade, talvez pela situação
do imóvel dentro do Plano Piloto e a sensação de invisibilidade que ele transmite aos
passantes pelas suas calçadas e ruas que o
circundam. É essa ambivalente situação espacial – visibilidade e invisibilidade – aliada
a um desenho interno que, tentando reproduzir ruas e becos de sítios urbanos tradicionais, termina por ser funcional às transgressões que ali se desenrolavam. Se considerarmos que a sociedade não deixa de ser
um mecanismo de introjeção de valores e
comportamentos, muitos deles restringindo
a própria natureza humana, podemos também assumir que espaços de transgressão
sempre existiram nas cidades na história. A
funcionalidade da prostituição – “a mais antiga profissão do mundo” –, as drogas, que
funcionam como mecanismos de escape, ou
de vícios, enfim uma série de práticas que
são reprimidas socialmente, mas que a sociedade arruma sempre uma forma de permitir a sua existência é regra geral em áreas
de elevada densidade populacional. Claro
que os espaços urbanos para práticas transgressoras nunca são definidos de forma
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
legal ou tranquila, mesmo se em passado
recente era comum nas cidades brasileiras
reservar uma de suas áreas onde se concentravam as prostitutas (a zona); hoje essas
zonas estão praticamente desaparecidas. É
de se supor que nos anos sessenta e setenta
a cidade tinha um mercado razoável para o
sexo, na medida em que as pessoas chegavam, desenraizadas, descoladas de vínculos
mais estreitos e, sobretudo, com salários fixos que permitiam alguns “excessos”. Uma
parcela da burocracia vai encontrar na oferta das prostitutas do Conic uma facilidade
enorme para se satisfazer e, em sendo um
negócio, pode-se argumentar que há uma
racionalidade econômica na opção por aquele território.13
Atualmente, podemos considerar como
sendo a terceira fase do Conic. Cria-se a sua
prefeitura atendendo demanda dos comerciantes e profissionais que ali trabalham,
instala-se uma delegacia, há uma debandada do crime e do tráfego. Essa terceira fase
pode ser considerada a “onda política” com
a presença da sede de diferentes partidos e,
portanto, frequentado rotineiramente pelos
dirigentes e militantes. Alguns estabelecimentos comerciais (livrarias, teatro, lojas
especializadas, alguns bares) atraem professores universitários, aposentados (no Plano
Piloto é importante a presença de aposentados), profissionais liberais que, ao lado dos
candangos das satélites, fazem do lugar um
ponto de referência, de encontro. De forma
que, hoje, entre o estigma de lugar decadente e a procura de um charme de vida urbana
que raramente se encontra no Plano Piloto,
o Conic vive sua nova fase.
Poderia estar aí um dos trunfos da reabilitação ou da inserção do Conic no Plano
Piloto nos moldes que foi pensado por
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
Lúcio Costa. Para os moradores da cidade,
uma das maiores carências são as áreas de
convívio coletivo que escape aos jardins e
áreas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas
grandes cidades brasileiras, Brasília tem em
quantidade, porém não dispõe, por exemplo, de “botecos” um velho hábito urbano
do país, que foi completamente esquecido,
talvez pela trivialidade do fato. Áreas onde
seja possível tomar um cafezinho, utilizar
um banheiro, sentar numa mesa para um
aperitivo, uma conversa. Lazer em Brasília
são bares e restaurantes, a maioria deles
formais o suficiente para exigir um certo ritual de frequência. Dificilmente são lugares
onde se vai espontaneamente. Pois o Conic
é justamente isso. Com uma localização privilegiada, pensado justamente para ter estas características de uso, sem a assepsia de
shoppings com seus insistentes apelos de
consumo. Aqui se vê que a parcela criativa
do urbanista foi pensada, o que faltou foi a
criatividade das pessoas que para cá vieram,
obviamente com as exceções de praxe.
Espaço de exceção,
espaço de outras
sociabilidades
Toda a discussão sobre o estigma que caracteriza o Conic é no fundo um olhar de fora
sobre o edifício. Há na cidade indivíduos que
frequentam rotineiramente o lugar, fazem
dali um ponto de encontro entre amigos, de
conversas, compras, enfim, fazem dele um
lugar urbano de multiusos. Para a rotina
de Brasília, onde o ato de andar à pé só se
faz nos fins de semana, quando se caminha
pelas superquadras ou pelos parques, ficou
uma sensação curiosa e familiar ao mesmo
tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um
movimento. No fundo, é ali que a Esplanada
é mais cidade.
Na verdade, podemos nos perguntar
se seria o caso de intervir para alterar ou
ordenar o espaço coletivo do edifício? Claro que se olharmos pelo lado da arquitetura
não oficial do Plano Piloto, especialmente
da Esplanada, o Conic é sem dúvida o maior
monumento histórico da cidade. O fato de
os arquitetos da nova capital não terem tido
nenhuma preocupação com populações fora do núcleo do poder, do governo, fez do
Conic o contraponto entre o oficial e o não
oficial na estética do Plano Piloto: a antítese daquilo que é a regra geral para o Plano
Piloto. Talvez seja o único edifício de uma
área tombada pela Unesco que, de tempos
em tempos, alguém propõe demolir. Causam pouca reação propostas dessa natureza,
mas servem para reunir um grupo de intelectuais, arquitetos, artistas, comerciantes
e frequentadores do Conic num grupo de
reflexão para traçar o futuro do edifício e
protegê-lo das ameaças de destruição. Tudo
está indicando que intervenções seriam simplesmente para consolidar o papel atual do
Conic construído em décadas de existência
que se confunde com a própria história da
cidade. Será nesse confronto entre o “ódio”
que o Conic provoca em uns e o “amor” que
desperta em outros que o futuro do edifício
está sendo tratado.
Os clássicos da sociologia, Simmel à
frente, trataram a metrópole como um “fato
civilizatório” na medida em que ela simbolizava a forma geral da modernidade. Nisbet
(1984, p. 381) argumenta que a metrópole joga no pensamento de Simmel o mesmo
papel que a democracia para Tocqueville, o
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
29
brasilmar ferreira nunes
30
capitalismo para Marx e a burocracia para
Weber. Foi ele o primeiro que fez da grande cidade o lugar por excelência no qual se
exprime a lógica social da sua época. Com
os avanços do capitalismo e com a globalização, podemos afirmar que essa é uma assertiva cada vez mais evidente. Não se pode
perder de foco o fato que a heterogeneidade
da metrópole termina encontrando nela um
ambiente adequado à existência de grupos
e tipos urbanos singulares e com menores
possibilidades de controle. Garantindo a unidade na diversidade, a metrópole termina
por se constituir como a síntese civilizatória
dos tempos modernos, ambiente propício ao
aparecimento de formas originais de socialização. Mais uma vez temos que recorrer
a Simmel para recuperar o seu argumento
de generalização da moeda na metrópole,
fenômeno que permite o aparecimento de
tipos originais no ambiente da grande cidade (o indivíduo blasé, o estrangeiro, o reservado), resultando na diferenciação social
típica da modernidade. É interessante essa
tipologia simmeliana, pois não se trata aqui
de classificar os indivíduos que frequentam o
Conic como excluídos ou algo parecido. A diversidade de tipos humanos e de atividades
econômicas poderia dar margens a tensões
no convívio diário. Mas tudo está indicando
que há códigos informais de convívio e as
pessoas terminam por não interferir no espaço uma das outras. Certamente, a imagem
de uma área caótica que se sente quando ali
estamos tem muito da programação visual
do comércio ali existente e do contraste com
o desenho racional da maioria dos edifícios
do Plano Piloto.
Assim, não se trata de um recorte econômico simplesmente, mas sim de formas
de sociabilidade distintas. O que procuramos
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
mostrar para o caso do Conic é que sociabilidades heterogêneas induzem ao aparecimento de ambientes (estéticas) também
heterogêneos, mesmo em espaços pensados
para serem homogêneos, como é o Plano
Piloto. A área escolhida pode ser lida então
como um espaço de possibilidades de novas
modalidades de uso da cidade por indivíduos
e grupos que não estavam contemplados no
seu projeto original, apontando fissuras no
seu espaço físico.14 Há aqui estreita relação
entre ambiente construído e seus usos: frequentar o Conic é elemento identificatório
do lugar social do indivíduo, exigindo na sua
análise elementos científicos e metodológicos que dialoguem com um certo número de
disciplinas, tais como a arquitetura, a economia, o urbanismo em torno de questões
sobre a racionalização, a concentração, a divisão do trabalho.
Já é consensual entre os estudiosos do
urbanismo modernista no Brasil da segunda metade do século XX que a cidade era a
síntese de um projeto de sociedade. Brasília,
sob essa perspectiva, aparece como a unidade central (a city) física e social, cujo espaço
construído é denso, com funções econômicas (terciárias) vitais. Ela se liga às cidades
satélites, relativamente autônomas, mas se
mantém como sede das atividades econômicas, do emprego formal, com uma autonomia interna. Essa centralidade física e social
polariza os seus arredores e deve, portanto,
garantir espaços de sociabilidades que escapam àquela hegemônica oriunda da cultura
burocrática de uma cidade-Estado. Na verdade, ela cumpre assim seu papel de metrópole, na medida em que garante a existência de
tipos urbanos peculiares da grande cidade:
em outras palavras, o “estrangeiro” tem seu
território de existência garantido no Conic.
elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades
Brasilmar Ferreira Nunes
Doutor em Sociologia pela Université de Picardie – França. Professor Ttitular de Sociologia da
Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil).
[email protected]
Notas
(1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para ficar apenas entre os considerados referências em nosso campo de trabalho. Isso para não falar no geógrafo, Prof. Milton
Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importância do espaço na construção das relações sociais.
(2) O que, aliás, foi a perspectiva dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do século
XX que tratavam a cidade e suas áreas como “zonas morais”. Park (1976), Chapoulie (2001).
(3) Com a evolução da tecnologia e a expansão do setor terciário da economia onde hoje o lugar de
trabalho é cada vez menos dependente da localização da unidade produtiva e onde o trabalho
em casa ganha cada vez mais importância, não se pode negar que o debate sobre os argumentos dos modernistas ganham novos elementos.
(4) É em razão disso que ele introduz a noção de “ambiente” e faz das variações do ambiente um
fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecânica se torna ultrapassada e deve
ser substituída pela solidariedade orgânica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995).
(5) A ideia de matriz utilizada pelo autor é “a organização de paradigmas de várias disciplinas que
formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo” (Duarte,
2002, p. 23).
(6) Não iremos aqui reproduzir essa discussão, de resto inútil, pois a cidade de Brasília se implantou e se
consolidou com todas as limitações que porventura possa se constatar no projeto apresentado.
(7) Na elaboração desse tópico, tive a companhia de Naraina Kujimian, então bolsista de PIBIC. Em
certa medida, procuramos seguir as orientações de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fazendo uma leitura minuciosa do cotidiano do edifício para situar o leitor no contexto do objeto
analisado.
(8) Nas palavras de um de nossos entrevistados: “É polêmico, mas se respeitarmos a liberdade de
culto e de crença, a Igreja Universal é hoje o teatro do absurdo mais importante do mundo”.
(9) Após o período de auge, quando de sua inauguração, o Conic sofre um processo de decadência
que transforma o lugar num ponto de tráfico de drogas, prostituição e mendicância. A Prefeitura trouxe então o Batalhão da Polícia Militar, afugentando os indesejáveis. Hoje não se fala mais
em quadrilhas de traficantes agindo no Conic e a área é uma das mais seguras do Plano Piloto.
(10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e propõe várias intervenções no seu desenho físico.
(11) Expressão de Lúcio Costa referindo-se à população que tomou conta da rodoviária e arredores de
Brasília. Ver Costa (1987).
(12) Na construção do Conic estão três dos grandes empresários pioneiros construtores de Brasília:
Venâncio, Baracá e o Karim Narrote.
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
31
brasilmar ferreira nunes
(13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o tráfego de drogas, que se beneficia do
mercado consumidor do Plano Piloto.
(14) É interessante isso, pois hoje já se pode constatar que essas “fissuras” no projeto original estão
ampliando seus territórios dentro da área, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupação dos imóveis por pessoas e atividades que fogem ao padrão hegemônico no Plano está cada vez mais
evidente, num claro sinal de que a cidade é um produto coletivo em movimento. Ver Luis Felipe
Castelo (2007).
Referências
BECKER, H. (2008). Segredos e truques da pesquisa. Rio de Janeiro, Zahar.
CASTELO, L. F. (2007). Fissuras urbanas. Dissertação de Mestrado do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo. Brasília, UNB.
CHAMPY, F. (2001). Sociologie de l´architecture. Paris, La Découverte.
CHAPOULIE, J-M. (2001). La tradition sociologique de Chicago. Paris, Seuil.
COSTA, L. (1987). Adensamento e expansão urbano do Plano Piloto. Brasília Revisitada 1985/87
________ (1991). Brasília, a cidade que inventei (Relatório do Plano Piloto de Brasília). Brasília, Codeplan, GDF.
32
DUARTE, F. (2002). Crise das matrizes espaciais. São Paulo, Perspectiva/Fapesp.
DURKHEIM, E. (1987). As regras do método sociológico. São Paulo, Nacional.
GRAFMEYER, Y. (1994). Sociologie urbaine. Paris, Nathan.
JACOBS, J. (1991). Déclin et survie des grandes villes américaines. Liége, Mardaga.
JACQUES, P. B. (2003). A estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica.
Rio de Janeiro, Casa da Palavra.
LEITÃO, L. e AMORIM, L. (org.). (2007). A casa nossa de cada dia. Recife, Edit. da UFPE.
NISBET R. A. (1984). La tradition sociologique. Paris, PUF.
PARK, R. E. (1976). “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio
urbano”. In: VELHO, O. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar.
REMY, J. (org.). (1995). George Simmel: ville et modernité. Paris, L`Harmattan.
VELHO, G. (1989). A utopia urbana: um estudo de antropologia social. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
WIRTH, L. (1989). “O urbanismo como modo de vida”. In: VELHO, G. A utopia urbana: um estudo de
antropologia social. Rio de Janeiro, Zahar.
________ (1980). Le ghetto. Grenoble, Presse Universitaire de Grenoble.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 13-32
10 sem. 2009
Por um novo enfoque teórico
na pesquisa sobre habitação
Ermínia Maricato
Resumo
O texto constata que a maior parte das pesquisas sobre habitação se dão no contexto da esfera do consumo, dimensionando-o e qualificando-o. O Estado e as políticas públicas ocupam
um papel central no conjunto desses trabalhos.
Embora eles forneçam um quadro importante
sobre a carência de moradias, a segregação territorial, a exclusão social e as políticas institucionais ignoram, frequentemente, a centralidade da produção na determinação do ambiente
construído. Em especial, chamam a atenção a
produção acadêmica sobre arquitetura e urbanismo que ignora a construção e a produção
sobre tecnologia que ignora o trabalho. Essas
características estão nas raízes da formação da
sociedade brasileira – desprezo pelo trabalho,
distanciamento entre discurso e prática. É preciso reorientar o enfoque teórico da pesquisa
sobre habitação.
Abstract
This paper shows that most studies on
housing are carried out in the context of
consumption, by dimensioning and qualifying
it. The State and public policies play a central
role in these studies. Although they provide
an important picture of the lack of housing,
territorial segregation, social exclusion, and
institutional policies, they often ignore the
central role played by production in defining
the constructed environment. In particular,
attention is drawn to the academic production
on architecture and urbanism that ignores
construction and the technology production
that ignores labor. These features are at
the very roots of Brazilian society – disdain
for work, and a gap between discourse
and practice. It is imperative to change the
theoretical framework of housing research.
Palavras-chave:
ção; trabalho.
Keywords:
work.
habitação; teoria; constru-
housing; theory; construction;
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
ermínia maricato
Teoria aos pedaços:
a ausência das
determinações gerais1
34
No início deste trabalho, queremos chamar
a atenção para uma questão de ordem teórico-metodológica: o estreitamento do campo das pesquisas e da produção acadêmica
sobre o tema da habitação no Brasil, dominadas principalmente pelas abordagens do
consumo – déficit, carência, má qualidade,
tipologia, formas de ocupação do domicílio e
do espaço – e da política habitacional praticada pelo Estado.
Deve-se reconhecer que tal produção
intelectual contribuiu para o conhecimento da situação de precariedade habitacional
existente e dos desvios nas políticas públicas, que se revelaram incapazes de sanar a
carência das camadas mais pobres da população. No entanto, ela não contribuiu para
desvendar uma leitura mais ampla sobre a
produção da habitação ou mais propriamente da estrutura de provisão de habitação,
dos interesses e dos agentes envolvidos.2 A
relação de estudos e autores utilizados para
representar essas tendências dominantes na
produção técnica e acadêmica não pretende
ser exaustiva mas apontar alguns pioneiros
nos temas abordados. 3 Não se pretende
ainda fazer uma crítica a essa produção intelectual que compõe os autores citados na
relação inicial (ao contrário, reconhecemos a
importância desses estudos), mas sim destacar a predominância da esfera do consumo
e do Estado como temas dessa produção
acadêmica e a ausência de abordagens histórico-estruturais que permitam reconhecer
a permanência ou a inovação nas determinações dessa parcela do ambiente construído.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
De fato, o foco nas carências habitacionais e nos déficits de moradia tem sido
a forma predominante dos órgãos públicos
tratarem a questão da habitação, por meio
de consultores contratados, como um problema quantitativo e mais recentemente, nos
anos 90, também qualitativo.4 Os levantamentos promovidos pela Finep, em "Inventário da ação governamental no campo da
habitação popular”, finalizado em 1979, e a
posterior publicação de Habitação popular:
inventário da ação governamental (Finep,
1985), constituem um importante cadastro
de documentos e bibliografia que comprovam o que afirmamos aqui.
Carência habitacional, periferização,
segregação urbana são temas recorrentes
que têm sido bem desenvolvidos, tanto nas
análises dos planos urbanísticos que têm início com as “reformas urbanas” implementadas no começo do século XX quanto nas
análises da moradia e condições de vida da
classe trabalhadora no Brasil industrial, incluindo ainda a abordagem das dramáticas
e generalizadas condições de periferização,
“guetização”, ilegalidade e favelização característicos da chamada era da globalização.
As reformas urbanas que pretenderam
dar às cidades brasileiras, na República recém-proclamada, a imagem de progresso e
modernidade visavam afastar o fantasma da
presença da escravidão recente, deslocando
populações pobres de áreas centrais, e recuperar espaços para o mercado imobiliário.
Estudos com esse sentido foram desenvolvidos, dentre outros autores, por Sevcenko
(1984), Andrade (1992), Leme e outros
(1999).
Os cortiços, como forma prioritária
(e privada) de moradia da massa trabalhadora pobre no início do século XX, foram
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
analisados por PMSP-Sebes (1975), Vaz
(1986), Villaça (1986 e 1999), Ribeiro
(1991), Reis Filho (1994), Bonduki (1994),
Piccini (1999), Kohara e Caricari (2006),
entre outros.
Importantes estudos sobre a reprodução da classe operária ou proletariado urbano que incluíram a formação da periferia
com a predominância do transporte sobre
rodas, a autoconstrução, os loteamentos ilegais, a partir dos anos 1930 e 1940, foram
feitos por Sampaio (1972), Ferro (1972),
Lemos e Sampaio (1976), Maricato (1976
e 1979), Bonduki e Rolnik (1979), Valladares (1980), Santos (1980), Bogus (1981),
Mautner (1991) e Souza (1999). A terra
tem sido reconhecida como elemento central
do processo de exclusão e segregação urbana, mas também tem sido frequentemente
abordada segundo o enfoque da carência e
fortemente relacionada à legislação.5
As favelas, uma forma variante daquela
referida acima, mereceram atenção especial
dos pesquisadores cujas cidades convivem
com o fenômeno há mais tempo. Talvez o
pioneiro e paradigmático estudo sobre favela seja o clássico Sobrados e mocambos, de
Gilberto Freyre; no entanto, a produção de
autores cariocas destaca-se pela abundância.
Desde meados do século XX, os estudiosos
da cidade do Rio de Janeiro dedicam importantes estudos às favelas cariocas, como mostra Lícia do Prado Valladares em
seu livro Repensando a habitação no Brasil
(Valladares, 1982). Ver ainda a síntese feita
por Suzana Pasternak em sua tese Favelas
e cortiços no Brasil: 20 anos de pesquisas e
políticas (Pasternak, 1993).
Estudos mais recentes abordam novas
formas de segregação socioespacial da população. Eles se referem tanto aos crescen-
tes núcleos de pobreza nas áreas centrais
abandonadas pelo capital imobiliário, e que
são objeto de planos oficiais de “renovação”,
“reforma” ou “reabilitação” (ver Silva, 2000
e 2007) quanto à heterogeneidade trazida à
periferia ampliada por uma nova forma de
ocupação do solo, pelos condomínios fechados de alta renda (ver, por exemplo, Caldeira, 2000; Marques e Torres, 2005).
O impacto da reestruturação produtiva
capitalista e das políticas neoliberais é reconhecido como determinante desse espraiamento que “dilui” a cidade ou a metrópole
na região, mas esse impacto pode ser visto
também como determinante do aumento da
precariedade habitacional e urbana pelos autores Observatório das Metrópoles (2005) e
Davis (2006).
As análises das políticas públicas de
habitação engendradas pelo Estado permitiram o desvendamento do seu caráter
de agente ativo do processo de segregação
territorial, estruturação e consolidação do
mercado imobiliário privado, aprofundamento da concentração da renda e, portanto, da desigualdade social. Tais análises
foram desenvolvidas por Bollafi (1975),
Serran (1976), Azevedo e Andrade (1982),
Maricato (1987), Arretche (1994), Draibe
(1994), entre outros. Na extensa produção
de livros, documentos e relatórios contratados pelo Ministério das Cidades, a partir de
sua criação em 2003, é possível encontrar
dados atualizados sobre todos esses assuntos, incluindo o tema recém-adotado na esfera governamental federal: regularização
fundiária de habitação de interesse social.
Apesar do número significativo de estudos críticos sobre o assunto, é notável o
desconhecimento do quadro geral da produção e distribuição da habitação, que estamos
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
35
ermínia maricato
36
aqui denominando provisão da habitação,
formado pelas diversas tipologias resultantes de diferentes arranjos entre: o financiamento, a construção, a promoção, a comercialização, a participação da força de trabalho e o lugar ocupado pela propriedade da
terra no contexto da regulação instituída (e
praticada de forma discriminatória no Brasil
e em toda América Latina) pela legislação de
uso e ocupação do solo. O arranjo resultante
do encontro desses agentes envolve, evidentemente, muitos conflitos. Como conflito
básico, podemos citar o interesse daqueles
que precisam de uma moradia para viver e
aqueles que lucram com sua provisão. Mas
outros conflitos internos e externos a esse
arranjo ou a esses agentes podem aparecer.
Por exemplo: conflitos entre promotores e
construtores, conflitos entre a força de trabalho e os construtores, conflitos entre todos os agentes que compõem o capital imobiliário e a política macroeconômica. Enfim,
estamos tratando de antagonismos que podem acontecer ou não, dependendo de uma
dada correlação de forças definida historicamente e dos arranjos que podem ocorrer
entre esses agentes (Harvey,1982).6
Num dos poucos momentos em que
constatamos a mobilização dos trabalhadores da construção civil contra os baixos salários e as péssimas condições de trabalho,
em diversas capitais brasileiras, o que aconteceu no final dos anos 70 e início dos 80
(quando a construção civil estava a todo o
vapor), foi possível acompanhar as mudanças significativas na organização do trabalho
no canteiro de obras, além do atendimento
das reivindicações (Valladares, 1982). Infelizmente, esse movimento de mudança não
se sustentou devido ao drástico recuo nos
investimentos públicos a partir de 1983.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
Iniciava-se um longo período de ajuste fiscal
e corte nos gastos públicos com aumento do
desemprego (Maricato, 1988).
Toda família precisa de uma moradia.
Todos moram em algum lugar, ainda que
seja numa mansão em condomínio fechado
ou num barraco sob um viaduto. O estoque
de moradias é resultante dos diferentes arranjos existentes no interior do conjunto
formado pelo mercado privado, pela promoção pública e pela promoção informal (o
que inclui ainda arranjos mistos) em diferentes situações históricas de uma dada sociedade. A estrutura de provisão de moradias se refere à construção, manutenção e
distribuição de um estoque, que se forma a
partir de diversas formas de provisão de habitação: promoção privada de casas, apartamentos ou loteamentos, promoção pública
de casas ou apartamentos, autoconstrução
no lote irregular ou na favela, autopromoção da casa unifamiliar de classe média ou
média alta, loteamento irregular, entre outros. Apenas essa abordagem ampla, que
toma a moradia como um produto social e
histórico, pode explicar o desaparecimento
de certas formas de provisão em algumas
cidades. É o caso das vilas populares ou
carreiras de pequenos sobrados resultantes
da ação de um pequeno promotor, nas primeiras décadas do século XX, nas cidades
de Rio de Janeiro e São Paulo, que desapareceriam na segunda metade do século
(Ribeiro, 1996).
Produtos semelhantes podem resultar
de diferentes formas de provisão da moradia. Uma casa de alvenaria em uma favela
pode parecer idêntica, visualmente, a uma
casa de alvenaria em um loteamento regular,
mas a participação do componente terra é,
em geral, muito diferente: num caso, a terra
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
é invadida (embora a partir dessa primeira
ação ela possa ser vendida informalmente)
e no outro ela é comprada, sendo objeto de
um contrato de compra e venda registrado
em cartório. A condição jurídica é diferente,
embora possa apresentar muitas variantes,
dependendo da condição de propriedade da
terra que é vendida ou invadida.
As diversas formas de provisão da
moradia (o que inclui a moradia de aluguel, obviamente) constituem um conjunto
contínuo e interdependente: se o mercado
é muito restrito às camadas de mais altas
rendas, como acontece no Brasil, e o investimento público é escasso, a produção informal fatalmente se amplia, pois, como já
foi destacado, todos moram em algum lugar. A abordagem da promoção pública ou
das políticas públicas, isoladamente, como é
tradição em nosso meio acadêmico, impede a compreensão sobre sua inserção nessa
estrutura geral de provisão das moradias,
prejudicando o entendimento da realidade
e a formulação de propostas. Não há como
responder às demandas de moradia da população de baixa renda (ainda que hipoteticamente exista interesse governamental) se
o mercado não responde às necessidades da
classe média.7 No Brasil, a classe média não
tem sido atendida pelo mercado privado,
especialmente a partir do recuo dos investimentos do Sistema Financeiro da Habitação, a partir de 1980. A consequência da
falta de resposta à necessidade de moradia
da classe média, a partir dessa data, é o
acirramento da disputa com as camadas de
baixa renda pelo acesso aos subsídios públicos. Considerando-se que esses subsídios tiveram uma queda drástica, tornou-se lugar
comum encontrar domicílios com famílias
de classe média em favelas.
Tecnologia que ignora
o trabalho, arquitetura
e urbanismo que ignoram
a construção
A precariedade das pesquisas na área de habitação não se esgota nessa ausência de uma
visão de conjunto; na medida em que ignoram a provisão (produção e distribuição),
ainda que de uma forma específica de moradia, incorrem também em equívocos. Vamos
lembrar algumas ausências no escopo de
trabalhos que terminam por comprometer
sua cientificidade.
O estudo da técnica e da tecnologia da
construção frequentemente ignora a organização e o processo de trabalho, como se
estes fossem irrelevantes para o nível de
produtividade. Nos estudos sobre tecnologia
da construção ignora-se, frequentemente, o
papel da terra e da renda fundiária na determinação do atraso na construção civil.
Faz parte do senso comum a ideia mistificada, também presente em grande parte
da produção acadêmica, de que materiais de
construção “milagrosos” tornarão a construção de casas muito mais barata e eficiente.
Nilton Vargas tem desenvolvido experimentos paradigmáticos em canteiro de obras
desde início dos anos 80, reafirmando a
centralidade do processo de trabalho e da
condição urbana ou mais propriamente da
renda fundiária e do acesso a um pedaço de
terra urbanizada, para definir os patamares
da produtividade na construção.8 É de 1983
a primeira formulação dessas ideias publicadas em livro (Vargas, 1983). Porém, como
se constata em grande parte dos estudos
financiados pela Finep sobre tecnologia de
construção, esse autor permanece bastante
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
37
ermínia maricato
38
ignorado. As forças produtivas não incluem
apenas máquinas, equipamentos, novas fontes de energia, novos materiais, novos processos químicos ou eletrônicos, mas também
a organização do trabalho. Apenas para dar
um exemplo, o taylorismo promoveu um
avanço significativo na produtividade industrial americana a partir da reorganização do
processo de trabalho baseado no estudo de
“tempos e movimentos”. A especialização
que permitiu avanços significativos na indústria manufatureira se baseou na divisão
do trabalho. Lembremos que boa parte dos
canteiros de obras ignoram, no Brasil e no
princípio do século XXI, grande parte dessas
conquistas que datam do início do século XX.
A tradição marxista explica como a
produção material da vida parece ser orientada – por meio da ideologia – pela esfera
do consumo, das necessidades, das ideias.
Um universo de símbolos cumpre a função
de mascarar as relações sociais baseadas na
exploração e apropriação do excedente de
riqueza criado na produção. Mas, no Brasil,
é preciso reconhecer algumas especificidades que tornam essa constatação ainda mais
radical. A tradição escravista que marca a
história do país, e de profundo desrespeito
com o trabalho manual, também explica por
que o ensino e as pesquisas na área de engenharia abstraem as relações de trabalho
dos estudos sobre tecnologia. Há muito de
ideológico e pouco de científico em boa parte dessa produção acadêmica marcada pelo
preconceito. Não raramente, o canteiro de
obras, com todos os desencontros e as tensões decorrentes das relações de trabalho
(cujo paradigma está na parceria mestre de
obras e engenheiro), é pouco conhecido por
pesquisadores que escrevem sobre tecnologia de construção habitacional.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
Além disso, os estudos que têm como
objeto o urbano, a habitação, o financiamento e a terra, raramente incorporam o
tema da construção em seu escopo. É muito
comum, nos estudos sobre o urbano, ignorar-se a construção, abstraindo-se assim as
relações entre capital (fixo e variável) e o
processo de trabalho. A desconsideração da
construção como eixo da realização da arquitetura e da cidade foi criticada por diversos
estudiosos no Projeto de Pesquisa “A crise na
produção da habitação popular – tendências
de rearticulação do processo produtivo”.9
Essa também foi a polêmica que alimentou
a interlocução de Sérgio Ferro10 em relação
ao texto de Vilanova Artigas, “O Desenho”.11
Portanto, a crítica materialista, de inspiração
marxista, à abordagem da arquitetura como
produto de ideias ou do desenho não é nova
entre nós. Embora ambos os textos sejam
bastante festejados, a centralidade da polêmica é bastante ignorada pela produção acadêmica e profissional. O papel ideológico do
projeto como ferramenta para a exploração
e a dominação desse modo de produção, e
sua capacidade de encobrir essas relações de
classe são destacados por Ferro, que vai ao
canteiro de obras para encontrar a lógica do
processo – do produto e de sua distribuição –
e também, portanto, do projeto ou desenho.
Outro equívoco digno de figurar nessa lista, pela constância com que é repetido, refere-se aos estudos ou à prática do
planejamento urbano que tem a pretensão
de controlar as cidades pela regulação legal, ignorando as determinações presentes
na produção social ou material do espaço
e na disputa pelos lucros, juros, rendas e
salários que ela engendra. A prática do urbanismo é profundamente ideológica – e
vale dizer, pouco científica e mistificadora
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
da realidade – e frequentemente ignora os
conflitos presentes na produção da cidade,
tomando-a como um palco ou arena que
apenas dá suporte às relações sociais, ainda
que elas possam ser tomadas como conflituosas (Arantes et al., 2000).
A dispersão do conhecimento já produzido no Brasil, constantemente suplantado
por supervalorizadas referências estrangeiras, já foi constatada por conhecidos estudiosos da sociedade brasileira, como Celso
Furtado, Florestan Fernandes e Roberto
Schwarz, entre outros. Somos estrangeiros
em nossa própria pátria e frequentemente
nos vemos diante de uma história virtual.
Estamos sempre recomeçando.
Para resumir, é realmente surpreen den te que um setor que absorve
historicamente 6% da PEA e que é responsável por 13,5% do PIB nacional (relativo
ao setor de construbusiness, sendo 8% da
construção propriamente dita) esteja ausente da maior parte dos trabalhos sobre
o urbano e a habitação. Em particular, é
notável a ausência do tema do trabalho,
nos estudos sobre tecnologia, como já foi
mencionado.12
O lugar da construção nas
pesquisas sobre moradia
A ideia de que novos materiais ou novos métodos construtivos possam resolver ou constituir a principal alavanca para a solução de
problemas habitacionais é dominante há décadas, tanto nas instituições promotoras de
políticas públicas quanto nas pesquisas sobre a construção civil ligada à produção de
moradias. Essa ideia é dominante também
na mídia, que de tempos em tempos apresenta experiências de casas construídas
com materiais reciclados, como garrafas de
plástico, ou renováveis, como bambu, que
prometem um barateamento definitivo e
sustentabilidade.
Não se pretende negar a importância
das pesquisas com novos materiais ou novos
usos para velhos materiais, especialmente
em se tratando da reutilização de rejeitos
industriais, fundamental para diminuir seu
descarte e os impactos sobre o meio ambiente. A Antac – Associação Nacional de
Tecnologia do Ambiente Construído – tem
se detido nesse tema. O que se critica aqui,
entretanto, é a ignorância dos demais fatores que são determinantes na produção da
carência habitacional.
Por diversas vezes o Banco Nacional de
Habitação (BNH) promoveu a construção de
canteiros de obras com protótipos de edifícios destinados à habitação apresentando
novos materiais de construção, novas tecnologias, novos equipamentos ou novas máquinas. O primeiro grande seminário que apresentou uma extensa mostra de protótipos
se deu em Salvador, em 1978, que levou o
título de “Simpósio sobre o Barateamento
da Construção Habitacional”. O Brasil estava no momento de maior investimento em
habitação de toda sua história e era notável
a pressão das empresas de construção pesada e das empresas estrangeiras, detentoras
de patentes sobre novas tecnologias e processos construtivos, para entrar no setor de
edificação residencial nacional de promoção
pública.13 Vale lembrar que os anos 70 ficaram conhecidos como do “milagre brasileiro”, em que as altas taxas de crescimento do
PIB contribuíram muito com a manutenção
do Regime Militar, fortemente apoiado pela
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
39
ermínia maricato
40
classe média. Entre 1968 e 1973, o PIB
cresceu 11,5 % ao ano impulsionado principalmente pela construção civil (Maricato,
1987).
Outros dois seminários, acompanhados
da apresentação de protótipos subsidiados
pelo BNH, deram-se na cidade de São Paulo:
um no Jardim São Paulo (1985) e o outro
em Heliópolis (1987). Após 1980, entretanto, com o impacto do ajuste fiscal sobre
a economia nacional, os contratos do BNH
para o financiamento de moradias têm uma
queda drástica. Até 1983, constata-se um
movimento de construção de moradias sob
promoção pública ainda significativo graças
aos contratos assinados em anos anteriores. A maior parte dessa produção seguiu
modelos muito criticados em trabalhos acadêmicos: a localização sempre distante das
áreas já urbanizadas alimentou um mercado
fundiário desorganizador do uso sustentável
do solo urbano e as construções frequentemente deixaram a desejar do ponto de vista
de conforto ambiental.
Durante vários anos, portanto, o paradigma de avanço tecnológico esteve relacionado a novos processos, novos materiais
ou novos componentes. Foram fomentadas
tentativas de industrialização de componentes, experiências de moldagem de concreto
armado in loco, propostas de utilização de
novos materiais como solo cimento, madeira mineralizada, palha de arroz prensada,
resíduos de processos industriais, estrutura
metálica, entre outros.
Segundo Vargas, após todas essas experiências, podemos afirmar que, entre nós,
a alvenaria armada tem se mostrado ainda
como tecnologia construtiva de melhor desempenho – no que se refere a custo, qualidade e produtividade – e que, portanto,
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
as barreiras ao aumento de produtividade,
diminuição de custos e ampliação de acesso
não estariam aí.14 Além de apontar as dificuldades que persistem no planejamento e
gestão do processo de trabalho e nos demais fatores que disputam a renda fundiária
urbana, Vargas lembra que a indústria da
construção tem características específicas
em relação às demais indústrias e nela a imponderabilidade é muito alta.
Em seu mestrado, desenvolvido na
Coppe/ UFRJ em 1979, e depois reeditado como capítulo de livro já citado, Nilton
Vargas explicita, em primeiro lugar, as características específicas da indústria da
construção, que a diferenciam das demais
indústrias: é manufatura, mas também tem
máquinas pesadas características da grande
indústria. Além disso, os lucros da atividade
de construção ligada à indústria imobiliária não são apropriados apenas pelo capital
produtivo, mas também por outros capitais,
em especial os financiadores, os promotores
imobiliários e os proprietários da terra ou
imóveis. Na medida em que os lucros não
provêm apenas das atividades produtivas,
mas também de atividades fortemente especulativas, a produtividade no processo
de produção passa a não ser central para
ampliar os ganhos. A partir dessas considerações e tendo em vista características que
embasam o poder na sociedade brasileira,
como o patrimonialismo e a captação de
rendas imobiliárias, conclui-se facilmente o
porquê de o mercado privado no Brasil ser
tão elitista e restrito ao produto de luxo
(Instituto Cidadania, 2000).
Agregando às argumentações expostas
algumas formulações de outros autores, podemos, muito resumidamente, definir essa
tese da seguinte forma:15
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
1) A indústria da construção tem características diferenciadas do conjunto das
indústrias.
Cada projeto é único (mesmo quando
padronizado) porque cada terreno é único,
o que dificulta a reprodutibilidade.
●
O processo de produção é marcado pela
sucessão e não pela simultaneidade. A cada
obra, as equipes que se sucedem são desmontadas. Há dificuldade para a capacitação
contínua do trabalhador e a rotatividade no
emprego é alta.
●
● No fim de cada empreendimento, a unidade de produção é desmontada ou, na melhor das hipóteses, deslocada.
● O processo de produção depende das
condições climáticas. As chuvas, por exemplo, podem paralisar a produção.
Em que pese o avanço das análises geotécnicas, o subsolo pode apresentar ocorrências inesperadas, exigindo a interrupção
da produção e representando despesas não
previstas.
●
2) Os ganhos não são provenientes apenas
da atividade produtiva, portanto, não existe
um apelo para a racionalidade industrial.
Na provisão habitacional, o capital produtivo não ocupa o lugar central, como no
restante das indústrias. A moradia é uma
mercadoria especial. Além do capital de
construção, o processo produtivo inclui um
financiamento ao consumo (habitação é um
dos bens mais caros de consumo privado
e como uma mercadoria especial exige um
financiamento específico), um capital de incorporação e um agente especial – o proprietário de terra – de quem depende uma
condição básica para produção. Cada novo
●
empreendimento exige que uma nova parcela de terreno seja assegurada.
Os proprietários têm uma espécie de monopólio sobre a terra e a liberam para a
construção após cobrar um preço para isso,
e esse preço depende da localização. A legislação urbanística também influi no preço
da terra.
A propriedade fundiária e imobiliária
constitui um objeto de valorização. Fortunas
podem ser amealhadas sem que, necessariamente, haja envolvimento de um capital
produtivo no terreno objeto de valorização.
Uma malha de expedientes jurídicos e de
registros cerca a propriedade da terra, que
pode, dessa forma, funcionar como objeto
de disputa de rendas, oferecendo obstáculo
à produtividade na construção. O acesso à
terra urbana é profundamente excludente a
grande parte da sociedade e constitui freio
ao aumento da produção.16
●
● Outra barreira à provisão de moradias
está na legislação urbanística excessivamente detalhista e na legislação ambiental, que
tornam lentos os processos de aprovação
dos projetos, característica reforçada pela
fragmentação presente na gestão urbana e
pelas características cartoriais do patrimonialismo brasileiro.
Habitação, conflitos
e Estado
Ainda que reconhecendo as carências apontadas anteriormente, é notória a centralidade do papel do Estado no processo de
produção e distribuição da moradia, e é nele
que se concentra a maior parte dos estudos
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
41
ermínia maricato
42
e pesquisas. O Estado pode participar diretamente na produção, como também pode
financiar e contratar a construção. Ele é ainda, em geral, o agente regulador da terra,
das relações trabalhistas, das regras do financiamento privado, além de poder promover a implantação da infraestrutura e abrir
novos espaços para o investimento imobiliário privado em acordo com proprietários de
terra. A construção de novas centralidades
urbanas, como resultado de um pacto entre
o capital imobiliário e a aplicação dos fundos
públicos, tem também sua face simbólica,
marcada pelo luxo e distinção, e ocorre em
praticamente todas as grandes cidades.
A atuação do Estado responde ao nível
dos conflitos entre os diversos interesses
em jogo na disputa pelos ganhos já citados:
salários, rendas, juros e lucros. De tal disputa participam inclusive os usuários de classe média ou até de baixa renda, enquanto
proprietários privados que também se apropriam de alguma renda com a valorização
de seus imóveis. Essas lutas e conflitos definirão as mudanças ou não na estrutura de
provisão da habitação.17
Além de Michael Ball (1978, 1981 e
1986), outro autor que adota uma visão
menos determinista e economicista sobre a
produção do espaço, ao enfatizar a esfera
da política, é David Harvey, para quem a
produção do espaço é consequência de fortes conflitos e do confronto de tendências,
resultantes de tensões e contradições inerentes ao sistema (Harvey, 1982). Para o
autor, os principais conflitos que emergem
nesse processo envolvem:
[...] 1) uma facção do capital que procura a apropriação da renda, quer diretamente (como os proprietários de
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
terra, as empresas imobiliárias, etc.)
ou indiretamente (como os intermediários financeiros ou outros que investem
em propriedades simplesmente visando
uma taxa de retorno); 2) uma facção do
capital procurando juros e lucro através da construção de novos elementos
no meio construído (os interesses da
construção); 3) o capital "em geral" que
encara o ambiente construído como um
dreno para o capital excedente e como
pacote de valores de uso e com vistas
ao estímulo da produção e acumulação
de capital; 4) a força de trabalho que
se utiliza do ambiente construído como um meio de consumo e como meio
de sua própria reprodução. (Harvey,
1982, p. 6)18
Modernização conservadora:
a informalidade como ardil
No Brasil, como nos demais países periféricos, os conflitos em torno da provisão da
moradia foram relativamente esvaziados
graças a um ardil responsável por grande
impacto social e territorial: a provisão informal da moradia. A maior parte da população
urbana “se vira” para garantir moradia e um
pedaço de cidade, combinando o loteamento
irregular ou a pura e simples invasão de terra, com a autoconstrução.19 Essa forma ilegal e pré-moderna de provisão da moradia
esvaziou o conflito e contribuiu para o barateamento da força de trabalho, especialmente durante o período de maior crescimento
industrial. Sabemos todos as consequências
predatórias dessa produção de grande parte
do espaço urbano, seja para essa população,
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
para o meio ambiente, ou para a cidade
como um todo. O exemplo mais dramático
e gigantesco de ocupação pobre, ilegal e
ambiental/socialmente predatória, está na
ocupação das áreas de preservação dos mananciais ao sul da maior metrópole paulista,
onde aproximadamente 1milhão e 700 mil
de pessoas vivem nas bacias dos reservatórios de água Billings e Guarapiranga. Mas os
governos, e seus diversos órgãos com poder
de polícia sobre o uso e a ocupação do solo,
simplesmente ignoraram esse processo durante muitos anos.
O conflito sobre a provisão da moradia
foi, portanto, deslocado: a cidade hegemônica continua sendo construída sob regras
do urbanismo e do mercado modernos, para
uma população restrita. Resta para grande
parte da população o deslocamento para fora da cidade (legal ou formal), a ocupação
de áreas inadequadas, e, frequentemente,
ambientalmente frágeis.
Não são apenas as leis de uso e ocupação do solo ou os planos urbanísticos que
não são observados nos bairros ilegais. Nenhuma legislação aí é aplicada e a resolução
de conflitos obedece à “lei” do mais forte.
A presença do Estado pode se restringir à
troca de favores pontuais com finalidade
eleitoral. De um modo geral, o Estado está
ausente e esse vazio é ocupado por um poder paralelo (Maricato, 1996).
Mesmo contando com um mercado privado excludente, por meio do qual a mercadoria moradia é acessível a apenas 30%
da população, é preciso reconhecer sua significativa dimensão, equivalente à população
da Itália (aproximadamente 56 milhões de
pessoas). O significativo crescimento econômico (7% ao ano entre 1940 e 1979) e a
industrialização do país, sem distribuição de
renda, durante décadas de intensa migração
para as cidades, geraram vários paradoxos,
como a imposição do consumo de bens modernos antes que as necessidades básicas
(alimentação, saúde, higiene, educação, habitação) fossem atendidas.20
A urbanização em países periféricos
como o Brasil, que acompanha o processo de industrialização com baixos salários,
apresenta várias características que a diferencia da urbanização nos países capitalistas
centrais. Francisco de Oliveira considera o
terciário extensivo e descapitalizado, que
muitos autores entenderam como “inchado”
na comparação com o chamado primeiro
mundo, uma parte intrínseca desse processo
de acumulação que combina o arcaico com o
moderno (Oliveira, 1972).
A evolução da provisão da habitação
popular desde o final do século XIX, com a
emergência do trabalhador livre, mostra a
tendência de eliminar dos salários a parcela
referente ao pagamento da moradia. É evidente que essa condição é predatória à força
de trabalho. A construção da casa nos fins
de semana durante horário de descanso, o
longo tempo despendido nos transportes
deficientes (que está relacionado à ocupação precária da periferia) e a ausência de
serviços urbanos fundamentais contribuem
para desgastar a força de trabalho. A queda
do crescimento econômico, verificada a partir dos anos 80, o aumento do desemprego,
o recuo das políticas públicas, foram alguns
dos fatores que radicalizaram o quadro aqui
descrito, como veremos adiante.
A importância da propriedade fundiária numa sociedade patrimonialista como
a nossa explica, em boa parte, essa gigantesca exclusão territorial ou segregação.
Como é sabido, há uma estreita relação
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
43
ermínia maricato
44
entre propriedade patrimonial e poder
econômico, político e social na história do
Brasil. A elite brasileira se apropriou de
vastas áreas de terras devolutas por todo
território nacional, recorrendo a um sem
número de ardis relacionados a fraudes
nos registros de terra (Costa Neto, 2006).
Além disso, essa mesma elite cercou-se de
uma imensa teia de organismos e burocracia (além da ajuda do judiciário) para
impedir que a maior parte da população,
especialmente os trabalhadores pobres, tivesse acesso à propriedade fundiária. O latifúndio permanece intocável durante todo
o período de modernização e industrialização do país, apesar das polêmicas alimentadas pela proposta liberal de substituição
dos escravos pela colonização branca durante o século XIX. A privatização de terras devolutas ainda é uma prática vigente
em pleno início do século XXI.
Como aconteceu em outros momentos
da história do país, o Brasil conta, a partir
da promulgação do Estatuto da Cidade, em
2001, com uma legislação bastante avançada, que regulamenta a função social da cidade e da propriedade. O Estatuto da Cidade
restringe, objetivamente, o direito de propriedade. Pode-se dizer que o direito à moradia é absoluto, já que previsto na Constituição Federal, e o direito à propriedade não
o é. No entanto, a implementação da lei está
enfrentando muita dificuldade, reafirmando
uma característica da sociedade brasileira:
de que a lei se aplica de acordo com as circunstâncias (Maricato, 1996).
Aqui também constatamos nossas diferenças em relação ao capitalismo central,
em que as reformas sobre a terra urbana
foram feitas no final do século XIX ou começo do século XX para fortalecer a atividade
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
produtiva de construção, em detrimento dos
ganhos rentistas.
O impacto da globalização
na provisão de moradias
Com o fim do welfare state houve um recuo
generalizado dos investimentos em habitação, revelando um colapso no volume de
moradias produzidas. Nos países capitalistas
centrais, o espetacular movimento de construção que se seguiu à segunda guerra mundial minimizou fortemente a carência habitacional. Apesar das características específicas
desse processo em cada país, alguns aspectos podem ser generalizados:21
Período pós-guerra – produção
fordista:
produção em massa, grande volume de
unidades habitacionais;
●
investimento público garante mercado
solvável, com forte subsídios;
●
● investimento em infraestrutura, grandes
projetos de renovação urbana ou construção
de cidades novas;
Estado intervém no mercado de terras
ou cria uma agência de terra;
●
●
promoção da habitação de aluguel social;
● modernização da produção – pré-fabricação, investimentos em capital fixo, grandes canteiros;
grandes sindicatos conferem poder à
força de trabalho nos conflitos;
●
queda na especialização da força de trabalho, imigração visando o barateamento.
●
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
Com a reestruturação produtiva e o
início das políticas de cunho neoliberal, a
produção subsidiada de moradias pelo Estado teve uma queda drástica. O patrimônio público formado por extensos conjuntos
habitacionais foi transformado com a venda em patrimônio privado. E novas regras,
mais adaptadas a uma solução de mercado,
foram impostas. Apesar dos movimentos
sindicais, que com prolongadas greves tentaram se opor aos ganhos conquistados com
o Welfare State, as reformas foram implementadas, atingindo inclusive o mundo do
trabalho e com isso enfraquecendo o poder
sindical. Um resumo das características que
provisão de moradias assumiu na Europa e
nos Estados Unidos com a reestruturação
produtiva já pode ser diagnosticado nos
anos 70:
Período pós-1970 – reestruturação
capitalista global:
queda nos investimentos públicos, queda no volume de construção;
●
dificuldades com financiamentos, dificuldades com terra;
●
●
aumento da taxa de juros;
● fl exibilização na produção, terceirização, queda no investimento de capital fixo,
fortalecimento do planejamento do canteiro,
gerenciamento de fluxos e controle contábil;
● ênfase nos componentes leves para
montagem;
● enfraquecimento do poder sindical, desemprego, contrato por tarefas;
● projetos de menor porte, perdas da
economia de escala;
● flexibilização na provisão – diversidade
de tipologias, fragmentação da demanda e
da localização, ênfase nos aspectos especulativos;
novos mercados priorizam reformas,
renovação e manutenção;
●
●
fortalecimento da casa própria ;
flexibilização do trabalho, formas indiretas de emprego.
●
No Brasil, como nos demais países do
capitalismo periférico, com seus diversos
graus ou características de evolução ou involução, o recuo nas políticas públicas e o
baixo crescimento econômico, a partir dos
anos 80, tiveram consequências dramáticas
devido à herança histórica de desigualdade
e informalidade. Apesar de não contarmos
com estudos sobre o impacto detalhado da
globalização na produção do ambiente construído, podemos afirmar que o aumento
de favelas cresceu radicalmente a partir da
queda do financiamento habitacional, por
volta de 1981. O IBGE mostra que enquanto a população brasileira cresceu 1,9% ao
ano entre 1980 e 1991, e 1,6% ao ano entre 1991 e 2000, a população moradora de
favelas cresceu, respectivamente, 7,65% e
4,18%. O município de São Paulo tinha apenas 1,2% da população morando em favelas em 1970. Em 2005, São Paulo registra
11% da população em favelas, ambos dados
da Prefeitura Municipal. Com a débâcle do
BNH e aumento do desemprego, o mercado
privado formal também apresentou queda
significativa (Castro, 1999).
Além da constatação do impacto negativo da chamada globalização e das políticas neoliberais na piora na qualidade
da moradia urbana no Brasil, pouco podemos avançar no detalhamento sobre suas
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
45
ermínia maricato
46
consequências nos processos produtivos,
como mostra o estudo de Ball e outros
(1988) para a Europa e Estados Unidos.
Esse exemplo mostra como a orientação
adequada da pesquisa acadêmica pode nos
conduzir para uma compreensão mais ampla e científica da realidade. Não dispomos
de conhecimento que permita caracterizar
as mudanças na estrutura de provisão da
moradia, sua evolução e adaptação à nova
(des)ordem internacional. Esse desconhecimento fragiliza o esforço na definição de
políticas para o enfrentamento de problemas tão graves como, por exemplo, os que
as nossas metrópoles apresentam.
Se insistimos em fazer essa abordagem
teórica e metodológica, é para incentivar os
pesquisadores brasileiros a esse desafio. E,
apesar de parte da reflexão aqui feita ter se
inspirado em autores que pensaram o capitalismo central, nossa convicção é de que as
assimetrias entre os países centrais e periféricos são essenciais, acentuaram-se com
a globalização e não podem ser ignoradas
quando se buscam alternativas de solução
para a nossa realidade.
Por fim, um alerta necessário. A partir de 2005, os investimentos na área de
habitação foram ampliados, tanto para o
mercado privado quanto para a promoção
pública. Com o PAC – Plano de Aceleração
do Crescimento –, lançado pelo Governo Federal em 2007, essa tendência será reforçada pela previsão de investimento de R$106
bilhões. Considerando-se que as principais
fontes de recursos são onerosas – aliás, as
mesmas que alimentaram o Sistema Financeiro da Habitação: SBPE e FGTS – e que
os recursos para subsídios são diminutos, é
previsível que as camadas de mais baixa renda dificilmente sejam atendidas na proporção necessária. Entretanto, o movimento na
produção de moradias tende a aumentar, o
que já é visível, na segunda metade da década iniciada em 2000, com repercussões na
estrutura de provisão de moradias. Esse é
mais um motivo para adotar um novo enfoque na pesquisa sobre habitação no Brasil.
Ermínia Maricato
Arquiteta e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo. Professora Titular da área de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Coordenadora da Comissão de Pesquisa e Membro do Conselho de Pesquisa da Universidade de São Paulo (São
Paulo, Brasil).
[email protected]
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
Notas
(1) Este trabalho foi inspirado no texto de Michael Ball, Housing analisys: time for a theoretical
refocus. Apesar do lapso de tempo que nos separa da redação do artigo citado, que é de 1986,
sua crítica à produção acadêmica sobre o tema da habitação ganhou mais importância com o
passar do tempo.
(2) "A estrutura de provisão de habitação descreve um processo histórico dado destinado a prover e
reproduzir a entidade física casa, focalizando os agentes sociais essenciais a esse processo e a
relação entre eles" (Ball, 1986, p. 158).
(3) Para uma bibliografia extensiva dos pioneiros no estudo da habitação no Brasil urbanizado, ver
Valladares, 1982.
(4) Os conceitos de Déficit Habitacional Quantitativo e Déficit Habitacional Qualitativo envolveram
vários pesquisadores durante a década de 1990. Tais definições estão explicitadas nos estudos
sobre o Déficit Habitacional no Brasil elaborados pela Fundação João Pinheiro, a pedido do governo Federal, a partir de 1995 (Fundação João Pinheiro, 2004).
(5) Do Congresso do IAB de 1963, quando a proposta de Reforma Urbana foi aprovada no documento
final, até o Estatuto da Cidade em 2001 e a Campanha de Planos Diretores Participativos, promovida pelo Ministério das Cidades em 2006, o tema da terra tem sido recorrente e a bibliografia por demais extensa para ser tratada aqui. Dentre os pioneiros que relacionaram a terra com
a esfera da produção e do mercado ver Brandão (1980) e Lefèvre (1979). Uma parte da produção do Lincoln Institute of Land Policy também segue essa orientação.
(6) Não trataremos aqui do tema dos movimentos sociais urbanos e de sua bibliografia, pois nos interessa concentrar a atenção nos conflitos presentes na esfera da produção stricto sensu. Não se
desconhece a relação entre a “práxis espacial”, conceito lefevriano, e a produção da cidade em
seu conjunto, mas entendemos que esses conflitos têm sido mais constantemente abordados
do que aqueles que queremos destacar aqui.
(7) Vamos convencionar como classe média as famílias cujos rendimentos mensais estão situados entre 5 e 12 salários mínimos. O déficit habitacional está concentrado fortemente entre 0 e menos
de 5 s.m., perfazendo um total de 92% (Fundação João Pinheiro, 2004).
(8) Até mesmo a endêmica corrupção presente nas obras públicas, fato ligado especialmente ao
financiamento de campanhas eleitorais, não pode ser aspecto desprezado nas pesquisas acadêmicas no Brasil quando se estudam produtividade e custo da habitação. Essa observação foi
feita por Vargas em encontro internacional da BISS – Barttlet International Summer School – na
cidade do México em 1987.
(9) O projeto citado foi apresentado ao BNH em 1986, exatamente no ano de sua mal explicada extinção, que o inviabilizou. Participaram dele os professores Jorge Oseki, Nilton Vargas, Paulo César
Xavier Pereira, Suzana Pasternak, Yvonne Mautner sob a coordenação de Ermínia Maricato.
(10) Iniciado entre 1968 e 1969, “O canteiro e o desenho” seria concluído em 1975 e finalmente publicado em 1979.
(11) O texto citado (Artigas, 1975), publicado originalmente pelo GFAU, foi apresentado pelo professor em março de 1967 como Aula Inaugural da FAU-USP.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
47
ermínia maricato
(12) O processo de trabalho, grande ausente na produção intelectual brasileira sobre habitação, tem
sido considerado como elemento-chave para a compreensão da produção do ambiente construído pela BISS – Barttlet International Summer School – sediada na University College London.
Ver a respeito seus Proceedings.
(13) Na primeira metade dos anos 70, os recursos do BNH destinados a obras de infraestrutura urbana foram ampliados, enquanto que a construção de moradias perdeu espaço no orçamento.
Esse movimento deveu-se, provavelmente, ao poder de influência das empresas de construção
pesada. A partir de 1976, o movimento se inverte. Ver a respeito Maricato (1987).
(14) Palestra proferida na FAU-USP, dia 29/3/2007.
(15) Os autores consultados para a construção desse quadro, além de Nilton Vargas, foram Lojkine
(1977), Topalov (1974), Lipietz (1988), Harvey (1982), Ball (1986), Ball e outros (1988). Dentre os
autores nacionais que abordaram a produção e ou a provisão da moradia levando em consideração a construção, além de Vargas, estão: Ferro (1972), Oseki (1982), Maricato (1984), Pereira
(1984), Tavares (1989), Mautner (1991), Ribeiro (1996) e Castro (1999). O professor Celso M.
Lamparelli introduziu essa abordagem teórica no Curso de Pós-Graduação da Escola de Engenharia de São Carlos ainda na década de 70.
(16) Não podemos esquecer que mesmo atuando como freio ao aumento da produção devido à disputa por rendas imobiliárias a propriedade da terra não constitui uma irracionalidade ao modo
de produção capitalista como argumentaram alguns autores. É ela que permite a apropriação
dos lucros na produção da moradia assim como a propriedade dos meios de produção permitem
a apropriação dos lucros industriais (Martins, 1983).
48
(17) Segundo Ball, a predominância de um agente sobre os outros no processo de produção somente
será identificada a partir de análises específicas sobre realidades concretas. Nesse sentido, Ball
discorda das teses defendidas por intelectuais franceses, como Topalov (1974) e Lojkine (1977),
sobre a supremacia determinante do promotor imobiliário ou do capital financeiro sobre a provisão das edificações (moradias, comércios, serviços). No Brasil, o papel dos ganhos rentistas
fundiários e imobiliários (proprietários de terra e incorporadores) têm uma predominância significativa, como veremos adiante.
(18) No mesmo texto Harvey lembra que a propriedade da moradia pode dividir e opor trabalhadores, pois aqueles que a possuem interessam-se pela valorização do seu imóvel e os que não a
possuem interessam-se pelo seu barateamento.
(19) Não temos os dados rigorosos sobre a produção informal da moradia (favelas, loteamentos ilegais e cortiços) nas cidades brasileiras e sabemos que o IBGE subdimensiona a medição da moradia “subnormal”. Alguns estudos, entretanto, permitem afirmar que estamos diante da maioria ou de aproximadamente metade dos domicílios nas grandes cidades: Andrade (1998); Castro
e Silva (1997), Souza (1999).
(20) Maricato e Pamplona, 1977
(21) Ver a respeito Ball et al. (1988).
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
Referências
ANDRADE, C. F. de S. L. (1998). Parâmetros urbanísticos de loteamentos irregulares e clandestinos na
Zona Oeste do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, FAUUFRJ.
ANDRADE, C. R. M. de (1992). Peste e plano: o urbanismo sanitarista do engenheiro Saturnino de Brito.
São Paulo, FAUUSP.
ARANTES, O. B. F. e outros (2000). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ, Vozes.
ARRETCHE, M. T. da S. (1994). Políticas de habitação para a população de baixa renda e saneamento
básico. Campinas, NEPP/Unicamp.
ARTIGAS, J. B. V. (1975). “O desenho”. In: Sobre o desenho. São Paulo, GFAU.
AZEVEDO, S. de e ANDRADE, L. A. G. de (1982). Habitação e poder: da Fundação da Casa Popular ao
Banco Nacional da Habitação. Rio de Janeiro, Zahar.
BALL, M. (1978). British housing policy and building industry. Capital and Class n. 4. London, Conference
of Socialists Economists.
________ (1981). The Development of Capitalism in Housing Provision in International. Journal of
Urban Regional Research. London, pp. 145-176.
________ (1986). Housing analysis: time for a theoretical refocus. Housing studies. London, v. 1, i. 3,
pp. 147-166.
BALL, M.; HARLOE, M. e MARTENS, M. (1988). Housing and social change in Europe and U.S.A. London/
New York, Routledge.
BÓGUS, L. M. M. (1981). Vila do encontro: a cidade chega à periferia; notas sobre relações entre política urbana, família e reprodução. São Paulo, FAU-USP.
BOLAFFI, G. (1975). Aspectos sócio-econômicos do Plano Nacional de Habitação. São Paulo, FAU-USP.
BONDUKI, N. G. (1994). Origens da habitação social no Brasil (1930-1945): o caso de São Paulo. Tese
de doutorado. São Paulo, FAU-USP.
BONDUKI, N. G. e ROLNIK, R. (1979). Periferias: ocupação do espaço e reprodução da força de trabalho.
São Paulo, FAU-USP.
BRANDÃO, M. de A. (1980). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
CALDEIRA, T. P. do R. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo,
Editora 34/Edusp.
CARDOSO, A. L. (2001/2002). Política Habitacional: a descentralização perversa. Planejamento e
Território, Ensaios sobre a Desigualdade/Cadernos IPPUR, n. 1. Rio de Janeiro, Editora DP&A,
pp. 105-121.
CASTRO, C. M. P. de (1999). A explosão do autofinanciamento na produção da moradia em São Paulo
nos anos 90. Tese de doutorado, São Paulo, FAU-USP.
CASTRO, C. M. P. de e SILVA, H. M. B. (1997). Legislação e mercado residencial em São Paulo. São Paulo,
LabHab /FAU-USP.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
49
ermínia maricato
COSTA NETO, J. de B. (2006). A questão fundiária nos Parques e Estações Ecológicas do Estado de São
Paulo: origens e efeitos da indisciplina da documentação e do registro imobiliário. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP.
DAVIS, M. (2006). Planeta Favela. São Paulo, Boitempo.
DRAIBE, S. M. (1994). “As políticas sociais do regime militar brasileiro”. In: SOARES, G. D. e D'ARAÚJO,
C. (orgs.). 25 anos de regime militar. Rio de Janeiro, FGV.
FERRO, S. (1972). A casa popular. São Paulo, GFAU.
FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos (1985). Habitação Popular: Inventário da Ação Governamental. Rio de Janeiro, FINEP e Projeto Editores Associados.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. (2004). Déficit habitacional no Brasil. Belo Horizonte, Ministério das
Cidades/FJP.
HARVEY, D. (1982). O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas
sociedades capitalistas avançadas. Revista Espaço e Debates. São Paulo, Cortez, n. 6, jun./set.
________ (2005). A produção capitalista do espaço. São Paulo, Annablume.
INSTITUTO CIDADANIA (2000). Projeto moradia. São Paulo, Instituto Cidadania.
KOHARA, L. T. e CARICARI, A. M. (orgs) (2006). Cortiços em São Paulo: soluções viáveis para habitação
social no centro da cidade e legislação de proteção à moradia. Fórum de estudos sobre atuação
em cortiços. São Paulo/Salvador, Mídia Alternativa/CESE.
50
LEFÈVRE, R. B. (1979). “Notas sobre o papel dos preços de terrenos em negócios imobiliários de apartamentos e escritórios na cidade de São Paulo”. In: MARICATO, E. T. M. (org.). A produção capitalista da casa e da cidade no Brasil industrial. São Paulo, Alfa Ômega.
LEME, M. C. da S. (coord.) et al. (1999). Urbanismo no Brasil 1895-1965. São Paulo, Fupam/Studio
Nobel.
LEMOS, C. A. C. e SAMPAIO, M. R. A. de (1976). Evolução formal da casa popular paulistana. São Paulo,
FAU-USP.
LIPIETZ, A. G. (1988). O capital e seu espaço. São Paulo, Nobel.
LOJKINE, J. (1977). O estado capitalista e a questão urbana. São Paulo, Martins Fontes.
MARICATO, E. T. M. (1976). Fim de semana. Filme documentário (pesquisa e produção) e texto – Autoconstrução a arquitetura possível. Brasília, 28ª Reunião Nacional da SBPC.
________ (org.) (1979). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. São Paulo,
Alfa Ômega.
________ (1984). Indústria da construção e política habitacional. Tese de Doutorado. São Paulo, FAUUSP.
________ (1987). A política habitacional do regime militar. Petrópolis, Vozes.
________ (1988). “The urban crisis in Brazil and the popular movement for urban reform”. In: Proceedings
of the 10th Bartlett International Summer School. London, University College London.
________ (1996). Metrópole na periferia do capitalismo: desigualdade, ilegalidade e violência. São
Paulo, Hucitec.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
por um novo enfoque teórico na pesquisa sobre habitação
MARICATO, E. T. M. e PAMPLONA, T. L. (1977). Penetração dos bens "modernos" na habitação proletária. São Paulo, FAU-USP.
MARQUES, E. C. L. e TORRES, H. da G. (orgs) (2005). São Paulo: segregação, pobreza urbana e desigualdade social. São Paulo, Editora do Senac.
MARTINS, J. de S. (1983). O cativeiro da terra. São Paulo, Ciências Humanas.
MAUTNER, Y. M. M. (1991). Periphery as a frontier for the expansion of capital. Tese de Doutorado.
Londres, Bartlett School of Architecture & Planning.
OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES e FASE (2005). Análise das Regiões Metropolitanas do Brasil/Análise sócio-urbana das metrópoles/Metrodata – Base de dados intrametropolitana. Trabalhos Técnicos apresentados à 2ª Conferência Nacional das Cidades. Brasília, Ministério das Cidades.
OLIVEIRA, F. M. C. de (1972). A economia brasileira: crítica à razão dualista. Cadernos Cebrap. São
Paulo, Brasiliense, n. 2.
________ (1981). A economia brasileira: crítica à razão dualista. Rio de Janeiro, Vozes.
OSEKI, J. H. (1982). Algumas tendências da construção civil no Brasil. São Paulo, FAU-USP.
PASTERNAK, S. (1993). Favelas e cortiços no Brasil: 20 anos de pesquisas e políticas. São Paulo, FAUUSP.
PEREIRA, P. C. X. (1984). Espaço, técnica e construção. Apropriação e produção do espaço: as implicações no desenvolvimento da indústria da construção. São Paulo, FFLCH-USP.
PMSP/SEBES (1975). Diagnóstico sobre o fenômeno cortiço no Município de São Paulo. São Paulo,
SEBES (Secretaria de Bem Estar Social).
PICCINI, A. (1999). Cortiços na cidade. São Paulo, Annablume.
REIS FILHO, N. G. (1994). Habitação popular no Brasil: 1880-1920. Cadernos de Pesquisa do LAP. São
Paulo, FAU-USP.
RIBEIRO, L. C. de Q. (1996). Dos cortiços aos condomínios de luxo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
________ (1991). Da propriedade fundiária ao capital incorporador: as formas de produção da moradia na cidade do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado, São Paulo, FAU-USP.
SAMPAIO, M. R. A. de (1972). Metropolização: um estudo da habitação popular paulistana. Tese de
Doutorado, São Paulo, FAU-USP.
SANTOS, C. N. F. dos (1980). “Velhas novidades nos modos de urbanização brasileiros”. In: VALLADARES, L. do P. Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
________ (1982). “Quebra-quebras na construção civil: o caso dos operários do metrô do Rio de Janeiro. In: MOISÉS, J. A. Cidade, povo e poder. São Paulo, Cedec/Paz e Terra.
SERRAN, J. R. (1976). O IAB e a política habitacional. São Paulo, Schema.
SEVCENKO, N. (1984). A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo, Brasiliense.
SILVA, H. M. M. B. (2000). Habitação no centro de São Paulo: como viabilizar essa idéia? São Paulo,
LABHAB/FAU-USP/Caixa.
________ (2007). Observatório do uso do solo e da gestão fundiária no centro de São Paulo. São Paulo,
LABHAB/LILP.
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
51
ermínia maricato
SOUZA, A. M. G. (1999). Limites do habitar: segregação e exclusão na configuração urbana contemporânea de Salvador e perspectivas no final do século XX. Tese de Doutorado, São Paulo, FAU-USP.
TAVARES, M. S. (1989). O processo de trabalho na produção de habitação popular. São Carlos, EESCUSP.
TOPALOV, C. (1974). Les promoteurs immobiliers: contribution à l'analyse de la production capitaliste
du logement en France. Paris, Mouton.
VALENÇA, M. M. (2001). Globabitação. Sistemas habitacionais no Brasil, Grã-Bretanha e Portugal. São
Paulo, Terceira Margem.
VALLADARES, L. do P. (org.) (1980). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
________ (1982). “Estudos recentes sobre habitação no Brasil: resenha da literatura”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Repensando a habitação no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar.
VARGAS, N. (1983). “Racionalidade e não racionalização: o caso da construção habitacional”. In:
FLEURY, A. C. C. e VARGAS, N. Organização do trabalho: uma abordagem interdisciplinar, setes
casos brasileiros para estudo. São Paulo, Atlas.
________ (1981). Construção habitacional: um ‘artesanato de luxo’. Revista Brasileira de Tecnologia.
São Paulo, v. 12, n. 1, jan/mar.
VAZ, L. F. (1986). Notas sobre o Cabeça de Porco. Revista Rio de Janeiro. Niterói, 1, 2, pp. 29-35.
________ (1994). Uma história da habitação coletiva na cidade do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado.
São Paulo, FAU-USP.
52
VILLAÇA, F. J. M. (1986). O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo, Global.
________ (1999). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: SCHIFFER,
S. T. R. e DEÁK, C. (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Fupam/Edusp.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 33-52
10 sem. 2009
Metropolítica: una análisis de algunas
experiencias metropolitanas globales*
Óscar A. Alfonso R.
Resumen
Los desafíos que enfrentan las aglomeraciones
metropolitanas no se limitan a la consecución
de unos logros que les permita ascender en
algún ranking de ciudades globales. La mayor
parte de las zonas metropolitanas de Europa,
América Latina y Norteamérica tienen en común
la búsqueda de una institucionalidad para
afrontar tales desafíos, contando con que las
autonomías heredadas de la descentralización
administrativa y fiscal generalmente interfieren
en tales propósitos. En éste trabajo se realiza
un examen crítico de estas tres experiencias
en materia de metropolítica, esto es, de una
institucionalidad que facilite la coordinación
interjurisdiccional de políticas para afrontar los
problemas y proponer nuevas alternativas de
desarrollo metropolitano.
Palabras Clave: metropolización;
gobernabilidad metropolitana; segregación
metropolitana.
Abstract
The challenges that metropolitan
agglomerations face are not limited to an
attempt to obtain a position in the ranking
of global cities. Most of the metropolitan
areas of Europe, Latin America and North
America search for an institutional framework
to address these challenges, taking into
account that the autonomies inherited from
the administrative and fiscal decentralization
usually interfere in such purposes. This work
examines critically these three experiences in
light of metropolitics, that is, an institutional
framework that facilitates inter-jurisdictional
coordination of policies to tackle the problems
and propose new alternatives for metropolitan
development.
Keywords: metropolization; metropolitan
governance; metropolitan segregation.
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
óscar a. alfonso r.
Salvo contadas excepciones, la mayor
parte de la literatura reciente sobre
metropolización en el mundo gira en torno
de la necesidad de actuar, más que de la
necesidad de comprender el fenómeno. Por
regla general, el fenómeno se conecta con el
discurso sobre las ciudades-región globales
que, a la manera de un nuevo paradigma,
propició desde comienzos de la década de
1990 una avalancha de investigaciones que
intentaba descifrar localmente – cuando no
ajustar – el contenido teórico propuesto
por Saskia Sassen, de manera que a la lista
original de tres ciudades (Tokio, Londres
y Nueva York), se fueron incorporando
paulatinamente otras ciudades occidentales
hasta el punto de que los geógrafos más
prestantes propusieron los “ranking” de
ciudades a la manera del fút bol rentado
(Cuadro 1): París y Frankfurt entraron a la
“primera división”, mientras que Chicago,
Los Ángeles, Milán, Hong Kong y Singapur
“cayeron” a la “segunda división” por
fuerza de la mayor capacidad anotadora
de las primeras, es decir, la acumulación
de funciones globales. La tercera y la
cuarta división aparecen más densamente
pobladas de ciudades que compiten entre
sí para ascender en el rentado de las
ciudades globales, mientras que en las de
más baja jerarquía al parecer todo está
por hacer.
Cuadro 1 – Ranking de ciudades globales – 2002
54
Por funciones globales y puntuación
Primera división 1) Londres, 2) París, 3) Nueva York, 4) Tokio, 5) Frankfurt
Segunda división 6) Chicago, 7) Hong Kong, 8) Los Ángeles, 9) Milán, 10) Singapur
Tercera división 11) San Francisco, 12) Sydney, (13) Toronto, 14) Zurich, 15) Bruselas,
16) Madrid, 17) Ciudad de México, 18) São Paulo, 19) Moscú, 20) Seúl
Cuarta división
21) Ámsterdam, 22) Boston, 23) Caracas, 24) Dallas, 25) Dusseldorf,
26) Ginebra, 27) Houston, 28) Yakarta, 29) Johannesburgo, 30) Melbourne,
31) Osaka, 32) Praga, 33) Santiago de Chile, 34) Taipei, 35) Washington,
36) Bangkok, 37) Beijing, 38) Roma, 39) Estocolmo, 40) Varsovia, 41) Atlanta,
42) Barcelona, 43) Berlin, 44) Buenos Aires, 45) Budapest, 46) Copenhague,
47) Hamburgo, 48) Estambul, 49) Kuala Lumpur, 50) Manila, 51) Miami,
52) Minneapolis, 53) Montreal, 54) Munich, 55) Shangai
Candidatas a ciudades globales (por evidencia de funciones globales y orden alfabético)
Fuerte evidencia Auckland, Dublín, Filadelfia, Helsinki, Luxemburgo, Lyon, Mumbai (Bombay),
Nueva Delhi, Rio de Janeiro, Tel Aviv y viena
Alguna evidencia Abú Dhabi, Atenas, Birmingham, Bogotá, Bratislava, Brisbane, Bucarest,
Stuttgart, Ciudad Ho Chi Minh, Cleveland, Colonia, Detroit, Dubai, El Cairo,
Kiev, La Haya, Lima, Lisboa, Manchester, Montevideo, Oslo, Rótterdam, Ryad,
Seattle y Vancouver
Fuente: Globalization and World Cities (GaWC), Loughborough University, Leicestershire, UK, 2002. Tomado
de Alfonso (2006, 55).
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
Durante los seis años subsiguientes
se publicitaron otros rankings que,
aunque no decían mayor cosa sobre el
desarrollo, continuaron erigiéndose en
pauta publicitaria de los nuevos modelos
de organización de la geo grafía global.
Los criterios y las metodologías para su
elaboración se modificaron a merced de
la voluntad del promotor, mediando en
ocasiones las opiniones de connotados
académicos pero, al fin y al cabo, sólo
opiniones desprovistas de una teoría que de
cuenta sistemáticamente del fenómeno y de
sus vinculaciones internas. El más reciente
de estos se presenta en la Cuadro 2, para
cuya elaboración fueron consultados, según
la fuente, varios académicos, entre ellos la
promotora de la idea pionera. Lo cierto es
que tal idea tiende a banalizarse al punto
de dejar de lado aspectos centrales de la
reflexión de la autora como la tendencia a
la desvalorización del trabajo en el mundo
globalizado. Según Foreign Policy, el ranking
consideró 24 indicadores distribuidos en
cinco áreas: actividad de negocios, capital
humano, el intercambio de información,
actividad cultural y el compromiso político.
Por fuerza de los nuevos criterios, Frankfurt
es relegada al lugar 21º que en el ranking
de 2002 era ocupado por Ámsterdam que
ahora ocupa el lugar 23º, y su 5º lugar es
ahora ocupado por Hong Kong, mientras
que las cuatro ciudades en el tope se han
mantenido allí rotando los tres primeros
lugares entre ellas ante el ascenso de
Nueva York. No obstante la variabilidad de
criterios empleados para la elaboración de
los ranking, el hecho de que las jerarquías
de Nueva York, Londres, París y Tokio
no sufran mayores alteraciones mientras
que del quinto lugar hacia bajo ocurra un
gran flujo de entrada y salida de ciudades
indica, de una parte, la descomunal amplitud
alcanzada por la jerarquía funcional de las
primeras y, además, las dificultades para
que otras alcancen su nivel reconocidas los
rasgos concentrativos del orden global en
curso.
Según estos criterios, no todas las
aglomeraciones metropolitanas poseen
los atributos para erigirse como ciudadesregión globales, de manera que populosas
zonas metropolitanas ni siquiera son
consideradas en el ranking por su actividad
cultural o por el compromiso político. Esto
ocurre en los Estados Unidos con Filadelfia
(8,5 millones de habitantes), Dallas (5,8),
Detroit (5,8), Houston (5,1), la conurbación
binacional San Diego-Tijuana (4,6) y
Phoenix (3,7), por ejemplo, mientras que
en América Latina ocurre algo semejante
con Lima-El Callao (8,5), Santiago de Chile
(6,2), Belo Horizonte (4,6), Guadalajara
(4,0), Monterrey (3,6), Medellín (3,4) y
Montevideo (1,7). Zonas metropolitanas
igualmente populosas e inclusive algunas
de menor tamaño poblacional que las
anteriormente mencionadas, han acumulado
un conjunto de atributos globales como
para escalarse en el ranking. En los Estados
Unidos son Washington, San Francisco,
Toronto, Boston, Atlanta y Miami, mientras
que en América Latina ocurre con Bogotá y
Caracas.
La necesidad de actuar viene tomando
cuerpo en el discurso de la gobernanza
metropolitana, desde donde se proclama
que su quehacer es el diseño de políticas
públicas orientadas a resolver los problemas
de las zonas metropolitanas y a promover el
desarrollo, proviniendo la mayor parte de los
problemas de la denominada “fragmentación
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
55
óscar a. alfonso r.
Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008
Posición según dimensión
Posición
general
56
Ciudad
1
Nueva York
2
Londres
3
4
5
Población
Centro de
negocios
Capital
humano
Centro de
información
Centro
cultural
Compromiso
político
18,7
1
1
4
3
2
7,6
4
2
3
1
5
París
9,9
3
11
1
2
4
Tokio
35,5
2
6
7
7
6
Hong Kong
7,3
5
5
6
26
40
6
Los Ángeles
12,2
15
4
11
5
17
7
Singapur
4,5
6
7
15
37
16
8
Chicago
8,8
12
3
24
20
20
9
Seúl
9,5
7
35
5
10
19
10
Toronto
5,2
26
10
18
4
24
11
Washington
4,3
35
17
10
14
1
12
Beijing
10,9
9
22
28
19
7
13
Bruselas
n.d.
19
34
2
32
3
14
Madrid
5,2
14
18
9
24
33
15
San Francisco
3,4
27
12
22
23
29
16
Sydney
4,5
17
8
27
36
43
17
Berlín
3,3
28
29
12
8
14
18
Viena
2,2
13
31
29
11
9
19
Moscú
10,8
23
15
33
6
39
20
Shangai
12,6
8
25
42
35
18
21
Frankfurt
3,7
11
43
19
13
34
22
Bangkok
6,7
18
14
23
41
13
23
Ámsterdam
1,2
10
38
25
12
56
24
Estocolmo
1,8
25
33
13
16
27
25
México D. F.
19,2
34
23
32
9
11
26
Zurich
n.d
30
20
8
31
54
27
Dubai
n.d.
21
19
14
44
44
28
Estambul
10,0
32
13
34
43
8
29
Boston
4,4
37
9
35
33
50
30
Roma
31
São Paulo
32
Miami
33
Buenos Aires
34
2,6
31
30
30
15
22
18,6
16
36
31
27
23
5,5
33
21
26
39
21
13,5
40
16
43
25
12
Taipei
2,5
20
49
21
30
15
35
Munich
2,3
29
27
49
18
36
36
Copenhague
1,1
36
41
16
42
28
37
Atlanta
4,5
38
24
39
21
32
38
El Cairo
n.d.
48
28
17
45
10
39
Milán
4,0
24
42
41
28
37
40
Kuala Lumpur
1,4
22
46
40
49
38
41
Nueva Delhi
n.d.
47
50
20
46
35
42
Tel Aviv
3,1
51
45
38
17
31
43
Bogotá
7,8
46
26
51
34
25
44
Dublín
n.d.
41
39
48
30
48
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
Cuadro 2 – Ranking de ciudades globales – 2008
Posición
general
Posición según dimensión
Ciudad
Población
Centro de
negocios
Capital
humano
Centro de
información
Centro
cultural
Compromiso
político
45
Osaka
11,3
54
32
45
29
51
46
Manila
–
43
48
47
38
26
47
Rio de Janeiro
11,6
44
47
50
22
46
48
Yakarta
–
42
40
36
51
41
49
Bombay
18,8
39
37
53
52
52
50
Johannesburgo
3,4
45
55
37
48
45
51
Caracas
3,3
52
54
44
55
42
52
Guangzhou
53
Lagos
54
55
56
3,9
49
53
54
50
30
11,7
58
56
46
60
53
Shenzhen
1,3
50
59
57
56
47
Cd. Ho Chi Minh
5,1
55
52
58
53
58
Dacca
13,1
59
51
55
54
49
57
Karachi
12,2
56
57
52
59
55
58
Bangalore
6,8
53
44
60
57
60
59
Chongqing
5,1
60
60
56
47
57
60
Calcuta
14,6
57
58
59
58
59
Fuente:Revista Foreign Policy, november/december 2008 y www.citymayors.com
57
de intereses y de actores dentro de la
metrópoli” (Lefebvre 2004, p. 6), algo
común a todas las grandes ciudades. Tal vez
lo común en medio de tal fragmentación
sean ciertas pretensiones de políticos e
investigadores casuales que imaginan un
mundo compuesto por individuos que han
perdido su ideología, sus relaciones de
pertenencia a las que se denomina como
cultura y, especialmente, sus pasiones. Los
enfoques unificadores de los proyectos
metropolitanos no están en capacidad de
lidiar con la diversidad y, por esa misma
razón, la premisa homogeneizante de
partida que generalmente se impone como la
visión compartida de futuro es, en el fondo,
una imposición de la visión de algún grupo
de interés mimetizado en las sugestivas
metodologías de la planeación estratégica
que se adoptan de acuerdo a la ocasión y
que conllevan, en ocasiones, la socialización
con los actores metropolitanos.
Es notable la popularidad que han
adquirido los ranking de las ciudades
globales como también lo es su escasa
utilidad para orientar iniciativas de
desarrollo metropolitano. Los exámenes
cualitativos están a la orden del día, siendo
la pretensión de este trabajo sólo la de
indicar algunas pautas de análisis que no
compiten con ningún ranking, sino que
alientan otro tipo de búsquedas como, por
ejemplo, la de las formas que adopta la
institucionalidad metropolitana en medio
de la variedad de problemas y desafíos de
dichas aglomeraciones.
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
óscar a. alfonso r.
La cuestión europea
58
Las investigaciones recientes sobre
metropolización en Europa se han enfocado
fundamentalmente al estudio y a las
propuestas de gobernanza para las zonas
circundantes a las capitales nacionales,
en el entendido que de esa característica
se desprenden otras como la primacía
poblacional y política que ejercen sobre el
resto de la configuración social e, inclusive,
sobre otras zonas del mundo occidental;
adicionalmente, el núcleo metropolitano
dispone de una estructura políticoadministrativa de notable complejidad en
relación con el resto de ciudades que en
determinado momento favorece su liderazgo
administrativo metropolitano (Lefebvre,
2004, p. 8).
La noción del proyecto metropolitano en
Europa y en Canadá se ha arraigado entre los
proponentes de las reformas institucionales
territoriales que buscan transformar la
organización del sistema de actores como en
el caso de Greater London Authority, de la
Communauté Métropolitaine de Montréal,
del Área Metropolitana de Lisboa, de la
Comunidad Autónoma de Madrid, de la
VRS de Sttutgart, mientras que hacia 2002
estaban en proyecto la Cittá Metropolitana
de Milán, Roma Capitale, el fortalecimiento
de la CRIF de París y la fusión de dos entes
con Berlín, mientras que ni en Barcelona,
Toronto y Manchester se detectaron algún
tipo de iniciativas en curso (Lefebvre, 2004,
pp. 13-14). De manera que en Europa y en
Canadá la cuestión es la configuración del
“proyecto metropolitano” que, en síntesis,
recoge las siguientes características:
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
• El promotor del proyecto debe ser
identificable . Puede ser el líder político
(Londres) de la metrópoli o de un grupo
político. Este elemento es importante,
puesto que la dimensión de un proyecto
metropolitano requiere de liderazgo para
avanzar, esto es, el proyecto metropolitano
necesidad de alguien que de la dirección, la
orientación, la visión.
• El proyecto metropolitano debe disponer
del apoyo de una estructura política. Para
avanzar, para materializarse, para que
las decisiones se tomen, se requiere de
un soporte institucional. Tal apoyo puede
provenir de diferentes lugares dependiendo
de la naturaleza del proyecto metropolitano
(reforma institucional y/o plan estratégico),
de la ciudad central, del organismo
gubernamental metropolitano cuando exista
(Londres) o de una estructura creada para
este fin (Barcelona).
• El proyecto metropolitano necesita
una estructura técnico-administrativa para
proveer las necesidades materiales y de
personal para dar forma a las ideas y la visión
del proyecto. Esta estructura puede estar
en el órgano de gobierno metropolitano
(Londres), en la ciudad central (Roma) o en
una estructura ad hoc (Barcelona).
La movilización de la sociedad civil
es fundamental ya que da legitimidad al
proyecto metropolitano (lo que deja de ser
un proyecto tecnocrático) y crea una imagen
(que es un proyecto de todo el territorio).
Esta movilización puede tomar diversas
formas, de una actividad de movilización
general (Barcelona) a las formas más
institucionalizadas (Montreal).
•
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
• La existencia de un documento palpable
que sintetice el proyecto metropolitano,
constituye el símbolo y la prueba de
su existencia. Su existencia hace que el
proyecto metropolitano sea tangible .
Este documen to puede adoptar diversas
formas, un documento único (Manchester),
un conjunto de documentos estratégicos
(Londres), una sucesión de documentos y
actividades (Barcelona).
• Por último, el Metropolitano debe en
algún momento producir medidas concretas
para ponerla en práctica. En el caso de las
ciudades estudiadas se encontró que en
raras ocasiones el proyecto metropolitano
puede avanzar sin tales medidas, en algunos
casos porque este tipo de acciones son
demasiado recientes, pero esas premisas
son un buen comienzo (Lefebvre, 2004, p.
15: traducción libre del autor).
La cuestión del modelo Barcelona
amerita una reflexión más precisa; aún está
en ciernes un debate a fondo. Mientras que
para Capel (2006, p. 1)
[...] plantear el problema del modelo
Barcelona es debatir la forma como
se ha de realizar el urbanismo y los
mecanismos que se ponen a punto
para organizar la participación de los
ciudadanos,
para Bohigas el modelo existe como
metodología, esto es, como “método de
utilizar los instrumentos urbanísticos y de
planificación” (Bohigas, citado por Capel
2006, p. 3) que, en el plano metropolitano,
se han concretado en dos principios: el de
la reconstrucción de la ciudad existente
en lugar de la expansión y el de la
compacidad y continuidad urbana en ligar
de la suburbialización; que, no obstante
de ser compartidos por los agentes de la
estructuración metropolitana, han tenido
alcances limitados, pues la expansión,
además de no haber logrado contenerse,
por el contrario, se ha intensificado (Capel,
2006, p. 4).
En la tradición europea parece darse
por hecho que el proyecto metropolitano
por sí mismo goza de la capacidad
aglutinadora y la legitimidad que derivaría
de la gobernanza. De hecho, el empleo
recurrente de la palabra actor es consistente
con una visión de esta naturaleza, en la que
el proyecto metropolitano aparece como
el guión a representar por los personajes
puestos en la escena metropolitana. No hay
lugar a la innovación ni a la sorpresa, pues
se idealiza un mundo de certezas en el que la
diversidad se diluye en el crisol del proyecto
metropolitano.
El prestigio de los políticos europeos
entre la opinión pública metropolitana
y entre ellos mismos parece ser algo
notable, pues en la condición del promotor
identificable radica buena parte del éxito
del proyecto metropolitano. Ese prestigio
se pone en juego para cooptar al resto de
actores quienes, en principio, se someten
al liderazgo del promotor y a su visión
metropolitana. Si un proyecto metropolitano
implica la coordinación de políticas en la
que los agentes son los alcaldes elegidos
popularmente y los cabildos municipales
que ejercen la vigilancia y el control político,
la vinculación al proyecto les implica
necesariamente ceder parte del poder que
les fue restituido con la descentralización.
Por tanto, si el liderazgo surge del núcleo
urbano principal, la desconfianza de los
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
59
óscar a. alfonso r.
60
gobernantes de los municipios involucrados
en el proyecto acerca de sus verdaderas
intenciones da generalmente al traste con
las iniciativas de institucionalización de
acuerdos y de formas mancomunadas de
intervención.
El órgano metropolitano de toma de
decisiones es la arena de la disputa política y
su diseño institucional requiere de reflexión
y de un gran tacto pues, de un lado, el
reconocimiento de la diversidad y del hecho
de que las autonomías se ponen en juego no
pueden encajarse en un modelo por exitoso
que haya sido y, del otro, esas mismas
autonomías municipales se esgrimen ante
cualquier asomo de autoritarismo de la
ciudad central que procure la subordinación
de los municipios menores a los designios
del núcleo urbano principal. Imaginen un
programa metropolitano de inversiones
con recursos públicos escasos que implique
el desarrollo secuencial de las iniciativas.
Si el presupuesto metropolitano ha sido
configurado con arreglo a la importancia
poblacional o funcional de los entes
territoriales involucrados, el alcalde del núcleo
urbano principal querrá que las decisiones
de asignación presupuestal se tomen a
prorrata de los aportes y, en ese momento,
el proyecto metropolitano habrá fenecido
pues a los demás alcaldes les incomoda su
posición como agentes minoritarios. Si las
decisiones se toman a razón de un voto de
las mismas características por cada ente
territorial, el alcalde mayor se retirará
porque sentirá vulnerada su condición de
aportante mayoritario.
¿Cuál es la alternativa para mantener
la unidad y la cohesión del organismo de
decisiones metropolitanas? Seguramente
que hay varias, pero el punto de partida
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
es necesariamente la identificación de las
áreas de intervención metropolitana estatal
que exigen de la coordinación de políticas
y, seguidamente, de un pequeño haz de
proyectos de inversión pública metropolitana
en el que se tenga la claridad de que una
intervención en el área de influencia
inmediata del núcleo urbano principal
le reporta beneficios a los municipios
metropolizados y viceversa. Es decir que, en
primer lugar, la incorporación de proyectos
locales encubiertos bajo una supuesta
influencia metropolitana cuando en realidad
no la tienen, es el principal detonante de los
desacuerdos entre las autoridades políticas
que confluyen en los órganos metropolitanos
y, en segundo lugar, lo es el desmedido poder
de decisión que un acuerdo institucional le
pueda otorgar al representante político del
núcleo urbano principal.
En relación con la estructura técnicoadministrativa es obvio todo proyecto
metro politano la requiere; sin embargo,
lo que realmente trascendente son sus
funciones y las capacidades requeridas del
personal para conformarla. Las ejecutorias
del nivel local son bastante diferentes
de las del nivel metropolitano en tanto la
coordinación de entes territoriales para la
regulación fiscal y ambiental, la gestión de
las iniciativas de política y la financiación
de la provisión de bienes públicos
metropolitanos. Los traslados horizontales
del personal de las administraciones locales
o regionales al organismo metropolitano
trae más desventajas que ventajas pues,
de un lado, su vinculación secular con los
grupos políticos locales hace que esos
cuadros sean requeridos allí, mientras
que en el organismo metropolitano se
requiere de un personal con capacidad de
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
desprenderse de los atavismos de la política
local para cualificar su gestión con una
visión supralocal, esto es, metropolitana,
de la intervención estatal. Tal estructura,
además, tiene que ser de carácter público
pues, de un lado, es inconcebible que
organismos del Estado promuevan
organizaciones privadas o mixtas para
que realicen las labores que en otro caso
ellos mismos debían hacer. En otras
palabras, unos organismos públicos que
promuevan entidades de derecho privado
serían el equivalente a la exacerbación de
una gobernanza que destituye de facto al
funcionario público por incompetente.
¿Qué se entiende por movilización
de la sociedad en torno a un proyecto
metropolitano? Hay una tendencia a
satanizar la participación ciudadana en foros
y cabildos cuando se trata de legitimar las
decisiones que los técnicos del organismo
metropolitano proponen pues se da por
descontado que las decisiones ya han sido
tomadas y que los participantes están siendo
manipulados. Sería útil entonces invertir el
flujo de la participación, es decir, la gente
opina y el técnico procesa. Pero, más allá
de las discusiones procedimentales que, de
hecho, se tornan trascendentes en algún
momento del proyecto metropolitano, la
cuestión es si en verdad es posible que
este cuente con el respaldo ciudadano. Ese
respaldo proviene del convencimiento de que
las ejecutorias que se proponen, así no estén
dentro de la jurisdicción local, sí favorecen
el desarrollo y contribuyen a resolver. La
tarea no es nada fácil pues cuando se tiene
la idea de que la intervención favoreció al
vecino, la población local se siente excluida
del proyecto metropolitano, situación que
es explotada en épocas electorales por los
candidatos locales. Luego la movilización
de la sociedad se deriva de la inclusión
metropolitana y se alcanza, de nuevo, con
las iniciativas de coordinación de políticas
y los proyectos públicos de inversión que
involucren a la mayor porción de la población
de la zona metropolitana.
El contrato público metropolitano es
un contrato que tiende a ser completo en
tanto los acuerdos que le dieron origen
tengan un horizonte temporal relativamente
claro y, por lo demás, no muy extenso.
Esto es así pues reduce la incertidumbre.
Ante condiciones fiscales cambiantes, el
establecimiento de metas regulatorias y
de inversión pública por etapas es una
estrategia flexible que ofrece alternativas
a los potenciales candidatos a los cuerpos
colegiados y administraciones locales.
Una etapa puede llevar más de un período
político pues su fin es el mismo en el que se
realice el objeto del contrato metropolitano,
y sólo hasta que se culmine se puede dar
paso a la siguiente etapa. Es posible que allí
se vuelva a surtir una negociación que puede
ser tediosa, pero que es infranqueable. Pero,
dadas las ejecutorias de la etapa precedente,
el espíritu del momento podrá modificarse
a favor de la continuidad del planeamiento
metropolitano previsto o en detrimento de
este.
Las acciones emblemáticas son cada
vez más decisivas para los proyectos
metropolitanos. La firma periódica de
acuerdos de voluntades entre los gobernantes
de los entes territoriales involucrados en el
proyecto metropolitano va en contra de la
movilización ciudadana que este exige, si tal
renovación de acuerdos no se acompaña de
alguna ejecutoria cuyo rédito social y político
será aún mayor si se trata de subsanar
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
61
óscar a. alfonso r.
62
alguna omisión flagrante que, además,
concierna a algún proyecto incluyente. Hay
una tendencia a pasar por alto los principios
de escasez y de proporcionalidad al
momento de suscribir o renovar los acuerdos
metropolitanos que, en lo fiscal y financiero
son decisivos. Por otra parte, las ejecutorias
físicas son más reputadas que las de política
como la coordinación del tratamiento fiscal
metropolitano a la inversión productiva o
la misma regulación ambiental, siendo en
ocasiones más perentorias las últimas, de
manera que el contrato y su gestión están
en capacidad de subsanar tal malentendido.
La claudicación de una porción de la
autonomía local a favor de un organismo
metropolitano es, sin lugar a dudas, uno de
los principales obstáculos para el avance del
proyecto metropolitano, pues pone en juego
una parte significativa del modelo territorial
de Estado y de la reproducción política. Si
hay algún proyecto a analizar en este sentido,
es el de la cuestión autonómica regional
en España y, en particular, la de Madrid
(Zárate, 2003, p. 286). La adaptabilidad de
Madrid a las transformaciones planetarias
ocurridas con la globalización, a sus
exigencias, parece estar supeditada a la
promoción de la autonomía. En efecto,
la Comunidad Autónoma de Madrid ha
sido relanzada al escenario global a partir
de su incorporación a la Unión Europea
y de las intervenciones que a través del
planeamiento regional le permitieron
superar ciertos rezagos tecnológicos que
afectaban su desempeño económico, siendo
la rápida conversión del aparato productivo
diseñando para el consumo de masas hacia
la producción flexible uno de los rasgos
dominantes de la nueva economía regional
ibérica, pues involucra no sólo a Madrid
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
sino a la capital lusitana, Lisboa, y al puerto
de Valencia. Al nivel intraurbano, hoy ya se
habla de la homogeneización de los paisajes
y de la destrucción de los valores culturales
enraizados en el pasado, mientras que la
periferia asiste también a un relanzamiento
de su nivel de vida por fuerza de
intervenciones deliberadas para contener
las “deseconomías de la macrocefalia
madrileña” (Zárate, 2003, p. 288).
Los problemas de sociabilidad y
habitabilidad no son extraños a una
Comunidad en plena expansión económica.
Los barrios de extranjeros han aflorado
dejando sus improntas culturales en el
medio urbano, lo que ha generado una
contra-reacción racial dirigida a la diáspora
latinoamericana y china, especialmente. El
avance de la terciarización de la economía
encuentra su principal manifestación
socioespacial en el incremento notable en
los precios del suelo urbano que acarrea
también un incremento en los costos
residenciales, de manera que la localización
de las oficinas tiende a refluir del centro
hacia la periferia de la ciudad, justo en el
borde que conecta a Madrid con su entorno
metropolitano inmediato (Zárate, 2003,
p. 290). El fenómeno de la suburbanización
ha irrumpido en los entornos rurales con
peculiar ímpetu. Las segundas residencias
son poco diferenciadas, de manera que
la homogeneización de los productos
inmobiliarios traduce el ambiente impersonal
de un tipo de ocupación excesivamente
denso (Zárate, 2003, p. 296). La ocupación
ilegal del suburbano sur contrasta con
el desarrollo formal de la zona norte. Es
notable la ambigüedad de las edificaciones
ya que además de la ilegalidad que viene
acompañada generalmente de la fragilidad
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
constructiva, la proliferación de piscinas
parece ser el rasgo distintivo de unos
habitantes esporádicos que claman por
esparcimiento.
Luego de 25 años de creada la
Comunidad Autónoma de Madrid, al parecer
el modelo de organización metropolitana de
Madrid ha sido desbordado y se requiere de
uno nuevo que promueva un orden territorial
más amplio en lo social, y más extenso en
lo territorial. El modelo post-fordista le ha
impreso un peculiar dinamismo a la economía
madrileña, con lo que el nivel del ingreso de
las familias ha mejorado tanto que se están
haciendo factible nuevas demandas por suelo
suburbano para diferentes usos en la postmetrópoli. Las mejoras en las condiciones
de accesibilidad regional están permitiendo
la expansión del umbral metropolitano. La
ciudad región es la opción más proclamada
por académicos y por políticos ibéricos en
los últimos años. La interacción cotidiana
es cada día más intensa, siendo el trabajo
el motivo que detona el mayor número
de movimientos al interior del espacio
metropolitano de la CAM. En esto, los
subsidios de transporte – el bono transporte
madrileño – han desempeñado un papel
importante que favorece las interacciones,
dado que muchos trabajadores de la capital
residen en Castilla-La Mancha, por ejemplo.
La cuestión
latinoamericana
Los procesos de metropolización en América
Latina guardan estrecha relación con la
forma de articulación de cada nación a las
esferas mundiales de la acumulación de
capital y, por tanto, tienen una dimensión
histórico-social que hacen de tal fenómeno
un hecho social diacrónico pues, en efecto,
algunas formaciones sociales en las que se
detectó de manera temprana algún avance de
la metropolización han experimentado cierto
rezago en relación con la profundización
de la metropolización en otros lugares del
subcontinente latinoamericano. En general,
el modo de acumulación industrial de tipo
fordista que exige un gran contingente de
fuerza de trabajo y que es sostenible con
altas tasas de desempleo urbano, promueve
la aglomeración de actividades en ciertos
lugares y una elevada concentración
de población en estos, de manera que
las disfuncionalidades atribuibles a la
macrocefalia urbana están correlacionadas
positivamente con el devenir histórico del
desarrollo industrial de mediana y gran
escala. Por su parte, el modo comercial
de acumulación de capital no exige tal
aglomeración como sí varias aglomeraciones
con interacción fuerte en razón de los flujos
de mercancías. La primera ciudad de las
formaciones sociales articuladas al modo
comercial de acumulación de capital no
alcanza a tener la importancia relativa de la
primera del modo industrial.
Con el advenimiento de las pautas de
producción y circulación de mercancías postfordistas, se demandan nuevas localizaciones.
El consumo de espacio por las familias no
es su mismo espacio de consumo como
anota Rainer Randolph. El deterioro en la
distribución personal del ingreso acarrea
nuevas formas de segregación socioespacial,
siendo la residencia en conjuntos cerrados
la forma predilecta de aislamiento de las
capas de ingresos altos de la población,
justificada socialmente bajo el discurso
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
63
óscar a. alfonso r.
64
setentero de la inseguridad urbana. Cuando
esas formas residenciales se dispersan en
el medio metropolitano, reproducen los
esquemas generales de segregación a una
escala espacial mayor que, de hecho, se
agudiza cuando se sustituyen usos rurales
por usos residenciales suburbanos. Los
condominos cerrados son la exégesis de
aquella práctica de cerrar vías por los vecinos
para producir un barrio cerrado en el que
los intrusos tienen prohibi da la entrada
pues son clasificados como peligrosos
por los residentes. Los estructuradores
urbanos captaron rápidamente esta práctica
e innovaron vertical y horizontalmente
sus productos residenciales para ofrecer
seguridad bloqueando la entrada de los
intrusos.
Lo que está en juego no es propiamente
la seguridad personal pues cuando el crimen
organizado entra en acción, los afectados
– notoriamente los residentes de los
conjuntos cerrados – recurren a la justicia
formal, pues la seguridad privada no asume
responsabilidad alguna sobre los hechos.
En medio de esa contradicción, lo que se
esclarece es que el espíritu de diferenciación
de los citadinos encuentra en el espacio
metropolitano – notoriamente en el
suburbano – los lugares propicios para sus
prácticas de aislamiento que, por lo demás,
son prácticas de orden primario en tanto se
realizan con miembros de la familia o con
colegas rutinarios del trabajo o del estudio,
pero en escasas ocasiones con los vecinos.
Por tanto, a las zonas metropolitanas
más dinámicas de América Latina, les es
inmanente la diferenciación y la exclusión
socioespacial que se materializa, de un lado,
por las desigualdades en la provisión de
bienes públicos metropolitanos y, del otro,
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
por el uso ineficiente del suelo urbano y
suburbano.
La accesibilidad metropolitana en la
zona metropolitana de Buenos Aires hacia
comienzos del presente siglo, analizada
a partir del indicador TDI que sintetiza
la oferta Transporte Integral (automotor
y ferroviario) en relación a indicadores
sociodemográficos (Staffa, 2007, p. 13),
muestra que los municipios con menor
accesibilidad metropolitana son los más
alejados de la capital, los de menor densidad
relativa y que cuentan con los mayores niveles
de pobreza. Para los analistas argentinos, el
efecto de las deficiencias en la provisión de las
condiciones de accesibilidad metropolitanas
es el incremento en los traslados a pie;
pero esas largas caminatas lo que hacen es
inhibir el acceso del ciudadano que reside en
los lugares de menor accesibilidad relativa
al resto del medio metropolitano. Cuando
la accesibilidad urbana queda supeditada
a la combinación de modos de transporte,
el entorno metropolitano asume la forma
de un bien club, esto es, un entorno que
solamente es accesible para quienes detenten
la disponibilidad a pagar suficiente.
Pero, sin duda, hay algo más detrás
de la dinámica económica metropolitana
que origina sorpresas para los que no
advierten las anticipaciones del orden
urbano y metropolitano que están
realizando los estructuradores formales.
Seguramente que Berazategui es más
deprimido socialmente que Tigre, pero
el estructurador metropolitano produjo
un nuevo orden desde el momento en
que anticipó la demanda en condominios
cerrados y se apropio del paisaje del delta,
en proximidades a la represa, de manera que
las mejoras en la provisión de la accesibilidad
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
Cuadro 3 – Accesibilidad integral relativa
en la Zona Metropolitana de Buenos Aires – 2000
Município
Esteban Echeverria
General Sarmiento
Florencio Varela
Moreno
La Matanza
Quilmes
Merlo
Almirante Brown
Berazategui
L. de Zamora
G. de San Martín
Tigre
Morón
Lanús
San Fernando
San Isidro
Avellaneda
Tres de Febrero
Vicente López
Factor TDI
32
38
40
46
48
51
53
57
67
74
77
84
94
119
124
175
193
195
308
65
metropolitana a Nordelta produjo tal
incremento en los precios del suelo habitable
que Berazategui debió quedar ahora mucho
más alejado socialmente del resto del medio
metropolitano y, con igual o peor suerte,
todos aquellos partidos que le anteceden en
el ordenamiento del Cuadro 3.
En el plano institucional, Buenos
Aires se refunda desde 1994 cuando por
mandato constitucional la emergente
institucionalidad metropolitana se erige
como un nuevo centro de poder sumándose
a los precedentes: la Nación, la Provincia y
el Municipio (Sabsay et al., 2002, p. 52).
El alcance de su autonomía está aún por
esclarecerse y, coetáneamente, el deslinde
de sus funciones con la Nación, de manera
que la naturaleza jurídica de la ciudad de
Buenos Aires, sus funciones y, en relación
con la cuestión metropolitana, su capacidad
para la creación de regiones, se intenta
clarificar para dar paso a los convenios con
los municipios y la provincia. Hoy en día se
reconoce que tanto la Constitución Nacional
Argentina como la de la provincia no
restringe de manera alguna la participación
de Buenos Aires en la configuración de
regiones (Sabsay et al., 2002, p. 60).
Esa noción de ciudad integrada en el
ámbito metropolitano, en su dimensión
ambiental, que deriva en acuerdos con otras
jurisdicciones de la estructura ecológica
común, es fundamental para la armonización
y promoción de las bases territoriales de
un orden metropolitano. Pero las otras
jurisdicciones potencialmente participantes
también se debaten en torno a la disyuntiva
de su carácter autónomo o autárquico, es
decir, entre su capacidad para autoregularse,
autogobernarse y autoadministrarse delante
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
óscar a. alfonso r.
de unas competencias territoriales o,
simplemente, de autoadministrarse caso en el
cual las competencias le son delegadas por el
ente provincial y, por tanto, están expuestas
a alguna restricción originada en la entidad
que las otorga. La autonomía, por su parte,
deviene de un mandato constitucional. En
relación con la cuestión metropolitana
[...] el artículo 124 faculta a las
provincias a conformar regiones para
el desarrollo económico y social, no
existiendo norma expresa respecto a la
facultad de los municipios de participar
en esquemas de regionalización. (Sabsay
et al., 2002, p. 68)
66
Esas limitaciones institucionales
para la configuración metropolitana, esto
es, para una modificación a los modelos
territoriales de Estado, son muy comunes
en los países hispanos de América Latina.
En el caso colombiano, el interés de las
autoridades bogotanas y del Departamento
de Cundinamarca para organizarse
alrededor de una Región Administrativa y
de Planificación Especial, implicó llevar a
cabo una reforma constitucional que, cundo
se logró, fue declarada inconstitucional por
vicios de procedimiento en el trámite en el
Congreso de la República. El antecedente
institucional y político es la Ley 128 de Áreas
Metropolitanas que promueve un desbalance
al otorgar un gran poder decisorio al núcleo
urbano principal, factor que desalienta a los
gobernantes del área circundante a Bogotá
para conformar el Área Metropolitana en
esos términos.
En Brasil, que hoy por hoy cuenta
con 5.564 municipios, parecen existir
medios más expeditos para la configuración
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
institucional metropolitana. Según el
Observatório das Metrópoles, desde 1974,
sea por leyes federales o estatales, en
Brasil se han conformado “24 regiones
metropolitanas y 3 regiones integradas de
desarrollo económico, que acogen a 79,1
millones de personas, el 46% de la población
brasileña, siendo notable la primacía paulista
que con 39 municipios posee alrededor de
19 millones de habitantes, y la carioca en
donde residen 11 millones de personas, en
contraste con otras de menor calado como
la Región Metropolitana del Sudeste de
Maranhão que acoge a 324 mil habitantes de
ocho municipios o la Región Metropolitana
de Macapá donde residen 435 personas en
dos municipios”.
Hay al menos tres convencimientos
detrás de tal dinámica de la institucionalidad
metropolitana. El primero tiene que ver con
el reconocimiento del fenómeno en sí mismo,
es decir, que el municipio tiene una dinámica
local insoslayable pero que, por fuerza de
la metropolización, es superada por una
de mayor calado y cobertura regional. El
segundo es que la institucionalización de la
metropolización trae más ventajas, como
el incremento del poder de negociación
ante los gobiernos federal y estatal, que
desventajas, como la supuesta pérdida de
la autonomía; y, por último, que un buen
diseño normativo federal o estatal promueve
la institucionalización de la metropolización
cuando no crea mayores desequilibrios, sino
que los acota.
No obstante la existencia de
significativas aglomeraciones metropolitanas
en el mundo que no han entrado en la tónica
de la economía en red, el potencial económico
de las mismas es indiscutible. Sólo en 15 de
las 27 regiones metropolitanas brasileñas se
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
concentra el 62% de la capacidad tecnológica
del país y el 55% del valor agregado que
generan las firmas exportadoras (De
Queiroz, 2008, p. 1), de manera que el
sistema urbano así configurado se reconoce
como el principal activo para hacer frente
a las nuevas tendencias de la acumulación
global del capital. Sin embargo, en algunos
medios se discute la supuesta decadencia
de las metrópolis brasileñas y, de forma
paralela, cierto auge de ciudades medias,
siendo uno de los principales indicadores
de tal fenómeno la desindustrialización
detectada desde mediados de los ochenta y
que implicó, por ejemplo, la contracción de
la hegemonía industrial paulista estimada en
15 puntos porcentuales de la participación de
São Paulo en el empleo industrial brasileño.
Pero tal contracción no implicó un
retroceso semejante en la producción
industrial, lo que sugiere que lo que
está ocurrien do es un agudo proceso de
reestructuración industrial que se ha logrado
a costa de una elevación en la productividad
media del trabajo, consistente con una
elevación del grado de mecanización de los
procesos fabriles. De hecho, entre 2002 y
2005 la participación metropolitana en el
PIB pasó del 51,6 al 53,3% (De Queiroz
y Martins, 2008, p. 4) mientras que la
participación en la población también ha
aumentado hasta situarse, en 2007, en
39,2%.
De manera que una ciudad media
o intermedia, como se acostumbra a
denominar a aquellas ciudades localizadas
en esas franjas de la jerarquía poblacional
y económica de la red de ciudades, puede
detentar un crecimiento notable pero
marginal a la luz del sistema urbano en su
conjunto. Situación bien diferente es la que
afrontan las ciudades de esta naturaleza
pero que, además, se localizan en un
ámbito metropolitano, esto es, ciudades
catalizadoras de tal crecimiento poblacional
o económico que hace plausible una
bifurcación metropolitana que, de conjunto,
sí está en capacidad de modificar la
estructura jerárquica de la red de ciudades
y, por tanto, el patrón de ocupación
del territorio de la formación social en
cuestión.
Esa bifurcación metropolitana puede
ocurrir por varias razones, principalmente
a las que atañen a la forma de operación
de los mercados inmobiliarios y de trabajo.
En el caso de la Zona Metropolitana de
Ciudad de México como en Barranquilla,
las bifurcaciones están ocurriendo en razón
de políticas sobre el mercado del suelo
urbano. Ciudad de México, subdividida en
16 delegaciones, conforma con otros 41
municipios la segunda zona metropolitana
más populosa del mundo con sus 18,8
millones de habitantes, sólo precedida por
la conurbación asiática Tokio-YokohamaKawasaki que cuenta con cerca de 33,3
millones de habitantes. La bifurcación
del crecimiento poblacional urbano hacia
Nezahualcóyotl, Ecatepec y Chimalhuacán
ha sido motivada en buena parte por la
“restricción a la construcción de nuevos
fraccionamientos en el Distrito Federal”
(Carrasco y Andrés, 2007, p. 4), medida que
detonó la ocupación irregular de terrenos en
al oriente del Valle de México. En Soledad,
conurbado de Barranquilla en el Caribe
colombiano, la tasa de formación de hogares
supera a la del núcleo metropolitano como
resultado de la confluencia de al menos
dos fenómenos. El acelerado crecimiento
inmobiliario formal experimentado
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
67
óscar a. alfonso r.
68
recientemente en Barranquilla para acoger
a familias de ingresos altos y medios-altos
del resto del Caribe que han optado por
cambiar de lugar de residencia y, de manera
coetánea, las facilidades urbanísticas que
ofrece Soledad para acoger a la población
desplazada por los violentes de la Sabana
Interior Caribeña, y que otrora se dirigían
a lugares como Cantaclaro en Montería, por
ejemplo.
El resultado de las bifurcaciones
metropolitanas de esta naturaleza es la
configuración de municipios metropolizados
de carácter monoclacista, en los que la
política social local no es sostenible. En
el plano de la institucionalización de la
metropolización con la que se pueda
hacer frente de manera conjunta a los
desafíos poblacionales y sociales como los
mencionados, en Barranquilla no se ha
avanzado mucho mientras que en Ciudad
de México se configuró en 2005 la Zona
Metropolitana de Ciudad de México en la
que, además de las 16 delegaciones y 40
municipios conurbados, se incorporaron
otros 18 que se encuentran en el área de
influencia inmediata del núcleo metropolitano
y demás conurbados, que revisten las
cualidades para ser conurbados en el futuro
próximo. Esa anticipación institucional es tan
proactiva en términos políticos y deseable en
el plano social que podría ser una excelente
alternativa para proyectos metropolitanos
como el de la expansión madrileña pues,
además de reducir los costos en que incurre
la intervención pública en la construcción
de un nuevo ámbito metropolitano para la
coordinación de políticas, facilita el diseño
de políticas de bordes metropolitanos con la
participación activa de los entes territoriales
involucrados.
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
La cuestión anglosajona
La estructura jerárquica de la red
estadounidense de ciudades, como pocas en
el mundo, goza de una notable estabilidad,
especialmente por la relativa ausencia de
volatilidad de la población en su territorio,
aún en medio de la supremacía económica,
poblacional y dotacional del eje atlántico
frente al eje de desarrollo del pacífico.
El cosmopolitismo de su ciudad primada,
Nueva York, es reconocido universalmente
como el más acrisolado, fuente de mezclas
raciales y etarias insospechadas que hacen
de la afirmación de la personalidad urbana
una práctica en la que cotidianamente
sus residentes refuerzan la superioridad
intelectual que se irradia por causa del
efecto metrópoli. La diversidad poblacional,
cultural y económica que acogen sus cinco
distritos – Manhattan, Brooklyn, el Bronx,
Queens y Staten Island – los diferencian y los
cohesionan a la vez, contradicción de la que
emergen sus principales rasgos distintivos
como metrópoli global a la cabeza de la red
mundial de ciudades. La estabilidad secular
de la tarifa del transporte masivo (un token
por cualquier cantidad de estaciones por
US$1,25) ha sido uno de los principales
factores que han detonado la expansión de
su influencia inmediata hacia New Jersey
y Connecticut. La otra es el elevado nivel
de precios que caracteriza al real estate
neoyorquino desde sus orígenes cuando
los grandes especuladores inmobiliarios –
los Astor, Beckman o Vanderbilt (Charyn,
1998, p. 28) – acumularon inmensas
fortunas al calor del hacinamiento crítico
de los residentes de comienzos del siglo XIX
“que algunos vieron en ella una amenaza
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
para el hogar americano” (Charyn, 1998,
p. 32). Medio siglo más adelante, la “Capital
del Mundo” comenzará a acoger la herencia
de todos los tiempos y de cualquier lugar del
universo:
El día de la llegada de los inmigrantes
a Nueva York era lo más parecido que
se puede encontrar en este mundo al
Juicio Final, en que uno es digno o no
de entrar al Paraíso… Ellis Island se
convirtió rápidamente en uno de los
arquetipos de Nueva York, en la “isla
de las Lágrimas”, donde a menudo
se separaban las familias, donde los
inmigrantes debían pasar por un
doloroso crisol, donde los cuerpos
eran marcados con tiza, recibían
nuevos nombres y nuevas identidades,
y al final se precipitaban en el caos del
Nuevo Mundo, a la búsqueda de nuevos
recursos para subsistir. (Charyn, 1998,
p. 36)
Las grandezas neoyorquinas de hoy en
día, Wall Street, los museos metropolitanos,
la red de metro con el mayor número
de estaciones del mundo, el legado de
angolquinos e iroqueses en Broadway o la
edificación en altura, por ejemplo, contrasta
con la persistencia de antivalores, siendo
el más notorio el de la segregación racial
mistificado en Harlem. Por otra parte, a
esas grandezas se accede por mecanismos
de mercado: el alcalde Bloomberg afirmó
[...] no vamos a subsidiar a ningún
individuo o empresa para que venga
aquí a Nueva York. Cualquier empresa
que necesite subsidio no la necesitamos
aquí, sólo queremos corporaciones,
empresas que quieran radicarse en
lugares de alta calidad. (Harvey, 2006,
p. 4)
Otras zonas metropolitanas detentan
rasgos distintivos acuñados por lustros
y que en la actualidad les confieren
alguna preeminencia en la formación
social anglosajona: Boston-Cambridge
es reconocida como núcleo tecnológico,
educativo y arquitectónico, WashingtonBaltimore por ser la ciudad pensada para
acoger los núcleos gubernamentales del
poder y sus acti vidades de apoyo y San
Diego-Tijuana por ser la fuente de la nueva
hispanidad que se extiende por el eje de
desarrollo del pacífico. Pero, por diferentes
razones, en estas preeminentes zonas
metropolitanas no es fácilmente discernible
la “mítica dicotomía del declinio urbano y
la prosperidad suburbana que conlleva el
declinio social y económico que se detiene
en las fronteras de la ciudad central”
(Orfield, 1999, p. 1) como si ocurre en las
zonas metropolitanas de la Región de los
Lagos o en las del noreste estadounidense.
Tal declinio, por lo tanto, es atribuible
también a los viejos trabajadores que en la
actualidad conforman las capas de ingresos
medios que residen en los suburbios y en
las ciudades satélites en las que las agencias
de servicio social atienden un flujo creciente
de personas dolientes del stress urbano.
En el mismo sentido, el empobrecimiento
persistente de las zonas deprimidas
estadounidenses se desenvuelve en medio
de una fiscalidad precaria caracterizada por
bajísimas tasas impositivas que no proveen
los recursos necesarios para atender la
demanda de escolaridad y de otros servicios
públicos (Orfield, 1999, p. 1) originada,
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
69
óscar a. alfonso r.
70
en muchos casos, por “una suerte de
carrera armamentista en la que todas las
localidades ofrecen incentivos, pues temen
los resultados de no hacerlo” (Clarke et
al., 1999, p. 59). El resultado de mediano
plazo consiste en la contracción de la base
tributaria local sin una respuesta eficaz en la
creación de empleo local y una ampliación de
la demanda insatisfecha de bienes y servicios
públicos que termina por deprimir aún más
el medio, generalmente suburbano, de lo
que estaba antes. Del otro lado, del de las
empresas beneficiarias de las desgravaciones
y subvenciones, estas se configuraron como
una renta corporativa cuya obtención no
conllevó costos ni riesgo alguno y a la que,
por tanto, difícilmente renunciarían.
La expansión suburbana y la polarización
social, la violencia homicida y la segregación
son cada vez más frecuentes en los medios
metropolitanos. Las zonas suburbanas
metropolitanas son fragmentadas para
alojar a las clases trabajadora, media
y alta. La primera opta por residir en
proxim id a d e s a lo s e mp la z a mie n t o s
industriales de manera que los trayectos
cotidianos del lugar de residencia al sitio de
trabajo sean factibles de realizar caminando.
La clase media localiza su residencia en
proximidades a lugares de tránsito pesado,
de flujo de carga, conformando barrios de
trabajadores. La clase alta reside en barrios
de donde han sido removidas las familias
de las otras dos clases y que gozan de
atractivos ambientales (Orfield, 1999, p.
22). Cada clase ocupa su lugar configurando
un orden metropolitano amparado en una
estructura radial de redes de transporte
y en las innovaciones residenciales de
los estructuradores metropolitanos para
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
salvaguardarlo, mimetizadas bajo el lema de
la seguridad personal.
Los private communities se abrieron
paso en el medio suburbano desde mediados
de los setenta. Por entonces se detectaron
340.000 residencias en private communities,
mientras que hacia 1990 se estimó en 5,9
millones de personas los residentes en esta
pauta de ocupación suburbana. En general
los estructuradores metropolitanos ofrecen
un paquete que incluye la seguridad física,
la garantía de tener vecinos semejantes,
algunas facilidades recreacionales y un
diseño que integra alamedas y ciclopaseos.
A cambio se exige del residente una elevada
cuota de administración y manutención
del condominio, su vinculación a una
asociación de vecinos y el pago periódico
de las cuotas de afiliación y sostenimiento y
el cumplimiento de un conjunto de reglas.
Cuando estas se endurecen, la sujeción de los
residentes a las mismas da lugar a los gated
communities . Fairfax County en Reston,
Virgnina y Howard County en Columbia,
Maryland, son casos emblemáticos de estas
modalidades. Algunos de sus elementos
distintivos se han emulado en Nordelta en la
Zona Metropolitana de Buenos Aires, Barra
de Tijuca en Río de Janeiro y Alphaville
en São Paulo y Curitiba. Sujeción a reglas
como la de que en el condominio no pueden
habitar personas menores de 18 años ni
mayores de 55 o la obligación de remitir
previamente a la administración las hojas
de vida de los invitados a una reunión para
que ella autorice o no su presencia, son sólo
algunas de ellas.
Levy (1997, p. 98) se pregunta: “si
cree mos en la elección maximizadora del
consumo en vestuario y automóviles, por
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
qué no en condominios como estos?” Y
responde: “porque son la destrucción del
Edén de la integración” que “trasciende
a un problema de diseño físico” y que
tiene implicaciones sociales en materia de
segregación socioespacial metropolitana.
“Las elites han optado por el aislamiento,
pagan por él generosamente y de buen
grado”, apunta Bauman (1999, p. 32) para
quien las reglas de los gated communities
cumplen la función de poner en evidencia los
patrones de normalidad de las personas que
entonces podrán residir en un condominio
al que se le prohíbe la entrada al resto
de personas que deben quedar aislados
temporalmente, configurándose de esa
manera un orden a la manera anglosajona
que se irradia hoy por todo el mundo:
La experiencia de las ciudades
norteamericanas analizadas por Sennet
apunta a un elemento común casi
universal: la suspicacia, la intolerancia
de las diferencias, la hostilidad hacia
los forasteros y la exigencia de
separarlos y desterrarlos, así como
la obsesión histérica, paranoica, por
“la ley y el orden”, tienden a alcanzar
su más alto grado en las comunidades
más uniformes, las más segregadas
en cuanto a raza, etnia y clase social,
las más homogéneas. (Bauman, 1999,
p. 64)
La polarización regional y su expansión
en los Estados Unidos tienen diferentes
manifestaciones socioeconómicas y
espaciales: concentración de la pobreza
en ciertos grupos poblacionales y su
mayor incidencia entre los niños y mujeres
cabeza de familia, deficiencias de ingreso,
de escuelas públicas y, en general, de
acceso a la educación, escalada del crimen,
infraestructuras precarias, disparidades
fiscales y discriminación laboral, por
ejemplo. Las principales diferencias están
en la intensidad con que se presentan
estos fenómenos en las diferentes zonas en
expansión.
Para los investigadores de
The Metropolitan Area Research
Coporporation – MARC, las soluciones
metropolitanas se articulan en tres ejes:
a) equidad; b) crecimiento prudente; y,
c) reformas estructurales metropolitanas.
Al primer eje le conciernen las políticas
tributarias, especialmente las que conciernen
a los usos del suelo. Minnesota es pionera
de tales medidas pues aún preservando
la autonomía local se logró mejorar la
provisión local y estatal de servicios públicos
con base en acuerdos entre jurisdicciones
(Orfield, 1999, p. 46). La discusión de
la equidad metropolitana que involucra
diferencias entre el núcleo metropolitano,
los municipios metropolizados y entre
ellos en su conjunto es, obviamente,
muy compleja, pero lo que la hace más
compleja es no discutirla. Los resultados han
conducido a la eliminación de la competencia
tributaria intra-metropolitana y, más aún,
a la adopción de políticas como la del Tax
Increment Financing. El tercer mecanismo
es el de la planeación del uso del suelo, cuyo
objetivo principal es el de evitar la ocupación
de bajas densidades y la toma de decisiones
sobre la infraestructura metropolitana que
evita la expansión de estas características.
Otras medidas complementarias han sido
la equidad escolar en las que el Estado
complementa los fondos para garantizar
el acceso universal teniendo en cuenta el
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
71
óscar a. alfonso r.
72
esfuerzo tributario local, la revisión de las
transferencias y la reinversión en antiguas
comunidades cuya revitalización genere una
ampliación de la base tributaria.
Las políticas de control al crecimiento,
como en el caso de Grand Rapid en
Michigan, intentan intervenir el crecimiento
en los márgenes buscando que no se agudice
la segregación y empeore la contaminación
y el consumo de energía, entre otros males
que encarecen la vida para el conjunto de
los residentes de la zona metropolitana.
El modelo de planeación del suelo de
Oregon es el más comúnmente asimilado
en estas localidades, siendo el Estado el
que promulga los lineamientos de usos del
suelo aplicables a todas las jurisdicciones, las
pautas de crecimiento de la ciudad central de
los municipios metropolizados, las metas en
vivienda y, de manera coherente, los planes
de transporte, agua y saneamiento, parques
e infraestructura educativa (Orfield, 1999,
p. 52).
Las reformas estructurales
metropolitanas, por su parte, conciernen al
papel de las Organizaciones Metropolitanas
de Planea miento y a su composición y a
su legitimidad en la perspectiva de la toma
de decisiones que influyen en el futuro de
la región metropolitana. En el caso de los
private and gated communities se ha visto
como los estructuradores metropolitanos
privados se convierten en los verdaderos
planeadores mientras que las OMP asumen
un rol pasivo, el de consejeras de los
cuerpos legislativos, al paso que inmensas
zonas carecen de control de uso del suelo,
de zoneamiento, las áreas de desarrollo se
autonomizan de las ciudades, la ineficiencia
económica de usos del suelo es notable y
otras áreas entran a ser replanificadas.
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
Los Utility Advisory Board (UAB) y Urban
Cooperation Board (UCB) son los acuerdos
entre jurisdicciones que han permitido
retornar a la gobernabilidad metropolitana:
en el primero se establecen los umbrales y
las reglas de la expansión metropolitana,
mientras que en el segundo se acuerda la
fiscalidad para ser empleada en los proyectos
de inversión física (Orfield, 1999, p. 56).
Reflexiones finales
Variadas alternativas para afrontar
los desafíos de las aglomeraciones
metropolitanas son factibles de aprehender
de los estudios cualitativos, difícilmente
resumibles en algún ranking de experiencias
exitosas. De hecho, el imborrable
aprendizaje de los fracasos tiene la potencia
transformadora de los comportamientos que
alienta la búsqueda de nuevas alternativas.
Las zonas deprimidas del mundo
desarrollado aún experimentan alternativas
institucionales para resolver los problemas
comunes a las jurisdicciones integradas en
alguna dinámica metropolitana, mientras
que en América Latina las innovaciones
institucionales ocurren otro tanto pero en
medio de un creciente reconocimiento de
que la defensa de las autonomías heredadas
de la descentralización administrativa y
fiscal no pueden convertirse en obstáculo a
la concertación de políticas metropolitanas.
Anticipaciones como en el caso de
México y difusión de la institucionalidad
metropolitana como en Brasil son casos
emblemáticos de acuerdos que facilitan tal
coordinación. La eficacia de las soluciones
metropolítica: una análisis de algunas experiencias metropolitanas globales
propuestas a los desafíos metropolitanos
radica, en buena medida, en la originalidad
de las alternativas las que, por su parte,
provienen de los diagnósticos adecuados,
de la apropiación crítica de las experiencias
metropolitanas globales y, sin duda, de
la capacidad innovadora de los cuadros
de las organizaciones metropolitanas
de planeamiento, los tres pilares de la
metropolítica.
Óscar A. Alfonso R.
Doctor en Planeamiento Urbano y Regional por el Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Economista con estudios de
maestría en la Universidad de los Andes. Docente Investigador de la Universidad Externado de
Colombia (Bogotá, Colombia).
[email protected]
Nota
* Este trabajo fue realizado con el apoyo de la Secretaría Distrital de Planeación de Bogotá, D. C.
Agradezco los comentarios y sugerencias de Humberto Molina, Carolina Méndez, Johann Julio y
del lector anónimo de la revista Cadernos Metrópole.
Referencias
ALFONSO R., Ó. A. (2005). “La residencia en condominios en un ámbito metropolitano andino: la
conquista del campo por los citadinos y el orden segmentado en la región Bogotá-Cundinamarca”.
En: Hacer metrópoli: la región urbana de Bogotá de cara al siglo XXI. Bogotá, Universidad
Externado de Colombia.
________ (2006). Ciudad-región andina, global y competitiva: elementos de análisis de las condiciones
iniciales de la región económica y política Bogotá-Cundinamarca. Revista Controversia, segunda
etapa, n. 184. Bogotá, CINEP.
________ (2007). Aportes a una teoría de la estructuración residencial urbana. Revista de Economía
Institucional, v. 9, n. 17, Bogotá, Universidad Externado de Colombia.
BAUMAN, Z. (1999). La globalización: consecuencias humanas. México, Fondo de Cultura Económica.
CAPEL, H. (2006). De nuevo el modelo Barcelona y el debate sobre el urbanismo barcelonés. Biblio
3W, Revista bibliográfica de geografía y ciencias sociales, v. XI, n. 629, Barcelona, Universidad
de Barcelona.
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
73
óscar a. alfonso r.
CARRASCO A., R. J. y H. ANDRÉS C. (2007). El Área Metropolitana de la Ciudad de México en el desarrollo
¿sustentable? Consulta en línea [www.ambiente-ecologico.com] el 5 de enero de 2009.
CHARYN, J. (1998). Nueva York, crónica de la jungla urbana. Barcelona, Ediciones B S.A. – Gallimard.
CLARKE, S.; GAYLE, G. L. y SAIZ, M. (1999). Estrategias de desarrollo en áreas deprimidas en Estados
Unidos. Territorios, Revista de Estudios Regionales y Urbanos, n. 1. Bogotá, CIDER – ACIUR.
DE QUEIROZ R., L. C. (2008). Os desafios metropolitanos e o desenvolvimento nacional. Observatório
das Metrópoles/Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ.
DE QUEIROZ R., L. C. y MARTINS, J. (2008). Decadência das metrópoles e paraíso das cidades médias?,
Observatório das Metrópoles/Rio de Janeiro, IPPUR/UFRJ.
GOUESSET, V.; L. M. CUERVO; T. LULLE y H. COING (2005). Hacer metrópoli: la región urbana de Bogotá
de cara al siglo XXI. Bogotá, Universidad Externado de Colombia.
HARVEY, D. (2006). Una geografía urbana posible. Consultado en línea el el 24 de junio de 2008, [www.
sinpermiso.info/textos/index.php?id=814].
JARAMILLO, S. y Ó. ALFONSO (2001). “Un análisis de las relaciones de metropolización a partir de
los movimientos migratorios”. En: Ciudad y región en Colombia: nueve ensayos de análisis
socioeconómico y espacial. Bogotá, Universidad Externado de Colombia.
LEFEBVRE, H. (2004). Paris et les grandes agglomérations occidentales: comparaison des modèles de
governance. Barcelona, Berlin, Lisbonne, Londras, Madrid, Manchester, Milan, Montral, Rome,
Sttutgar, Toronto. París, Extramuros – Mairie de París.
LEVY, J. M. (1997). Contemporary urban planning. Upper Saddle River. New Jersey, Prentice Hall.
74
ORFIELD, M. (1999). Grand rapids area metropolitics: a West Michigan Agenda for Community and
Stability. Grand Rapids, MI-USA, Metropolitan Area Research Corporation, report to the Grand
Valley Metropolitan Council.
SABSAY, D.; M. C. GARCÍA; A. NÁPOLI y D. RYAN (2002). Región metropolitana de Buenos Aires:
aporte jurídico-institucional para su construcción. Buenos Aires, Fundación Ambiente y Recursos
Naturales – FARN.
SIMMEL, G. (1976) [1902]. “A metrópole e a vida mental”. En: G. VELLHO (org.). O fenômeno urbano.
Rio de Janeiro, Zahar.
STAFFA, D. (2007). Transporte público de pasajeros en el Área Metropolitana de Buenos Aires. Buenos
Aires, Fundación Poder Ciudadano – Capítulo Argentino de Transparencia Internacional.
ZÁRATE M., M. A. (2003). “Madrid, un modelo suprametropolitano de urbanización”. Anales de
Geografía de la Universidad Complutense. Madrid, Universidad Complutense.
Otras fuentes:
The global cities index. Revista Foreign Policy, November – December, 2008. Consulta en línea el 7 de
enero de 2009, [www.foreignpolicy.com/story/files/story4509.php].
Largest urbana reas in 2006. Consulta en línea el 7 de enero de 2009, [www.citymayors.com/statistics/
urban_2006.html].
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 53-74
10 sem. 2009
Demandas sociais e ocupação do espaço
urbano. O caso de Brasília, DF*
Aldo Paviani
Resumo
A cidadania tem apresentado demandas e se
manifestado em diversos campos, sobretudo
quanto à atuação governamental, lacunosa
em setores importantes como saúde pública,
desenvolvimento educacional, transportes coletivos, políticas habitacionais, etc. Ao avaliar
a urbanização, profissionais analisam essas
demandas em termos de como territórios,
com características especiais, são demarcados
e apropriados. A demarcação para reservas
estratégicas ou para povoamento é efetivada
pelos cidadãos, pelos atores públicos e econômicos. Os territórios demarcados para o futuro são vistos, na atualidade, como “vazios”
urbanos (terras desocupadas ou vagas) e são
objetos da ação dos incorporadores imobiliários, que lucram com terras valorizadas, em
prejuízo das populações urbanas excluídas. Ao
final, sugerem-se medidas para a democratização do acesso aos bens e serviços socialmente
constituídos.
Palavras-chave: demandas sociais; uso da
terra urbana; políticas urbanas; urbanização;
Brasília.
Abstract
Citizenship has made demands and expressed
itself in different sectors of our society, mainly
regarding the government’s action, as it has
been less active in public services such as
public health, educational development, public
transportation, housing policies, etc. When
professionals evaluate urbanization, they
analyze these demands in terms of the way in
which territories with special characteristics
are demarcated and appropriated. Territorial
demarcations for strategic reserves or for
population are carried out by the citizens,
by state agencies, and by economic agencies.
Territories demarcated for future use are
actually seen as urban “voids” (vacant areas)
and are objects of speculation by real estate
agencies that aim to profit with valuable
areas, to the prejudice of the excluded urban
populations. This paper suggests actions that
can be taken in favor of the democratization of
access to goods and services that were created
in favor of the population.
Keywords: social demands; urban land use;
urban policies; urbanization; Brasília.
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
aldo paviani
“Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país
onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos
nem sequer sabem que o são?”
Milton Santos: “Há cidadãos neste país?”
O Espaço do Cidadão, 1987
Introdução
76
Procura-se analisar e entender como a sociedade, por seus agentes, apropria-se do território e o organiza para o desempenho de
inúmeras atividades necessárias ao ser humano. Assim, ao estudar o ambiente rural,
como as atividades no campo, enfatizam-se
o uso da terra para cultivos, a criação de gado, exploração de madeiras e também extração mineral. Igualmente, há preocupação
de como se deixam glebas de reserva para
proteger o ambiente natural, as matas ciliares, os rios e a fauna necessários à sustentabilidade. Por isso, é importante entender os
riscos e as vulnerabilidades do ambiente em
que se ocupa a terra, sobretudo em tempos
de grande pressão mundial por alimentos.
Pressão intensa que pode transformar campos e florestas em territórios degradados e
inóspitos.
No ambiente rural e florestal importa:
a) entender as vulnerabilidades do ambiente em que se cultiva a terra e partir para a
sustentabilidade; b) identificar as ações que
transformam terras férteis em ambientes
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
estéreis e arenosos; c) pensar a Amazônia
e os Cerrados como biomas gigantescos
e importantes territórios de reserva para
as futuras gerações; d) preservar o espaço
amazônico da cobiça (nacional e internacional) é dever do Estado, das empresas e de
todo brasileiro.
Quando urbanistas, geógrafos e arquitetos avaliam o ambiente urbano, pesquisam
como territórios, por vezes com características especiais, são demarcados e apropriados.
A demarcação para reservas estratégicas
ou para povoamento é efetivada pelos habitantes (urbanitas), pelos agentes estatais
(planejamento urbano) e pelos agentes econômicos (incorporadores imobiliários, empreiteiras, etc.). Os territórios demarcados
para usos futuros são vistos, na atualidade,
como “vazios” urbanos (terras desocupadas
ou vagas) e são vulneráveis por conta dos
ataques de agentes econômicos que visam
lucros imediatos com terras valorizadas. No
ambiente urbano, as análises se voltam para territórios com características especiais,
p.ex., reservas estratégicas para povoamento futuro. Nem sempre os espaços urbanos
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
são objeto de políticas públicas abrangentes
com visão não imediatista. As ações para
modificar territórios e aglomerados urbanos
ocorrem com uma conjunção de forças.1
Poderíamos utilizar, em âmbito nacional, a teorização de Milton Santos para
o caso brasileiro, em termos da “dinâmica
territorial”, quando trata da “dissolução” da
metrópole brasileira:
Pode-se dizer, no caso do Brasil, que,
ao longo de sua história territorial, as
tendências concentradoras atingiam
numero maior de variáveis, presentes
somente em poucos pontos do espaço.
Recentemente, as tendências à dispersão começam a se impor e atingem
parcela cada vez mais importante dos
fatores, distribuídos em áreas mais vastas e lugares mais numerosos. (Santos,
1993, p. 89)
Milton Santos explicitou que há forças presentes nas grandes cidades capazes
de gerar concentração, que podem levar à
verticalização e forças de dispersão que propiciam horizontalização, isto é, “as horizontalidades serão os domínios da contiguidade,
daqueles lugares vizinhos reunidos por uma
continuidade territorial” (1994, p. 16), espaços da solidariedade. Esses movimentos,
no interior da dinâmica urbana, são concomitantes e não-concorrentes, pois cada qual
toma para si um naco do território: a dispersão com alargamento das periferias propicia
a dissolução do tecido urbano para limites
cada vez mais amplos, enquanto que as forças concentradoras buscam comprimir atividades e serviços em estritos territórios dos
centros metropolitanos, ocupando o espaço
aéreo, ganhando as alturas com arranha -
céus e valorizando a terra dos núcleos centrais. Tanto a verticalização quanto a horizontalização são fruto de processos mais
amplos de modernização e globalização, que
têm na metrópole espaços de excelência.
De acordo com Souza (2008, p. 43):
Como essa modernização é territorialmente seletiva, logo socialmente seletiva
também, ela deixa de fora dessa forma
muitas empresas capazes de utilizá-la,
excluindo a participação de boa parte da
economia urbana e da população.
Como esses movimentos modificam a estrutura urbana, a continuada valorização da
terra central exige um terceiro movimento,
a contenção ou preservação de espaços livres, que denomino “reservas estratégicas
para o futuro”. Não se deve ocupar todo o
território, deixando-se espaços para mais
adiante.
Em resumo, as forças e os movimentos
perceptíveis pela geografia urbana são, em
primeiro lugar, o espraiamento horizontal
ou horizontalização de suas periferias por
assentamentos para habitações subnormais,
de baixa renda (favelas). Há também empreendimentos imobiliários (condomínios
fechados); em segundo lugar, o crescimento
vertical ou verticalização pela construção de
edifícios de múltiplos pisos para habitação
ou para escritórios, clínicas e outros serviços; em terceiro lugar, um movimento de
contenção ou barramento, que visa, de um
lado, deixar áreas de reserva para usos futuros ou estoque de terras para a especulação imobiliária e, de outro, conter ações especulativas do mercado imobiliário,2 como
se verá a seguir. Todas essas ações podem
se efetivar simultaneamente.
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
77
aldo paviani
Ocupação do espaço
nas grandes cidades
78
No caso de agentes estatais, os estoques de
terra ou grandes áreas sem utilização (áreas
desocupadas ou “vazios urbanos”) que visam
necessidades de expansão em demanda efetiva da sociedade. Há demandas induzidas,
provocadas por uso intensivo do aparato da
propaganda por parte de empreendedores
privados. Raras são as grandes cidades brasileiras em que o ente municipal ou estadual,
ao longo do tempo, fez previsões para suas
necessidades futuras de terras para equipamentos ou serviços públicos. Nesse caso, há
duas saídas: uma a desapropriação de propriedades privadas, como acontece na abertura de novas avenidas ou construção de
escolas e hospitais; a segunda ação liga-se à
improvisação e mesmo acordo com entidades privadas ou órgãos federais que incluem
permutas ou convênios de mútuo interesse.
Em todos os casos, os movimentos no interior da metrópole envolvem alargamento de
sua periferia com a necessidade suplementar de obras viárias, extensão de redes de
saneamento básico e de energia elétrica.
Por sua vez, o alargamento horizontal
de cunho empresarial e a verticalização muitas vezes pouco têm a haver com a demanda efetiva por parte da população. Obras
em condomínios “fechados” nas periferias
metropolitanas são movimentos imobiliários que induzem à ocupação da terra e a
loteamentos. Neles se propagam os privilégios ambientais do empreendimento (parques, jardins e lagos artificiais ou mesmo
piscina e áreas destinadas a esportes). Esses empreendimentos destinam-se às classes média e alta. Em alguns casos, essa
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
horizontalidade assistida por arquitetura,
engenharia e paisagismo serve de argumento para que, ao correr das obras iniciais, os
empreendedores efetivem vendas que tornem seguro o negócio. Na fase de procura
de segurança com conforto ambiental, raros
são os empreendimentos que fracassam,
apesar (ou por causa) dos altos custos que
pesam no orçamento dos compradores. Não
há previsão de controle emergencial desses
empreendimentos no caso de contaminação
por parte da grande crise imobiliária americana de 2007/2008.
Há inúmeros exemplos de condomínios de porte que vingaram sob a bandeira
da segurança, embora esta não seja tarefa
do Estado, mas dos expandidos “serviços de
vigilância” de cunho privado. Então, a possível vulnerabilidade da segurança interna
do condomínio é suprida por vigilantes armados, guaritas, câmeras de vídeo, cercas
eletrificadas e cães ferozes. Nem sempre
esses itens têm amparo legal, mas servem
de vitrine para a divulgação na imprensa
de páginas inteiras de anúncios para atrair
compradores. Os construtores omitem o
fato de que as terras destinadas ao condomínio são ou não circundadas por favelas.
Essas, no Brasil, tornaram-se sinônimos de
ausência do Estado e, portanto, presa fácil
de atividades ilegais, contravenção, tráfico
de entorpecentes e de criminalidade.
A favela, por sua vez, é a outra face
do alargamento do espaço metropolitano.
Disseminadas às dezenas no espaço das
metrópoles brasileiras, as favelas ocupam
largas porções da periferia urbana. As características essenciais do favelamento são:
a pobreza, o predomínio de habitações precárias,3 o desalinho do arruamento a falta
de esgoto, de encanamento hidráulico, de
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
escolas, hospitais, isto é, falta dos serviços
do estado. Tornam-se o lugar dos periferizados, dos desassistidos, pobres, discriminados e excluídos. Em muitas cidades como
Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Recife, São Paulo e outras, a periferização parece incontrolável e cria a imagem de dois
ambientes: o centro, com bairros “nobres”
e a periferia. Nos primeiros, não faltam os
equipamentos e serviços de primeiro mundo; na periferia, as carências são tantas que
clamam por serviços humanitários, sobretudo de ONGs e entidades religiosas ou da
“assistência” coatora da bandidagem e de
milícias ilegais, de solução complicada em
razão dos habitantes aderirem ao sistema
(facilidades) imposto.
Qual o desempenho do Estado com iniciativas de contenção? Ultimamente, alguns
administradores estabelecem ações de contenção pela via legislativa. Prefeitos e governadores abrem debates sobre planos diretores urbanos e mesmo diretrizes urbanísticas
de cunho pontual, por vezes assistencialista
e populista. Além da contenção e normatização de usos, examinemos cada um dos agentes e seu papel na dinâmica urbana.
Dinâmica urbana no
Distrito Federal – atores
Logicamente, a atuação dos agentes não se
dá de forma estanque. Apenas para destacar
as ações de cada um deles, vamos analisá-los
de forma itemizada. No mundo real, Estado
e empresas imobiliárias ou Estado e cidadãos e ainda agentes imobiliários e compradores podem atuar de forma associada, conveniada, licitada ou mesmo por “termos de
ajustamento de conduta” (TACs). Vejamos a
atuação dos segmentos:
1 – Estado: é representado, no caso
brasileiro, em âmbito municipal, estadual e
federal (isolada ou conjuntamente). E, de
acordo com as competências administrativas, o poder público é exercido por secretarias municipais, ministérios federais ou
secretarias estaduais. Igualmente têm seu
papel as câmaras municipais, as assembléias
legislativas e o congresso nacional. Há ainda, no Judiciário, competências diversas que
vão do juiz de comarca até o Supremo Tribunal Federal e suas instâncias intermediárias – todas com alguma responsabilidade
na aplicação das leis ou no julgamento de
demandas judiciais.
No caso das três esferas executivas,
a atuação se dá por um grande leque de
iniciativas, por vezes submetidas a políticas públicas sobre, por exemplo, o uso da
terra urbana. Cabe ao executivo se antecipar à depredação do ambiente, as agressões
especulativas com a imposição de posturas.
Estas obedecem a uma infinidade de medidas como portarias, decretos, leis de uso
da terra, leis orgânicas, planos diretores e
programas ligados à habitação, aos transportes, à segurança pública, à educação, etc.
Alvarás, permissões, termos de ajustamento
de conduta, editais de concorrência são utilizados para controlar e normatizar a vida coletiva e a fluidez do cotidiano dos habitantes
das cidades e de uma dada região.
O extinto Banco Nacional da Habitação
(BNH) era responsável por todas as iniciativas de construção de casas populares. O
BNH desempenhava um grande papel no
atendimento às demandas por habitação
por parte das classes menos favorecidas.
Esse banco foi perdendo essa característica,
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
79
aldo paviani
80
passou a atender demandas da classe média
e foi extinto antes que se apurassem graves problemas de ordem financeira e administrativa. Hoje, parte do papel do extinto
BNH é desempenhado pela Caixa Econômica
Federal, sem a amplitude do banco, e pelo
Ministério das Cidades.
No caso do DF, o governo tem, desde
a transferência da capital, um papel proeminente na organização do espaço (Paviani,
2007, p. 1). Para isso, por anos a fio, manteve desapropriações e um invejável estoque
de terras como um dos principais instrumentos para a organização do território.
Diferentemente de outros estados e municípios, Brasília detinha esse grande trunfo
em mãos dos governadores do DF. Paulatinamente, todavia, esse estoque de terras públicas foi sendo reduzido por vendas
com licitações pela Companhia Imobiliária
de Brasília (Terracap). Com isso, empresas
e moradores aumentaram sua participação
no “loteamento oficial”. Além disso, alguns
programas do Governo do Distrito Federal
(GDF)4 como o Proin (visando à atração de
indústrias), o Prodecon (Programa de Desenvolvimento Econômico do DF), Pades
(Programa de Apoio ao Desenvolvimento
Econômico e Social do DF) e o PRODF (beneficiando empresas em diversos “polos” –
informática, vestuário, etc.) e a criação de
“assentamentos semiurbanizados”, foram
reduzindo o patrimônio imobiliário do governo. Assim, ao projetar Taguatinga, em
1958, o governo local deflagrou um processo de interminável criação de cidades-satélites – todas visando proteger o Plano Piloto
de ocupações ilegais, irregulares e informais
(favelas), as denominadas “invasões”.5 Desfecha, ao mesmo tempo, o polinucleamento
urbano e a periferização com segregação
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
socioespacial. Em 1987, foi assim descrita
essa atuação na qual
O Governo do Distrito Federal (GDF)
tem uma ação indireta (sic) importante
na periferização, na medida em que fechou seu espaço urbanizado ou mantém
as construções de casas populares em
ritmo lento. (...) o GDF atua como uma
força de empurrão: o esquema relativamente fechado de terras públicas para
fins urbanos e o mecanismo imobiliário
ensejaram um movimento de empurrão
para além dos limites do Distrito Federal de considerável contingente de população de baixa renda, seja em terrenos legalizados pelo esquema especulativo, seja em terras invadidas (favelas).
(Paviani, 1987, p. 38)
O governo Roriz, além de criar inúmeros
assentamentos, hoje Regiões Administrativas, alterou profundamente a destinação da
Área Complementar nº 1 (AC1) do PEOT –
em Águas Claras.6 Em projeto urbanístico
de 1983, a AC1 deveria abrigar atividades
dentro de um programa de descentralização
dos congestionados centros do Plano Piloto
e Taguatinga. Com a alteração do projeto,
Águas Claras foi destinada apenas para moradias com edifícios que chegam a 30 andares. Com a proximidade das muitas obras,
criou-se um bairro congestionado, diverso
dos demais assentamentos do DF, em que
predominam lotes unifamiliares. Ademais,
a mudança de destinação bloqueou a possibilidade de descentralização de atividades
e serviços do Plano Piloto para a grande
área de Águas Claras, prevista no plano de
1983. Assim, haveria aproximação das atividades para localidades populosas como
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
Taguatinga, Ceilândia e Samambaia, conjunto que, em 2000, atingia mais de 750.000
habitantes, conforme censo do IBGE.
Na atualidade, o governo Arruda tem
ação direta e forte em todas as iniciativas
de uso da terra: propôs novos bairros como a expansão do Sudoeste; a licitação para
venda de terrenos do Noroeste (para o qual
encomendou a um escritório de urbanismo e
arquitetura um projeto que inclui habitações
em superquadras para abrigar cerca de 40
mil habitantes e comércio local). Projetam,
ainda, o bairro do Catetinho e os setores
Quaresmeira, Guará III e Jóquei Clube. Além
dessas iniciativas, o setor privado, por sua
vez, projeta condomínios de luxo no local
do demolido estádio de futebol “Pelezão".
Tanto no caso de Águas Claras, do governo anterior, como no atual com o Noroeste,
Catetinho e outros, há uma clara associação
do aparelho do Estado com os empresários
do setor imobiliário e da construção civil.
Analisando-se as diversas atuações dos
últimos 20 anos, fica clara a intenção de valorizar o Plano Piloto, mantê-lo elitizado,7
abrindo espaço apenas para fins residenciais
e impossibilitando o uso da terra para a geração de novos postos de trabalho, a não
ser trabalho esporádico da construção civil
(que poderá sofrer o “efeito cascata” da crise imobiliária americana e depressão econômica globalizada). Com a associação públicoprivado abrem-se amplas possibilidades para
alargar atitudes de especulação imobiliária.
Ao mesmo tempo, as instituições estatais atuam para o preenchimento de terras
desocupadas (em que se utiliza erroneamente o termo “vazios” urbanos). Fechamse as possibilidades para espaços livres para usos futuros. Ademais, condenam-se os
habitantes da capital a sacrifícios impostos
por engarrafamentos no trânsito, que surgirão no futuro, pela insistência em aglomerar, no Plano Piloto, novos e populosos
bairros. Antecipam-se a congestão e o caos
no trânsito,8 comuns às demais metrópoles
brasileiras.
2 – Empresariado. Melhor seria usar o
termo no plural, pois se trata de um agente multifacetado e mutante. Multifacetado
porque abriga comerciantes e industriais,
passando por diversas categorias empresariais, do ramo imobiliário, da construção
civil, corretores, advogados e profissionais
liberais apoiadores de atividades privadas.9
E é um agente mutante e híbrido porque
circula nas diversas esferas públicas dos três
poderes, especialmente do poder executivo,
detentor de verbas e dos instrumentos legais que regem a vida social, econômica e
política. Além do caráter híbrido, os construtores de moradias e imobiliárias atuam
no DF e nos municípios goianos por mais
de três décadas. Há exemplos em Luziânia,
Santo Antonio do Descoberto e Águas Lindas. Em Luziânia, a explosão dos loteamentos deu origem a novos municípios – Cidade
Ocidental, Novo Gama e Valparaízo, cujos
vínculos com Brasília os fazem participar,
funcionalmente, da Área Metropolitana de
Brasília (AMB).10
Ao estudar novas territorialidades e
gestão do território, no DF e nos municípios
do vizinho estado de Goiás, Ignez Ferreira
avaliou que
A ocupação dessa área periférica começou com o parcelamento privado das
terras, nos municípios limítrofes ao DF,
colocando no mercado grande quantidade de lotes em locais sem infraestrutura, vendidos em pequenas prestações
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
81
aldo paviani
e longos prazos. Esses empreendimentos encontraram mercado na demanda
das classes mais pobres, que viram na
compra do lote e na autoconstrução a
oportunidade de livrar-se do aluguel
nos fundos de lote e nas áreas consolidadas do DF. (1999. p 141)
82
A falta de políticas públicas de médio
e longo prazo para atender à demanda reprimida provocou a ocupação de terras no
DF, por vezes ao arrepio de leis ambientais.
Esses assentamentos privados são mais conhecidos como “condomínios irregulares
ou ilegais”. Nesse caso, ferem a legislação
porque ocupam áreas de proteção ambiental (APAs) – margem de córregos e matas
ciliares. Contam-se às centenas e, presentemente, o GDF tenta identificar quais desses
condomínios podem ser “regularizados”.
Todavia, lucram grileiros e especuladores
que, ocupando terras de outrem (do governo federal, distrital ou de outros proprietários), serão beneficiados, apesar do malfeito
contra a natureza ou contra a propriedade
privada. Por isso, o século XXI já se inaugurou há quase uma década e a estrutura do
território se mostra incompleta sob o ponto
de vista legal, administrativa e fiscal, pois há
moradores que pagam IPTU e demais taxas
de urbanização e outros não pagam por se
constituírem em condomínios ainda não regularizados. Mesmo assim, alguns desses já
contam com serviços da Companhia de Eletricidade de Brasília (CEB) e da Companhia
de Águas e Esgoto (CAESB).
Em resumo, criaram-se, na área metropolitana, espaços polinucleados com
núcleos esparsos no território, simplesmente porque os modelos de povoamento são
repetitivos dentro e fora do DF. Notam-se,
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
nos dias correntes, algumas tentativas do
GDF em modificar esse modelo, a partir de
iniciativas que vão, pouco a pouco, costurando e emendando o tecido urbano com
novos núcleos capazes de, no futuro, não
apresentarem espaços intercalares. Em
outras palavras, a conurbação começa a
se materializar em diversos pontos, como
exemplo, a junção de Taguatinga-Ceilândia; Taguatinga-Samambaia, Plano PilotoCruzeiro (Velho e Novo)-Octogonal-Setor
Sudoeste e por aí vai com outras iniciativas
do poder público associadas à do setor imobiliário. Acaba-se reproduzindo, aqui, o povoamento contínuo, em “manchas de óleo”,
compactando-se a cidade. No futuro, será
uma grande mancha urbana, assemelhada
a qualquer grande cidade do país, deixando
para trás e sem retorno a fama de “cidade
planejada”, embora os ufanistas tendam a
assim considerá-la.
Oliveira examina a lógica do setor privado e sua relação com o poder de decisão
política:
Os mecanismos do mercado imobiliário
são estruturadores espaciais de comprovada eficiência e muito mais o são
quando aparecem despolitizados, numa
relação aparentemente neutra entre
comprador de um pedaço de terra ou
uma moradia, que têm preços diferentes e localizações diversas dentro
da cidade. (...) O mercado imobiliário,
cujo fulcro é o espaço urbano enquanto
objeto de apropriação e individualizado,
como ponto de referência para a compra e venda, num lote ou numa casa
será por nós encarado como relação entre classes sociais. (...) As práticas e as
relações sociais do mercado imobiliário
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
decorrem da existência de classes com
decisão política e com prerrogativas para delimitar o espaço a ser construído
e classes sem tal decisão e sem essas
prerrogativas; as primeiras estão no
comando dos aparelhos do Estado, nos
centros decisórios; as segundas estão
fora, nas periferias. (1987, pp. 128 e
129)
O morador se constitui em paciente (do
processo de periferização), na medida
em que é expulso do DF, onde não tem
acesso à terra e à habitação; se transfiguraria em agente no momento em
que, de posse da terra/habitação, passa,
ele próprio, a transacionar, transferindo “direitos”, construindo barracos, e
os vendendo, alugando e subalugando,
etc. Além disso, algumas vezes o mo-
Por isso, em muitas metrópoles, quando o Estado, por suas instituições, não
abarca a totalidade das demandas sociais
por mais moradia, melhor infraestrutura e
mais investimentos em obras, o setor privado se faz presente para ser mais do que
um coadjuvante. Alguns empresários serão
capazes, com a colaboração de legisladores,
“oferecer” projetos que atendam algumas
demandas, bem como apresentar capacidade de executar obras, por seu equipamento
operacional ou de seus associados e prepostos. Nos anos 70 e 80, essa era a tônica do
empresariado quando atuava nos “conjuntos
habitacionais”, sob o patrocínio do BNH ou
quando tomava iniciativas com “loteamentos
abertos”.11 Prevê-se incremento de o setor
privado envolver-se cada vez mais com a
coisa pública, em especial com o Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC), que
acumula cerca de R$504 bilhões para investimento em infraestrutura até 2010, segundo divulga a mídia e o portal do governo
federal.12
3 – O cidadão. O agente cidadão é,
por vezes, denominado morador, inquilino,
mutuário ou usuário da moradia. Em outro trabalho, avaliou-se que se trata de um
agente-paciente13 da urbanização por suas
características especiais. Assim,
rador atua como intermediário, uma
espécie de agenciador, encaminhando
amigos e parentes à imobiliária, participando com essas ações de todo o jogo
de periferização e especulação imobiliária. (Paviani, 1989, p. 44)
Passados 30 anos da pesquisa realizada
na localidade de Pedregal (ou Parque Estrela
Dalva VI), avaliamos que o agente morador
não mudou seu perfil. O que deve ter mudado é o contingente de “agentes-pacientes”
da urbanização, em vista das ações do GDF,
dos incorporadores imobiliários e corretores. A partir de 1988, com a nomeação
do governador e eleição de deputados para Câmara Distrital, as instituições públicas
passaram a barganhar apoio político e troca
de favores tendo como moeda terrenos nos
diversos “assentamentos semiurbanizados”
que se multiplicaram no DF.
Milhares de “sem teto” e inquilinos de
fundo de quintal foram aquinhoados com
terrenos em Santa Maria, Samambaia, Recanto das Emas, Riacho Fundo, Paranoá,
Itapuã e extensões de glebas para moradia
em outras cidades-satélites. No governo
Cristovam Buarque, extinguiu-se a denominação cidade-satélite, passando os núcleos à
denominação oficial de “cidade”, embora não
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
83
aldo paviani
84
tenham sede municipal nem sejam assim tratadas pelo IBGE. Nesses assentamentos, de
início, o comodato ou o direito à moradia,
tornou o imóvel inalienável. Com o passar
do tempo e a falta de fiscalização, os “direitos” eram passados por procuração ou simplesmente o comodato era “vendido”, com
o que a moradia ou o terreno eram transformados em dinheiro para usos diversos.
Com isso, até os dias de hoje, há terrenos
que passaram por diversos “proprietários”,
ocasionando problemas de posse para fins
de “regularização” da propriedade, causando acúmulo de processos, e de trabalho, nos
tribunais do DF.
Além dos assentamentos oficiais, o morador aderiu aos condomínios, regulares e
irregulares (por vezes denominados “loteamentos clandestinos”), que somam mais de
quinhentos, dando um nó na regularização
fundiária. No caso dos condomínios, os
três agentes confluem para tomar posse da
terra, de forma legal ou não, sendo difícil
para o Ministério Público encontrar quem
foi induzido, de boa ou de má fé, a ocupar
terras de outrem como se fosse propriedade legítima.14 Dos quinhentos condomínios
existentes, apenas algumas dezenas podem
se habilitar à regularização. Os demais terão
suas contendas judiciais encaminhadas aos
juizados, não se tendo previsão sobre qual
dos contendores terá ganho de causa – os
moradores, os proprietários ou o GDF. Em
todo o caso, vale lembrar a Lei 6.766, de
1979 que, em seu Art. 50, inciso I, reza:
Constitui crime contra a Administração
Pública: dar início, de qualquer modo,
ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo (sic) para fins urbanos, sem autorização do órgão público
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
competente ou em desacordo com as
disposições desta Lei ou das normas
pertinentes do Distrito Federal, Estados
e Municípios.
Apesar da lei, a ocupação de terras e
a ilegalidade foram constantes ao longo dos
anos 80 e 90. Em razão desses desmandos
fundiários, a Câmara Legislativa do DF (CLDF) instituiu a “CPI da Grilagem”, em 1995.
Após 135 dias de trabalho, a CPI produziu
um documento com 528 páginas, contendo
recomendações e chegando, nas conclusões,
a enumerar a prática de 20 delitos e respectivas punições, que vão desde (item 1) a
“falsificação, em todo ou em parte, de documento público, ou alteração de documento
público verdadeiro...” a (item 20) “punir administrativamente, via processo de sindicância, os servidores públicos que participaram
de alguma forma de grilagem de terras ou
implementação de parcelamentos ilegais no
DF” (CLDF, 1995). Passados 13 anos dessa CPI, nenhuma medida estancou a grilagem ou a ocupação ilegal de terras, nem se
anunciou a punição em massa de possíveis
responsáveis por loteamentos irregulares.
Segundo Malagutti,
Em 1995, quando foi efetuado o último levantamento oficial, chegou-se
ao número quase inacreditável de 529
empreendimentos cadastrados. (...)
Mesmo considerando que, após minuciosa análise dos 529 empreendimentos
cadastrados, o GDF tenha inviabilizado
297 deles, sobrando 232 loteamentos
para análise das possibilidades de regularização. Desses, 144 são parcelamentos urbanos e 88, rurais. (1999, pp.
57 e 58).
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
Nota-se que não é por falta de legislação que a questão fundiária não se resolveu até os dias correntes. Em 1999, a CLDF
promoveu um levantamento sobre a questão
local das terras com a meta de “solucionar
definitivamente os problemas relacionados
à questão fundiária do DF”, chegando a levantar 33 leis, um decreto e uma emenda à
Lei Orgânica como referência ao documento
elaborado (CLDF, 1999, pp. 24 a 27).15
Outras demandas
Ao longo da construção da capital, mas,
sobretudo, na fase de estrutura e consolidação, surgem importantes demandas no
setor habitacional, de transportes públicos
e de geração de atividades descentralizadas, isto é, pressionando para privilegiar as
cidades-satélites. Vejamos, separadamente,
essas demandas.
a) por ampliação dos postos de trabalho
Nos dias correntes, segundo a Pesquisa de Emprego-Desemprego do Dieese, o
desemprego atingiu 216 mil pessoas, em
outubro de 2008.16 Em termos relativos, o
dado preocupante do desemprego é a taxa
de 16% da população economicamente ativa, de 1.348.000 pessoas. A taxa média de
desemprego das metrópoles estudadas pelo
Dieese é de 13,4%. No caso do DF, significa que a saída para a sobrevivência mantém
em atividades informais um enorme contingente de trabalhadores, que se ocupam com
biscates, “faz tudo”, coleta de materiais usados, comércio de rua, etc. Outra saída foi
“oficializar” a “Feira dos Importados”, também denominada “Feira do Paraguai”. Para
centenas de camelôs, que ocupavam pontos
estratégicos, como a rodoviária urbana, o
GDF construiu uma “Feira Popular”, ainda
em implantação e alvo de constantes reclamações, pois se localiza distante da circulação de pedestres, justamente nas proximidades da rodo-ferroviária, a dez quilômetros
da antiga ocupação.
Por isso, há quase 20 anos, a questão
da “lacuna de trabalho”17 é preocupação das
autoridades e, sobretudo, dos desempregados. A respeito, não há, no horizonte perceptível, nenhum projeto para mudar esse
quadro, mesmo porque, com o tombamento
da cidade como “Patrimônio Cultural da Humanidade”, a mudança do perfil de atividades, com a atração de indústrias, p.ex., está
fora de cogitação.
b) por transportes de massa eficientes
Outra lacuna que se perpetua é a ineficiência dos transportes coletivos, agravada pelo uso maciço do automóvel particular. Pode-se afirmar que há um verdadeiro
“caos no trânsito do DF”.18 Ressalte-se que,
ao elaborar o plano piloto para Brasília, Lúcio Costa, inovou ao traçar vias, avenidas e
eixos sem cruzamentos. Por isso, nos primórdios e até início de 1970, não havia
semáforos no DF. Um dos primeiros foi no
contorno a noroeste da rodoviária urbana,
visando conter o tráfego no Eixo Monumental proveniente da rodoferroviária até a Esplanada dos Ministérios. Em fins de 1960,
o trânsito era tranqüilo, havia poucos automóveis e muitos funcionários públicos faziam o trajeto casa-trabalho e vice-versa em
ônibus fretados. Estacionar em ministérios,
no Congresso e no Palácio do Planalto era
acessível. O trafego do Eixo Monumental e
do Eixo Rodoviário assemelhava-se ao de
cidade do interior. Ir ao recém-inaugurado
Conjunto Nacional e ao Setor Comercial Sul
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
85
aldo paviani
não preocupava porque as vagas eram suficientes nos estacionamentos. Outra época,
por certo sem retorno.
86
c) por melhoramento no trânsito
A urbanização, o incremento populacional e a falta de planejamento urbano
acabaram com a regularidade do fl uxo de
veículos, a fluidez e a segurança no trânsito. O passar dos anos, a entrada de novos
automóveis, a reduzida frota de ônibus e
a diminuição das linhas e equipamento da
TCB (Transporte Coletivo de Brasília) agravaram o ir e vir. As avenidas W-3, Norte
e Sul ganharam sinais de trânsito e foram
interligadas; as vias receberam placas indicativas de limite de velocidade. A frota
de automóveis particulares, o aumento do
número de motoristas e a falta de respeito
às leis de trânsito começaram a deixar vítimas fatais nas pistas: acidentes aumentam
exponencialmente. Contam-se centenas de
mortos no trânsito, anualmente; os feridos lotam hospitais, as clínicas ortopédicas
prosperaram, assim como as clinicas de radiologia. Proliferam as agências funerárias
e comércio paralelo, por vezes provocando
escândalos como o da administração de cemitérios, ora sob CPI na Câmara Legislativa.
Aumenta a dor dos que perdem familiares
em atropelamentos e acidentes com carros,
motocicletas e ônibus. A Justiça Itinerante,
bem como a Polícia Militar e bombeiros são
chamados para atender acidentes ou mesmo para indiciar responsáveis por atropelamentos, mortes e danos materiais. O caos
e a violência no trânsito elevam o temor de
sair à rua ou de atravessar na “faixa de pedestres”, antes muito respeitada por todos,
verdadeiro símbolo da educação e cidadania
no trânsito de Brasília. Advogados especializam-se em assuntos jurídicos de trânsito
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
e aumenta o número dos que defendem e
tornam impunes os causadores de acidentes com vítimas. Consolida-se a prática de
pagar fiança e ganhar as ruas novamente,
mesmo quanto os atropelamentos causam
mortes.
O Detran parece surgir como um vigilante do asfalto. Mas suas primeiras medidas se ligam ao rendoso trabalho de multar.
Tem instalado centenas de radares (pardais)
em todas as vias do DF. Estabelece um confuso elenco de velocidades conforme as vias:
no Eixo Monumental com várias pistas em
cada sentido, a velocidade máxima é de 60
km/h. No Eixo Rodoviário (verdadeira autoestrada, com passagens subterrâneas para
pedestres), o limite é de 80 km/h. Nas L-2
Norte e Sul, 60 km/h. No setor de embaixadas e em outros pontos, 70 km/h; as vias
paralelas do Setor de Embaixadas demarcam
80 km/h, com barreiras eletrônicas com limite de 60 km/h e alguns pardais. 50 km/h
é a velocidade máxima de vias W-4, Sul e
Norte19. Nessas, repletas de pardais, a velocidade é de 50 km/h. As vias que possuem
barreiras eletrônicas têm velocidade reduzida para 50 km/h e alteram a velocidade de
60 km da mesma via. Como os motoristas
não se dão conta desse cipoal, nem se preocupam em observar as placas de advertência, o volume de multas é enorme, chegando
a mais de R$ 50 milhões em 2007, segundo
divulga a mídia local. Sabe-se, vagamente,
que esses recursos se destinam à “melhoria
das condições de tráfego”, entre elas a “educação para o trânsito seguro”. Mas ainda é
nebulosa a destinação do que é arrecadado
em multas. Quando são realizadas campanhas de educação nas escolas o investimento
é bem aceito, mas seus efeitos somente surgirão em 10 ou 15 anos...
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
Pode-se perguntar: o que é desejável
em vista dessas constatações? A população
possui diversas metas para o trânsito, entre
elas o aumento do número de empresas de
ônibus e respectivas linhas, a melhora das
pistas, a vigilância constante dos agentes
nas ruas, a educação para um trânsito seguro que se estenda para todo o DF e não apenas para o centro da cidade, o Plano Piloto
de Brasília. Todavia, a medida mais urgente
é a licitação para as novas empresas, pois a
atual cobertura não atende muitos itinerários, sendo lacunoso o transporte em certas
horas do dia e da noite. As novas empresas
farão desejável concorrência umas às outras,
desbaratando o cartel existente. A competição dessas empresas trará a redução das
tarifas, hoje as mais elevadas do país. A ida
ao trabalho no Lago Sul, por exemplo, por
parte de morador de Planaltina (percurso de
55 km) custa-lhe R$12,00 ao dia, pois deve
utilizar quatro transbordos, ida e volta, ao
custo de R$3,00 ao bilhete.
Por isso, a agenda para disciplinar o
trânsito deve contemplar ações tais como:
1 – Redução das tarifas ou uso de bilhete
intermodal de integração (ônibus-metrô);
2 – A presença constante e educativa de
agentes de trânsito nas ruas;
3 – Aumentar o valor das multas para os
que dirigem embriagados e com excesso de
velocidade;
4 – Substituir, paulatinamente, o asfalto
por pistas cimentadas, menos vulneráveis à
erosão no período das chuvas. Com a mudança, as pistas apresentarão menos buracos, com queda no número de acidentes e
de danos nos veículos;
5 – Construir ciclovias em todos os núcleos
urbanos do DF em que a topografia favoreça os que circulam em duas rodas;
6 - Instalar a “onda verde”, a partir de
semáforos sincronizados eletronicamente.
Com essa medida, o percurso de diversas
avenidas se fará sem interrupção, mantida
a velocidade sinalizada. Nesse caso, p.ex.,
se poderá percorrer as avenidas W-3 Sul
e Norte sem interrupções, rodando a 60
km/h. No esquema atual, passa-se um semáforo aberto, encontrando-se o seguinte
fechado, rodando à velocidade estabelecida. Eleva-se o tempo perdido e, sobretudo,
aumenta-se o gasto com combustíveis, tornando o deslocamento lento, caro e enervante. Além disso, acontecem congestionamentos em qualquer das vias e a qualquer
hora do dia, por não ter sido instalada a
onda verde.
No período chuvoso, é comum a ocorrência de engarrafamentos em diversos
pontos da cidade por motivo de alagamento das pistas. Os alagamentos se devem ao
fato de que a rede de captação das águas
da chuva ter sido implantada nos primórdios
da capital, estando, portanto, ultrapassada.
Para evitar mortes nas pistas, são corretas
as medidas para reparar os estragos causados pelo período das chuvas. Essas ocasionam danos na capa asfáltica, sobretudo
naquelas vias em que a camada é fina, sendo
destruída pelas primeiras enxurradas. Em
muitos casos, melhor seria substituir o asfalto por vias cimentadas, como é usual em
muitos países europeus e em alguns estados
americanos. Vias cimentadas possuem maior
durabilidade e evitam que o asfalto seja danificado ou destruído facilmente. O asfalto
tem exigido remendos constantes e, uma
vez reposto, o asfalto rugoso torna a rolagem desconfortável, quando não provoca
danos na suspensão dos veículos pelos desníveis que apresenta.
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
87
aldo paviani
88
As mudanças e os ajustamentos beneficiarão os mais pobres, que se deslocam de
grandes distâncias. Constata-se que são os
empobrecidos que arcam com os maiores
custos para ir e vir ao trabalho, ao médico,
à escola, às compras e à procura de serviços
no Plano Piloto. Portanto, facilitar o deslocamento dos habitantes das cidades-satélites é
dar-lhes condições de cidadania, pela democratização dos meios de transporte. O uso
de sistema multimodal evitaria o pagamento
de duas ou mais tarifas para ir ao trabalho
num percurso como o de Ceilândia ao Plano
Piloto, de algo como 30 km. Aumento da
frota de ônibus e maior eficiência do trem
suburbano (metrô) retirariam milhares de
automóveis e motos das ruas. As ações preconizadas levam à melhora na fluidez do
tráfego, reduzirão o consumo de combustível, o número de pontos de estrangulamento e os engarrafamentos de veículos. Ainda
faltaria ampliar as vagas nos estacionamentos, verdadeiro gargalo no centro da capital.
Há anos se debate a construção de garagens
subterrâneas, mas sem resultados práticos.
Outra questão que é pouco observada é a
das condições de trabalho dos operadores de
ônibus. Geralmente, o motorista enfrenta o
calor e o ruído do motor instalado na frente
do veículo. Houve greve dos rodoviários para que as empresas adquirissem ônibus com
motor na parte traseira do veículo e direção
hidráulica. Além disso, a questão salarial pesa no humor dos operadores, nem sempre
preparados de forma conveniente no trato
dos passageiros, sobretudo dos idosos e
deficientes, os denominados “cadeirantes”,
que demandam tempo para o embarque e
desembarque. A agenda das empresas deverá ser modificada nesse item, pois a população de Brasília dá sinais de envelhecimento e
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
necessita de transportes públicos adequados
à idade e às necessidades de cadeirantes e
deficientes físicos. Por fim, ênfase também
deve ser dada ao combate da violência no
interior dos ônibus: assaltos ao cobrador e
passageiros exigem segurança e policiamento para evitar atos delituosos com mortos e
feridos.
Em resumo, a aspiração de todos é evitar o caos no trânsito do DF e desmistificar
a ideia apregoada de que o brasiliense é um
ser possuidor de “cabeça, tronco e rodas”.
Por certo, algo que pertence ao folclore dos
primeiros tempos de Brasília, mas que poderá se perpetuar, pois, em 2008, foi ultrapassada a marca de um milhão de automóveis no DF.
À guisa de conclusão
Como se percebe, a ação dos estruturadores
do espaço urbano prossegue sem obstáculos.
Ao ser concluída uma etapa de obras, surgem problemas de diversas ordens, quando
não demandas judiciais, contendas e escândalos. Também se pode anotar o caráter
solidário desses agentes estruturadores no
território. A ação de um agente irá corresponder à atuação dos outros dois. Esses
atuarão separada ou conjuntamente. E é
justamente o caráter sistêmico sobre o espaço que acabará gerando a manutenção
das estruturas existentes ou a modificação
delas ao longo do processo, sempre obtendo
vantagem o agente mais estruturado, isoladamente ou em parcerias.
Por fim, alguns encaminhamentos se
fazem necessários para as iniciativas governamentais, oferecendo um rol que não se
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
esgota nele mesmo, porque assume muitas
outras vinculações, na medida em que se
avança no processo de urbanização. Entre
muitas, aventam-se as seguintes sugestões:
a) Políticas globalizantes, nas quais devem ser abandonadas ações pontuais, isoladas, paternalistas e clientelistas. A visão de
totalidade ampliará o acesso democrático ao
espaço da cidade por parte dos urbanitas,
cidadãos e construtores da vida urbana;
b) Geração de atividades , sobretudo
aquelas que absorvem mão-de-obra com
qualificação baixa e média. A tendência do
mercado é absorver pessoal qualificado nos
estratos mais altos com uso de tecnologias,
o que também ocorre no setor público, no
comércio, na produção industrial e nos serviços. A tecnologia acaba impactando negativamente na geração de postos de trabalho
para os estratos médios e baixos da força de
trabalho, além de provocar lacunas de trabalho de forma crescente;
c) Projetos de médio – longo prazo
(urbano-regionais), que não se circunscrevam apenas às áreas metropolitanas, mas
que atendam as populações de centros urbanos menores, geralmente expulsores de
mão-de-obra;
d) Programas educacionais nos diferentes níveis, inclusive para o combate ao analfabetismo e analfabetos funcionais. Somente
a educação poderá retirar as áreas periféricas do atraso e da ignorância, que incapacitam o desenvolvimento pessoal, profissional
e coletivo da massa populacional;
e) Combate aos desperdícios que fazem
jogar no lixo alimentos, materiais recicláveis
(papel, plástico, vidro e restos de materiais
de construção). Evitar desperdício de verbas
públicas em obras infindáveis ou que sejam
levadas a cabo sob manipulação e/ou corrupção, aí incluído o nepotismo;
f) Construir sistemas de proteção aos
riscos e vulnerabilidades, que se materializam na violência urbana e rural, fome,
pobreza, desemprego, criminalidade, analfabetismo, pedofilia e corrupção. Esses elementos, contidos em nossa realidade crua e
que pesam em demasia sobre a população
pobre, excluídos e periferizados.
Para encerrar, o Juramento da juventude ateniense, serve como elemento ético
e de reflexão, vindo de um tempo em que a
cidade não oferecia as facilidades, oportunidades e riscos dos dias correntes.
Nunca traremos desgraça à nossa Cidade, por nenhum ato de desonestidade
ou covardia, nem jamais abandonaremos nossos companheiros sofredores.
Lutaremos pelos ideais e pelas coisas
sagradas da cidade, isoladamente ou
em conjunto. Respeitaremos e obedeceremos às leis da Cidade e tudo faremos
para respeito e reverência naqueles que,
estando acima de nós, inclinem-se a
reduzi-las a nada. Lutaremos incessantemente para estimular a consciência do
cidadão pelo dever urbano. Assim, por
todos esses meios, transmitiremos essa Cidade, não menor, porém maior,
melhor e ainda mais bela do que nos
foi transmitida. (Apud Patrick Geddes,
1994)
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
89
aldo paviani
Aldo Paviani
Livre-Docente/Doutor em Geografia Urbana pela Universidade Federal de Minas Gerais; geógrafo – bacharel e licenciado em Geografia e História pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul; Professor Titular da Universidade de Brasília, aposentado, Pesquisador Associado do Departamento de Geografia e do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais
(NEUR/CEAM) da Universidade de Brasília. Organizador de obras da Coleção Brasília da Editora UnB. Cidadão Honorário de Brasília - Câmara Legislativa do DF. Professor Emérito pela
Universidade de Brasília
[email protected]
Notas
(*) Ampliado de Políticas territoriais e dinâmica urbana, trabalho apresentado na Semana de Extensão da UnB, em 2 de outubro de 2008, mesa Vulnerabilidade, risco e estrutura de oportunidades
na cidade.
(1) Ver trabalho de Paviani (1989a, pp. 41-45).
90
(2) Essas ações, aparentemente contraditórias, fazem parte da mediação do governo quando trata de
atender demandas, de um lado, e, de outro, de aprovar EIAS e RIMAS necessários à abertura de
novas áreas urbanas.
(3) Michel Rochefort, tratando da pobreza urbana, no período industrial das metrópoles, destaca que
“todos os países, mesmo na cidade de Paris, tiveram uma fase que os franceses chamaram de
bidonvilles, quer dizer favelas, de zonas hoje denominadas de habitat precário” (2008, p. 31).
(4) Breve avaliação desses programas encontra-se em Paviani (1997, pp. 116-146).
(5) De longa data, a imprensa e o governo qualificam como “invasores” os moradores pobres que
ocupam lotes públicos ou particulares com “loteamentos informais” (favelas). Como são considerados “invasores”, devem ser “erradicados”. Esses termos pejorativos e preconceituosos
foram oficializados com a “Campanha de Erradicação de Invasões” (CEI), implantando-se a Ceilândia com cerca de 82.000 habitantes moradores das favelas do IAPI, Vilas Tenório, Esperança,
Sara Kubitschek, Morro do Querosene, Morro do Urubu, desconstituídas em 1971 para formar a
nova cidade-satélite.
(6) Ver de Paviani, O “Projeto Águas Claras”: Planejamento desperdiçado em Brasília (1989a, pp.
73-98).
(7) Os novos bairros destinam-se à classe média alta, pois, o metro quadrado deverá ficar entre
R$6.000,00 e R$10.000,00, com o que um apartamento de três quartos, no setor Noroeste, com
100 m2, poderá custar entre R$600.000,00 a R$1.000.000,00 a unidade.
(8) Tema abordado no artigo Caos no trânsito urbano do Distrito Federal. Disponível em: <http://
www.vitruvius.com.br/> - Minha Cidade, Ano 8, v. 11, jun. 2008, p. 223.
(9) Ver Corrêa (1989, p. 12).
(10) Sobre a Área Metropolitana de Brasília, ver Paviani (1994, pp. 27-40).
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
demandas sociais e ocupação do espaço urbano: o caso de Brasília, DF
(11) Ver pesquisa sobre a “visão do agente imobiliário” (Paviani, 1987).
(12) Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/pac/>, acessado em 25/11/2008.
(13) Ver a visão do morador em Paviani (1987, p. 44).
(14) Episódio envolvendo um cartório de notas na falsificação de títulos de propriedade, por ora ocasionou o afastamento do tabelião e uma morosa batalha jurídica nos tribunais, conforme noticiado na imprensa de Brasília.
(15) Para interessados na questão fundiária do DF, ver Malagutti (1996).
(16) Ver PED/DF, disponível em: <http://www.dieese.org.br>, acessado em 2/12/2008.
(17) A lacuna de trabalho foi definida como “a atividade-não-gerada ou nos postos de trabalho que
não aconteceram ou, mesmo que foram subtraídos do mercado de trabalho”. Ver Paviani (1991,
pp. 115-142).
(18) Ver nota 8.
(19) Em Brasília, praticamente não há logradouros públicos com nome de pessoas. Assim, L-2 significa
a 2ª via a leste do Eixo Rodoviário; a avenida W-3 é a 3ª, a oeste do referido Eixo.
Referências
91
CORRÊA, R. L. (1989). O Espaço Urbano. São Paulo, Ática.
DISTRITO FEDERAL (Brasil) (1995). Câmara Legislativa do DF. CPI da Grilagem – Relatório Final. Brasília,
Câmara Legislativa do DF.
________ (1999). Ocupação e Legalidade das Terras do DF. Brasília, CLDF, mimeo.
FERREIRA, I. C. B. (1999). “Gestão do território e novas territorialidades”. In: PAVIANI, A. (org.). Brasília –
gestão urbana: conflitos e cidadania. Brasília, Editora UnB.
GEDDES, P. (1994). Cidades em Evolução. Campinas, Papirus Editora.
MALAGUTTI, C. J. (1996). Loteamentos clandestinos no Distrito Federal: legalização ou exclusão. Dissertação de Mestrado. Brasília, UnB.
________ (1999). “Loteamentos clandestinos no Distrito Federal: caminhos alternativos para sua aceitação”. In: PAVIANI, A. (org.). Brasília – gestão urbana: conflitos e cidadania. Brasília, Ed. UnB.
OLIVEIRA, M. L. P. de (1987). “Contradições e conflitos no espaço de classes: centro versus periferia”.
In: PAVIANI, A. (org.) Urbanização e periferização. A gestão dos conflitos em Brasília. Brasília, Ed.
UnB.
PAVIANI, A. (1987). “Periferização urbana”. In: PAVIANI, A. (org.). Metropolização e urbanização – A
gestão dos conflitos em Brasília. Brasília, Ed. UnB.
________ (1989). Brasília, Metrópole em Crise: Ensaios sobre Urbanização. Brasília, Ed. UnB.
________ (1989a). A terra urbana para especular – Brasília, metrópole em crise. Brasília, Ed. UnB.
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
aldo paviani
PAVIANI, A. (1991). “A construção injusta do espaço urbano”. In: PAVIANI, A. A conquista da cidade –
Movimentos populares em Brasília. Brasília, Editora UnB.
________ (1994). Mudança ou transformação na cidade: uma abordagem preliminar. Revista Geosul,
Florianópolis, Ano IX, n. 17, pp. 27-40, jan/jul.
________ (1997) Tecnologias, lacunas de trabalho e políticas públicas urbanas. Revista Agora. Brasília,
v. 1, n. 1, pp. 116-146.
________ (2007). Geografia urbana do Distrito Federal: evolução e tendências. Revista Espaço & Geografia, v. 10, n. 1, pp. 1-22.
________ (2008). Caos no trânsito urbano do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.vitruvius.
com.br>, ano 8, v. 12, julho 2008, p. 223.
ROCHEFORT, M. (2008). “O futuro das metrópoles no mundo globalizado”. In: SOUZA, M. A (org.). A
Metrópole e o Futuro – Refletindo sobre Campinas. Campinas, Edições Territorial.
SANTOS, M. (1993). A urbanização brasileira. São Paulo, Hucitec.
________ (1994). “O retorno do território”. In: SANTOS, M.; SOUZA, M. A. A. de e SILVEIRA, M. L. Território – Globalização e Fragmentação. São Paulo, Hucitec/Anpur.
SOJA, E. W. (1993). Geografias pós-modernas. A reafirmação do espaço na teoria social crítica. Rio de
Janeiro, Zahar.
SOUZA, M. A. de (2008). “A metrópole e o futuro. A dinâmica dos lugares e o período popular da
história”. In: SOUZA, M. A. de. A metrópole e o futuro. Refletindo sobre Campinas. Campinas/SP,
Edições Territorial.
92
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 75-92
10 sem. 2009
Políticas urbanas de patrimonialização
e contrarrevanchismo: o Recife Antigo
e a Zona Histórica da Cidade do Porto*
Rogério Proença Leite
Paulo Peixoto
Resumo
Este artigo pretende discutir alguns aspectos
das políticas urbanas de enobrecimento, tendo
como referentes empíricos o Bairro do Recife e
a zona histórica do Porto (Portugal). O argumento central é que, após o período de apogeu
das intervenções urbanas, que agem como um
elixir para os problemas de uma realidade decadente, ocorre uma contrarrevanche exacerbada
por um sentimento de reconquista do espaço
que aniquila as perspectivas depuradoras dessas operações. Esse trabalho, desenvolvido no
âmbito de uma pesquisa comparada entre realidades urbanas brasileiras e portuguesas, questiona esses processos de patrimonialização de
centros históricos procurando relevar a volubilidade desses processos.
Abstract
This article discusses some aspects of
urban policies of gentrification, based on
the following empirical references: the
Neighborhood of Recife and the historic area
of Porto (Portugal). The central argument is
that, after the apex of urban interventions,
which act as an elixir for the problems of a
decaying reality, there is a counter-revanchism
exacerbated by a sense of space recovery that
annihilates the perspectives to improve such
operations. This work, developed in the scope
of a research study that compares Brazilian
and Portuguese urban realities, questions
such processes that transform historic centers
into cultural heritage, trying to reveal their
volubility.
Palavras-chave: cidades; patrimônio cultural; enobrecimento urbano.
K e y w o r d s : cities; cultural heritage;
gentrification
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
rogério proença leite e paulo peixoto
O poder redentor
do patrimônio
94
As funções e o estatuto do patrimônio no
contexto da vida urbana de cidades que,
pelo seu ethos , se representam e são representadas como históricas, convertem os
processos e as intervenções patrimoniais
em uma espécie de nova realidade alegórica das cidades. Essa realidade alegórica evidencia a promessa redentora de, através de
complexos processos de patrimonialização,1
reconstruir as imagens das cidades, e sobretudo de suas zonas históricas, em busca da
superação de um incontornável processo de
declínio. Esse processo de patrimonialização
implica diferentes níveis de intervenção diferenciada, com fortes repercussões, tanto na
infraestrutura urbanística e arquitetônica,
quanto na formatação dos usos dos espaços
enobrecidos (Ferreira, 2005) .
Uma primeira repercussão desse proces so se faz sentir na materialização de
uma ideia de espaço público ordenado,
higienizado e minimizado de seus aspectos
conflituais, que faz com que a cidade seja
imaginada e transformada a partir da reinvenção de um seu passado (Zukin, 1995).
Nessa perspectiva, o patrimônio é cada vez
mais apresentado como a expressão material de uma ideia pacífica de espaço público,
construído com base em uma suposta ideia
de passado comum e de tradições compartilhadas. Sob forma figurada da imbricação
entre consumo e lazer, os centros históricos
alvo de requalificação são uma alegoria desse
espaço público idealizado, supostamente perdido, que urge recuperar. As intervenções
mais voltadas para um urbanismo intensivo
têm ocorrido nos locais onde uma ideia de
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
patrimônio se pode juntar a uma ideia de
espaço público para ser potenciada como
atração turística e de lazer (Sennett, 1998;
Fortuna, 2002).
De forma semelhante, há consideráveis
repercussões na promoção de uma animação crescente, enquadrada pelo consumo
visual e pelo turismo urbano, e por formas
de expressão de um patrimônio imaterial,
que pretende sugerir ideais de cidadania e
de participação cívica. Nesse plano, o espaço recuperado se apresenta como uma
nova plataforma de pendor artístico capaz
de gerar significados sociais e culturais, como se o visual fosse a condição fundadora
de novas e enriquecedoras sociabilidades.
Também se observam alterações na concretização de representações destinadas
a funcionar como imagens de marca das
cidades e como expressões metonímicas
que convidam a tomar a parte, ordenada e
embelezada, pelo todo e a difundir noções
abstractas de centralidade e de qualidade
de vida. Nesse plano, o patrimônio funciona como alegoria, dado que o esplendor e
a qualidade urbanística dos espaços em que
ele se exibe, as cores garridas das fachadas
recuperadas, frequentemente contrastando
com o resto da cidade que as envolve, tornam os bens investidos de um valor patrimonial numa espécie de obra de arte que
representa ideias abstratas de qualidade de
vida e de funcionalidade. Neste âmbito, funcionam como imagem metonímica da cidade, convidando a tomar a parte, ordenada e
embelezada, pelo todo.
O patrimônio e as suas representações
que emergem no contexto desses processos
de patrimonialização podem ser caracterizados como uma invenção cultural que procura
legitimar e naturalizar um determinado tipo
políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo
de discurso sobre a vida urbana. A busca e
a aquisição de um estatuto patrimonial pelos
centros históricos do Recife e do Porto são,
assim, experiências paradigmáticas do complexo percurso contemporâneo das políticas
urbanas.
Numa primeira configuração histórica,
os centros históricos constituem um componente estrutural e funcional da vida urbana. Condensam as primeiras experiências
de uma cultura urbana (Simmel, 1997) e
tornam-se espaços de destaque na economia
política das cidades. Numa segunda fase,
geralmente perdem sua importância socioeconômica, sendo estigmatizados e suscitando progressivamente a emergência de
uma sentida tomada de consciência relativa
à sua desvalorização social. Numa terceira
etapa, reclamam e adquirem uma identidade
patrimonial (Arantes, 2000), inserindo-se
novamente no centro das políticas urbanas.
É nessa fase que ocorrem a reinvenção do
patrimônio e a construção de uma nova imagem da cidade, mediante políticas intensivas
de revitalização e enobrecimento urbano.2
Espaços antes considerados degradados
passam a ter seu atribuído valor patrimonial ressaltado e se transformam em foco
nodal de intensivas políticas urbanas e maciços investimentos público e privado. Com
seus espaços higienizados e embelezados, a
cidade adentra a concorrência intercidades
(Fortuna, 1997) com renovada perspectiva,
tendo seus patrimônios transformados em
mercadoria. É nessa passagem da segunda
para a terceira etapa que a ideia patrimonial
emerge em meio às transformações urbanas
advindas dos processos de enobrecimento.
Mas é também nessa fase que, tomando aqui o caso concreto das duas realidades propostas para análise (Recife e
Porto), se consuma uma quarta e nova fase
observável, caracterizada por uma espécie
pós-revanchismo patrimonial. A expressão
revanchismo, aplicada aos processos de
gentrification, é conhecida nos estudos urbanos para designar uma espécie de vingança tardia, mas eficaz, da cidade, que demarca espaços, segrega usuários e expulsa
moradores indesejados (Smith, 1996). A
operação lembra as políticas de higienização
urbana das cidades portuárias, típica do urbanismo haussmaniano. O que resulta desse
ambíguo processo de embelezamento estratégico – para usar mais uma vez a feliz expressão de Walter Benjamin (1997) –, é a
não menos conhecida espetacularização da
cultura em geral, e do patrimônio material e
imaterial, em particular.
A quarta fase, aqui chamada de pósrevanchista, é gerada no auge do contexto
de patrimonialização e de suas vulnerabilidades, e encerra um desfecho inevitável e
indesejado para gestores e capital. Sugestivamente, esse pós-revanchismo sinaliza, por
outro lado, uma abertura da cidade àqueles
que não tinham espaço nas políticas de enobrecimento. Contudo, o alto preço por essa
curiosa e tardia “inclusão social” é a volta
desses espaços a condições de esvaziamento
e deterioração crescentes.
O papel do patrimônio
e da requalificação
urbana na concretização
de novas centralidades
Encarados como repositórios e como propulsores de atividades culturais diversas, os
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
95
rogério proença leite e paulo peixoto
96
centros históricos, ao concentrarem as iniciativas patrimonialistas, tornam-se objeto
de uma idealização no âmbito das políticas
urbanas e de processos de patrimonialização. Na medida em que alimentam com
frequência uma visão predominantemente
culturalista da cidade, vertida em campanhas de criação e de difusão de imagens,
os centros históricos, sustentando-se em
operações de patrimonialização e de requalificação urbana, tornam-se uma espécie
de hipercentro das cidades. Verdadeiro receptáculo de investidas distintas, do campo
político ao técnico, passando pelo associativo e pelo empresarial, esse espaço, que
muitos, através das políticas de reabilitação
urbana, pretendem tornar a mais falada, a
mais estudada, a mais animada ou a mais
colorida das configurações urbanas, parece
constituir-se como o novo foco, em busca
de uma certa centralidade cultural. Mais do
que um centro, que muitas vezes já não são,
por ganharem uma visibilidade superior
àquela que têm no desenrolar da vida quotidiana das urbes, os centros históricos são,
no contexto do investimento plástico que
neles é feito, um hipercentro das cidades,
na medida em que, virtualmente, se constituem como um ponto de convergência de
intervenções urbanas diversas destinadas a
um certo mediatismo. Os casos do Bairro
do Recife e da Ribeira do Porto, enquanto
paroxismos de processos de patrimonialização, encaixam-se nesse modelo de desenvolvimento das políticas urbanas (Peixoto,
2006; Leite, 2007).
Dos centros históricos, pretende-se cada vez mais que não sejam apenas um mero
lugar nem um centro. Mas sim que se tornem num hiperlugar e num hipercentro, na
medida em que têm de ser simultaneamente
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
um lugar, uma apropriação e uma prática
coletiva de formas de sacralização ou de espectaculosidade. Mais do que remeter para
a esfera íntima ou para práticas quotidianas,
o hipercentro exige um investimento coletivo que reveste um caráter mais ou menos
sagrado, mais ou menos venerável, mais ou
menos festivo, mais ou menos extraordinário. Nessa medida, procurando contrastar
com o seu papel recente e com o seu entorno urbanístico, os centros históricos são
alvo de intervenções destinadas a torná-los
protótipos da vida urbana e são mediatizados como lugares exemplares. Por essa via,
enraizados numa iconografia patrimonial,
acabam por preencher a função de imagem
profética de um futuro diferente para a cidade de que fazem parte, participando no
desígnio maior de qualquer comunidade.
Ou seja, a capacidade em criar e em manter lugares de centralidade que possam ser
propostos aos locais e aos estranhos como
lugares a admirar e a venerar.
Nesse contexto, em posições extremadas que atravessam as políticas de reabilitação, parece consolidar-se a ideia que para
ser belo ou atrativo, e consequentemente
mediático, é preciso sofrer. Seja o sofrimento inerente às posições estéticas e políticas
daqueles que defendem que a função dos
centros históricos é preencher o lugar que
as ruínas ocupam na formação e no funcionamento da memória coletiva, atuando
como uma espécie da “beleza do morto”
de que nos fala de Certeau (1996). Seja o
sofrimento relativo às transformações plásticas que, para promover um certo sentido
estético, transfiguram lugares e objetos tornando-os como que irreconhecíveis e alvo de
críticas profundas por parte dos puristas da
preservação.
políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo
Tendo por referência as imagens difusas que irradiam desse hipercentro, não
deixa de ser pertinente questionar a tensão
marcante que enquadra muitas das intervenções atuais nos centros históricos. Essa tensão, nem sempre fácil de identificar,
decorre da colisão entre imagens idea lizadas do passado (o que se pensa que foram) e imagens idealizadas do futuro (o
que se pensa que devem ser). Tensão que
faz emergirem projetos opostos ou alternativos e, por vezes, inconciliáveis. E que, não
sendo ultrapassada pelo confronto com a
realidade mais ou menos recente e presente
dos centros históricos se constitui como um
obstáculo intransponível a uma intervenção
sustentável nas áreas urbanas antigas, na
medida em que será sempre um contrassenso reabilitar indo contra aquilo que existe. Nessa medida, não é despiciendo notar
que as intervenções nos centros históricos,
na sua globalidade, e no caso concreto das
duas realidades urbanas retidas para análise,
e não obstante o forte pendor retórico que
as envolve, participam mais da produção representacional e imagética que anima a promoção local que propriamente de uma política urbanística claramente orientada para a
reabilitação, como o evidencia o surgimento
de processos de revanchismo. Evidenciase, por essa via, o risco de as campanhas
de promoção local ficarem excessivamente
prisioneiras de imagens sem conteúdo. Em
contextos em que o marketing das cidades,
movido por uma linguagem hiperbólica e
alimentando fenômenos de escalada, parece
estar a adquirir uma preponderância crescente, substituindo-se ou sobrepondo-se à
ação política, à intervenção técnica e à criação artística e cultural.
O processo
de patrimonialização
do Bairro do Recife
Para o aspecto central da análise aqui proposta, é fundamental destacar que o Bairro
do Recife, ao longo dos seus mais de 400
anos de existência, já experimentou o apogeu e a decadência quase absolutos – em
termos de centralidade econômica, relevância arquitetônica e visibilidade cultural –, em
pelos menos três grandes momentos da sua
história. O primeiro momento se deu quando da própria fundação do Povoado dos Arrecifes (século XVI) e depois, já com a presença do Mauricio de Nassau (século XVII),
quando a sede do governo holandês foi
edificada no vizinho bairro de Santo Antonio, deixando o bairro do Recife a amargar
uma posição política secundária. O segundo,
quando o bairro foi quase todo demolido e
reconstruído no melhor estilo da Paris de
Haussmann, ainda no auge da economia
açucareira de Pernambuco (início do século
XX) para, em seguida, presenciar quase seu
despovoamento e, uma vez mais, a perda da
sua relevância para outras áreas da cidade
(sobretudo no pós-guerra até os anos 80
do século XX). Por fim, após amargar várias
décadas de quase total abandono, o bairro
“ressurge” nos anos de 90 como um dos
mais emblemáticos, importantes e impactantes processos de enobrecimento urbano
do Brasil (Leite, 2007)
A fase mais aguda desse processo de
patrimonialização se deu entre 1989 até
aproximadamente 2001, época em que se
deu o enobrecimento do Bairro. Nesse período, o bairro teve suas feições arquitetônicas
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
97
rogério proença leite e paulo peixoto
98
e funcionais bastante alteradas, com a transformação de antigos casarões em animados
pubs e sofisticados restaurantes. As ruas,
palco de espetáculos teatrais, shows musicais e exposições artísticas, tornaram-se
boulevards para as famílias de classe média
da cidade. Rotinas antes impensáveis devido à má fama de local perigoso, o portuário
bairro foi se transformando em opção de
lazer seguro e entretenimento para a população, foco do turismo internacional e palco
de grande visibilidade pública para eventos
políticos.
O processo de patrimonialização foi intenso, tanto no que se refere ao patrimônio imaterial quanto material. O primeiro
foi caracterizado por um agudo processo
de retradicionalização do bairro, mediante a apresentação espetacular de folguedos
da cultura popular pernambucana, a exemplo de tradicionais grupos de maracatus. A
patrimonialização edificada por sua vez foi
tão profunda que, pela primeira vez na história das políticas de preservação no Brasil,
um bairro em estilo eclético foi reconhecido
como patrimônio nacional pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN, a despeito da discutível relevância
arquitetônica do bairro para os cânones patrimoniais e preservacionistas brasileiros.
Foi nesse bairro haussmanniano do
Brasil que o Plano de Revitalização do Bairro do Recife veio a ser colocado em prática,
tendo como fundamentação uma proposta
de restauração do patrimônio edificado articulada à ideia de intervenção urbana na
forma de um empreendimento econômico.
Afinado com os pressupostos do chamado
market lead city planning, o plano tinha três
objetivos principais: 1) transformar o Bairro
do Recife em um "centro metropolitano recadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
gional", tornando-o um polo de serviços modernos, cultura e lazer; 2) tornar o Bairro
um "espaço de lazer e diversão", objetivando criar um "espaço que promova a concentração de pessoas nas áreas públicas criando
um espetáculo urbano"; 3) tornar o Bairro
um "centro de atração turística nacional e
internacional". Esses objetivos sinalizavam,
desde o início, o quanto a proposta estava
voltada ao incremento da economia local,
pretendendo tornar o Bairro do Recife um
complexo mix de consumo e entretenimento. De igual modo, a noção de um espaço de
"espetáculo urbano", que iria caracterizar
todo o plano, é um indicador importante da
presença de uma política de gentrification.
Tudo parecia perfeito, após a implantação do Plano de Revitalização, com o antigo centro histórico transformado em festa
permanente, numa imbricada relação entre
consumo e entretenimento, cultura e mercadoria; até que um fantasma voltou a rondar
a bem-sucedida experiência de enobrecimento no Brasil. Aos poucos, o movimento
de pessoas se arrefece, bares e restaurantes
fecham suas portas; a arrecadação cai; lenta
e gradualmente, seus espaços vão decaindo,
perdendo visitantes, saindo da agenda cultural da cidade. Com a ausência de ação continuada do poder público, os espaços físicos
vão se deteriorando, o patrimônio edificado
vai perdendo suas cores e, para surpresa
dos desavisados, a antiga área, parecendo
cumprir seu histórico ciclo vital, volta quase
a ser o que era antes: espaço de vidas cotidianas, sem muita visibilidade pública e sem
a espetacularização do seu patrimônio e das
rotinas sociais.
Em 2006, cinco anos após a fase mais
intensa da “revitalização” do bairro, pouco
restou das sociabilidades que caracterizaram
políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo
a efervescência cultural do processo. Mais
uma vez, o local experimentava o vazio das
suas ruas e do seu belo patrimônio material
quase às escuras.
O processo de
patrimonialização do
centro histórico do Porto
O fato mais marcante do centro histórico do
Porto reside na circunstância de, em apenas
três décadas, ter passado repentinamente de
objeto disfuncional e de alvo de uma política
de demolição a objecto de exibição e alvo de
uma política de protecção patrimonial (Peixoto, 2006).
O “Plano Director de Robert Auzelle”
para a cidade do Porto defendia, como
tantas outras soluções de planeamento urbano de inspiração haussmaniana, “a mera
demolição do Barredo (zona hostórica mais
densa)”, o que motivou o primeiro estudo
de recuperação da parte antiga da cidade
pelo arquiteto Fernando Távora.3 Apresentado em 1969, esse estudo deu origem, em
1974, à constituição de um organismo público especializado para o levar a cabo – o
CRUARB (Ramos, 1995, p. 539), cuja ação
viria a ser preponderante para que, apenas
35 anos depois do plano Auzelle, em 1996,
a área a demolir fosse elevada à condição de
patrimônio mundial pela Unesco.
A deterioração que ocorre no centro
histórico do Porto a partir do século XIX,
agravada pela segregação espacial motivada
pela urbanização crescente da cidade, pelo
aumento demográfico derivado da industrialização e pela concentração da população
mais desprovida de recursos no Bairro histórico da Sé, ao passo que a burguesia emergente se fixava nas novas zonas da cidade
(como a Foz), atinge limites de ingovernabilidade que suscitaram “evidentes” soluções
de tábua rasa. Nessas circunstâncias, porque
quanto mais deteriorado um lugar se encontra mais ele tende a concentrar e a ampliar
os problemas verdadeiramente prementes
que existem numa cidade e na sociedade, o
centro histórico do Porto criou, certamente, mais que qualquer outro em Portugal,
condições de difícil implementação de uma
política de reabilitação.
No Porto, a política de reabilitação e
de requalificação urbana teve como pano
de fundo os movimentos de moradores e o
Serviço Ambulatório de Apoio Local – SAAL.
Em 1969, a comunidade que dá significado
à zona histórica é mencionada como estando impregnada de um valor histórico a preservar (Rocha et al., 1985) e a constituição
do Comissariado para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo (CRUARB)
constitui-se como um marco decisivo no
lançamento da política local de reabilitação
urbana ancorada numa retórica patrimonial.
Essa política, na formulação legislativa do
diploma que a enquadra, é projetada, em relação à sua zona mais nobre, com receios de
enobrecimento da zona histórica e de centrifugação da população aí residente. “Considerando a urgente necessidade de conduzir
eficazmente o processo de renovação urbana da zona da Ribeira da Cidade do Porto”
afigura-se igualmente premente “assegurar
que a população trabalhadora que há muito habita essa zona nas piores condições de
alojamento e exploração não venha a ser dela deslocada por força da valorização da propriedade e da zona decorrentes da própria
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
99
rogério proença leite e paulo peixoto
100
operação em tempo planeada” (Rodrigues,
1999, pp. 40-41). Em 1980, segundo dados do INE, nos 3.200 edifícios existentes
no centro histórico do Porto residiam cerca
de 20.000 indivíduos, numa assinalável média de 6,25 por edifício. Esse desiderato de
evitar a saída de residentes não foi contudo
concretizado, uma vez que cerca de 800 residentes foram deslocados para o Bairro do
Aleixo, gerando-se entre eles, contrariamente ao que muitas vezes se procura evidenciar
quando se insiste que as operações de realojamento desta natureza são sempre feitas
contra a vontade dos próprios, sentimentos
contraditórios.
Como lembra Gaspar Pereira, “as operações de renovação urbanística, levadas a
cabo na zona central da cidade, em especial
as que atingem as zonas mais densamente
povoadas do centro histórico, onde se concentravam populações pobres”, têm efeitos
perversos e não antecipados. Isso porque
“contribuem para agravar as carências habitacionais, conduzindo quer a uma sobreocupação do miolo da cidade antiga não atingido pelas demolições, quer à centrifugação
de famílias pobres para a periferia” (Pereira
apud Rodrigues, 1999, p. 16).
Acresce que, desde cedo, por outro lado, de modo a procurar tornar menos densa
uma configuração urbana atulhada, se manifestam contornos de uma renovação seletiva que pretende ver-se travestida de uma
prática de reabilitação integrada que, pelo
menos retoricamente, valoriza o conjunto
histórico constituído pelo habitat residencial e pela comunidade local. Essa política
se orienta, assim, para o enobrecimento do
espaço público e para o florescimento de
condições que favorecessem as práticas urbanas de lazer e de consumo. Por isso mescadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
mo, não é despiciendo nem inaudito notar
que à zona da Ribeira, palco da cultura do
consumo visual, tenha sido conferida uma
prioridade em termos de reabilitação e de
requalificação. Como lembra, de resto, um
dos técnicos envolvidos nas operações de requalificação:
Se edifícios muito degradados sobre
que pretendíamos operar não revelassem valor patrimonial suficientemente
positivo ou se a sua presença e reconstrução significasse aumento de densidade construtiva, nociva à vida das populações, o Mestre [Arquitecto Viana de
Lima] propunha, sem hesitação, o seu
apeamento em favor do espaço aberto
que proporcionasse o estar lúdico e a
circulação facilitada (…). Ainda hoje, e
já sem a presença directa do Mestre,
soluções urbanísticas deste tipo foram
reutilizadas, como no Largo da Viela
do Anjo, onde, à custa da demolição
de algumas construções em ruína, foi
conseguido um espaço urbano aberto
de grande qualidade arquitectónica, no
interior da densa malha medieval da Sé,
sem as descaracterizar, antes valorizando-as. (Moura, 2001, pp. 106 e 108)
Ainda que nunca tenha sido assumido
pelos poderes locais que a reabilitação urbana empreendida no centro histórico do Porto tivesse sido inicialmente motivada pelo
ímpeto em ver o centro histórico tombado
patrimônio mundial, a verdade é que esse
objetivo se vai consolidando com a maturação do processo de reabilitação.
Retendo uma ideia de António Firmino
da Costa (1999), segundo a qual as zonas
onde a reabilitação e a requalificação urbanas ocorrem são “socialmente constituídas
políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo
como objetos de reabilitação urbana”, mesmo antes das operações dessa natureza terem início, vale a pena relevar que, frequentemente, essas operações se resumem a
pouco mais que esse processo de construção
social (com uma amplitude limitada que dificilmente ultrapassa os discursos políticos)
e que essa é, recorrentemente, uma queixa
difundida pelos técnicos envolvidos. Mesmo
não sendo o caso, porque configurou uma
interessante operação de reabilitação e de
requalificação urbanas, tornado, por isso
mesmo, ainda mais pertinente este argumento, a verdade é que, obtido o estatuto
de patrimônio mundial (não obstante faltar
reabilitar uma grande porção do edificado e
requalificar uma parte do espaço público na
área Ribeira-Barredo, e de a intervenção na
mais densificada zona do Bairro da Sé levar
apenas 8 anos de realização), o CRUARB
enfrentou um processo de extinção a partir
de 2005, o que evidencia a volubilidade dos
processos de patrimonialização.
Conclusão:
do enobrecimento
ao contrarrevanchismo
As experiências urbanas das cidades do Recife e do Porto guardam similitudes importantes num quadro analítico comparativo. A
retórica e a prática inerentes aos processos
de patrimonialização, a prazo, por estarem
sujeitas a opções políticas, às vicissitudes
dos investimentos públicos e a fenômenos
de moda, podem ser geradoras de efeitos de
revanchismo (neste caso, contrarrevanchismo, se entendermos que o próprio processo
de patrimonialização foi uma revanche da
cidade aos usuários e moradores “indesejados”).
Nessa medida, não é assim tão fora do
vulgar constatar que os processos de patrimonialização retroagem sobre eles mesmos,
levando a que os efeitos positivos que geraram, em face dos objetivos que perseguiam,
retrocedam no sentido que levavam e se encaminhem para situações qualitativamente
inferiores àqueles que prevaleciam à época
de sua implementação. Nesses casos, tudo
se passa como se a intervenção patrimonial,
como tantas vezes acontece nas operações
de enobrecimento, viesse gerar num determinado espaço uma situação contra natura
que acaba, uma vez esmorecida essa intervenção, não só por se normalizar, mas também por se refinar, no sentido em que tende
a concentrar e a atrair exponencialmente os
fenômenos expurgados pelos processos de
patrimonialização.
No Porto, a extinção do Comissariado
para a Renovação Urbana da Área da Ribeira-Barredo (CRUARB) e da Fundação para o
Desenvolvimento da Zona Histórica (FDZH),
que foram as duas instituições que desenvolveram uma intervenção sistemática de
reabilitação e de requalificação urbanas, não
deixam potencialmente de enquadrar fenômenos de revanchismo ligados aos processos de patrimonialização. A ausência dessa
intervenção não só significa o retomar de
uma dinâmica de decadência, travada pela
existência dos processos de requalificação e
de patrimonialização, como a legitima numa
lógica fatalista que acaba por a acelerar a
um ritmo muito mais intenso.
Mas esse fenômeno de revanchismo
é de natureza complexa e, unidimensionalmente considerado, não deixa de evidenciar
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
101
rogério proença leite e paulo peixoto
102
posições marcadamente ideológicas. O que
leva a que seja profícuo questioná-lo na sua
complexidade.
No caso do Porto, a extinção do
CRUARB e da FDZH é recorrentemente justificada por não terem sido levadas a um
ponto ótimo as operações de enobrecimento urbano e por essas instituições terem
limitado esse enobrecimento a intervenções de requalificação do espaço público.
Designadamente, na retórica legitimadora
do novo instrumento financeiro-jurídicourbanístico (as Sociedades de Reabilitação
Urbana), critica-se o fato de o CRUARB ter
apostado numa reabilitação de qualidade, e
impossível de generalizar a toda a cidade,
para realojar em casas “luxuosamente” recuperadas uma população residente de baixos recursos. Com a agravante – se releva
– de essa população, que paga ao município
rendas ajustadas à sua baixa renda mensal,
não ter recursos, nem os permitir gerar,
para fazer face, a médio prazo, às despesas
de manutenção das intervenções realizadas.
Por isso, um enobrecimento generalizado e
mais ousado é defendido como estratégia
mais adequada para evitar fenômenos de
revanchismo em que os processos de patrimonialização se vejam hipotecados por eles
próprios.
No caso do Bairro do Recife, o enfraquecimento das atividades do Escritório de
Revitalização do Bairro do Recife acompanhou a diminuição progressiva de investimentos. Ancorado, sobretudo, em uma concepção de consumo e entretenimento, típico
dos processos denominados gentrification
para visitação, o processo de enobrecimento do Bairro do Recife não se alicerçou em
políticas residenciais, embora se soubesse,
desde as primeiras iniciativas do Plano de
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
Revitalização – Bairro do Recife, que essa
dimensão era fundamental para o retorno e
manutenção de certas atividades desejadas.
Em decorrência de sua incontestável
importância, um dos aspectos mais discutidos nas políticas de enobrecimento tem sido
justamente a dimensão residencial desses
empreendimentos. Entende-se que, sem
essa característica, faltaria a esses projetos
uma das suas principais bases de sustentação, capaz de gerar certas rotinas cotidianas
de serviços que são essenciais à manutenção
do curso de uma vida regular. Contudo, o
caso do Recife repete uma tendência que
tem sido quase um padrão no Brasil: o de
não incorporar políticas habitacionais nos
projetos de “revitalização”. Nem na forma
de melhoria das condições de vida das populações mais pobres, que em geral habitam
essas áreas centrais das cidades (em sua
maioria, regiões portuárias), nem na forma
de novos empreendimentos imobiliários.
Somada a ausência de investimentos
residenciais, e tendo ou não o plano de “revitalização” apoio da administração pública,
existe uma dimensão cotidiana da questão,
relacionada à delicada equação da comunicabilidade política expressa nos usos e contrausos desses espaços que podem contribuir
para a fragilidade das relações sociais e vulnerabilidade desses espaços enobrecidos.
Nesse caso, há de se considerar a presença
continuada e persistente de contrausos nos
espaços enobrecidos, e suas ressonâncias
sobre os processos interativos (estruturadores de identidades mediante a atribuição de
sentidos aos lugares) entre os distintos grupos envolvidos nos usos desses espaços.
Por fim, é nesse sentido que a relação
entre enobrecimento e o revanchismo que
lhe subjaz traduz-se de dois modos distintos.
políticas urbanas de patrimonialização e contrarrevanchismo
Na vingança que as antigas dinâmicas combatidas pelos processos de patrimonialização, aproveitando o enfraquecimento destes
últimos, exercem, retomando e alastrando
sua importância. Mas também na incapa-
cidade das operações de preservação, que
existem para reagir a um enobrecimento
generalizado, em se manterem sustentáveis
num contexto de igual afectação de recursos
a todas as operações de requalificação.
Rogerio Proença Leite
Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe (Sergipe, Brasil). Pesquisador 2 do CNPq.
[email protected]
Paulo Peixoto
Professor e pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Coimbra, Portugal).
[email protected]
103
Notas
(*) Texto produzido no âmbito das pesquisas da Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos (CPLP/
MCT/CNPq e CAPES-FCT). Uma primeira versão deste artigo foi apresentada na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia – ABA, Bahia, Brasil.
(1) Referimo-nos aos processos de patrimonialização para dar conta de um movimento de duplo
alcance. Por um lado, e na sua essência, os processos de patrimonialização se referem a intervenções de natureza patrimonial e predominantemente técnica que visam, acima de tudo, obter, através de uma operação de tombamento formal, um estatuto patrimonial. Por outro lado,
lateralmente, os processos de patrimonialização se referem a operações de natureza diversa
(arquitetônica, paisagística, urbanística, política, cultural, comercial, etc.) cujos objetivos, independentemente de um reconhecimento formal, assentam na exacerbação de um patrimônio ou
do valor patrimonial de um objeto, para efeitos de consumo visual, turístico ou sustentação de
um mercado urbano de lazeres.
(2) O enobrecimento, nobilitação, ou gentrification (termo inglês correntemente utilizado na gíria da
reabilitação urbana), dá conta da substituição da população residente por outra de estratos sociais mais elevados na sequência de processos de conservação e de restauração de determinado
espaço urbano, remetendo numa visão mais redutora para a qualificação do espaço
(3) A haussmanização refere-se a uma política de demolição, levada a cabo em Paris por GeorgesEugène Haussmann, na segunda metade do século XIX, que pretende intervir no espaço urbano
de modo a controlar, disciplinar e higienizar os comportamentos, assim como a criar referências
e marcadores do espaço através da monumentalização.
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
rogério proença leite e paulo peixoto
Referências
ARANTES, A. A. (2000). Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas, Ed. Unicamp.
BENJAMIN, W. (1997). “Paris, Capital do Século XIX”. In: FORTUNA, C. (org). Cidade, cultura e globalização: ensaios de sociologia. Oeiras, Celta Editora.
CERTEAU, M. (1996). A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, Vozes.
COSTA, A. F. da (1999). Sociedade de bairro. Dinâmicas sociais da identidade cultural. Oeiras, Celta.
FERREIRA, C. (2005). A Expo’98 e os imaginários do Portugal contemporâneo: cultura, celebração e
políticas de representação. Tese de Doutoramento. Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra.
FORTUNA, C. (org). (1997). Cidade, cultura e globalização. Ensaios de sociologia. Oeiras, Celta.
________ (2002). Culturas urbanas e espaços públicos: sobre as cidades e a emergência de um novo
paradigma sociológico. Revista Crítica de Ciencias Sociais, 63, outubro.
LEITE, R. P. (2007). Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas, Editora Unicamp/Editora UFS.
MOURA, A. (2001). “Reflexões sobre o Mestre”. In: AAVV, Porto Patrimônio Mundial III, CRUARB, 25
anos de reabilitação urbana. Porto, Câmara Municpal do Porto, pp. 104-122.
104
PEIXOTO, P. (2006). O passado ainda não começou: funções e estatuto dos centros históricos no contexto urbano português. Tese de doutoramento em Sociologia. Universidade de Coimbra.
RAMOS, L. A. de O. (org.). (1995). História do Porto. Porto, Porto Editora.
ROCHA, C. et al. (1985). Ribeira Barredo: operação de renovação urbana. Sociedade e Território, n. 2,
pp. 55-67.
RODRIGUES, M. (1999). Pelo direito à cidade. O movimento de moradores no Porto (1974/76). Porto,
Campo das Letras.
SENNETT, R. (1998). O declínio do homem público. São Paulo, Companhia das Letras.
SIMMEL, G. (1997). “A metrópole e a vida do espírito”. In: FORTUNA, C. (org.). Cidade, cultura e globalização. Ensaios de sociologia. Oeiras, Celta.
SMITH, N. (1996). The new urban frontier: gentrification and revanchist city. London e New York,
Routledge.
ZUKIN, S. (1995). The cultures of cities. Cambridge, Massachussetts, Blackweell.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 93-104
10 sem. 2009
Política de habitação nas áreas
centrais: retórica versus prática*
Mariana Fialho Bonates
Resumo
Em 1999 foi criado o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) que, dentre suas atribuições de construção de novos conjuntos habitacionais, também passou a promover a moradia nos centros urbanos, através da reabilitação
de antigos edifícios. Sendo assim, várias cidades passaram a elaborar estudos de viabilidade
em prédios abandonados, no entanto, poucos
foram efetivados. O fato é que a ação do PAR
em reabilitação é ainda muito tímida ante a sua
outra modalidade – de construção de novas
moradias –, beneficiando poucas edificações em
algumas cidades. Assim, este artigo tem por
objetivo compreender o potencial de utilização
do PAR para a reabilitação das áreas centrais
das cidades brasileiras. Os procedimentos de
pesquisa adotados incluíram revisão bibliográfica, pesquisa documental e pesquisa de campo,
visando levantar as características do PAR, bem
como as características quantitativas e qualitativas dos imóveis reabilitados pelo programa.
Abstract
In 1999, the Housing Leasing Programme
(Programa de Arrendamento Residencial –
PAR) was set up to build dwellings for low
income people. PAR was not, at first, allowed
to construct dwellings in peripheral areas, only
in areas already equipped with infrastructure,
occupying empty land (a problem which is
very common in Brazilian cities). In addition
to new housing, the programme also targeted
on the rehabilitation of old buildings in city
centres. Thus, several municipalities developed
new projects and applied for funds from PAR
to rebuild degraded residential buildings.
However, few of these projects have been
completed. This paper aims at analyzing PAR
as a potential tool in the rehabilitation of city
centres via housing revitalization.
Palavras-chave: centros urbanos; política
habitacional; PAR; reabilitação de edificações;
características da produção.
Keywords:
city centre; housing policy;
housing leasing programme; rehabilitation of
buildings; housing production.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
mariana fialho bonates
Introdução
Muito tem mudado na economia internacional em seguida à crise do fordismo e com
a emergência do modelo de acumulação flexível, refletindo no desenvolvimento urbano, sobretudo a partir da década de 1990,
quando se consolida um novo modelo com
base no planejamento estratégico, que tem
os centros de cidade como um dos espaços
privilegiados de intervenção.1 Segundo Del
Rio (2001),
106
[...] a globalização da economia tem
acirrado a competição entre cidades
na atração de novos investidores e na
construção de novos mercados, o que
faz destacar os diferenciais urbanísticos
e, consequentemente, um cuidado cada
vez maior na busca da qualidade para
os modelos e processos.
Isso significa que investir na reabilitação
urbana das áreas centrais é destacar o diferencial do local para a economia mundial,
motivo pelo qual essa temática está inserida
nas agendas políticas de muitas cidades.
No entanto, o que significa o termo
reabilitação urbana no contexto do planejamento estratégico? De acordo com a Carta
de Lisboa de 1995, a reabilitação urbana é
entendida como
[…] uma estratégia de gestão urbana
que procura requalificar a cidade existente através de intervenções múltiplas
destinadas a valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais,
a fim de melhorar a qualidade de vida
das populações residentes; isso exige o
melhoramento das condições físicas do
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
parque construído pela sua reabilitação
e instalação de equipamentos, infraestruturas, espaços públicos, mantendo a
identidade e as características da área
da cidade a que dizem respeito. (Apud
Vasconcellos e Mello, 2006, p. 59)2
O processo de reabilitação das áreas
centrais, que segue um modelo internacional, materializa-se no espaço urbano
tentando viabilizar duas vertentes. Uma
vertente é a reabilitação por meio da espetacularização e da atividade turística, investindo, sobretudo, em espaços públicos e em
infraestrutura, procurando potencializar as
identidades do local; a outra vertente está
voltada para a promoção da moradia nas
áreas centrais. Para Silva (2006, p.15),
inclusive, “a política habitacional […] aparece em vários casos como o grande motor da reabilitação”, que eventualmente se
desenvolve em conjunto com um processo
de gentrificação social (esta, muitas vezes,
mesmo não sendo planejada).
No entanto, a ideia de conjugar a política habitacional com a política de preservação
dos sítios históricos, onde, em geral, localizam-se as áreas centrais, não é recente. A
“Recomendação de Nairóbi”, de 1976, relativa à salvaguarda dos conjuntos históricos e
de sua função na vida contemporânea, sugeria, entre outras coisas, a compatibilização
entre a política habitacional e a salvaguarda
do patrimônio arquitetônico:
O regime de eventuais subvenções
deveria ser, consequentemente, estabelecido e modulado sobretudo para
facilitar o desenvolvimento de habitações subsidiadas e de edifícios públicos
através da reabilitação de construções
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
antigas. […]. Além disso, uma parte
suficiente de créditos previstos para a
construção de habitações sociais deveria ser destinada à reabilitação de edificações antigas.
No Brasil, a partir da década de 1990,
a questão da reabilitação das áreas centrais
se destaca, sendo duplamente influenciada
pelo cenário internacional do planejamento
estratégico, como também pelo processo de
degradação e de deterioração dos centros
urbanos e sítios históricos. Segundo Silva
(2006), essa degradação e deterioração é
resultado de um longo processo histórico
que envolve a descentralização das elites do
núcleo central, devido à construção de novos bairros residenciais, de novos centros
comerciais (como os shoppings centers),
etc., levando ao surgimento de novas centralidades na cidade. Alia-se a isso a política
habitacional do Banco Nacional de Habitação
(BNH – 1964-1986) que, com a utilização
de recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), difundiu um modelo
de implantação periférica dos seus conjuntos, contribuindo na extensiva expansão horizontal de muitas cidades.
Todos esses fatos levaram a um processo de evasão da população residente e de
abandono de parte das estruturas físicas dos
centros urbanos. Por outro lado, as estruturas que não foram abandonadas passaram
por outro processo: o de transformação de
uso e de perfil social, ou seja, passaram, de
prioritariamente residencial, pertencente às
elites, para uma área comercial e residencial
das camadas populares. Além disso, as áreas
centrais caracterizam-se na contemporaneidade pela atividade informal e pela estigmatização como lócus de violência urbana.
Em contraste com as unidades abandonadas nas áreas centrais, dados da Fundação
João Pinheiro (2005) revelam um déficit de
mais de sete milhões de habitações no país.
O que se verifica, portanto, é que, mesmo
diante do significativo déficit habitacional, há
um descompasso entre a produção de novas
moradias financiadas pelo governo e a subutilização de aproximadamente seis milhões
de unidades fechadas, inclusive, nos centros.
Todo esse quadro é, em grande parte, fruto
de uma política habitacional voltada para a
construção de novas moradias e de uma política de preservação focada no tombamento
de monumentos.
Numa tentativa de conjugar tais questões, a priori independentes, a reabilitação
das áreas centrais no Brasil tem buscado
o tema da habitação como centralidade de
várias ações, realizadas pelos governos municipal, estadual e federal. Além disso, a reabilitação das áreas centrais consiste em um
item quase obrigatório nos planos estratégicos governamentais. Assim, algumas ações
vêm sendo viabilizadas por meio do Programa de Arrendamento Residencial (PAR),
criado em 1999. Esse programa se destaca
pela construção de conjuntos habitacionais
preferencialmente localizados em vazios
urbanos, ou seja, não se refere unicamente à reabilitação de edifícios, embora também possa atuar para esse fim. No entanto,
como será visto, sua intervenção nas áreas
centrais é ainda bastante incipiente, com algumas poucas ações nas principais cidades
brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro,
Porto Alegre, Salvador, etc. Não obstante,
trata-se de um programa inovador, pois
reflete uma nova forma de intervenção da
política pública brasileira, diferentemente
de períodos anteriores, quando não havia
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
107
mariana fialho bonates
políticas voltadas para as áreas centrais,
apenas instrumentos, nem sempre efetivos,
para a preservação do patrimônio histórico.
Também se diferencia no rol das políticas
habitacionais pela diferente forma de acesso à moradia – o arrendamento – quando
a historiografia foi marcada pela difusão da
casa própria.
Enfim, tendo como pano de fundo a
questão das políticas habitacionais, este artigo visa compreender o potencial de utilização do PAR para a reabilitação das áreas
centrais. O artigo está estruturado em três
partes. A primeira procura identificar e
discutir as políticas públicas para as áreas
centrais, tendo a habitação como foco; a
segunda parte se refere à caracterização do
PAR e, a terceira parte discute os aspectos
quantitativos e qualitativos da ação do PAR
na reabilitação.
108
As políticas públicas
para as áreas centrais:
habitação como foco
É na década de 1980 que o processo de degradação e de deterioração dos centros urbanos passa a ser discutido de modo mais
intensivo no Brasil. O fato é que, inicialmente, a tônica da discussão girava mais em torno da preservação do patrimônio edificado,
das ações e dos instrumentos para esse fim.
De acordo com Vargas e Castilho (2006), a
partir da década de 1990 a questão da reabilitação das áreas centrais se destaca (influenciado pelo cenário internacional do planejamento estratégico), tendo a habitação
como centralidade de muitos debates.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
Para Rolnik e Botler (2004), foi a partir do ano 2000 que, no âmbito do governo federal, a Caixa iniciou a implantação do
Programa de Revitalização de Sítios Históricos (PRSH), e o Ministério da Cultura
implantou o Programa Monumenta. Cada
qual apresentava características distintas:
enquanto o último estava mais direcionado
para atividades de restauro em edificações
localizadas dentro do perímetro dos sítios
históricos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional (IPHAN),
o primeiro visava reabilitar imóveis vazios,
transformando-os em uso habitacional. Entretanto, esses imóveis vazios eram localizados em perímetros definidos dentro de
áreas protegidas como patrimônio e não necessariamente aqueles tombados. Ainda segundo Rolnik e Botler (ibid.), o PRSH atuou
baseando-se na formação de parcerias, sobretudo com o governo francês e tentando
disponibilizar financiamentos através do
PAR, conforme citação abaixo:
Sem um fundo específico de financiamento, contando apenas com recursos
do Programa de Arrendamento Familiar – PAR – a Caixa viabilizaria algumas
ações de reabilitação, agregando recursos da lei federal de incentivo à cultura,
via renúncia fiscal, para complementar
os custos da recuperação de imóveis
históricos que abrangem obras de restauro que por isto ultrapassam os tetos de financiamento estabelecidos pelo
PAR. (Ibid.)
No entanto, o PAR não é voltado especificamente para a reabilitação de áreas centrais; trata-se de um programa de habitação
do governo federal, que tem a reutilização
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
da antigas estruturas para o uso habitacional como apenas uma de suas frentes de
ação, como será explicado mais adiante.
Já em 2003, quando se iniciou o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado o Ministério das Cidades para
tratar da questão urbana, e, dentre outros,
o Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais. Este têm como principal
objetivo:
[…] por meio da recuperação do estoque imobiliário subutilizado promover o
uso e a ocupação democrática e sustentável dos centros urbanos, propiciando
o acesso à habitação com a permanência e a atração de população de diversas classes sociais, principalmente as de
baixa renda; além do estímulo à diversidade funcional recuperando atividades
econômicas e buscando a complementariedade de funções e da preservação do
patrimônio cultural e ambiental. Esses
objetivos são parte integrante de uma
nova política urbana baseada nos princípios e instrumentos do Estatuto da
Cidade. (Brasil, 2005, p.18)
Na prática, o programa visa, através
da promoção técnica, do apoio financeiro e
da divulgação de experiências, fomentar a
realização de Planos Locais de Reabilitação
de Centros, financiados com recursos do
Orçamento Geral da União (OGU). Na questão habitacional, atualmente, além do PAR,
outros programas de habitação são passíveis
de financiar a reabilitação de imóveis na área
central para uso residencial: o Crédito Solidário, o Pró-moradia, o Apoio à Produção
de Habitação, o Imóvel na Planta, o Carta
de Crédito Associativo, o Crédito Individual,
a Resolução nº 460, isto é, quase todos os
programas que compõem a Política de Habitação do governo federal, com recursos do
FGTS e de outras fontes (ibid.).
Além de aumentar as linhas de financiamento para promover o repovoamento do
centro, o Ministério das Cidades está tentando viabilizar a moradia nas áreas centrais
através da alienação ou disponibilização de
imóveis vazios ou subutilizados pertencentes à União, ao INSS, e à Rede Ferroviária
Federal (RFFSA), para serem doados para
as prefeituras, principalmente, para que
estas também possam tentar viabilizar, por
meio de parcerias, a moradia nesses imóveis
doados.
Verifica-se, portanto, crescentemente,
um número de ações do governo federal
na tentativa de reabilitar as áreas centrais
tendo a habitação como foco da sua intervenção. Os governos estaduais e municipais
também vêm promovendo experiências nesse campo, principalmente, por meio de parcerias o governo federal. Por exemplo, segundo Gonçalves (2006), em São Luís-MA,
entre 1991 e 1994, iniciou-se um Projeto
Piloto de Habitação para o centro, com a recuperação de apenas um sobrado para moradia de uma população de renda mais baixa
ou sem renda, mas que não logrou o sucesso esperado, pois não atingiu a “sustentabilidade desejada”. Diferentemente, entre
1996 e 1999, foi criado o Subprograma de
Promoção Social e Habitação do Governo do
Estado do Maranhão (PPSHGM), financiado
com recursos do governo estadual, federal e
do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Em resumo, esse programa teve o
seguinte perfil:
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
109
mariana fialho bonates
[…] como público alvo funcionários
estaduais que não possuam imóvel próprio e que morem afastados da área de
trabalho, do Centro Histórico de São
Luís. A aquisição do imóvel é feita através de uma prévia inscrição desses funcionários e, posteriormente, é feito um
sorteio para entrega dos apartamentos.
O contrato é estabelecido na forma de
aluguel dos apartamentos, no qual os
moradores devem respeitar as normas de preservação e conservação do
imóvel, sendo fiscalizados e orientados
por técnicos do Programa. (Gonçalves,
2006, p. 48)
110
O contrato acima assinalado tem características próprias de um arrendamento
residencial, uma vez que os moradores têm
a opção de poder comprar o apartamento após um período 10 anos morando no
imóvel. As prestações mensais, descontadas
da folha de pagamento do servidor, serão
contabilizadas como parte do pagamento,
segundo indicado por Gonçalves (ibid.). Ainda segundo essa autora, até 2004, haviam
sido entregues 5 imóveis, totalizando 38
unidades habitacionais e 18 lojas, e ainda
estavam em processo licitatório outros 4
imóveis com 29 novas moradias e 16 lojas.
Tal proposta do governo estadual é interessante para essa discussão, uma vez que,
embora pouco mais antigo, trata-se de um
financiamento muito parecido com a forma
operacional do PAR, que financiou apenas
um imóvel no caso da capital maranhense,
como se verá adiante.
Além desta, a prefeitura do Rio de Janeiro tem o Programa Novas Alternativas,
que se desenvolve tendo por base recursos
municipais, bem como recursos federais.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
Neste caso, destacam-se os programas
Carta de Crédito Associativo e o PAR, que
já fi nanciaram várias obras no centro carioca – totalizando uma média de 119 unidades e mais 10 lojas em vários imóveis –
destacando-se do ponto de vista quantitativo no cenário nacional (Heloui, 2008).
Outra cidade que também se destaca
com a experiência isolada de um programa
municipal para a reabilitação do seu centro é São Paulo, com o Programa Morar
no Centro, que promoveu a reforma de alguns edifícios por meio do PAR. Esse programa foi implementado durante a gestão
de Marta Suplicy, entre 2000 e 2003, e se
tratava de um conjunto integrado de intervenções municipais coordenadas pela Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano (SEHAB). Além do PAR, atuou através
de uma série de programas habitacionais,
utilizando-se de recursos próprios, como o
Locação Social, o Bolsa Aluguel, a Moradia
Transitória e o Programa de intervenção em
cortiços. No entanto, esse programa municipal não teve sua continuidade assegurada
na gestão seguinte.
Além de São Luís, Rio de Janeiro e São
Paulo, outras cidades também apresentam
políticas ou planos locais de reabilitação em
áreas centrais, em que a habitação tem papel de destaque, e que, muitas vezes estão
associadas ao PAR. No entanto, essas ações,
junto às ações federais, são ainda muito incipientes, podendo-se afirmar que
A ausência de uma política nacional de
reabilitação e a fragmentação das articulações em torno do tema permitiu
apenas o aparecimento de um formato
voluntarioso de ação, sem que se alcançasse a consolidação de uma estrutura
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
de programa capaz de balizar uma
relação “contratual”, como normalmente requer um programa federal de
políticas públicas, entre as esferas do
governo – federal, estadual e municipal.
(Rolnik e Botler, 2004)
Em outras palavras, assiste-se a um
conjunto de ações pouco articuladas que,
de fato, não vêm alcançando o resultado
esperado de reabilitar as áreas centrais.
Nesse cenário, o PAR entra como um dos
programas habitacionais mais visados para
financiar o uso residencial na área central,
motivo pelo qual vamos tentar entendê-lo
um pouco melhor a partir de uma análise
baseada nos documentos (leis e normativos
da Caixa) que regem o seu funcionamento,
em informações obtidas junto à Caixa e levantamento de campo em alguns conjuntos
do PAR.
O programa de
arrendamento residencial –
a caracterização
O PAR e sua respectiva fonte de recursos, o Fundo de Arrendamento Residencial
(FAR),3 foram criados em 1999, durante o
segundo mandato do governo de Fernando
Henrique Cardoso (FHC) e assegurado pelo
governo Lula. Trata-se de um programa habitacional do governo federal que funciona
como um leasing, a priori, por um período
de 15 anos,4 com opção de compra ao final
do prazo contratado. Entretanto, recentemente, em maio de 2007, foi promulgada
uma lei que possibilita a transformação do
programa em um financiamento convencio-
nal depois de cinco anos de arrendamento.5
Não obstante, o principal objetivo do programa é:
Atender, sob a forma de arrendamento
residencial, à necessidade de moradia
da população de baixa renda, concentrada nas capitais e regiões metropolitanas definidas para o Programa e, nos
municípios com população urbana superior a 100 mil habitantes, com opção
de compra ao final do prazo contratado, por meio da aquisição de unidades
habitacionais a serem construídas, em
construção, concluídas ou em reforma e
recuperação de empreendimentos (normativo da Caixa-PAR, 2006, p. 7).6
Diante do tipo de acesso à moradia – o
arrendamento residencial ou leasing habitacional –, o PAR consiste em uma diferente
alternativa à casa própria: é uma política da
casa própria, sem a casa ser própria, pois
a Caixa é a proprietária fiduciária do imóvel durante o período do arrendamento. Na
verdade, esse programa foi uma forma de
financiamento encontrada pelo governo federal para tentar minimizar o problema da
inadimplência. Como o arrendatário não é o
proprietário da habitação, fica mais fácil para
a Caixa reaver o imóvel caso ele atrase duas
parcelas de qualquer uma das taxas de sua
responsabilidade (taxa de arrendamento ou
taxa condominial), pois o atraso de 60 dias
no pagamento fica definido como quebra
contratual. Salienta-se que o prazo máximo
de inadimplência estipulado pelo programa
vai de encontro à própria Lei do Inquilinato,
que permite até 90 dias de atraso.
Além da particularidade de se tratar de
um leasing, no conjunto de programas de
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
111
mariana fialho bonates
112
financiamento tradicionais da casa própria,
o PAR se diferencia dos demais programas
de habitação por vários motivos, sobretudo,
pelos operacionais, mas também pela sua
forma de produção no espaço urbano, atuando em duas frentes de ação no combate ao
problema habitacional no país. Assim, como
se observou na citação acima, o programa
atua, por um lado, na construção de novas
unidades unifamiliares ou multifamiliares,
em condomínios fechados ou loteamentos; e,
por outro lado, na recuperação ou na reforma de antigos edifícios, preferencialmente
localizados nas áreas centrais. Para ambas as
modalidades existem recomendações locacionais e tipológicas, normatizando o programa
de necessidades e a localização dos conjuntos. Por exemplo: conforme o Normativo da
Caixa-PAR (2006), o programa de necessidades básico é composto por dois quartos,
banheiro, sala e cozinha em 37m², exceto
nos projetos de reabilitação, em que as normas são mais flexíveis e específicas.7
O fato é que, seguindo a tradição das
políticas da casa própria de produção de
novas moradias, o PAR vem adotando mais
a primeira vertente em detrimento da reabilitação de antigas estruturas. Assim, de
modo geral, a produção através do PAR se
caracteriza, sobremaneira, pela construção
de novos conjuntos habitacionais semiverticalizados (até 4 ou 5 pavimentos, dependendo da região em que está inserido) e de
pequeno porte (aproximadamente 160 unidades, conforme recomendado pelo próprio
programa).
A princípio, seguindo as recomendações do normativo do programa, esses conjuntos foram preferencialmente implantados
em vazios urbanos localizados na malha da
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
cidade, em áreas dotadas de infraestrutura
e serviços,8 com o objetivo de evitar a sua
implantação em locais longínquos e sem infraestrutura, como normalmente ocorria
com o modelo empreendido pela política
do BNH. Todavia, muitas das características
acima assinaladas vêm se transformando,
sobretudo desde 2003, quando têm sido
produzidos conjuntos mais horizontalizados,
organizados na forma de loteamentos (sem
condomínios) e inseridos em áreas mais periféricas das cidades, provocando, inclusive,
a distorção da proposta inicial do programa
de implantar na malha urbana.9 Em suma,
a localização dos conjuntos do PAR era, em
essência, um dos principais diferenciais do
programa.
A preocupação de se produzir habitações no tecido urbano, em locais dotados
de infraestrutura, favorece o objetivo de
reabilitar as áreas centrais, uma vez que
são locais que apresentam tais características, além de uma série de outras qualidades
como a concentração de atividades comerciais, de serviços, transportes públicos, etc.
Em relação a isso, Amorim e Dufaux (2005)
afirmam que:
Em um momento de evidente redução
da renda familiar da classe média brasileira, a oferta de moradia econômica
nas áreas urbanas centrais pode atrair
aquela camada da população que deseja
reduzir seus gastos mensais, seja pela
diminuição do compromisso do orçamento familiar com a moradia (redução
do preço de aluguel, taxa condominial
e impostos municipais) e transporte,
ou para aqueles que buscam outro estilo de vida, no qual a relação com o
espaço público seja mais presente e a
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
proximidade com o centro de comércio
e de serviços desejável.
Outra característica de fundamental importância é o valor pré-fixado do valor máximo das unidades – em geral inferior ao valor
estabelecido no mercado imobiliário, pois é
basicamente o valor industrial da construção
do imóvel. Esse valor é, ainda, variável em
função do tipo de especificação dos materiais de construção – especificação “padrão”
ou especificação “mínima” – e da localização
no território brasileiro. Em suma, em 2007,
os valores variavam entre R$30.000,00 e
R$40.000,00; especificamente para requalificação de áreas centrais ou recuperação
de sítios históricos, o valor pode chegar até
R$40.000,00 para os estados de São Paulo
e Rio de Janeiro, e R$38.000,00 para os
demais estados (Portaria nº 493/2007).
Assim, buscou-se definir valores máximos para a aquisição dos imóveis a fim de
atender a um público-alvo com menor capacidade de pagamento. De modo semelhante, a taxa de arrendamento também é préfixada e mais barata, podendo corresponder
a 0,7% ou 0,5% do valor de aquisição do
imóvel (a depender do público-alvo, se PAR
1 o PAR 2, respectivamente),10 isento de
valorização imobiliária. O valor da taxa de
arrendamento é corrigido anualmente tendo-se por base apenas a correção anual da
Taxa de Referência (TR). Com esse índice,
o valor da taxa de arrendamento variava na
faixa aproximada dos R$ 200,00, em 2008,
o que é, inclusive, muitas vezes, inferior a
uma taxa de aluguel com as mesmas condições de habitabilidade e de localização.
Enfi m, essas condições especiais, sobretudo em relação à operacionalização do
programa, como o fato de o imóvel ser de
propriedade fiduciária da Caixa, contribuem
na requalificação de imóveis degradados
nos centros urbanos para fins habitacionais, uma vez que o ramo da construção
civil continua privilegiando a construção de
novas moradias populares em terras mais
baratas, ou seja, mais periféricas. A relativa
baixa taxa de arrendamento dos imóveis é
também outro fator fundamental para estimular o uso residencial da população de
menores rendas no centro, já que aquelas
faixas de maiores rendimentos não têm interesse nessas áreas da cidade – exceto em
casos que passaram por um processo de
gentrificação social como ocorreu em Nova York, no Soho, por exemplo. Isso tudo
significa que para requalificar o centro com
moradia, é importante a forte intervenção e
o subsídio do Estado, como o PAR vem promovendo. As características quantitativas
e qualitativas dessa produção do PAR na
reabilitação das áreas centrais será melhor
desenvolvida a seguir. Os dados apresentados na próxima seção tiveram por base um
levantamento realizado em sites da internet
(preferencialmente os oficiais da Caixa e
das prefeituras) e publicações da Prefeitura
de São Paulo. Também foram utilizados dados obtidos por meio de pesquisa de campo na Prefeitura Municipal de João Pessoa
(PMJP), na Prefeitura Municipal de Natal
(PMN) e entrevista com César Ramos11 sobre o desenvolvimento do PAR no Brasil,
destacando-se, em particular, a questão da
reabilitação das áreas centrais.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
113
mariana fialho bonates
O programa de
arrendamento residencial –
a ação
114
Entre 1999 e meados de 2005, o programa
financiou a construção de 177.150 novas
moradias em 1.223 novos conjuntos habitacionais, sendo, nesse universo, uma pequena
parcela relativa à reabilitação de edifícios nas
áreas centrais. De acordo com dados fornecidos pela Caixa (Gerência em Natal), em
abril de 2008, complementados por Castro
(2006), em relação à reabilitação de áreas
centrais, foram financiadas 1.425 unidades
em 26 edifícios, localizados nas principais
capitais brasileiras – São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, etc. – e também em Pelotas, conforme identificado na
Tabela 1. Além dos empreendimentos discriminados, podem-se citar, ainda, aqueles que
estão em processo de avaliação ou licitação
como foi encontrado nas cidades de João
Pessoa e Natal. Salienta-se que, em muitos
casos, a reforma de edifícios pelo PAR está
associada a uma política local, seja do gover-
no estadual ou municipal, formando parcerias com o governo federal e visando uma
reabilitação urbana nos sítios históricos.
A partir desta tabela, é possível perceber que os edifícios localizados em São Paulo
e em Porto Alegre têm maiores proporções,
possibilitando a distribuição de um maior
número de unidades habitacionais, ao passo
que no Rio de Janeiro e em Salvador as edificações têm menor porte, tendo uma média
inferior de unidades por empreendimento.
São Luís, Pelotas, Belém e Recife, por sua
vez, possuem exemplos isolados na cidade.
Todavia, a principal constatação apontada pelos dados quantitativos é que a
atua ção do PAR na reabilitação de áreas
centrais vem se desenvolvendo ainda muito
lentamente, contemplando poucas cidades,
especialmente quando comparada com a
produção global desse programa. Segundo
César Ramos, alguns exemplos de reabilitação só foram possíveis mediante a formação
de parceiras, sobretudo com os governos
municipais e, no caso de São Paulo, especificamente com os movimentos sociais. Essas
parcerias foram importantes na medida em
Tabela 1 – Financiamentos concedidos de reabilitação habitacional12
Cidade
São Paulo
Rio de Janeiro
Salvador
Porto Alegre
São Luís
Pelotas
Belém
Recife
Total
Operações
contratadas
7
6
5
4
1
1
1
1
26
Nº de unidades
contratadas
709
70
41
309
16
140
66
56
1.425
Média de unidades
por edifício
101
11
8
77
16
140
66
56
54
Fonte: Levantamento realizado na Caixa (2008) e Castro (2006). Elaboração da autora.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
que o custo de reforma é ainda muito alto
ante o valor máximo estipulado para as unidades do PAR (até R$ 40.000,00).
Em São Luís, por exemplo, foi necessária a parceria entre os recursos do FAR e da
Lei Rouanet13 para viabilizar a reabilitação
de um imóvel que foi inaugurado em 2005,
conforme informações obtidas da Caixa
(2008). 14 Esse imóvel – um casarão com
três pavimentos – transformou-se em um
residencial de pequeno porte, contendo 16
unidades habitacionais (uh) com um quarto
apenas.
De modo semelhante, na capital baiana,
a atuação do PAR foi viabilizada com o auxílio da Lei Rouanet, por meio do programa
estadual RemeMorar15 e parceira da ONG
Moradia e Cidadania. Os cinco imóveis reabilitados (e inaugurados em 2005) eram do
tipo casarões – tombados pelo patrimônio
histórico – que apresentavam de um (térreo) a dois pavimentos, resultando em residenciais de pequeno porte, com unidades
de aproximadamente 40m², como o imóvel
da rua Deraldo Dias (15 uh); três imóveis
na rua Joaquim Távora (com 4 uh ou 12 uh
cada); e um na rua Ribeiro Santos, (6 uh)16
(Figuras 1, 2 e 3).
Essa tipologia de reabilitar casarões
em residenciais de pequeno porte também
é comum no Rio de Janeiro, cujos edifícios
reabilitados se caracterizam por poucos pavimentos. Segundo Castro (2006), os seis
imóveis reabilitados são: Residencial João
Homem Ladeira (5 uh), na Saúde; Residencial Laurinda (5 uh) e Residencial André Luiz
(5 uh), ambos na Rua do Livramento (Gamboa), Residencial Joaquim Silva (26 uh);
Residencial João Caetano (6 uh), na Rua do
Teatro; e Residencial Senador Pompeo (23
uh), sendo os três últimos localizados no
Centro.17 Destes, destaca-se o último, por
se tratar de um antigo cortiço, com cerca
de 120 anos e atualmente tombado pelo Patrimônio Cultural do Município (Figuras 4 e
5). Além disso, apresenta a particularidade
de conjugar o uso residencial com duas lojas, caracterizando-se como de uso misto.18
Em Belém, o PAR Justo Chermont
apresenta uma tipologia diferenciada daquela observada em São Luís, Salvador e Rio de
Janeiro. Caracteriza-se por um edifício de
11 pavimentos, totalizando 66 unidades habitacionais. Cada qual é composta por quarto, banheiro, sala, cozinha e área de serviço,
distribuídos em 39m².19
Na capital gaúcha, a tipologia dos quatro edifícios reabilitados foi parecida com
a da capital do Pará. Os imóveis são predominantemente verticais (acima de sete
pavimentos), resultando em residenciais
com maior número de unidades, como o
Edifício Sul América (78 uh); o Residencial Umbu (123 uh); o Edifício Bento Gonçalves e Charrua (80 uh); e o Residencial
Arachã (28 uh). 20 Anteriormente, alguns
desses edifícios foram residenciais, outros
foram hotéis. O Edifício Sul América, por
exemplo, cuja construção foi concluída em
1938, antes de ser reabilitado pelo PAR,
era um edifício residencial com 26 apartamentos para famílias ricas da cidade. Com
a reabilitação (2003) passou a comportar
unidades habitacionais com um dormitório
e áreas oscilando entre 22 e 37m².21 Já o
Edifício Bento Gonçalves e Charrua, cujas
reabilitações foram inauguradas em 2004,
contém apartamentos com dois quartos e
áreas maiores, variando entre 42,62m² e
55,91m². 22 De modo mais diversificado,
o Residencial Umbu (2004), antigo hotel,
apresenta tipos diferentes, variando entre
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
115
mariana fialho bonates
Figura 1 – Rua Deraldo Dias
Fonte: Castro, 2006
116
Figura 2 – Joaquim Távora nº 11
Figura 3 – Ribeiro Santos nº 56
Fonte: Castro, 2006.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
Figura 4 – Senador Pompeo
situação anterior
Figura 5 – Senador Pompeo
situação reabilitado
Fonte: http://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm. Acesso em 28/1/2009.
117
Figura 6 – Residencual Umbu, na cidade de Porto Alegre–RS
Fonte: Castro, 2006.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
mariana fialho bonates
o kitchenette (32 unidades), um ou dois
dormitórios (45 e 46 unidades, respectivamente). Como consequência, a área média
das habitações também varia de 34,56m² a
54,06m²23 (Figura 6).
Foi na capital paulista, contudo, que os
projetos de reabilitação das áreas centrais
por meio do PAR se desenvolveram mais
enfaticamente (muitos em consonância com
o programa do governo municipal – Morar
no Centro). Para viabilizar a produção de
moradias pelo programa no centro, fez-se
necessário o estabelecimento de algumas
parceiras com a SEHAB, além da colaboração dos movimentos sociais:
Para conseguir atender à população de
mais baixa renda, a SEHAB negociou
com o governo federal recursos específicos para subsídios ao PAR, além de ter
118
proposto diversos incentivos fiscais ao
programa. Vale notar que, em alguns
casos, a SEHAB subsidia parcial ou totalmente o custo de compra do imóvel,
para que o custo final da reabilitação
seja mais acessível à população de baixa
renda. Além disso, para adequar o PAR
à realidade específica da área central de
São Paulo, a SEHAB elaborou, em colaboração com os movimentos sociais
do centro, um conjunto de propostas
para melhorar seu desempenho quanto
às exigências de qualidade, de custos
e de prazos. (Prefeitura de São Paulo,
2004a, p. 31)
Segundo Maleronka (2005), até 2003,
foram reformadas pelo programa 464 unidades em cinco edifícios: Fernão Sales (54
uh), Olga Benário Prestes (84 uh), Rizkallah
Jorge (167 uh), Maria Paula (75 uh) e Edifício Labor (84 uh). Além destes, destacam-se
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
o antigo Hotel São Paulo (152 uh) e outro
imóvel com 93 uh (Joaquim Carlos), conforme listado por Castro (2006).
O primeiro edifício reabilitado na capital paulista – e, inclusive, no país – foi o
Fernão Sales (Maleronka, 2005). No entanto, segundo Maleronka (ibid., p. 77),
merece especial atenção o edifício Rizkallah
Jorge, de 17 pavimentos, que é “propagandeado afora como o grande exemplo de
PAR-Reforma bem-sucedido. Este edifício
foi construído na década de 1940 e passou
por usos diversos antes de ser recuperado
pelo PAR. Com a recuperação, o edifício
passou a abrigar 167 novas unidades do
tipo estúdio, contendo sala/dormitório, cozinha americana com área de serviço integrada e banheiro, distribuídos em uma área
privativa média de 30m². Salienta-se, ainda, a recuperação da fachada, tombada pelo
Patrimônio Histórico (Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico), bem
como o piso e as paredes em mármore carrara do saguão, e os pisos de taco, os quais,
em conjunto, conferiram uma aparência de
melhor padrão construtivo, como pode ser
observado nas Figuras 7 e 8. Por fim, esse
edifício foi entregue em 2003 para famílias
indicadas pelo Movimento para a Moradia
no Centro (MMC).24
No final de 2006, foi entregue o antigo Hotel São Paulo, também construído na década de 1940. Esse edifício, que
foi um hotel, passou a abrigar em seus 21
pavimentos, famílias ligadas ao Movimento do Fórum dos Cortiços (Moradia Popular no Lugar de Hotel) (Figura 9). As suas
unidades habitacionais também apresentam
tipos diferentes, 27 apartamentos do tipo
kitchenette, 103 com um quarto e 22 com
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
Figura 7 - Fachada frontal do edifício
Rizkallah Jorge
Figura 8 – Apartamento do tipo estúdio
do Rizkallah Jorge
Fonte: http://cury.net/par02.htm (acesso em: 11-4-2008).
Figura 9 – Antigo “Hotel São Paulo”, na capital paulistana
119
Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo (2004c)
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
mariana fialho bonates
Figura 10 – Conjunto de casas
da Rua São Suassuna
120
Figura 11 – Casarão 27
da Rua João Suassuna
Fonte: Acervo da autora, 2006.
Figura 12 – Planta baixa do 2º pavimento da proposta de reuso para o casarão 27
Fonte: Levantamento na PMJP, 2006.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
Figura 13 – Residencial Tambiá,
em João Pessoa
Figura 14 – Residencial Ribeira I,
em Natal
Fonte: Acervo da autora, 2005.
Fonte: Acervo da autora, 2006.
dois quartos, com áreas variando entre
25,70 e 49,81m².25
Por fim, segundo Castro (2006), outras cidades vêm sendo alvo de estudos de
viabilidade para reabilitação de edifícios,
destacando-se: Fortaleza, Natal, João Pessoa, Maceió, Aracaju, Belo Horizonte, Vitória, Cuiabá, Teresina e Olinda.
João Pessoa, até junho de 2007,
apresentava oito imóveis em processo de
licitação, embora a tentativa de reabilitar
edifícios pelo PAR já vem sendo feita desde 2004 (Figuras 10 a 12). Segundo o secretário de Habitação, João Azevedo, 26 o
Ministério Público promoveu uma ação contra os proprietários dos casarões para que
estes recuperassem seus imóveis que estavam abandonados e em estado avançado de
degradação. Como os imóveis eram detentores de elevados débitos com a prefeitura –
referentes ao IPTU ou de outra natureza –,
os proprietários negociaram a retirada das
dívidas em troca da doação dos imóveis ao
governo municipal.
Após essa etapa, previu-se a reabilitação e a reutilização das casas por meio
dos recursos do FAR, para serem destina-
das preferencialmente ao uso habitacional
dos funcionários da própria prefeitura.27 O
projeto de reabilitação prevê cinco unidades
habitacionais em cada casarão (total de 80
uh), e estas são compostas por dois quatros
em uma área oscilando entre 40m² e 60m²,
como pode ser visto na Figura 12.
Importante mencionar que, em 2001,
em consonância com as características locacionais do programa, o PAR ocupou um vazio urbano próximo ao centro da cidade de
João Pessoa, com a construção do Residencial Tambiá. De modo semelhante, seguindo os parâmetros do programa de implantar nos vazios urbanos, inseridos na malha
urbana dotada de infraestrutura, na capital
do Rio Grande do Norte, em 2001, o PAR
implantou no bairro contíguo ao seu centro
histórico, Rocas, o Residencial Ribeira I e o
Residencial Ribeira II (Figuras 13 e 14).
Todavia, a tentativa de reutilização de
antigos edifícios no centro da capital potiguar vem encontrando sérias dificuldades
que impedem a concretização do financiamento. As principais dificuldades são: 1) falta de imóveis adequados ao uso habitacional
e, ao mesmo tempo, disponíveis para venda
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
121
mariana fialho bonates
Figura 15 – Antigo Hotel Central e possível edifício
a ser financiado pelo PAR, na cidade do Natal-RN
122
Fonte: Prefeitura Municipal do Natal, 2007.
ou para doação; 2) a compatibilização entre o custo máximo preestabelecido para
a reabilitação e a quantidade de unidades
habitacionais em cada empreendimento; e
3) empresas construtoras interessadas em
participar do processo. Estas não demonstram qualquer interesse nesse tipo de projeto, por se tratar de uma reforma com poucas unidades e que demandaria um investimento de maior risco, uma vez que o valor
de avaliação da Caixa é baixo (pois é valor
de mercado e, geralmente, esses centros
encontram-se degradados), e o PAR não
permite suplementação de recursos, caso o
orçamento previsto inicialmente não corresponda à realidade da obra executada.28
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
Apesar disso, a Prefeitura Municipal do
Natal instituiu em 2004 uma lei criando o
programa ReHabitar (Lei nº 5567, de 2 de
julho de 2004), como forma de estimular
preponderantemente a produção de moradias para a população de baixa renda nos
bairros históricos da Ribeira e da Cidade
Alta. Em consonância com essa “política”
municipal, a prefeitura comprou e desapropriou, em 2005, um edifício na Ribeira, – o
antigo Hotel Central –, desenvolvendo, em
seguida, um projeto com 8 apartamentos
(alguns com um quarto, outros com dois)
para serem financiados pelo PAR (Figura
15). 29 Com essa mesma finalidade, também desenvolveu um projeto de reuso
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
habitacional para uma outra edificação que
foi doada pela GRPU30 e localizada no mesmo bairro – o edifício Valparaíso – prevendo seis unidades habitacionais, com um (2
uh) ou dois quartos (4 uh).
Enfim, depois de um período de aproximadamente dois anos, muitos projetos
de reforma elaborados e revisados, e muita negociação com construtoras e a agência financeira, em junho de 2007, ambas
as propostas de reuso estavam em fase de
avaliação na Caixa. Porém, no final daquele
ano, as duas construtoras haviam desistido
e iniciou-se, novamente, a busca por novos
interessados.
Esses dois últimos casos – João Pessoa
e Natal – exemplificam algumas dificuldades
enfrentadas pelas cidades brasileiras para
a reabilitação de suas estruturas nas áreas
centrais, motivo pelo qual ainda são poucas
as intervenções do PAR no cenário nacional.
Conclusão
Em particular para cidades de médio e grande porte, a reabilitação das áreas centrais é
hoje um item de destaque nas agendas do
poder público, influenciadas por uma filosofia típica do planejamento estratégico. A
partir da década de 1990, a esfera municipal, com a especial ajuda do governo federal, vem ampliando a sua atuação através
da elaboração de planos de reabilitação,
perímetros de reabilitação integrada (PRI),
projetos urbanos predominantemente para
espaços públicos e reuso de antigas edificações. No entanto, o que se verifica é que
a reabilitação de antigas estruturas é tratada apenas como “obras complementares”,
integrantes de um Grande Projeto de Desenvolvimento Urbano (GPDU),31 que causa
impacto na área central. A reforma da Estação da Luz e seu entorno é um dos mais
significativos exemplos encontrados em São
Paulo; a obra do Largo do Teatro na capital potiguar e outras ações mostram que os
projetos urbanos vêm sendo executados.
Por outro lado, a reabilitação de edifícios para uso residencial encontra dificuldades para se viabilizar. Alguns exemplos
citados ao longo deste trabalho até o final
de 2008 não haviam sido concretizados
ainda. Primeiro: as ações do PAR voltadas para habitação nas áreas centrais são
poucas. No entanto, pode-se dizer que
se trata de uma ação inovadora, uma vez
que procura atender concomitantemente ao problema do déficit habitacional em
contraposição aos domicílios desocupados,
além de se preocupar com a reabilitação das
áreas centrais, que são particularmente caracterizadas como ambientes degradados e
abandonados, apesar dos inegáveis valores
culturais que oferecem para a cidade. Ademais, o PAR apresenta uma formatação que
facilita o acesso à moradia da população de
menores rendas a um menor custo. Talvez
seja pelo próprio modelo operacional diferenciado – o arrendamento residencial –,
que possibilita ao PAR mais facilidade para atuar em relação aos demais programas
habitacionais do governo federal nas áreas
centrais, todos, porventura, seguindo o
modelo tradicional da política da casa própria. Sendo assim, a medida de transformação do arrendamento em financiamento (Lei
nº 11.474, de 15 de maio de 2007) pode
ser considerada um problema futuro para
esse tipo de intervenção, uma vez que fatalmente surgirá uma série de dificuldades
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
123
mariana fialho bonates
124
de ordem administrativa (gestão) e condominial do imóvel. Amorim e Dufaux (2007,
p. 14) citam, ainda, como problemas para
a atuação do PAR nas áreas centrais a liberação de recursos para edificações de
uso misto, já que o programa se destina ao
uso estritamente residencial – apesar disso, o Residencial Senador Pompeo, no Rio
de Janeiro foi excepcionalmente financiado
mesmo tendo o uso misto. Também se pode dizer que é necessário haver uma maior
promoção do programa no sentido de viabilizar a reforma das unidades, incluindo a
criação de novas parcerias com governos ou
outras instituições interessadas em incentivar o desenvolvimento do PAR, bem como
mais subsídios.
Outras dificuldades enfrentadas na
reabilitação de antigas estruturas nas áreas
centrais passam, em especial, pela questão
fundiária, uma vez que a maioria dos imóveis é de propriedade privada, outros são
objetos de espólio, etc. Há também a indisponibilidade de edificações adequadas para
se transformar em uso habitacional multifamiliar e o desinteresse dos empresários
do ramo da construção civil, devido ao alto
custo de se reformar antigas estruturas,
ante a capacidade de pagamento da população de mais baixa renda e do valor preestabelecido pelo PAR (até R$40.000,00,
em 2007). Maleronka (2005, p. 69) indica, ainda, a dificuldade do tempo de viabilização das obras e de que “são comuns
os casos de terrenos apresentados à CEF
cuja escritura não confere com o real ou
de proprietários que desistem do negócio
no decorrer do processo por julgar que o
valor avaliado de seu imóvel não é justo”.
Porém, possivelmente, a questão mais importante talvez seja a falta de uma política e
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
recursos específicos para a reabilitação das
áreas centrais no rol das políticas urbanas
do país. O que se verifica é a alocação de esforços, recursos e de programas de outras
políticas para a reabilitação.
Apesar desses entraves, os poucos
imóveis reabilitados no Brasil servem como
exemplo do que se deve vislumbrar como
política pública urbana. Muitos foram os
ganhos com cada reabilitação, dos quais se
podem citar: 1) a restauração de imóveis
tombados pelo patrimônio histórico, 2) a
ocupação de estruturas abandonas, garantindo sua função social; 3) enfrentamento
do déficit habitacional; 4) diversidade de
soluções arquitetônicas, 5) requalifi cação
de zonas degradadas, em oposição à dispersão centrífuga pela expansão das fronteiras urbanas, etc. Quanto à tipologia
reabilitada, percebeu-se uma variedade de
tipos edificados, desde sobrados, casarões,
até edifícios de vários pavimentos. A variedade também está presente na organização
espacial das novas moradias do tipo kitchenette , com um ou dois dormitórios, além
de variadas áreas privativas, embora tenham predominado as unidades de menores dimensões, em função de necessidade
de “comportarem o número máximo possível de unidades habitacionais ao invés do
número ideal” (Maleronka, 2005, p. 72),
chegando, inclusive a produzir soluções
projetos inadequados.
Verificam-se, assim, aspectos positivos
com a reabilitação dos edifícios nos centros
das cidades para uso residencial, a despeito
das dificuldades mencionadas e da pequena representatividade numérica das ações.
Sendo assim, a reabilitação é uma forma de
intervenção que pode vir a crescer e trazer benefícios para a dinâmica das áreas
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
centrais e a preservação do sítio histórico,
através da provisão de habitação, unindo
os objetivos econômicos do planejamento
estratégico com os sociais. No entanto, para que isso aconteça é preciso rever alguns
aspectos característicos do PAR, como já
mencionado, para que ele continue atuando
nessa frente de ação.
Mais do que ilustrar casos do PAR, em
especial, este artigo conclui com uma reflexão direcionada para a política habitacional
brasileira. Além de programas habitacionais
e recursos, no caso da reabilitação das áreas
centrais, é necessário pensar em uma política de locação social (como o programa municipal de Locação Social de São Paulo, mas
que não logrou o sucesso esperado), uma
vez que a predominância das ações estatais
sempre esteve voltada para a casa própria,
até mesmo o PAR. Reabilitar o centro e enfrentar o problema habitacional são tarefas
muito árduas, em que são necessárias somas vultosas de capital em grandes intervenções governamentais para a aquisição
dos imóveis, a reforma e a construção das
unidades habitacionais até a posterior manutenção e conservação dos imóveis. É o
caso das vilas militares, que são eficientemente produzidas e geridas pelo poder público, por meio de uma política de locação
(moradias funcionais), motivo pelo qual são
bem preservadas e conservadas no contexto
atual das cidades, destacando-se como pontos de cristalização no cenário urbano. Outros exemplos de política de locação social
bem-sucedidos são também encontrados
em países europeus, como Inglaterra, França, Suécia, entre outros.
125
Mariana Fialho Bonates
Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal da Paraíba. Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi chefe do Setor de Patrimônio
Histórico, Arquitetônico e Arqueológico da Prefeitura Municipal do Natal entre 2007 e 2008.
Professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(Rio Grande do Norte, Brasil).
[email protected]
Notas
(*) Trabalho previamente apresentado no Arquimemória 3, em Salvador-BA, no dia 9 de junho de
2008. Agradecimento ao Prof. Dr. Márcio Moraes Valença pela leitura inicial e pertinentes comentários.
(1) Sobre planejamento estratégico, ver Vainer (2000).
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
mariana fialho bonates
(2) Quanto à reabilitação de edifícios, ela pode ser entendida como “toda a série de ações empreendidas com vista à recuperação, à beneficiação de um edifício tornando-o apto para o seu uso
atual. Seu objetivo consiste em resolver as deficiências físicas e as anomalias construtivas, ambientais e funcionais acumuladas ao longo dos anos, procurando ao mesmo tempo uma modernização e uma beneficiação geral do imóvel sobre o qual incide – atualizando as suas instalações, equipamentos e a organização dos espaços existentes, melhorando o seu desempenho
funcional e tornando esses edifícios aptos para a sua mais completa e atualizada reutilização”
(Cabrita, et al. apud Moreira, 2008).
(3) Fundo que alimenta o programa, composto com recursos onerosos (como o FGTS) e não-onerosos.
(4) Para maiores detalhes a respeito das características do PAR, ver Bonates (2007).
(5) A Lei nº 11.474, de 15 de maio de 2007, possibilita a desimobilização das unidades da Caixa em
favor da opção dos arrendatários, antes do fim do contrato.
(6) Embora o objetivo classifique o público-alvo como “baixa renda”, o programa atende, na verdade,
aquele segmento da sociedade mais conhecido como de renda média baixa.
(7) De acordo com o manual de especificações técnicas mínimas, uma proposta de regionalização
elaborada para manter um mínimo de qualidade quanto à construção dos conjuntos, a área mínima pode ser até 33m² para as unidades construídas na região Sul do país.
(8) Para maiores detalhes a respeito das características arquitetônicas e urbanísticas da produção do
PAR, ver Bonates (2007).
(9) Ver Bonates (2008).
126
(10) Inicialmente, o programa foi destinado a atender a população com renda variando entre 3 e 6
salários mínimos, podendo chegar até 8. Em 2007, a faixa de renda atendida passou a ser, em
geral, até R$1.800,00 (aproximadamente 4,7 s.m., considerando-se o salário mínimo da época –
R$380,00); até R$2.100,00 (5,52 s.m.) nos casos de reforma de edifícios em centros históricos;
e, até R$2.800,00 (7,36 s.m.) nos casos de profissionais da segurança pública (Portaria nº 493,
2007). O PAR 1 atende a uma população com faixa de renda variando entre 3 e 8 salários mínimos, enquanto o PAR 2 atende a uma população com rendimentos de até 4 salários mínimos,
aproximadamente.
(11) Entrevista semiestruturada realizada com César Ramos, gerente de Projetos do Ministério das
Cidades, no I Seminário Internacional das Cooperativas Habitacionais, realizado no Hotel Blue
Tree Park, em Natal-RN, entre os dias 28-2-2007 e 1-3-2007. A entrevista ocorreu no segundo
dia do evento.
(12) De acordo com Castro (2006), há um imóvel em Recife, porém não foi identificado na Caixa a sua
forma de financiamento.
(13) Lei federal de incentivo à cultura.
(14) Informações obtidas de Elisabeth Silva, arquiteta da GIDUR-RN, no dia 9-4-2008.
(15) O Programa RemeMorar é executado pelo governo do Estado da Bahia através da Companhia de
Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia, Conder/Sedur.
(16) Mais informações disponível em:<http://www.projetorememorar.com.br/index.html> e <http://
www.conder.ba.gov.br/webnews/news/noticia.asp?NewsID=705>. Acesso em: 30-1-2009. Castro (2006) também foi uma fonte utilizada.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
(17) Esses dados foram também confrontando com os dados quantitativos fornecidos pela Caixa em
2005 (GIDUR-PB).
(18) Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/habitat/novas_alt.htm> e <http://www.rio.rj.gov.br/
habitat/morcentro.htm>. Acesso em: 11-4-08.
(19) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=6304253&tipo_noticia=13>. Acesso em: 11-4-08.
(20) Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/demhab/default.php?reg=2&p_secao=80>.
Acesso em: 11-04-08.
(21) Disponível em: <https://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=2401272&tipo_noticia=0>. Acesso em: 11-04-08.
(22) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=4802021&tipo_noticia=0>. Acesso em:11-04-08.
(23) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=4901935&tipo_noticia=0>. Acesso em: 11-06-2007.
(24) Disponível em: <http://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=1701102&tipo_noticia=0> e <http://cury.net/par02.htm> Acesso em: 11-04-08.
(25) Disponível em: < https://www1.caixa.gov.br/imprensa/imprensa_release.
asp?codigo=6405349&tipo_noticia=>. Acesso em: 11-04-08.
(26) Entrevista realizada no dia 24 de abril de 2006.
(27) Durante a realização da entrevista com o secretário de Habitação, João Azevedo, no dia 24 de
abril de 2006, o prefeito Ricardo Coutinho entrou na sala em que ocorria a entrevista e expressou tal vontade.
(28) No Recife, também foi constatado tal desinteresse, segundo Amorim e Dufaux (2005).
(29) Podemos citar, ainda, outras ações da prefeitura em consonância com a reabilitação das áreas
centrais, como a Lei de Operação Urbana de 1997, revalidada em 2007 por mais seis anos.
(30) Gerência Regional do Patrimônio da União.
(31) Em relação a esse tema, ver Sanchez, et al. (2004).
Referências
AMORIM, L. e DUFAUX, F. (2005). Lições das margens do Rio São Lourenço: aprendendo com a experiência de requalificação urbana de Montreal, Canadá. Arquitextos, texto 067, dez., 2005.
Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq067/arq067_03.asp>. Acesso em:
5/9/2007.
BONATES, M. F. (2007). Ideologia da casa própria... sem casa própria. O Programa de Arrendamento
Residencial na cidade de João Pessoa-PB. Natal-RN: UFRN. Dissertação. Centro de Tecnologia,
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
127
mariana fialho bonates
BONATES, M. F. (2008). O Programa de Arrendamento Residencial – PAR: acesso diferenciado à moradia e à cidade. Revista Risco, n. 7, pp. 147-164, São Carlos.
BRASIL, MINISTÉRIO DAS CIDADES, SECRETARIA NACIONAL DE PROGRAMAS URBANOS. (2005). In.
ROLNIK, R. e BALBIM, R. (coords.). Reabilitação de centros urbanos. Brasília, Ministério das Cidades.
CASTRO, T. (2006). Financiamentos habitacionais em áreas centrais. Resultados e perspectivas.
LabHab/USP – Curso de Capacitação – Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais,
maio 2006. Disponível em: < www.cidades.gov.br/.../textos/apresentacoes/Tania_Castro.pdf/
view>. Acesso em: 12-4-08.
DEL RIO, V. (2000). Em busca do tempo perdido. O renascimento dos centros urbanos. Arquitextos, texto especial 028, nov., 2000. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/
esp028.asp>. Acesso em: 4/9/2007.
________ (2001). Voltando às origens. A revitalização das áreas portuárias nos centros urbanos. Arquitextos, texto especial 091, ago., 2001. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/
arq000/esp091.asp. Acesso em: 25-8-2008.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO; CENTRO DE ESTATÍSTICA E INFORMAÇÕES. (2005). Déficit habitacional
no Brasil. Belo Horizonte.
GONÇALVES, D. S. (2006). Moro em edifício histórico, e agora? Avaliação pós-ocupação de habitações multifamiliares no centro histórico de São Luís-MA. Natal-RN. Dissertação de Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo). Centro de Tecnologia, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
128
HELOUI, A. N. M. (2008). A habitação na preservação do patrimônio arquitetônico e cultural do Rio
de Janeiro. Anais do Encontro Nacional de Arquitetos – Arquimemória 3 – sobre preservação do
patrimônio edificado. Salvador.
MALERONKA, C. (2005). PAR-Reforma: quem se habilita? A viabilização de empreendimentos habitacionais em São Paulo através do Programa de Arrendamento Residencial - modalidade reforma:
1999-2003. São Paulo. Dissertação de Mestrado em Habitação do IPT.
MORADIA POPULAR NO LUGAR DE HOTEL. (2007). O Estado de S. Paulo, 25-2-2007.
MOREIRA, A. (2008). Turismo e arquitetura: a produção do atrativo via singularidade/notoriedade do
lugar. Arquitextos, texto especial 460, fev., 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/
arquitextos/arq000/esp460.asp>. Acesso em: 15/03/08.
NORMATIVO DA CAIXA. (2006). Normativo da Caixa sobre o Programa de Arrendamento Residencial.
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. (2004a). Balanço qualitativo de gestão 2001-2004. São Paulo.
________ (2004b). Relatório de gestão 2001-2004. São Paulo, Graphis Studio.
________ (2004c). Programa Morar no Centro. São Paulo.
ROLNIK, R. e BOTLER, M. (2004). Por uma política de reabilitação de centros urbanos. Revista Óculum,
São Paulo.
SÁNCHEZ, F. et al. (2004). Produção de Sentido e Produção do Espaço: convergências discursivas nos
grandes projetos urbanos. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, nº 107, pp. 39-56.
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
política de habitação nas áreas centrais: retórica versus prática
SILVA, H. M. B. (2006). “Apresentação”. In: BIDOU-ZACHARIASEN, C. (coord.). De volta à cidade. Dos
processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dos centros urbanos. Trad. Helena Menna Barreto Silva. São Paulo, Annablume, pp. 7-19.
VAINER, C. (2000). “Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano”. In: ARANTES, O.; VAINER, C. e MARICATO, E. (orgs.). A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis, RJ, Vozes.
VARGAS, H. C. e CASTILHO, A. L. H. de (orgs.). (2006). Intervenções em centros urbanos: objetivos,
estratégias e resultados. Barueri, SP, Manole.
VASCONCELLOS, L. M. de e MELLO, M. C. F. de (2006). “Re: atrás de, depois de...” In: VARGAS, H. C. e
CASTILHO, A. L. H. de (orgs.). Intervenções em centros urbanos: objetivos, estratégias e resultados. Barueri, SP, Manole.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
129
cadernos metrópole 21
pp. 105-129
10 sem. 2009
Espaços públicos: novas
sociabilidades, novos controles*
Luciana Teixeira de Andrade
Juliana Gonzaga Jayme
Rachel de Castro Almeida
Resumo
A bibliografia que trata das mudanças nos espaços públicos das grandes cidades aponta para
o seu declínio e para a caracterização da contemporaneidade como dominada por um individualismo exacerbado que prioriza a vida entre
iguais em espaços vigiados e privatizados ou
nos chamados espaços semipúblicos, como os
shopping centers. No entanto, um olhar mais
atento sobre a cidade pode contrariar essas
teorias. Este artigo reflete sobre essa discussão
a partir de uma pesquisa que abordou as formas de sociabilidade em algumas praças de Belo
Horizonte, constatando que há transformações
significativas na forma de interagir nos espaços
públicos das cidades, por exemplo, uma busca
cada vez maior pela convivência entre iguais – o
que revela que a segregação socioespacial que
se observa na cidade é reproduzida nos seus
espaços públicos. Apesar dessas mudanças, porém, percebeu-se que esses espaços ainda possuem grande vitalidade.
Abstract
The bibliography that deals with changes
in the public spaces of great cities points to
their decline and to the characterization of
contemporaneity as dominated by a great
individualism that prioritizes life among equals
in watched and privatized spaces or in spaces
known as semi-public, such as shopping malls.
However, a closer look at the city might
contradict these theories. This article reflects
on this discussion, starting from a survey
that approached the sociability forms in some
squares in the city of Belo Horizonte, showing
that there are significant transformations of
the way of interacting in the public spaces of
cities; for instance, an increasing search for
conviviality among equals – which reveals that
the social-spatial segregation that is observed
in the city is reproduced in its public spaces.
Despite these changes, however, it was
observed that these spaces still have great
vitality.
Palavras-chave: espaços públicos; cidades;
praças; sociabilidade; segregação socioespacial.
Keywords: public spaces; cities; squares;
sociability; social-spatial segregation.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
132
A literatura que trata das recentes mudanças nos espaços públicos das grandes
cidades aponta para várias transformações,
que incluem desde os casos extremos de privatização de ruas e praças, como ocorre nos
condomínios fechados (Caldeira, 2000; Andrade, 2003) e nas favelas e bairros dominados pelo tráfico de drogas (Souza, 2000),
bem como o uso de gradis no perímetro
de praça como estratégia para a vedação e
possibilidade de cerceamento desses espaços
(Serpa, 2003) até uma retração do convívio
nos principais espaços públicos da cidade em
troca da convivência em espaços semipúblicos, como os shopping centers. Essas mudanças têm gerado diversas interpretações.
Uma delas, talvez a mais difundida, detecta
o declínio dos espaços públicos e o domínio
do tempo presente por um individualismo
exacerbado que prioriza a vida entre iguais
em espaços vigiados e privatizados (Sennett,
1988; Davis, 1993; Augé, 1994; Serpa,
2003 e 2007).
Algumas pesquisas empíricas sobre a
convivência nos espaços públicos das grandes cidades, porém, revelam realidades mais
complexas.1 E, ainda que as formas de usufruir e interagir nos espaços públicos tenham
sofrido significativas alterações – em grande
parte decorrentes de um generalizado sentimento de insegurança –, é possível afirmar
que alguns espaços públicos mantêm grande
vitalidade.
A partir de uma pesquisa em praças de
Belo Horizonte, percebeu-se uma mudança nas formas de sociabilidade nos espaços
públicos, motivada principalmente por um
forte sentimento de insegurança e uma alteração na sociabilidade cotidiana decorrente
dos modos de vida urbana contemporâneos.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
Além disso, a apropriação desses espaços
difere conforme os grupos sociais. Os estratos mais altos optaram pela vigilância
constante dos espaços públicos próximos às
suas residências, por meio da contratação
de segurança privada e de pressão sobre o
executivo municipal para a tomada de medidas destinadas a dificultar a presença dos
mais pobres e a desvalorização imobiliária
do local. Também adotaram comportamentos mais vigilantes nos espaços públicos e
privilegiaram os semipúblicos. Os grupos
de menor poder aquisitivo continuam frequentando os espaços públicos tradicionais,
como os do centro da cidade, e os espaços
próximos às suas residências, em geral mal
cuidados pelo poder público e abandonados
até mesmo pela polícia, fato que muitas vezes os transforma em ponto de consumo
e tráfico de drogas, especialmente à noite.
Durante o dia, continuam a abrigar uma sociabilidade típica dos bairros populares, como o encontro entre vizinhos, sejam jovens,
crianças ou adultos.
Este artigo focaliza os espaços públicos, mais do que a esfera pública, entendida
como espaço de representação. É comum
que esses termos apareçam como intercambiáveis, mas a distinção é necessária para os
objetivos deste trabalho. Interessa aqui o
espaço público como espaço físico da cidade
(e estamos tratando aqui especificamente de
praças) em que ocorrem interações de um
determinado tipo, diferente das interações
que têm lugar nos espaços privados. Rogério Proença Leite, por exemplo, diferencia
espaço urbano de espaço público, afirmando, com Habermas e Arendt, que o espaço
urbano só se torna público quando é investido de significação.
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
Quando as ações atribuem sentidos de
lugar e pertencimento a certos espaços urbanos, e, de outro modo, essas
espacialidades incidem igualmente
na construção de sentidos para as
ações, os espaços urbanos podem se
constituir como espaços públicos: locais onde as diferenças se publicizam
e se confrontam politicamente (Leite,
2002, p. 116).
Assim, o espaço público vai além da rua,
porque só se torna público a partir das
ações que dão sentido a determinados espaços e também são influenciadas por eles.
A reflexão feita aqui, então, não se volta
para a dimensão da esfera pública como
“espaço” – não necessariamente físico – de
expressão da vida pública, próprio de uma
sociedade democrática, como as câmaras e
assembléias, os conselhos, as associações
e os movimentos populares. Embora essa
distinção preliminar seja importante, cabe
registrar que tais dimensões não são excludentes, até porque o espaço público mantém suas qualidades de esfera pública. Mas
trata-se aqui de priorizar a investigação dos
tipos de sociabilidade e de controle existentes nos espaços públicos da cidade, onde se
desenrola a vida cotidiana de seus cidadãos.
A vida pública e a intimidade não podem ser pensadas de forma estática, já que
mudam consoante o contexto. De acordo
com Sennett (1998), os domínios público e
privado devem ser vistos como fenômenos
evolutivos, na medida em que modificam
com o tempo. Assim, vida pública e intimidade não devem ser vistas necessariamente como contraditórias, mas como complementares e, além disso, como aponta Matta
(1997, p. 55), tal oposição também não é
absoluta, especialmente no Brasil, antes, deveria ser pensada dinâmica e relativamente.
Em suas palavras:
[...] na gramaticidade dos espaços brasileiros, rua e casa se reproduzem mutuamente, posto que há espaços na rua
que podem ser fechados ou apropriados por um grupo, categoria social ou
pessoas, tornando-se sua “casa” ou seu
“ponto”. (Ibid.)
Para as Ciências Sociais, os espaços públicos
interessam como lugares que propiciam certo tipo de interação em princípio diferente
das interações observadas nos espaços privados.2 Neles se espera um tipo específico
de interação e uma disposição a se submeter a determinadas situações sociais, como
expor-se a diferentes pessoas (uma vez que
se trata de um espaço aberto a todos) e a
certas convenções, como respeitar o direito
do outro ao uso desse mesmo espaço. Nos
espaços públicos, as diferenças sociais e as
hierarquias são temporárias e relativamente suspensas, porque ali todos têm direitos
iguais no que se refere ao uso e à apropriação do espaço.
Enfim, os espaços públicos, como compreendidos pelos cientistas sociais, são lugares de convivência que expressam estilos
de vida (Giddens, 1997), relações de poder
(Lofland, 1985, Hansen, 2002) e formas
de apropriação por distintos grupos sociais,
sendo, portanto, lugares segmentados e
identitários. São ainda lugares representativos da vida e da história das cidades, lugares
simbólicos, característica essa mais explícita
nos espaços das áreas centrais.
O que melhor define esses espaços é a
sua natureza de abertos a todos. Definição
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
133
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
134
típico-ideal no sentido weberiano, uma vez
que os espaços das cidades contemporâneas
possibilitam várias situações intermediárias,
como os shopping centers, as ruas controladas por segurança privada, os parques públicos que cobram a entrada, entre outras.
Além disso, por meio de pesquisas empíricas
é possível notar as restrições sociais a essa dimensão típico-ideal, na medida em que
elas revelam como os encontros nos espaços públicos são mediados por relações de
poder, estilos de vida, segmentações e, em
muitos casos, segregações (Kaztman, 2001)
e que o encontro entre estranhos nem sempre é desejado (Lofland, 1985).
A questão mais relevante, porém, é
que todo espaço público é construído socialmente. Essa dimensão já fora destacada
por Simmel (1939) em sua sociologia do
espaço, pois as formas de sociabilidade e de
apropriação dos espaços públicos, além de
se transformarem constantemente, expressam processos sociais mais gerais de uma
sociedade em um determinado tempo e lugar. Como espaço construído socialmente, é
também lugar de conflitos entre os diferentes grupos sociais, além de espaço de poder, de afirmação de um grupo sobre outro
(Hansen, 2002). Suas formas de apropriação evidenciam restrições que, apesar de
não formais, são tão ou mais eficazes. Um
espaço ocupado preferencialmente por um
grupo de alto poder econômico e simbólico, por exemplo, constrange a permanência
de pessoas de baixa renda. Espaços ocupados preferencialmente por jovens não são
muito convidativos aos idosos e vice-versa.
Esses exemplos demonstram que a abordagem dos espaços públicos pelo foco das
interações e apropriações pelos diferentes
grupos revela tensões e conflitos que não
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
se restringem à simples separação entre o
público e o privado.
A abordagem do conflito e do poder
inerentes às apropriações sociais dos espaços públicos remete a outra questão relevante no estudo das praças: até que ponto a
segregação residencial existente na cidade se
repete nos espaços públicos? E, ainda, segue
uma mesma lógica ou aponta para conflitos
de outra natureza?
As praças são os espaços públicos escolhidos para essa abordagem uma vez que
estão mais intimamente ligadas à vida cotidiana, o que permite apreender a diversidade social característica das grandes cidades.
Os encontros nas praças e a sua intensidade
não se dão por acaso. O planejamento desses espaços, seus equipamentos e sua manutenção pelo poder público ou pelos moradores são elementos que precisam ser considerados, assim como a natureza da praça,
se lugar histórico e simbólico da cidade, se
praça de bairro ou mesmo simples rotatória
para carros.
Este texto tem como objetivo discutir
as formas de sociabilidade nos espaços públicos, a partir de uma pesquisa realizada na
cidade de Belo Horizonte durante os anos
de 2004 e 2005 sobre as sociabilidades,
os conflitos e as formas de apropriação das
praças. Não se trata de um conjunto homogêneo de lugares e sociabilidades. Há as praças de bairros, com uma sociabilidade bastante local. Há as dos espaços centrais, lugares de passagem para um grande número de
pessoas, mas também de sobrevivência para
outros. Suas rotinas alteram-se segundo as
horas do dia e os dias da semana. Os usos
nos fins de semana são, na maioria delas,
bastante distintos dos usos nos dias de semana, assim como o público. A intervenção
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
do poder público e das associações de moradores são também fatores que influenciam
os seus usos e apropriações.
Praças de Belo Horizonte
Belo Horizonte é uma cidade planejada, cujo
projeto foi elaborado por uma equipe, coordenada pelo engenheiro Aarão Reis. Seguindo uma concepção higienista, o projeto
adota um modelo de cidade fechada, definida pelo desenho e com extrema importância
dada à circulação, especialmente de veículos
(Guimarães, 1991).
As praças tiveram um papel importante
no planejamento de Belo Horizonte. Marcam os cruzamentos das principais avenidas
e ruas, assim como suas extremidades. Algumas, como a Praça da Liberdade, tiveram
seu lugar cuidadosamente escolhido. Essa praça, construída a partir de elaborado
projeto urbanístico e paisagístico, situa-se
no ponto mais alto da cidade planejada e é
cercada pelo palácio do governo e suas secretarias. Fora da área planejada e em bairros mais tradicionais, as praças continuaram
a ocupar um lugar central, muitas vezes na
frente de uma igreja. Mas, na maioria dos
bairros, principalmente nos mais novos,
elas deixaram de ocupar os espaços nobres
e centrais. Nesses bairros, é comum encontrar praças que são simples rotatórias ou se
situam em partes íngremes e de difícil aproveitamento. A regional Centro Sul – que
compreende a área planejada da cidade mais
os bairros do seu entorno – é a mais nobre
e concentra o maior número de praças. Em
Belo Horizonte, após a descentralização da
administração municipal, as praças passaram
a ser administradas pelas regionais, que se
dividem em nove.
Além da maior concentração de praças
na regional Centro Sul, as diferenças entre
áreas centrais e periféricas também aparecem quando se comparam os equipamentos
e a manutenção. As praças da regional Centro Sul são as mais bem cuidadas e também
as que mais contam com adoção por empresas,3 o que contribui para seu melhor estado
de conservação. Segundo dados de março
de 2002, 321 praças eram adotadas. Entre
essas, 128 (40%) se localizavam na regional Centro Sul.
Na década de 1990, foram projetadas e construídas em Belo Horizonte duas
grandes praças – Praça JK e Praça da Barragem Santa Lúcia – em lugares bastante
significativos socialmente, pois fronteiras
entre bairros de classe média alta e favelas.
Considerando os seus projetos, ambas recuperam a tradição, ainda que modificada,
das primeiras praças da cidade: são lugares
amplos, com projetos bem elaborados e que
contemplam diversos usos. Diferem das praças originais principalmente por seus usos
atuais. Se antes as praças eram lugares de
contemplação, de footing e de encontros,
hoje, as mais frequentadas, como no caso
dessas duas praças, são as que possuem
pistas para caminhadas e/ou equipamentos
para exercícios físicos. Outra peculiaridade
dessas duas praças é que, situadas em áreas
de transição entre a população de alta renda
e a residente em favelas, seus projetos previram atividades que atendem às demandas
socioculturais desses dois grupos.
Quatro praças foram escolhidas para
análise neste artigo: a Praça JK, situada no
bairro Sion e a Praça Lagoa Seca, localizada no bairro Belvedere, ambas na regional
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
135
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
136
Demográfica),6 que reúne um conjunto contíguo de bairros.
A Praça JK situa-se na AED Cruzeiro/
Anchieta e Sion, onde também se localiza
a Vila Acaba Mundo, com 1.295 habitantes ou 3% da população total da AED. Já a
Praça da Lagoa Seca está localizada na AED
Mangabeiras/São Bento/Papagaio, em que a
população do Aglomerado do Morro do Papagaio (um conjunto de favelas) representa
43,45% dos domicílios dessa AED. Essa informação é importante para a interpretação
dos dados, pois, enquanto na AED da Praça
JK mais de 70% das famílias têm rendimento médio superior a dez salários mínimos,
na AED Belvedere há uma concentração nos
extremos, ou seja, uma maior desigualdade,
pois 36,58% das famílias recebem menos
de dois salários mínimos mensais, enquanto
41,47% têm rendimento médio mensal superior a dez salários mínimos.
Na AED correspondente ao bairro onde se situa a Praça X, 76,57% das famílias
Centro Sul, uma terceira situada em um
bairro de classe média baixa na regional
Norte, aqui denominada Praça X4 e a mais
recente de todas, denominada oficialmente
Área de Esporte e Lazer da Via Expressa,
que se localiza no bairro Coração Eucarístico, na regional Noroeste.
Todas essas quatro praças são bem
posteriores à origem da cidade, e se localizam no anel externo à área planejada, no
interior da Avenida do Contorno. Não são,
portanto, praças centrais, mas todas são
muito utilizadas pelos moradores. As duas
primeiras com capacidade de atrair não apenas os moradores da sua proximidade, mas
também dos bairros vizinhos, já as outras
duas têm como público os moradores do seu
entorno.5
A Tabela 1 apresenta uma classificação
mais precisa da condição socioeconômica dos
moradores dos bairros no entorno das praças pela unidade do IBGE denominada área
de Ponderação ou AED (Área de Expansão
Tabela 1 – Percentual de famílias por classe
de renda mensal do responsável em salários mínimos
AED/Bairros7
Regional/Praça
Cruzeiro/Anchieta/Sion
(Acaba Mundo)
Centro Sul
(Praça JK)
Até 2 SM
Entre 2
e 5 SM
Entre 5
e 10 SM
Acima de
10 SM
Total
4,54
7,11
16,40
71,95
100
Centro Sul
(Praça Lagoa Seca)
36,58
15,49
6,45
41,47
100
João Pinheiro – Dom
Cabral – Coração
Eucarístico
Noroeste
(Área de Esporte e Lazer
da Via Expressa)
26,11
22,87
23,72
27,30
100
Bairros não
identificados
Norte
(Praça não identificada)
41,77
34,80
16,65
6,79
100
Mangabeiras/São
Bento/Papagaio
(Belvedere)
Fonte: IBGE, Censo de 2000, dados trabalhados pelo Observatório das Metrópoles, Metrodata, http://web.
observatoriodasmetropoles.net/
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
têm rendimento mensal menor do que cinco
salários mínimos. Nesse sentido, enquanto
para a Praça JK 70% dos responsáveis têm
rendimento médio mensal acima de dez salários mínimos, na Praça X menos de 7% dos
responsáveis atingem esse patamar de rendimento. Na AED João Pinheiro-Dom Cabral,
onde se localiza a área de Esporte e Lazer Via
Expressa, há uma distribuição mais uniforme
entre os rendimentos médios mensais.
Para chegar a essas quatro praças foi
realizada uma pesquisa empírica em uma
amostra das praças de Belo Horizonte em
três regionais, selecionadas a partir da análise do Índice de Vulnerabilidade Social/IVS.8
A escolha dessas três regionais se deu pela
constatação de que a partir delas é possível se obter uma boa amostra da situação
do município. A Regional Centro-Sul possui
UPs com o menor índice de vulnerabilidade
social, mas também apresenta grande desigualdade. A Regional Norte revela-se, em
geral, como uma área de alto índice de vulnerabilidade social e a Regional Noroeste
apresentaria a maior heterogeneidade, já
que há quase todas as faixas do IVS – com
exceção da menor, abundante na CentroSul – em suas Unidades de Planejamento.
O primeiro passo da pesquisa consistiu
em um mapeamento, por meio de um trabalho de campo, em todas as praças dessas
três regionais. O objetivo desse mapeamento foi conhecer as condições físicas da praça,
seus usuários, assim como os seus usos mais
freqüentes.
Já os estudos de caso consistiram em
observações e entrevistas com seus usuários, buscando conhecer os usos e apropriações desses espaços, assim como os conflitos e as possibilidades de interação entre os
conhecidos e estranhos.
A Praça JK
A Praça JK, oficialmente denominada Parque JK,9 situa-se entre os bairros Sion e a
Vila Acaba Mundo.10 Ali era um córrego que
foi aterrado no final da década de 1980. No
início da década de 1990, foi elaborado um
projeto para a construção de uma praça no
local, mas sua execução iniciou-se apenas
na segunda metade dessa década. Nesse intervalo, o espaço foi apropriado e cuidado
pelos moradores da Vila Acaba Mundo em
associação com uma moradora do Sion.
No final da década de 1990, o projeto
da praça, depois de apresentado às comunidades de moradores do bairro Sion e da Vila
Acaba Mundo, foi executado. A praça conta com equipamentos de ginástica, amplos
espaços para lazer e duas pistas para caminhada. Seus jardins estão constantemente
floridos e são cuidados por uma empresa
privada que participa do programa “Adote
o Verde” da Prefeitura Municipal e, em troca, faz sua propaganda no local. Seus frequentadores são os moradores do Sion e da
Favela Acaba Mundo e moradores de outros
bairros – especialmente da zona sul – pois,
além das muitas possibilidades de lazer para
crianças e adultos, o local oferece, frequentemente, diversos eventos culturais.
A Avenida Bandeirantes, que dá acesso
à praça para os moradores do Sion e para os
que vêm dos outros bairros, é uma das principais vias da região, com trânsito intenso e
comércio variado.
A Praça JK é ainda contornada por
uma via de trânsito local, que permite o
acesso à favela. Nas suas duas laterais há
residências com alto padrão de acabamento (casas de um lado e prédios de outro).
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
137
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
138
Ao fundo vê-se a favela e, atrás da favela, a
Serra do Curral.
Entre os equipamentos da Praça JK
destacam-se as duas pistas de caminhada,
aparelhos para ginástica, um campo de futebol, uma piscina de areia e várias áreas livres em forma de círculos. Essas qualidades
permitem que nela se reúnam pessoas de diferentes estratos sociais e idades. A diversidade social é garantida pela presença da favela, pois os outros frequentadores são dos
bairros próximos, todos de classe média.
As crianças de classe média, sempre
acompanhadas de babás ou de parentes
mais velhos, ficam, as mais novas, em um
círculo menor da praça, situado no centro e,
as mais velhas, no círculo maior próximo à
Avenida Bandeirantes. Ali andam de bicicleta, patins ou jogam bola. As crianças residentes no Acaba Mundo usam principalmente a parte da praça mais próxima de suas
casas. Em geral estão desacompanhadas.
Os meninos brincam no campo de futebol e
as meninas preferem as barras de ginástica do círculo próximo à favela, onde fazem
malabarismos. Ao contrário das crianças de
classe média que levam brinquedos para as
praças, as crianças da favela raramente o fazem. Elas caminham pela praça, brincam nas
barras de ginástica e algumas pedem dinheiro perto da barraca de cocos ou se oferecem
para vigiar os carros.
Na visão da presidente da associação
dos moradores da Vila Acaba Mundo, a falta
de brinquedos na praça limita o seu uso pelas crianças da Vila:
[Deveria ter] um balanço, um escorregador para as crianças usarem, porque
só tem barras de ferro para fazer ginástica, musculação (...) a criança tem
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
que ter o brinquedo para utilizar o
espaço, quando a criança não tem, ela
não brinca, brincar de quê? (Entrevista,
agosto de 2004).
A presença de adolescentes e jovens é
mais rarefeita, a não ser próximo às barras,
fazendo ginástica. O grupo maior é composto por adultos e idosos que fazem caminhadas em duas pistas paralelas, uma no sentido horário e outra no sentido anti-horário,
o que possibilita vários encontros. Esse grupo é formado exclusivamente pelos estratos
médios.
O lugar mais frequentado pelos adultos da favela é uma escada que dá acesso
à praça e se localiza bem em frente à vila.
Alguns usam também o campo de futebol.
No fim de semana é possível vê-los com seus
filhos em brincadeiras, mas é na escada que
se concentram e de lá observam o movimento da praça.
Atrás dessa escada, entre a favela e a
praça, e no ponto mais alto desta, é comum
ver um policial. Segundo alguns entrevistados, ele oferece uma sensação de segurança
para os que caminham na praça. Outros dois
policiais costumam rondar a praça a cavalo.
As entrevistas realizadas com os usuários da praça revelaram diferentes percepções da segurança. Os moradores da Vila se
mostram menos preocupados, até porque
circulam diariamente pela praça, o que favorece a intimidade com o local. As pessoas
mais inseguras são os moradores do Sion e
de outros bairros que se sentem ameaçadas
pela presença da favela e dos seus moradores na praça, como relatou uma ex-usuária,
agora freqüentadora da Praça da Lagoa Seca. Ela costumava caminhar na Avenida Bandeirantes, mas não na Praça JK, por temer
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
caminhada. O que se observa é que a praça
divide-se em duas, com predominância dos
usuários dos estratos médios.
Esse confinamento dos moradores da
Vila na parte da praça mais próxima às suas
moradias se estende a uma pequena praça,
da Carioca, que divide em dois braços a rua
que dá acesso à favela. Durante as férias de
julho de 2004, essa rua era intensamente
utilizada pelos moradores para um improvisado jogo de basebol com pedaços de pau e
garrafas pet. Jogadores e público se concentravam num espaço de seu uso exclusivo, em
contraste com o lazer das crianças de classe
média, que inclui brinquedos fabricados e
raramente envolve várias crianças.
Sobre as relações dos moradores do
Acaba Mundo com a praça e com os outros
usuários, as entrevistas não revelam integração. Há o argumento de que a praça é
deles, afinal foram eles que inicialmente cuidaram da praça. E, como disse uma garota,
“eu moro quase aqui dentro”. A Tia Magda,
uma moradora do Sion, é uma importante
mediadora entre os moradores da Vila e os
do Sion e outros bairros. Quando do plantio
a favela. Outros têm uma opinião oposta e
reagem ao que consideram estigmatização
da população favelada. O mais recorrente,
porém, é um comportamento controlado.
As pessoas sabem da ocorrência de alguns
crimes, porque presenciaram ou ouviram
falar e, por isso, tomam certas precauções,
como não carregar bolsas e celulares e evitar determinados horários em que a praça
fica mais vazia e sem policiamento.
Segundo dados da Polícia Militar, em
2003 foram registrados vinte crimes na
praça, conforme a Tabela 2.
O medo e a distância social perpassam
as relações entre os moradores da Vila e os
do Sion e de outros bairros. Ambos os grupos frequentam a praça, mas em espaços
separados. As duas áreas mais próximas à
favela – o campo de futebol e um dos círculos com barras de ginástica – são de uso
quase exclusivo dos seus moradores. Já a
parte mais próxima à Avenida Bandeirantes – três grandes círculos, um deles contendo outro conjunto de barras de ginástica – é ocupada predominantemente pelos
estratos médios, assim como as pistas de
Tabela 2 – Ocorrências registradas
pela Polícia Militar na Praça JK durante o ano de 2003
Tipo de crime
Manhã
(6 às 12h)
Tarde
Noite
Madrugada
(entre 12 e 18h) (entre 18 e 24h) (entre 24 e 5h)
Total
Roubo a mão armada
consumado a transeunte
2
–
5
–
7
Roubo consumado a
transeunte
3
4
1
2
10
Roubo tentado a transeunte
–
1
–
–
1
Homicídio consumado
–
1
–
–
1
Homicídio tentado
–
1
–
–
1
Total
5
7
6
2
20
Fonte: Crisp/PMMG.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
139
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
de árvores com as crianças da Vila, ela tentava incutir-lhes o sentimento de que aquele
lugar também lhes pertencia, como forma
de enfrentar o preconceito dos outros moradores. Segundo seu depoimento,
[...] quando iniciaram o plantio das árvores os moradores do Sion tratavam
de forma preconceituosa os moradores
da Vila, achavam que eles não tinham
mais do que a obrigação de cuidar da
praça,
140
ideia que se vinculava à tradição do trabalho
manual por despossuídos. Mas dessa iniciativa ficou a percepção de que a praça é um
espaço que lhes pertence. Desse movimento
surgiu o Projeto Querubins, cujas oficinas de
arte e esportes – música, capoeira, futebol
etc. – atendem a 160 crianças e jovens entre seis e 18 anos. Segundo o depoimento
de um voluntário do Querubins, “o projeto
nasceu na praça”.
Não é possível saber como seriam as
relações dos moradores da Vila com a praça
sem essa mediação, mas, mesmo considerando que ela contribuiu para o sentimento
de que a praça é deles, suas relações com os
outros usuários são apenas de copresença
no espaço ou então de prestação de serviços.11 Uma moradora da Vila descreve assim
os moradores do Sion:
Muita gente sem educação, a gente traz
os meninos para brincar e os ricos puxam as crianças deles para não brincar
com as nossas, tem muito preconceito.
As crianças aparecem em vários depoimentos porque, em muitas situações, geralmente em contextos sociais mais igualitários,
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
são elas que propiciam a aproximação entre
os frequentadores, mas nesse caso o que
chama a atenção é justamente a recusa dos
moradores dos outros bairros em interagir
de forma igualitária com as crianças que,
em princípio, não deveriam ameaçar os
frequentadores dos bairros. Não é que não
exista interação, mas o seu conteúdo é de
recusa ou de distanciamento, como mostra
o depoimento da presidente da associação
da Vila Acaba Mundo.
Eu acho que os ricos olham muito para os moradores da Vila com cara de
dó, de medo. Vêem um menino sujo,
já pensam: têm que dar as coisas (...).
Eu acho que deveria mais procurar conhecer a história, saber um pouco, conversar e até sentar com a criança, bater
um papo com ela, perguntar alguma
coisa sobre a vida dela, dos pais delas,
assim tentar ajudar. (Entrevista, agosto
de 2004)
Ao dar seus brinquedos aos moradores
da Vila, os do Sion reafirmam a distância
que os separa.
Uma situação rara e interessante registrada pela pesquisa foi o encontro entre três
crianças: Leandro, Victor e Rhavi, que brincavam na praça. Reproduzimos aqui o relato
da pesquisadora que abordou essas crianças:
Parei para conversar com três garotos
que brincavam, dois com aparência mais
humilde, um se chamava Victor e o outro Leandro e disseram morar no Acaba
Mundo. O Leandro era bem tímido, já
o outro era mais falante. O mais arrumado se chamava Rhavi e disse morar
nos EUA. Quando vem ao Brasil, duas
vezes por ano, fica num apartamento
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
em frente à praça. Perguntei a idade
dos garotos. Rhavi tinha 13 anos, os
outros dois 12 anos. Perguntei se responderiam a um questionário, mas só
Leandro e Rhavi aceitaram. O outro ficou inseguro, pois achava que teria que
escrever. Os dois garotos que moram
no Acaba Mundo estão cursando a 4ª
série e Rhavi está na 8ª. A desigualdade
não impedia esses garotos de brinca-
todo lado e a praça é aberta”, mas acha que
a praça é importante para a cidade “porque é um lugar que tem árvore e é aberto”.
As respostas de Leandro, diferentemente,
se concentravam nos aspectos sociais e da
sobrevivência. Para ele a praça não tem a
“cara” do bairro (ele pensa na Vila) porque
“não parece nada com a Vila”. E acha importante a praça para Belo Horizonte “porque
aqui a gente acha garrafa e vendemos”.
rem. Rhavi andava de patins e os outros
corriam. Mas os três riam muito juntos.
Isso me chamou a atenção porque pela
primeira vez vejo uma interação entre
Praça da Lagoa Seca
moradores da favela e um morador do
Sion. Rhavi parecia gostar muito das
brincadeiras e me disse ter acabado de
conhecer os dois garotos. (Diário de
campo, 9 de agosto de 2004)
Além da diferença de escolaridade, as
respostas dos dois à entrevista contrastam
no conteúdo e na fluência. Rhavi, que raramente frequenta a praça, tem muito mais
fluência e argumentos. Já as frases de Leandro são sempre curtas. Quando perguntados sobre quais espaços da praça mais frequentam, Leandro respondeu a quadra de
futebol e Rhavi as duas primeiras áreas (as
mais próximas da Avenida Bandeirantes). E
quando perguntados sobre as partes que
não frequentam, as respostas novamente
se opuseram: Rhavi disse não frequentar a
quadra “porque sempre tem gente jogando”
e Leandro não frequenta “a primeira parte
da praça”. À pergunta se a praça tinha a “cara” do bairro e se era importante para Belo
Horizonte, Rhavi se concentrou nos aspectos espaciais. Acha que a praça não tem a
cara do bairro (ele pensa no Sion) “porque
o bairro é muito fechado, há prédios por
A Praça da Lagoa Seca localiza-se, como a
Praça JK, na regional Centro Sul, mas no
bairro Belvedere III, uma terceira e polêmica
etapa do loteamento de uma área localizada na divisa do município de Belo Horizonte
com o município de Nova Lima, junto à Serra
do Curral. O Belvedere I e II, exclusivamente
residenciais e unifamiliares, correspondem
às duas primeiras etapas desse loteamento iniciado em 1979 com a subdivisão de
uma área em 900 lotes. Neste mesmo ano,
inaugurou-se o primeiro shopping center da
cidade, o BH Shopping, nas proximidades do
bairro.
Fugindo aos parâmetros convencionais de aprovação de loteamentos pelo poder público municipal, o Belvedere III teve
seu projeto aprovado na Justiça, um pouco
antes da promulgação da nova Lei de Uso
e de Ocupação do Solo de Belo Horizonte.
O principal interesse dos loteadores e das
construtoras era conseguir para esse último
parcelamento parâmetros de ocupação mais
permissivos. Nessa década, o Belvedere I e
II já estavam praticamente ocupados, sendo
considerados, juntamente com a região da
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
141
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
142
Pampulha e o bairro Mangabeiras, os bairros de residências unifamiliares mais nobres
da cidade. Paralelamente, o BH Shopping se
firmava como o principal shopping da cidade e cresciam, no município vizinho de Nova
Lima, os condomínios fechados. Ou seja, a
implantação do Belvedere III ocorreu num
período de extrema valorização da região
e os interesses imobiliários conseguiram se
sobrepor ao poder público municipal e à
reação contrária da sociedade, desencadeada
pelos moradores do Belvedere I e II, pelos
ambientalistas e demais associações envolvidas no planejamento da cidade (Rodrigues,
2001).
Atualmente, o que se vê é um cenário
contrastante. Numa parte do bairro, um
conjunto de residências tem a Serra do Curral ao fundo e, na outra parte, ergue-se um
“paliteiro de torres” e só por suas frestas
– cada vez mais estreitas – pode-se ver a
serra, tombada pelo Patrimônio Histórico
do Município de Belo Horizonte. O que predomina são os edifícios residenciais, mas há
também os comerciais, com salas e pequenos shopping centers voltados para as ruas.
Seus moradores têm alto poder aquisitivo.
Segundo dados da Câmara de Mercado Imobiliário (CMI), o Belvedere é o bairro com o
preço do metro quadrado mais alto da cidade: “O preço médio do metro quadrado para
apartamentos prontos no Belvedere é de 3
mil reais. Para empreendimentos comerciais, o valor é de 1,5 mil reais e, quando o
assunto é casa, o custo do metro quadrado
chega a 350 reais” (Especial Encontro, Mercado Imobiliário, junho de 2004).
Em decorrência de sua aprovação peculiar, não foi destinada ao bairro nenhuma
área pública de lazer e de encontro. A solução
encontrada pelos loteadores e construtoras
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
foi o aproveitamento de uma área denominada Lagoa Seca, entre as ruas Juvenal de
Melo Senra, Elza Brandão Rodarte e Vicente
Guimarães. Em dois de seus lados, a praça
é rodeada por edifícios exclusivamente residenciais, em outro lado por edifícios com lojas para a rua e, na quarta lateral, separada
por um jardim em aclive, uma pista de rolamento e pelo BH Shopping. Suas dimensões
e forma são de um quarteirão, só que não
ocupado. A intenção dos seus criadores era
de que essa área contribuísse positivamente
para a valorização do bairro e dos imóveis.
Mas, como o bairro, essa é uma praça atípica. Sua área permanece como privada, mas
seu uso é público, ainda que bastante seletivo. Quem a planejou, executou e atualmente
cuida da sua manutenção é a Associação dos
Amigos do Bairro Belvedere (AABB).12
A área livre e útil da antiga Lagoa Seca
consiste apenas em uma pista de aproximadamente três metros de largura. No seu interior há um grande espaço livre, mas sem
condições de uso, seja pela declividade do
terreno, seja pelo córrego de água poluída.
Na temporada de chuva essa área é inundada. Resume-se, portanto, a uma pista de
caminhada em volta de uma área mais baixa
e livre. Na pista não há bancos nem outros
equipamentos de lazer.
Durante os dias da semana, suas pistas são intensamente ocupadas por pessoas
que fazem caminhadas. Alguns se exercitam
acompanhados por um personal trainer. O
grupo que caminha e corre abrange várias
faixas etárias. A maioria dessas pessoas está
acompanhada, raras são as que andam ou
correm sozinhas. Trata-se, portanto, de um
exercício físico, mas também de uma forma
de sociabilidade. Os horários de pico são os
do início da manhã e do final da tarde. No
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
domingo, uma das ruas que contorna a praça é fechada, o que permite que também as
crianças usufruam desse espaço com patins,
bicicletas, velotrol ou skate. Trata-se de um
grupo muito homogêneo socialmente: todos
são brancos, vestem-se com roupas próprias
para caminhada e, pela aparência, são pessoas dos estratos altos, o que condiz com o
perfil dos moradores do bairro. Não se nota
a presença de pessoas de outros estratos sociais. Como se pode ver, é um lugar bastante seletivo em relação aos usos e estilos de
comportamento.
Uma usuária, moradora do bairro vizinho de Buritis, vem a essa praça porque a
considera “mais segura e mais bem frequentada”, e descreve seu público como “pessoas
que gostam de se mostrar com roupas de
ginástica (...) há um desfile de corpo e de
moda”, além de ser “um ponto de encontro
para outros programas”.13
Um aspecto importante para a compreensão dos significados dos espaços públicos
contemporâneos é a participação das associações de bairro, principalmente de bairros
de classe alta. No Belvedere, as associações
são muito ativas, a ponto de uma delas ter
definido e executado o projeto da praça e
atualmente cuidar da sua manutenção. É a
associação que contrata os cinco funcionários
que cuidam do jardim interno e da limpeza
das calçadas e é também ela que arca com
os custos da iluminação da praça, conforme
o depoimento do presidente da Associação
dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB):
Nós é que fizemos tudo, aí era um
buraco. Tudo que você está vendo no
Belvedere fomos nós que fizemos, a associação do bairro, o plantio de todas
as árvores, nós aterramos a praça, nós
plantamos a grama em volta dela, fizemos o passeio, fizemos a iluminação
de bolas externas, que é diferente da
Cemig, o dela é de poste de concreto,
os nossos são de ferro, aquelas bolas
mais charmosas, e pagamos a conta de
luz também. (Entrevista, setembro de
2004)
Uma moradora explicou a ausência de
bancos na praça como uma tentativa de evitar a permanência de pessoas indesejáveis, o
que o presidente da associação confirmou:
A ausência de bancos foi uma decisão
nossa. Ela partiu do princípio: a praça
vai ser uma praça de lazer, para criança
andar no sábado e domingo, de velocípede, brincar e as pessoas andarem.
Porque o primeiro banco que nós colocamos, no domingo veio uma família,
infelizmente de uma menor posição
social no país, veio da favela com sete
mulheres e dez meninos, trouxeram
cachaça, deu polícia e já deu confusão.
A associação partiu de uma premissa:
ou é o nosso espaço ou é o espaço que
nós não vamos ser donos, e o banco vai
nos tirar o direito de dizer: “Aqui é a
nossa convivência, o nosso encontro”.
Todo mundo se conhece aí, se encontra,
então foi nesse ponto aí que nós não
colocamos bancos (...) cada um tem o
seu limite de ficar em pé ou sentado no
meio-fio, então cada um encerra o seu
limite e vai embora. (Entrevista, setembro de 2004)
O estatuto ambíguo de praça – propriedade privada e uso público – também se faz
presente na forma como a associação assumiu a sua manutenção. O que inicialmente
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
143
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
poderia ser visto como uma participação da
associação na gestão dos bens públicos, na
verdade, vai bem além, uma vez que a associação se sente proprietária desse espaço,
como se constata na fala do seu presidente.
Daí a ambiguidade: culpa-se o poder público
por sua ausência, mas é essa ausência que
permite, como nos condomínios fechados
(Andrade, 2001), uma gestão privada dos
espaços públicos. Por outro lado, o poder
público, que há tempos vem transferindo
para o setor privado a gestão e manutenção
de diversos bens públicos, exime-se de intervenção nos processos de privatização de
bens públicos.
144
Ela [a associação] é dona da praça. Ela
quem faz tudo, ela quem manda, ela
quem limpa, ela quem a administra, por
ausência do poder público (...). A omissão deles nos leva a fazer tudo, e eles
sabendo que a omissão deles e o nosso
trabalho é importante para eles, é um
bom relacionamento, eles não falam
nada e nós fazemos a nossa parte. É
como se fosse uma subprefeitura, com
autonomia completa. Nós plantamos o
que a gente quer, tudo do jeito que nós
queremos, plantamos a grama como
plantamos as áreas verdes. (Entrevista,
presidente da associação, setembro de
2004, grifo nosso).
Uma grande preocupação dessas associações é a manutenção do valor dos imóveis
do bairro, o que está intimamente ligado à
conservação de uma alta qualidade de vida
no local, traduzida, atualmente, pela segurança e exclusividade. A praça, além ser um
bem raro na cidade, é muito utilizada para
as atividades físicas, o que concorre para a
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
valorização do bairro, como argumenta o
presidente da associação:
Se isso fosse um buraco, como você
vende os prédios da praça? A Líder
[construtora] vendeu todas as unidades
dela ali rapidinho (...). Eles investem
numa publicidade muito barata. (Entrevista, setembro de 2004)
As associações investem ainda na segurança pública e privada do bairro e da praça.
A AMBB construiu o posto policial do bairro
e as outras duas associações – Associação
dos Comerciantes e dos Amigos do Belvedere – doaram para a polícia um carro e uma
moto. Além disso, toda mudança que cause
impacto no bairro – modificação no sentido do trânsito para realização de uma obra,
instalação de um hipermercado, construção
de um conjunto de prédios, entre outras –
conta com a participação ativa da associação.
Certas atividades comerciais consideradas
indesejáveis também são evitadas. Segundo
o presidente da associação:
Nós não deixamos colocar uma faixa
no bairro. Se você quiser vender alguma coisa por aí, em cinco minutos nós
cortamos as faixas, porque é proibido
por lei. Nós não deixamos camelô aqui
dentro. Não deixamos o cara vir vender jornal, revista na praça, camisa no
bairro, roupa. A associação vai, interfere, chama a polícia e briga pelo direito.
(Entrevista, setembro de 2004)
Assim as associações garantem que o
bairro, apesar do adensamento e dos problemas de trânsito, mantenha o preço mais
alto do metro quadrado da cidade. Esse tipo
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
de associativismo recebeu de Emilio Duhau a
denominação “comunitarismo defensivo” e o
seu resultado a “condominização da cidade”:
De este modo, por una parte se observa
el despliegue de un seudo comunitarismo defensivo (y as veces muy agresivo) que en las áreas de clase media se
expresa a través de reivindicaciones en
torno de la defensa del entorno urbano
inmediato, buscando la protección del
valor de la propiedad, el control de las
externalidades urbanas y la exclusividad
de los espacios residenciales en tanto
que dispositivo de distinción, a través
de instrumentos como los planes de
usos del suelo, y de lo que podríamos
denominar como creciente “condominización de la ciudad”. (Duhau, 2001)
Se a apropriação da Praça da Lagoa
Seca como local de caminhada visa ao cuidado com o corpo e com a saúde, também pode ser percebida como a celebração de um
estilo de vida e a manutenção de contatos
sociais. Essas práticas revelam que tanto a
praça como espaço público, quanto o cuidar
do corpo, não podem ser pensados isoladamente, fazem parte de um complexo de relações sociais em que lugar, estilo de vida,
formas de sociabilidade e controles sociais
se definem de modo bastante específico. O
que se percebe é que não se caminha em
“qualquer lugar”, tampouco se caminha de
“qualquer maneira”, há uma preparação para isso que inclui o investimento em roupas,
tênis e demais acessórios, símbolos trocados durante as caminhadas e nos pontos de
encontro.
Esse estilo de vida é reforçado pela Associação dos Amigos do Belvedere, que, em
recente campanha publicitária, lançou o seguinte slogan para o bairro: “Você vai descobrir o que é viver com estilo”.
Praça X
A Praça X localiza-se na regional Norte, em
um bairro com características populares.
Conforme a Tabela 1, 41,77% de seus moradores ganha até dois salários mínimos.
Sua forma é triangular e com desníveis que
conformam três ambientes distintos. O nível mais baixo é a área mais sombreada da
praça, com árvores altas. Ali há um pequeno
teatro de arena e bancos em forma semicircular e em “s”. Também nesse nível há uma
cabine de apoio da Superintendência de Limpeza Urbana – SLU – do município. Apesar
dessa cabine, não há lixeiras na praça.
No nível intermediário há uma quadra
poliesportiva com arquibancadas e cercada
por um alambrado. Durante as observações,
os frequentadores a usavam apenas para jogar futebol. No nível mais alto há três mesas
para jogos – com tabuleiros de dama e xadrez pintados –, bancos ao redor das mesas,
um banco semicircular e alguns canteiros
com árvores médias. Entre os desníveis há
escadas.
As observações mostraram que a praça é muito mal conservada. A grama não é
podada, a tela do alambrado está arrebentada em várias partes e o lixo se espalha pelo
chão em toda a sua extensão. A má conservação da praça parece não ter relação com
ações de vandalismo, mas com o desgaste
devido ao uso ao longo do tempo. O único
sinal de vandalismo foi encontrado nas pichações, principalmente nos bancos.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
145
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
146
A praça é contornada por três ruas,
com alguns estabelecimentos comerciais fechados, exceto uma sorveteria e uma oficina. As casas, como os bancos da praça,
estão pichadas. Seus frequentadores são os
moradores do bairro e o que eles procuram
é o que se pode chamar de lazer na praça.
As crianças soltam pipa e correm, os adolescentes jogam futebol, há casais de namorados e muita gente fica ali apenas conversando. Não há nenhum comércio no interior
da praça. Outro aspecto particular nesse espaço são pessoas que ficam nas calçadas em
frente à praça – na porta de suas casas –,
conversando, brincando ou apenas observando. É comum encontrar um senhor que
coloca uma cadeira diante de sua casa e fica
ali observando a praça. Vez por outra ele
toca saxofone, o que dá a impressão de que
as calçadas também fazem parte da praça.
Enfim, a praça e seus arredores abrigam
um tipo de sociabilidade mais tradicional,
típica de bairros com relações de vizinhança
mais consolidadas.
Um aspecto que chamou a atenção
nessa praça foi a presença constante de um
grupo de adolescentes – predominantemente homens –, que normalmente se senta em
torno das mesas de jogos para conversar,
jogar baralho e, principalmente, fumar maconha. Esses jovens frequentam a praça há
aproximadamente dois anos14 e a maior parte deles está desempregada e não estuda.
Foram entrevistados dez jovens, entre os
quais apenas dois estudam e três trabalham,
em todos os casos no emprego informal.
Um ajuda o pai, que é pedreiro, “quando há
serviço”; outro é catador de papel e vigia
carros; e outro trabalha com o tio num bar:
“Meu tio tem um bar (...) e eu fico lá ajudando ele”. Todos são moradores da região
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
e o fato de ali fumarem maconha não causa
grande reação nos outros frequentadores.
Apenas uma entrevistada reclamou, já os
outros frequentam a praça sem se importarem com a presença desses jovens.
Em geral esses jovens vão ali apenas
durante o dia, porque dizem que à noite a
praça é muito perigosa. Como afirma um
entrevistado: “Eu venho só de tarde e venho
de noite às vezes. (...) fica mais cheio, os
caras mais barra pesada”. Em todo o período de observação não se viu nenhum policial na praça. Uma senhora que a frequenta
relatou-nos que, embora nunca tenha sofrido ou presenciado qualquer tipo de violência
ali, não se sentia segura, já que não havia a
presença da polícia. Sobre isso dois adolescentes respondem: “Segurança não tem aqui
não, eu nunca vi polícia aqui”. “Eu nunca vi
polícia aqui. Ouvi falar uma vez que veio polícia à noite, mas os caras circulou”.
O mal estado de conservação e a ausência de ocorrências policiais (durante o ano de
2003, não foi registrada nenhuma ocorrência na praça) são indicadores da ausência do
poder público, que, na perspectiva dos adolescentes, é um aspecto positivo, pois torna
a praça segura para “fumar um”. Mas, para
a maioria dos moradores, inclusive o grupo
de adolescentes, torna a praça inacessível,
porque perigosa no período noturno.
Como se percebe, as estratégias de
controle dessa praça são inteiramente diferentes das duas primeiras. A Praça JK é
vigiada por policiais militares e a Praça da
Lagoa Seca, por segurança privada, além de
gerida por associações de moradores. Na
praça da região Norte, diferentemente, não
há controle pelo poder público, tampouco
por segurança privada. Os próprios usuários
evitam a praça quando está muito vazia e,
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
principalmente, no período noturno, quando
é ocupada por um grupo que os moradores,
provavelmente por medo, não identificam
bem, mas dizem ser perigoso.
Área de Lazer e Esporte
Via Expressa
Inaugurada em 27 de junho de 2004, a
Área de Lazer da Via Expressa é conhecida
pelos seus frequentadores como Praça da
Via Expressa ou Praça dos Skatistas. Situada
no canteiro central da Via Expressa, avenida
de intenso fluxo de carros, seu formato é
triangular e, antes de ser praça, havia ali um
lote vago. Fechada por uma cerca de aproximadamente dois metros de altura, seu acesso se dá por um grande portão situado num
dos vértices do triângulo. Paralela à cerca,
uma pista de cooper asfaltada contorna a
praça. Mais internamente, num dos lados
do triângulo, há uma pista de bicicross – de
areia e com uma elevação – circundada por
uma área gramada. No lado oposto dessa
pista, ocupando todo um lado do triângulo,
há uma pista de skate, com rampas de concreto e barras de ferro, que também servem
para a prática do esporte. Há outra pista de
skate, de concreto, em formato abaulado.
Há ainda bancos em semicírculo, um bebedouro e aparelhos de ginástica.
A história dessa praça, embora recente, é emblemática para a reflexão sobre os
usos de espaços públicos na contemporaneidade, entre outros motivos por ser gradeada e fechada ao público durante a noite. A
praça abre às seis da manhã e fecha às dez
da noite.
Situada na regional Noroeste e próxima a uma vila – Vila São Vicente – e a três
bairros – Coração Eucarístico, Minas Brasil,
Padre Eustáquio – a Praça da Via Expressa é um espaço público cuja gerência cabe
não só à prefeitura de Belo Horizonte, mas
também ao Conselho Permanente de Usuários – CPU – composto por 13 entidades,
entre associações de moradores – do bairro
Coração Eucarístico e da Vila São Vicente –,
de skatistas e de comerciantes. Percebe-se
aqui o associativismo, como na Praça da Lagoa Seca, mas numa parceria formal com o
poder municipal e, nesse caso, a distância
em relação à Praça da Lagoa Seca é grande, já que esta é um espaço privado com
uso público e mantido por associações de
bairro. Aqui, diferentemente, trata-se de
um espaço público mantido pela prefeitura
em parceria com entidades abrigadas num
conselho. Na portaria que formaliza a gestão da Área de Lazer, essa parceria torna-se
clara:
O Secretário Municipal de Esportes (...)
resolve:
Artigo 1º – O Equipamento Esportivo
será gerenciado de forma compartilhada entre a Secretaria Municipal de
Esportes, a Secretaria Municipal da
Coordenação de Gestão Regional Noroeste e o Conselho Permanente de
Usuários – CPU, cujos membros serão
eleitos por votação em assembléia e
que terá a função de organizar e fiscalizar o agendamento das atividades
a serem realizadas no local, através da
normatização assinada pelas partes.
(Portaria 003/2004. In: Belo Horizonte, 2004).
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
147
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
148
Embora haja uma gestão compartilhada, as entrevistas com alguns usuários da
praça revelaram que eles desconhecem esse
fato. Perguntados se sabiam quem cuidava
da praça, alguns diziam que não sabiam e
outros afirmavam ser a prefeitura.
Nas pistas de skate há grafites e pichações e numa delas se lê: “It’s just skate, but
I like it”. Os grafites foram executados com
a permissão da prefeitura com o objetivo de
evitar as pichações, uma vez que os pichadores não costumam pichar sobre grafites. No
entanto, nos outros espaços não grafitados
havia pichações.
Constatou-se a existência de dois grupos
muito distintos de usuários da praça. De um
lado, os skatistas, jovens entre 14 e 18 anos,
predominantemente homens (vez ou outra é
possível ver uma ou duas meninas, na mesma
faixa etária, andando de skate) e, em geral,
de classe baixa, dado que a maioria dos jovens entrevistados em dias de semana residia na favela próxima à praça. De outro lado,
adultos – homens e mulheres – que usam a
pista de cooper e parecem, ao menos pela
forma de vestir, pertencer a um estrato social mais elevado. Nos fins de semana há também crianças acompanhadas de adultos, que
levam bicicleta, patins ou skate e, nos dias de
semana, adolescentes com uniforme escolar.
Nos dias de semana, a praça é frequentada majoritariamente por moradores dos
bairros vizinhos e, nos fins de semana,
por pessoas de diferentes regiões de Belo
Horizonte e Contagem. Em conversa com
os usuários de bairros mais distantes, percebeu-se que estavam ali porque passaram
pela avenida em outra ocasião e viram a
praça ou porque ficaram sabendo de uma
nova praça em Belo Horizonte com equipamentos para a prática do skate.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
Quando os pesquisadores de campo15
iniciaram a observação nessa praça, havia
uma faixa em que os moradores da Vila São
Vicente agradeciam ao prefeito e a uma vereadora a construção da praça. Embora a
faixa iniciasse com os “moradores da Vila
São Vicente”, a assinatura era: “Skatistas da
região”. A vereadora revelou-nos, em conversa por telefone, que o projeto surgira de
demandas de diferentes grupos da região,
entre os quais os skatistas, algumas associações de moradores e de comerciantes. Ainda
segundo ela, o fechamento teria sido decisão dos usuários representados pelo Comitê
Permanente de Usuários (CPU).
A maioria dos usuários entrevistados
desconhecia o motivo do fechamento da
praça, mas imaginava que seria uma estratégia contra a ação de vândalos. Um funcionário da prefeitura relatou-nos que os
moradores pediram que a praça fosse fechada para evitar esse tipo de ação. O que
nos parece, entretanto, é que o fechamento
da praça, análogo à ausência de bancos na
Praça da Lagoa Seca, seria uma estratégia
para evitar a presença de pessoas “indesejáveis”. Outra hipótese é que ofereceria proteção para brinquedos como bolas ou mesmo
skates não caírem na via pública. Mas essa
proteção não justifica o fechamento à noite.
Portanto, a hipótese que nos pareceu mais
plausível é a de evitar que os moradores de
rua, que se concentram na Via Expressa e
nos seus viadutos, façam da praça um local
de moradia ou pelo menos de pernoite.
Tanto a Praça X como a Praça da Via
Expressa têm a presença marcante de jovens. Ainda que os desta última sejam mais
jovens, com idade variando entre 14 e 18
anos e todos os entrevistados estudam e alguns já trabalham. Diferenciam-se também
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
por apresentarem um perfil mais reivindicativo e participativo.
Considerações finais
Como dito no início deste artigo, o modo de
apropriação de algumas praças em Belo Horizonte parece sugerir que as reflexões recentes que apontam para a morte do espaço
público devem ser relativizadas. Entretanto,
há que se considerar significativas mudanças
nas formas de apropriação dos espaços públicos e de sociabilidade entre seus usuários.
As praças são hoje muito mais utilizadas para os exercícios físicos, ainda que certos valores e estilos de vida sejam explicitados por
meio desses usos. Não se trata, portanto,
de simples voyeurismo ou de participação
passiva, como disse Sennett (1988). Outro
aspecto dessas recentes transformações é o
cuidado com a segurança, presente no comportamento dos usuários, nas ações das associações de bairro, do poder público, das
empresas privadas e dos grupos de usuários. Nota-se também um comportamento
mais segregacionista.
As praças são bastante frequentadas,
mas busca-se cada vez mais a convivência
entre iguais e a segregação socioespacial que
se observa na cidade é reproduzida nos seus
espaços públicos. Ou seja, não há uma recusa
à praça, mas uma recusa em interagir com
as diferenças. Dessa forma, uma das qualidades dos espaços públicos, a possibilidade do
encontro com o diferente, vem sendo evitada
pelos novos usuários dos espaços públicos.
Por fim, é interessante analisar a ação
do poder público nessas quatro praças. Na
Praça JK, o projeto elaborado pelo poder
público tentou contemplar o uso, ainda que
segmentado, dos diferentes frequentadores,
o que garante hoje a presença – ainda que
com poucas possibilidades de interação – dos
dois grupos, os de classe média e os moradores da favela. Na Praça X, o que se nota
é o abandono por parte do poder público.
Essa praça carece de cuidados mínimos, como limpeza, colocação de lixeiras e até mesmo a ação da polícia. Apesar das insistentes
afirmações de que não é um lugar seguro à
noite, nenhuma ocorrência foi registrada no
local, durante todo o ano de 2003. Isso contrasta com as duas outras praças da regional
Centro Sul – Praça JK e da Lagoa Seca – onde a presença da polícia (pública ou privada)
é mais efetiva. Nessa última, a situação é atípica: trata-se de um espaço de uso público,
mas cuja gestão é privada. Em consequência, é um lugar extremamente segregado.
Já no caso da Área de Lazer e Esportes Via
Expressa, o poder público, pressionado pelas
demandas dos moradores, opta pelo fechamento do espaço público. E, ainda que sua
constituição tenha contado com a participação de várias entidades, ele desafia uma outra dimensão tão cara aos espaços públicos:
a natureza de espaço aberto a todos.
De todo modo, o que se constatou é
que as quatro praças investigadas são muito
frequentadas. Assim, como pensar em morte ou renúncia aos espaços públicos? É evidente, como revelado em todo o texto, que,
num contexto de exacerbação da criminalidade urbana nas grandes cidades, há, por
um lado, maior controle da frequência e das
interações nos espaços públicos e, por outro
lado, a intensificação das interações entre
iguais, mas as pessoas continuam se apropriando e interagindo nos espaços públicos
das grandes cidades.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
149
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
Luciana Teixeira de Andrade
Socióloga pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Sociologia pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro. Professora do Programa de Pós-Graduação e do
Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas
Gerais, Brasil).
[email protected]
Juliana Gonzaga Jayme
Cientista Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Antropologia e Doutora
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e dos
cursos de Publicidade e Propaganda e Serviço Social (Minas Gerais, Brasil)
[email protected]
Rachel de Castro Almeida
Arquiteta Urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Doutoranda e Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professora de
Sociologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordenadora da equipe de
tutoria da Associação Internacional de Educação Continuada (Minas Gerais, Brasil)
[email protected]
150
Notas
(*) Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no XXVIII Encontro Anual da Anpocs, no grupo
de trabalho Metrópoles: segmentação, sociabilidade e cidadania. A pesquisa que deu origem a
este trabalho foi financiada pelo Fundo de Incentivo à Pesquisa da PUC Minas e o trabalho de
campo contou com a decisiva participação de Heloísa Helena de Souza e Jeremias Farias Abbud,
alunos do Curso de Ciências Sociais da PUC Minas.
(1) Ver o trabalho de Leite (2004) sobre o histórico bairro do Recife. Sobre os usos do espaço público
em Belo Horizonte, ver Almeida (2001); Teixeira (2003); Gois (2003).
(2) Alguns grupos fazem dos espaços públicos espaços da privacidade, quando, por exemplo, os
transformam em local de moradia, como aponta Araújo (2004, p. 10): “A construção de moradias improvisadas explicita (...) a presença da esfera privada em locais públicos, trazendo um
novo recorte para pensarmos as fronteiras entre público e privado”.
(3) Trata-se do Programa Adote o Verde da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. “Parceria entre a
administração municipal e a iniciativa privada e a comunidade em geral, com o objetivo de viabilizar a implantação e, principalmente, a manutenção de parques, praças, jardins, canteiros centrais de avenidas e demais áreas verdes públicas da cidade. É responsável, hoje, pela manutenção de cerca de 300 espaços verdes do município” (site da PBH, acessado em agosto de 2004).
(4) Nessa praça um grupo de jovens consome regularmente maconha. Eles participaram da pesquisa
com a condição, proposta por nós, de que não seriam identificados. Por isso o bairro e a localização precisa da praça não são revelados e a denominamos Praça X.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
(5) Sobre as praças centrais e suas relações com o plano original da cidade ver Arroyo (2004).
(6) Cada AED – também denominada área de ponderação – compreende um conjunto de bairros cujo
número varia segundo as suas respectivas densidades populacionais.
(7) A identificação dos bairros que compõem cada AED privilegiou os nomes dos bairros maiores e
mais conhecidos, como forma de facilitar a sua identificação. Ver Metrodata, Observatório das
Metrópoles. http://web.observatoriodasmetropoles.net/
(8) Optamos por utilizar o Índice de Vulnerabilidade Social para a escolha das Regionais a serem
pesquisadas por permitir identificar espacialmente as áreas de maior e menor vulnerabilidade
social em Belo Horizonte (Nahas, 2002).
(9) Devido à sua dimensão, a prefeitura a classifica como parque, mas aqui é considerada como praça
por ter forma e usos similares às praças, e, especialmente, porque seus frequentadores a chamam de praça.
(10) Em Belo Horizonte, as favelas são denominadas vilas pelo poder público e em muitos lugares essa denominação é também empregada pelos moradores, que a preferem devido às conotações
negativas do termo favela. Neste texto usaremos ora uma, ora outra denominação.
(11) Além de vigiarem os carros, em alguns eventos os moradores da Vila são contratados como seguranças. Sobre as difíceis relações entre estratos sociais diferentes, mas que vivem próximos, ver
Ribeiro et al. (2004).
(12) Na região existem três associações. A mais antiga é a Associação dos Moradores do Bairro Belvedere (AMBB), que reúne os moradores do Belvedere I e II. Com a aprovação do Belvedere III
surgiram mais duas associações: a Associação dos Amigos do Bairro Belvedere (AABB) e a Associação dos Comerciantes do Belvedere.
(13) Como esse espaço não existe oficialmente como praça, até porque praça é um espaço de domínio público, não foi possível, nos registros de crimes da Polícia Militar, isolar aqueles referentes ao local. O que se tem são registros dos crimes ocorridos nas ruas que contornam a praça.
Segundo esses dados, em 2003 foram registrados aí três crimes: um roubo à mão armada de
veículo automotor, um roubo à mão armada a transeunte e um roubo a transeunte.
(14) Todos os garotos entrevistados disseram na época (2004) frequentar a praça há um ou dois anos.
Numa pesquisa anterior nessa mesma praça, durante o ano de 2000, não foi registrada a presença desse grupo.
(15) Jeremias Abbud, estudante do curso de Ciências Sociais e Júlia Guimarães Mendes, estudante do
curso de Jornalismo, ambos da PUC Minas.
Referências
ALMEIDA, R. de C. (2001). Espaço público e paisagem urbana: um estudo sobre duas praças de Belo
Horizonte. Dissertação de Mestrado Belo Horizonte, PUC Minas.
ANDRADE, L. T. de. (2001). Condomínios fechados da Região Metropolitana de Belo Horizonte: novas
e velhas experiências. Anais do IX Encontro Nacional da Anpur, Rio de Janeiro, 28 de maio e 1º
de junho, v. 2, pp. 936-943.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
151
luciana teixeira de andrade, juliana gonzaga jayme e rachel de castro almeida
ANDRADE, L. T. de. (2003). “Segregação socioespacial e construção de identidades urbanas”. In: MENDONÇA, J. G. de e GODINHO, M. H. de L. (orgs.). População, espaço e gestão na metrópole. Belo
Horizonte, PUC-Minas.
ARAÚJO, W. M. de. (2004). População de rua em Belo Horizonte: a reinvenção de espaços domésticos
no improviso da moradia. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, PUC Minas (mimeo).
ARROYO, M. A.(2004). Reabilitação urbana integrada e a centralidade da Praça da Estação. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, PUC Minas.
AUGÉ, M. (1994). Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus.
BELO HORIZONTE (2004). Diário Oficial do Município. Belo Horizonte, Ano X, no 2172, mar.
CALDEIRA, T. P. do R. (2000). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo,
Edusp.
DAVIS, M. (1993). Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Scritta.
DUHAU, E. (2001). Las metrópolis latinoamericanas en el siglo XXI: de la modernidad inconclusa a la
crisis del espacio público. Cadernos Ippur, v. XV, n. 1, jan./jul, pp. 41-68.
GIDDENS, A. (1997). Modernidade e identidade pessoal. Oeiras, Celta.
GOIS, A. J. (2003). Parque Municipal de Belo Horizonte: público, apropriações e significações. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte. PUC Minas.
GUIMARÃES, B. M. (1991). Cafuás, barracos e barracões: Belo Horizonte, cidade planejada. Tese de
Doutorado. Rio de Janeiro, Iuperj.
152
HANSEN, R. S. (2002). El espacio público en el debate actual: una reflexión crítica sobre el urbanismo
post-moderno. Eure, Santiago, v. 28, n. 84.
KAZTMAN, R. (2001). Seducidos y abandonados: el aislamento social de los pobres urbanos. Revista
de La Cepal, n. 75.
LEITE, R. P. (2002). Contra-usos e espaço público: notas sobre a construção social dos lugares na
Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 17, n. 49, pp. 115-134.
________ (2004). Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea. Campinas, Editora Unicamp/UFS.
LOFLAND, L. H. (1985). A world of strangers: order and action in urban public space. Ilinois, Waveland
Press.
MATTA, R. da (1997). “Espaço-casa, rua e o outro mundo: o caso do Brasil”. In: A Casa e a Rua: espaço,
cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco.
NAHAS, M. I. P. (2002). “Mapeando a exclusão social em Belo Horizonte”. Disponível em: http://www.
pucminas.br/idhs
REVISTA ENCONTRO, Especial Mercado Imobiliário, Belo Horizonte, junho de 2004.
RIBEIRO, L. C. de Q.; CRUZ, G. dos R. e MABERLA, J. E. C. Proximidade e distância social: reflexões sobre
o efeito do lugar a partir de um enclave urbano. A cruzada de São Sebastião no Rio de Janeiro.
Disponível em http://web.observatoriodasmetropoles.net/. Acesso em agosto de 2004.
RODRIGUES, M. G. (2001). Zona de fronteira: os limites da gestão urbana. Dissertação de Mestrado em
Ciências Sociais. Belo Horizonte, PUC MInas.
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
espaços públicos: novas sociabilidades, novos controles
SENNETT, R. (1988). O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo, Cia. das Letras.
SERPA, A. S. P. (2003). “Apropriação social versus requalificação dos parques e praças na capital baiana”. In: ESTEVES JR., M. e URIARTE, U. M. (orgs.). Panoramas urbanos: reflexões sobre a cidade.
Salvador, EDUFBA.
________ (2007). O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo/Salvador, UFBA/Contexto.
SIMMEL, G. (1939). Sociologia: estudios sobre las formas de socialización. Buenos Aires, Espasa-Calpe.
SOUZA, M. L. de (2000). O desafio metropolitano: um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas
metrópoles brasileiras. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.
TEIXEIRA, A. E. (2003). Territórios homoeróticos em Belo Horizonte: um estudo sobre interações sociais
nos espaços urbanos da cidade. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, PUC Minas.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
153
cadernos metrópole 21
pp. 131-153
10 sem. 2009
Fundamentos da confiança:
associativismo, instituições políticoadministrativas e capital social
na Região Metropolitana de Porto Alegre*
Marcelo Kunrath Silva
Soraya Vargas Côrtes
Resumo
O objetivo deste artigo é estabelecer um diálogo
crítico com a perspectiva atualmente dominante
no debate sobre os fundamentos da confiança
e do capital social, baseada na obra de Robert
Putnam. Nesse sentido, o artigo problematiza
o argumento de que a proliferação das organizações sociais seria uma condição necessária
e, especialmente, suficiente para a geração de
confiança e, por consequência, capital social.
Com base nos dados de survey sobre Cultura
Política na Região Metropolitana de Porto Alegre, realizado pelo Observatório das Metrópoles, o presente artigo identifica a inexistência
de uma relação direta entre envolvimento associativo e níveis de confiança em instituições
políticas. Buscando responder a esse aparente
paradoxo, sustenta-se a necessidade de incorporar a dimensão político-institucional à análise
sobre os fundamentos da confiança, rompendo
com uma abordagem exclusivamente centrada
no associativismo.
Abstract
This paper critically examines an approach
to the foundations of trust and social capital
that is inspired by the very influential work
of Robert Putnam. It discusses the argument
that the spread of civil organizations is a
necessary and sufficient condition for building
up trust and, as a consequence, social capital.
Through the analysis of a survey’s data on
Political Culture in the Metropolitan Region of
Porto Alegre, the paper identifies the lack of a
direct relationship between civic engagement
and levels of trust in political institutions.
Facing what seems to be a paradox, the
paper sustains that to properly understand
the foundations of trust, the analysis must
take into account the political-institutional
dimensions rather than focusing only on civic
engagement.
Palavras-chave: associativismo; instituições;
confiança; capital social.
Keywords: civic engagement; institutions;
trust; social capital.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
Introdução
156
Assiste-se, na última década, à emergência
de um aparente consenso entre amplos segmentos da comunidade científica e membros
de instituições diversas (Estado, organismos
internacionais, ONGs, etc.) em torno da centralidade das organizações da sociedade civil na geração de confiança e solidariedade,
constituindo o capital social que permitiria
a superação de diversos problemas sociais
e políticos relacionados à pobreza, ao subdesenvolvimento, à consolidação da democracia, à qualidade do desempenho governamental. Fundado na generalização – e,
muitas vezes, simplificação – do argumento
de Robert Putnam, que identifica na desigualdade de capital social o fator explicativo para as diferenças entre o desempenho
institucional e o desenvolvimento econômico
do Norte e do Sul da Itália, esse aparente
consenso gerou não apenas uma fértil literatura acadêmica, mas também um amplo
conjunto de programas e políticas voltados
à produção de capital social a partir do estímulo às práticas associativas.
O objetivo deste artigo é estabelecer
um diálogo crítico com essa perspectiva,
problematizando o argumento de que a
proliferação das organizações sociais seria
uma condição necessária e, especialmente,
suficiente para a geração de confiança e,
por consequência, capital social no sentido
atribuído por Putnam a esse conceito.1 Com
base nos dados do survey sobre Cultura
Política na Região Metropolitana de Porto
Alegre (RMPA),2 desenvolvida no âmbito do
Observatório das Metrópoles, o presente artigo identifica a inexistência de uma correlação direta entre envolvimento associativo e
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
elevação dos níveis de confiança, contrariando, assim, o consenso apontado anteriormente. Buscando responder a esse aparente
paradoxo, sustenta-se a necessidade de incorporar a dimensão político-institucional à
análise sobre os fundamentos da confiança,
rompendo com uma abordagem exclusivamente centrada no associativismo.3
Para desenvolver a análise, o artigo
apresenta a seguinte estrutura: na próxima
seção, é feita uma sintética apresentação dos
argumentos de autores que problematizam
a perspectiva atualmente dominante na literatura sobre confiança e o capital social, a
partir da defesa da incorporação da dimensão político-institucional; na seção seguinte,
são analisados os dados sobre o envolvimento associativo na RMPA; posteriormente,
são apresentados os dados sobre os níveis
de confiança entre a população pesquisada;
na seção que segue, são analisadas as avaliações dos entrevistados sobre o desempenho dos atores e instituições político-administrativos; por fim, o artigo conclui com o
argumento de que o baixo nível de confiança observado tende a ser melhor explicado
pela interpretação dos entrevistados sobre
o contexto político-institucional no qual os
pesquisados estão inseridos do que pelo envolvimento no tecido associativo local.
Fundamentos da
confiança: bringing
the political institutions
back in4
Robert Putnam, especialmente a partir da
análise desenvolvida no livro Comunidade
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
e Democracia, estabeleceu uma perspectiva que se tornou, ao longo da última década, um dos principais focos de interesse de
cientistas sociais. Tal perspectiva, que adota
diversos elementos da análise de Alexis de
Tocqueville em A Democracia na América,
pode ser sintetizada da seguinte forma:
a configuração associativa, na medida em
que é a fonte da confiança e das normas
que constituem o estoque de capital social
de uma determinada sociedade, possui um
efeito determinante no desempenho das instituições e, no limite, na definição dos níveis
de desenvolvimento dessa sociedade. Dessa
forma, Putnam e os adeptos dessa perspectiva tendem a estabelecer uma correlação
direta entre níveis de confiança e configuração associativa (em geral, operacionalizada quantitativamente enquanto número de
associações e volume de filiações); ou seja,
quanto maior o número de associações e o
volume de filiados a elas, maiores os níveis
de confiança (e, assim, de capital social).
Apesar de obscurecidos pela grande
repercussão e aceitação da perspectiva de
Putnam, especialmente entre agências de
desenvolvimento e organismos financeiros
internacionais, alguns autores têm problematizado os fundamentos dessa perspectiva
a partir de diversos argumentos. Neste artigo, o interesse concentra-se naqueles autores que têm confrontado a relação causal
unidirecional que Putnam institui entre configuração associativa, níveis de confiança e
desempenho político-institucional.
Um dos autores que confronta de maneira mais direta e contundente essa abordagem unidirecional é Omar Encarnación,
no livro que tem o sugestivo título The Myth
of Civil Society. A partir da fundamentação
empírica oferecida pela análise dos processos
de redemocratização na Espanha e no Brasil,
esse autor sustenta a necessidade de inverter o sentido da relação causal estabelecida
por Putnam, defendendo que os níveis de
confiança tendem a ser determinados menos
pela configuração associativa do que pela
configuração e desempenho das instituições
político-administrativas.5 Para ele, deve-se
esperar que a confiança social, as redes de
reciprocidade e outros componentes do capital social floresçam em contextos no qual
o sistema político é efetivo e bem institucionalizado. Nas sociedades em processo de democratização, o contexto
[...] político-institucional inclui um governo que seja comprometido com os
valores e práticas da democracia, um
confiável e coerente aparato estatal e
partidos políticos com profundas raízes
na sociedade. Estas condições provêm
as melhores perspectivas para o bemestar geral da sociedade, tanto em termos de estabilidade política quanto em
termos de desenvolvimento econômico,
que, por sua vez, proporciona o fundamento ideal para o aumento da capacidade dos indivíduos confiarem uns nos
outros e se engajarem em esforços de
colaboração no apoio da democracia.
Tais condições também facilitam a confiança no sistema político, um requisito crítico para as instituições políticas
executarem com sucesso a integração
da sociedade em torno do projeto de
democratização e oferecer aos atores
sociais meios efetivos de representação
política. Em contraste, nós devemos esperar que a formação de capital social
seja minada, senão completamente paralisada, por instituições políticas ineficientes ou precariamente desenvolvidas.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
157
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
De fato, as formas mais negativas de
capital social (por exemplo, desconfiança e cinismo) são prováveis de emergir
deste contexto político. (Encarnación,
2003, pp. 8-9)
158
Segundo Encarnación, o processo de
redemocratização brasileiro ofereceria um
dos melhores exemplos para sustentar a
crítica ao modelo analítico de Putnam, na
medida em que seria um caso no qual se
combinaria um expressivo crescimento e
complexificação do tecido associativo com
um marcante decréscimo dos níveis de confiança interpessoal e institucional. 6 A resposta para esse resultado se encontraria
no precário desempenho das instituições
político-administrativas brasileiras no período. Para ele, apesar da existência de sinais
de uma florescente sociedade civil, de um
impressionante nível de engajamento dos
cidadãos em grupos voluntários de quase
todos os tipos e propósitos, o capital social
é pouco disponível no Brasil. O Brasil é “um
verdadeiro deserto” no que se refere ao
indicador empírico básico de capital: a confiança social. O autor relaciona isso à pobre
performance dos governos brasileiros no
período pós-transição e o declínio institucional que afligiu o sistema político do país
nas últimas décadas (ibid., p.12).
Outro autor que aborda criticamente o
argumento de Putnam é Sidney Tarrow, que
destaca que a “falta da agência do Estado no
livro Comunidade e Democracia é uma das
maiores falhas do seu modelo explicativo”
(1996, p. 395). Para Tarrow, o apego de
Putnam a uma perspectiva comprometida
com a concepção da vida associativa como
fonte única de capital social, precedendo e
determinando o desempenho institucional,
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
lhe impossibilitou apreender, na sua análise
da história italiana, o decisivo impacto das
distintas conformações institucionais do
Norte e do Sul da Itália na estruturação da
vida associativa em cada uma dessas regiões.
Como salienta o autor,
[...] o caráter do Estado é externo ao
modelo, sofrendo os resultados da incapacidade associativa regional, mas sem
responsabilidades pela produção desta.
(…) nós podemos ficar satisfeitos com
a interpretação da capacidade cívica como um produto local no qual o Estado
não desempenhe nenhum papel? (Ibid.,
p. 395)
Da mesma forma que Encarnación e
Tarrow, Sheri Berman também responde
negativamente a esse questionamento. Baseando-se na análise da crise da República
de Weimar e ascensão do nazismo na Alemanha, Berman demonstra que, ao contrário do “círculo virtuoso” estabelecido pelos
tocquevillianos – entre os quais, Putnam –
o mero crescimento do associativismo não
pode ser tomado como um indicador de aumento dos níveis de confiança ou de vitalidade das instituições democráticas. No processo analisado, ao contrário, a autora mostra
que o crescimento associativo se vincula diretamente ao declínio da confiança e à crise
institucional, sendo um dos mecanismos que
possibilitou a ascensão do Partido NacionalSocialista ao poder. Assim, conclui a autora,
O caso alemão deveria nos tornar céticos sobre vários aspectos da teoria neotocquevilliana. Em particular,
o desenvolvimento político alemão
levanta questões sobre aquilo que,
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
recentemente, tornou-se praticamente
um senso comum, qual seja que existe
uma relação direta e positiva entre uma
rica vida associativa e uma democracia
estável. Sob certas circunstâncias, o
caso é claramente o oposto: o associativismo e as perspectivas da estabilidade democrática podem, de fato, estar
inversamente relacionados. Além disto,
muitas das consequências do associativismo enfatizadas pelos pesquisadores
neotocquevillianos – fornecer habilidades políticas e sociais aos indivíduos,
criar vínculos entre os cidadãos, facilitar a mobilização, diminuir os obstáculos à ação coletiva – podem ser direcionados tanto para fins antidemocráticos
quanto democráticos. Talvez, assim,
associativismo deva ser considerado
uma variá vel politicamente neutra –
nem inerentemente bom nem inerentemente mal, mas, antes, cujos efeitos
dependem do amplo contexto político.
(Berman, 1997, pp. 426-427)
Partindo dessas problematizações ao
modelo analítico de Putnam, este artigo critica a desconsideração da dimensão políticoinstitucional nas análises sobre confiança, na
medida em que as instituições constituem
um fator determinante na estruturação das
representações e práticas dos agentes sociais. Como salienta Boschi (1987, p.19),
As instituições organizam a experiência diária dos indivíduos, dando forma
aos ressentimentos e definindo as demandas e metas de ação. Também são
um determinante implícito das formas
eventualmente assumidas pelo protesto,
no sentido de que é a vida institucional
que agrega e dispersa as pessoas.
Nesse sentido, adota-se a hipótese de
que os níveis de confiança estão mais relacionados às avaliações da população sobre o
desempenho dos atores e instituições político-administrativos do que ao envolvimento
associativo. Assim, em contextos nos quais
a avaliação do campo político-institucional
é predominantemente negativa, o nível de
confiança da população, independentemente
da inserção associativa, tende a ser baixo.
Nesses contextos, de fato, o envolvimento
associativo pode se constituir menos em um
indicador ou fonte de confiança e mais em
um mecanismo de autoproteção ante um
ambiente interpretado como ameaçador.
Atuação sociopolítica
e inserção associativa
na RMPA
Para caracterizar o nível de envolvimento
associativo da população da RMPA, esta
seção utiliza dois conjuntos de informações
disponibilizados pela pesquisa: o que trata
da participação dos entrevistados em ações
sociopolíticas e outro sobre a participação
dos entrevistados em associações.
Conforme pode ser observado na Tabela 1, a experiência de atuação sociopolítica
dos entrevistados, indicada pela a assinatura
de petições e, especialmente, abaixo-assinados é a alternativa de ação mais difundida
na RMPA: 37,7% deles já o fizeram (289
em 768). Essa forma de ação, caracterizada
pelo seu baixo custo para os participantes e
pelo baixo risco envolvido, apresenta uma
longa tradição na região, sendo empregada
tanto por movimentos reivindicativos quanto
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
159
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
Tabela 1 – Experiência de ação social e política – RMPA – 2007
Tipo de ação
Assinar uma petição ou abaixo-assinado
Participar num comício ou reunião política
Participar em manifestação
Boicotar produtos por razões políticas, éticas e ambientais
Contatar político ou alto funcionário do Estado
Dar dinheiro ou recolher fundo para causas públicas
Participar num fórum através da internet
Contatar/aparecer na mídia
Nunca fez
Fez
NS/NR
Entrevistados
Entrevistados
Entrevistados
Nº
%
Nº
%
Nº
%
449
561
603
619
634
653
645
677
58,5
73,1
78,5
80,6
82,6
85,1
83,9
88,1
289
178
147
107
101
96
79
52
37,7
23,2
19,2
13,9
13,2
12,5
10,3
6,7
30
29
18
42
33
19
44
39
3,9
3,8
2,3
5,5
4,3
2,5
5,7
5,1
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
160
pelas redes de clientela política. Em segundo
lugar, com presença na trajetória de quase
um quarto dos entrevistados (178 em 768),
encontra-se a participação em comícios ou
reuniões políticas, indicando o envolvimento mais ou menos intenso de um segmento
significativo dos entrevistados com a política
partidária.
Com um percentual um pouco menor,
próximo a 20% (147 em 768), encontrase a participação em manifestações. Mesmo
que esse valor, em termos absolutos, possa
ser avaliado como baixo em relação ao total
de entrevistados, não pode ser desprezado
o fato de quase um quinto dos entrevistados
ter tido alguma experiência de participação
em manifestações. Dado o custo, em geral,
expressivo desse tipo de ação coletiva e os
riscos inerentes a tais ações, esses percentuais podem ser considerados como relevantes. Esse dado exige relativizar a interpretação sobre a existência de uma aversão generalizada ao envolvimento em ações coletivas
entre os brasileiros, 7 indicando que, em
certas conjunturas, uma parcela expressiva
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
dessa população apresentou as condições e
disposições para inserir-se em processos de
mobilização.
Outro aspecto que confere destaque ao
percentual de participantes de manifestações
e o torna relativamente elevado é a comparação com os contatos diretos com políticos.
Na medida em que a política brasileira é retratada como sendo fortemente marcada por
práticas clientelistas, poder-se-ia se esperar
uma significativa disseminação de relações
diretas entre políticos e cidadãos, uma vez
que esses contatos seriam os canais privilegiados para a mediação clientelista dos interesses sociais junto ao poderes públicos. No
entanto, os dados mostram que os contatos
diretos com políticos têm uma presença relativamente pequena entre os entrevistados,
tendo sido uma ação já praticada por apenas
13,2% dos mesmos (101 em 768).
O envolvimento associativo dos entrevistados está relacionado, primeiramente, à
importância da religiosidade na conformação
do tecido associativo da RMPA. Conforme
pode ser observado na Tabela 2, a inserção
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
Tabela 2 – Pertencimento associativo por tipo de associação – RMPA – 2007
Tipo de associação
Igreja ou grupo religioso
Grupo desportivo, recreativo ou cultural
Sindicato, grêmio ou associação profissional
Outra associação voluntária
Partido político
Nunca pertenceu
Pertence ou pertenceu
NS/NR
Entrevistados
Entrevistados
Entrevistados
Nº
%
Nº
%
Nº
%
331
517
546
532
595
43,1
67,3
71,1
69,3
77,5
419
235
212
171
165
54,6
30,6
27,6
22,2
21,4
18
16
10
65
8
2,3
2,1
1,3
8,5
1,1
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
em organizações de caráter religioso constitui-se na principal opção de associativismo,
sendo essa a única forma de pertencimento associativo que é ou já foi experimentada por mais da metade dos entrevistados
(54,6%, 419 em 768). Cerca de 30% dos
entrevistados têm ou tiveram participação
em organizações desportivas/recreativas/
culturais (30,6%, 235 em 768) e em sindicatos/associações profissionais (27,6%,
212 em 768). Ou seja, quase um terço dos
entrevistados possuía experiência de envolvimento nesses tipos de organizações sociais. Além disto, aproximadamente 20%
responderam ter experiência de participação
em outros tipos de associações voluntárias
(22,2%, 171 em 768) e em partidos políticos (21,4%, 165 em 768). No conjunto
dos entrevistados, apenas 26,2% (201 em
768) declararão não possuir nenhum tipo
de experiência associativa, o que indica que
aproximadamente três quartos da população pesquisada têm ou teve algum tipo de
engajamento associativo.
Os dados obtidos na pesquisa mostram,
então, que a população da RMPA se caracteriza por uma experiência de envolvimento
sociopolítico e associativo que não pode ser
desconsiderada. Ao contrário, observa-se
que um volume significativo de entrevistados apresenta algum tipo de inserção associativa e, em menor grau, de participação
em ações políticas e/ou reivindicativas. Tais
informações tendem, assim, a sustentar a
interpretação de senso comum que identifica a RMPA como um espaço social caracterizado por uma tradição de organização
e mobilização social e política, constituindo
um contexto associativo propício, segundo
o argumento de Putnam, à geração de altos níveis de confiança e, assim, de capital
social.
A desconfiança
generalizada
Contrariamente ao resultado esperado a
partir do modelo analítico de Putnam, os
dados da pesquisa Cultura Política na RMPA
apontam para um contexto de baixíssimos
níveis de confiança, tanto em relação às
instituições como em termos das relações
interpessoais.
No que se refere à confiança nas instituições, 8 predomina a avaliação negativa sobre a intencionalidade dos agentes
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
161
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
governamentais. Na Tabela 3, observa-se
que mais de 55% dos entrevistados avaliam que os governantes tendem a agir de
forma incorreta, enquanto menos de 30%
concordam que os integrantes dos governos tenderiam a agir com correção. Ou seja, para a maior parte dos entrevistados, os
agentes públicos são, por princípio, objeto
de desconfiança.
Essa interpretação é corroborada pela
preponderância entre os entrevistados da
visão de que a atuação dos políticos é motivada principalmente pela busca de vantagens pessoais. A Tabela 4 mostra que praticamente 80% dos entrevistados consideram que a obtenção de vantagens pessoais
é a razão básica para a atuação política dos
políticos e não o interesse público. Assim,
além de não atuarem corretamente, a maior
parte dos indivíduos envolvidos na política
institucional é vista como sendo movida por
interesses egoístas.
Tabela 3 – Concordância com a afirmação “Pode-se confiar
que as pessoas do governo farão o que é certo” – RMPA – 2007
Entrevistados
Nível de concordância
162
Nº
72
139
103
155
275
24
768
Concorda totalmente
Concorda em parte
Não concorda nem discorda
Discorda em parte
Discorda totalmente
NS/NR
Total
%
9,4
18,1
13,4
20,2
35,8
3,1
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
Tabela 4 – Concordância com a afirmação “A maior parte
dos políticos está na política para obter vantagens pessoais” – RMPA – 2007
Entrevistados
Nível de concordância
Nº
456
158
49
48
39
18
768
Concorda totalmente
Concorda em parte
Não concorda nem discorda
Discorda em parte
Discorda totalmente
NS/NR
Total
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
%
59,4
20,6
6,4
6,2
5,1
2,3
100,0
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
Tabela 5 – Frequência com que as pessoas tentarão tirar vantagem
ou serem justas nas relações com outras pessoas – RMPA – 2007
Entrevistados
Frequência
Nº
239
305
121
67
36
768
Tentarão tirar vantagem sempre
Tentarão tirar vantagem às vezes
Serão justas às vezes
Serão justas sempre
NS/NR
Total
%
31,1
39,7
15,8
8,7
4,7
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
Tabela 6 – Confiança interpessoal – RMPA – 2007
Entrevistados
Confiança
Nº
58
156
258
271
25
768
As pessoas quase sempre são de confiança
As pessoas algumas vezes são de confiança
Algumas vezes todo o cuidado é pouco
Quase sempre todo o cuidado é pouco
NS/NR
Total
%
7,6
20,3
33,6
35,3
3,3
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
Essa mesma avaliação sobre o predomínio de uma lógica “predatória” é encontrada nas opiniões dos entrevistados sobre a natureza das relações interpessoais.
A Tabela 5 mostra que mais de 70% dos
entrevistados consideram a principal intenção das pessoas, ao se relacionarem umas
com as outras, é a busca de vantagens e
não o estabelecimento de relações em que
procuraram ser justas.
Nesse sentido, não é surpreendente
que esses mesmos entrevistados destaquem
a necessidade de adotar uma postura de
precaução nas relações interpessoais. Aqui,
novamente, quase 70% das respostas apontam para a necessidade de tomar cuidado
em relação aos outros indivíduos, indicando
claramente a presença de uma desconfiança
generalizada que também está presente na
relação com as instituições político-administrativas.
Não há, portanto, uma relação direta
entre configuração associativa e níveis de
confiança. Conforme caracterizado na seção
anterior, a RMPA apresenta uma população
com significativa experiência de envolvimento associativo, mas essa experiência, paradoxalmente – de acordo com a prescrição do
modelo de Putnam –, não tem se constituído
numa fonte efetiva de confiança e, assim, de
capital social. De fato, os níveis de confiança não apresentam variações significativas
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
163
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
quando se diferenciam os entrevistados em
termos da experiência associativa prévia; ou
seja, os níveis de confiança institucional e interpessoal tendem a ser relativamente similares (baixos), tanto entre aqueles que têm
experiência associativa quanto entre aqueles
que não têm.
Decifrando o “paradoxo”:
desempenho institucional
e (des)confiança
164
Ante a incapacidade do argumento de
Putnam oferecer uma interpretação adequada para os dados sobre confiança coletados
na pesquisa Cultura Política na RMPA, recorre-se, nesta seção, aos argumentos apresentados pelos críticos da perspectiva de
Putnam, no sentido de comprovar sua sustentabilidade empírica no contexto em foco.
Nesse sentido, busca-se apreender a avaliação dos entrevistados sobre o desempenho
dos atores e instituições político-administrativos e, especialmente, se essa avaliação
pode ser correlacionada9 aos baixos níveis
de confiança identificados entre a população
pesquisada.
Um primeiro indicador para analisar a avaliação política dos entrevistados
refere-se à forma como estes percebem o
grau de abertura dos governantes para a
participação da população. Conforme pode
ser observado na Tabela 7, praticamente
dois terços dos entrevistados (62,9%, 483
em 768) avaliam que suas opiniões, o que
eles pensam, interessam pouco ou não são
de nenhum interesse para os governantes.
Essa informação, isoladamente, poderia
expressar uma declaração de incompetência
política por parte dos entrevistados. Mas,
como 53,3% (409 em 768) desses mesmos
respondentes afirmam ter algo a dizer sobre a ação governamental, essa suposição
não se confirma. Ou seja, os entrevistados
se autoavaliam como cidadãos dotados de
competência para opinar sobre assuntos relativos à gestão pública e capacitados para
contribuir com a ação governamental, mas
têm sua participação desestimulada ou mesmo bloqueada, pelo menos em parte, pela
ausência de interesse dos governantes nesta
participação.
Tabela 7 – Concordância com as afirmações “Eu acho que
o governo não liga muito para o que as pessoas como eu pensam” e
“Não tenho nada a dizer sobre o que o governo faz” – RMPA – 2007
Nível de concordância
Eu acho que o governo não liga muito
para o que pessoas como eu pensam
Entrevistados
Nº
Concorda totalmente
Concorda em parte
Não concorda nem discorda
Discorda em parte
Discorda totalmente
NS/NR
Total
313
170
90
80
65
50
768
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
Não tenho nada a dizer sobre
o que o governo faz
10 sem. 2009
Entrevistados
%
40,8
22,1
11,7
10,4
8,5
6,5
100,0
Nº
%
–
100
106
87
149
260
66
–
13,0
13,8
11,3
19,4
33,9
8,6
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
Essa avaliação de que na administração pública predominam as orientações
particularistas é reforçada por dois outros
indicadores. O primeiro deles se refere ao
acesso dos cidadãos aos serviços públicos.
Como a Tabela 9, para quase três quartos
dos entrevistados (73,8%, 567 em 768)
o acesso e/ou a qualidade dos serviços públicos é mediada por relações pessoais. Ou
seja, ao invés dos princípios universalistas e
igualitários de cidadania instituídos no ordenamento jurídico, a maioria dos entrevistados considera que o acesso a bens e serviços
públicos municipais e a qualidade do tratamento a eles dispensado pela administração
municipal depende de critérios particularistas baseados em vínculos interpessoais.
Juntamente com essa avaliação de
que os governantes são pouco permeáveis
à participação dos cidadãos, a visão negativa sobre os atores político-institucionais
se expressa no conceito dos entrevistados
sobre diferentes aspectos do desempenho
da administração pública. Nesse sentido, a
Tabela 8 mostra que 54% dos entrevistados (415 em 768) afi rmam que os administradores públicos apresentam pouco ou
nenhum comprometimento em servir ao
público. Isso reafirma – de outro modo, ao
particularizar a atuação dos administradores públicos – o predomínio da opinião de
que os políticos estão voltados principalmente para o atendimento de interesses
particulares.
Tabela 8 – Avaliação sobre o comprometimento
da administração pública em servir as pessoas – RMPA – 2007
165
Entrevistados
Nível de comprometimento
Nº
109
227
309
106
17
768
Muito comprometida
De alguma forma comprometida
Pouco comprometida
Nada comprometida
NS/NR
Total
%
14,2
29,6
40,2
13,8
2,2
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
Tabela 9 – Tratamento dispensado pelo serviço público municipal
a uma determinada pessoa, se ele depende de quem ela conhece – RMPA – 2007
Entrevistados
Dependência
Nº
284
283
103
68
30
768
Definitivamente sim
Provavelmente sim
Provavelmente não
Definitivamente não
NS/NR
Total
%
37,0
36,8
13,4
8,9
3,9
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
Tabela 10 – Envolvimento com corrupção
na administração pública brasileira – RMPA – 2007
Nível de envolvimento em corrupção
Ninguém envolvido
Poucos envolvidos
Alguns envolvidos
Muitos envolvidos
Todos envolvidos
NS/NR
Total
Entrevistados
Nº
19
62
157
262
253
15
768
%
2,5
8,1
20,4
34,1
32,9
2
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
166
O segundo indicador refere-se à avaliação da população pesquisada sobre a presença de corrupção na administração pública. A
Tabela 10 mostra que 67% dos entrevistados (515 em 768) consideram que muitos
ou todos aqueles que atuam na administração pública estão envolvidos em corrupção.
Assim, para a maioria dos entrevistados, a
corrupção não constitui um desvio de conduta eventual de um ou outro governante
ou funcionário público, mas sim um procedimento institucionalizado na estrutura e funcionamento da administração pública.
Por todas essas avaliações negativas,
não é surpreendente o escasso interesse que
a maioria dos entrevistados diz ter em relação à política (65,4% responderam ter pouco ou nenhum interesse pela política), um
campo marcado por condutas moralmente
condenadas e, ainda, pouco permeável aos
interesses daqueles destituídos dos recursos
que garantem o acesso aos bens e serviços
públicos. Apresentando um baixo interesse
pela política, descrentes do interesse dos governantes por suas opiniões e avaliando negativamente a atuação dos administradores
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
públicos, seria esperado que os entrevistados apresentassem o baixo nível de confiança – especialmente em relação às instituições político-administrativas – identificado
anteriormente.
Um argumento que poderia ser utilizado para problematizar essa conclusão
seria a inversão do sentido da explicação:
ao invés de tomar o desempenho políticoinstitucional como gerador do desinteresse e da desconfiança, ver o desinteresse e
a desconfiança como fatores preexistentes
que explicariam o desempenho – ou a avaliação da população sobre o desempenho –
político-institucional. Ou seja, uma parte do
argumento de Putnam poderia ser retomada, aquela que considera que o desempenho
institucional é determinado pelos estoques
de capital social previamente existentes.
De fato, esse é um argumento relativamente constante na literatura que trata
da cultura política dos setores populares
no Brasil, seja nas vertentes clássicas da
Cultura da Pobreza e da Teoria da Marginalidade, seja em abordagens mais recentes
dos estudos sobre Transição Democrática
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
(Perlman, 1981; Moisés, 1995). Apesar de
suas diferenças, essas abordagens tendem
a compartilhar a concepção de que parcelas
significativas da população – especialmente
os segmentos ditos de “baixo refinamento
político”, ou seja, aqueles de menor renda
e menos escolarizados – apresentam um desinteresse inerente pela política, uma visão
cínica da realidade e, no limite, um desapego em relação aos valores e condutas que
definiriam uma cultura política democrática.
Tal linha de argumentação, em muitos casos, acabou levando ao ponto de vista “elitista” criticado por Zaluar (1994, p. 69),
segundo o qual
[...] o atraso do sistema político brasileiro passa sutilmente a ser entendido
(...) não como o resultado da desigualdade aberrante e do autoritarismo necessário para mantê-la, mas como um
efeito perverso da existência de massas
empobrecidas, que não têm ideias nem
meios de ação política modernos. Os
pobres passam a ser vistos, por este
prisma, como inimigos inconscientes da
democracia.
Os dados coletados na pesquisa, no
entanto, não oferecem suporte a esse argumento de que a população brasileira seria politicamente desinteressada, uma vez
que os entrevistados valorizam, em diversas respostas, distintas formas de participação política. Nesse sentido, por exemplo,
60% dos entrevistados definiram o direito
de “votar sempre nas eleições” como muito importante. Com maior adesão ainda
entre entrevistados, encontram-se as opções relacionadas ao direito de participar
diretamente do processo de discussão e
decisão das ações governamentais: as alternativas “políticos escutarem os cidadãos
antes de tomarem as decisões” e “dar às
pessoas mais oportunidades de participar
nas decisões de interesse público” obtiveram uma avaliação de “muito importante”
entre 77,3% e 72,5% dos entrevistados,
respectivamente. Tais resultados indicam
claramente que os entrevistados valorizam
tanto a consulta aos cidadãos como o envolvimento direto destes no processo de
tomada de decisões.
Outro dado que contesta a visão generalizada (inclusive entre os entrevistados)
sobre o predomínio de um desinteresse pela
política pode ser observado na Tabela 11:
praticamente a metade dos entrevistados
(48,4%, 374 em 768) afirmou que seria
provável ou muito provável sua ação contra
a aprovação, pelo Congresso Nacional, de
uma lei considerada injusta. Apesar do possível viés existente na pergunta, na medida
em que a definição de algo como injusto já
é um elemento central para a emergência
de ações de contestação (Moore Jr., 1987),
essa informação indica uma disposição para
mobilização em defesa daquilo que os entrevistados consideram justo, mesmo tratandose de uma instituição bastante distanciada
da vida do cidadão comum como é o Congresso Nacional.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
167
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
Tabela 11 – Probabilidade de ação contra lei injusta em votação
no Congresso Nacional e probabilidade de esta ação receber
atenção do Congresso Nacional – RMPA – 2007
Ação contra lei injusta
Nível de probabilidade
Nº
Muito provável
Provável
Improvável
Muito improvável
NS/NR
Total
Atenção do Congresso Nacional
Entrevistados
149
223
267
76
53
768
Entrevistados
%
19,4
29,0
34,8
9,9
6,9
100,0
Nº
%
53
185
295
163
72
768
6,9
24,1
38,4
21,2
9,4
100,0
Fonte: Survey Rede Observatório das Metrópoles – 2007.
168
No entanto, o que importa destacar é o
predomínio, entre os entrevistados, de um
sentimento de que é improvável ou muito
improvável que os membros do Congresso
Nacional deem atenção a suas reivindicações
(59,6%, 458 em 768). Na medida em que a
ação política depende não apenas de um sentimento de injustiça, mas também de uma
crença na possibilidade de que esta ação seja eficaz para modificar a situação injusta,10
os dados ajudam a explicar os significativos
obstáculos institucionais ao desenvolvimento
de maiores níveis de confiança entre a população em análise.
Conclusões
Com base nos dados da pesquisa Cultura
Política na RMPA, realizada pelo Observatório das Metrópoles, o presente artigo
demonstrou a ausência de sustentação empírica para a generalização do argumento
que parece ter assumido uma posição de
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
verdade incontestável entre segmentos de
pesquisadores e membros de agências de
desenvolvimento; qual seja: que o associativismo seria a fonte básica da confiança e,
assim, de capital social.
Ao contrário dessa relação causal direta
e unidirecional entre associativismo e confiança, os dados coletados entre a população
da RMPA mostram um resultado aparentemente paradoxal (do ponto de vista do argumento acima): níveis relativamente altos
de envolvimento associativo e, ao mesmo
tempo, níveis muito baixos de confiança interpessoal e político-institucional.
A análise mostra, por outro lado, que
se sustentam os argumentos daqueles autores que, críticos do enfoque de Putnam,
defendem a hipótese de que a configuração
e o desempenho político-institucional são
fatores fundamentais para a determinação
dos níveis de confiança em um determinado
contexto social. Nesse sentido, os dados da
pesquisa indicam uma forte correlação entre
o baixo nível de confiança manifestado pelos
entrevistados e a avaliação extremamente
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
negativa dos mesmos sobre os atores e instituições político-administrativos.
Esses resultados não devem ser vistos,
no entanto, como suportes para a adoção do
ponto de vista de que a configuração associativa é irrelevante na análise da confiança.
Tal postura representaria a repetição, de
forma inversa, do mesmo equívoco cometido por aqueles que desconsideram a importância das condições político-institucionais.
Retomando a citação de Berman no início
deste artigo, o que se sustenta é a inexistência de um sentido pré-estabelecido normativamente na relação entre configuração
associativa e confiança. Nessa perspectiva,
ao contrário, a forma como a configuração
associativa incide sobre os níveis de (des)
confiança seria condicionada pelo contexto
político-institucional.
Na medida em que este argumento
estiver correto, observa-se que um dos desafios centrais da consolidação democrática
no Brasil encontra-se menos na ampliação
do tecido associativo11 e mais na construção de instituições político-administrativas
mais acessíveis, eficazes e transparentes (e,
assim, confiáveis) para todas/os cidadãs/ãos
brasileiras/os.
Marcelo Kunrath Silva
Mestre em doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor
do Departamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil).
[email protected]
Soraya Vargas Côrtes
Departamento de Sociologia, Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, Brasil).
[email protected]
Notas
* O presente artigo foi elaborado durante realização de pós-doutorado no Watson Institute for International Studies/Brown University. Agradeço ao CNPq e à UFRGS, que propiciaram as condições
para esta atividade.
(1) De fato, o conceito de capital social apresenta diversas e contrastantes definições. Não é objetivo
deste artigo, no entanto, inserir-se nesta discussão conceitual. Neste sentido, aceita-se aqui a
perspectiva de Putnam (1993, 1996), para quem a confiança é o componente central do capital
social, visto como um bem público. Para esta discussão conceitual, ver Lin (2001), Portes (2000),
Burt (2005).
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
169
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
(2) Este survey foi realizado no período de 18 de março a 16 de abril de 2007, entrevistando 768 habitantes da RMPA, sendo 384 moradores do município de Porto Alegre e 384 moradores de outros
municípios que integram a RMPA. Para uma análise sobre os limites dos dados de survey para
análise de capital social, ver Foley e Edwards (1999).
(3) A literatura brasileira referente às dinâmicas associativas, seja na vertente dos estudos sobre
movimentos sociais, seja nas análises que adotam a abordagem da sociedade civil, tende a estar
marcada por uma visão dicotômica das relações entre Estado e organizações sociais. Para uma
crítica aos limites analíticos dessa perspectiva e uma defesa de uma abordagem relacional, ver
Silva (2006; 2007)
(4) O título desta seção é uma alusão ao já clássico trabalho de Evans; Rueschemeyer e Skocpol
(1985).
(5) Esse argumento, na verdade, possui uma longa linhagem. Talvez o mais clássico exemplo seja o
trabalho de Norbert Elias (1993), que mostra a relação entre “civilização dos costumes” (que
envolve, entre outras aspectos, o aumento nos níveis de confiança) e construção dos Estados
Nacionais europeus. Para o autor, a geração da confiança necessária para o estabelecimento
de relações sociais “civilizadas” dependeu, entre outros fatores, da construção de um contexto
institucional específico corporificado pelo Estado moderno.
(6) Neste artigo, pelos limites do material empírico disponível, não foram claramente diferenciadas
as especificidades da confiança interpessoal e da confiança institucional. Para uma crítica a essa
falta de diferenciação na literatura sobre capital social, ver Smith (2006).
170
(7) Como destaca Santos (2006, p. 180) “O custo do fracasso das ações coletivas pode ser bastante
elevado, com significativa deterioração do status quo dos participantes, circunstância suficientemente ameaçadora para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados. Ser pobre, no
Brasil, é uma condição associada à altíssima taxa de aversão ao risco e à opção por estratégias
conservadoras de sobrevivência”.
(8) Moisés (2005) critica uma apreensão unidimensional da confiança institucional, diferenciando
cinco níveis de confiança política. Pelas limitações do material disponível para análise, não foi
possível atender às distinções analíticas propostas pelo autor.
(9) De fato, os dados disponíveis não possibilitam analisar os mecanismos explicativos da correlação
entre desempenho institucional e níveis de confiança. Assim, o presente artigo se limita à tentativa de demonstração empírica de tal correlação, sem abordar sua explicação causal. Para uma
distinção entre correlação e explicação causal, ver Dessler (1991).
(10) Como salientam McAdam; McCarthy e Zald (1999, p. 26), existe um elemento mediador entre
oportunidade, organização e ação, a saber, os significados compartilhados e conceitos por meio
dos quais as pessoas tendem a definir sua situação. Resulta imprescindível que as pessoas, pelo
menos, se sintam afetadas negativamente por uma situação determinada e acreditem que a
ação coletiva pode contribuir para solucionar esta situação. Faltando alguma dessas duas percepções, resulta altamente improvável que as pessoas se mobilizem, ainda que contem com a
oportunidade de fazê-lo (destaque nosso).
(11) Estudos recentes (IBGE; IPEA; ABONG; GIFES, 2008) mostram um significativo processo de crescimento do associativismo no Brasil.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
fundamentos da confiança: associativismo, instituições político-administrativas e capital social na RMPA
Referências
BERMAN, S. (1997). Civil society and the collapse of the Weimar Republic. World Politics. v. 49, n. 3,
pp. 401-429.
BOSCHI, R. R. (1987). A arte da associação: política de base e democracia no Brasil. São Paulo/Rio de
Janeiro, Vértice/IUPERJ.
BURT, R. S. (2005). Brokerage and closure: an introduction to social capital. Oxford, Oxford University
Press.
DESSLER, D. (1991). Beyond correlations: toward a causal theory of war. International Studies Quarterly. v. 35, n. 3, pp. 337-355.
ELIAS, N. (1993). O processo civilizador vol.2: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro, Zahar.
ENCARNACIÓN, O. G. (2003). The myth of civil society: social capital and democratic consolidation in
Spain and Brazil. New York, Palgrave Macmillan.
EVANS, P.; RUESCHEMEYER, D. e SKOCPOL, T. (eds.) (1985). Bringing the state back in. Cambridge,
Cambridge University Press.
FOLEY, M. W. e EDWARDS, B. (1999). Is it time to disinvest in social capital? Journal of Public Policy.
v. 19, n. 2, pp. 141-173.
IBGE; IPEA; ABONG; GIFES (2008). As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil
2005. Brasília, IBGE.
LIN, N. (2001). Social capital: a theory of social structure and action. Cambridge, Cambridge University
Press.
McADAM, D.; McCARTHY, J. D. e ZALD, M. N. (eds.) (1999). Movimientos sociales: perspectivas comparadas. Madrid, Istmo.
MOISÉS, J. A. (1995). Os brasileiros e a democracia – bases sócio-políticas da legitimidade democrática.
São Paulo, Ática.
________ (2005). Cidadania, confiança e instituições democráticas. Lua Nova, n. 65, pp. 71-94.
MOORE JR., B. (1987). Injustiça: as bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo, Brasiliense.
PERLMAN, J. (1981). O mito da marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. 2 ed. Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
PORTES, A. (2000). The two meanings of social capital. Sociological Forum. v. 15, n. 1, pp. 1-12.
PUTNAM, R. D. (1993). The prosperous community: social capital and public life. The American Prospect (online), Issue 13.
________ (1996). Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro, Editora
Fundação Getúlio Vargas.
SANTOS, W. G. (2006). Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social. 2 ed. Rio
de Janeiro, FGV Editora.
SILVA, M. K. (2006). Sociedade civil e construção democrática: do maniqueísmo essencialista à abordagem relacional. Sociologias. v. 8, pp. 156-179.
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
171
marcelo kunrath silva e soraya vargas côrtes
SILVA, M. K. (2007). “Dos objetos às relações: esboço de uma proposta teórico-metodológica para a
análise dos processos de participação social no Brasil”. In: DAGNINO, E. e TATAGIBA, L. (orgs.).
Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó, Argos Editora Universitária.
SMITH, T. (2006). Why social capital subverts institution building in risky settings. Qualitative Sociology.
n. 29, pp. 317-333.
TARROW, S. (1996). Making social science work across space and time: a critical reflection on Robert
Putnam's Making Democracy Work. The American Political Science Review. v. 90, n. 2, pp. 389-397.
ZALUAR, A. (1994). Condomínio do Diabo. Rio de Janeiro, Revan/Editora da UFRJ.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
172
cadernos metrópole 21
pp. 155-172
10 sem. 2009
O confronto do Orçamento
Participativo com as tradições
representativas em São Paulo
Paulo Edgar da Rocha Resende
Resumo
Instrumentos de participação direta da cidadania como o Orçamento Participativo podem
representar grande inovação na tomada de decisões de governos locais, favorecendo a transparência nas instituições, a inclusão de novos
sujeitos políticos e a justiça social na distribuição de investimentos públicos. O alcance dessa
participação, conduzida pelo Estado, terá sempre o limite estipulado pelo formato das instituiçoes liberais e os interesses dos líderes que
controlam essas instituições políticas. Neste
artigo, são analizados como e por que o Orçamento Participativo da Prefeitura Municipal de
São Paulo (2001-2004) sofreu determinados
contingenciamentos. Os resultados da pesquisa
apontam como principais fatores as estratégias
eleitorais e de governabilidade tomadas pelo
partido e líderes políticos, as alianças de governo, a diversidade do perfil de líderes políticos,
as disputas por influenciar o orçamento público
e o clientelismo enraizado nas práticas políticas
locais.
Abstract
Instruments of direct citizen participation, such
as the Participatory Budget, may represent a
big innovation in the local governments’ policymaking. Usually, they work by favouring more
transparency in the political institutions, the
inclusion of new political subjects and more
social justice in the distribution of public
resources. The scope of this participation,
conducted by the State, will always be limited
by the design of liberal institutions and the
interests of leaders controlling these political
institutions. This article discusses how and
why the Participatory Budget of São Paulo’s
municipal government (2001-2004) suffered
certain constraints. The research results point
to the electoral and governability strategies
taken by the political party and leaders, the
governmental alliances, the diversified profile
of political leaders, the competition to shape
the public budget and the clientelism rooted
in local political practices, as the main causal
elements.
Palavras-chave:
democracia participativa;
instituições liberais; governo local; cidadania;
empoderamento.
Keywords: participatory democracy; liberal
institutions; local government; citizenship;
empowerment.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
paulo edgar da rocha resende
Introdução
174
Os instrumentos de participação cidadã enfrentam enormes desafios e contradições
nas instituições políticas liberal-representativas. Ao mesmo tempo em que grupos políticos no estado conseguem abrir espaços
para aumentar a influência dos cidadãos nas
decisões políticas, essa abertura é obtida
somente de forma dosada e controlada. O
formato liberal das instituições estatais e os
interesses dos líderes políticos que chegam
através da representação a controlá-las são
os fatores fundamentais que, de maneira
deliberada ou não, limitam um “empoderamento” mais amplo e radical dos cidadãos
na política institucional.
Experiências de participação têm nas
ultimas duas décadas se diversificado e difundido por governos locais de diversos
países do mundo. O Brasil, muitas vezes tido como referência pela fama que ganhou
o Orçamento Participativo (OP) no município de Porto Alegre, foi palco de um dos
maiores desafios já visto à participação institucional, ao desenvolvê-la no orçamento
público de uma cidade com as dimensões e
complexidades que representam São Paulo
(Oliveira et ali., 2001). Apesar de notáveis
resultados positivos que evidenciavam os
esforços da Coordenação que administrava
o programa, o OP de São Paulo encontrou
limitações bastante importantes ao seu desempenho descentralizado e à efetividade
de suas decisões.
Esses limites não foram causados por
falhas metodológicas ou por falta de compromisso político daqueles que o desenvolveram, senão pelo programa estar ausente do planejamento central de atuações da
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
Prefeitura. Tal ausência deu lugar a estratégias eleitorais e de governabilidade tomadas pelo Partido dos Trabalhadores (da
então prefeita Marta Suplicy, 2001-2004)
e líderes locais, que envolveram alianças
com quase todos os partidos presentes na
Câmara Municipal e resultou no acesso de
enorme diversidade de líderes políticos a
cargos executivos. Com isso, o clientelismo
esteve longe de ser erradicado, os projetos
de consolidação de força política do partido
ganharam prioridade e a participação ficou
relegada ao segundo plano no planejamento
da cúpula governamental.
Neste trabalho, são apresentados resultados de pesquisa desenvolvida, em nível de mestrado, sobre as particularidades
do caso de São Paulo, embora entendemos
que entraves à participação são intrínsecos
a qualquer contexto local de institucionalidade liberal-representativa. O que não
significa inexistência de enorme variedade
de resultados no desempenho de mecanismos institucionais de participação cidadã
(Wampler, 2003). Apesar de que todas as
experiências são limitadas, caso contrário
estariam substituindo grande parte dos
agenciamentos representativos das demandas sociais, esses limites se constituem de
modo diferenciado e em aspectos distintos
da relação Estado-sociedade, conforme as
especifi cidades locais. Ao cartografarmos
a relação entre governantes e governados,
estamos especialmente atentos às possibilidades de liberdade dos cidadãos, que tornam sempre plausíveis a imprevisibilidade
das linhas de fuga, dos fluxos das múltiplas
vias, que escapam das somas, consensos,
acordos e linhas duras previstas e postuladas pelos liberais (Deleuze e Guattari,
1988; Foucault, 2003).
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
Temos consciência de que ao enfocar
os obstáculos político-institucionais detectados no Orçamento Participativo de São
Paulo, são deixados de lado outros importantes fatores que também podem incidir
negativamente no desempenho de um instrumento participativo, como os relativos
ao contexto cultural, social e econômico. A
opção aqui é por identificar aqueles elementos no âmbito da própria estrutura estatal,
que abrem e circunscrevem oportunidades
de participação direta dos cidadãos nas decisões político-institucionais.
A participação
desafiando o liberalismo
Desde o princípio, o sistema político liberal
caracterizou-se mais pela salvaguarda de
interesses e direitos privados e individuais,
como a propriedade e a segurança, que pela
promoção de interesses públicos e coletivos.
Buscou-se assegurar em primeiro lugar que
os indivíduos pudessem estar pacificamente separados e atuando por conta de seus
interesses pessoais, para que pudesse admitir que se unissem e lutassem em defesa
da comunidade, da justiça ou da cidadania
(Barber, 1984). O formato das instituições
políticas, com seus dispositivos constitucionais e o monopólio estatal da violência,
o testifica. O sistema de democracia liberal
estabilizou a tensão entre democracia e capitalismo através da
[...] prioridade conferida à acumulação
de capital em relação à redistribuição
social e pela limitação da participação
cidadã, tanto individual, quanto coletiva,
com o objetivo de não “sobrecarregar”
demais o regime democrático com demandas sociais que pudessem colocar
em perigo a prioridade da acumulação sobre a redistribuição. (Santos e
Avritzer, 2005. pp. 59-60)
De fato, para autores liberais da teoria democrática contemporânea, a participação
cidadã, se nutrida e maximizada, pode pôr
em perigo a estabilidade do sistema, diminuir o consenso nas normas e enfraquecer
a poliarquia.1
A abertura dos governos locais à participação cidadã representa uma inegável
ampliação dos espaços de prática cidadã e
da própria democracia. Essa ampliação está desafiando uma reconstituição das anteriores margens do sistema políticos no que
diz respeito à participação cidadã: limites no
“empoderamento” de cidadãos e de líderes
políticos para que as bases das quais depende seu funcionamento não sejam alteradas. Nessas bases, fundamentais do Estado
liberal, não se incluem a participação ativa
e constante dos cidadãos no poder político,
denominada por Benjamin Constant – um
dos pais intelectuais do liberalismo – liberdade dos antigos, em referência à democracia ateniense. O liberalismo seria a fundação
da liberdade dos modernos, também denominada liberdade negativa, que é a liberdade
individual de fazer tudo o que não afete a
liberdade do outro em não fazer o que não
é de sua própria vontade (Berlin, 1969). Tal
liberdade se afirma na autonomia individual
em agir sem interferências externas. O que
o sistema político tenta possibilitar pelo Estado mínimo e a segurança provida por suas
instituições a um desfrute pessoal e pacífico
de bens privados (Bobbio, 1989).
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
175
paulo edgar da rocha resende
176
Autores precursores do liberalismo, como Constant e mais contemporâneos como
Berlin, entendem que a liberdade negativa
é contraditória com a liberdade positiva,
entendida como a capacidade individual de
autogovernar-se. Se aceita interferências externas, desde que decididas de baixo para cima, a partir desses indivíduos comuns. Para
esses autores, a existência de uma liberdade
impossibilitaria a existência da outra. O que
fez com que a participação dos cidadãos no
Estado se constituísse como a mínima necessária para evitar a concentração de poder
dos mandatários governamentais, ao invés
de se ampliar com objetivos de maximizar
o autogoverno (Bobbio, 1989; Macpherson,
1978). O conflito está justamente no que se
entende como a finalidade última da participação cidadã.
As lutas pela ampliação e cumprimento
efetivo dos chamados direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração
tem sido incessantes nos últimos 150 anos.
Hoje, com amplo reconhecimento formal
desses direitos em diversos países, ainda
se podem encontrar elementos no Estado e
na sociedade que impedem uma efetivação
real desses direitos. A respeito da ampliação
dos direitos civis e políticos, de primeira geração, por exemplo, verifica-se que apesar
da existência de líderes políticos dispostos
a ceder espaços aos cidadãos na tomada de
decisões, a cúpula do partido em que esses
líderes se apóiam frequentemente está mais
preocupada com sua concentração de poder
e o fortalecimento de suas lideranças. Não se
trata de conspiração contra a participação. É
apenas condicionamento às regras do jogo,
em que a sobrevivência político institucional depende de disputas eleitorais e alianças
com partidos, grupos sociais e econômicos.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
Nesse jogo político, os mecanismos de participação entram pela transversal e ganham
dimensão restrita o suficiente para não conturbar o funcionamento do sistema.
Há questões sobre as quais a participação política dificilmente conseguirá alcançar.
Os considerados inalteráveis e invioláveis
direitos fundamentais do homem – a vida,
a segurança, a propriedade privada – são
garantidos constitucionalmente. Assim também são os demais elementos fundamentais
para garantir a limitação do poder estatal: o
controle do poder executivo pelo legislativo;
o controle judiciário do parlamento sobre
a constitucionalidade das leis; a descentralização estatal com relativa autonomia ante
o governo central e um poder judicial independente do poder político (Bobbio, 1989).
Tomando a democracia em sua acepção
liberal, método de prevenção do abuso de
poder – através de eleições para controle
de líderes –, a participação direta pode ser
remédio complementário à participação indireta, eleitoral. Mas quando atribuímos à
democracia um significado mais amplo, de
igualdade não somente formal e jurídica,
como também econômica e social, reconhecemos que essas igualdades democráticas
só seriam alcançáveis pela maximização da
participação cidadã a todas as questões que
afetam ao povo como coletivo. Nesse caso,
o obstáculo a superar é a própria existência constitucional do Estado Liberal, que
mantém uma distribuição desigual da propriedade, é incapaz de possibilitar igualdade
de oportunidades entre todos os cidadãos e
tenta pacificar essa desigualdade através do
monopólio da violência em mãos do Estado
(Macpherson, 1978; Poulantzas, 1981).
Como visto, o sistema político vigente se compõe de elementos liberais e
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
democráticos, e que, apesar de complementários em muitos sentidos, ambos os elementos têm diferencias que podem chegar
a ser antagônicas. O conflito da participação
nesse âmbito se estabelece não somente
com a forma tradicional na qual vem funcionando o sistema político, senão com os
próprios fundamentos, apresentados mais
acima, pelos quais o sistema se constitui.
Esse desdobramento nos permite concluir
que os limites políticos à ampliação da participação se deriva principalmente de ordem estrutural, com efeitos no formato das
instituições e nos interesses de líderes políticos. É evidente que essas determinações
não são absolutas, apesar de predominantes. Não só as instituições podem ser reformadas para se adaptar às exigências de uma
democracia participativa, como também os
próprios líderes partidários não se unificam
todos em torno de uma única racionalidade
pré-determinada pelas práticas e normas
institucionais.2 Se não fosse assim, não haveria experimentos participativos que desafiassem as rotinas liberal-representativas de
fazer política. Nosso foco é buscar ilustrar
com o Orçamento Participativo de São Paulo como essas consolidadas rotinas colocam
freios às inovações de proximidade Estadosociedade.
A aposta pela
participação cidadã
Levando em conta a complexidade social, as
especificidades de grupos minoritários, as
carências da população de baixa renda e a
deficiência na representação de seus interesses, o distanciamento entre representantes
e representados, tudo com a consequente
apatia pela democracia, verifica-se a urgência de incorporar mais efetivamente a sociedade às decisões políticas (Barber, 1984;
Santos e Avritzer, 2005).
A baixa participação e a iniquidade social estão de tal modo interligadas que
uma sociedade mais equânime e mais
humana exige um sistema de mais participação política. (Macpherson, 1978,
p. 98)
Com o envolvimento dos cidadãos na
elaboração de políticas públicas, muitos
governos locais têm encontrado soluções
para melhorar a qualidade da democracia e
dos serviços públicos, facilitando a atenção
aos fragmentos da sociedade historicamente menos atendidos e com mais demandas
acumuladas (Fung e Wright 2003). Com a
participação, a identificação de problemas
sociais tem sido mais ajustada à realidade,
permitido maior transparência e controle
da cidadania aos governos locais, gerando
relações de proximidade e confiança. Estão sendo concedidos novos direitos aos
cidadãos, com ampliação da liberdade e da
responsabilidade, maior justiça social na
distribuição de recursos públicos e fortalecimento do espírito cívico e cooperativo numa cidadania crescentemente ativa (Abers
2001; Avritzer, 2002; Baiocchi, 2005).
Com a democracia participativa, os cidadãos
deixam de ser meros receptores e passam
a ser importantes protagonistas das políticas públicas (Oliveira et ali., 2001). Como
adequação, os instrumentos de participação
direta demandam novas rotinas administrativas, visando a compatibilizá-los com as
instituições representativas.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
177
paulo edgar da rocha resende
178
Entre os diversos mecanismos de empoderamento e participação,3 o Orçamento
Participativo se destaca por transferir aos cidadãos o poder de decidir sobre o tema mais
relevante da administração municipal: o orçamento para investimentos públicos em obras
e serviços. A disputa entre atores políticos,
sociais e econômicos pelo poder de influenciar o orçamento municipal já é tradicionalmente elevada. Transferir aos cidadãos esse
poder intensifica ainda mais a concorrência
e a complexidade da composição do processo orçamentário. Em uma cidade como São
Paulo – com enormes desigualdades sociais
e complexas interações entre interesses públicos e privados, além de intensas disputas
por espaços e afirmações de poder –, esses
instrumentos oferecem enorme potencial
de reinventar a esfera pública, equilibrando
o acesso ao poder entre diferentes grupos
sociais e de atender mais eficientemente aos
que necessitam mais atenção e investimentos governamentais (Oliveira et ali., 2001;
Santos e Avritzer, 2005).
Executado anualmente entre 2001 e
2004, o processo do Orçamento Participativo de São Paulo baseou-se na realização
de assembléias simultâneas em todos os distritos municipais, para as quais a população
era convidada a participar propondo obras e
serviços e elegendo delegados com mandato
imperativo. As propostas mais votadas, de
todas as regiões e setores de investimento
municipal, eram analisadas pelo governo
quanto à viabilidade técnica e hierarquizadas
de acordo com critérios de justiça social.4 O
procedimento de análise, negociação com o
governo e ponderação entre propostas eram
acompanhados pelos dois níveis de representantes populares – delegados, através
do Fórum de Delegados, e conselheiros,
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
através do Conselho do Orçamento Participativo (CONOP), instância máxima de decisão popular do OP – eleitos nas assembléias
e fóruns distritais e municipais. O processo
se concluía em cada ano com a elaboração
do Plano de Obras e Serviços, que se inseria
na Lei Orçamentária Anual indicando os recursos a serem investidos pela Prefeitura no
ano seguinte. A Lei era efetivada depois de
aprovada pela Câmara Municipal, em sessão
em que os conselheiros do CONOP tinham
enorme disposição em assistir e pressionar
os vereadores pela aprovação integral das
propostas do OP .
A São Paulo de Marta,
contextualizada
A perversa desigualdade
na distribuição de direitos
e recursos públicos
A desigualdade social em São Paulo tem
proporções gigantescas e o desequilíbrio
territorial na distribuição de infraestruturas e equipamentos públicos entre centro e
periferia é alarmante. A metrópole pode ser
considerada uma das cidades mais complexas do mundo atual, pelos abismos existentes entre misérias e luxos, autoritarismos e
libertações, organização espacial altamente
planejada e auto-organização desordenada,
mestiçagens étnico-culturais e higienizações
sociais. Um dos maiores cenários de desigualdade econômica e de direitos políticos,
sociais e culturais.
Enquanto a cidade produz quase 10%
do PIB nacional 6 e dispõe dos melhores
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
hospitais e universidades do país, modernos complexos arquitetônicos e centros
com tecnologias de ponta, nas áreas periféricas faltam as mais essenciais infraestruturas urbanas. Desde asfalto, esgoto e canalização de córregos até hospitais, escolas
e pontos de ônibus. Apesar da enorme carência por investimentos públicos nas áreas
periféricas, a segregação espacial entre
centro-periferia não é um retrato perfeito
da distribuição de riqueza e bem-estar entre áreas da cidade. A partir dos anos 90,
“os diferentes grupos sociais estão cada vez
mais próximos, mas separados por muros
e tecnologias de segurança, tendendo a
não interagir, embora próximos” (Bógus e
Pasternak, 2006, p. 26)
A pobreza de uma parte da população
que está justo ao lado da riqueza produzida
pelos grandes negócios e serviços especializados, é terreno fértil para a prática política clientelista. Além das precárias condições de vida, o baixo nível de instrução
educacional da maior parte dessa população
facilita que se tornem vítimas de promessas de candidatos a cargos políticos. Entre
tantas carências, a realização de qualquer
obra já costuma ser uma grande realização
na percepção de muitos cidadãos marginalizados, o que desperta o interesse pela
manipulação em determinados pseudorepresentantes. As decisões no Orçamento
Participativo tendem a corrigir o destino
dos investimentos públicos com bastante
eficácia e precisão de onde está localizado
o problema e quais são os mais urgentes.
Pesquisas recentes 7 têm confirmado a capacidade redistributiva desses mecanismos,
que melhoram os gastos públicos e permitem maior acesso a direitos fundamentais a
populações marginalizadas.
Precário histórico de participação
No que diz respeito ao histórico da participação no município de São Paulo, se destacam
os conselhos gestores de políticas públicas.
Esses órgãos estáveis se caracterizam pela
precária efetividade e devolução das decisões tomadas e pela seleção das entidades
sociais participantes. Em comparação com
os Orçamentos Participativos, pode-se concluir que a segmentação do debate reivindicativo por temas específicos impede uma
visão geral da administração pública nos
participantes e inibe a integração planejada
das políticas municipais, já que os órgãos
são setorizados (Tatagiba, 2004). Os conselhos gestores acabam funcionando mais
como órgãos técnicos para auxiliar o governo na tomada de decisões que como canais
de interlocução dos cidadãos para transmitir suas demandas para a Prefeitura, o que
se pode concluir por a participação estar
dirigida a entidades, ao invés de a cidadãos
individualmente, e pelo elevado nível educativo e de renda dos conselheiros (Coelho e
Veríssimo, 2004).
A autonomia dos conselhos ante o governo também era prejudicada pelo fato de
que os presidentes de mais da metade dos
conselhos ativos na cidade de São Paulo,
durante o governo de Marta Suplicy, eram
designados pelo responsável político da respectiva Secretaria do executivo municipal.8
Com o Orçamento Participativo, os conselhos ganharam nova funcionalidade, integrando a partir do segundo ano representação no CONOP e participando da elaboração
do Plano de Obras e Serviços.
Antes da gestão de Marta, a única
tentativa pós a redemocratização que tentou desenvolver outros instrumentos de
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
179
paulo edgar da rocha resende
180
participação cidadã foi do governo de Luiza
Erundina, também do PT, entre os anos de
1989 e 1992. Os espaços de participação
descentralizada, chamados Núcleos Regionais de Planejamentos, foram executados
nas 20 Administrações Regionais e tinham
a tarefa de elaborar o Orçamento Público
do ano seguinte. O projeto acabou sendo
desestruturado pela Prefeitura em apenas
18 meses depois do início de suas atividades. Como alternativa, a então prefeita pôs
em funcionamento um programa centralizado de audiências públicas sobre o orçamento municipal que não obteve grande
adesão por parte dos cidadãos e carecia de
potencial deliberativo (Couto, 1995; Sánchez, 1997).
Há vários motivos que explicam o fracasso daquela tentativa de gestão participativa descentralizada no primeiro governo do
PT no município. Um dos principais problemas teria sido que a equipe de governo de
Erundina estava presa a uma visão tecnocrata da gestão pública, sem ânimos para desenvolver um programa de participação verdadeiramente aberto e “empoderado”.9 Mas
também se verificou certa ausência de racionalização dos interesses dos distintos movimentos sociais participantes com as necessidades distritais e municipais, que dificultou
uma coordenação conjunta das demandas
sociais com o planejamento (Kowarick e
Singer, 1994). Faltou a estruturação de um
órgão que implementasse metodologias participativas que fossem capazes de coordenar
os procedimentos administrativos do governo local com as propostas dos cidadãos nas
Administrações Regionais. Evidenciou-se um
conflito de competências entre os Secretários Municipais de áreas temáticas – Educação, Saúde, Habitação, etc. – e os dirigentes
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
responsáveis por áreas territoriais – as Administrações Regionais – na canalização das
pressões dos movimentos organizados para
a efetivação das políticas públicas municipais
(Dias, 2006).
Rolo compressor em chaves políticas
A coalizão montada pela Prefeita Marta Suplicy foi composta inicialmente pelo PT, PC
do B, PCB e o minúsculo PHS, constituindo
uma frente na Câmara Municipal com 19 vereadores, que logo se acrescentou dois mais
do PSB. No primeiro ano eram três partidos
na oposição: PMDB, PP e PSDB. A partir do
segundo ano, só se manteve o PSDB (ibid.).
A construção do poder petista em São Paulo
foi impressionante em termos de governabilidade. Em 2004, nada menos que 78%
dos vereadores formavam parte de sua base
aliada, o que significa 46 de 55 representantes políticos no legislativo. Com isso, a
Prefeito conseguiu aprovar a maior quantidade de projetos do executivo em 15 anos:
57% dos submetidos à Câmara. Ao mesmo
tempo, os projetos de autoria dos próprios
vereadores obtiveram aprovação de somente 16,8% entre 2001 e 2003.10
Considerando que São Paulo é o maior
colégio eleitoral do país e sua importância
também se constitui pela potência na produção econômica e intelectual, com efeitos na
opinião pública de grande parte do país, as
eleições municipais são fundamentais para os
interesses nacionais dos partidos políticos.
Além dos votos, do apoio da imprensa e dos
formadores de opinião, há também as colaborações financeiras das empresas às campanhas eleitorais. Vale lembrar que os últimos dois presidentes da República tiveram
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
a metrópole como base política. Construir
um governo forte no município não garante
o sucesso de uma candidatura para âmbito
nacional, mas colabora com a construção de
apoios eficazes. Isso significa que as políticas
interpartidárias de fortalecimento político
desenvolvidas no município têm grande probabilidade de fazer parte de uma estratégia
mais ampla de alcançar o poder federal.
Práticas e instituições
brecando a participação
O Orçamento Participativo de São Paulo
foi especialmente vigoroso no que diz respeito aos âmbitos temáticos sob deliberação popular;11 aos privilégios concedidos à
participação dos mais marginalizados12 e na
formação/qualificação de delegados e conselheiros, eleitos para negociar com o governo13 (Sánchez, 2004b). Por outro lado,
a experiência teve importantes limitações,
como a escassa divulgação do programa e
de suas realizações,14 o limitado alcance da
convocatória de participantes,15 baixa execução das propostas aprovadas em algumas
áreas16 e pequeno volume de recursos alocados17 (Bello, 2007; Resende, 2008).
Para decifrar as causas dos problemas apontados acima, foi necessário verifi car a interação do programa formal de
participação com as principais instituições
representativas locais. Considerando como
variável independente os interesses eleitorais e de permanência no poder e como variável dependente a potencialidade da participação cidadã, identifi camos que essas
instituições – o partido político à frente da
administração da Prefeitura, o executivo e
o legislativo municipal – deveriam ser analisadas nos seguintes elementos: a) Relação
da cúpula e dos quadros do partido com o
programa de participação; b) Dimensão e
importância do programa dentro das atuações da Prefeitura e c) Admissão ou interferências das demais forças políticas e atores legislativos do município no programa
de participação. Com isso, encontramos na
exploração do Orçamento Participativo de
São Paulo quatro efeitos resultantes da integração entre inovação participativa e tradição representativa, que impossibilitaram
desenvolvimento mais amplo e eficiente
da participação cidadã. O quinto elemento
apresentou potencial de prejudicar o programa, mas foi evitado pelos acordos de
aliança partidária.
1) Subordinação do programa de participação cidadã a estratégias de visibilidade e
apoio político;
2) Clientelismo, como canal de endereçamento de demandas dos cidadãos;
3) Política de alianças e coalizão de governo,
com a contraparte de cargos do executivo;
4) Perfil heterogêneo de líderes do governo;
5) Interesse de vereadores pela composição do orçamento público.18
Estratégias de visibilidade
e apoio político
As estratégias políticas, com finalidades
eleitorais ou de aquisição/afirmação de poder, adotadas pelo partido que administrava o governo local, foram um dos principais
elementos de obstrução político-institucional do potencial de alcance do Orçamento
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
181
paulo edgar da rocha resende
182
Participativo de São Paulo. Consideramos
a forma como atuações determinadas por
lideranças do PT repercutiram na experiência, debilitando-a em diversos âmbitos e
possibilitando a ocorrência de elementos
limitadores, que desenvolveremos nos próximos tópicos.
Muitas das estratégias políticas adotadas nas instituições representativas fogem
das regras formais estabelecidas e são conformadas de acordo com os contextos de
balança de poder, de redes políticas (policy
networks), e interesses determinados dos
atores. Blanco formula duas questões cruciais para entender os componentes explicativos a que nos referimos: Por que os
políticos valorizam a participação? Por que,
por exemplo, sem ter a obrigação legal de
fazer Orçamentos Participativos, fazem tal
programa? (Blanco et ali., 2005). A questão
ganha relevância quando levamos em conta,
por exemplo, resultados de estudos demonstrando que os instrumentos de participação
cidadã têm efeitos incertos nas eleições (Anduiza et ali., 2005). À diferença de outras
políticas públicas, colocar em funcionamento
instrumento de participação, independentemente do grau de sua eficiência e efetividade, não parece ter grande impacto eleitoral
a favor do partido que lidera o município.
Entender os motivos que podem fazer com que um líder ou um grupo político
ponha em funcionamento um instrumento
de participação nos ajuda a compreender o
porquê de não fazê-lo. À nossa leitura, os
mesmos motivos para não fazer participação servirão também para aproximar-nos a
uma explicação de por que são postos limites nos instrumentos participativos. A pesquisa conduzida por Blanco (Blanco et ali.,
2005,) detectou três grandes razões pelas
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
quais é mais provável o surgimento dessas
experiências de inovação democrática:
1) Razões de perfil ou de trajetória da
participação cidadã. Estão relacionadas
com a estrutura social da organização e
da lógica subjetiva dos promotores da participação. Dividem-se em duas categorias:
a) organização que promove: concepção
ideológica da democracia, composição social
do partido, organização interna do partido;
b) pessoa que promove: concepção pessoal
de democracia, experiência política, trajetória político-associativa, formação pessoal.
2) Razões estruturais ou de contexto. Dependem das condições “ambientais” propícias para o surgimento de novas oportunidades de participação política no município:
tamanho do município, características socioeconômicas, correlação de forças políticas,
sistema de partidos, cultura participativa e
associativa da população, antecedentes participativos, existência de instituições que
promovem, estimulam ou assessoram a
participação;
3) Razões estratégicas ou instrumentais.
São compostas pelos interesses dos atores
políticos que põem em funcionamento a
participação: a) reforçar-se politicamente
buscando obter créditos eleitorais, criando
alianças e cumplicidade com os movimentos
sociais; reforçar-se dentro da Prefeitura ou
equipe de governo ou alterar o balanço de
poder na sociedade; b) melhorar a tomada de decisões para legitimar publicamente
decisões já efetivadas, para deslocar as responsabilidades à cidadania, para mediar conflitos entre coletivos sociais opostos ou para
aumentar a eficiência das decisões.
Algumas dessas razões estratégicas ou
instrumentais, especialmente as relacionadas
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
com a possibilidade de obtenção de benefícios próprios, são utilizadas por autores do
âmbito das teorias de rational choice, como
Navarro (1999), para explicar os problemas
de origem política da participação cidadã direta. Para esse autor, a única variável independente capaz de explicar o fenômeno são
os interesses dos partidos e líderes políticos
locais em fortalecer-se no poder. O limite
dessa perspectiva se manifesta em restringir
a diversidade de lógicas possíveis que justifiquem a atitude, seja em prol ou em contra,
desses atores políticos aos instrumentos de
participação. Não apenas são mais diversos
os interesses que podem afetar a participação, senão que os próprios impulsores são
mais complexos e nem sempre se compõem
de atores unitários e movidos sob uma única
razão, como veremos mais abaixo no caso
de São Paulo.
Nossa perspectiva vai mais ao encontro
da que assimilamos de Blanco: o impulso e o
empenho de atores políticos para implementar e fortalecer programas de participação
estão determinados pela combinação de elementos do contexto histórico, institucional,
político, social e cultural; das circunstâncias
estratégicas desses atores e também de seus
perfis político-ideológicos. Combinando esses fatores entre si e entre os diferentes
líderes políticos no governo local, se condicionará o resultado do programa de participação cidadã.
No caso de São Paulo, foram detectadas atuações centralizadoras da cúpula do
PT, com perspectivas de fortalecer-se no
poder e construir bases de apoio para futuras eleições – particularmente as presidenciais de 2002 e as municipais de 2004 –,
que acabaram reduzindo a importância do
Orçamento Participativo no processo de
decisões da Prefeitura (Wampler, 2003).
Essa conclusão pode ser constatada a partir
de: a) troca de lideranças durante a campanha eleitoral – de Félix Sánchez, da Democracia Socialista, para Rui Falcão, mais
próximo da Prefeita e dos líderes do campo
majoritário; b) insignificante infraestrutura
dada para o começo dos trabalhos do OP
em 2001; c) status de Coordenadoria e não
de Secretaria para sua administração; d)
centralização e decisão técnica para investimentos de grande visibilidade, como os
CEUs; 19 e) ampla política de alianças, que
implicava o apoio de quase todos os partidos àquela gestão e ao PT nas eleições municipais seguintes (Resende, 2008).
É evidente que essas atuações do
partido foram determinadas com base no
contexto social, político e econômico de
São Paulo naquele momento e pelo perfi l
político-ideológico de líderes da tendência
majoritária. Também podemos deduzir que
esses líderes visavam à concentração de poder e ao êxito eleitoral. Entretanto, permitiram o funcionamento e até o crescimento
do poder de influência do Orçamento Participativo, apesar das limitações. O que a análise nos permite é visualizar a complexidade
na qual um setor do partido e da prefeitura
empregou forças no programa, enquanto a
cúpula o aceitava com reservas. Está claro
que a execução do OP foi baseada em motivações diversas as quais não parecem incluir
o fortalecimento do poder próprio daqueles
que o conduziram. Seus entraves ocasionados pela cúpula até que poderiam ser entendidos dessa forma, embora uma maior
divulgação do processo de participação e
apoio para sua execução tivessem elevada
capacidade de trazer benefícios eleitorais
sob a bandeira da eficácia e modernização
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
183
paulo edgar da rocha resende
da administração pública. O mais provável
é que, devido ao perfil ideológico dos líderes da cúpula do PT e da Prefeitura de São
Paulo e considerando seus vínculos sociais,
a preferência tenha sido pelas alianças com
setores mais conservadores da sociedade e
do espectro político. Esses setores apresentam sérias resistências aos instrumentos de
ampliação democrática, por oferecerem o
risco de desviar o foco das decisões políticas da classe mais privilegiada – onde seus
vínculos mais fortes estão constituídos –,
em direção aos estratos sociais de mais baixa renda, podendo afetar privilégios, investimentos e status-quo.
A cultura clientelista e a busca
personalista por votos
184
O clientelismo como prática política se
constitui quando o controle dos cidadãos
às estruturas governamentais é limitado
ou inexistente, facilitando o uso privado de
recursos públicos. Quando entendido como apoio em forma de voto pelo cidadão
ao representante político que lhe concedeu
benefícios privados, sua existência só é possível em governos representativos (ver Leal,
1986). Apesar da ampla utilização de agentes captadores de votos, estes raramente
conseguem a realização dos investimentos
públicos prometidos à sua clientela (Whitaker, 1992).
É importante lembrar que, no Brasil, práticas de clientelismo derivaram de
relações “político-pessoais”, em que o “cidadão-cliente” estava preso ao “coronel”
ou líder local por laços extraeconômicos
de fidelidade.20 Foi sustentado, sobretudo,
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
pela dependência de enormes contingentes
populacionais de baixa renda e marginalizados aos recursos e investimentos estatais, o
voto direto em listas abertas, o voto obrigatório e a opacidade das instituições políticas (Faoro, 1958; Leal, 1986; Carvalho,
1997). Na cultura urbana no Brasil, a prática se configurou como “processo de incorporação das massas populares na política,
sob o controle das classes economicamente
dominantes” (Kowarick; Camargo et ali.,
1976, p. 108).
O clientelismo é inimigo direto dos instrumentos de participação cidadã, enquanto
esses instrumentos atuam suprimindo tais
práticas de favoritismo nas instituições públicas. A incompatibilidade entre ambos é
inequívoca, dado o conflito imanente entre
interesses privados e interesses públicos,
entre “homens naturais” e “homens artificiais”,21 entre instituições políticas opacas e
instituições políticas permeáveis ao controle
e influência direta dos cidadãos. Os efeitos
do clientelismo nas mesmas estruturas administrativas que o Orçamento Participativo
são percebidos principalmente na concorrência pela canalização de demandas sociais
aos investimentos públicos. Muitos cidadãos
e líderes comunitários recebem incentivos
para confiar suas petições em diálogos privados e bilaterais com líderes políticos, em
troca da mobilização de votos para seus
“padrinhos”. Como consequência, o orçamento público municipal pode acabar tendo
parte de sua composição baseada em método personalista (Resende, 2008).
Em São Paulo, durante o período estudado, essas práticas que pervertem a
finalidade pública das instituições governamentais acabaram desestimulando cidadãos
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
a participar das assembléias do OP, e fez
com que as subprefeituras tivessem dois tipos concorrentes de demandas a atender:22
de vereadores aliados, que transmitiam as
demandas de comunidades em que tinham
laços pessoais com movimentos e líderes
comunitários, e as decididas por cidadãos,
através de assembléias do OP (Resende,
2008). Além disso, nos dois últimos anos
da administração, a Secretaria Municipal de
Habitação incorporou militantes da UMM,
União dos Movimentos de Moradia, em seu
quadro de funcionários, facilitando que tivessem canal exclusivo para encaminhar
demandas à Secretaria (Cavalcanti, 2006).
O clientelismo está tão consolidado no município que Rizek chega a questionar “se a
experiência do OP, por suas fragilidades e
apesar de ter se confrontado com as práticas clientelistas, não acabou por ter de
administrar aquilo que escapou dessas práticas” (2007, p. 146).
Independentemente da centralidade
que faltou ao Orçamento Participativo no
governo municipal, o clientelismo desestimula a ação coletiva, a organização e a mobilização social. Em meio àquelas práticas,
os laços entre indivíduos se estabelecem em
torno do acesso a um líder, ao invés de buscas por cooperação horizontalizada (Abers,
1998). Como já mencionado, entre participação e práticas clientelistas, estabelece-se
relação de soma zero, em que o êxito de um
corresponde ao fracasso do outro. Como
exemplo, a pesquisa da autora demonstra
que o Orçamento Participativo de Porto Alegre pôde evitar o clientelismo de áreas mais
pobres da cidade, com o fortalecimento da
sociedade civil e a mobilização dos cidadãos
para novas arenas reivindicativas.
As políticas de alianças
e coalizões de governo
No agigantado multipartidarismo brasileiro
é quase impossível governar sem a formação
de alianças, como em geral ocorre na maioria dos países de democracia representativa
multipartidária. Embora no presidencialismo
o chefe do executivo não dependa de aprovação do legislativo para a posse do cargo,
resulta praticamente fundamental a obtenção de apoio de maioria dos parlamentares
para a obtenção de uma governabilidade razoável. Nos sistemas parlamentaristas com
mais de dois partidos, essas coalizões são
condições quase imprescindíveis para a existência do executivo. Para a própria democracia, alianças e governos de coalizão são
importantes recursos para evitar o excesso
de poder dos representantes executivos,
funcionando como espécie de contrapeso. As
alianças geralmente podem ser definitivas,
enquanto durar o mandato, ou temáticas,
por projetos ou tipos de projetos (Dodd,
1976; Laver e Schofield, 1990).
As trocas de apoios partidários ou de
parlamentares por cargos no executivo é
prática comum nos legislativos brasileiros.
Permite melhores perspectivas para a governabilidade, embora colabore com a existência de práticas clientelistas. Os partidos
mais suscetíveis a alianças por cargos são
aqueles cujo fisiologismo torna imprescindível a permanência no governo.23 Além de
pouco aptos a permanecerem na oposição,
estes partidos costumam carecer de vínculos
amplos com movimentos sociais.
Com o objetivo de obter sólida governabilidade na Prefeitura de São Paulo e
apoios para as eleições seguintes, a cúpula
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
185
paulo edgar da rocha resende
186
do Partido dos Trabalhadores fez acordos
com quase todos os partidos com representação na Câmara Municipal. A coalizão permitia aos legisladores designar pessoas de
confiança para cargos políticos do executivo
municipal, sobretudo nas subprefeituras. Isto gerou problemas na execução descentralizada do programa participativo, afetando a
convocação de participantes, a organização
de assembléias, a execução de obras atribuídas às subprefeituras e certa permissividade
às práticas clientelistas de vereadores aliados. Também foi verificado que determinados vereadores pressionavam os subprefeitos para executarem obras e serviços de
interesse da comunidade com que tinham
vínculos. A atitude prejudicou uma maior
atenção dos órgãos descentralizados às propostas do OP e seccionou o compromisso
do representante político com toda a cidade
(Resende, 2008).
Considerando que muitos indicados
pelos vereadores a ocupar cargos públicos
não tinham afinidade com a tendência da
prefeita, já que de outro modo não seria
necessário “comprar” o apoio do parlamentar através de cargos, a eficiência na gestão
da máquina pública ficou seriamente comprometida com as alianças. O Orçamento
Participativo, como programa de inovação
da prática democrática, que rompe com a
tradição política e requer importantes mudanças nas atuações e concepções de gestão pública, foi efetivamente obstaculizado,
por sua execução ser dependente do poder
de decisão dos contemplados com cargos.
Mesmo havendo setores do governo que
promoveram a participação, buscando
neutralizar oposições de membros da coalizão, a inovação encontrou resistência em
setores da Prefeitura administrados por
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
representantes resistentes a um maior envolvimento da cidadania em decisões importantes (ibid.).
Soluções plausíveis para conciliar o Orçamento Participativo com as coalizões políticas seriam a concessão de cargos para setores que não afetem a participação, assim como a submissão do acordo de coalizão à não
debilitação de nenhum aspecto do programa
participativo. Isso demandaria compromisso
maior da cúpula da prefeitura com o OP e
organização institucional que permitisse aos
líderes do executivo municipal garantir os
setores da administração envolvidos na participação cidadã. Entretanto, o custo político
de limitar o poder de influência de aliados
necessita uma dupla consideração que leve em conta aos interesses estratégicos, a
correlação de forças, os objetivos do instrumento de participação, o compromisso com
a cidadania e suas demandas mais urgentes
e a disposição em superar as práticas políticas predominantes.
A heterogeneidade da equipe
de governo
É importante destacar que a falta de consenso ao programa participativo na equipe
de governo não é gerada apenas pela ampla
aliança interpartidária. A própria composição social do partido que controla a Prefeitura pode resultar em grande diversidade de
perfis ideológico-administrativos na equipe
de governo, que, em muitas ocasiões, provoca notável heterogeneidade no desenvolvimento das políticas públicas. Em grandes
estruturas administrativas, o problema exige
especial organização institucional, ou de autoridade dos líderes, para evitar que aliados
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
deixem de se comprometer com a política
participativa.
Na realidade, a heterogeneidade da
equipe de governo, seja ocasionada pela
aliança ou pelos quadros do partido, pode
causar obstruções. Entretanto, consideramos que programas como o Orçamento Participativo são especialmente mais sensíveis,
devido a três fatores: a) o programa, muitas
vezes, é posto em funcionamento sem uma
lei que o regulamente; b) é um dispositivo
de composição e definição transversal a diversos ou a todos os setores de atuação municipal; c) os ocupantes de cargos públicos
eletivos buscam muitas vezes contar com
estratégias pessoais de canalização de demandas cidadãs, mantendo laços personalistas com movimentos sociais e organizações
comunitárias. O encarregado de um setor,
com elevada capacidade de investimentos
da Prefeitura, independentemente de que
seu partido seja líder do governo ou aliado,
naturalmente terá expectativas de usar seu
poder para decidir onde investir parte do dinheiro público que lhe cabe administrar. O
enfrentamento com o programa participativo será claro, além disso, se seu perfil e o
contexto sociopolítico de sua área administrativa não lhe motivar a métodos de decisão participativos.
Em São Paulo, durante o período estudado, a heterogeneidade de líderes do PT
ocupando cargos mais altos do executivo
municipal afetou o modo com que propostas aprovadas pelos cidadãos no OP fossem
efetivadas. Algumas secretarias, como a de
Educação, buscavam executar quase a totalidade das propostas. Outras, como a Secretaria de Saúde, em algumas ocasiões, selecionava propostas que correspondiam com
o que já havia sido decidido como prioritário
pelos técnicos. A Secretaria de Habitação
concedia maior atenção a canais paralelos de
participação, como o Conselho Municipal de
Habitação, onde havia grande presença de
associações com laços estreitos com o secretário. Este e outros setores, como meio-ambiente, transportes e segurança, deixaram
de executar grande parte ou a totalidade
das propostas aprovadas pelo Orçamento
Participativo (Resende, 2008; Bello, 2007;
Rizek, 2007).
É evidente que o esforço para garantir
o bom funcionamento da participação não
depende somente da aceitação de técnicos
e líderes do governo sobre determinado
projeto. Depende, principalmente, de que a
cúpula do executivo esteja suficientemente
empenhada em potenciar o programa. Esse empenho deve ser refletido desde a formação do governo, com seleção de líderes
administrativos preparados e comprometidos com a participação, até a formatação
institucional das instâncias na qual o OP se
insere.24
Conflito do OP com o Legislativo:
a disputa pelo orçamento
O interesse de vereadores pelas emendas
à Lei Orçamentária é bastante notável no
sistema político brasileiro, visando a permitir a reeleição. Com isso, os vereadores
de grandes cidades se vêm obrigados a
empreender estratégias eleitorais durante
seu mandato no legislativo. Muitos mantêm
contatos estreitos com comunidades que
lhes podem render votos, buscando beneficiá-las com investimentos e demonstrando
aos moradores seu poder de influência na
administração pública municipal. Quando
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
187
paulo edgar da rocha resende
188
o executivo abre brechas, os vereadores
se apropriam de bairros e fazem com que
a Prefeitura execute obras e serviços que
lhes poderão proporcionar benefícios eleitorais. Quando o executivo não concede esse poder ao vereador, de qualquer forma,
o parlamentar ainda pode propor emendas
ao orçamento público, com a finalidade de
exibi-las à sua base eleitoral. O não cumprimento da emenda pelo executivo mostrará
a falta de compromisso não do vereador
com a comunidade, mas sim da Prefeitura
(Whitaker, 1992).
Ainda que pareça legítimo e recomendável que um vereador, como representante político do legislativo, busque auscultar
demandas de cidadãos diretamente nas
comunidades, o afã de beneficiar-se eleitoralmente pode comprometer a eficiência
administrativa. O planejamento estratégico
do município pode acabar sendo substituído
pela fragmentação do território em áreas
de influência de vereadores. “A racionalidade político-social tende a se submeter à racionalidade político-eleitoral, seja na perspectiva individual do vereador, seja dentro de uma estratégia político-partidária”
(ibid., p. 28). O resultado é que vereadores
deixem de ser representantes do povo para
se tornarem “delegados dos interesses de
certas áreas da população (bairros, categorias profissionais, grupos étnicos ou religiosos, etc.)” (Kowarick; Camargo et al.,
1976, p. 109).
As relações entre Orçamento Participativo e a Câmara dos Vereadores são “inevitavelmente tensas”, porque “o OP cria um
estorvo ao exercício das práticas tradicionais de clientelismo” e introduz “critérios
públicos, objetivos e impessoais de tomada de decisão a respeito da distribuição de
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
recursos públicos” (Pontual, 2005, p. 112).
Entretanto, há medidas possíveis para que
a relação com o Legislativo seja mais saudável, como, por exemplo, permitir que parlamentares participem de todo o processo do
OP, sem que desfrutem do direito de voto
ou que o Conselho Municipal do Orçamento
Participativo (CONOP) tenha representante
da Câmara Municipal.
Formalmente, o papel do legislador é
“a produção de leis, a discussão dos temas
e prioridades da cidade, assim como a aprovação, o acompanhamento e a fiscalização
da execução orçamentária” (ibid., pp. 112113). De acordo com Pontual, alguns vereadores do PT estariam dispostos a analisar
a proposta orçamentária, composta pelo
Conselho do OP, e ao encontrar algum desacordo, a discutiria e sugeriria alterações
aos cidadãos participantes. É necessário
destacar que o diálogo entre vereadores e
conselheiros do OP pode resultar levemente
dificultoso. Muitos dos participantes do OP
mais politizados e independentes demonstram ter receios de perder a autonomia por
suas decisões e serem cooptados por representantes políticos.
Na Prefeitura de São Paulo administrada pelo PT de Marta Suplicy, a equipe
da hierarquia mais alta do governo resolveu parcialmente a questão da conflitividade
dos vereadores com o OP a través da ampla
política de alianças. Os cargos no executivo
viabilizados pelas alianças eram em troca do
total apoio de vereadores às propostas de lei
do executivo. Os legisladores seguiram propondo emendas ao orçamento, elaborado
pelo CONOP e por órgãos do executivo, mas
já sabiam que suas alterações não seriam
implementadas pelas Secretarias centrais da
Prefeitura. As emendas, nesse caso, tinham
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
objetivo apenas figurativo, com a função de
serem exibidas nas comunidades em que
possuíam mais vínculos. A essas comunidades, como já comentado anteriormente, se
buscava beneficiar através de pressões diretas às subprefeituras para execução de obras
e serviços pequenos (Resende, 2008).
Conclusão
Os limites político-institucionais à participação em São Paulo, gerados pela democracia
liberal-representativa, como a centralização
de decisões na cúpula do partido, as coalizões de governo e o clientelismo, embora
não sejam intrínsecos ao funcionamento de
democracias liberais, são gerados pela própria lógica de funcionamento desse sistema
político. A disputa eleitoral para seleção de
representantes políticos para cargos majoritários e proporcionais é sua dinâmica fundamental e concentra grande parte de interesses de políticos profissionais. Mas não são
apenas os interesses de poder de representantes políticos que determinam seus comportamentos no governo. É necessário considerar, fundamentalmente, a cultura política em que estão inseridos, as regras das instituições políticas em que atuam, a ideologia
político-administrativa, o desenvolvimento
histórico que compõe suas preferências, assim como os laços que possuem com grupos
organizados da sociedade e o nível associativo e reivindicativo dos cidadãos.
Diferente da corrupção, que é claro
desvio de condutas, a centralização de decisões em cúpulas e as práticas personalistas
de busca de apoios eleitorais são comportamentos, até certo ponto, aceitáveis por
diversos setores da sociedade brasileira e
caracterizados como estratégia política.
Ao mesmo tempo em que as democracias
liberais pretendem que a maioria dos cidadãos tenha parte de seus interesses representados em governos eleitos, provocam
também a falta de representação de outros cidadãos com baixa capacidade de influência. Esses cidadãos, ou minorias, são
potenciais vítimas de promessas e favores
de caráter clientelista. Mas não são apenas
vítimas. Aqueles grupos organizados que
preferem o caminho mais curto de acesso
ao poder, para encaminhar suas demandas,
constituem-se em importantes coagentes
do clientelismo.
Desenhos institucionais como os do sistema político brasileiro, de eleições em listas
abertas, conseguem facilitar a existência de
práticas políticas em que interesses pessoais
de permanência no poder se sobrepõem ao
bem comum. Seguramente, reformas no
desenho das instituições políticas poderiam
mudar ou suavizar esses conflitos. Mas não
se pode afirmar que eliminariam qualquer
conflito de interesses entre cidadãos, dispostos a participar diretamente de decisões,
e representantes com receios de ceder o poder obtido pelas eleições. Em nossa perspectiva, as regras formais das instituições políticas não podem ser analisadas isolando-as
de práticas dos atores, pois aquelas só são
relevantes para os cidadãos, pelo uso que
se faz delas. Ainda que os conflitos possam
ser suavizados por gestão pública eficiente
e atenta a essa questão, seu aparecimento
seguirá eminente.
É importante enfatizar que não consideramos que a participação cidadã seja incompatível com o sistema liberal-representativo. Mas sim que o fluxo desse sistema
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
189
paulo edgar da rocha resende
190
político, de reprodução por via eleitoral,
tem elevada capacidade para gerar práticas políticas que são contraditórias com
uma ampla e efetiva participação direta de
cidadãos nas decisões públicas. O que não
significa que essas tensões possam ser eliminadas por determinados formatos institucionais e práticas políticas coerentes com
a participação. Significa que, paradoxalmente, são obstáculos fundamentais para
a intensificação ou radicalização da prática
democrática, ao mesmo tempo em que se
constituem em instituições imprescindíveis
para a existência dos instrumentos de democracia participativa.
Os elementos de conflito entre a participação e a dinâmica das instituições liberalrepresentativas, que revelamos a partir do
caso de São Paulo, não são absolutos nem
exclusivos, mas servem para comprovar a
existência desse tipo de conflito. Com isso
não queremos dizer que os instrumentos de
participação não devam ser desenvolvidos ou
aperfeiçoados. Ao contrário, os atores políticos, interessados em pôr em funcionamento um avançado instrumento de participação
poderão levar em conta esses obstáculos. O
que oferece condições de favorecer a articulação dos elementos necessários para potenciar essas experiências, assim como para
reformar as instituições representativas, de
forma que possibilite uma mais radical ampliação dos espaços democráticos.
O número crescente de experiências
participativas prova que é possível conciliar
participação com representação. Os efeitos
positivos dessas experiências na sociedade
demonstram que são recomendáveis à gestão pública. Aperfeiçoam o sistema representativo e ampliam espaços de prática ativa
da cidadania. Muitas dessas experiências,
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
entretanto, estão em fase germinal e necessitam empenho de representantes políticos
e de cidadãos, assim como pesquisas científicas, para que se fortaleçam como instrumentos importantes de tomada de decisões
políticas.
Se for correta a máxima de La Boétie,
“cada povo tem o governo que merece”,
dependerá mais dos cidadãos que da classe
política, que haja ágoras, em que todos possam participar direta ou semidiretamente de
decisões que afetam a todos. A pressão da
sociedade organizada e de indivíduos autônomos tem que ser suficientemente forte
para que esses espaços de empoderamento
sejam abertos e potencializados. Estaria a
maioria dos cidadãos preparada e interessada em forçar os governos a abrirem espaços em que possam participar ativamente de
suas decisões mais relevantes? A pergunta
se faz mais relevante se consideramos que
a maioria nem sequer confia ou acredita no
sistema, basta ver as pesquisas mais recentes do Latino-barômetro.25 Estará o destino de nossos governos condenado ao que
a cultura liberal provocou na maioria dos
cidadãos, apatia política e desinteresse pela
comunidade? É evidente que a história ainda
não terminou. As experiências de Orçamento Participativo podem representar o início
de uma fase em que os governos vão se tornando cada vez mais abertos e próximos aos
cidadãos. Dependerá das pressões da sociedade para evitar que esses instrumentos se
tornem mais uma ferramenta legitimadora
de decisões já tomadas, docilizando possíveis contrariedades.
O grande desafio para os instrumentos de participação dos cidadãos nas decisões políticas é lograr que as forças de fluxo
bottom-up sejam no mínimo paritárias às
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
forças estatais, de ordem top-down . Ou,
aludindo a Deleuze e Guattari (1988), que
as estruturas “arbóreas” da burocracia estatal sejam pouco a pouco carcomidas pelas
redes “rizomáticas” de criação e ação política
coletiva. A democracia participativa, em sua
modalidade de instrumentos institucionais
de participação cidadã, apesar de seu potencial de transformação social e da prática política, parece se constituir mais no âmbito do
porvir previsível e retilíneo, ainda que por
linhas flexíveis, que do devir transgressor e
imprevisível foucaultiano (Foucault, 1979 e
2003). Isso se deve principalmente por ser
posta em prática e controlada a partir do
Estado, dentro de uma ordem institucional
dominada de checks and balances, em que
se evita qualquer excedente de poder popular que possa desestabilizar a ordem do sistema estabelecido.
A democracia liberal, mesmo integrando dispositivos participativos aos representativos, está sempre disposta a determinado
limite de incorporação da vontade popular. Dimensão que uma democracia radical,
muito além dos Orçamentos Participativos,
tende a romper. A expectativa que buscamos alimentar com a participação e incidência direta dos cidadãos no Estado é que essa
participação saia do plano administrativo, da
organização procedimental, e maximize a
afirmação plano político horizontalizado até
a imprevisibilidade da consistência democrática. O que envolveria diversos aspectos da
vida cotidiana, sem carecer de uma institucionalidade limitadora. As incertezas de tal
cenário trazem riscos, mas também a possibilidade de radicalização da democracia,
desconstruindo, em algum grau, a separação entre Estado e sociedade.
191
Paulo Edgar da Rocha Resende
Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, possui
Diploma de Estudos Avançados em Ciências Políticas pela Universidade Autônoma de Barcelona e é Doutorando em Políticas Públicas e Transformação Social nessa mesma universidade.
Bolsista do programa de Formação de Professores Universitários (FPU) do Ministério de Inovação e Ciências da Espanha, colabora como pesquisador no Instituto de Governo e Políticas
Públicas (IGOP) (Barcelona, Espanha).
[email protected]
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
paulo edgar da rocha resende
Notas
(1) Nos referimos sobretudo a Dahl (1956), Sartori (1962), Schumpeter(1966) e Huntington, Crozier
e Watanuki (1975). Para uma crítica a esses autores desde uma perspectiva participativa, ver,
entre outros: Pateman (1970) e Macpherson (1978).
(2) Para uma elaborada crítica ao racionalismo individualista e à teoria de Rational Choice, ver Shapiro
e Green (1994).
(3) Para uma ampla tipologia de instrumentos de participação, ver OIDP, 2007.
(4) Esses critérios serviam para priorizar a distribuição de obras e serviços entre os 96 distritos, ponderando por: a) porcentagem da população do distrito que participou das assembléias; b) população total do distrito e c) carência distrital do serviço ou equipamento público.
(5) Sobre as dinâmicas de funcionamento e os significados do Orçamento Participativo de São Paulo,
ver Sánchez (2004a) e para versões mais extensas Sánchez (2004b) e Dias (2006).
(6) Fonte: IBGE, “Posição ocupada pelos 100 maiores municípios em relação ao Produto Interno Bruto”, 2003.
(7) Marquetti (2003); Campos, Marquetti e Pires (2007).
(8) Sobre a composição social dos conselhos gestores na cidade de São Paulo, ver Tótora e Chaia
(2004).
(9) De acordo com Félix Sánchez, em entrevista concedida a Dias (2006, p. 42).
192
(10) Para efeitos de comparação, a quantidade de projetos submetidos pelo executivo municipal
foi quase o dobro da prefeitura do Rio de Janeiro no mesmo período. Sobre o poder adquirido pelo executivo do Governo Marta, ver Valor Econômico, 29/09/2004: “Rolo compressor de
Marta é recordista de aprovação na Câmara” (http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.
asp?NOTCod=152999) acessado em 13/11/2007.
(11) Saúde e Educação no primeiro ano e todas as áreas de investimento municipal em seu terceiro e
quarto ano de funcionamento.
(12) Os chamados “segmentos sociais vulneráveis” tinham a seguinte facilidade para eleger delegados: um delegado eleito por cada voto para pessoas com deficiência; um delegado por cada
três votos para população indígena e pessoas em situação de rua; um delegado para cada cinco
votos para os segmentos de mulheres, população negra, jovens, idosos e gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT). Crianças e adolescentes eram representados através de processo
exclusivo denominado OP Criança. Todos os demais adultos eram eleitos pela proporçao de um
delegado para cada vinte votantes nas assembléias territoriais deliberativas.
(13) A formação de delegados, conselheiros e técnicos do governo era realizada através de cursos,
seminários e oficinas preparatórias.
(14) Por falta de apoio da cúpula da Prefeitura, a divulgação do programa ficou a cargo da Coordenadoria do Orçamento Participativo, ao invés da Secretaria de Comunicação, que costumava ser a
normal encarregada da tarefa.
(15) A chamada para participações era realizada pela Coordenadoria do OP e seus órgãos descentralizados em subprefeituras. Além de faixas nas ruas, boletins periódicos, carros de som, anúncios
radiofônicos e folhetos nas subprefeituras, a partir delas se contatavam os cidadãos telefonicamente para divulgar a data e local das assembléias.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
(16) Com a exceção das áreas de saúde e educação, que obtiveram índices superiores ao 70%, todas
as demais tiveram um índice de execução cujo topo, segundo números oficiais, foi de 56% da
área de habitação até o ano de 2004.
(17) De acordo com a Prefeitura, em 2003, foi destinado ao OP de São Paulo 7,7% do orçamento
municipal. Em estudo independente (Bello, 2007), para o ano de 2004, as cifras confiáveis permitem estimar esse valor em 3,91% do total do município.
(18) Esse elemento teve seus efeitos limitados no Orçamento Participativo de São Paulo, pela política
de coalizão adotada pela Prefeitura.
(19) Centros Educacionais Unificados. Grandes empreendimentos arquitetônicos com ensino primário, fundamental e médio. Foram elaborados pela equipe do governo, que também determinou
que seriam instalados em bairros de elevada exclusão social. Aos participantes do OP apenas
coube definir em quais bairros seriam instalados o equipamento, com base nas
(20) Está, portanto, correlacionado com categorias amplamente trabalhadas pela literatura brasileira,
como o coronelismo e o patrimonialismo.
(21) Categorias hobbesianas para designar, respectivamente, indivíduos com atuações que visam a
atender a interesses próprios e indivíduos que atuam visando ao interesse público.
(22) As subprefeituras tinham um limite orçamentário que lhes permitia certa autonomia ante os órgãos centrais da prefeitura, na execução de pequenas obras e serviços.
(23) Sobre as motivações dos partidos na formação de alianças, ver Budge e Laver (1986) e Laver e
Schofield (1990).
(24) Sobre formatos institucionais político e administrativos da participação cidadã, ver Ramió e Salvador (2007).
(25) Disponível em: http://www.latinobarometro.org
Referências
ABERS, R. (1998). From clientelism to cooperation: local government, participatory policy and civic
organizing in Porto Alegre, Brazil. Politics and Society, vol. 26, n. 4, pp. 511-537.
________ (2001). Inventing local democracy: grassroots politics in Brazil. Boulder, Westview.
ANDUIZA, E. et ali. (2005). “Les eleccions y la participació”. In: FONT, J. (org.). La política i la participació: politics, partits i eleccions. Barcelona, Editorial Mediterrània.
AVRITZER, L. (2002). Democracy and the public space in Latin America. Princeton, Princeton University
Press.
BAIOCCHI, G. (2005). Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre.
Stanford, Stanford University Press.
BARBER, B. (1984). Strong democracy: participatory politics for a new age. Berkeley, University of
California Press.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
193
paulo edgar da rocha resende
BELLO, C. A. (2007). “Orçamento Participativo em São Paulo: uma invenção de limitado alcance”. In:
OLIVEIRA, F. de e RIZEK, C. S. (eds.). A era da indeterminação. São Paulo, Boitempo.
BERLIN, I. (1969). Four essays on liberty. Oxford, Oxford University Press.
BLANCO, I. et al. (2005). “Els polítics i la participació”. In: FONT, J. (org.). La política i la participació:
politics, partits i eleccions. Barcelona, Editorial Mediterrània.
BOBBIO, N. (1989). Liberalismo e democracia. México, FCE.
BÓGUS, L. e PASTERNAK, S. (2006). Como anda São Paulo. Cadernos Metrópole, n. especial, São Paulo,
Educ.
BUDGE, I. e LAVER, M.. (1986). Office Seeking and Policy Pursuit in Coalition Theory. Legislative Studies
Quarterly, v. 11, n. 4.
CAMPOS, G.; MARQUETTI, A. e PIRES, R. (2007). Democracia participativa e redistribuição: análises de
experiências de Orçamento Participativo. São Paulo, Xamã.
CARVALHO, J. M de. (1997). Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, v. 40, n. 2. Rio de Janeiro.
CAVALCANTI, G. C. V. (2006). Uma concessão ao passado: trajetórias da União de Movimentos de Moradia de São Paulo. Dissertação de mestrado. São Paulo, USP.
COELHO, V. S. e VERÍSSIMO, J. (2004). “Considerações sobre o processo de escolha dos representantes
da sociedade civil nos conselhos de saúde em São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.) A participação
em São Paulo. São Paulo, Editora Unesp.
194
COUTO, C. G. (1995). O Desafio de ser governo – PT na Prefeitura de São Paulo. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
DAHL, R. (1956). Preface to democratic theory. Chicago, University of Chicago Press.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. (1988). Mil Mesetas: capitalismo y esquizofrenia. Valencia, Pré-textos.
DIAS, J. M. P. (2006). O Orçamento Participativo na Cidade de São Paulo: confrontos e enfrentamentos
no circuito do poder. Dissertação de Mestrado. São Paulo, PUC-SP.
DODD, L. (1976). Coalitions in Parliamentary Government. Princeton, Princeton University Press.
FAORO, R. (1958). Os donos do poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Porto Alegre, Globo.
FOUCAULT, M. (1979). Microfísica del poder. Madrid, Ediciones de la Piqueta.
________ (2003). Hay que defender la sociedad: curso del Collège de France (1975-1976). Madrid, Akal
Ediciones.
FUNG, A. e WRIGHT, E. O. (2003). Deepening Democracy: Institutional Innovations in Empowered Participatory Governance. London, Verso.
HUNTINGTON, CROZIER, WATANUKI (1975). The crisis of democracy: report on the Governability of
Democracies to the Trilateral Commission. New York, New York University Press.
KOWARICK, L; CAMARGO, C. P. F. et ali (1976). São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza. São Paulo,
Loyola.
KOWARICK, L. e SINGER, A. (1994). “A Experiência do Partido dos Trabalhadores na Prefeitura de São
Paulo”. In: KOWARICK, L. (org.) As lutas sociais e a cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
o confronto do orçamento participativo com as tradições representativas em São Paulo
LAVER, M. e SCHOFIELD, N. (1990). Multiparty government: the politics of coalition in Europe. Oxford,
Oxford University Press.
LEAL, V. N. (1986). Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. São
Paulo, Alfa-Omega.
MACPHERSON, C. B. (1978). A democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro, Zahar.
MARQUETTI, A. (2003). “Participação e redistribuição: O Orçamento Participativo em Porto Alegre”. In:
AVRITZER, L. e NAVARRO, Z. (org.). A inovação democrática no Brasil. São Paulo, Cortez.
NAVARRO, C. J. (1999). El sesgo participativo. Madrid, CSIC.
OIDP: Observatório Internacional de Democracia Participativa. (2007). Observando las Democracias
Participativas Locales 2004 - 2007. Ayuntamiento de Barcelona. Disponível em: http://www.oidp.
net/es/v_publicaciones_1.php.
OLIVEIRA, F. de et ali. (2001). Atas da revolução: o orçamento participativo em São Paulo, [mimeo].
PATEMAN, C. (1970). Participation and democratic theory. Cambridge, Cambridge University Press.
PONTUAL, P. (2005). “Democracia representativa, democracia direta e democracia participativa”. In:
ABRAMO, Z. W. e FRATI, M. (eds.) Democratização do Parlamento: alargando as fronteiras da
representação e da participação política. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo.
POULANTZAS, N. (1981). O Estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro, Edições Graal.
RAMIÓ, C. e SALVADOR, M. (2007). El disseny institucional de l’àmbit de la participació ciutadana a les
corporacions locals. [Col. Documents de Treball]. Barcelona: Diputació de Barcelona. Disponível
em: http://www.diba.es/participacio/fitxers/publicacions_papers/papers20.pdf. Acesso em 25
abril 2009.
RESENDE, P. E. da R. (2008). Innovaciones participativas y tradiciones representativas: Tensiones y
complementariedades en el Municipio de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Barcelona, Universidade Autónoma de Barcelona.
RIZEK, C. S. (2007). “São Paulo: orçamento e participação”. OLIVEIRA e RIZEK, C. S. (orgs.). A era da
indeterminação. São Paulo, Boitempo.
SÁNCHEZ, F. R. (1997). O desafio da participação. Trajetória da política de participação na gestão petista da prefeitura de São Paulo – 1989/1992. Disertación de Maestría. São Paulo, PUC-SP
________ (2004a). “O Orçamento Participativo em São Paulo (2001-2004): uma inovação democrática”. In: AVRITZER, L. (org.). A Participação em São Paulo. São Paulo, Editora Unesp.
________ (2004b). OP: Trajetória Paulistana de uma inovação democrática (2001-2003). Tese de Doutorado. São Paulo, PUC-SP.
SANTOS, B. de S. e AVRITZER, L. (2005). “Introdução: para ampliar o Cânone Democrático”. In: SANTOS,
B. S. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa, [Col. Reinventar a
Emancipação Social]. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
SARTORI, G. (1962). Democratic Theory. Detroit, Wayne State University Press.
SCHUMPETER, J. A. (1966). Capitalism, socialism and democracy. London, Geo. Allen & Unwin.
SHAPIRO, I. e GREEN, D. P. (1994). Pathologies of rational choice theory: a critique of spplications in
political science. New Haven, Yale University Press.
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
195
paulo edgar da rocha resende
TATAGIBA, L. (2004). “A institucionalização da participação: os conselhos municipais de políticas públicas na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (ed.). A participação em São Paulo. São Paulo,
Editora Unesp.
TÓTORA, S. e CHAIA, V. (2004). “Conselhos municipais e a institucionalização da participação política:
a Região Metropolitana de São Paulo”. In: SANTOS JUNIOR, O. A. et ali. (eds.). Governança democrática e poder local: a experiência dos conselhos municipais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan/
Fase.
WAMPLER, B. (2003). “Orçamento Participativo: uma explicação para as amplas variações nos resultados”. In: AVRITZER, L. e NAVARRO, C. J. (coords.). A Inovação Democrática no Brasil. São Paulo,
Cortez.
________ (2004). “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In:
AVRITZER, L. (coord.). A Participação em São Paulo. São Paulo, Editora Unesp.
WHITAKER, F. (1992). O que é Vereador. São Paulo, Brasiliense (Col. Primeiros Passos).
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
196
cadernos metrópole 21
pp. 173-196
10 sem. 2009
Participação e gestão territorial: onde
se encontram as condições favoráveis?
Cátia Wanderley Lubambo
Flavio Cireno Fernandes
Resumo
Discute-se institucionalmente a gestão do
território, a partir da experiência recente do
Brasil, em nível federal e em nível estadual,
com o foco na participação social. A análise
traz refl exões sobre os fatores político-institucionais que determinam a capacidade de
atuação de conselhos e fóruns, na perspectiva de influenciar as decisões e ações públicas. Sugere ainda um debate sobre abordagem territorial onde se considere a influência
que os atores políticos locais e suas bases
eleitorais exercem no processo. Ao final,
expectativas e limitações são apresentadas,
delineando-se as condições favoráveis e desfavoráveis à implantação de estruturas de
gestão territorial, levantadas a partir do estudo comparativo entre o Programa Governo
nos Municípios, em Pernambuco e o Projeto
Meu Lugar, em Santa Catarina.
Abstract
The conceptual and institutional questions of
territory management are discussed based
on the recent experience in Brazil, in the
federal and state levels, focusing on social
participation. The analysis reflects on political
and institutional factors which determine
the performance capacity of councils and
forums, in the perspective of influencing
decisions and public actions. The article also
approaches the influence of local political
actors and their electoral bases on the process.
Expectations and limitations are presented
and favorable and unfavorable conditions to
the implementation of territory management
structures are delineated. These conditions
were verified in a comparative study between
Programa Governo nos Municípios (Program
Government in Municipalities), in Pernambuco
and Projeto Meu Lugar (Project My Place), in
Santa Catarina.
Palavras-chave: território; gestão pública;
descentralização; participação social.
Keywords: territory; public management;
decentralization; social participation.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
Introdução1
198
O presente trabalho explora as condições
que favorecem a implantação de políticas
públicas de âmbito territorial, quando se
desenham modelos de natureza participativa. A questão da gestão territorial se coloca
hoje como um dos grandes desafios das políticas públicas brasileiras, fato atestado pela
ocorrência, nos últimos quinze anos, de um
número considerável de políticas propositoras de uma integração do território2 como
forma de gerar desenvolvimento. Dentro
desse contexto, a concepção de território é
compreendida como um processo que envolve práticas e processos decisórios estratégicos e a implementação de ações públicas,
independentemente de fronteiras políticoadministrativas pré-definidas pela estrutura
federativa. Ou seja, de um lado, a gestão
territorial aparece como um mecanismo de
alocação ótima de recursos, e, de outro, como um fórum privilegiado de participação
para a população.
Levando em consideração as concepções expostas, resolvemos, preliminarmente, realizar uma reflexão sobre o tema, com
base em duas dimensões distintas. A primeira, moldada por uma visão mais voltada à
eficiência, vê o território como uma forma
de otimização da alocação dos recursos em
seus mais variados sentidos. Essa abordagem vem sendo defendida, tanto por razões
econômicas, de racionalidade na distribuição
dos recursos, quanto por razões políticas,
de controle e accountability,3 configurando
os territórios como locus específico para
realizar a junção dos interesses.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
Tomando por referência essa concepção, evidenciamos a análise das barreiras e
facilitadores institucionais à implantação
efetiva de uma política nacional de ordenamento territorial, a partir de questões
sugeridas pela Ciência Política, como a influência que os atores políticos locais e suas
bases eleitorais exercem no processo, ou
seja, a conexão eleitoral e a estrutura federativa, balizadores importantes da formulação e implementação de políticas públicas
no Brasil.
A segunda dimensão situa a participação no centro do debate e a concebe como
uma forma de empoderamento da comunidade, bem como uma forma de aumentar
o capital social. Desse modo, a participação
se transforma numa das molas mestras do
desenvolvimento local sustentável, em contraposição aos processos exógenos e verticalizados de desenvolvimento.
O artigo está dividido em três partes:
na primeira, realizamos uma breve revisão
da literatura recente sobre o tema; a segunda parte traz informações e questões,
no âmbito da institucionalidade criada na
perspectiva de uma abordagem territorial,
para o planejamento de ações públicas no
país. Na última seção é discutida a existência
de condições favoráveis à implementação de
políticas de cunho territorial, quando se leva
em conta a importância do recorte cultural e
político previamente constituído nas regiões.
São considerações formuladas a partir do
estudo comparativo entre o Programa Governo nos Municípios, experimentado em
Pernambuco, no período de 1999 a 2002
e o Projeto Meu Lugar, em implementação,
em Santa Catarina.
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
O PGM, implantado na gestão Jarbas
Vasconcelos, foi apresentado à população
como um instrumento de gestão pública participativa com o objetivo principal de discutir
com os atores locais as prioridades de investimento para cada Região de Desenvolvimento (RD) do Estado. Um dos objetivos
do programa foi demonstrar a importância
da descentralização das ações e da potencialidade das regiões, com vistas ao que foram
realizadas plenárias de discussão abertas
com o público convidado, inicialmente em
cada uma das dez, posteriormente em cada
um das doze Regiões de Desenvolvimento,
em que foi dividido o território do estado.
Ver Lubambo e Coelho (2005).
O Programa de Descentralização Santa Catarina é uma experiência mais recente,
implantado a partir de 2002. A ideia da descentralização do governo capaz de promover
desenvolvimento regional e um ambiente de
cooperação e governabilidade originou um
modelo básico a partir da constituição dos
Conselhos de Desenvolvimento Regional,
vinculados às Regiões de Desenvolvimento
(30), com as Secretarias de Desenvolvimento Regional então criadas para mediar entre
as demandas locais e o Governo Estadual.
(Governo de Santa Catarina. Disponível em:
http://www.sc.gov.br/ Acesso em 28 de janeiro de 2008).
Vale a pena salientar que este trabalho
dá início a uma agenda de pesquisa, na qual
as categorias analíticas – gestão territorial e
participação – mostram-se imbricadas com
relação aos seus resultados e à cadeia de
causalidade dos fenômenos. Nesse eixo lógico, as teorias ou modelos ausentes de seu
desenvolvimento permanecem como uma
meta de investigação.
Gestão territorial e
participação política:
questões centrais
Ao falarmos de gestão territorial, falamos
de um espaço para a consecução de objetivos, especialmente nas políticas públicas.
Ao definir território, o Ministério da Integração Regional define o território como
[...] o espaço da prática. Por um lado
é o produto da prática espacial: inclui
a apropriação efetiva ou simbólica de
um espaço, implica a noção de limite –
componente de qualquer prática – manifestando a intenção de poder sobre
uma porção precisa do espaço. (SDR/
MI/IICA, 2006a)
Essa forma de definição ultrapassa as barreiras do território como definidos no federalismo brasileiro, podendo o conceito ser
aplicado a uma unidade menor que o município, igual ao município, maior que o município, igual a partes de um grupo de municípios em estados distintos, etc.
Uma iniciativa de gestão territorial
no país impõe uma reconstrução do território pré-existente, através de projeto de
lei enviado ao Congresso Nacional. Uma
série de problemas previsíveis e não previsíveis, inerentes ao processo político-administrativo, acaba decorrendo dessa iniciativa, uma vez que interesses de mais de
um ente federativo estarão envolvidos. As
questões dificultadoras da implantação de
uma política de gestão territorial referemse, sobretudo, à possibilidade de mudança
na distribuição das recompensas entre os
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
199
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
200
atores do sistema político, até então razoavelmente estável e articulado, estabelecidas
nas oportunidades de realocação dos investimentos no território.
Iremos inicialmente ancorar a discussão no conceito das arenas políticas, conforme discutido por Löwi (1964,1985). Nesse
contexto, iremos discorrer sobre os principais fatores determinantes da estruturação
das arenas, bem como sobre a tipologia de
políticas. Em seu trabalho, Löwi divide as
políticas (policy arenas, no original) em quatro tipos fundadores: as políticas distributivas, redistributivas, regulatórias e constitutivas. Dentro dessa perspectiva, cada uma
das arenas políticas acarreta características
e comportamentos próprios por parte dos
atores.4
As políticas distributivas são descritas por Frey (2000) como políticas caracterizadas por um baixo grau de conflito e
alto grau de inclusão, onde um grande número de pessoas é beneficiado com recursos de baixo poder de transformação. Em
oposição a estas, as políticas redistributivas
se caracterizam pela alocação de recursos
entre grupos distintos da sociedade, como classes sociais e grupos específicos. Já
as arenas das políticas regulatórias, estas
se referem à atuação de determinados setores da sociedade, em larga escala grupos
de atividades econômicas e sua relação com
o Estado, o que gera certa indeterminação
dos graus de conflito entre elas, dependentes de fatores como grau de competição e
diferença na adaptação às novas regras. O
último tipo de arena é a das políticas constitutivas, e especificamente se refere ao
tema tratado. As políticas constitutivas são
políticas que modificam as regras do jogo,
questões ligadas ao desenho ou à estrutura
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
de funcionamento do governo que refletem
a distribuição de poder e autoridade entre
organizações na burocracia governamental.
Essas políticas geram com isso estruturas de
incentivos próprias, diferentes das estruturas previamente existentes. Ainda segundo
Frey (ibid., p. 224):
A política estruturadora diz respeito à
própria esfera da política e suas instituições condicionantes (polity) refere-se
à criação e modelagem de novas instituições, (...), de cooperação e de consulta entre os atores políticos.
Dessa forma, a geração de uma nova
política constitutiva, como a de gestão territorial, leva à definição ou modificação das
regras do jogo político, no qual “em geral
costuma-se discutir e decidir sobre modificações do sistema político apenas dentro
do próprio sistema político-administrativo”
(ibid., p. 225). Ou seja, os atores que irão
definir as modificações desse tipo de arena
são, nesse caso específico, entes federativos, uma vez que o ordenamento territorial
irá modificar a estrutura de alocação e repasse de recursos do Governo federal para
com estados e municípios e, por conseguinte, reorganizará os interesses políticos nesses territórios.
Em se tratando desse tipo de arranjo, no Brasil, pelo menos dois impactos são
esperados: o primeiro deles diz respeito à
chamada “conexão eleitoral”, em que a ligação entre o deputado e o eleitor/município
se dá através de um sistema complexo de
recompensas pela apresentação de emendas
individuais de orçamento, que envolve apoio
ao executivo, eleição de deputados e manutenção do poder político nas prefeituras.5 O
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
processo descrito por Ames (1995, 2003)
dá conta de um sistema de recompensas em
que o deputado que “traz obras” para um
determinado município, através de emendas
individuais do orçamento, tem sua recompensa através da sua reeleição. Especificamente Ames cria uma tipologia de deputados por suas estratégias eleitorais, e como
estratégia, os dois tipos das categorias dos
deputados “dominantes” tendem a usar o
município como conexão para os eleitores.6
Noutra vertente, Cain, Ferejohn e Fiorina
(1987) apostam em uma conexão personalizada, onde o eleitor identifica seus representantes diretamente, através das obras
que o “seu deputado” trouxe através de uma
conexão personalizada. Pereira e Rennó
(2001) testam as hipóteses de ambos e com
algumas ressalvas, afirmam que “os interesses locais prevalecem na arena eleitoral porque as demandas locais parecem ter impacto
mais forte no sucesso eleitoral”. Com isso,
a execução de emendas legislativas se torna central no processo de governo brasileiro, onde o executivo federal usa a liberação
de emendas ao orçamento para “dirigir” as
votações de projetos de seu interesse, utilizando tais emendas como moeda de troca
(Pereira, 2000).
A hipótese da “conexão eleitoral”,
quando analisada com relação à constituição
de uma política de gestão territorial, pode
levar a uma perda de poder dos deputados
e dos prefeitos, em relação aos municípios.
Como já apontado por Arretche (2004), no
Brasil inexistem pesquisas conclusivas acerca do efeito dos partidos sobre as relações
verticais da federação (no caso, estado e
municípios), mas continua prevalecendo certo consenso a respeito da positividade das
alianças para o estreitamento das relações
federativas. Nessa perspectiva, acreditamos
que a implantação de um programa de descentralização política demande uma composição de interesses entre atores políticos
municipais, de modo a viabilizar tal programa no âmbito dos vários projetos eleitorais.
Essa hipótese analítica será conduzida no estudo mais adiante.
Como segundo ponto de partida, nesta
revisão de literatura, será feita uma análise
das considerações correntes sobre participação política e a emergência de processos que
levem ao empoderamento das comunidades
e ao aprimoramento dos instrumentos de
accountability.
Atualmente, há um debate sobre a importância dos processos participativos no
contexto de algumas experiências de gestão
territorial em distintos espaços do país. Nessa perspectiva, busca-se analisar os elementos e as condições que interferem e favorecem a articulação, nos diversos níveis, entre
os fóruns e conselhos criados e entre estes
e os agentes responsáveis pela distribuição
dos benefícios, por programas que anunciam o desenvolvimento como resultado da
gestão territorial.
Os conselhos de representação da sociedade civil tornaram-se um componente
essencial do desenho institucional das políticas públicas no Brasil. Os conselhos difundiram-se de tal maneira que é rara uma política pública cujo mecanismo regular de operação não conte com pelo menos um conselho
cuja existência se deva a uma exigência da
legislação. Para as mais diversas políticas
e nos três níveis de governo, tornaram-se
umas espécies de elemento constitutivo de
seu desenho institucional.
Como resultado da generalização da
exigência dos conselhos (Abramovay, 2001;
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
201
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
202
Melo, 2003), observa-se a emergência de
instâncias desta natureza também para as
políticas e programas de desenvolvimento territorial. Ou seja, a inclusão de mecanismos de participação política para as
experiências de gestão territorial não surgiu
por qualquer manifestação espontânea da
sociedade civil. São, antes, como requisitos
de programas na maioria das vezes financiados por agências internacionais7 e pelo governo federal. A exigência da participação da
comunidade beneficiária no financiamento e
manutenção do projeto figura entre as recomendações8 de muitos dos programas de
desenvolvimento, como pressuposto de que
produziriam os incentivos necessários à geração de capital social e, por consequência,
desenvolvimento econômico local (Tendler,
2000).
Ainda que se reconheçam relativos ganhos advindos de estratégias de participação
nas decisões alocativas dos programas, inspiradas na teoria do capital social, uma gestão territorial envolve uma política de natureza distributiva (Löwi, 1964), isto é, que
aloca benefícios de modo desagregado para
distintas regiões e localidades, e, pela condição participativa, representados por atores
sociais também diversos. A identificação de
elementos indicativos de como articular a
ação das instâncias colegiadas para a gestão
territorial, de forma mais integrada e cooperada nos recortes municipais, estadual e
federal revela-se, desse modo, em uma contribuição à consolidação e aperfeiçoamento
das práticas associadas a esse tipo de planejamento e de execução de programas de
desenvolvimento.
A maior parte do debate público no país
tem abordado as transformações institucionais no plano da descentralização da gestão
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
que vem ocorrendo por duas vias principais:
em primeiro lugar, pela ampliação da participação nas decisões públicas através de
mecanismos de consulta que envolve a população diretamente, mediante a instituição
de fóruns e plenárias locais9 e, em segundo
lugar, pelo fortalecimento dos mecanismos
de controle de acompanhamento de gestão
territorial, mediante a criação de instâncias
de deliberação e consulta10 que aglutinam
representantes dos interesses diretamente
envolvidos, como também de entidades da
sociedade civil, provedores de serviços e
clientelas.
Contudo, a despeito da quase unanimidade em torno dos efeitos positivos da
descentralização decisória, a instituição dos
Orçamentos Participativos, dos Conselhos
Setoriais, dos Fóruns de Discussão ou de
outros Mecanismos de Controle Social ainda
não se firmou como um fator imprescindível
para o melhor desempenho da gestão. Ou
seja, tem-se afirmado que tais experiências
se constituem num efetivo fortalecimento
da capacidade governativa nas diversas instâncias, mas até que ponto essa capacidade
se constitui num patrimônio cívico (capital
social) ou se evidencia, circunstancialmente,
conforme as singularidades políticas de cada
gestão? Além disso, como atestar a associação dessas inovações com os níveis de empoderamento da sociedade local?
Conforme o próprio debate teórico atual sugere (Lubambo, Coelho e Melo, 2005 e
Arretche et alli, 2006), dificuldades maiores ao empoderamento surgem na mesma
medida em que se expressa a resistência da
sociedade à participação. Essa resistência
apresenta-se, principalmente, como resultado de uma herança cívica desfavorável, ainda presente em muitas regiões e localidades
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
do país, como os pequenos municípios do
Norte e do Nordeste brasileiro. Por um lado, assiste-se a uma reduzida credibilidade
no Estado, abalada por uma sucessão de governos descomprometidos com o bem-estar
da população e, por outro, a uma ausência
de experiências locais de associativismo (baixo capital social). Expressam-se os limites
das burocracias acostumadas aos antigos
modelos e resistentes a estratégias de reengenharia institucional por parte do Estado.
De modo similar, reconhecem-se limites
contidos na representação e na participação popular intermediada por associações
de qualquer espécie, sobretudo por aquelas
oriundas de mudanças institucionais, como
os modelos programáticos com nítida orientação governamental. Independentemente
da discussão sobre a eficácia dessas tais instituições/associações, a participação/representação da população requer um preparo
para enfrentar os problemas mais simples
da ação coletiva. Além disso, até que ponto essa institucionalidade recém-criada tem
inibido a manutenção das práticas políticas
tradicionais? É possível falarmos em hibridismo de perfis políticos?
Institucionalidade para
o território: o que há
de novo no país?11
É digno de nota o esforço interministerial
recente no processo de concepção, formulação e construção participativa da Política Nacional de Ordenamento Territorial. A
ideia que marcou a concepção da PNOT foi
orientada pela necessidade de instituir um
Ordenamento Territorial, no sentido regulatório, distintamente do sentido do desenvolvimento territorial. A inexistência de uma
tradição dessa abordagem regulatória no
planejamento, em nível nacional, reforçou a
oportunidade da iniciativa. Não significa desconsiderar a notoriedade de ações pontuais,
como, por exemplo, a ação coordenada pelo Ministério de Meio Ambiente, com suas
unidades de conservação, a do Ministério de
Desenvolvimento Agrário, com sua proposta
de “territórios de identidade”, e a iniciativa
do Ministério da Integração, com a proposta
da Política Nacional de Ordenamento Territorial.12
Essa prerrogativa foi possibilitada
com a instituição da Constituição de 1988.
O sentido regulatório está na base de uma
arena constituinte e também redistributiva,
diferentemente da formulação de propostas
de desenvolvimento regional que se referem
a uma arena mais ou menos neutra. O processo correspondeu a uma sucessão de etapas. Na primeira fase, houve um Seminário
Inicial em 2003, coordenado pela Secretaria
de Políticas de Desenvolvimento Regional
e Reordenamento Territorial do Ministério
da Integração, do qual resultou um Termo
de Referência que serviu de base a uma licitação para contratação de uma equipe de
consultores.13 Existe uma articulação estreita com o Ministério da Defesa por razões de
soberania, uma vez que a proposta também
focaliza ações na Amazônia, nas áreas de
fronteiras e na costa litorânea.
Na segunda fase, o objetivo foi elaborar
do Documento-Base. Houve uma divisão do
trabalho em seis estudos: experiências internacionais; experiências nacionais; aspectos
fundiários; padrão de ocupação do território;
logística, cada qual sob a responsabilidade
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
203
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
204
de um consultor. Essa fase foi marcada pela
discussão ampliada nas Unidades da Federação. Foi chamado à discussão o Conseplan
(Conselho Nacional de Secretários Estaduais
do Planejamento) que apoiou a realização de
quatro seminários regionais em Belém; Recife; Florianópolis e Goiânia. A sociedade civil,
através de suas entidades mais representativas de empresários, trabalhadores e outros
grupos, também foi convocada em cada um
desses lugares. O último momento de incorporação de propostas e ideias aconteceu no
Seminário Nacional de Ordenamento Territorial, em novembro de 2006.
Na fase de elaboração da Proposta
Final, foi constituído o Grupo de Trabalho
Interministerial (Ministério da Defesa, MDA,
Minas e Energia, Ministério da Agricultura,
Cidades, MDS, Ministério da Integração, sob
a coordenação da Casa Civil), com a missão
de apresentar uma proposta, em forma de
projeto de lei, ao Congresso Nacional. Sob
a coordenação da Secretaria de Políticas de
Desenvolvimento Regional e Reordenamento Territorial do Ministério da Integração,
acontecem os trabalhos de discussão, com a
finalidade de aprovação da proposta.14
No âmbito do MDA, a ênfase foi dada
na proposta elaborada para a territorialização. O conceito foi explicado como sendo
uma ampliação da concepção sobre áreas
regionais para a definição de territórios, a
partir das identidades (Perico e Ribeiro,
2005). Foram evidenciados três elementos
centrais:
1) A montagem de um mapa de “territórios de identidade”. O estudo foi desenvolvido entre 2003-2004 com base na
proposta do IBGE para as microrregiões
geográficas e ajustado pela metodologia
da OCDE para os critérios de ruralização
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
(densidade demográfica e população média
por município). Das 550 regiões, aproximadamente, existentes segundo o IBGE, o
MDA passou a considerar 450 territórios,
segundo os critérios ajustados de ruralidade. Mais precisamente, 43% dos territórios
correspondem às microrregiões pré-definidas pelo IBGE, enquanto os outros 57% dos
territórios correspondem a arranjos divergentes, definidos pelos elementos culturais,
sociais, etc. Nessa fase de montagem, foram
visíveis as divergências quanto às visões de
território. A concepção de identidade como
vetor da capacidade de diferenciação foi
paulatina e esforçadamente sendo instituída. Momentos de desequilíbrio no trabalho
foram evidentes na definição de identidades
e conflitos em cada território. Atualmente,
está sendo finalizado o relatório (elaborado
entre 2006-2007) que apresenta a proposta de Tipologias e Identidades de Territórios, elaborado com a consultoria do IICA.15
2) A Institucionalidade Criada. Foi criado, em 25 de fevereiro de 2008, o programa Território da Cidadania. Consiste numa
estratégia de desenvolvimento regional sustentável e de garantia de direitos sociais,
voltado a algumas regiões do país definidas em função de critérios como: menor
IDH; maior concentração de agricultores
familiares e assentamentos do programa
de Reforma Agrária; maior concentração de
populações quilombolas e indígenas; maior
número de beneficiários do programa Bolsa Família; maior número de municípios
com baixo dinamismo econômico e maior
organização social. O programa tem como
objetivo levar o desenvolvimento econômico e universalizar os programas básicos de
cidadania. Propõe a integração das ações do
Governo Federal e dos Governos Estaduais
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
e Municipais, em um plano desenvolvido em
cada território, com a participação da sociedade. Atualmente, o Programa contempla
60 Territórios espalhados por todo o Brasil,
de modo que, em cada Estado Federativo,
deve haver, pelo menos um Território da Cidadania.16 Em cada território, um Conselho
Territorial composto pelas três esferas governamentais e pela sociedade determinará
um plano de desenvolvimento e uma agenda
pactuada de ações. O desenho institucional
proposto seguiu o pressuposto central de
fazer descolagem da institucionalidade préexistente, montada a partir dos conselhos
municípios viabilizados pelo PRONAF, desde
a década de 1990. A ideia é criar conselhos
dos territórios. Com isso pretendeu-se focar a ação descentralizada no nível microrregional, territorial. Não há um padrão de
estratégia de aproximação na perspectiva
da instituição dos conselhos nos territórios.
Genericamente, pode-se dizer que preliminarmente se formam as Comissões de
Implantação de Ações Territoriais (CIATs),
nos primeiros três anos, que depois serão
substituídos pelos Colegiados dos Territórios. Com relação ao nível estadual, há um
reconhecimento e respeito à ação de arranjo
institucional elaborado a partir dos Conselhos Estaduais Rurais Sustentáveis, mas há
que ser feita uma apreciação dos critérios
instituídos para que os territórios sejam alvos das ações do MDA. Para implementar a
nova política rural no Brasil, substituindo a
dimensão regional pela dimensão territorial,
o MDA estimulou as unidades da federação
a criarem os Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) nos
territórios prioritários de cada Estado.
3. Cenário Considerado. É pressuposta a ideia de que se trata de um processo
longo, estimado, pelo próprio ministério, como próximo a um período de 35 anos. A experiência tem demonstrado que existe mais
participação onde já pré-existia alguma ação
movida por organizações das mais variadas
naturezas (ONGs internacionais, religiosas,
sindicalistas e outras). Mas a estratégia
baseia-se na ação governamental, com um
trabalho de apoio durante 10 anos, aproximadamente, em cada território. Além da
ação de um conjunto de ministérios, que ao
todo somam 15, ações integradas em parceria com os governos estaduais e municipais,
podem apresentar suas respectivas propostas e projetos. São ações incentivadas, na
perspectiva de consolidar as relações federativas, tornando mais eficiente a ação do poder público nos territórios. Compactua-se a
ideia de que cada território é um mundo singular: a ação, por exemplo, em Pernambuco
tem sido facilitada pela ação combinada do
governo estadual local, na mesma direção,
movida pelo Conselho de Desenvolvimento
Sustentável. Em Santa Catarina, o MDA tem
encontrado mais obstáculos institucionais,
posto que há uma representação governamental forte nas sub-regiões (com a instituição das SDRs), o que resulta numa representação da sociedade civil pouco inclusiva.
Significa dizer que há uma ação diferenciada
em cada Unidade Federativa, a depender do
apoio político estadual.
As principais reações a esse processo
têm se referido às dificuldades de aceitação da prática da “regulação”; mais precisamente, à ausência de tradição. Ainda que se
identifiquem reações sobre a incompatibilidade entre as propostas de regionalização
do IBGE e outras que prevalecem nas Unidades da Federação, uma proposta de territorialização ordenada seria (em tese) pouco
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
205
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
206
porosa aos conflitos e pressões do processo
político, por se distinguir enquanto arena
constituinte. No momento em que ações
passarem a serem reguladas, de fato, criando parâmetros para a gestão, a emergência
dos conflitos será mais evidente.
O desafio que se coloca para o atual
estágio de discussão é a incorporação de
um diálogo sobre a inserção das políticas
setoriais, nas três escalas de ação: nacional,
estadual e sub-regional e sobre a institucionalização de conselhos.
O segundo ponto que propusemos analisar neste artigo reaparece com a exposição
acima e refere-se ao debate acerca dos ditames da estrutura federativa brasileira. Trata-se do problema já apontado por Fernando
Abrucio (2005, p. 2) da “coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presente nas federações”. Significa dizer
que, para além do debate sobre autonomia
local e necessidade de checks and balances,
entre os níveis de governo, precisamos enfrentar alguns desafios associados ao processo de shared decision making (compartilhamento de decisões e responsabilidades).
Segundo os textos básicos disponibilizados pela secretaria de Políticas de Desenvolvimento Regional (SDR/MI/IICA, 2006),
no que tange à Avaliação do Aparato Institucional e Jurídico-legal na perspectiva da
PNOT (Política Nacional de Ordenamento
Territorial ), tem-se que:
O sistema de divisão de competências
adotado pela CF/88 é complexo, envolvendo, basicamente, a enumeração taxativa das competências da União, competência remanescente dos Estadosmembros e competência para dispor
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
sobre tudo que for de interesse local
aos Municípios. (SDR/MI/IICA, 2006a,
p. 10).
E ainda:
O termo Ordenação do Território está
fixado legalmente através do artigo 21,
parágrafo IX da Constituição Federal
de 1988, segundo o qual “Compete à
União elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico
e social”. (Ibid., p. 18)
Significa dizer que a competência de organização do território é da União, enquanto
que a competência para se tratarem assuntos locais compete ao município, nos termos
da Constituição Federal.17 Embora não haja
sobreposição de competências, uma vez que
a competência dos estados-membros e municípios é remanescente, também cabe ao
município e ao estado-membro legislar, direito respeitado no princípio da competência
legislativa concorrente.
O principal desafio é o de entender como a estrutura de incentivos e competências
rebatem nas políticas e, consequentemente,
os seus efeitos na gestão governamental.
Um exemplo disso é a comparação entre
os projetos de gestão territorial planejados
pelo estado e pela União. Os repasses estaduais discricionários aos municípios são baixos, não representando grande diferencial
na vida do município. Já no nível federal,
a liberação de recursos para os municípios
através de emenda individual é de fundamental importância para a sobrevivência
política dos prefeitos e deputados como
discutido anteriormente. Outro aspecto é o
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
local da licitação e planejamento das obras,
que no caso do governo federal se dá nos
municípios e no governo estadual no âmbito
do próprio estado. Ou seja, a lógica de gestão territorial para os estados baseia-se em
planejamento e execução internos, enquanto
que para o governo federal orienta-se pelo
planejamento interno e execução externa.
Parte significativa desse desafio referese à capacidade de equilibrar competição e
cooperação, inovação e homogeneização de
ações, ainda que se considere a atuação coordenadora do governo e de outras instâncias federativas. Sustentamos, contudo, a hipótese de que a disponibilidade de recursos,
locais de toda natureza, é uma variável fundamental na indução de ganhos resultantes
de ações autônomas e competitivas; noutra
direção, experiência e tradição associativa
são variáveis significativas para adesão, por
parte dos entes federados, a processos de
ação coletiva.
Logo, ao focalizarmos a implantação
de uma Política de Ordenamento ou de
Gestão Territorial, há que se analisar também o “esforço” legislativo de adequação
das normas municipais à política nacional
e estadual, despendido por um rol diversificado, nem sempre articulado, de atores
e instituições. Considerando o exemplo do
Plano Diretor, o município depende de, no
mínimo, sete tipos de ordenamentos legais,
sendo o primeiro, no nível federal, a própria constituição, que oferece através da
divisão política e administrativa do país as
competências para legislar da União, dos
estados federados e dos municípios. Ainda
no nível federal, as legislações específicas
sobre ordenamento Urbano e Ambiental e
as diretrizes sobre habitação, transporte,
saneamento básico e meio ambiente.
Ao observarmos a quantidade de instrumentos legais e instâncias a serem respeitadas, podemos intuir que, para uma boa
aplicação ao caso concreto da ação territorial, precisamos de um grau de conhecimento técnico das legislações federal, estadual e
municipal, além de uma cuidadosa articulação política para a negociação em todos
esses níveis. Assim, as políticas territoriais
terão de respeitar, no ordenamento constitucional atual, a legislação municipal no que
lhe couber, por sua condição de ente federativo, ou gerar coordenação entre a União,
o estado e os vários municípios. Essa coordenação pode ser realizada de duas formas:
a primeira delas é a renúncia de parte das
prerrogativas federativas por parte dos estados e municípios, algo que é improvável,
a não ser em uma estrutura de incentivos,
muito vantajosa para estes. Uma segunda
possibilidade é a de que essas políticas sejam executadas pelos municípios e estados,
através de um planejamento conjunto, no
nível federal. Este segundo arranjo, apesar
de mais plausível, traz uma nova gama de
atores à execução dos projetos, tornando
mais complexa a sua realização.
Pernambuco e Santa
Catarina: convergências
e divergências nas
condições favoráveis
à gestão territorial
À primeira vista, esperaríamos encontrar,
entre Pernambuco e Santa Catarina, condições completamente distintas para a implantação de programas de gestão territorial.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
207
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
208
Três conjuntos de fatores, conforme será
exposto nos próximos parágrafos, embasam
tal suposição: a) tratamos de estados que ostentam indicadores sociais bastante diferenciados; b) a tradição de associativismo municipal é incomparável entre as duas regiões;
c) os perfis de participação política dos cidadãos são comprovadamente desiguais.
O primeiro fator encontra defesa reconhecida na literatura que associa padrões
políticos tradicionais a baixos índices de
desenvolvimento.18 Localizados em regiões
divergentes em prosperidade, a observação
comparada dos indicadores sociais sugere a
suposição de que as práticas políticas dominantes em cada estado também sejam muito
diferentes, levando a resultados e até a mudanças institucionais distintas no âmbito dos
programas públicos. Investigamos, por isso,
a condição dos municípios dos dois estados
focos da nossa análise, Pernambuco (NE) e
Santa Catarina (S), com base na tipologia
proposta pela Secretaria de Desenvolvimento
Regional do Ministério da Integração Nacional, que divide as microrregiões entre as de
Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa
Renda.19 Podemos observar, no Gráfico 1,
que o demonstrativo do número relativo de
municípios de Pernambuco diagnosticados
como de baixa renda ou em situação caracterizada como de estagnação é bem mais
alto que o do correlato em Santa Catarina
e até mesmo em relação ao do restante do
país. A grande concentração de territórios
com baixo grau de desenvolvimento socioeconômico está demonstrada pelo peso de
um quarto dos municípios do estado, contra
menos de 13% no Brasil e 0% do estado de
Santa Catarina. Nesse estado, mais de 80%
são considerados municípios de alta renda,
ao contrário de Pernambuco, onde apenas
4,32% se enquadram nessa categoria.
Gráfico 1 – Situação dos municípios do Brasil, Pernambuco
e Santa Catarina quanto à dinâmica das microrregiões
Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional. Disponível em
www.integracao.gov.br
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
Como são recorrentes as análises que
articulam o grau de dinâmica econômica dos
municípios e capacidade de gestão para o
desenvolvimento regional numa correlação
inversa, os dados existentes para Pernambuco e Santa Catarina nos levam a suposições
em torno de existir uma maior dificuldade
na implantação de políticas territoriais em
Pernambuco do que em Santa Catarina.
Esta ideia fica reforçada quando observamos o padrão de execução de orçamento
de desenvolvimento regional, ou seja o quadro de gastos em recursos de desenvolvimento regional. Tal indicador revela que o
Sudeste apresenta o maior número relativo
de municípios optantes por esse tipo de despesa, como demonstra o Gráfico 2. Naquela
região, durante a década de noventa, o percentual dos municípios que executaram esse
tipo de orçamento oscilou aproximadamente
entre 20% e 25%, observando-se um crescimento constante e moderado, que oscila
entre aproximadamente 5% em 1990 até
chegar a quase 10% em 2001.
Um dado que se soma a essa evidência,
de acordo com a pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros - Gestão Pública 2006,
de responsabilidade do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), referese ao grau de utilização, pelos municípios,
de mecanismos de incentivo à implantação
de empreendimentos, tais como: doação de
terrenos; cessão de terrenos; isenção total
ou parcial de IPTU e isenção de ISS. A maior
parte dos municípios que abrem mão de
receita, cerca de 60%, está localizada nas
regiões Sul e Sudeste do Brasil, onde chama a atenção o comportamento dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul
que apresentam, em algumas regiões, uma
grande aglomeração de municípios adeptos
de tais mecanismos. Consideradas as informações, pode-se afirmar que condições mais
favoráveis relativas à montagem de novas
Gráfico 2 – Percentual de municípios
com Execução Orçamentária em Desenvolvimento Regional
Fonte: Ministério da Integração Nacional – Secretaria de Desenvolvimento Regional.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
209
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
210
institucional idades estão presentes com
maior evidência em Santa Catarina. É razoável supor também a existência de variáveis
intervenientes de efeito negativo no tocante
ao estado de Pernambuco.
Significa que quando analisamos o fator definido como tradição de associativismo municipal, as condições na região Sul
do país já se apresentam mais favoráveis.
Empiricamente, a tradição de associativismo municipal, em Santa Catarina, pode ser
comprovada desde a década de 1960 com
o movimento municipalista catarinense. Nos
anos oitenta, surgiu a FECAM – Federação
Catarinense dos Municípios; a rigor, a entidade foi criada com o nome de Federação
Catarinense das Associações Municipais,20 o
que realça o significado do número de entidades regionais de associação de municípios. Atualmente, a FECAM conta com 284
municípios filiados dos 293 municípios de
SC (FECAM, 2008). Foram as associações
de municípios, coordenadas pela FECAM,
que deram o impulso para a criação dos fóruns de desenvolvimento em cada uma de
suas áreas territoriais (Côrtes, 2006). Em
Pernambuco, a experiência existe, mas tem
acontecido de modo pouco sistemático. Entre algumas tentativas de associação municipal, podem ser citadas a formação de um
Fórum na Mata Sul, outras tentativas de
constituir consórcios municipais no Agreste
Central (em torno de ações de saneamento e
construção de aterros sanitários) e ainda no
Submédio São Francisco (em favor de ações
para instalação de centros de distribuição e
comercialização de produtos).
Com relação aos perfis de participação
política dos cidadãos, buscamos verificar os
níveis diferenciados presentes nas duas regiões que abrigam os estados analisados.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
Defendemos que o estímulo à participação,
bem como as estratégias implementadas pelos atores sociais divergem conforme dois
fatores principais: a) a bagagem histórica,
expressa pelas condições recentes da democratização no Brasil e b) os condicionantes
institucionais e políticos à participação e ao
empoderamento presentes regionalmente.
Significa dizer que, de um lado, importam
os fatores vinculados à herança ou à cultura
política e, de outro, aqueles fatores associados às inovações institucionais.
Como indicador da bagagem histórica, utilizamos perfis de participação política
apresentados na Tabela 1. Ao compararmos
as regiões nas quais os estados cobertos pela pesquisa se incluem, é possível ver que
os índices de participação política no Sul do
país são muito superiores aos dos estados
do Nordeste, principalmente no que toca aos
itens relacionados a associações como clubes
sociais e esportivos e reuniões de condomínio (95,3%) e à filiação a partidos políticos
(91,3%), onde a taxa de participação é de
quase o dobro. Apenas no que diz respeito
às associações de moradores, há um relativo
equilíbrio nas taxas de participação, sinalizando um maior índice de participação da
população na região Sul.
Mas, por que condições tão divergentes
de dinâmica econômica, capacidade de gestão para o desenvolvimento regional e capital social, entre duas regiões, tornaram-se
secundárias, ao passo que outras condições
mais favoráveis induziram à experimentação
de programas de territorialização e descentralização? Que condições foram essas?
O Programa Governo nos Municípios
pode ser considerado, entre o conjunto de
experiências participativas que vêm sendo
vivenciadas no país, como uma novidade
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
Tabela 1 – Perfis de participação política comparados: Nordeste e Sul do país
Categorias
Participação em associação de moradores*
Nordeste
21,87
Sul
22,59
Sul/Nordeste
3,27%
Participação em reunião de condomínio*
10,04
19,61
95,30%
Participação em clube social ou esportivo*
18,07
35,30
95,32%
Participação em associação assistencial-religiosa*
29,70
49,84
67,80%
6,37
11,42
79,15%
Filiação a sindicato**
20,57
25,85
25,63%
Filiação a associação profissional**
11,97
17,15
43,31%
5,92
11,32
91,26%
Participação em associação assistencial não religiosa*
Filiação a partido político**
*Participa ou já participou; **Apenas quem é efetivamente filiado
Fonte: Estudo Eleitoral Brasileiro (2002). Elaboração própria.
institucional. Claramente orientado pela ideia de que a sociedade pode imprimir
uma lógica mais democrática na definição
das prioridades na alocação dos recursos
públicos, estando “mais próxima do Estado”, o Programa Governo nos Municípios
foi implantado no estado de Pernambuco,
em 1999, abrangendo uma população de
aproximadamente oito milhões de pessoas.
A expectativa inicial se ampliou para a construção de um modelo de gestão territorial,
pelo qual se projetou o levantamento de demandas específicas e a negociação sobre o
ordenamento das várias propostas setoriais,
diretamente com os grupos sociais, em cada
uma das 12 Regiões de Desenvolvimento do
estado e 185 municípios.21
Tal modelo de gestão pressupunha dois
níveis de atuação do governo estadual: o
primeiro corresponde à articulação entre o
estado e a sociedade civil, mediante a realização de plenárias regionais e a instalação
de uma Comissão de Desenvolvimento representativa dos interesses locais, em cada
região; o segundo diz respeito à articulação
entre as várias instâncias governamentais no
âmbito do próprio estado, mediante o esta-
belecimento de um pacto no qual as variadas
ações setoriais deveriam ser encaminhadas,
no sentido das negociações estabelecidas para cada região.
O Programa de Descentralização Santa
Catarina é uma experiência ainda mais recente. Baseado nos pressupostos da descentralização da gestão do estado e da participação da sociedade no desenvolvimento do
território, o programa foi implantado a partir de 2002, para atingir uma população de
aproximadamente seis milhões de pessoas.
A ideia central é de que a descentralização
do governo é capaz de promover, simultaneamente, o desenvolvimento regional e a
construção de um ambiente de cooperação e
governabilidade, criando um círculo virtuoso
e sinérgico de participação de vários setores
da sociedade civil. O modelo básico propôs
a criação dos Conselhos de Desenvolvimento
Regional, vinculados às 30 Regiões de Desenvolvimento que abrangem 293 municípios, com as Secretarias de Desenvolvimento Regional então criadas para mediar entre
as demandas locais e o governo estadual.22
É importante acrescentar que os dois
programas territoriais incorporaram no seu
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
211
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
212
arcabouço institucional as instâncias participativas integrantes de várias políticas de
desenvolvimento territorial, estadual ou
federal da Secretaria de Desenvolvimento
Territorial do MDA. No âmbito da nova estratégia do Ministério de Desenvolvimento
Agrário, o município deixa de ser o foco das
políticas públicas e o território passa a ser
a unidade de discussão e de implementação
das ações desenvolvidas pelo Poder Público,
a partir de uma visão contextualizada que
contempla os múltiplos fatores intervenientes, integrando-se atividades agrícolas e não
agrícolas. Em princípio, a ênfase no território fortalece o processo de articulação horizontal e vertical entre políticas públicas e
demandas sociais, observando-se, igualmente, que o Estado deve, para atender as prerrogativas da construção da democracia e do
desenvolvimento e de redefinição do papel
do Estado, atuar especialmente quanto à
provisão de bens públicos, direção e regulação da economia. Os Conselhos Municipais
de Desenvolvimento Rural Sustentável e
outros Conselhos de Desenvolvimento Municipal fazem parte dessa nova configuração
institucional 23 e, nesse sentido, oferecem
elementos valiosos à discussão do desenvolvimento sob a ótica do território, tendo em
vista que as decisões sobre as ações, projetos e os rumos a serem privilegiados são
discutidos por esses atores.
Retomando a questão formulada, que
condições teriam favorecido a experimentação de programas de territorialização e
descentralização tão semelhantes? Supomos, então, que um conjunto de fatores
também semelhantes constituiu o quadro
de condições favoráveis à implantação dos
programas referidos. Um exame mais apurado nos arcabouços político-institucionais
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
locais revela semelhanças significativas entre
as duas unidades federativas – PE e SC. A
que mais chama atenção é a inflexão sofrida
na força e resistência dos partidos tradicionais de direita,24 no interior desses estados.
Conforme o Gráfico 3, a direita manteve
um percentual acima de 40% da bancada
de suas assembléias legislativas de 1982 a
2002, para o caso de Pernambuco e, para o
caso de Santa Catarina, até 2006. Significa
dizer que, pela abordagem da conexão eleitoral, é possível supor que a confluência de
interesses regionais favoreceu a implantação
de programas de descentralização. Ainda
que não se possa assegurar a existência de
influência direta da autoridade do governo
do estado sobre as alianças municipais, foi
visível a mudança no quadro de apoio partidário entre os deputados estaduais, se for
considerada a situação antes do programa e
depois do programa.
Há fortes indícios de que a implantação
dos Programas em cada um dos estados
e nos períodos respectivos exerceu uma
influência gradual no quadro político de apoio
à primeira e à segunda gestão consecutiva
de cada governador – Jarbas Vasconcelos
em Pernambuco e Luís Henrique da Silveira
em Santa Catarina. Ao que parece, a aliança
partidária surge como uma variável fundamental para garantir a adesão das elites locais ao programa. Nos dois estados, os dois
governos foram eleitos por meio de ampla
coalizão partidária liderada pelo PMDB.
Nas disputas eleitorais ocorridas após a
implantação dos programas de descentralização, é interessante notar a tendência de
desconcentração regional em favor do grupo
partidário aliado ao governador, que obteve
mais de 50% nas regiões do interior do estado. Esses dados são bastante significativos
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
Gráfico 3 – Percentual das cadeiras ocupadas pelos Partidos
de Direita na Assembléia Legislativa (1982-2006) Pernambuco e Santa Catarina
Fonte: www.jaironicolau.iuperj.com.br/dadoseleitoraisdobrasil
e sugerem que uma análise sobre a estratégia política do governo de compor um pacto
para a implantação do Programa Governo
nos Municípios, a partir de 1999 e do Projeto Meu Lugar, a partir de 2002 é uma hipótese bastante consistente.
Com relação à competição política na
base municipal, historicamente, os deputados desses partidos têm sido individualmente mais dominantes em suas bases eleitorais.
Em seus principais municípios, eles tendem a
ficar com proporções mais altas da votação
total local. Geralmente, são bem votados em
municípios geograficamente contíguos e raras vezes disputam a preferência dos eleitores. Esse controle oligárquico, representado pela concentração eleitoral reduz não
somente o número de novatos na política
quanto o número de partidos concorrentes.
Ou seja, são padrões muito próximos de
competição política. Portanto, pode-se dizer
que o que aproxima os dois estados é a força das oligarquias tradicionais que conserva
o poder nos seus redutos territoriais, sobretudo no interior.
Ou seja, embora se possa dizer que, no
caso brasileiro, alguns fatores reduziriam o
impacto das alianças partidárias e das coalizões de governo sobre a concentração de
autoridade política,25 importante foi constatar que, no cenário político desses dois
estados, evidenciam-se fortes elementos de
continuidade sustentados pelo controle das
antigas oligarquias. Tais grupos políticos locais aliaram-se convenientemente ao governo do estado e utilizaram os Programas de
Descentralização como espaço político para
aumentar seu poder de atuação nas bases
eleitorais. A herança clientelística era visível
em muitas situações, durante as visitas ao
campo. Obras antes escolhidas pela população eram, por vezes, apropriadas, como objeto de propaganda por políticos com base
eleitoral na região. Além disso, verificamos
que a participação popular tão tem sido suficiente para inibir a manutenção das práticas
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
213
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
políticas tradicionais ou, na pior das hipóteses, tem se rendido ao imediatismo das
ações dos politiqueiros de plantão.
Embora o reduzido tempo de implantação do programa impeça afirmações mais
conclusivas, o debate atual deixa claro que
estudos que se dediquem a apontar os ele-
mentos aqui referidos têm sido pouco privilegiados. Ao mesmo tempo, esse mesmo
debate aponta que há um espaço vazio nas
formulações acadêmicas que articulam o
perfil político-territorial com a instituição
de mecanismos de gestão descentralizada e
pretensamente participativa.
Cátia Wanderley Lubambo
Doutora em Sociologia e Mestre em Desenvolvimento Urbano e Regional pela Universidade
Federal de Pernambuco. Pós-Doutorada em Gestão Pública na Fundação Getulio Vargas de
São Paulo. Pesquisadora da Diretoria de Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife.
Docente no Mestrado Profissional em Gestão Pública para o Desenvolvimento do Nordeste, na
Universidade Federal de Pernambuco (Pernambuco, Brasil).
[email protected]
214
Flavio Cireno Fernandes
Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em avaliação de Políticas Públicas pela Universidade do Texas (Austin). Pesquisador da Diretoria de
Pesquisas Sociais/Fundação Joaquim Nabuco-Recife (Pernambuco, Brasil).
[email protected]
Notas
(1) Este trabalho é parte do projeto “Gestão Territorial e Participação Política”, desenvolvido no âmbito da Coordenação de Estudos Sociais e Culturais da Diretoria de Pesquisa da Fundação Joaquim Nabuco e como pesquisa de pós-doutorado da autora na Fundação Getúlio Vargas-SP.
(2) O conceito de território aparece aqui no seu sentido lato, sendo aceito desde a noção de arranjos
produtivos locais até a noção geográfica de território propriamente dita.
(3) Podemos definir accountabilitty como uma forma de controle e supervisão que designa processos
de influência do coletivo sobre o individual, mas não existe uma tradução precisa do termo.
Admitimos ser um modo de articulação cooperativa dos atores sociais adeptos da prática de
mecanismos de monitoramento e avaliação de programas ou políticas públicas.
(4) Ainda segundo Löwi, os atores políticos envolvidos não necessariamente apresentam comportamentos invariantes com relação ao seu envolvimento e sua posição na política. A referência é
mais direcionada a comportamentos típicos: o de grupos de interesse, o de clientela, o de partidos políticos e o de elite tecnocrática. Alguns autores também chamam as políticas constitutivas
de políticas estruturadoras; neste texto usaremos ambos os termos.
(5) Para uma breve revisão da análise sobre a “conexão eleitoral” ver Limongi e Figueredo (2005).
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
(6) São os tipos dominantes concentrados e dominantes dispersos, onde o deputado consegue angariar o maior número de eleitores possíveis em determinados municípios, por razões diversas.
(7) Não é recente, por exemplo, a atuação do governo brasileiro, com apoio do Banco Mundial, na
implementação de programas de combate à pobreza rural do Nordeste. Atualmente, o Banco
Mundial financia o programa de Combate à pobreza Rural – PCPR, que atua em projetos de pequeno porte para comunidades rurais, representadas nas comissões e fóruns participativos.
(8) Outras recomendações são, por exemplo, a aplicação de recursos a fundo perdido em projetos
construídos pela comunidade local.
(9) Os exemplos mais destacados nessa direção têm sido as experiências de orçamento participativo.
(10) Pode-se afirmar que ocorreu um verdadeiro choque institucional na última década, sinalizado
pela criação de centenas, em alguns casos, milhares de conselhos vinculados aos planos locais
nas áreas de criança e adolescente, do desenvolvimento urbano, educação, desenvolvimento
rural, meio ambiente, saúde e assistência social. Esse fato contribui para que o tema venha recebendo espaço importante na literatura. Ver Gohn (2001); Carvalho (1995); Coelho e Nobre
(2004) entre outros.
(11) Esta secção toma por base um levantamento de campo, realizado em Brasília, em maio de 2008.
Foram entrevistados: o Secretário de Políticas de Desenvolvimento Regional e Reordenamento
Territorial do Ministério da Integração – Júlio Miragaya; o indicado – Marcelo Duncam – do Secretário de Desenvolvimento Territorial do MDA – Humberto de Oliveira e o Responsável pelo
Comitê de Desenvolvimento Territorial do CONDRAF – Ronaldo Cambuim.
(12) Consultar os Documentos Temáticos Elaborados como Subsídios da Proposta – PNOT, texto que
serviu de base para a montagem da proposta que hoje tramita em discussão e votação no Congresso.
(13) A equipe vencedora foi o Centro de Desenvolvimento Sustentável - CDS da UnB, onde ficaram
responsáveis pela Coordenação Técnica dos Estudos para elaboração da PNOT, os professores
Marcelo Burstzin e Brasilmar Ferreira.
(14) Citam-se como importantes, a proposta do IBGE, atualmente em etapa de conclusão e a discussão iniciada em novembro de 2008, a partir do lançamento do Estudo da Dimensão Territorial,
realizado e apresentado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos – CGEE, durante o Seminário Internacional de Planejamento Territorial no Brasil, promovido pelo Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão.
(15) Ver o Documento do MDA, 2008 – Desenvolvimento Sustentável e Territorialidade: identidades e
tipologias. Equipe de Consultores: Rafael Echeverri e Edviges Ioris. Consultar também no site do
MDA o link do Sistema de Informações de Territórios Rurais, as regiões existentes por UFs.
(16) Foram definidos conjuntos de municípios unidos pelas mesmas características econômicas e
ambientais que apresentavam identidade e coesão social, cultural e geográfica. Maiores que o
município e menores que o estado, os territórios conseguem demonstrar, de uma forma mais
nítida, a realidade dos grupos sociais, das atividades econômicas e das instituições de cada localidade, o que facilita o planejamento de ações governamentais para o desenvolvimento dessas
regiões. Consultar o documento Território da Cidadania, disponívelem:http://www.mda.gov.br/
portal/index/show/index/cod/1816/codInterno/16264. Pesquisa realizada em 22/9/2008
(17) O artigo 30 da constituição, nos seus incisos I e VII, dispõe sobre a competência do município. O inciso I discorre sobre assuntos de “interesse local”, sem especificação, e o inciso VII discorre sobre
o ordenamento territorial intraurbano, como parcelamento e lei de usos e ocupação do solo.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
215
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
(18) Segundo alguns autores, o baixo grau de desenvolvimento econômico leva a práticas clientelísticas e de apropriação do espaço público pela elite, o que faz com que a qualidade da participação
resulte comprometida. Mesmo autores que também reconhecem a importância das mudanças
institucionais, alertam como o fazem Bonfim e Silva (2003), que mudanças de qualquer natureza
e ainda mais com o propósito de empoderamento, revelam-se como algo dispendioso, tanto do
ponto de vista da ação coletiva, quanto da perspectiva relativa à mobilização de recursos políticos. Ou seja, embora haja condições de se induzir, por meio de mudanças no desenho institucional, uma trajetória de empoderamento numa determinada sociedade não só demanda tempo
para consolidar-se, quanto supõe certos pré-requisitos (inclusive históricos e de capital social)
para a “largada” no curto prazo e para a consolidação em perspectiva mais longa, sobretudo em
regiões que vivenciam um desenvolvimento tardio.
(19) Essa classificação foi apresentada com base na tipologia proposta pela Secretaria de Desenvolvimento Regional do Ministério da Integração Nacional, que divide as microrregiões entre as de
Alta Renda, Dinâmica, Estagnada e de Baixa Renda.
(20) Em setembro de 2008, foi realizada pesquisa de campo na Região Serrana de Santa Catarina e
entrevistado Gilsoni Lunardi Albino, na época, secretário executivo da AMURES - Associação dos
Municípios da Região Serrana, com sede em Lages.
216
(21) Realizaram-se as 1as. Plenárias na RDs para levantamento de demandas/projetos necessários.
Seguiram-se 2as. Plenárias nas RDs, para definição de prioridades, em função das planilhas de
custos de execução dos projetos necessários. Formaram-se as Comissões de Desenvolvimento
Regional. Seguiu-se a elaboração, pelos técnicos do governo dos Planos Plurianuais Regionais,
integrantes do PPA do Estado, posteriormente apreciados pela Assembléia Legislativa do Estado. O número de representantes na CDR era dado pela quantidade de municípios componentes
da RD.
(22) Reuniões mensais dos Comitês de Desenvolvimento Regionais, em que se define a agenda de
prioridades, são realizadas com a coordenação das Secretarias Regionais. Seguem-se discussões
no âmbito dos Comitês Temáticos, com base nas informações, estudos de viabilidade e de impactos. As decisões sobre as ações estratégicas são tomadas nas reuniões dos CDRs que tornamse corresponsáveis pelo acompanhamento das ações nas Secretarias Regionais. Cada Conselho
de Desenvolvimento Regional é formado por quatro representantes de cada um dos municípios
que integram a região administrativa, sendo dois mandatários (o Prefeito e o presidente da Câmara de Vereadores) e dois representantes da sociedade civil. O conselho é presidido pelo Secretário Regional.
(23) Foi elaborado um estudo sobre a opinião dos atores sociais envolvidos, a respeito dos resultados
obtidos no Programa Governo nos Municípios, em Pernambuco (Lubambo e Coelho, 2005). De
maneira complementar, foram realizados grupos focais nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural na Região de Desenvolvimento do Agreste Meridional de Pernambuco, em agosto
de 2008. Este trabalho conta com informações levantadas entre os Conselhos de Desenvolvimento Regional na Região de Lages, em Santa Catarina, em setembro de 2008. Considerações
importantes foram, também, tomadas a partir do estudo de Birkner (2006) sobre o capital social
em Santa Catarina.
(24) Definimos a direita tradicional como o somatório do PDS/PPR/PPB/PP, além do PFL/DEM, e do
PTB. Em 1994, o PDS tornou-se o PPR, o qual, posteriormente, mudou de nome para PPB. Ver
Tarouco (2008).
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
participação e gestão territorial: onde se encontram as condições favoráveis?
(25) Marta Arretche (2004, p. 20) sugere elementos tais como a fragmentação do sistema partidário
que tem implicado reduzido número de prefeitos e governadores do mesmo partido e a ausência de uma centralização no sistema partidário, gerando certa insubordinação dos governadores
e prefeitos em relação às direções dos seus respectivos partidos.
Referências
ABRAMOVAY, R. (2001). Conselhos além dos limites. Estudos Avançados. São Paulo. 15(43).
ABRUCIO, F. (2005). A coordenação federativa no Brasil: a experiência do período FHC e os desafios do
governo Lula. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, n. 24.
AMES, B. (1995). Electoral Strategy under Open-list Proportional Representation. American Journal of
Political Science. Dallas, v. 39, n. 2, pp. 406-433.
________ (2003). Os entraves da democracia no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV.
ARRETCHE, M. (2004). Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, v. 18, n. 2, pp.17-26.
ARRETCHE, M. et al. (2006). Capital Social, Política Partidária e racionalidade dos atores: estudando os
conselhos municipais de desenvolvimento rural. In: 5º ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE CIÊNCIA POLÍTICA. Mimeo. Belo Horizonte, UFMG.
BIRKNER, W. (2006). Capital Social em Santa Catarina: o caso dos fóruns de desenvolvimento regional.
Blumenau, Edifurb.
BONFIM, W. L. S. e SILVA, I. (2003). Instituições políticas e Cidadania e Participação: a mudança social
ainda é possível? Revista Sociologia Política. Curitiba, v. 21, pp. 109-123.
CAIN, B.; FEREJOHN, J. e FIORINA, M. (1987). The personal vote: constituency service and electoral
independence. Harvard, Harvard University Press.
CARVALHO, A. (1995). Conselhos de saúde no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio de Janeiro, IBAM/FASE.
COELHO, V. e NOBRE, M. (2004). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo, Editora 34.
CÔRTES, S. V. (2006). “Instituições e ação estatal: coordenação nos governos estaduais catarinense e
gaúcho – 2003/2006”. In: SOUZA, C. e DANTAS NETO, P. F. (orgs.). Governo, políticas públicas e
elites políticas nos estados brasileiros. Rio de Janeiro, Revan.
FAVARETO, A. e DEMARCO, D. (2004). “Entre o capital social e o bloqueio institucional”. In SCHNEIDER, S. e
outros (org.). Políticas públicas e participação social no brasil rural. Porto Alegre, Editora da UFRGS.
FECAM. Federação Catarinense de Municípios. Disponível em: http://www.fecam.org.br. Acesso em
12/1/2008.
FREY, K. (2000). Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões à prática da análise de políticas
públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, n. 21, pp. 212-259.
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
217
cátia wanderley lubambo e flavio cireno fernandes
GOHN, M. (2001). Conselhos Gestores e participação sociopolítica. São Paulo, Cortez (Coleção Questões da nossa época; v. 84).
LÖWI, T. (1964). American Business, Public Policy Case Studies, and Political Theory. World Politics.
Princeton, University of Princeton Press, pp. 677-715.
________ (1985). “The state in politics: the relation between policy and administration”. In: NOLL, R.
(ed.). Regulatory policy and the social sciences. Berkeley, University of California Press.
LIMONGI, F. e FIGUEIREDO, A. (2005). Processo Orçamentário e Comportamento Legislativo: emendas
individuais, apoio ao Executivo e programas de governo. Dados. Rio de Janeiro, v. 48, n. 4. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S001152582005000400002
&lng=pt&nrm=iso. Acesso em 17 ago. 2007.
LUBAMBO, C. e COELHO, D. (2005). Atores Sociais e estratégias de participação no Programa Governo
nos Municípios. Petrópolis, Vozes.
LUBAMBO, C., COELHO, D. e MELO, M. A. (orgs.) . (2005). Desenho Institucional e Participação Política:
experiências no Brasil contemporâneo. Petrópolis, Vozes.
MELO, M. A. (2003). Empowerment e governança no Brasil: questões conceituais e análise preliminar
de experiências selecionadas. Relatório de Pesquisa. Recife.
PEREIRA, C. e RENNO, L. (2001). O que é que o reeleito tem? Dinâmicas político-institucionais locais e
nacionais nas eleições de 1998 para a Câmara dos Deputados. Dados. Rio de Janeiro, v. 44, n.
2. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011525820010002
00004&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 17 ago 2007.
218
PEREIRA, C. (2000). What Are the Conditions for the Presidential Success in the Legislative Arena? The
Brazilian Electoral Connection. Ph.D. Thesis. New York, The New School University .
PERICO, R. e RIBEIRO, M. P. (2005). Ruralidade. Territorialidade e desenvolvimento sustentável. Brasília, IICA.
RAICHELIS, R. (2005). Articulação entre os conselhos de políticas públicas – uma pauta a ser enfrentada
pela sociedade civil. In: ABONG na Conferência 2005. Criança e Adolescente-Assistência Social.
Brasília, pp. 55-59.
SDR/MI/IICA. (2006a). Documentos Temáticos Elaborados como Subsídios da Proposta PNOT. Anexo:
Tema 6 – Avaliação do Aparato Institucional e Jurídico-legal na perspectiva da PNOT. Disponível
em: http://www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/c_deak/CD/5bd/2br/3plans/2006pnot/index.
html. Acesso em 23 dez 2008.
SDR/MI/IICA (2006b). Subsídios para a definição da Política Nacional de Ordenamento Territorial –
PNOT (versão para seminários). Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/comissao/
index/perm/cdui/rjunior.pdf. Acesso em 23 dez 2008.
TAROUCO, G. (2008). Classificação ideologica dos partidos brasileiros: notas de pesquisa. Trabalho
apresentado no 32o. Encontro Annual da ANPOCS. Caxambu.
TENDLER, J. (2000). ”Why are social funds so popular?” In: YUSUF, S., WU, W. e EVERETT, S. (eds.).
Local dynamics in the era of globalization. Oxford, Oxford University Press.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 197-218
10 sem. 2009
Regularização de assentamentos
urbanos e sustentabilidade
Manoel Teixeira Azevedo Jr.
Resumo
O presente artigo discute os programas de
regularização de assentamentos informais ou
de loteamentos irregulares do ponto de vista
da sustentabilidade urbana, compreendida em
sentido amplo, não só o da concepção do programa para cada assentamento em particular,
mas, principalmente, o da relação desses programas com a lógica de produção do espaço da
cidade como um todo, em especial de suas periferias. Para tal, aborda as possibilidades dos
instrumentos de política urbana do Estatuto da
Cidade para a reversão da permanente reprodução da precariedade das periferias e para a
universalização do direito à cidade.
Abstract
The present paper discusses the programs
of regularization of informal settlements
or irregular allotments from the point of
view of urban sustainability, understood in a
broad sense, not only the conception of the
program for each settlement in particular,
but, principally, the relationship of these
programs to the logic of production of the city
space as a whole, especially its peripheries.
The paper approaches the possibilities of the
urban policy instruments of the City Statute
for the reversion of the constant reproduction
of precarious peripheries and for the
universalization of the right to the city.
Palavras-chave:
regularização urbana; assentamentos informais; sustentabilidade urbana; Estatuto da Cidade; direito à cidade.
Keywords: urban regularization; informal
settlements; urban sustainability; City Statute;
right to the city.
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
manoel teixeira azevedo jr.
Introdução
220
A idéia de sustentabilidade, associada ao
meio urbano, vem sendo largamente utilizada tornando-se, em muitos casos, uma espécie de jargão, que legitima qualquer projeto
e lhe amplia o alcance urbano, dando-lhe,
supostamente, permanência e continuidade
para além do momento e das circunstâncias
de sua produção. Ligado à questão da regularização de assentamentos urbanos, o termo deveria abranger duas escalas interrelacionadas: a do assentamento em si e a da
cidade, compreendendo esta tanto os impactos das ações de regularização sobre o entorno imediato como suas vinculações com
as políticas urbanas mais gerais, relativas à
cidade como um todo, notadamente as de
produção de moradias, expansão urbana e
regulação do mercado de terras e ocupação
dos vazios urbanos. As iniciativas recentes,
em grande medida apoiadas por programa
específico do governo federal, através do
Ministério das Cidades, têm se prendido basicamente ao primeiro aspecto, deixando o
segundo a cargo dos planos diretores municipais, espaço mais adequado, a princípio,
para sua abordagem.
Embora não seja possível no momento
uma avaliação consistente, a nível nacional
ou regional, da aplicação dos instrumentos
de política urbana do Estatuto da Cidade, inseridos de formas variadas na última “safra”
de planos diretores, a maioria terminados em
2006, a partir de prazo fixado pelo próprio
Estatuto (Art. 50), é possível, por leitura
preliminar de planos diretores de municípios
da região metropolitana de Belo Horizonte
e do Estado de Minas Gerais, perceber uma
certa timidez na aplicação e articulação dos
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
instrumentos de política urbana no sentido
de alterar a ordem excludente característica dos processos brasileiros de urbanização.
Desse modo, as ações de reurbanização e
regularização fundiária, por mais que articuladas em programas municipais bem estruturados e que têm, nos melhores casos,
buscado incluir a dimensão social, tentando
abrir perspectivas de superação da pobreza,
acabam sendo marcadas pelo caráter emergencial de melhoria de situações críticas, as
quais tendem a permanentemente recriarse, sem que a estruturação das cidades se
altere, em especial no aspecto de sua profunda diferenciação socioespacial.
Neste artigo, buscamos discutir as possibilidades de interferir nesse processo, de
modo a melhor articular as ações pontuais
de regularização fundiária com políticas que
redirecionem, em alguma medida, a lógica
de produção e de expansão do tecido urbano
das cidades brasileiras, a partir da utilização
dos instrumentos de reforma urbana colocados à disposição das administrações locais
pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01).
Ou seja, tenta-se refletir sobre o potencial
desses instrumentos para a efetivação de
um princípio de sustentabilidade ao nível da
cidade ou do aglomerado urbano como um
todo.
Trabalha-se, assim, com a clássica ideia
de desenvolvimento sustentável, no qual a
resolução de nossas demandas atuais não
compromete as das futuras gerações, o
que implica, no caso da expansão informal
dos tecidos urbanos, atuar sobre as causas
desse processo e sobre os mecanismos da
produção do espaço urbano periférico, entendido este, não de um ponto de vista da
localização em relação aos espaços centrais,
mas no sentido dos territórios de exclusão,
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
de pobreza e miséria que as cidades brasileiras estão constantemente a recriar. No
entanto, essa atuação deve articular-se com
o resgate da enorme dívida social representada pela precariedade dos assentamentos e
das condições de vida de boa parte da população brasileira. A sustentabilidade supõe,
assim, em primeiro lugar, a reversão dos
níveis de desigualdade de renda e de acesso
a bens e serviços, o que supera largamente
o campo das ações de melhoria urbanística
e de moradia, embora as inclua. Representa também, uma perspectiva de maior eficácia na aplicação dos recursos públicos, na
medida em que tende a, progressivamente,
diminuir as demandas de ações curativas
de reurbanização, liberando recursos para
áreas de atuação mais permanente do Poder
Público, como as de educação, saúde, transportes, entre outras. Significa a perspectiva de que os programas de reurbanização
alcancem seus objetivos de mudança social,
não de forma pontual e fragmentária, mas
de forma ampliada no território e no tempo,
ou seja, de forma sustentável, tornando-se
residuais no longo prazo, em uma visão que
hoje se afigura quase quimérica.
Para se ter uma ideia da dimensão do
problema, estima-se que na América Latina,
onde cerca de 75% da população vive em
áreas urbanas, 25% dessa população está
em assentamentos informais (Fernandes,
2006). No Brasil, a população moradora de
favelas nas principais metrópoles se situa,
em geral, acima de 20% do total, chegando,
nos casos de Recife, Salvador e Fortaleza a,
respectivamente, 46%, 30% e 31% (Maricato, 2001). Isso sem contar a enorme população vivendo em parcelamentos periféricos irregulares e de precária urbanização.
Reforma urbana e ação
institucional
Em um quadro como este, colocar a perspectiva da sustentabilidade urbana implica
retomar o tema da reforma urbana, origem
do Estatuto da Cidade, e o alcance dos instrumentos legais que hoje estão disponíveis
para encaminhá-la, já que se trata, muito
mais, de implantar um processo do que operar uma mudança brusca. Trata-se de instaurar, de forma negociada, um redirecionamento das práticas de produção do espaço
urbano, revertendo suas implicações sociais
perversas e excludentes.
O tema da reforma urbana, seu debate
no ambiente técnico e político e as lutas e
reivindicações a ela vinculados, nascem, ainda na década de 60, como desdobramento,
no âmbito das cidades, das lutas pela reforma agrária e, portanto, muito marcados pelas questões fundamentais do acesso à terra
e à moradia nas cidades. A reforma urbana
é impulsionada, assim, pela necessidade de
se repensar a propriedade privada da terra
nas cidades e a lógica de produção do espaço
urbano, que excluía, e ainda exclui, as parcelas mais pobres da população do acesso ao
mercado imobiliário formal, empurrando-as
para as favelas ou para o mercado dos parcelamentos periféricos irregulares.
Tendo como passo inicial o Seminário
Nacional de Habitação e Reforma Urbana,
realizado em Petrópolis, em 1963, as demandas de reforma urbana ganham ressonância dentro do próprio regime militar que,
reconhecendo o caráter danoso da retenção
especulativa de terras para a própria produção capitalista do espaço urbano, inicia,
em 1977, no âmbito da Comissão Nacional
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
221
manoel teixeira azevedo jr.
222
de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU) e, posteriormente, no Conselho
Nacional de Política Urbana (CNDU), discussões para a criação de uma Lei Nacional de
Desenvolvimento Urbano, a qual é encaminhada ao Congresso apenas em 1983 (Projeto de Lei 775/83).
Como parte do processo de redemocratização do país e concomitante revigoramento das organizações da sociedade civil,
é constituído o Movimento Nacional de Reforma Urbana, que terá papel fundamental
durante a elaboração da nova constituição,
através da apresentação da Emenda Popular da Reforma Urbana, com mais de 130
mil assinaturas, que repercutirá no avanço
signifi cativo da Constituição no campo da
Política Urbana. Esse avanço se dá, especialmente, pela explicitação da necessidade de
a propriedade privada cumprir uma função
social, a ser definida pelos planos diretores
municipais, e pela instituição de instrumentos de combate à retenção especulativa de
imóveis e de reconhecimento do direito de
propriedade e de permanência em seus locais de moradia aos ocupantes de áreas urbanas (usucapião urbana).
Visando regulamentar os dispositivos
do texto constitucional, o senador Pompeu
de Souza apresenta projeto de lei substitutivo ao PL 775/83, denominando-o Estatuto da Cidade, o qual é aprovado em 1990
no Senado (PL 181/90). Após 11 anos de
trâmite no Congresso e muitas alterações,
o projeto ganha sua aprovação final e é sancionado pelo Presidente da República em
julho de 2001, gerando o primeiro marco
legal para uma nova política de gestão das
cidades brasileiras, o Estatuto da Cidade, Lei
nº 10.257/01.
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
Em que pese a enorme importância do
Estatuto da Cidade, ele por si não realiza
a reforma urbana. Coloca uma gama de
instrumentos legais à disposição dos municípios, cabendo a estes, através do Poder
Público e da participação do conjunto da sociedade organizada, usarem de forma combinada esses instrumentos, como alavancas
para a construção de um novo padrão democrático e igualitário de cidade. Tal padrão decorre, evidentemente, também de
uma nova postura de garantia de direitos
sociais (à educação, à saúde, ao trabalho,
etc.) e de ações que priorizem a efetivação
de tais direitos.
Como forma de implementação do
Estatuto da Cidade, o Ministério das Cidades desenvolve, a partir de sua criação,
em 2003, ações de divulgação do mesmo
junto aos municípios, priorizando a elaboração dos planos diretores participativos.
Esse instrumento, muito difundido, embora
com pouca eficácia, durante a administração
tecnocrática do regime militar, ganha novo
alento a partir da importância que lhe confere o texto constitucional para a aplicação
dos instrumentos de cumprimento da função social da propriedade. A grande novidade nessa nova fornada de planos diretores é,
sem dúvida, além da possibilidade de aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, a obrigação de participação da sociedade
em sua formulação, o que enfatiza sua dimensão política, como uma espécie de pacto social em torno de um projeto de cidade,
ampliando a familiaridade com as questões
técnicas da gestão urbana, tirando desta o
aspecto de algo acessível apenas a especialistas, e permitindo o acompanhamento da
implementação dos planos.
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
O apoio à elaboração de planos diretores participativos, prioridade do Ministério
das Cidades no período de 2003 a 2006,
inscreve-se em uma linha de “ação preventiva” do Ministério, traduzida no Programa de Fortalecimento da Gestão Municipal,
buscando “evitar a formação de novos assentamentos precários no país; a formação
de ocupações e usos do solo predatórios do
patrimônio cultural e ambiental; e apropriações indevidas dos investimentos coletivos”
(Rolnik et al., 2007, p. 9). A esta se soma
uma linha de “ação curativa”, traduzida no
Programa Papel Passado (Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável) e no Programa de Gerenciamento
e Remoção de Riscos.
Do ponto de vista da sustentabilidade
urbana, as ações curativas reconhecem as
situações de irregularidade existentes e procuram equacioná-las segundo um novo patamar de qualidade urbanística, enquanto as
ações preventivas procuram introduzir uma
nova lógica de produção do espaço urbano,
de modo a inibir a reprodução constante das
situações de irregularidade e precariedade
urbanas, as quais demandam novas ações
curativas e fazem com que o Poder Público
esteja sempre correndo atrás da mitigação
de situações criadas por processos sobre os
quais não é capaz de interferir.
O Programa Papel Passado assume a
questão da sustentabilidade a partir de duas
preocupações fundamentais: a primeira,
a de não pensar a regularização apenas na
dimensão legal, a da garantia da obtenção
do título de propriedade, mas também na
dimensão urbanística, ou seja, incluindo intervenções de reurbanização, atendimento
às exigências urbanísticas das leis de parcelamento do solo, remoção de ocupações em
áreas de risco, reassentamento de famílias,
resolução de situações de ocupação de áreas
de proteção ambiental, etc. Dessa forma, a
regularização é pensada de maneira ampla,
correspondendo a uma requalificação urbana que busca promover a integração socioespacial dos assentamentos à cidade. A
segunda preocupação que fundamenta a
utilização do princípio de sustentabilidade é
o envolvimento da comunidade interessada,
tornando-a partícipe das decisões urbanísticas, consciente dos problemas específicos
de irregularidade e dos instrumentos legais
mais adequados para enfrentá-los e responsá vel, junto com o Poder Público, pelo
acompanhamento da dinâmica de ocupação
da área após o processo de regularização
fundiária, de modo a evitar que situações de
ocupação irregular se recriem e de modo a
estabelecer um novo padrão de relação da
população com os recursos ambientais, em
especial os cursos d’água, as nascentes, as
áreas de proteção da flora ou da fauna e as
áreas com risco para a ocupação. Reforçamse assim, os vínculos da população com seu
ambiente de vida, fazendo-a efetivamente,
não apenas dona de sua propriedade particular, mas também daquilo que diz respeito
ao espaço coletivo, ao bairro e aos interesses da comunidade. Amplia-se a autoestima
dos moradores, com repercussões no cuidado com a moradia e o bairro e no reforço
dos laços com sua comunidade.
Sustentabilidade
e direito à cidade
A sustentabilidade urbana, no entanto, não
pode ser entendida apenas no nível de cada
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
223
manoel teixeira azevedo jr.
assentamento em particular, mas as ações
nestes devem estar inseridas em uma política urbana que diz respeito ao conjunto da
cidade e, no caso dos grandes aglomerados
urbanos, ao contexto regional e metropolitano em que as cidades ou os municípios
se encontram. Por um lado, cada assentamento objeto de regularização interage com
um contexto imediato que é impactado, em
maior ou menor medida, pelas ações que
se dão nele. Por outro lado, suas especificidades são parte de um processo amplo de
produção do espaço periférico, marcado pela
informalidade no acesso ao solo urbano e à
moradia. As principais causas desse processo
224
[...] vão desde fatores globais e fatores
macroeconômicos até variáveis locais,
mas cinco causas principais merecem
atenção especial, quais sejam: a falta de
opções formais resultantes da natureza
das políticas fundiárias, habitacionais,
urbanas e fiscais dos governos; a dinâmica excludente dos mercados de terras
formais, que não incluem os pobres; a
longa tradição de manipulação política
dos moradores de assentamentos informais mediante práticas renovadas
de clientelismo político; os sistemas de
planejamento urbano elitistas e tecnocráticos que são implantados pelas administrações locais, sem levar em conta
as realidades socioeconômicas de acesso
ao solo e produção da moradia e nem a
capacidade de ação das administrações
locais para garantir o cumprimento da
legislação urbanística; e a natureza obsoleta dos sistemas jurídicos e procedimentos judiciais que ainda prevalecem
na maioria dos países em desenvolvimento e em transição. (Fernandes,
2006, p. 50)
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
A regularização fundiária é parte fundamental do direito social de moradia, mas
suas implicações e repercussões na reestruturação do espaço urbano devem percebê-la
na perspectiva da promoção de um direito
mais amplo: o direito à cidade. Nesse sentido, os programas de regularização de assentamentos urbanos devem fazer parte de
uma estratégia de política urbana que inclui,
entre outras, as ações sobre a estrutura fundiária, a ocupação de vazios, a produção de
moradias de interesse social e a distribuição
dos equipamentos públicos, disseminandoos no espaço da cidade, com prioridade para
sua implantação nas áreas periféricas. Essa
estratégia deve estar intimamente articulada
com outras políticas públicas, notadamente
as de transporte e mobilidade urbana, de
educação e geração de renda, de qualificação e universalização dos serviços de saúde,
entre outras. Embora todas essas políticas
devam ser concebidas em termos da cidade
ou da metrópole como um todo, suas propostas específicas já devem ser incorporadas
nos diversos programas de regularização,
sendo que algumas já deveriam, necessariamente, fazer parte deles, caso das ações
de capacitação profissional da população e
geração de renda e das de implantação de
equipamentos comunitários, respeitadas as
características e demandas particulares de
cada assentamento e suas relações com o
entorno. Isso inscreveria mais efetivamente os programas de regularização enquanto
ações curativas de resgate de direitos sociais, em uma política ampla de sustentabilidade urbana.
Evidentemente, deve-se considerar
também a amplitute das ações de regularização. Se elas se constituem em efetivos
programas de reurbanização que, além de
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
garantir a infraestrutura básica, requalifiquem os espaços públicos, na perspectiva
de uma maior homogeneidade nos padrões
de urbanização, superando as enormes disparidades imperantes nas cidades brasileiras, elas têm condições de serem efetivas
propulsoras do direito à cidade. Nesse caso,
as ações específicas em cada assentamento
deveriam fazer parte de estratégia geral
de reurbanização das áreas periféricas, de
modo a evitar disparidades urbanísticas que
tendem a reforçar processos pontuais de valorização imobiliária, geradores de expulsão
progressiva das populações beneficiadas, o
que comprometeria os objetivos pretendidos de melhoria da qualidade de vida dessas
populações. Tal estratégia ampla de reurbanização demanda um volume de recursos
que implica, tanto um forte compromisso
da sociedade, em especial dos setores mais
ricos, com a diminuição das disparidades
urbanísticas no interior das cidades, como a
introdução de novas fontes de financiamento, para as quais os instrumentos de política
urbana previstos pelo Estatuto da Cidade
podem ser de grande valia, como discutiremos mais adiante.
Se os projetos de regularização se
restringem, como tem sido bastante usual,
à infraestrutura básica, a poucas obras
prioritárias de articulação viária e a sanar
situações emergenciais de inadequação de
ocupação, seu impacto sobre o entorno será, evidentemente, limitado, como limitada
será sua capacidade de alterar o quadro de
diferenciação socioespacial da cidade. De
certa forma, se estará sacramentando uma
urbanização de segunda categoria, um padrão empobrecido de urbanização para os
mais pobres, a quem se oferecem pequenas benesses, no mais das vezes pontuais
e sem atingir sequer o conjunto das áreas
por eles ocupadas.
Isso não deslegitima as ações que vêm
sendo efetuadas e todo o esforço de diversas administrações municipais apenas tenta
perceber os limites de tais ações e sua pouca
eficácia em uma avaliação de sustentabilidade urbana e de encaminhamento da garantia
do direito à cidade. Reconhece-se, no entanto, a magnitude das situações de precariedade urbana e o acúmulo de problemas
de toda ordem, contrapostos a uma grande
limitação de recursos e à baixa prioridade da
sociedade para a resolução dessas questões,
o que só alimenta a desesperança nas possibilidades de alteração desse quadro.
As opções para o enfrentamento das
disparidades socioespaciais se colocam para
o jogo das forças políticas da sociedade brasileira. Os planos diretores e o conjunto do
sistema de participação social na gestão dos
municípios são, sem dúvida, espaços fundamentais para a definição dessas prioridades
e do modelo de cidade que se pretende, mas
essas questões estão permanentemente se
recolocando, a partir da própria dinâmica
social e política, na lenta e necessariamente
conflituosa construção de cidades mais democráticas e igualitárias.
Percebe-se, assim, a clara dimensão
política do direito à cidade, que inclui o direito à terra e à moradia, mas os amplifi ca, inserindo-os em um direito aos bens e
serviços produzidos pela sociedade. Nesse
caminho, é fundamental um patamar de
urbanização a todos garantido, condição
preliminar para um convívio social menos
marcado pela violência e o estranhamento
entre os grupos sociais. Direito à cidade
é, assim, requisito básico para o exercício
pleno da cidadania.
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
225
manoel teixeira azevedo jr.
Instrumentos de política
urbana
226
Dentro dessa perspectiva, duas vertentes articuladas deveriam nortear, no âmbito das
políticas urbanas, a atuação do Poder Público: habitação e urbanização. O enorme déficit habitacional, aliado às condições precárias
em que vive boa parte da população urbana
e à sua exclusão do mercado imobiliário formal, exige um enorme esforço de produção
de novas moradias e de urbanização e regularização fundiária de assentamentos informais. Isso implica, para além da capacitação
e organização das administrações municipais, grande aporte de recursos financeiros,
que demandam a previsão de novas fontes
de financiamento, a priorização desses investimentos nos orçamentos municipais e a
diminuição dos custos de acesso à terra, um
dos gargalos de qualquer política de produção de moradias. Trata-se, portanto, de
ações de caráter, não apenas técnico, mas
eminentemente político, envolvendo a escolha de instrumentos, a amplitude de sua
aplicação e a pactuação na distribuição de
ônus e benefícios.
Na questão do acesso à terra, instrumento importante é previsto pela Constituição e regulamentado pelo Estatuto da
Cidade: a Usucapião Especial de Imóvel Urbano que, ao assegurar o direito de permanência e domínio para aqueles que ocupam
há mais de cinco anos imóveis urbanos de
até 250 m2, sem contestação judicial e não
sendo proprietários de outros imóveis, é
fundamental para a regularização fundiária
das favelas, no caso de áreas de propriedade privada. Sua utilização foi enormemente facilidade pela possibilidade de aplicação
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
coletiva, na forma de condomínio especial,
resolvendo a grande dificuldade e quase
inviabilidade de utilização do instrumento
se os processos de usucapião tivessem, no
caso das favelas, que ser feitos de forma
individualizada.
O sucedâneo da usucapião, no caso de
áreas de propriedade pública, é Concessão
do Direito Real de Uso e, especialmente,
uma forma específica desta instituída pela
Medida Provisória n° 2.220/01, a Concessão Especial de Uso para fins de Moradia.
Esse instrumento garante a permanência nos locais de moradia àqueles que, até
30/6/2001, ocupavam por cinco anos contínuos, sem oposição, áreas públicas de até
250 m2, sem serem proprietários de outro
imóvel. A medida exclui desse direito uma
série de áreas públicas (as de uso comum do
povo, as de risco, as destinadas a projetos
de urbanização, as de preservação ambiental, entre outras), prevendo, no entanto,
que, nesses casos, o Poder Público deverá
promover o reassentamento das famílias
ocupantes. É importante ressaltar que, diferente da Concessão do Direito Real de Uso,
que é uma “prerrogativa do Poder Público”,
a Concessão de Uso Especial para fins de
Moradia, ao criar um “direito subjetivo” do
ocupante, implica “obrigação do Poder Público” (Fernandes, Edésio em Rolnik, 2007).
Esse instrumento havia sido vetado no Estatuto da Cidade por este não prever os casos
de não aplicabilidade e não estabelecer a data limite para sua aplicação, sem a qual, supostamente, poderia ocorrer uma “corrida”
de ocupação de áreas públicas.
Outro instrumento importante é a definição de Zonas de Especial Interesse Social
(ZEIS) que, além de possibilitar a aplicação
de parâmetros específicos de urbanização
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
no caso de assentamentos existentes e, nesse sentido, facilitar a implantação dos programas de regularização, poderia ser muito
mais explorado pelos planos diretores na
definição de áreas para futuros programas
habitacionais, criando uma espécie de reserva de terrenos para tais programas, cujos
valores tenderiam a se retrair em função do
próprio zoneamento. Assim, além de possibilitar a formulação de uma política de médio e longo prazos para a produção de moradias, a definição das ZEIS, ao baratear os
custos de acesso aos terrenos, poderia ser
combinada, para a implantação dos programas habitacionais, com a utilização de instrumentos fiscais de incentivo à participação
da iniciativa privada nesses empreendimentos ou de instrumentos de parceria com o
setor privado, como o Convênio Urbanístico
de Interesse Social. Neste, Poder Público e
iniciativa privada se associam, entrando, um
com o terreno, outro com obras, viabilizando programas habitacionais e permitindo,
entre outras possibilidades, que o ressarcimento pelo uso de terrenos privados se dê
através de parcelas urbanizadas dos mesmos, que permanecem com os proprietários
originais, enquanto o restante é utilizado no
programa de interesse social.
A definição como ZEIS das áreas onde
se aplicarão a Usucapião ou a Concessão de
Uso Especial para fins de Moradia é importante como forma de inibir possíveis pressões do mercado imobiliário para venda das
áreas regularizadas, na medida em que, como ZEIS, a destinação dos terrenos é a habitação de interesse social, com parâmetros
mais restritivos de tamanho do lote e de
ocupação do terreno, o que tende a diminuir
sua atratividade para o mercado imobiliário
(Alfonsin, Betânia em Rolnik, 2007).
No entanto, a regularização fundiária
e a reurbanização de favelas e loteamentos
precários, trabalhando no socorro às situações existentes, devem estar ligadas, como
já apontado, a políticas que alterem o modo perverso de produção do espaço urbano,
em especial nas grandes metrópoles. Essa
produção tem se caracterizado pelo baixo
padrão urbanístico e por uma ocupação extensiva e rarefeita das áreas periféricas, deixando grandes áreas vazias, encarecendo os
custos per capita de implantação das infraestruturas urbanas e obrigando a população a percorrer enormes distâncias, o que
é agravado pela, em geral, baixa qualidade
dos serviços públicos de transporte. Além
disso, os demais serviços urbanos (de educação, saúde, lazer, etc.) são também, em
geral, marcados pela deficiência quantitativa
e qualitativa. Com isso, aumenta a espoliação da população pobre, agregando à baixa
remuneração do trabalho e consequentes
restrições de consumo, uma deterioração
da qualidade de vida que decorre da própria
forma da cidade e da qualidade dos serviços
e equipamentos urbanos.
Para enfrentar essa situação, além das
fundamentais políticas de melhoria dos serviços de educação, saúde, lazer e transportes,
é preciso, no âmbito das políticas fundiárias
e de ocupação urbana, restringir os perímetros de expansão urbana, dimensionando-os
em função, não das demandas de valorização especulativa e dos interesses de proprietários de terrenos, mas sim da real demanda
de terras para urbanização, calculada para
um horizonte de tempo relativamente curto
(em torno de cinco anos) e periodicamente
reavaliada. Nesses cálculos, deve-se considerar o estoque de áreas vazias e de construções desocupadas no interior das cidades,
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
227
manoel teixeira azevedo jr.
228
em especial nas áreas centrais. Essa política
de controle da expansão urbana deve estar
associada a uma política agressiva que estimule e mesmo obrigue a colocação no mercado e a ocupação desses imóveis vazios,
subutilizados ou sem utilização, ou seja,
que imponha a eles o cumprimento de sua
função social. Instrumentos para isso são os
colocados na Constituição e regulamentados
no Estatuto da Cidade: o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios, o IPTU
progressivo e a Desapropriação com títulos
da dívida pública, cuja utilização deve se dar
de maneira sucessiva.
Com isso, estar-se-ia trabalhando na
perspectiva de geração de uma cidade compacta, menos espraiada, com maior rentabilidade e economia na implantação e utilização das infraestruturas e equipamentos urbanos. Essa política de ocupação de vazios
urbanos e de imóveis subutilizados ou não
utilizados e de controle da expansão territorial deveria estar articulada com as políticas de produção maciça de novas moradias
ou lotes urbanizados de interesse social,
valendo-se, para isso, dos mecanismos de
definição de ZEIS e das parcerias entre Poder Público e iniciativa privada. Combinarse-iam, assim, mecanismos de imposição do
cumprimento da função social da propriedade, com mecanismos de viabilização de tal
cumprimento.
É importante ressaltar que a produção
de moradias em larga escala e a oferta de
lotes com condições urbanísticas satisfatórias e localização adequada para a população
mais pobre é fator fundamental para a prevenção e inibição do processo de desenvolvimento urbano informal (Fernandes, 2006).
A outra questão fundamental é a dos
padrões de urbanização. Não há como
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
conciliar cidadania e democracia com as
enormes disparidades nos padrões de urbanização que caracterizam as cidades brasileiras. Garantir uma equalização mínima
desses padrões é não só fundamental para
o direito à cidade, mas também instrumento para diminuir as enormes disparidades
no valor das terras urbanas e, portanto,
fator essencial para facilitar a produção de
novas áreas urbanizadas. É essencial também para a perspectiva da sustentabilidade
urbana, notadamente na sua dimensão social. Evidente que esse esforço de requalificação urbanística dos territórios periféricos da cidade, que inclui os programas de
regularização de assentamentos informais,
mas os ultrapassa, abrangendo o conjunto da precariedade urbanística das periferias, exige grandes recursos fi nanceiros e
uma das formas de obtê-los é a exploração
mais adequada e socialmente direcionada
dos instrumentos de justiça na produção
do espaço urbano previstos no Estatuto
da Cidade. O principal deles é a Concessão
Onerosa do Direito de Construir, que taxa
os empreendimentos com maior densidade
construtiva, em decorrência do fato de que
a permissão de tal adensamento decorre da
presença de uma infraestrutura implantada
pela coletividade. Por isso esta deve receber uma contrapartida por tal concessão.
Esse instrumento, usado de maneira inteligente e inserido em uma política coerente
de uso e ocupação do solo, pode gerar uma
massa significativa de recursos que deveria
alimentar fundos de urbanização ou fundos
de habitação social, propiciando aporte de
recursos para o grande esforço de produção de moradias e reurbanização de áreas
periféricas que a perspectiva da universalização do direito à cidade impõe. Tal política
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
deveria ter como princípio onerar as áreas
de maior interesse do mercado imobiliário,
em geral destinadas à população mais rica,
e ser aplicado diferenciadamente em outras
áreas da cidade, através de redutores ou
mesmo de isenções, dentro de uma estratégia, pensada para a cidade como um todo,
de estímulos ou inibições ao adensamento
populacional ou construtivo.
Infelizmente, por pressão dos interesses imobiliários e o argumento de que esse instrumento iria sobrecarregar o custo
final das unidades construídas, a Concessão
Onerosa do Direito de Construir tem sido
muito pouco explorada nos planos diretores
ou aplicada de modo extremamente tímido,
com valores baixos de contrapartida, sem
gerar os efeitos sociais que possibilitaria. O
argumento do aumento do custo final das
construções é verdadeiro, mas não necessita
incidir sobre o conjunto da produção de moradias do mercado formal, de acordo com
uma estratégia diferenciada para sua aplicação, que inclui a consideração das diferenças
de renda nos grupos sociais que demandam
o mercado imobiliário. Além disso, seu impacto sobre o custo final da construção tenderia a ser diluído pelos diversos compradores, em geral de maior poder aquisitivo. A
aplicação do instrumento deve, assim, estar
balizada por critérios sociais e sua utilização
plena faz parte das decisões políticas da sociedade e do nível de responsabilidade que
os setores mais ricos pretendem assumir
no esforço de diminuição das desigualdades
socioespaciais. Dentro dessa mesma linha,
poderiam ser previstas também formas de
contrapartida social, destinadas a fundos
de urbanização ou de habitação, para loteamentos urbanos direcionados aos estratos
mais ricos da população.
Outro instrumento importante de justiça na produção do espaço urbano são as
Operações Urbanas Consorciadas que, nos
grandes obras públicas de reurbanização,
em especial as viárias, pode reverter a lógica
tradicional de apropriação privada da valorização decorrente do investimento público,
fazendo com que aqueles que lucram em
função dessas obras participem no custeio
das mesmas. Dentro das Operações Urbanas, o instrumento em geral mais utilizado
para a geração de recursos de custeio das
obras envolvidas é, justamente, a Concessão
Onerosa do Direito de Construir.
A Contribuição de Melhoria é outro
instrumento que trabalha nessa mesma direção. A utilização deles, além dos objetivos
de melhor distribuir os ônus e benefícios do
investimento público, tende a desonerar os
cofres públicos, liberando maiores recursos
para outros investimentos, em especial nas
áreas periféricas.
A dimensão metropolitana
É importante destacar, em especial no contexto das grandes cidades, que a aplicação
desse conjunto de instrumentos de política urbana só pode ter eficácia se realizada
dentro de uma gestão de âmbito metropolitano, ou seja, dentro das chamadas questões de interesse comum dos municípios
componentes de aglomerados ou regiões
metropolitanas. Se isso já é claro e vem
sendo praticado em relação a questões como o abastecimento de água, o esgotamento e tratamento de efluentes sanitários, a
macrodrenagem urbana, o sistema viário
estruturante e o sistema de transportes
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
229
manoel teixeira azevedo jr.
230
coletivos, outras questões têm sido tratadas de modo fragmentado pelos diversos
municípios. Não há como conceber políticas coerentes de produção de moradias, de
reurbanização de periferias e regularização
de assentamentos informais, e mesmo políticas de implantação dos equipamentos comunitários de educação, saúde, lazer, entre
outros, sem tratá-las no âmbito do espaço
metropolitano.
Na medida em que a produção do espaço periférico nas grandes cidades, com
suas características de precariedade e segregação se dá, em geral, menos no município central e muito mais nos municípios ao
redor deste, em assentamentos conurbados
ou que se estendem, fragmentariamente,
em um amplo espaço regional polarizado
pelo município principal, a política urbana
deve ser pensada a partir dessa realidade
supralocal e não como somatório de políticas municipais, em geral desarticuladas. A
definição dos perímetros urbanos, a aplicação dos dispositivos de combate à retenção
especulativa de terras, a definição das ZEIS
para novos programas habitacionais, o modo de aplicação da Concessão Onerosa do
Direito de Construir, articulada a um fundo
de urbanização ou de habitação, entre outros instrumentos, só ganham eficiência e se
tornam efetivos mecanismos de sustentabilidade urbana se concebidos através de uma
articulação política de âmbito metropolitano
ou regional. No caso, por exemplo, da Concessão Onerosa do Direito de Construir, os
municípios centrais, onde o interesse e as
possibilidades de adensamento são maiores,
tendem a ser geradores de recursos que,
numa perspectiva metropolitana, devem ser
destinados não só para suas áreas periféricas mas também, e talvez principalmente,
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
para as periferias dos municípios mais pobres, em geral as mais carentes.
Assim, a ideia de um fundo metropolitano deveria estar alimentada por recursos,
entre outros, da aplicação coordenada desses instrumentos, em especial da Concessão
Onerosa do Direito de Construir, e com estratégias de alocação dos recursos de caráter redistributivo, ou seja, priorizando os
municípios periféricos, em geral com base
econômica frágil e, nesse sentido, incapazes
de fazer frente aos problemas sociais e urbanísticos de toda ordem que suportam.
Essas são questões que recolocam a
necessidade de se reestruturar uma gestão
dos espaços metropolitanos, agora em um
novo patamar: não mais como imposição
tecnocrática do poder estadual e federal,
como foi a experiência do período do regime militar, mas assumindo a dimensão política de um pacto entre os municípios das
regiões metropolitanas, com interveniência
da sociedade civil e do poder estadual. Sem
a construção dessa articulação metropolitana, os municípios mais pobres estão fadados
à perpetuação de sua condição de pobreza
e ações positivas de democratização urbana em um município podem não atingir os
fins desejados ou repercutir negativamente
em outros, fazendo com que a realidade da
segregação e diferenciação socioespacial seja
constantemente reproduzida.
Conclusão
A partir das questões aqui levantadas, é possível perceber o grande potencial aberto pelo
Estatuto da Cidade para o enfrentamento e a
diminuição das desigualdades socioespaciais
regularização de assentamentos urbanos e sustentabilidade
presentes nas cidades brasileiras e sua importância para que a perspectiva da sustentabilidade urbana contemple essa dimensão
de reconfiguração física e social das cidades.
Cabe à sociedade explorar as possibilidades
dos instrumentos disponibilizados pelo Estatuto, incrementando sua aplicação criativa e
combinada, em um processo de permanente
acompanhamento e avaliação de sua eficácia para os objetivos pretendidos. Apesar
da discussão e do alerta da necessidade de
uma reforma urbana já vir de mais de qua-
renta anos, período em que a questão social
nas cidades brasileiras se tornou dramática,
abrem-se hoje possibilidades efetivas de enfrentamento dessas questões, até por pressão da própria realidade e maior consciência
dos setores dirigentes, cabendo esperar da
sociedade como um todo, especialmente dos
governos e das classes mais ricas, que sejam
capazes de perceber a dimensão do problema e a necessidade de agir com consistência,
na perspectiva de resultados duradouros e
efetivamente transformadores.
Manoel Teixeira Azevedo Jr.
Arquiteto e urbanista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mestre em Planejamento
Urbano e Regional pela Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Minas Gerais, Brasil).
[email protected]
231
Referências
BRANCO, S. M. (1989). Ecossistema – uma abordagem integrada dos problemas do meio ambiente.
São Paulo, Edgard Blücher.
FERNANDES, E. (org.) (2001). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte, Del Rey.
________ (2006). Programas de regularização fundiária em áreas urbanas: comentários e lições. Oculum ensaios: revista de arquitetura e urbanismo. São Paulo, n. 6.
MARICATO, E. (2001). Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ, Vozes.
ROLNIK, R. e CYMBALISTA, R. (org.) (1997). Instrumentos urbanísticos contra a exclusão urbana. São
Paulo, Polis.
ROLNIK, R. et al. (2007). Regularização fundiária sustentável – conceitos e diretrizes. Brasília, Ministério das Cidades.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 219-231
10 sem. 2009
A construção da esfera pública
no planejamento urbano. Um percurso
histórico na cidade de Santos
Luiz Antonio de Paula Nunes
Resumo
O objetivo deste trabalho é o estudo do processo de participação da sociedade civil no planejamento urbano no período compreendido entre
os anos de 1945 e 2009, tendo como objeto a
cidade de Santos, que é tomada como estudo
de caso. O foco está na construção e institucionalização de espaços políticos, como comissões
e conselhos, onde ocorreram debates para formulação de propostas de intervenção e elaboração de legislação urbanística. Tendo como base
uma revisão bibliográfica sobre a temática envolvida, aliada ao levantamento documental, a
fim de constatar como esse percurso histórico
se deu, pretende-se responder questões sobre
como e por que se construíram e se institucionalizaram essas arenas no nível local.
Abstract
The aim of this work is the study of the
process of civil society participation in urban
planning in the period between 1945 and
2009, having as object the city of Santos,
which is taken as a case study. The focus
is the construction and institutionalization
of political spaces such as commissions and
councils, where debates were held in order
to formulate proposals for intervention and
urban legislation production. Based on a
bibliographical review, allied to a documental
survey in order to check how this historical
path occurred, the aim is to answer questions
about how and why those arenas were built
and institutionalized in the local level.
Palavras-chave: cidade; planejamento; cidadania; governança; democracia.
Keywords: city; planning; citizenship;
governance; democracy.
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
luiz antonio de paula nunes
Introdução
234
A história da democracia deve ser vista como um processo dinâmico, constantemente
alterado por mobilizações que a identificam
cada vez mais com a pluralidade de interesses. Nesse percurso histórico, pode ser vista
tanto como a oportunidade dos cidadãos de
participarem do processo político através do
voto como pela possibilidade de participarem das tomadas de decisões. Nas últimas
décadas do século XX, as questões relativas
à participação dos cidadãos tornaram-se
presentes em diversas áreas, inclusive na
formulação de propostas relacionadas com o
desenvolvimento urbano.
A questão que se coloca é: Esse cenário
é novo ou é consequência de um percurso
histórico em que planejamento urbano, participação e concepção de democracia estão
intrinsecamente relacionados? O que se
pretende demonstrar é que, na trajetória
histórica do planejamento urbano, ocorreu
um processo de construção da esfera pública derivado da trajetória das concepções de
democracia, estruturação do Estado, sociedade civil e cidadania.
Ao fazermos esta análise, encontramos
relações entre planejamento urbano e política, em que a participação passou a assumir
papel cada vez mais relevante. Isso implicou
a formulação de novos conceitos, tais como
espaço público e esfera pública, além da redefinição de outros, como sociedade civil e
cidadania.
A base teórica teve como principais
referências autores como Maria da Glória
Gohn, Carole Pateman, Alain Touraine e
Norberto Bobbio, além do conceito de esfera pública de Jünger Habermas e análises
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
elaboradas sobre esse conceito e sobre sociedade civil por, dentre outros, Sérgio Costa, Adrian Lavalle e Elenaldo Teixeira. As
referências que aqui constam são apenas
aquelas utilizadas para elaboração deste artigo: para verificar toda a bibliografia utilizada na pesquisa vide Nunes (2006).
Neste artigo, privilegiou-se a análise do
cenário político brasileiro em conjunto com
a história do pensamento urbanístico, tomando a cidade de Santos como estudo de
caso e utilizando o recorte temporal definido pelos anos de 1945 e 2009, dividido em
três períodos. O primeiro período, de 1945
a 1964, trata, no contexto do restabelecimento do regime democrático no Brasil, de
como o planejamento urbano passou a ser
pautado na agenda política. O segundo período, de 1964 a 1984, trata, no contexto
histórico do autoritarismo brasileiro, do isolamento da atividade do planejamento pela
centralização tecnocrática. O terceiro período, de 1984 a 2009, trata, no contexto da
redemocratização do Brasil, das recentes
experiências de participação no processo de
gestão urbana.
1945 a 1964 – Democracia
e politização
Nessa época, acirravam-se os conflitos ideológicos, produzindo consequências políticas
para o processo democrático de sinais opostos. Para o liberal, o protagonismo da sociedade está no indivíduo, enquanto que, para
a chamada “esquerda”, o protagonismo está nos sindicatos e organizações populares.
O conceito de democracia, como forma de
a construção da esfera pública no planejamento urbano
exercício da política, variava de um método
para escolher lideranças que tomariam decisões em nome dessa maioria a um método eficaz para se resolver conflitos e obter
consenso.
Já a participação de organizações da
sociedade civil em organismos do Estado
pode ocorrer como uma resposta institucional a um processo que, neste trabalho, chamamos de “politização”. Normalmente, esse
termo é utilizado para designar o processo
de conscientização dos cidadãos, ou classes
sociais, de seus deveres e direitos políticos,
preparando-os para exercê-los, mas, para
este trabalho, estamos utilizando-o para designar o processo que leva um determinado
tema a ser incorporado na pauta política.
O processo político implica a conciliação
de posições conflitantes para a tomada de
decisão relativa ao bem comum, independentemente da qualificação que se dê a esse bem e a forma de sua realização. Vista
dessa forma, uma questão se torna política
à medida que adquire um caráter polêmico
e quando sua solução é considerada como
um bem público e que passa a receber o
respaldo, ou é almejado, de um agente do
poder. Como corolário dessa colocação, podemos falar em politização quando afirmamos que um determinado tema passa a ter
maior densidade política por integrar em si
essas três condições: polêmica, bem comum
e poder de decisão. Dessa forma, o tema se
torna político pela sua relevância em termos
práticos, quando envolve diretamente questões fundamentais da vida dos indivíduos
ou, em termos estratégicos, quando se torna atrativo nos meios de comunicação.
Portanto, “politizar” um determinado
tema é torná-lo “atrativo”, o que pode ser
feito pela sua “imagem” ou pela importância
dos agentes que o expõem, e relaciona-se
assim com os meios de comunicação disponíveis. O governo pode procurar estimular o
debate dos temas cuja perspectiva de encontrar decisão consensual seja mais óbvia, ao
mesmo tempo em que, pelo contrário, pode
dificultar quando a solução poderia ameaçar
interesses estabelecidos.
A Comissão do Plano
da Cidade de Santos
No final dos anos 40, a partir do início do
processo de retomada democrática no Brasil, a cidade de Santos continuava sob intervenção federal, mas, no âmbito do planejamento urbano, essa época corresponde à
sua inserção na pauta política, num processo
que acabou por criar a primeira instância de
participação para discussão sobre o planejamento urbano na cidade de Santos: a Comissão do Plano da Cidade.
A preocupação com o tema parece se
relacionar com a importância dos agentes
que o expunham nesse momento, Anhaia
Mello e Prestes Maia, dois dos mais importantes urbanistas brasileiros da época,
que foram citados direta ou indiretamente
nas plataformas eleitorais da maior parte dos partidos políticos, enquanto que
a questão da habitação, por outro lado,
constituiu-se como um dos temas centrais
dos comunistas.
A pautação política do planejamento
urbano parece estar associada a diversos fatores: a experiência bem-sucedida de Prestes Maia na cidade de São Paulo, a postura
de Anhaia Mello, que defendia a participação
da sociedade civil no debate sobre a cidade
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
235
luiz antonio de paula nunes
236
através das Comissões, a promoção de debates e eventos com a presença de técnicos
que discutiam as questões urbanas por iniciativa de associações, como o Rotary Club,
Associação dos Engenheiros de Santos e Sociedade Amigos da Cidade, e, principalmente, o fato de o Plano Geral oferecer uma
perspectiva de se encontrar uma decisão
consensual para os problemas urbanos que
se agravavam.
A ideia de cidade planejada, através
de comissões que estabelecessem um compromisso das administrações com o plano,
correspondia à garantia de salvaguarda dos
interesses privados no processo de desenvolvimento urbano, assim como também representaria um elemento de ligação do sistema com a estrutura política, que detinha o
poder de decisão.
A Comissão do Plano da Cidade, a partir de 1948, passou a discutir o futuro e o
presente da cidade analisando todos os processos relativos à urbanização, garantindo
a existência de um espaço institucional para dar continuidade aos debates que ocorriam em outros espaços, repercutindo nessa
esfera a opinião pública e influenciando o
processo de tomada de decisão. Por outro
lado, também ocorreu a valorização do “saber técnico”, visto que a representação que
se pretendia era “técnica”, enquanto outros
setores da sociedade civil estariam excluídos
nesse momento. A “centralização”, enquanto
característica do planejamento urbano nesse
período, decorre naturalmente da valorização do formalismo técnico e jurídico, que
seria uma forma de dificultar um processo
político que permitisse atender às demandas
sociais, uma vez que essas colocassem em
perigo os interesses dos grupos dominantes
(cf. Touraine, 1996, p. 36).
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
Na Comissão do Plano, as associações
estavam representadas através de duas
agremiações que reuniam os setores da classe média urbana da época, o Rotary Clube
e a Associação de Engenheiros de Santos.
Todos os participantes da Comissão eram
membros de uma dessas associações. Apenas 10% correspondia a profissionais liberais, 40% dos membros eram da Câmara
Municipal, 20% eram técnicos da Prefeitura
e 30% de empresas privadas.
Essa participação legítima, mas de caráter corporativo, era vista de maneira positiva pelas elites, na medida em que esses
grupos eram representantes dessa mesma
elite e avessos ao conflito. A politização do
planejamento chegou ao ponto que interessava aos grupos dominantes, impedindo
debates que fugissem a um consenso sem
respaldo primordialmente técnico.
Com essas características, essa Comissão não pode ser considerada como uma
esfera pública nos termos propostos por
Habermas, porém, alguns de seus princípios
já estavam presentes, o que a torna, de fato, uma arena de discussões das questões
urbanas, mesmo que faltassem na sua composição segmentos a serem representados.
O encaminhamento de temas polêmicos demonstrou que o debate permitia certa
transparência na discussão dos temas urbanos e do planejamento da cidade, com repercussão em setores da sociedade antes da
tomada de decisão final, o que era sem dúvida um avanço em termos de participação,
ainda que restrita (Nunes, 2001).
A composição da Comissão do Plano da
Cidade permaneceu a mesma durante os três
anos que duraram os estudos para elaboração do Plano de Expansão e Melhoramentos
da Cidade, aprovado em 1951. Em 1952, a
a construção da esfera pública no planejamento urbano
Comissão Consultiva do Plano da Cidade foi
instituída com uma composição mais heterogênea, pela representatividade de outros
setores, mas sua atuação foi reduzida e não
há registros significativos sobre ela.
Como em outras cidades brasileiras, o
zoneamento e os índices urbanísticos passaram a dominar o pensamento urbanístico e
o planejamento urbano, aspectos que passaram a ser fundamentais para a indústria da
construção civil, particularmente na cidade
de Santos.
No início da década de 1960, em que
pese ter sido marcante a ampliação da participação política, esta acabou por não se
institucionalizar plenamente, justificando
de certa forma o percurso que “teve como
eixo as atividades e discursos que vieram
a desembocar nos atuais planos diretores”
(Villaça, 1999, p. 175).
1964 a 1984 – Autoritarismo
e centralização
Esse período é caracterizado pela suspensão das garantias democráticas no Brasil.
A participação da sociedade civil se reduziu
em todos os níveis e coincidiu com conflitos
sociais decorrentes das alterações no quadro urbano brasileiro e o planejamento se
consolidou como instrumento de política governamental, influenciado por experiências
anteriores e propostas da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal.
Como pano de fundo da busca pela racionalidade técnica, havia um caráter autoritário e uma estratégia de implantação de
instâncias institucionais compatíveis com o
esforço centralizador de modernização da
administração e dos meios de produção do
país. Ao contrário do que se assistiu a partir
do final da década de 1940, o planejamento urbano saiu da agenda política e assumiu
uma característica ainda mais tecnocrata,
passando a ser uma forma de “despolitizar”
os conflitos urbanos.
Os princípios liberais associados com
ideais de uma política do bem-estar social,
através de uma relação equilibrada entre iniciativa privada, interesse público e apropriação de benefícios da ação coletiva, predominavam no Plano Diretor Físico aprovado em
1968, num texto prolixo que, apesar de não
ultrapassar a barreira do discurso, foi substituído somente depois de 30 anos.
O Conselho Consultivo do Plano Diretor
Físico – Coplan, que substituiu os espaços
anteriores de discussão, era composto por
sete membros designados pelo prefeito, dos
quais quatro eram representantes do Poder
Executivo, o que lhe conferia a predominância na constituição desse Conselho, com técnicos das áreas de engenharia e do direito.
Foram justamente essas pretensas superioridade e neutralidade da técnica que
levaram o planejamento a um isolamento
em relação à população, e a ausência desses
mesmos resultados terminou por transformar o Plano Diretor em um texto burocrático, cujo interesse político, principalmente
num momento histórico em que inexistia o
controle social sobre essas atividades, restringia-se aos aspectos que poderiam alterar o valor da terra e atender interesses de
investidores.
Esse momento correspondia a novos
entendimentos no ideário de planejamento
urbano e a utilização crescente de análises
com base nas relações produtivas determinadas pela desigualdade das condições
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
237
luiz antonio de paula nunes
materiais entre as diferentes classes sociais
para compreender os padrões de urbanização e o processo como se dava o acesso à
terra e aos meios de consumo coletivo.
No Brasil, esse aspecto influenciou nos
debates, intensificando críticas ao padrão
centralizador que marcou o período autoritário e gerando propostas de descentralização que passaram a ganhar força não só
como um meio para se alcançar justiça social
na gestão da cidade, mas como a possibilidade de democratização do país.
Participação como
resistência democrática
238
Na década de 1970, a participação da sociedade civil e os movimentos sociais assumiram a forma de resistência ao autoritarismo
e à centralização excessiva do regime militar numa “ética política de nós versus eles”
(Linz e Stepan, 1999, p. 28) cuja ênfase na
dicotomia entre sociedade civil e Estado foi
útil para isolar o regime não-democrático;
mas na década de 1980 a sociedade civil
começou a se configurar mais como “uma
rede de associações, movimentos, grupos
e instituições, que, articulada com setores
liberais e lideranças empresariais, participa
ativamente do processo de redemocratização” (Teixeira, 2001, p. 24).
Nessa época, um anteprojeto de lei
federal condicionava a propriedade à sua
função social, trazia novos instrumentos
urbanísticos e colocava a participação das
comunidades interessadas como parte fundaental na elaboração e execução de normas, diretrizes e planos urbanísticos, mas
não teve resultado imediato, a não ser mostrar que existia um esforço de resistência à
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
centralização excessiva, e que novas ideias
e conceitos sobre cidadania, sociedade civil
e democracia participativa eram absorvidos
pelas mais diversas áreas de conhecimento,
inclusive no planejamento urbano.
1984 a 2009 – Participação
e democracia
Esse período corresponde ao restabelecimento, no Brasil, dos direitos civis fundamentais. A sociedade deparou-se então com
conflitos e divergências que surgiram de um
conjunto de demandas reprimidas ao longo
de duas décadas. Seria preciso não só reconhecer como legítimos os interesses divergentes como também criar os canais de
participação da sociedade, num verdadeiro
processo de negociação.
Nesse momento da história brasileira,
o termo “participação popular” se generalizou como forma de obter o rearranjo das
relações entre Estado e Sociedade e se aperfeiçoar o tema da igualdade de oportunidades. A segunda metade da década de 1980
se iniciou com a certeza que participação e
eleições eram fundamentais para o processo
democrático e para que se alcançassem níveis adequados de bem-estar.
Participação como conquista
Em 1985, inaugurou-se no Brasil o primeiro ciclo do que se chamou de “democracia
urbana”, caracterizado pela participação dos
movimentos sociais, e, nas eleições de 1988,
o segundo ciclo dessa “democracia urbana”
se caracterizou pela maior radicalidade no
a construção da esfera pública no planejamento urbano
discurso sobre a participação direta, com
ênfase na proposta de instalação de conselhos deliberativos e orçamento participativo
(Soares e Gondin, 2002, pp. 65 e 66).
Dentre as teses sobre participação que
passaram a ser veiculadas, prevaleceram as
que defendiam mudanças institucionais, democraticamente construídas, criando direitos num quadro de respeito às liberdades
constitucionais. Mecanismos de participação
e consulta foram incorporados e consolidados com a promulgação, em 1988, da Constituição Federal.
Nas referências teóricas do debate sobre a sociedade civil, o aspecto estritamente
decisório da participação perdeu sua ênfase
para dar lugar ao debate público das questões, à proposição de alternativas, exigência
de prestação de contas dos atos dos agentes públicos e consequente responsabilização dos que tomam as decisões, ao que
Habermas chama de política deliberativa
(Teixeira, 2001, p. 36), onde a dimensão
negociada é enfatizada.
Nessa concepção de democracia, o conflito, mais do que inevitável, passa a ser visto como legítimo e necessário e sua solução
passa por mudanças estruturais na relação
de poder da sociedade. Descentralizar e desconcentrar ganharam novo significado, não
mais como ferramenta para abrir “brechas”
no sistema, mas como instrumento para legitimar interesses divergentes ante o reconhecimento da emergência de conflitos.
Participação como princípio
Esses conceitos dominaram o debate sobre
a participação democrática da sociedade civil no processo político e serviram muitas
vezes como ponto de referência para esboçar teorias sobre canais de interlocução entre sociedade e Estado. Dentre esses novos
canais, os conselhos de gestão passaram a
ser uma nova forma de influenciar as decisões políticas.
A participação deixava de ser uma conquista e passava a se tornar um princípio a
ser garantido. Os conselhos gestores e novos projetos em termos de intervenção coletiva, organização e desenvolvimento social,
efetivavam-se, colocando novas questões
para o debate sobre planejamento urbano e
municipal.
As eleições de 1992 deram início ao
terceiro ciclo das gestões locais inovadoras,
que, desta vez, além da ênfase no orçamento participativo, introduziam o conceito
[...] de parceria e de desenvolvimento
econômico como condições para uma
administração bem-sucedida [combinando] formas de participação semidireta na gestão (os conselhos setoriais)
com a parceria da iniciativa privada,
ONGs e organizações populares no desenvolvimento de projetos econômicos.
(Soares e Gondin, 2002, p. 67)
Se, por um lado, isso passou a ser a
marca dos governos democráticos populares, por outro, iniciava-se um processo de
assimilação institucional desses conceitos
que passariam a serem contemplados nos
discursos dos mais variados matizes políticos. O que se observou foi certa “diluição
nas marcas ideológicas do discurso, muito
embora persistam nítidas diferenciações políticas na natureza das ações” (ibid., p. 69),
na medida em que, “independentemente
de tendências ideológicas, [essa visão era]
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
239
luiz antonio de paula nunes
imperativa para o enfrentamento da crise
social” (ibid., p. 74).
Fica evidente que a questão da participação na gestão, especialmente do desenvolvimento local, passou a ser incorporada à
agenda de muitos atores sociais e é hoje um
dos principais temas de discussão e intervenção, nas três esferas de governo, ainda que
o significado e o conceito de participação e
de desenvolvimento apresentem possibilidades diversas.
Participação como estratégia
240
A partir da década de 1990, uma política
mais generalizada de inserção nos mercados globais se desenvolveu, dinamizando um
modelo de gestão que apontava para uma interação do governo com a sociedade através
da relação de mercado ou de parcerias entre
o público e o privado. Dando continuidade
às políticas de descentralização de gestão, o
objetivo passou a ser ampliar oportunidades
de negócios e minimizar o Estado.
A vitalidade desse processo depende da
existência de um espaço público que represente
[...] a arena privilegiada de atuação
política dos atores da sociedade civil,
constituindo, ainda, a arena de difusão
dos conteúdos simbólicos e das visões
de mundo diferenciadas que alimentam
as identidades de tais atores. (Costa,
1997, p. 17)
Nesse caso, a esfera pública corresponde à possibilidade de soluções e respostas
às reivindicações por direitos e melhorias
de qualidade de vida, que antes eram vistas
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
como de responsabilidade do Estado, e passaram a ser encaradas como frutos de negociações e de políticas alternativas às que são
geradas a partir do Estado.
Nesse momento, a ideia da participação da sociedade civil no processo de
planejamento e gestão já deixara “de ser
apanágio dos partidos de esquerda e dos
movimentos sociais e passou a ser incluída
nas propostas de governos e no planejamento estratégico das cidades, independentemente da orientação ideológica dos gestores” (Soares e Gondin, 2002, p. 81) e as
parcerias entre o Poder Público e a iniciativa
privada foram incentivadas.
Parcerias passaram a ser consideradas
como forma de participação e incorporaramse conceitos que já permeavam algumas administrações locais, no exterior desde a década de 1980 e no Brasil desde a década de
1990, que adotavam um modelo de planejamento que privilegiava a gestão empresarial,
denominado Planejamento Estratégico.
1984 a 2009 –
Participação, democracia
e planejamento em Santos
Como pudemos perceber, as mudanças que
ocorreram nas duas últimas décadas foram
rápidas e profundas. Descentralização e democracia participativa, que já eram temas
presentes no debate sobre o “planejamento
participativo”, que passou a ser visto como
solução para os problemas urbanos. Essa
expectativa por um urbanismo democrático
e participativo era fruto de articulações que
antecederam a Constituinte.
a construção da esfera pública no planejamento urbano
Na cidade de Santos, durante a gestão
Osvaldo Justo (1985-1988), foram aprovadas, com emendas da Câmara Municipal, alterações na lei do Plano Diretor que ampliaram a representatividade da sociedade civil
no Conselho Consultivo do Plano Diretor –
Coplan. As novidades nessa nova composição
foram: a redução da presença do Poder Executivo e a presença de entidades de bairro
e ambientalistas. Ainda que a qualidade de
representação no Coplan fosse questionável,
no entanto, não se retira a importância da
conquista que a sociedade civil obteve naquele momento, durante o primeiro governo
municipal eleito após o período militar.
O texto da Constituição Federal de
1988 trouxe novidades em relação à política
urbana e à questão da participação. A função social da propriedade ficou vinculada às
exigências de ordenação da cidade expressas
no Plano Diretor, o que deu fundamento para outros instrumentos, e a institucionalização desses aspectos se deu, sucessivamente,
nas esferas federal para a estadual e local.
Essa transferência de conceitos é uma demonstração de como a Constituição Federal
de 1988 transformou-se no principal marco
normativo da ideia de nação politicamente
democrática, coroando o processo de lutas
e movimentos anteriores, propiciando uma
redefinição nas relações de poder e de convivência política que construiu novos espaços institucionais.
Uma das consequências desse processo é que muitas das gestões eleitas a partir
de então incorporaram a participação enquanto prática administrativa e, em muitos
casos, nessas administrações, ocorreu uma
forma de enfrentamento dos problemas
urbanos que privilegiou instrumentos que
buscavam a inclusão social no processo de
urbanização através, principalmente, da regularização fundiária e investimentos em
políticas públicas.
Nesse sentido, o caso da cidade de Santos é exemplar. Na gestão Telma de Souza
(1989-1992), o planejamento urbano pretendia se revelar como essencialmente político, em oposição ao discurso tecnocrata
do período autoritário que queria mostrar
o planejamento urbano como apolítico. Sua
elaboração conceitual rompia com padrões
até então presentes no ideário do planejamento e partia do pressuposto de uma cidade real, resultado da ação desigual dos
agentes que produzem e se apropriam dos
espaços urbanos.
Apesar da ausência mais efetiva de resultados em relação ao Plano Diretor, é importante reconhecer o aprofundamento do
debate interno aos órgãos da administração
e não se pode negar que a estratégia de enfrentamento das questões urbanas resultou
em conquistas como, dentre outras, as legislações de proteção do patrimônio histórico, de defesa do patrimônio ambiental na
área continental do município e sobre áreas
de especial interesse social, e a criação e
regulamentação do Conselho Municipal de
Habitação.
A gestão David Capistrano (19931996) concentrou atividades do que poderíamos chamar de planejamento estratégico, articulando ações que ao mesmo tempo
ampliassem o leque de alianças políticas. O
desenvolvimento da Agenda 21 local pode
ser considerado uma das mais importantes iniciativas no campo da participação da
sociedade na gestão pública, assim como o
início da revisão do Plano Diretor, que culminaria com o Congresso Municipal de Planejamento, reunindo delegados de todas as
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
241
luiz antonio de paula nunes
regiões da cidade e propondo um novo Conselho Consultivo do Plano Diretor – Coplan,
reconhecendo-se sua inadequação em termos de representatividade e a necessidade
de reestruturá-lo incluindo outros setores
da sociedade ainda ausentes.
Essa postura reafirmava uma das características, dentre outras, do terceiro ciclo
da “democracia urbana”, a
[...] visão estratégica da atuação do governo em termos políticos, administrativos e econômicos [e] uma nova concepção de democracia, que enfatiza, real
ou simbolicamente, a descentralização,
a participação popular e as parcerias do
poder público com diferentes agentes
sociais. (Soares e Gondin, 2002, p. 69)
242
Na gestão Beto Mansur (1997-2004),
a discussão sobre o Plano Diretor se deu
preponderantemente em relação à questão
do uso e ocupação do solo urbano, como havia ocorrido na década de 1980, voltando
a ganhar relevância os índices urbanísticos.
Aprovado o novo Plano Diretor, em 1998, o
Coplan teve sua nomenclatura adequada para Conselho Municipal de Desenvolvimento
Urbano – CMDU.
Na nova composição do CMDU, com o
número recorde de 43 membros titulares
e 43 membros suplentes, o Executivo teve
sua representatividade proporcional aumentada, passando para 41,3%, isoladamente,
o segmento com maior proporcionalidade, a indústria imobiliária teve tradicionais
aliados do setor incluídos, como o setor de
infra-estrutura, sindicatos e associações patronais das áreas do comércio e transporte, fixando a representação proporcional
do setor patronal em 19,4%. O número de
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
representantes do meio acadêmico foi ampliado e somado aos profissionais liberais
resultou em 26,9% do CMDU. Se, por um
lado, não havia a possibilidade de eleição
no campo dos movimentos sociais como na
proposta de 95, por outro, era garantida
a participação de representantes de outros
conselhos e de uma ONG, que resultou em
12,4% dos membros do CMDU.
É indiscutível a importância do CMDU
como espaço democrático que propicia a
discussão de temas afins como, por exemplo, o aperfeiçoamento de novos instrumentos urbanísticos propostos no Estatuto da
Cidade. Porém, eficiente do ponto de vista
da administração pública, mas ainda pouco
eficaz ou representativo do ponto de vista
da sociedade civil, o CMDU, enquanto esfera pública, ainda está em construção, o que
exige análise e reflexão.
Em 2000, o Meio Ambiente e o Planejamento voltaram a ter status político
diferenciado como Secretarias Municipais
específicas, além de se criar a Secretaria de
Governo e Projetos Estratégicos. Antes, se
o foco se dividia entre desenvolvimento econômico e políticas públicas de caráter social,
agora se caracterizava pela conformação das
políticas para “o desenvolvimento sustentável do município de Santos e o bem-estar de
seus cidadãos” mediante parcerias com os
agentes promotores (Inciso XV, artigo 400,
Lei Complementar 423/2000).
O debate hoje sobre o Plano
Diretor na cidade de Santos
Na gestão João Paulo Papa (2005-2012),
o Plano Diretor retornou para o debate
na sociedade. Desde novembro de 2008,
a construção da esfera pública no planejamento urbano
a cidade de Santos está vivendo o momento de rediscussão de seu Plano Diretor de
Desenvolvimento e Expansão Urbana de
Santos, em vigor desde 1998, passando pelos dois tipos de fóruns que conceituamos
neste artigo como “espaço público” e “esfera pública”.
No primeiro caso, destaca-se o papel do
“Fórum da Cidadania”, caracteristicamente
um espaço público (www.forumdacidadania.
org.br) que, além de chamar o debate sobre o Plano Diretor, em 14 de fevereiro de
2009, congregando entidades as mais diversas, criou o “Curso Intensivo de Capacitação
e Mobilização – Por Dentro do Plano Diretor
Participativo”, em conjunto com universidades locais.
De acordo com o manifesto de lançamento do processo de discussão nesse fórum, disponível no site oficial citado acima
[...] é imperioso que os debates e outras formas de participação previstos no
desenvolvimento urbano que vão influir
decisivamente na qualidade de vida do
conjunto da população.
No segundo caso, o da esfera pública
institucionalizada, destaca-se o papel da
Prefeitura Municipal nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Urbano – CMDU
e de Desenvolvimento Econômico de Santos – CDES. Esses órgãos, formados por
representantes do poder público e da sociedade civil, estão propondo a realização
conjunta de Audiências Públicas, Oficinas de
Capacitação e Conferências para tratar dos
temas relacionados com o Plano Diretor.
Além disso, a Prefeitura Municipal de
Santos editou uma “cartilha” (disponível em
(http://www.santos.sp.gov.br/planejamento/planodir/download/cart_pl.pdf) para facilitar o debate e buscar esclarecer alguns
dos aspectos relacionados com o Plano.
De acordo com o site oficial (www.santos.sp.gov.br),
processo de revisão do Plano Diretor se
estendam a todos os segmentos sociais
da cidade e, portanto, não se limitem
apenas aos espaços oficiais.
Afirma ainda o manifesto:
[...] sem desprezar os aspectos técnicos
pertinentes que devem naturalmente
estar presentes e subsidiar o trabalho
de revisão do Plano Diretor, entende
A participação da população é essencial
para a elaboração do Plano Diretor, afinal, a cidade é composta por pessoas
com classes, interesses e objetivos diferentes. Assim, através de discussões,
podemos entender como a cidade funciona para cada morador e como podemos tornar Santos um lugar com oportunidades e desenvolvimento econômico
e social para todos.
que a questão fundamental deste processo é de natureza política, uma vez
que o Plano Diretor é o responsável
direto pelas definições sobre os rumos
atuais e futuros da cidade e, sobretudo, pela determinação das condições de
Ainda que esse processo esteja em curso, o que impede qualquer tipo de avaliação
metodológica com mais profundidade, é importante citá-lo para melhor apresentar as
conclusões deste trabalho.
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
243
luiz antonio de paula nunes
Conclusão
244
Política e planejamento são temas que se
entrecruzam e, em função disso, o percurso histórico que observamos revelou formas
diferentes de participação da sociedade civil
durante o processo de planejamento urbano
em razão das condicionantes políticas e das
características do pensamento urbanístico
de cada momento analisado. O que não pode
ser considerado isoladamente, como fruto
de um processo linear de desenvolvimento
de ideias, mas sim como decorrência de um
quadro muito mais amplo que incorpora o
debate, em nível global, sobre formas de democracia representativa e participativa.
O percurso histórico que apreciamos
demonstra que a questão da participação da
sociedade civil nas estruturas de governo,
mais do que uma questão de modismo ou
de metodologia de planejamento, ainda que
presente em determinados momentos, é uma
questão estrutural que envolve diretamente
fundamentos do exercício do poder político.
Assim como não são simplesmente
ações periódicas, como as eleições, que passaram a determinar o processo democrático,
assim também não é um quadro teórico que
determina a forma mais contemporânea de
planejar a cidade, mas sim uma disputa por
práticas que visam coletivizar a tomada de
decisões a partir de diferentes princípios.
Por essa razão, podemos afirmar que
existe um percurso histórico de construção
da esfera pública no planejamento urbano
que torna a participação o seu referencial
central, não porque sua formulação parte
do âmbito teórico do planejamento, mas
essencialmente porque é na relação entre
democracia e gestão que encontramos esses
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
aspectos, e é no campo ideológico que podemos entendê-la.
A construção da “esfera pública” não
obedeceu a uma lógica linear e, apesar de
sua institucionalização corresponder a demandas no campo do pensamento urbanístico, sua utilização e efetividade dependem
quase que exclusivamente do conteúdo ideológico dos grupos que detêm o poder e,
consequentemente, da concepção que esses
grupos elaboram sobre cidadania, democracia e sobre a própria participação.
Sendo assim, os fatores que levaram à
institucionalização desses fóruns estão além
dos conceitos da democracia representativa e da esfera política partidária, ainda que
guardem uma relação direta com esse cenário. Esses fatores se encontram na luta
por espaço político que a sociedade impõe e
que se iniciou com o processo de democratização e se consolida com a eleição de dirigentes comprometidos com a participação
da sociedade.
Esses aspectos ficam evidentes no recente processo de discussão do Plano Diretor em Santos. Instituições das mais diversas
organizaram-se em um Comitê, sob guarida
do Fórum da Cidadania, na forma de um espaço público onde a discussão política impôs,
de forma evidente, uma reação da esfera pública, a qual busca o reconhecimento com a
participação da sociedade, e demonstra isso
ao capacitar os interessados no debate.
É evidente que não podemos aqui emitir um juízo de valores sobre esse atual processo, mas é importante destacar como ele
vem se dando, de acordo com os princípios
levantados para o último período analisado,
em que democracia e participação, em todas
as visões, são as palavras-chave para entender o processo de planejamento urbano.
a construção da esfera pública no planejamento urbano
Luiz Antonio de Paula Nunes
Arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Santos,
Mestre e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo. Professor de História e Teoria do Urbanismo na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Santa Cecília, em Santos (São Paulo, Brasil).
[email protected] ou [email protected]
Referências
COSTA, S. (1997). Categoria Analítica ou Passe-Partout Político-Normativo: Notas Bibliográficas sobre
o Conceito de Sociedade Civil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais.
Rio de Janeiro, Anpocs, n. 4, pp. 3-25.
LINZ, J. J. e STEPAN, A. (1999). A transição democrática e consolidação da democracia: a experiência
do sul da Europa e da América do Sul. São Paulo, Paz e Terra.
NUNES, L. A. P. (2001). Saber técnico e legislação - A formação do urbanismo em Santos 1894-1951.
Dissertação de Mestrado. São Paulo, FAU-USP.
________ (2006). A construção da esfera pública no planejamento urbano. Um percurso histórico:
Santos, 1945-2000. Tese de Doutorado. São Paulo, FAU-USP.
TEIXEIRA, E. C. (2001). O local e o global. Limites e desafios da participação cidadã. São Paulo, Cortez.
TOURAINE, A. (1996). O que é a democracia? Petrópolis, Vozes.
SOARES, J. A. e GONDIN, L. (2002). “Novos modelos de gestão: lições que vêm do poder local”. In: SOARES, J. A. e BAVA, S. C. (org.). Os desafios da gestão municipal democrática. São Paulo, Cortez.
VILLAÇA, F. (1999). “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”. In: DÉAK, C.
e RAMOS, S. S. (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 233-245
10 sem. 2009
245
A construção do poder público
como espaço privado na cidade
de Diadema (1983 a 1996)
Joana Darc Virgínia dos Santos
Resumo
A demanda social por infraestrutura básica
em habitação e a necessidade de organização
espacial da cidade gerou uma série de desdobramentos na constituição do espaço urbano
de Diadema. Entre 1983-1996, a cidade teve
à frente da administração pública três gestões
do Partido dos Trabalhadores que propuseram a implantação da participação popular direta na gestão pública. É intuito deste artigo
investigar a construção da cidade de Diadema
através da atuação dos diferentes sujeitos: representantes do poder público e munícipes,
durante as três gestões consecutivas do PT.
Dessas relações e conflitos foram criados os
mecanismos que propiciaram a implantação do
Plano Diretor naquela cidade em 1994.
Abstract
The social demand for basic infrastructure
in housing and the need for the spatial
organization of the city have generated a
series of developments in the formation of
the urban space in Diadema. Between 19831996, the city’s public management was in
the hands of three administrations of the
Worker’s Party (PT), which proposed the
implementation of direct popular participation
in public management. The purpose of this
article is to investigate the construction of the
city of Diadema through the performance of
different subjects: public power representatives
and residents, during the three consecutive
administrations of PT. These relationships and
conflicts have created mechanisms that enabled
the implementation of the Master Plan in that
city in 1994.
Palavras-chave: história das cidades; urbanismo; políticas públicas em habitação; movimentos sociais.
Keywords:
history of cities; urban
planning; public policies in housing; social
movements.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
joana darc virgínia dos santos
248
A cidade de Diadema está localizada na
região Sudeste do Brasil, entre São Paulo
e São Bernardo do Campo, a 17 quilômetros da capital, na área hoje conhecida como ABCD paulista; possui uma superfície de
30,7 km2 com 7,06 km2 do território definido como área de preservação ambiental
pela proximidade com a represa Billings.
Até 1959, Diadema era parte do território
de São Bernardo do Campo e no ano de sua
emancipação política contava com 12 mil habitantes (Hereda e Alonso, 1996, p. 129).
Segundo o censo de 2007, a cidade possui
386.779 mil habitantes e uma das maiores
densidades demográficas do país, ou seja,
10.167 hab/km2. Diadema é até hoje conhecida como Cidade Vermelha, pelo adensamento de habitações inacabadas mantendo
expostos os tijolos vermelhos que a compõem. Essa paisagem expressa a construção
de modos de vida condicionados a uma certa organização do espaço social, estruturada de forma relacional pelos que detêm os
meios produção, que segrega os sujeitos a
partir da posição que estes ocupam no processo produtivo.
Até meados de 1940, a região era chamada de Vila Conceição e tinha como atividades econômicas a produção de tijolos,
móveis e pequeno comércio que sobrevivia
graças ao trânsito de pessoas em busca de
lazer na represa Billings.
Com a inauguração da Via Anchieta,
em 1947, uma série de indústrias, principalmente automobilísticas, se instalaram entre São Bernardo do Campo e Diadema. Em
1952, quando Diadema era distrito de São
Bernardo do Campo, foi instalada a primeira indústria em território hoje diademense,
a IMBRA S/A Indústria Química que, entre
1957 e 1958, passou a fabricar matériacadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
prima para indústrias de plástico. Em 1956,
fixou-se na cidade a Empresa Roberto L.
Gordon, de produção de acessórios para
eletrodomésticos e bijuterias. A Roberto L.
Gordon, em 1960, passou a produzir componentes automobilísticos e mudou de nome
para Metagal (Diadema, 1999, p. 93).
Na década de 1990, com a implantação
da reestruturação produtiva1 (Alves, 2000)
no Brasil, as empresas multinacionais iniciaram a terceirização dos processos da cadeia
produtiva, o que propiciou o surgimento de
empresas menores a partir da implantação
do modo de gestão toyotista, o que Giovanni
Alves chamou de “Fragmentação Sistêmica”.
Essas pequenas empresas foram subcontratadas pelas transnacionais em um sistema
de cooperação entre os capitalistas. A partir
de procedimentos fundamentais de garantia
da eficiência do processo e redução de custos, as transnacionais procuram adequar a
lógica da produção ao sistema concorrencial
na mundialização do capital e às novas fases
da luta de classes. A localização privilegiada da cidade de Diadema, pela proximidade
com as vias de escoamento, polo petroquímico e automobilístico, atraiu muitas dessas
empresas terceirizadas, principalmente as
de autopeças.
Nas décadas de 1970, 1980 e 1990
a necessidade de mão-de-obra para as novas fábricas, e posteriormente comércios
e serviços, propiciou um grande aumento
populacional na região. Baianos, alagoanos,
pernambucanos, cearenses, piauienses, maranhenses, sergipanos, paraibanos, capixabas, mineiros, mato-grossenses e paulistas
chegaram em grande número para compor os trabalhadores das indústrias automobilísticas, de autopeças e das indústrias
químicas da região que hoje chamamos de
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
Grande ABCD paulista. Milhares de pessoas
deixaram suas cidades de origem em busca
de melhores condições de vida, envolvidas
pelas histórias promissoras contadas por
conhecidos(as), familiares e mídia, a respeito
do desenvolvimento econômico das cidades
do estado de São Paulo. A busca pelo sonho
de se estabelecerem em cidades com ofertas
de empregos, cujos salários possibilitassem
a reprodução material da vida, aliada ao desejo de reorganização dos laços de sociabilidade, trouxe ao ABCD Paulista muitos familiares e amigos(as) dos(as) primeiros(as)
migrantes.
Grande parte destes(as) migrantes encontrou, na ocupação de áreas vazias, uma
alternativa possível para estabelecer moradia, diante do desemprego e dos baixos salários. Muitas pessoas que chegaram a partir
do final da década de 1960, em Diadema,
sem condições de realizarem sua necessidade de moradia pelo mercado formal, ocuparam de forma precária terrenos sem uso,
construindo suas casas com compensados e
madeirites. Uma parte desses terrenos pertencia a empresas que, por algum motivo,
não fixaram ali suas instalações, conforme
previsto quando a área foi recebida por doação ou adquirida em um sistema de incentivo
fiscal. Os sujeitos “semi ou não-qualificados”
profissionalmente, que chegaram às cidades
do grande ABCD Paulista na década de 1980
encontraram ofertas de empregos precários
nas empresas de autopeças, subsidiárias das
montadoras.
O processo de “favelização” em Diadema expressa, portanto, o movimento geral
de depauperação dos centros urbanos brasileiros em decorrência da crise que se abateu sobre o país nos anos de 1989 e 1990;
conforme a documentação, identificamos
as seguintes características: migração das
áreas rurais para as áreas urbanas devido à
precarização das condições de vida nas áreas
rurais e intenso processo de industrialização
nos grandes centros, a desigualdade e exploração no trabalho, o arrocho salarial, a alta
rotatividade nos empregos, o desemprego
e tempo de locomoção da casa ao trabalho
(Diadema, 1993, p. 3).
Aparato burocrático
do Estado a serviço
de interesses privados
O território hoje diademense, antes da
emancipação política conhecido como área
rural de São Bernardo do Campo, era composto por chácaras que foram vendidas
para fins de loteamento. A disponibilidade
de terrenos na região a serem comercializados oportunizou a atuação de indivíduos
como intermediários no processo de compra e venda desses loteamentos. É o caso
dos dois primeiros prefeitos de Diadema:
o professor Evandro Esquível e o corretor
de imóveis Lauro Michels, que se revezaram no poder entre 1960 e 1972. A partir
das influências que Esquível e Michels conseguiram através dos negócios imobiliários,
tornaram-se figuras de destaque no cenário
político da cidade. A natureza do ofício de
intermediar compra e venda de terras aliada à histórica troca de favores e interesses
pessoais instaurada nas relações políticas,
propiciou um contato maior com os setores
institucionalizados que regulam o regime
de propriedade privada e infraestrutura da
região.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
249
joana darc virgínia dos santos
250
São contatos estabelecidos na esfera municipal e estadual com o intuito de
conseguir documentações e viabilizar processos para compra e a venda dos terrenos.
Os interessados na aquisição e nas vendas de
terras estão ávidos por viabilizarem seus negócios e em muitos casos suas necessidades
imediatas de sobrevivência e vêem no intermediário um agente que conhece os trâmites
legais e ilegais e tem influência necessária,
dada sua experiência, para o alcance desses
objetivos. Durante sua gestão como prefeito
de Diadema (1964-1968), Michels obteve
grande crescimento em seus negócios imobiliários e passou a investir em pecuária (Simões, 1992).
As organizações do Estado, de forma
politicista, expressam-se pela realização das
necessidades de transformação de grupos a
quem representam, através de processos de
disputas de interesses. Nessas disputas de interesses privados, os sujeitos participam na
esfera da organização pública de forma a influenciarem a ação governamental conforme
suas capacidades de mobilização. Nesta forma identificamos que as relações clientelistas
prevalecem sobre a racionalidade burguesa:
a garantia de isonomia é estabelecida juridicamente, mas as condições para efetivação
das leis não são iguais para todos, o que resulta na reprodução de privilégios e desigualdades. Na esfera local, sujeitos como Esquível, Michels e os vereadores têm o aparelho
burocrático do Estado a sua disposição para
dirigirem a aplicação desses aparatos a partir
dos processos de interação de interesses, em
que as corporações assumem papel predominante devido as suas capacidades de mobilização e influência econômica e política.
No processo de emancipação administrativa, a correlação de forças políticas fez
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
com que o recorte territorial fosse feito de
tal modo que as principais fábricas ficaram
na área destinada a São Bernardo do Campo, o que levou a arrecadação dos impostos
para esta cidade. Enquanto isso, Diadema
continuou a atrair o contingente de trabalhadores porque os terrenos dessa cidade
eram mais baratos que os da cidade vizinha,
pois havia grandes áreas territoriais para serem ocupadas e, como a área não dispunha
de infraestrutura, também o pagamento de
impostos era bem menor, isso quando eram
recolhidos.
Além disso, a administração de Diadema dispunha de poucos recursos para iniciar
um processo de implantação de infraestrutura na cidade, já que a cidade possuía pouca receita. Em seu território, com a saída
das grandes indústrias a partir do recorte
territorial no processo de emancipação, ficaram apenas pequenas atividades comerciais
e empresas manufatureiras ou semimanufaturadas, tocadas de forma familiar como
olarias, fábrica de móveis, pequenos comércios e poucas empresas de porte maior. As
poucas obras públicas de infraestrutura realizadas em Diadema nas décadas de 1960 e
1970 foram negociadas em troca de favores
e apoios político-partidários atrelados às relações clientelistas entre políticos da esfera
estadual e municipal.
A aplicabilidade da lei não está disponível para todos os sujeitos, o que podemos
identificar pela constatação da necessidade
de mobilizar agentes específicos no estabelecimento de acordos para garantir implantação de pequenas ações de infraestrutura. A
legislação estabelecida está a serviço dos que
têm instrumentos para fazê-la valer na prática, seja através de contatos interpessoais
e/ou uso de poder conferido por cargo a fim
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
de mobilizar o aparato institucional a seu
favor e pelos meios possibilitados pela propriedade monetária e de capitais por trâmites legais ou ilegais.
Diadema no período de
transição do bonapartismo
para a autocracia
burguesa
A crise da década de 1980 foi acompanhada pelas expectativas de democratização do
país após um período ditatorial de mais de
20 anos, nos quais as possibilidades de mobilização social para expressão de suas demandas foram totalmente cerceadas. Para
expressarmos as concretudes sócio-históricas que caracterizaram o período chamado
pela historiografia de ditadura militar, utilizamos aqui o conceito de bonapartismo conforme Marx (1974), Martins (1977), Rago
Filho (1998). O conceito bonapartismo foi
cunhado por Marx em análise a natureza da
dominação autocrática-burguesa durante o
governo de Napoleão III na França. A burguesia francesa exerceu o domínio político e
econômico, de forma indireta, na figura de
Napoleão III, que, por sua vez, declarou-se
representante de todas as classes sociais,
mas, na prática, investiu na instituição de
mecanismos de repressão que mantiveram
as demandas sociais dos trabalhadores reprimidas. Como uso da figura que representou
históricamente a natureza do poder exercido por Napoleão III, alguns autores como
Rago Filho e Martins, para a compreensão
específica do período de ditadura militar,
iniciada em 1964, utilizam o conceito de
bonapartismo para caracterizar o domínio
indireto da burguesia nacional sob a figura
dos militares, que, em nome do desenvolvimento nacional, construíram um aparato
repressivo violento para conter as demandas
populares. Usamos o conceito de autocracia
burguesa para caracterizar o período pósditadura militar chamado pela historiografia
brasileira de democrático para expressar o
uso do poder coercitivo e violento do Estado
brasileiro, administrado por segmentos da
burguesia nacional, com o objetivo de conter
as demandas sociais e realizar o desenvolvimento do capitalismo, garantindo a realização das necessidades de acumulação sob a
lógica do capital sem a mobilização popular.
O uso da violência é justificado e legitimado
como uma ação de manutenção da ordem e
segurança nacional para o desenvolvimento
da democracia no Brasil.
Assim, a emergência de novas organizações partidárias veio acompanhada por forte
mobilização social por demandas muito concretas de melhoria das condições de vida,
particularmente expressas pelas populações
urbanas. Essas mobilizações sociais exerceram forte pressão sobre as organizações do
Estado brasileiro que, de diversas maneiras,
procurou aninhar a participação popular em
seus canais institucionalizados. Dentre estas
destacaram-se os movimentos por moradia.
Tais movimentos chegaram a ter uma
expressão nacional que se manifestou através da organização dos mais diferentes tipos. Dentre estas, destacou-se uma que
reuniu pessoas desempregadas ou de baixíssima renda, que marcharam até Brasília em
1989, intitulado Caravana à Brasília organizada pela União dos Movimentos de Moradia, com o objetivo de forçar a negociação de políticas públicas de atendimento às
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
251
joana darc virgínia dos santos
252
necessidades de habitação dos trabalhadores
de baixa renda; foi produzido documento
para ser distribuído aos participantes do encontro e representantes dos poderes legislativo e executivo.
Os moradores de Diadema participaram ativamente desse movimento, tanto fazendo parte das comissões que ajudaram a
organizá-lo quanto produzindo documentos
que espelhavam a situação de precariedade
em que viviam e as alternativas de solução
que propunham. No entanto, destaca-se
dessa mobilização a mediação do poder público municipal que atua enquanto agente
social em defesa dos interesses de seus munícipes em suas petições ao poder central.
É o que se observa, por exemplo, no Plano
de Governo realizado pela prefeitura a fim
viabilizar a implantação de uma política habitacional (Diadema, 1987). Esse material
foi produzido pelos técnicos da Secretaria
de Habitação da gestão do então prefeito
Gilson Meneses (1983-1988), primeiro
prefeito que expressava a tentativa da população de promover alterações na forma
de fazer política e que, naquele momento,
vinculava-se à organização do Partido dos
Trabalhadores e que vinha das hostes metalúrgicas do ABC.
A formação do Partido dos Trabalhadores está ligada à atuação do Sindicato dos
Metalúrgicos em São Bernardo do Campo.
Os dirigentes do Sindicato, organizados
em suas bases de atuação, impulsionaram
a criação do partido nacionalmente agregando setores cuja ideologia 2 é bastante
diversa entre si de acordo com a prática
social que executavam, são eles: Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica,
intelectuais de “esquerda”, estudantes, bancários, servidores públicos e professores.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
Tal diversidade culminou em uma série de
embates, como sobre o registro partidário
com destaque para a proposta vencedora:
a criação de um partido que abarcasse conteúdos de reivindicação de diversos setores
trabalhistas para defender e realizar esses
conteúdos no sistema político vigente (Oliveira, 1988, p. 130).
Para a conquista do registro partidário,
foi realizado um processo de mobilização
em massa para alcançar o número de filiações necessárias. A filiação foi organizada
pelos núcleos de base que eram compostos
por pessoas do mesmo domicílio eleitoral.
Os núcleos de base tinham caráter consultivo e possuíam poucos membros ativos devido ao processo de filiação em massa que
agregou pessoas com interesses e histórias
de participação popular diferentes. Segundo
os estatutos do PT que indicam o processo
de organização dos núcleos de base, era intuito dos membros do partido utilizá-los como espaço de educação e mobilização política para a militância; o que acabou não sendo
alcançado devido à necessidade do partido
em cumprir as exigências para o processo de
legalização e desmobilização dos núcleos de
base depois das eleições de 1982. Sobre a
descaracterização dos núcleos de base, Gadotti e Pereira (1989) afirmam que seu funcionamento se limitou à função de comitês
eleitorais e grupos de apoio a vereadores;
tal fato teria sido desencadeado por uma
série de fatores, entre eles a lógica imediatista dos processos eleitorais que demandava a organização de um grande número de
pessoas para alcance dos votos necessários à
eleição a cada dois anos. Essa organização se
dava de forma desvinculada dos processos
de luta e formação necessários ao entendimento das propostas ideológicas do partido,
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
prevalecia a necessidade de conseguir votos
da forma mais rápida e eficiente possível.
Nessas condições, a cidade elegeu como
prefeito o metalúrgico Gilson Meneses pelo
Partido dos Trabalhadores (PT). Essa eleição constitui uma das primeiras prefeituras
deste partido no Brasil.
O período que compreende o governo ininterrupto do PT em Diadema, 1983
a 1996, foi uma época de investimento
em infraestrutura na cidade. Os dados sobre os índices de mortalidade infantil desse
período indicam a expressividade desse investimento.3 A queda acentuada da mortalidade infantil em Diadema é resultado de
uma série de ações implementadas pelos
governos petistas como: execução de obras
de saneamento básico, extensão da rede de
água encanada, campanhas de vacinação e
acompanhamento pré-natal. Destacam-se,
portanto, vários fatores diferenciais significativos na trajetória da urbanização e do fazer político dessa cidade a partir da década
de 1980, pois os recursos passaram a ser
canalizados para investimentos públicos e o
processo decisório que definia tais investimentos passaram a contar com a participação popular.
Tanto os movimentos de luta por moradia quanto a relação que estes estabeleceram com o particular poder público expresso pelos governos do PT constituem nexos
constitutivos que compuseram a situação
socioeconomicaespacial da cidade no período abordado e sua análise nos revela a concretude histórica que emerge das descrições
encontradas nos documentos e os elementos pelo quais os indivíduos compreendem a
lógica do mundo em que vivem revelando a
consciência destes sobre a operação prática
da qual participaram cotidianamente.
Inversão da lógica de
investimentos públicos
sob a prática politicista
As gestões municipais de Esquível (19601963 pelo PTN e 1969-1972 pelo Arena),
Michels (1964-1968 e 1977-1982 ambas
gestões pelo MDB) e Putz (1973-1976 pelo MDB), já haviam realizado obras públicas
privilegiando a região central da cidade. Esquível e Michels representaram uma mediação política entre a esfera municipal e a estadual durante o processo de constituição da
cidade e fizeram prosperar as obras públicas
que beneficiaram seus negócios particulares,
bem como o de seus aliados, mas procuraram negociar de forma hábil com a população mais carente com a justificativa de que
o investimento a ser realizado atingiria, em
breve, a todos os cidadãos diademenses. A
negociação sobre implementação de mudanças necessárias ao desenvolvimento econômico da cidade era realizada entre políticos
e grupos que representavam força política e
econômica nas esferas municipal, estadual,
federal, de acordo com a abrangência dos
interesses; sem mobilizar a população, com
o objetivo de manter a organização destas
sob o controle estatal.
O industrial Ricardo Putz (1973-1976)
chegou à prefeitura de Diadema pelo MDB
apoiado por Michels. Putz representou os
interesses de modernização da administração municipal. Em sua gestão, foi organizado um programa de apoio a projetos de
moradia econômica, elaborou Plano Diretor
de Zoneamento, projetos que não foram
efetivados, e no último ano de mandato
centralizou ações na região central da cidade, que foram parcialmente concluídas
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
253
joana darc virgínia dos santos
254
na gestão de Michels, como construção de
praças, calçadão, Fórum e o Centro Cultural
(Simões, 1992).
Lauro Michels retornou à administração
da cidade de Diadema em 1977, pelo MDB,
mantendo a prática de realizar investimentos na região central em detrimento das regiões periféricas que careciam de infraestrutura básica.
O metalúrgico Gilson Meneses, em sua
primeira gestão (1983-1988 gestão pelo
PT) assumiu plataforma de governo que
tinha como prioridade implantar políticas
sociais no município com a participação deliberativa das associações populares nas decisões de governo. Gilson Meneses chegou
à Prefeitura com o desafio de implantar as
promessas de campanha a partir de recursos
parcos e comprometidos com dívidas das
administrações anteriores. O Programa de
Urbanização de Favelas (PUF), carro-chefe
de sua plataforma de governo, consistiu na
implantação de infraestrutura básica e concessão de posse da terra aos moradores.
A partir do segundo ano de mandato,
foi instituída consulta popular sobre a elaboração do orçamento municipal através de
comissões e conselhos. Embora houvesse
muitas críticas quanto à representatividade
dos conselhos que participavam desse processo, essa consulta foi realizada até o final
da gestão de Gilson Meneses. A implantação da proposta de atuação direta da população nos programas de governo, através
dos Conselhos Populares (CPs), não se deu
conforme o proposto devido a uma série
de enclaves. As divergências entre petistas
e não-petistas, administração municipal e
representantes do Diretório do PT em Diadema esvaziaram as reuniões dos CPs. Seja
por ações da administração que isolaram as
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
reivindicações articuladas pelos representantes do Diretório Municipal, seja pela ausência dos não-petistas nas reuniões dos CPs,
criando oposição às propostas articuladas
(Simões, 1992). Os CPs foram substituídos
por programas pedagógico-participativos
que propunham a organização popular como
mecanismo para atendimento das demandas
da população. A população era estimulada a
se organizar e atuar junto aos técnicos da
prefeitura em um sistema de cooperação e
cogestão de políticas públicas. A prioridade
de atendimento no PUF era dada às “favelas” cuja população havia se organizado,
primeiramente, no sentido de executar o
Programa. A organização a partir da participação popular privilegiava o processo de
construção de políticas sociais na discussão
de problemas que afligiam os moradores,
o que resultou em uma implantação lenta e
conflituosa do Programa (ibid.).
Na disputa das prévias locais para a
candidatura do PT ao município de Diadema, em 1988, o diretor do Departamento
de Saúde e Higiene José Augusto conseguiu
aliados no diretório municipal e regional do
PT derrotando o candidato apoiado por Gilson Meneses, Cláudio Rosa. Gilson Meneses
desligou-se do PT no mesmo ano e filou-se
ao Partido Socialista Brasileiro. José Augusto, médico sanitarista, participou como
militante do movimento de saúde na zona
leste de São Paulo, foi indicado para ocupar
o cargo de diretor do Departamento de Saúde e Higiene durante a gestão 1983-1988
pelos membros do Diretório do PT em São
Paulo, no qual era filiado.
José Augusto venceu as eleições pela
Prefeitura Municipal com a força da legenda petista, beneficiado pela avaliação positiva sobre o desempenho da primeira gestão
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
do PT em Diadema. Durante sua gestão
(1989-1992) foi mantido o Programa de
Urbanização de Favelas. Os investimentos
nas áreas da saúde e saneamento, que representavam em 1984 8% do orçamento,
foram ampliados em 1988 e 1999 para
17% e em 1990 significou 16% do total
(AUPV, 1991). O Fundo Municipal de Apoio
à Habitação de Interesse Social (Fumapis) e
seu Conselho Deliberativo foram instituídos
em 1990 com os respectivos objetivos de
captar e administrar em cogestão com os
movimentos de luta por moradia, recursos
na área da habitação, porém, durante essa gestão, não foi efetivado. A criação do
Fundo e seu conselho gerou apenas movimentação para o processo de eleição dos
conselheiros, durante o período de eleições
municipais. Apesar das inúmeras reuniões, o
primeiro Conselho Deliberativo do Fumapis
foi eleito em 1991 (Diadema, 1991) e tomou posse apenas em 1994 para um mandato de dois anos.
Segundo depoimento de Edmundo,
participante da Associação de Luta por Moradia Unidos da Leste (ALMUL), sobre o primeiro mandato dos conselheiros do Fumapis
“foi criado esse Conselho, mas um Conselho
inútil, que não fazia nada, que não se discutia porque não era vontade do prefeito”.4
Edmundo explicita os desafios práticos
da pretensa autonomia da participação popular restrita aos instrumentos de interlocução
criados segundo a organização burocrática do Estado. As discussões e deliberações
tratadas no Conselho estavam submetidas
aos trâmites legais acessíveis aos membros
da administração municipal que fizeram uso
das informações privilegiadas, limitando a
ação dos conselheiros segundo as necessidades de organização do poder público.
O engenheiro José de Filippi Junior
participou das duas primeiras administrações petistas em Diadema e chegou ao cargo
de prefeito em 1993, pelo PT, com o compromisso de consolidar uma política habitacional com participação popular. Durante a
gestão 1993-1996, foram implementadas
ações que vinculavam a elaboração jurídica
do plano de governo na área da habitação,
efetivação dos instrumentos urbanísticos e
envolvimento da população na execução dos
projetos. No primeiro ano da gestão (1993)
foi realizado o I Encontro de Habitação do
município reunindo representantes de movimentos populares e sindicatos. Uma série de
programas na área da habitação foi implantada, com a proposta de envolver os moradores na execução direta dos projetos, desde a compra dos materiais até a autoconstrução. O Plano Diretor e as Áreas Especiais
de Interesse Social (AEIS) foram aprovados em 1993, em meio a muitas disputas
quanto aos interesses dos proprietários de
terras, movimentos de luta por moradia e
vereadores. Como diretriz do Plano Diretor,
o Conselho Deliberativo do Fumapis recebeu
legalmente mais força, porém, na prática,
não atingiu suas proposições, funcionou como um espaço de discussões de propostas
para a Política Habitacional (Scalli, 1998). A
segunda eleição do Conselho Deliberativo do
Fumapis, em 1995, ano que antecedeu as
eleições municipais, contou com a participação de um número expressivo de votantes
e candidatos cuja atuação nas negociações
com o poder público era reconhecida pela
população em geral (ibid.). Dadas as circunstâncias históricas da realização dessas
eleições, a mobilização pelos votos para conselheiro tornou-se uma prévia das eleições
para vereador.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
255
joana darc virgínia dos santos
256
Em documentos internos do Fumapis
(Diadema, s.d.), nos quais não constam datas que indiquem exatamente o período de
sua elaboração – mas comparando aos nomes que compõem o corpo do Conselho Deliberativo apontam tratar-se da sua primeira
gestão –, identificamos uma proposta de
urbanização que organiza as ações por macroáreas: Central, Serraria, Conceição, Vila
Nogueira, Casa Grande, Inamar, Eldorado,
Piraporinha, Canhema, Campanário e Taboão. Foram designados como responsáveis
pela implantação do projeto um arquiteto e
um sociólogo e são citados 180 moradores
como referências para o diálogo com a população, dos quais 70 eram mulheres. Do
total das pessoas citadas, 88 estão indicadas
com a sigla PT, significando a representação
do Partido dos Trabalhadores nos núcleos
habitacionais.
O Fumapis, efetivamente, existiu apenas no papel, pois as verbas utilizadas para
a realização das obras de urbanização eram
provenientes do orçamento municipal e dos
pagamentos realizados pela população por
implantação de infraestrutura, o que limitou
a ação dos(as) conselheiros(as). No último
ano da gestão de José de Filippi Junior, pela
primeira vez, foi possível deliberar sobre os
valores do Fundo, tendo sido transferido dinheiro proveniente dos pagamentos realizados pela população pelo Plano Comunitário
de Pavimentação para o Fundo (Villas-Bôas,
1995, p. 9). Em análise sobre a atuação dos
dois mandatos do Conselho Deliberativo do
Fumapis, Edmundo afirmou:
O Conselho do Fumapis ele é exatamente um Conselho para gerenciar, não é
só deliberativo. (...) deliberar só aquilo
que a administração quer. (...) Aí, eu
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
retribuo (sic: atribuo) esse erro não só
à administração, mas eu acho que nós
mesmos enquanto liderança de movimento, que era conselheiro do Fumapis
também, porque a gente cobrava,
mas não agia. Porque o Conselho do
Fumapis é um órgão que tem poder, se
a administração não está fazendo aquilo que foi deliberado ele (o movimento)
tem até obrigação de entrar na Justiça
pra intervir na situação. E isso a gente
não fez até por entender que era uma
prefeitura democrática e popular, que
com todos os defeitos, mas a gente tava participando da discussão.
Os conselheiros não moveram ações
em defesa das deliberações não operacionalizadas na prática. Alguns dos conselheiros
militantes do PT procuraram resolver os
conflitos dentro da lógica estabelecida pela prefeitura, enviando ofícios e levando as
reivindicações às reuniões organizadas pelos
membros da administração.
Portanto, identificamos, através da análise documental e bibliográfica, que a constituição do território diademense é marcada
pelo desenvolvimento do polo automobilístico e petroquímico instalado no ABCD paulista e o processo de reestruturação produtiva.5 O vertiginoso crescimento populacional
da cidade de Diadema, entre 1960 e 1990,
teve como mola propulsora a necessidade de
mão-de-obra nas empresas da região, aliada à grande quantidade de trabalhadores
desempregados nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil. A chegada de grande quantidade de indústrias em Diadema deveu-se
a: a) localização privilegiada entre o litoral
sul do estado e região sul da cidade de São
Paulo; b) construção das vias de escoamento
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
Anchieta e Imigrantes, que cortam a cidade;
c) valorização dos terrenos da região sul da
cidade de São Paulo, fato que impulsionou
a saída das empresas e instalação das mesmas nas cidades próximas, principalmente
Diadema; d) implantação da Fragmentação
Sistema no polo automobilístico, o que possibilitou a instalação de diversas empresas
subsidiárias das montadoras em Diadema,
pelos baixos preços dos terrenos, política de
incentivos fiscais e proximidade com as vias
de escoamento.
Os investimentos em infraestrutura
na cidade de Diadema, entre as décadas de
1960 e 1980, foram destinados à área central da cidade, local em que estavam instalados o comércio e os moradores de maior
poder aquisitivo; e também às áreas de uso
industrial que necessitavam de vias de escoamento, serviços de água encanada, esgoto
e energia para funcionarem.
Com a chegada do PT à prefeitura de
Diadema em 1980, foi realizada uma série
de investimentos em projetos de urbanização de “favelas”, além da criação de um
conjunto de leis, em alguns casos ineficazes,
que dispuseram sobre o ordenamento da cidade, incluindo projetos que viabilizaram a
instalação de habitações destinadas aos trabalhadores com renda de até três salários
mínimos. Ou seja, os trabalhadores continuaram impossibilitados de realizarem suas
necessidades básicas, autonomamente, via
mercado, continuaram dependendo de ações
estatais na mediação do acesso a seus direitos à moradia e serviços básicos.
Foi possível identificar que as políticas
públicas desenvolvidas na cidade de Diadema pelas três gestões petistas com o intuito
de atender às necessidades de moradia dos
munícipes foram organizadas no âmbito
legislativo e tiveram uma série de entraves
durante a sua implantação. Podemos classificar as características desses entraves
segundo a natureza dos conflitos que eclodiram a partir do processo de elaboração e
implantação dessas políticas públicas.
Os membros da gestão 1983-1988
identificavam as péssimas condições de vida
dos trabalhadores residentes em Diadema
e assumiram a incapacidade de solucionar
essa situação a partir do aparato burocrático da prefeitura. Admitiram, portanto,
que as ações implementadas pelo governo
municipal possuíam características curativas
e suplementares e que não atacaram diretamente as causas que impossibilitaram os
trabalhadores de realizarem suas necessidades de moradia: a concentração de renda e
situação de miséria dos trabalhadores (Diadema, 1987, p. 1).
Durante a gestão 1989-1992, a estratégia de ação pautou-se na realização de
ações que garantiram ao governo visibilidade. A continuidade do Programa de Urbanização de Favelas foi centralizada nas áreas
em que o processo já estava em andamento
e que necessitavam de poucas intervenções.
A grande inovação no campo legislativo, o
Fumapis, durante essa gestão, não foi efetivada. A criação do Fundo e seu conselho
geraram apenas movimentação para o processo de eleição dos conselheiros, durante o
período de eleições municipais.
Os instrumentos urbanísticos e o aparato jurídico implantados na gestão 19931996 no município de Diadema visaram a
consolidação de uma política habitacional a
partir das conquistas dos movimentos de
luta por moradia alcançadas em âmbito nacional e que já haviam sido concretizadas no
campo legalista.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
257
joana darc virgínia dos santos
Identificamos, durante as três gestões
petistas, grande dificuldade de implementação da legislação por diversas razões,
entre elas o burocratismo que implicou a
sua efetivação, a necessidade de mediação
dos sujeitos que compunham os quadros
legislativos e executivos para exercício da
lei e a necessidade do governo municipal em manter sob controle as demandas
sociais de acordo com a possibilidade de
ação governamental ante os interesses dos
empresários e proprietários de terras. Em
períodos eleitorais, os resultados de implementação da legislação vigente tiveram
resultados mais expressivos. A superação
das limitações do aparato legalista teve
como tentativa de solução a criação de novas leis.
Joana Darc Virgínia dos Santos
Especialista e Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, bacharel e licenciada plena em Ciências Sociais pelo Centro Universitário Fundação Santo André
(São Paulo, Brasil).
[email protected]
258
Notas
(1) Conforme Alves (2000), chamamos de complexo de reestruturação produtiva a implantação de
novas tecnologias e formas de organizar a produção social capitalista. A reestruturação produtiva no Brasil teve grande impulso durante o governo Collor como um processo de integração
entre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e a mundialização do capital. Os polos industriais foram modernizados tecnologicamente e também foram alteradas estratégias de gestão,
localização das fábricas, bem como a relação entre sindicatos e trabalhadores.
(2) Utilizamos o conceito ideologia segundo a análise marxiana, como consciência da operação
prática.
(3) Segundo dados colhidos pela Fundação Seade referente à mortalidade infantil em Diadema entre
1980 e 1994.
(4) O depoimento de Edmundo da Silva Ribeiro foi coletado em 1997 por Eliete Rocha de Almeida,
Fabiana Lo Bello, Janete Barros Nunes e Silmara de Paulo Santos, quando o depoente ocupava o
cargo de presidente da Almul, uma das cinco organizações que participaram do projeto Sanko.
(5) Segundo Alves (2000), na segunda metade década de 1980, o processo de reestruturação produtiva foi implantado Brasil a partir do toyotismo restrito e, na década de 1990, houve a incorporação do toyotismo sistêmico.
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
a construção do poder público como espaço privado na cidade de diadema (1983 a 1996)
Referências
ALMEIDA, F. L. B. et al (1997). Participação popular no programa de urbanização de favelas: a contribuição do Serviço Social na experiência do município de Diadema (gestão 93-96). TCC (graduação). São Paulo, PUC, Faculdade de Assistência Social.
ALVES, G. (2000). O novo (e precário) mundo do trabalho. Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo, Boitempo.
AUPV, PROJETO CONSULTORIA E OBRA LTDA. (1991). Plano Diretor de Diadema – Diadema, Prefeitura
Municipal. Diagnostico: área de socioeconomia e serviços comunitários. Diadema.
DIADEMA, Prefeitura Municipal (1987). Bases da Política Habitacional do Município de Diadema. Diadema.
________ (1991). Portaria nº 175, de 26 de junho de 1991. Diadema.
________ (1993). Documento base do I encontro municipal de habitação. Diadema.
________ (1999). Diadema: Caminhos e Lugares. Diadema, p. 93.
________ (s.d.). Relação dos Conselheiros e suplentes do Conselho Deliberativo do Fumapis. Diadema.
GADOTTI, M. e PEREIRA, O. (1989). Pra que PT: origem, projeto e consolidação do partido dos trabalhadores. São Paulo, Cortez.
HEREDA, J. e ALONSO, E. (1996). “Política urbana e melhoria da qualidade de vida em Diadema”. In:
Habitat: as práticas bem-sucedidas em habitação, meio ambiente e gestão urbana nas cidades
brasileiras. São Paulo, Studio Nobel.
MARTINS, C. E. (1977). Capitalismo de Estado e modelo político no Brasil. Rio de Janeiro, Graal.
MARX, O. (1974). “18 Brumário de Luis Bonaparte”. In: Marx. São Paulo, Abril Cultural (Col. Os
Pensadores).
MENEGUELLO, R. (1989). PT, a formação de um partido, 1979-1982. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
OLIVEIRA, I. R. de (1988). Trabalho e política; as origens do Partido dos Trabalhadores. Petrópolis, RJ,
Vozes.
RAGO FILHO, A. (1998). A ideologia 1964: os gestores do capital atrófico. Tese de Doutorado. São Paulo, PUC, Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Ciências Sociais.
SCALLI, C. (1998). Diadema: a cidade Vermelha, Desafios do Poder Local. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, PUC, Programa de Pós-Graduação em História, Faculdade de Ciências Sociais.
SIMÕES, J. A. (1992). A política da participação: uma etnografia de um caso. São Paulo, Marco Zero.
VILLAS-BÔAS, R. (1995). Avaliação da participação popular na gestão da política habitacional de Diadema. São Paulo, Instituto Pólis.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 247-259
10 sem. 2009
259
Grupos de catadores autônomos na coleta
seletiva do município de São Paulo
Marina Pacheco e Silva
Helena Ribeiro
Resumo
Pesquisa na Cidade de São Paulo identificou
dificuldades que grupos de catadores autônomos de recicláveis enfrentam para se inserirem no Programa de Coleta Seletiva oficial. A
cidade gera diariamente 16 mil toneladas de
resíduos, apenas 1% destinados à coleta seletiva. Entretanto, grupos de catadores coletam
informalmente sem ser incluídos nas estatísticas. Foram levantados bibliografia, legislação
sobre resíduos, grupos atuantes na coleta seletiva; e aplicados formulários em 13 grupos.
Dados indicaram organização e gestão dos
grupos, dificuldades, gerenciamento e divisão
dos recursos, participantes e interesse de participarem da coleta seletiva oficial. Das dificuldades que os grupos apontaram estão: falta
de espaço adequado para guardar, separar e
enfardar material coletado; falta de recursos
para seu desenvolvimento; e falta de apoio
do governo.
Abstract
A study in the city of São Paulo identified
difficulties which independent groups of
scavengers face to be included in the local
government’s selective collection program.
The city generates 16 thousand tons of
residues daily, only 1% for selective collection.
Nevertheless, groups of scavengers collect,
informally, thousands of tons of residues,
without being included in statistics. The
methods were bibliographical and legislation
research, and forms were administered to
13 groups that deal with collection. The
data enabled to recognize the organization
and management of groups, difficulties,
administration and division of resources,
participants and their interest in participating
in the official program. The main difficulties
indicated by the groups were: lack of space
to sort out, bale, and keep collected material,
lack of financial resources and of government
support.
Palavras-chave: políticas públicas; grupos
de catadores; sustentabilidade; coleta seletiva;
reciclagem.
Keywords:
public policies; groups of
scavengers; sustainability; selective collection;
recycling.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
marina pacheco e silva e helena ribeiro
Introdução
262
Conhecer grupos de catadores organizados,
que atuam na coleta seletiva na Cidade de
São Paulo, foi o grande desafio desta pesquisa. O tema é muito amplo, existem ainda
poucas referências científicas. A opção como
objeto de estudo foi pelos grupos de catadores organizados que atuam com a coleta
de resíduos sólidos descartáveis e não têm
parceria com o Programa de Coleta Seletiva
da Prefeitura de São Paulo.
Andar pelas ruas do centro expandido
da cidade de São Paulo é a certeza de encontrar trabalhadores puxando carroças e
recolhendo materiais descartados. São, em
maioria, profissionais desempregados que
exercem a função de catadores de resíduos
recicláveis e procuram, na venda desses
m ateriais, uma maneira de sobreviver e
ter autonomia para decidir sobre as suas
necessidades.
Um dos fatores que contribui para esse quadro é o aumento de materiais descartáveis, depositados pelas ruas, que pode
ser explicado pelas mudanças dos hábitos
de consumo. Por exemplo, até os anos 60,
a garrafa de leite de vidro era retornável.
Foi substituída por saco plástico, depois por
caixa “tetra pak”. Atualmente, vivencia-se a
era dos descartáveis: as embalagens de bebidas e de alimentos são produzidas em larga escala, substituindo as reutilizáveis por
descartáveis de papel, plástico e alumínio.
A cidade de São Paulo, segundo o Departamento de Limpeza Urbana – Limpurb,
coleta diariamente 16 mil toneladas de lixo,
destes 9.600 toneladas de resíduos domiciliares, com a seguinte composição: 52,5%
de resíduos orgânicos, 28,4% de papel e
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
papelão, 5,6% de plásticos, 4,9% de metais, 3% de vidro e 5,6% de outros.1
Os aterros sanitários públicos da cidade de São Paulo chegaram a sua capacidade
máxima, e hoje os resíduos sólidos gerados
são levados para dois aterros particulares:
CDR Pedreira, localizado no Tremembé, e
Essencis, localizado no município de Caieiras. As despesas decorrentes da coleta,
transporte, tratamento e disposição final
dos resíduos são exorbitantes.
As normas, nas três esferas (federal,
estadual e municipal) que regulam os princípios, objetivos, atribuições, ações do governo voltadas ao saneamento, a coleta e
reciclagem de resíduos sólidos, têm presente a preocupação com o desemprego e com
a melhoria da qualidade de vida. A reciclagem passa a ser, além de atribuição do município para a preservação da saúde pública
e a garantia da sustentabilidade ambiental,
uma forma de inserção do desempregado
na sociedade.
A cidade de São Paulo possui 15 Centrais de Triagem, sob a supervisão da Secretaria de Serviços, vinculadas à Limpurb,
e situadas em 15 Subprefeituras. Elas são
geridas por cooperativas conveniadas com a
Prefeitura. Seus contratos foram legalizados entre fevereiro e março de 2008. Essas
cooperativas estão subordinadas às regras
estabelecidas pela Autoridade Municipal de
Limpeza Urbana – AMLURB, utilizam espaço
e equipamento públicos, mediante cessão de
uso gratuita, mas com a cláusula de devolução em 30 dias desde que notificadas pelo
poder público.
No município de São Paulo, estimase que existam 20.000 profissionais que
exercem a função de catadores de resíduos
sólidos, recolhendo 39 mil toneladas de
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
resíduos mensalmente (Grimberg, 2007,
p. 14), enquanto apenas 838 catadores
atuam no Programa de Coleta Seletiva da
Prefeitura de São Paulo. Isto é, apenas cerca de 4,2% dos catadores estão inseridos
no Programa da Prefeitura e recolhem,
nesse programa, 6,7% do material recolhido pelos 20.000 catadores não inseridos.
Buscou-se, no estudo, identificar as dificuldades que os grupos organizados autônomos de catadores, que atuam com a coleta seletiva de resíduos recicláveis na Cidade
de São Paulo, encontram para se inserirem
no Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo.
A cidade de São Paulo,
o espaço público como
local de trabalho
A cidade contribui para a socialização capitalista das forças produtivas, ela é resultado
da divisão social do trabalho, porque concentra as condições da produção capitalista.
A urbanização capitalista é uma multiplicidade de processos privados de apropriação do
espaço, sendo que cada um deles é determinado por regras próprias de valorização do
capital (Topalov, 1979, p. 20).
A visão de Topalov representa a dinâmica, a apropriação e as relações de poder,
que podem parecer invisíveis, mas estão
presentes na vida da cidade.
A cidade de São Paulo tem 1.509
km² e destes, 1.000 km² são urbanizados.
Conta com uma população de 10.995.082
habitantes. O seu orçamento, para o exercí cio de 2008, foi de R$25,2 bilhões.
Desse orçamento, destinaram-se
R$500.422.421,002 para custear o contrato de “Concessão dos Serviços Divisíveis de
Limpeza Urbana em Regime Público”,3 que
executa a coleta de resíduos sólidos em
99,2% dos domicílios.4
Entretanto, milhares de “carroceiros”
também recolhem resíduos descartados passíveis de reciclagem, disputando as vias públicas com 6,7 milhões de veículos e 15 mil ônibus. Uma parcela dos coletores de recicláveis
também vive na rua. Segundo a Secretaria
Municipal de Assistência e Desenvolvimento
Social – SMADS (2005), 31% da população
de rua são catadores. Para Vieira (1994), a
população de rua tende a permanecer em
locais que favorecem a sobrevivência. Ela
ocupa bairros mais centrais onde, durante o
dia, o comércio produz grande adensamento de pessoas e muitos resíduos recicláveis,
e que à noite ficam ociosos. A apropriação
dessas áreas pelos catadores acarreta um
duplo uso: espaço de moradia e de trabalho. Ocorre, assim, uma reorganização, uma
reinvenção do espaço público e comum, onde
a concepção de casa cede lugar a outra (ibid.,
p. 103). O que é privado, como comer, beber, dormir etc., torna-se público. O público,
enquanto espaço coletivo de circulação, torna-se espaço de morar. Essa subversão de
regra faz da ocupação das ruas um fato conflituoso, cabendo ao poder público gerenciar
este conflito (Vieira, 1995, p. 43).
Os milhares de profissionais que trabalham como formigas no espaço urbano,
procurando, recolhendo, triando resíduos
descartados, são invisíveis na sua ação que
favorece o meio ambiente e são discriminados pela sociedade, pois a locomoção de
suas carroças pela cidade dificulta a fluidez
do tráfego.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
263
marina pacheco e silva e helena ribeiro
Figura 1 – Cena de disputa entre os carros e a carroça no trânsito da cidade
264
Fonte: Rodrigo Marcondes – Folha Imagem
O que as pessoas não percebem, afirma
Angelo (2007), é que esse trabalho beneficia toda a cidade, pois os resíduos que eles
recolhem retornam como matéria-prima e
deixam de abarrotar os aterros.
Paciência, motorista, com o pobre do
carroceiro. Cala a tua buzina irritada,
que o homem que ali vai, puxando sua
carga enorme e desequilibrada, trabalha
para o teu bem. (Angelo, 2007)
A falta de paciência e uma concepção
higienista levam os catadores ao isolamento social, que reduz as suas oportunidades
de inserção. O catador de material reciclável
necessita atuar em locais onde os resíduos
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
sejam mais abundantes e isso ocorre nos setores dinâmicos do comércio, que se concentram nos distritos do centro e nos corredores sul-sudoeste (Jardins, Pinheiros, Itaim,
Moema, Vila Mariana) (Torres, 2004).
Métodos
Após análise da bibliografia e da legislação
pertinente aos resíduos sólidos, a etapa da
pesquisa de campo foi subdividida em: definição do perfil dos grupos e levantamento
do universo a ser pesquisado, elaboração do
instrumento de coleta de dados, pré-teste
dos formulários com questões de múltipla
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
escolha e abertas e sua aplicação a líderes
dos grupos de catadores autônomos.5
Para a definição do perfil dos grupos
objeto da pesquisa, foram considerados os
requisitos pré-estabelecidos pelo Programa
de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo. Esses requisitos exigem que os grupos:
• Estejam constituídos como cooperativas. Para se constituir como cooperativa é
necessário no mínimo 20 participantes. A
seleção do grupo levou em conta apenas o
número de participantes, não tendo sido
pré-requisito o grupo já estar constituído
como cooperativa, mas ter condições para
tal;
• Tenham seu endereço e atuem na cidade de São Paulo;
• Atuem com a catação de materiais
recicláveis;
Além dos requisitos legais, mais três
requisitos operacionais foram incluídos:
• Serem de conhecimento da pesquisadora as referências do grupo, tais como
nome, endereço, telefone, número de participantes;
• Não terem contrato com o Programa de
Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo;
• Concordarem em receber a pesquisadora para a aplicação do formulário.
Universo da pesquisa
Foram identificados 143 grupos. Destes,
constatou-se que: 11 eram ONGs; 18 não
tinham dados suficientes que possibilitassem
contatá-los; 15 se referiam a grupos que
não atuavam mais com catação; 3 eram grupos que não atuavam na catação por falta de
espaço físico. Os demais 94 grupos foram
classificados em: Centrais de Triagem6; Grupos com até 19 participantes; e grupos com
mais de 20 participantes. Estes últimos, 13
grupos, constituíram o objeto da presente
pesquisa, pois, teoricamente, poderiam ser
incluídos no programa da prefeitura.
As questões elaboradas para a coleta
de dados tiveram como objetivo aprofundar
o conhecimento sobre a forma de organização, as parcerias estabelecidas pelo grupo,
as suas condições econômicas, a forma de
gestão, a caracterização dos participantes, o
conhecimento do grupo sobre o Programa
de Coleta Seletiva do Município, o interesse
em participar do programa e a opinião deles
sobre as vantagens e as desvantagens em
participar do referido programa.
Algumas referências
legais
Algumas referências legais são importantes
para conhecer o fio que separa a inclusão
ou exclusão desses grupos no programa
municipal.
A Lei nº 13.430, de 2002, regulamenta
o Plano Diretor da Cidade de São Paulo. O
art. 7º destaca seus princípios, que demonstram preocupação com justiça social, redução das desigualdades sociais e regionais;
inclusão e participação da população, direito
ao trabalho, à cidade e à moradia. O artigo
72, inciso IX, indica as “ações estratégicas
para a política de resíduos sólidos, entre
elas implantar e estimular programas de coleta seletiva e reciclagem, preferencialmente
em parceria com grupos de catadores organizados em cooperativas, com associações
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
265
marina pacheco e silva e helena ribeiro
266
de bairros, condomínios, organizações não
governamentais e escolas.”
A Lei Municipal 13.478, de 30 de dezembro de 2002, dispõe sobre a organização do Sistema de Limpeza Urbana de São
Paulo. O art. 2º refere-se aos deveres do
Poder Municipal, e o seu inciso V estabelece
que compete ao município criar condições
para que os serviços de limpeza propiciem
o desenvolvimento social, reduzam as desigualdades sociais e aprimorem as condições
de vida de seus habitantes. O artigo 6º, inciso VIII, atribui ao munícipe o dever de “contribuir ativamente para a minimização dos
resíduos, por meio da racionalização dos resíduos gerados, bem com sua reutilização,
reciclagem ou recuperação”.
O capitulo II – Seção III, os artigos 67
e 70 estabelecem permissão às cooperativas
de trabalho, integradas por catadores de resíduos sólidos recicláveis, para a prestação
de serviços de limpeza urbana e coleta seletiva de lixo e de triagem do material coletado, em regime público, podendo celebrar
convênios com as cooperativas interessadas
em prestar os serviços, com o repasse de
recursos financeiros, materiais ou humanos,
com vistas a incentivar sua execução.
O Decreto Municipal 48.799, de 2007,
normatiza o Programa Socioambiental de
Coleta Seletiva com Cooperativas, tendo como objetivo estimular a geração de emprego
e renda e fomentar a formação de cooperativas e associações de catadores de materiais
recicláveis, como política de inclusão social.
As ações do Programa preveem o apoio à
formação de cooperativas e associações de
catadores e a implementação progressiva da
coleta seletiva por meio das cooperativas e
associações, estabelecendo que os contratos
da Prefeitura para as atividades de coleta
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
seletiva estão isentos de licitação. Define,
para tanto, cooperativas ou associações como “o grupo de catadores de materiais recicláveis que atuem no ramo de coleta seletiva, legalmente constituído, que gerenciará
a Central de Triagem ou a unidade de produção encarregada de coletar, triar, armazenar, beneficiar e comercializar os resíduos
sólidos recicláveis”. Ainda determina que “a
receita proveniente da comercialização dos
resíduos recicláveis será revertida integralmente às cooperativas e associações participantes do programa”.
Há, pelas peças legislativas citadas,
amplo amparo legal para que os grupos de
catadores atuem na coleta seletiva, desde
que organizados legalmente em cooperativa
e que estabeleçam parceria com o governo
municipal.
Programa de Coleta
Seletiva da Prefeitura
de São Paulo
O primeiro Programa de Coleta Seletiva do
município de São Paulo foi implantado em
julho de 1989 (Calderoni, 1999). Para o seu
início, a Prefeitura disponibilizou, no bairro
de Vila Madalena, a coleta domiciliar de recicláveis porta a porta, em dias diferentes
da coleta convencional de resíduos sólidos.
Para os bairros que não tinham acesso a esta coleta, colocou à disposição da população
containeres em parques ou em áreas de concentração habitacional. As escolas também
foram alvo desse programa, contando com
um trabalho de educação ambiental desenvolvido por Limpurb.
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
Todo o material coletado no bairro de
Vila Madalena e nos containeres era direcionado para centro de triagem localizado em
Pinheiros, implantado junto com o Programa de Coleta Seletiva, sob coordenação do
Corpo Municipal de Voluntários – CMV.
São Paulo já tinha uma coleta informal realizada pelos catadores avulsos de
rua, os quais recolhiam em torno de 500
toneladas dia, e, para não prejudicá-los, o
Programa de Coleta Seletiva evitava a colocação de containeres nas áreas onde eles se
concentravam.
Em 1993, a coleta porta a porta foi
cancelada, permanecendo apenas os postos de entrega voluntária nos parques
da cidade. Em 1997, a Limpurb lançou
o Programa “Recicla São Paulo”, tendo
como objetivo a coleta e revenda de recicláveis, operacionalizado pelas empresas
responsáveis pela coleta tradicional de lixo
e prevendo a integração e remuneração dos
moradores pelo lixo coletado seletivamente
(Calderoni, 1999).
Em agosto de 1997, um grupo de entidades do setor de embalagens apresentou
ao Secretário do Meio Ambiente do Estado
de São Paulo, um diagnóstico e uma proposta de incentivo à reciclagem e à coleta seletiva, chamada de “uma proposta cidadã”.
A proposta previa estímulos aos municípios
para implementar coleta seletiva e centros
de triagem de resíduos, incentivos fiscais
da União e do Estado para catadores e recicladores, campanhas do governo estadual
e da sociedade civil para motivar a população, apoio aos catadores para ampliarem a
ação de suas cooperativas e desenvolvimento de mercado, por parte da indústria, para
os produtos feitos com materiais reciclados
(Oliveira, 1997). Entretanto, em setembro
de 1997, a Prefeitura remanejou verba
destinada a diversos serviços (dentre eles,
da coleta seletiva), para o pagamento de
dividas e R$511 milhões para gastos com
a destinação final do lixo, uma vez que os
aterros sanitários estavam sobrecarregados
(Huertas, 1997). O programa de coleta seletiva foi considerado deficitário, pois o custo da coleta era muito alto (U$470 dólares
a tonelada) comparado ao valor arrecadado
com a comercialização (U$50 dólares por
tonelada). O apoio operacional tornou-se
limitado e houve cortes nas campanhas de
divulgação. Os containeres coloridos foram
substituídos por apenas uma cor, verde, e
passaram a receber todos os tipos de materiais a serem reciclados, sendo necessário
separar o lixo seco (resíduos recicláveis) do
lixo molhado (resíduos orgânicos). Segundo
a Limpurb, a falta de investimento levou o
programa ao colapso, o material que era depositado nos containeres deixou de ser coletado e se amontoava nos Postos de Entrega
Voluntária – PEVs – por dias seguidos, causando mau cheiro e favorecendo a presença
de vetores transmissores de doenças.7
Com a proximidade das eleições municipais, em junho de 2000, sessenta instituições que atuavam na área social e ambiental
criaram o “Fórum do Lixo e Cidadania da
cidade de São Paulo”, e elaboraram o documento Plataforma Lixo e Cidadania para
São Paulo, com as propostas produzidas no
“Encontro Lixo e Cidadania: compartilhando
a gestão do lixo de São Paulo”. Essa plataforma ressaltava a necessidade de o poder
público, em especial o próximo Gestor da cidade, prever no seu plano de governo ações
que valorizassem a importância da redução
dos resíduos sólidos urbanos – RSU, o reaproveitamento destes com a participação
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
267
marina pacheco e silva e helena ribeiro
268
dos catadores e a erradicação do trabalho
infantil nos aterros. Esse documento foi
apresentado aos candidatos à Prefeitura e à
Câmara Municipal (Plataforma do lixo e cidadania, 2000).8
Reportagem de janeiro de 2001 apresentou as iniciativas das ONGs, que apesar de
não contarem com o apoio efetivo da Prefeitura, utilizavam o lixo como forma de gerar
renda a seus beneficiários. As ONGs Reciclazaro e Boa Vista Reciclada atuavam na Lapa
e no Centro da cidade, respectivamente, e
atendiam trabalhadores que anteriormente
eram explorados por ferros velhos. Esta reportagem cita pesquisa da FIPE apontando
que dos 8.704 moradores de rua, mais de
3000,9 atuavam com a catação. Traz, ainda,
dados sobre o volume de resíduos gerado na
cidade, que era de 14.072 toneladas, sendo
aproximadamente um terço de resíduos recicláveis. No entanto, a coleta seletiva só recolhia 4 toneladas/mês, o que correspondia
a 0,08% (Viveiros, 2001).
Para a ampliação e retomada do programa de coleta seletiva, em 2002, a prefeitura apresentou nova proposta, que consistia na abertura de três Centros de Triagem.
A escolha dos grupos para a gestão das três
primeiras centrais foi feita em reunião com
representantes da Prefeitura, dos Fóruns
de catadores e das entidades Coopamare e
Reciclazaro, que já tinham experiência com
grupos de catadores. A organização dos
catadores foi o grande desafio para esse
projeto. Os catadores podiam ser divididos
em três grupos: os que assumiam a atividade como profissão, os que dependiam dela,
mas tinham vergonha e os que tratavam a
atividade como um bico (Folha, 2002).
Sendo uma das atribuições da Prefeitura a capacitação para a inserção no Programa
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
Socioambiental Cooperativa de Catadores de
Material Reciclável, a Secretaria do Desenvolvimento Trabalho e Solidariedade, SDTS,
em 2002, em parceria com a Unesco e com
entidades sociais, desenvolveu cursos de capacitação em Agente Comunitário de Coleta
Seletiva. Esses cursos formavam os agentes,
que deviam, no final do curso, ter conhecimento da importância da reciclagem, das
suas consequências ao meio ambiente, dos
tipos de materiais que podem ser reciclados,
da diferenciação entre os materiais e saber
convencer a população para a separação dos
resíduos em suas casas.10
O Instituto Pólis, em dezembro de
2002, conjuntamente com 67 instituições
que atuavam com educação ambiental, inclusão social, econômica e cultural, realizou
o “1º Encontro de Educação Socioambiental
do Programa Coleta Seletiva Solidária de
São Paulo”. Esse encontro foi copromovido
pelo Comitê Metropolitano de Catadores,
pelo Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade
de São Paulo, pelo Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste, pelo Fórum Recicla
São Paulo e pela Prefeitura do Município de
São Paulo. O objetivo foi a implantação do
“Programa Coleta Seletiva Solidária”, para o
reaproveitamento de resíduos com vistas à
inclusão social, geração de trabalho e renda e mobilização da sociedade. O Programa
tinha como princípio a estruturação de um
sistema de coleta seletiva associativista, operacionalizado pelas organizações de catadores e com apoio logístico do poder público
e capacitação dos catadores para atuarem
em cooperativas.11 As Centrais de Triagem
começaram a ser implantadas em 2003 (10
centrais), em 2004 foram implantadas mais
4 centrais e em 2006 mais uma, totalizando as 15 centrais existentes. Elas foram
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
estruturadas a partir de grupos organizados
que já atuavam com a coleta nas regiões onde foram implantadas. A central de Triagem
da Mooca contava, na época, com 39 cooperados e tinha o apoio de 5 núcleos. Para o
início das Centrais de Triagem esses núcleos
encaminharam catadores para formarem a
cooperativa à qual eles permaneciam ligados, formando uma rede de coleta seletiva
na região (Ribeiro et al., 2005). A rede acabou não se consolidando e as Centrais de
Triagem passaram a operar independentemente dos grupos existentes. Alguns desses
grupos deixaram de existir e outros, hoje,
pleiteiam o status de se tornarem Centrais
de Triagem.
Relatório do Limpurb sobre o desempenho do Programa de Coleta Seletiva e
Ecopontos, de março de 2007, apontava um
custo da coleta seletiva de R$5.267.976,74
milhões/ano e R$438.976,74 mensais. O
número de cooperados atuando nas 15 centrais de triagem era de 838, que recebiam,
em média, R$649,19 mensais. Triavam,
por mês, 2.610 toneladas de resíduos, ao
custo de R$168,10 a tonelada. As principais
dificuldades enfrentadas pelo programa,
apontadas nesse relatório foram: dificuldade de gerenciamento administrativo; falta
de prestação de contas à Prefeitura e a dependência dos cooperados ao Órgão Público;
desconhecimento sobre a Lei 5.764/71 que
rege o Cooperativismo; a falta de participação da Sociedade na separação dos resíduos;
e a falta de uso dos equipamentos de proteção individual – EPI’s, pelos cooperados.12
Em novembro de 2007, o Instituto Pólis, com entidades que atuam na integração
social e educação ambiental na cidade de São
Paulo, reuniram 101 pessoas para a elaboração da Agenda de 2008 – Política Pública
de Coleta Seletiva com Inclusão dos Catadores e Catadoras.13 O diagnóstico apresentado no encontro demonstra que os números
do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo permaneciam inalterados
em relação aos dados de 2004, que as cooperativas continuavam reciclando 1% dos
resíduos coletados na cidade e que apenas
1.000 cooperados integravam as Centrais
de Triagem.
O orçamento de 2007 para a coleta convencional e destinação de resíduos, sob o regime de concessão, foi de R$479.085.000,00,
enquanto o da coleta seletiva foi de
R$6.707.950,00, isto é, 1,4% do orçamento destinado à coleta convencional.
Em contrapartida a esse quadro, grupos de catadores organizados e mesmo
catadores autônomos vêm atuando informalmente na coleta, e o material recolhido por eles não é computado oficialmente
nas estatísticas. Muitos desses catadores
aguardam uma oportunidade de se inserir
no Programa da Prefeitura e de receber a
remuneração pelos serviços prestados à
cidade. A remuneração a catadores participantes da coleta seletiva oficial foi prevista
na legislação normativa, mas ainda depende
de regulamentação.
A ampliação da coleta seletiva com inclusão dos catadores pode trazer benefícios
para a cidade, entre eles: a redução dos
custos de operação dos aterros sanitários e
aumento de sua vida útil, redução de custos de energia e matéria-prima, ampliação
dos números de postos oficiais de trabalho
e renda, inclusão de catadores no sistema
público de coleta seletiva, aumento de oportunidades de inserção social e reintegração
de catadores e suas famílias e conservação
de recursos naturais.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
269
marina pacheco e silva e helena ribeiro
Agentes ambientais,
carrinheiros, carroceiros,
recicladores, catadores
270
Agentes ambientais, catadores, carrinheiros,
carroceiros, profissionais do “lixo”. Existem
diversas formas de denominá-los. Esses
profissionais garantem seu sustento e de
sua família através da catação de materiais
descartados como “lixo”, encontrados nas
ruas, nas indústrias, nas residências e usam
a tração humana para puxar carroças e se
locomoverem.
Birbeck denomina os catadores selfemployed proletarians , considerando que
o autoemprego não passa de ilusão, pois
os catadores se autoempregam, mas, na
realidade, vendem sua força de trabalho à
indústria da reciclagem, sem terem acesso
à seguridade social do mundo do trabalho
(Birbeck 1978 apud Medeiros e Macedo,
2006, p. 65).
Segundo Rodrigues e Cavinato, há mais
de 50 anos é bastante conhecido, no Brasil, o catador de papel e papelão que anda
pelas ruas nos centros das cidades puxando
seu carrinho e remexendo os sacos de lixo
na calçada.
A catação é o processo de reaproveitamento do “lixo” mais antigo de que
se tem notícia no país. Devido a essa
tradição, o Brasil ocupava, no final da
década de 1980, uma posição de destaque mundial na recuperação de papel e
papelão, à frente dos Estados Unidos e
do Canadá. (1997, p. 57)
Ângelo (2007), no conto A Formiga e
o Lixo , faz uma reflexão sobre quem é o
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
catador, o trabalho que ele realiza no dia a
dia, a pessoa que recolhe o que não consome, a sua função na sociedade, representando a pobreza, a carência, a exclusão,
o trabalho de formiguinha que contribui
para o Brasil ser o maior reciclador de
alumínio.
O homem da carroça, o burro sem rabo,(....) na grande cidade, é um resto.
Um rejeito levando rejeitos.(.....) um
personagem-símbolo do grande problema, da pobreza, da exclusão, da carência. (Ibid., p. 141)
Para conhecer quem eram esses catadores, a Secretaria Municipal do Trabalho –
SMTRAB, realizou uma pesquisa, em 2005.
Foram entrevistados 500 profissionais
no centro expandido da cidade (SMTRAB
2005). De acordo com seus resultados, 90%
desses profissionais eram do sexo masculino, 26% tinham entre 31 e 40 anos e 46%
entre 41 e 55 anos, 59% tinham o ensino
fundamental incompleto, 23% moravam na
rua e 14% em albergues. Concluiu-se que
37% estavam em situação de rua e 50%
moravam com a família, 36% moravam na
região central da cidade, 57% trabalhavam
anteriormente com carteira registrada, 88%
eram autônomos.
No entanto, a profissão de catador
é legalmente reconhecida pelo Ministério
do Trabalho e Emprego – MTE, tendo sido inscrita no Código Brasileiro de Ocupações – CBO, pelo nº 5.192 e denominada
“catadores de material reciclável”, incluindo
nessa classificação – Catador de ferro-velho,
Catador de papel e papelão, Catador de sucata, Catador de vasilhame, Enfardador de
sucata (cooperativa), Separador de sucata
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
(cooperativa), Triador de sucata (cooperativa) (CBO – MTE).
Mas, como visto, ter uma profissão reconhecida não garante a esses profissionais
o reconhecimento da sociedade, nem a garantia do direito ao seguro social.
Resultados
Os resultados obtidos na pesquisa de campo
evidenciaram muitos dos pontos acima descritos. O desconhecimento dos membros do
grupo e o seu registro é uma tônica, uma
vez que não é prática dos grupos terem ficha de cadastro dos participantes. Dos 13
grupos aos quais foram aplicados os formulários, apenas três se reportaram às fichas
de cadastro, para responder às questões.
Assim, nem mesmo o grupo conhece seus
membros.
No quesito gênero, 11 grupos souberam caracterizar seus participantes, sendo,
na média, 47% homens (H) e 53% mulheres (M). Essas proporções entre os gêneros são semelhantes às obtidas por Besen
(2006), em estudo sobre associações de
catadores de resíduos, em três municípios:
43% do sexo masculino e 57% do sexo
feminino. Já na pesquisa realizada pela SMTRAB, 90% dos entrevistados eram
do sexo masculino. Tais dados podem ser
explicados pelo fato que na pesquisa da
SMTRAB só foram entrevistados catadores
que estavam puxando carroças. Na presente
pesquisa, foi verificado que, nos grupos que
utilizam carroça, a percentagem de homens
era maior que na média dos grupos (56%
homens e 44% mulheres). Segundo relato
dos representantes, os homens puxam a
carroça e as mulheres fazem a triagem do
material.
Cinco grupos não souberam prestar
informações sobre idade dos seus participantes, 3 grupos relataram que a maior
parte tem, em média, 30 a 40 anos. Apenas 3 grupos souberam precisar a idade
dos participantes. Nestes, 37% dos participantes estavam na faixa de 30 a 40 anos
e 38% na acima de 40 anos. No total dos
grupos, pode-se afirmar que a faixa etária
que prevalece é de 30 a 40 anos. Pesquisa
da SMTRAB (2005) demonstrou que 48%
dos entrevistados tinham idade entre 41 e
55 anos. Portanto, nas duas pesquisas com
catadores, evidenciou-se forte presença de
população em idade produtiva.
Quanto à escolaridade, 6 grupos não
souberam prestar nenhuma informação, 5
grupos informaram o número de participantes analfabetos e com ensino médio. Só um
grupo não tinha analfabetos. Dentre todos
os grupos, 72% dos catadores tinham o ensino fundamental completo ou incompleto.
Os resultados assemelham-se aos da pesquisa da SMTRAB, de que 75% dos entrevistados tinham ensino fundamental completo
ou incompleto, isto é, 5 a 8 anos de estudo.
Esta população, portanto, apesar de estar
em idade produtiva, encontra dificuldades
para se inserir no mercado formal de trabalho. Os dados corroboram a afirmação de
Camargo (s.d.) de que a taxa de desemprego entre os trabalhadores semiqualificados
no Brasil é mais elevada. Como alternativa
de sobrevivência e sustento da família, os
trabalhadores semiqualificados optam pela
catação. Possivelmente, sua capacitação não
atende aos requisitos necessários para vagas
de empregos disponíveis, com renda que supere a obtida no trabalho de catação.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
271
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
cúria
metropolitana
cedido*
cedido*
locado
locado
PMSP
sem cessão
PMSP comodato
PMSP
sem cessão
contratante
PMSP
sem cessão
locado
cedido*
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
individual
individual
e do grupo
grupo
grupo
grupo
individual
e do grupo
individual
individual
e do grupo
individual
e do grupo
entidade
individual
grupo
grupo
Posse dos
equipamentos
individual***
grupo
grupo
grupo
grupo
externo
contador
individual***
grupo
grupo
coordenação
grupo
entidade
grupo
Gestão dos
recursos
grupo +
entidade
assembleia
assembleia
assembleia
assembleia
assembleia
assembleia
assembleia
assembleia
entidade +
SMADS
assembleia
assembleia
coordenação
e assembleia
Tomada de
decisões
material
recolhido
hora trabalhada
hora trabalhada
hora trabalhada
hora trabalhada
individual ou
hora trabalhada
material
recolhido
material e hora
trabalhada
hora trabalhada
dia trabalhado
produção
hora trabalhada
hora trabalhada
e produção
Divisão dos
recursos
não tem
arrecadação
pelo grupo
não sabem o
total
4.000,00
40.000,00
4.111,00
30.000,00
não tem
arrecadação
pelo grupo
20.000,00
13.000,00
14.960,00
20.000,00
21.000,00
62.000,00
Arrecadação
mensal dos
grupo – R$
1.000,00
200,00
300,00
900,00
700,00**
197,00
1.000,00**
800,00
450,00
700,00
500,00
salário mínimo
700,00
480,00
1.900,00**
450,00
Renda
mensal dos
participantes
R$
não recolhem
não recolhem
não recolhem
todos recolhem
não recolhem
não recolhem
não recolhem
alguns recolhem
não
não recolhem
não recolhem
não recolhem
todos recolhem
Seguridade
social – INSS
não
não
não
10%
não
sim
não
sim,
variável
não
não
sim, 10%
não
não
sim
não
sim
sim
não
não
não
não
sim
sim
não
não
sim
Fundo
Investimentos
de reserva
* cedido – Utilizam espaço cedido pela SMADS a uma entidade social; ** maior valor e menor valor; *** recolhem individualmente com a carroça.
PMSP
sem cessão
Situação do
espaço utilizado
pelo grupo
1
Grupo
272
Quadro 1 – Síntese das variáveis de análise da situação econômica dos grupos
Parceria
Porta a porta
Porta a porta
e parceria
Parceria
Parceria e
entrega de
terceiros
Parceria e
entrega de
terceiros
Porta a porta
Parcerias
Parcerias
Parcerias
Parcerias
Parcerias
Parcerias
Forma de
coleta
marina pacheco e silva e helena ribeiro
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
Sustentar a família era a necessidade
de 73% dos membros dos 6 grupos que tinham a informação do local de moradia de
seus participantes. Dos demais grupos, 3
informaram que a maioria vivia com a família. Um único grupo informou que 76% dos
participantes viviam sós ou moravam em
albergues. Este último atuava em parceria
com a SMADS, na inserção dos albergados.
Quanto às variáveis de análise da situação econômica, sobressai a questão do espaço físico (Quadro 1). Dos dados apurados
na pesquisa, constatou-se que 3 grupos desenvolviam suas atividades em espaço locado, 1 grupo prestava serviço a um grande
gerador e utilizava o espaço do contratante, outro grupo tinha o espaço cedido pela
Cúria Metropolitana. Os outros 8 grupos
(62%) desenvolviam suas atividades em espaços públicos, isto é, espaços pertencentes
à Prefeitura, com e sem cessão de espaço.
Apenas 1 grupo tinha o comodato por 25
anos para a utilização do espaço, assinado
pelo prefeito.
A falta do espaço predeterminado pelo
poder público contribui para o uso irregular da cidade e para a utilização do espaço público coletivo, como ruas e praças na
execução da triagem do material recolhido
pelos grupos. O relato abaixo retrata uma
prática dos grupos que atuam informalmente. Ele representa a história de um dos
grupos estudados.
O cenário mais marcante da apropriação
do espaço público do Largo São Francisco começa depois das 17h, quando, particularmente as praças tornam-se locais
de comercialização e beneficiamento de
papelão, papel e outros resíduos coletados em toda a região central. Uma
legião de catadores, com suas respectivas famílias, vai chegando, carregando montanhas de sacos de lixo em suas
carroças quase medievais. São verdadeiras tropas de seres humanos puxadores de carroças que depositam pilhas
de sacos de lixo no chão, e ali mesmo,
começam a fazer a separação da fração
comercializável. (Serpa, 2001, p. 51
apud Serpa, 2004)
A existência de espaço adequado de
triagem também é determinante para a utilização de maquinário. A disponibilidade de
balança, prensa, esteira, entre outros equipamentos, contribui para agregar valor ao
material coletado e aumentar a renda do
catador. O grupo que possui uma infraestrutura melhor tem condições de coletar,
triar, enfardar e comercializar uma quantidade maior de resíduos mais valorizados
pelo mercado, o que leva a aumentar sua
arrecadação.
Para ampliar a quantidade de material
coletado, alguns grupos costumam estabelecer parceria com empresas e condomínios,
que reservam os seus resíduos recicláveis
para que esses grupos os retirem, em dias
pré-determinados. Dentre os dados apurados, essa sistemática era praticada por 10
grupos (77%). Dentre esses 10 grupos, 2
grupos, além do material que retiravam,
também recebiam material de terceiros pela entrega voluntária nas sedes dos grupos.
Os outros 3 grupos recolhiam os resíduos
só passando de porta em porta. As parcerias
são, portanto, importantes elementos para a
sustentabilidade desses grupos, mas exigem
a formação de certo grau de capital social,
baseado em confiança adquirida (Kawachi et
al., 2008). Exige também o reconhecimento,
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
273
marina pacheco e silva e helena ribeiro
274
pelas empresas e pelos moradores desses
condomínios, dos catadores como cidadãos,
com algum direito, mesmo que restrito aos
resíduos descartados pela sociedade de consumo, em que pese eles não apresentarem
os requisitos para estarem inseridos nos benefícios do programa municipal.
As propostas de inclusão social e formação de cidadania dos catadores apontam
para a necessidade de que os grupos desenvolvam suas ações à luz dos pressupostos da economia solidária. Segundo Singer
(2004), a economia solidária pressupõe a
repartição dos benefícios de forma igual e
menos casual. Para Lechat (2002), a característica central da economia solidária é ser
meio de produção que preza o laço social
através da reciprocidade e adota formas comunitárias de propriedade. Essa não era a
realidade nos grupos pesquisados. Ainda estavam arraigadas nos participantes as ações
individuais, com dificuldades de incorporar
o coletivo. Provavelmente, essa difi culdade está ligada à necessidade premente de
subsistência. A gestão dos recursos auferidos era assim administrada: em 8 grupos (62%) era administrada pelo próprio
grupo; em 2 grupos não existiam recursos
coletivos, cada catador ficava com o valor
auferido pelo seu trabalho; em 1 grupo a
administração dos recursos era realizada
pelo coordenador que fazia as contas e a
divisão dos recursos; 1 grupo contratava
uma empresa de contabilidade para a administração dos recursos; e em outro grupo
a administração dos recursos era feita pela
entidade mantenedora.
O dinheiro arrecadado pelo grupo era
dividido pelas horas trabalhadas em 9 grupos (69%). Destes 9 grupos, 3 grupos tinham mais de uma forma de rateio (material
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
recolhido e produção), 2 grupos não tinham
rateio (cada participante ficava com o que
havia coletado e arrecadado), o outro grupo
era remunerado pelo dia trabalhado.
A atividade de catação, como já foi dito,
não era percebida pelos participantes como
um trabalho importante, sendo feita na falta
de oportunidade melhor de trabalho. Os catadores almejavam ser empregados, receber
salário fixo constante, o que não ocorre, ao
menos no início, num projeto de economia
solidária.
As retiradas mensais realizadas pelos
componentes dos grupos variavam dentro
do próprio grupo. A menor retirada mensal
era de R$197,00 e a maior de R$1.900,00.
A média de renda mensal obtida era de
R$630,00, o que correspondia a 1,65 salários mínimos. Esse valor médio arrecadado
era semelhante aos obtidos em outras pesquisas que abordaram o assunto. Na pesquisa da SMTRAB, 43% dos “carroceiros”
apresentavam renda entre 1 e 3 salários
mínimos; e na pesquisa de Besen (2006), a
renda média correspondia a quase 1,5 salários mínimos.
Quanto às despesas que tinham, variavam de grupo para grupo: 2 grupos
não tinham despesas, em 1 grupo as despesas eram assumidas pelo Convênio com a
SMADS, em 1 grupo uma parte delas era assumida também pelo convênio com SMADS
e nas outras o valor variava de R$315,00
a R$13.000,00. As despesas elevadas de
alguns grupos referiam-se a locação e manutenção de caminhão, locação de espaço,
uniformes, serviços públicos de água e eletricidade, encargos sociais.
Dentre os grupos pesquisados, apenas
2 estavam regulares com a previdência social, e recolhiam o INSS em nome de todos
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
os membros, em 1 grupo alguns membros
recolhiam por si e 10 grupos (77%) não
recolhiam o INSS de seus membros. De
maneira geral, constataram-se insegurança
e falta de amparo social desses grupos em
situações de doença, acidentes de trabalho e
aposentadoria. Sua situação de exclusão estaria evidenciada como a impossibilidade de
acesso a alguns direitos sociais básicos que,
em decorrência, leva os grupos nessa situação à condição de subcidadãos: sem direitos,
sem consumo e sem ferramentas para superar essa condição (Pochmann, s.d.).
A instância de tomada de decisões era a
Assembléia em 10 grupos (77%), em 2 grupos a entidade responsável pelo grupo participava das decisões e em 1 grupo as decisões
não incluíam os catadores (eram tomadas
pela entidade que administrava o convênio
com a SMADS, com o aval desta). As regras
estipuladas nos estatutos dos grupos de catadores estudados eram fruto da participação de poucos. De forma geral, os catadores
encontram dificuldade para se incorporarem
num novo modelo, em que sua participação
é requerida. Além do mais, muitas vezes estes estatutos são construídos isoladamente,
num processo anterior à integração e mobilização do grupo, pela necessidade de atender às exigências legais do cooperativismo,
conforme exposto por Cortegoso e Porto
(2008). Os resultados obtidos na pesquisa,
nesses quesitos, evidenciam a fragilidade
dos laços de confiança estabelecidos entre os
membros dos grupos, possivelmente também decorrente da sua alta rotatividade. A
rotatividade dos grupos pode indicar a busca por segurança, pelo emprego que garanta uma receita maior e que possa suprir as
necessidades básicas do catador, conforme
sugerido por Grimberg (2007). Segundo a
autora, um dos fatores que contribui para a
evasão, é que a retirada dos catadores avulsos é relativamente maior do que dos que
estão em associações. Entretanto, é importante que os laços dos grupos se fortaleçam
e que sua organização seja sólida. A capacidade de os grupos se organizarem é que
vai permitir que o Estado os incorpore em
políticas públicas (Marques, 1999).
Inserção em política
pública é alternativa
para adquirir cidadania?
O conceito de cidadania adotado neste artigo
prende-se às conquistas coletivas, impulsionadas por uma concepção de universalidade,
cujo fundamento é o direito de se ter direitos (Kowarick, 2000). Neste contexto, seria
o direito à inserção em políticas públicas de
coleta seletiva.
A análise das variáveis que demonstram o potencial de inserção dos grupos no
Programa de Coleta Seletiva incluía: o interesse dos grupos, as dificuldades levantadas
por eles, o conhecimento dos pré-requisitos
necessários, as vantagens e desvantagens da
participação no programa. A Tabela 1 retrata o interesse desses grupos.
Dentre as vantagens levantadas pelos
grupos em relação a participar do Programa
de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo, destacou-se o caminhão como a maior
vantagem. O uso do caminhão possibilita
recolher maior quantidade de resíduos e
contribui para preservar a saúde e minimizar os riscos a que os catadores estão expostos pelo trabalho precário em carrinhos
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
275
marina pacheco e silva e helena ribeiro
Tabela 1 – Interesse dos grupos em se inserirem no Programa de Coleta Seletiva
Variável
Têm interesse em se inserir no Programa da PMSP
Já mantiveram contato e oficializaram o interesse em se
inserirem no Programa de Coleta Seletiva
Estão tentando estabelecer contato
Nunca entraram em contato com a Limpurb para se inserirem
no Programa de Coleta Seletiva
Nunca tentaram, pois não são Cooperativas
Conhecem os requisitos para estabelecer parceria com o
Programa de Coleta Seletiva
276
e carroças, realizado com alto grau de periculosidade, insalubridade e sem reconhecimento social (Medeiros e Macedo, 2006).
Em segundo lugar, na lista das vantagens,
indicaram o material que as concessionárias
do serviço de limpeza pública levam para as
centrais de triagem operadas pelas cooperativas parceiras do programa da prefeitura. A
infraestrutura e o espaço físico apareceram
juntos em terceiro lugar. Segundo todos os
entrevistados, outra vantagem importante
de estarem incluídos no programa da prefeitura era a legalização do espaço. A existência de espaço físico adequado e legalizado é um fator relevante para que o grupo
se sustente. Este é objeto do Contrato de
Concessão dos Serviços divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público14 firmado
entre a Prefeitura de São Paulo e as empresas Loga e Ecourbis, que têm a concessão
para exploração do serviço de limpeza pública em São Paulo. No anexo III do contrato é estabelecido que as empresas deverão
construir 17 centrais de triagem, cabendo à
Prefeitura indicar as áreas disponíveis para
sua construção. Portanto, depende do comprometimento efetivo da Prefeitura e das
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
Nº de grupos
12
%
92
4
31
2
15
4
31
3
22
7
53
empresas para que os grupos tenham local e
infraestrutura adequados para desenvolver
a triagem de resíduos.
O quesito capacitação não representava um empecilho à não inserção desses grupos no programa municipal. Segundo Grimberg, o catador de rua, para integrar-se a
um processo de trabalho cooperativado, necessita passar por um processo de capacitação, que contribua para valorizar o trabalho
coletivo (Grimberg, 2007). O processo de
construção de um empreendimento economicamente solidário é lento e necessita ser
constante para que a formação e a qualificação sejam incorporadas e as atitudes mudadas (Mello, 2005).
A participação no programa municipal
pressupõe a capacitação dos catadores envolvidos. No caso dos grupos entrevistados,
apesar de não participantes do programa
municipal, apenas 1 não havia recebido nenhum tipo de capacitação. Dos demais, 10
grupos receberam capacitação administrativa e gerencial, 3 grupos receberam qualificação profissional para atuar com a reciclagem, 6 grupos capacitação jurídica, 9 grupos
foram capacitados na área de organização e
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
integração para o trabalho. Dentre os outros
cursos realizados, 3 grupos citaram o de cooperativismo, um grupo de autogestão e um
grupo de logística. Relacionando a participação nos cursos com o tempo de existência
do grupo, pode-se verificar que os grupos
que mais tiveram capacitação tinham 10, 13
e 6 anos de existência. Um dos grupos, que
tinha 18 anos de existência, informou que
continua em processo de capacitação permanente, sendo o único que relatou esse fato.
Assim, a formação de capital humano não era uma prerrogativa dos incluídos
no programa municipal. Entretanto, como
afirma Pochmann (2002), as práticas do
empreendedorismo se desenvolvem de forma conflituosa, e trabalhar esses conflitos
é um modo de aprimoramento. Mas, para
que haja esse aprimoramento, é necessário
o acompanhamento, o monitoramento e a
instrumentalização constantes. A inclusão
num programa público poderia prover essa
constante instrumentalização.
Dentre as desvantagens de participar do
programa municipal, as maiores preocupações eram com a perda da autonomia por
parte dos grupos e com a mudança de gestão administrativa na Prefeitura, pois essas
mudanças sempre interferem no gerenciamento dos grupos.
Outra desvantagem apontada foi a exigência legal de que o grupo tenha 20 membros para se constituir em cooperativa e
poder estabelecer parceria com a prefeitura.
Alguns grupos, quando questionados sobre
o número de participantes, relataram a dificuldade em manter esse número mínimo
exigido:
[...] houve uma redução (do número de
catadores), queda do material, muitas
pessoas acabam se tornando catador
avulso, tem vantagens, o catador acaba
pegando R$30,00, R$40,00, pega móveis, alimentos e roupa.
A pesquisa mostrou que os grupos,
para se sustentarem, necessitam usufruir
das vantagens que o programa propicia às
Centrais de Triagem, como a legalização do
espaço, a utilização do transporte motorizado (minimizando os riscos e os inconvenientes do uso da carroça), o custeio da infraestrutura (reduzindo as despesas), o que,
consequentemente, possibilitaria o aumento
da renda dos catadores.
Concluindo
A cidade de São Paulo conta com 94 grupos
ou cooperativas organizadas que atuam com
a catação de resíduos sólidos. Destes, só 15
são parceiros da Prefeitura na gestão das
Centrais de Triagem. Os outros 79 necessitam de apoio para se formalizarem, para se
constituírem em empreendimentos economicamente solidários, que sejam reais instrumentos de exercício de cidadania em prol de
seus direitos. Dentre esses direitos estariam
a geração de trabalho e renda, contribuindo
para elevar a condição de vida de seus membros, capacitando-os para o trabalho coletivo, com a divisão equitativa das tarefas e
dos recursos auferidos. O reconhecimento e
a valorização desses grupos de catadores, da
sua capacidade de autogestão e de participação ativa nas decisões e implementação de
políticas públicas de resíduos sólidos urbanos tornaria os membros do grupo sujeitos
aptos a definir os seus rumos, os dos seus
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
277
marina pacheco e silva e helena ribeiro
empreendimentos, conscientes do seu papel
na conservação dos recursos do ambiente e
na melhoria da cidade.
Dentre os resultados obtidos, pode-se
afirmar que a falta de apoio, o desconhecimento das premissas da economia solidária
e a necessidade premente de subsistência
dos partícipes do grupo contribuíram para
que a prática do coletivo seja bastante restrita entre os grupos de catadores autônomos envolvidos na coleta seletiva na cidade
de São Paulo. Muitas vezes, sua característica de grupo se restringe à utilização de um
mesmo espaço físico e, mais raramente, de
um mesmo maquinário, quando existente.
O estigma de sujeira que os catadores
carregam, a desconsideração que a sociedade tem das atividade que eles executam
e a não percepção de que o trabalho deles
contribui para a melhoria da qualidade de
vida da cidade podem ser revertidos. A coleta seletiva pode ser uma ferramenta de
inclusão dos catadores, um mecanismo socializador, que possibilita o ganho financeiro
e transforma os catadores em cidadãos.
A falta de uma ação sistematizada por
parte da Prefeitura Municipal de São Paulo
junto aos grupos de catadores autônomos
organizados tem sido um dos obstáculos para a ampliação do Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de São Paulo.
A legislação vigente contém normas
que viabilizam a efetividade do programa,
objetivando a ampliação da coletas de resíduos recicláveis, a diminuição de descartes
nos aterros e o aumento da participação
dos grupos de catadores, mas isso não é
suficiente.
278
Marina Pacheco e Silva
Assistente social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, mestre em Saúde Pública
pela Universidade de São Paulo, assistente social da Prefeitura do Município de São Paulo,
Secretaria Municipal do Trabalho (São Paulo, Brasil).
[email protected]
Helena Ribeiro
Geógrafa pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, livre-docente em Saúde Pública
pela Universidade de São Paulo, professora titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo do Departamento de Saúde Ambiental (São Paulo, Brasil).
[email protected]
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
Notas
(1) Apostila 2006 – Coleta Seletiva Cidade de São Paulo – Programa Coleta Seletiva – 2006.
(2) http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/orcamento/orcamento_2008/detalhamento_despesa_
mai2008.pdf
(3) O contrato destina-se à coleta de lixo convencional na cidade, o custeio das Centrais de Triagem é
objeto de outra dotação orçamentária.
(4) http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/infogeral.php, acessado em 14.4.2008.
(5) A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Faculdade de Saúde Pública.
(6) As Centrais de Triagem são vinculadas à Prefeitura de São Paulo e administradas por cooperativas
de catadores que possuem um convênio com o Programa de Coleta Seletiva da Prefeitura de
São Paulo. São ao todo 15 Centrais de Triagem que estão situadas em diferentes pontos da cidade. Elas ocupam terrenos municipais e/ou locados pela municipalidade para esse fim. Além do
espaço, essas centrais têm toda a infraestrutura mantida pela Prefeitura.
(7) Apostila 2006 Coleta Seletiva Cidade de São Paulo, Limpurb – 2006, pg. 6.
(8) Plataforma Lixo e Cidadania para São Paulo, Instituto Pólis, 2000.
(9) Pesquisa realizada pela FIPE- Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, dados de fevereiro de
2000.
(10) Projeto Formação Cidadã, Capacitação Ocupacional e Aprendizagem de Utilidade Coletiva no
Município de São Paulo, Prefeitura de São Paulo, Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e
Solidariedade – SDTS, em Parceria com a Unesco – convênio 914BRA3000, 2002.
(11) Plataforma de Educação Socioambiental do Programa Coleta Seletiva solidária, Instituto Polis,
março 2003.
(12) Programa de Coleta Seletiva e Ecopontos, Relatório Mensal, março de 2007. Prefeitura da Cidade de São Paulo , Secretaria de Serviços, LIMPURB – Departamento de Limpeza Urbana, Divisão
de Coleta seletiva e Ecoponto.
(13) Agenda de Ações 2008 – Política Pública de Coleta Seletiva com inclusão de catadores e catadoras – Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de São Paulo, janeiro de 2008.
(14) O Contrato de Concessão dos Serviços Divisíveis de Limpeza Urbana em Regime Público foi firmado entre a PMSP e as empresas Loga e Ecourbis em setembro de 2004.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
279
marina pacheco e silva e helena ribeiro
Referências
ANGELO, I. (2007). “A formiga e o lixo”. In: FERREIRA, M.B. (org.). A vida que a gente quer depende do
que a gente faz. São Paulo, Ecofuturo.
BESEN, G.R. (2006). Programas Municipais de Coleta Seletiva em parceria com organizações de catadores na região Metropolitana de São Paulo: desafios e perspectivas. Dissertação de Mestrado.
São Paulo, FSP-USP.
CALDERONI, S. (1999). Os bilhões perdidos no lixo. São Paulo, Humanitas.
CAMARGO, J.M. (s.d.). Assimetria de Informações e Desemprego. Disponível em: http://www.banrep.
org/economia/semin-lucha-contra-desempego/camargo.pdf. Acesso em: 30 mar 2009.
CORTEGOSO, L. e PORTO, V.C.F.C. (2008). Comportamento humano e normas de conduta em economia solidária: relato de experiência. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_a
rttext&pid=S0102-37722007000400011. Acesso em: 30 jun 2008.
FOLHA DE S. PAULO (2000). SP produz 15 milhões de quilos de lixo por dia. Disponível em: http://
www1.folha.uol.com.br/fsp/folhatee/fm0506200002.htm. Acessado em 15 maio 2008.
________ (2002). Para catadores, organização é desafio. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.
br/fsp/cotidian/ff1102200203.htm. Acessado em 14 maio 2008.
GRIMBERG, E. (2007). Coleta Seletiva e inclusão de catadores: Fórum do Lixo e Cidadania da Cidade de
São Paulo. Experiências e Desafios. São Paulo, Instituto Pólis.
280
HUERTAS, M. R. (1997). Pitta emite novos títulos e remaneja verbas. Folha de S. Paulo. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff020939.htm.>. Acesso em 15 maio 2008.
KAWACHI, I; SUBRAMANIAN, S.V. e KIM, D. (2008). Social Capital and Health. New York, Springer.
KOWARICK, L. (2000). Escritos urbanos. São Paulo, Editora 34.
LECHAT, N. M. P. (2002). Economia social, economia solidária, terceiro setor: do que se trata? Disponível em: < http://revistaseletronicas.pucrs.br/civitas/ojs/index. php/civitas/article/view File/
1/1673>. Acesso em 1 jul 2008.
LO PRETE, R. O lixo em dois capítulos. Folha de S. Paulo. Disponível em: http://www1folha.uol.com.br/
fsp/ombudsma/om1510200002.htm>. Acesso 16 maio 2008.
LUFT, N. A. (2007). Educação ambiental e coleta seletiva com inclusão social. Monografia, Recifran.
MARQUES, E. C. (1999). Redes Sociais e Instituições na construção do Estado e da sua permealidade.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 14, n. 41. Disponível em: http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S0102-69091999000300004&script=sci_arttext&tlng=pt. Acesso em 7 jan. 2008.
MEDEIROS, L. F. R. e MACEDO, K. B. (2006). Catador de material reciclável: uma profissão para além
da sobrevivência. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v18n2/08.pdf. Acesso em 30
jun 2008.
MELLO, S. L. et al (ed.). ( 2005). Autogestão e Economia Solidária – Uma nova metodologia. Brasília DF,
Ministério do Trabalho e Emprego.
OLIVEIRA, R. T. (1997). A reciclagem dará certo. Folha de S. Paulo. São Paulo, 19.08.1997. Disponível
em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff190809.htm>. Acesso em: 15 maio 2008.
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
grupos de catadores autônomos na coleta seletiva do município de são paulo
POCHMANN, M. (s.d.). A exclusão Social no Brasil. Disponível em: http://www.unioeste.br/cursos/
cascavél/economia/xv-cbe/001.pdf>. Acesso em 19 fev 2008.
________ (org.). (2002). Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade: novos caminhos para a inclusão
social. São Paulo, Cortez.
RIBEIRO, H. et al. (2005). Programas Municipais de Coleta Seletiva de Lixo como fator de sustentabilidade dos sistemas públicos de Saneamento ambiental na Região Metropolitana de São Paulo
– Coselix, Relatório Final, São Paulo, Faculdade de Saúde Pública da USP/Centro Universitário
Senac.
RODRIGUES, L. F. e CAVINATO, V. M. (1997). Lixo de onde vem? Para onde vai?. São Paulo, Moderna.
SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. Lei Municipal n. 13.478, de 30 de dezembro de 2002. Dispõe sobre
a organização do Sistema de Limpeza Urbana do Município de São Paulo; cria e estrutura seu
órgão regulador; autoriza o Poder Público a delegar a execução dos serviços públicos mediante concessão ou permissão; institui a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD, a Taxa de
Resíduos Sólidos de Serviços de Saúde – TRSS e a Taxa de Fiscalização dos Serviços de Limpeza
Urbana – FISLURB; cria o Fundo Municipal de Limpeza Urbana – FMLU, e dá outras providências.
Diário Oficial do Município, São Paulo.
________ Lei Municipal n. 13.430, de 13 de setembro de 2002. Dispõe sobre o Plano Diretor Estratégico. Diário Oficial do Município, São Paulo.
________ Secretaria Municipal do Trabalho.( s.d.). Atlas do Trabalho e desenvolvimento da cidade de
São Paulo. São Paulo.
SERPA, M. A. N. (2004). O fenômeno de ocupação dos espaços públicos na cidade de São Paulo – Estudo
do Largo São Francisco. Dissertação de Doutorado. São Paulo, PUC.
SINGER, P. (2004). Desenvolvimento capitalista e desenvolvimento solidário. Disponível em: <http://
www.scielo.br/scielo.br.php?scripit=sci_arttext&pid =S0103-40142004000200001&Ing=en&
nrm=iso>. Acesso em 8 jan 2008.
SMTRAB – Secretaria Municipal do Trabalho. (2005). Perfil dos Carroceiros na cidade de São Paulo.
São Paulo.
TOPALOV, C. (1979). La urbanizacion capitalista algunos elementos para su análisis. México, Editorial
Edicol.
TORRES, H. G. (2004). Segregação residencial e políticas públicas: São Paulo na década de 1990. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 19, n. 54, pp. 41-55.
VIEIRA, M. A. C. et al (1994). População de rua : quem é, como vive, como é vista. São Paulo, Hucitec.
________ (1995). “Perfil da população de rua São Paulo”. In: ROSA, C. M. M. (org.). População de rua:
Brasil e Canadá. São Paulo, Hucitec.
VIVEIROS, M. (2001). Lixo reciclado gera renda para catadores. Folha de S. Paulo. Disponível em: http://
www1folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1102 2200201.htm. Acesso em 14 maio 2008.
Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009
cadernos metrópole 21
pp. 261-279
10 sem. 2009
281
Normas para publicação de artigos
Contribuições
Os artigos recebidos para publicação nos Cadernos Metrópole são submetidos à apreciação
do Coletivo Editorial, ao qual caberá a decisão final sobre a oportunidade de publicação.
O Coletivo Editorial da revista comunica aos autores a decisão sobre a publicação, mas não
se compromete a devolver originais não publicados.
A pauta de cada número é organizada separadamente, não havendo, portanto, compromisso de publicação resultante da data da remessa do artigo.
A publicação de um artigo não significa que o Conselho Editorial esteja de acordo com o
seu conteúdo. Da mesma forma, a recusa não significa desaprovação. Em ambos os casos, a
decisão resulta de uma seleção entre os textos submetidos à revista, que leva em conta o espaço
disponível e a oportunidade do tema.
A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada
autor recebe 3 exemplares do número em que for publicado seu trabalho.
Apresentação dos originais
Os trabalhos devem ser encaminhados para a Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São
Paulo – SP – Brasil, gravados em CD (artigo e folha de rosto) e em 2 (duas) vias impressas, sem
identificação do autor, digitadas em espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo,
no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas. Devem ter um resumo de até 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua
em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave.
Os textos devem ser em Word; tabelas e gráficos em Excel; imagens em formato TIF, com
resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm , sendo que os gráficos e imagens
devem ser em tons de cinza.
Os créditos do(s) autor(es) serão colocados em uma folha de rosto com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade,
estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência
As referências bibliográficas deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções:
Livros
AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
Capítulos de livros
AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
Exemplo:
BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar.
Artigos de periódicos
AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo.
Exemplo:
TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28.
Trabalhos apresentados em eventos científicos
AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número,
ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final.
Exemplo:
SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle
social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL
ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília,
MPAS/SAS, pp. 193-207.
Teses, dissertações e monografias
AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição.
Exemplo:
FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de
gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH.
Textos retirados de Internet
AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso.
Exemplo:
FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em 8 set. 2005.
Dúvidas e sugestões: [email protected]
Onde adquirir
Cadernos Metrópole
Raquel Cerqueira
(11) 3368.3755 - 9931.9100
[email protected]
Porto Alegre - RS
● FEE - Rosetta Mammarella
(51) 3216.9028
[email protected]
Belém - PA
● UFPA - Livraria do Campus Univ. do Guamá
(91) 3201.7351 - 3201.7357
[email protected]
Recife - PE
● UFPE - Maria Angela de Almeida Souza
(81) 3421.3628
[email protected]
Belo Horizonte - MG
● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/MG
●
Rio de Janeiro - RJ
Luciana Teixeira de Andrade
(31) 3462.2900
● Observatório das Metrópoles - UFRJ - Beth
Observatório de Políticas Urbanas da Proex - PUC/MG
Luciana Teixeira de Andrade
(31) 3319.4588
[email protected]
● Susanne Bach Comércio de Livros Ltda.
Curitiba - PR
- Rosa Moura
(41) 3351.6324
[email protected]
● UFBA - Gilberto Corso Pereira
● Ipardes
Fortaleza - CE
● UFCE - Luis Renato Pequeno
(85) 3366.9864
[email protected]
Goiânia - GO
● UCG - Aristides Moysés
(62) 3946.1191
[email protected]
(21) 2598.1932 - (21) 2598.1950 fax
[email protected]
(21) 2573.2512
[email protected]
Salvador - BA
(71) 3332.1980 / 9955.1015
[email protected]
São Paulo - SP
● B.K.S. Livraria Especializada
Antonio Ricarte
(11) 3129.5176 Dafam
● Fupam - Fundação para a Pesquisa Ambiental
(11) 3554.6060 - Ingrid
[email protected]
● Instituto Pólis
(11) 2174.6800
Maringá - PR
● UEM - Ana Lucia Rodrigues
(44) 3261.4287
[email protected]
Natal - RN
● UFRN - Janaína Maria da C. Silveira
(84) 3215.3836
[email protected]
● Livraria Cortez
(11) 3873.7111
[email protected]
● Livraria Moisés Limonad
(11) 3871.2023
[email protected]
● Programa de Pós-Grad. em C. Sociais - PUC/SP
(11) 3670.8609
[email protected]
Cadernos Metrópole
vendas e assinaturas
Exemplar avulso: R$20,00
Assinatura anual (dois números): R$36,00
Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3,
ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São
Paulo – SP – Brasil.
Telefax: (11) 3368.3755 Cel: (11) 9931.9100
[email protected]
Exemplares nºs _________
Assinatura referente aos números _____ e _____
Nome ___________________________________________
Endereço ________________________________________
Cidade ____________________
UF _____ CEP _________
Telefone (
Fax (
) _______________
) _____________
E-mail __________________________________________
Data ________
Assinatura __________________________

Documentos relacionados