Anais do V Colóquio Internacional de

Transcrição

Anais do V Colóquio Internacional de
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ARMINDO BIÃO
(Organizador)
ANAIS DO V COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ETNOCENOLOGIA
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade - GIPE-CIT
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
25 a 29 de agosto de 2007
Salvador - Bahia
Brasil
PPGAC
Prog rama de Pós-gra duaç ão em Artes Cênica s
1
Ficha técnica
Organização:
Armindo Bião
Editoração:
Nádia Pinho
Normalização:
Poliana Nunes
Revisão:
Poliana Nunes
Impressão:
Fast Design
Biblioteca Nelson de Araújo - UFBA
C719
Colóquio Internacional de Etnocenologia (5. : 2007 : Salvador, BA).
V Colóquio Internacional de Etnocenologia / Universidade Federal da Bahia,
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas; [Organizado por Armindo Jorge de
Carvalho Bião]. – Salvador : Fast Design, 2007.
230 p.; il.
Realizado no Centro de Treinamento de Líderes em Itapuã da Arquidiocese de
Salvador, Bahia, Brasil.
1. Artes Cênicas - Congressos. 2. Etnocenologia. I. Título. II. Universidade
Federal da Bahia. Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas.
CDD - 792
 2008, Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida LTDA.
Todos os direitos autorais deste material são de propriedade dos Autores e da Fast Design - Prog. Visual Editora e Gráfica Rápida
LTDA. Não é permitido a reprodução e transmissão total ou parcial, sejam quais forem os meios utilizados: eletrônico, mecânico,
fotográfico ou quais quer outros.
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Sumário
1. Anais.............................................................................................................................................7
2. Participantes...............................................................................................................................11
3. Comunicações
Imprevisto na Rua: A figura do Mateus na Brincadeira do Cavalo Marinho
Por Ana Caldas Lewinsohn........................................................................................................... 21
Etnotextos como pretextos para a criação dramatúrgica e cênica
Por Antonia Pereira........................................................................................................................ 31
Um léxico para a Etnocenologia: Proposta preliminar
Por Armindo Bião.......................................................................................................................... 43
Una Brújula em el Teatro Contemporáneo : La tensión y sus mediaciones
Por Carlos Alba Peinado............................................................................................................... 51
O Ritual e o Lúdico nas Tradições Culturais: Poéticas e Performances
Por Célia Conceição Sacramento Gomes..................................................................................... 61
Performance, tecido performativo, cultura orgânica do espaço
Por César Huapaya........................................................................................................................ 69
Poder, Política, Manifestações Populares e extensão turística no litoral norte da Bahia
Por Christine Douxami...................................................................................................................75
“O Pagador de Promessas” (Brasil 1962). Uma visão polissêmica do clássico de Dias
Gomes adaptado ao cinema por Anselmo Duarte: A Etnocenologia, seus motivos e
estratégias e o processo de desconstrução
Por Elizabeth Firmino Pereira...................................................................................................... 81
“O combate dos bastões no carnaval de Trinidad”
Por Florabelle Spielmann........................................................................................................... 91
Pré-expressividade, inatismo e universalidade: Problematizações para pensar o
trabalho do ator
Por Gilberto Icle...............................................................................................................................93
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A Trova Pampeana inserida no universo cultural tradicionalista gaúcho e sua Vocalidade
Poética
Por Gisela Reis Biancalana (UFSM – Unicamp)............................................................................ 99
Música, Dança e Êxtase: Notas etnocenológicas de um rito(-espetáculo) sufi
Por Giselle Guilhon Antunes Camargo.......................................................................................... 105
Reflexão sobre a metáfora do conceito de rede no treinamento e na transmissão do
trabalho do ator
Por Inês Alcaraz Marocco................................................................................................................117
A Lavagem para francês ver – Reinterpretação e jogo identitário na lavagem da Madalena
em Paris – França
Por Ingrid Bueno Peruchi.............................................................................................................. 127
A etnocênologia na França
Por Jean Marie Pradier................................................................................................................... 133
A etnocenologia poética do mito
Por João de Jesus Loureiro........................................................................................................ 143
Dois mundos em convivência na cena contemporânea: A Brasília pós-moderna e a
afirmação das Tradições nas Folias do Divino e nas Caretadas de São João
Por Jorge das Graças Veloso.....................................................................................................151
O lugar teatral como agente do processo teatral
Por José Simões de Almeida Jr..................................................................................................161
Etnocênologia e antropologia dos usos sociais e culturais do corpo: A troca
necessária
Por Laure Garrabe....................................................................................................................... 169
A Dramaturgia da Memória na Cena Contemporânea do Teatro-dança
Por Lícia Moraes...........................................................................................................................175
Etnocenologia em Verso Encantado e Cordel
Por Makarios Maia Barbosa.......................................................................................................179
A Poética Ritual de “Gestos Cantados”: Tradição e natureza na criação cênica
Por Márcia Virgínia Araújo.......................................................................................................... 189
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A etnocenologia como desígnio de um novo caminho para a pesquisa acadêmica –
Ampliação do modo e do lugar de olhar a cena contemporânea
Por Miguel de Santa Brigida.......................................................................................................... 199
Treinamento Pré-expressivo, Biomecânica e Ações Físicas – Uma abordagem à
Etnocenologia e a Antropologia Teatral pelo Labô-Espetáculo
Por Murilo Freire............................................................................................................................. 205
Os Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso: Uma abordagem etnocenológica do
Festival Folclórico de Parintins
Por Ricardo Biriba......................................................................................................................... 213
A projeção de uma identidade nacional, literatura e cinema do Brasil (1902 -1998):
O caso do nordeste
Por Sylvie Debs................................................................................................................................
225
4. AS COMISSÕES.......................................................................................................................... 227
5. A ETNOCENOLOGIA......................................................................................... ....................... 228
6. PROGRAMAÇÃO........................................................................................................................ 229
7. A METODOLOGIA..................................................................................................................... 230
5
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA
Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e
Teatralidade - GIPE-CIT
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC
V COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ETNOCENOLOGIA
25 a 29 de agosto de 2007
Centro de Treinamento de Líderes em Itapuã da Arquidiocese de Salvador, Bahia, Brasil
DOCUMENTO FINAL
Os 60 pesquisadores, estudantes, artistas e universitários, provenientes das seguintes
Universidades e Instituições de pesquisa:
Do Brasil:
1. Universidade Federal da Bahia - UFBA;
2. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG;
3. Universidade de Brasília - UNB;
4. Universidade Federal do Pará - UFPA;
5. Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS;
6. Universidade Federal do Maranhão - UFMA;
7. Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP;
8. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC;
9. Universidade Federal de Pernambuco – UFPE;
7
10. Universidade Federal de Santa Maria - Rio Grande do Sul - UFSM;
11. Universidade de Sorocaba, São Paulo - UNISO;
12. Universidade do Estado da Bahia - UNEB;
13. Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia – UEFS;
14. Universidade Estadual de Campinas, São Paulo – UNICAMP;
15. Fundação Brasileira de Teatro Dulcina de Morais, Brasília;
16. Faculdades Jorge Amado, Bahia;
17. Associação Labô-Espetáculo para Pesquisa, Formação e Criação Teatral, Pernambuco;
Do exterior:
18. Université Paris 8 Saint Denis, França;
19. Université Paris 10 Nanterre, França;
20. Université Franche-Comté, França;
21. Université de Strasbourg, França;
22. Université Lyon 2, França;
23. École des Hautes Études em Sciences Sociales, França;
24. Maison des Cultures du Monde, França;
25. Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord, França;
26. Maison des Sciences de l’Homme Nicolas Ledoux, França;
27. Instituto Politécnico de Leiria, Portugal;
28. Universidad de Alcalá de Henares, Espanha;
Participantes do V Colóquio Internacional de Etnocenologia, realizado, de 25 a 29 de
agosto de 2007, na cidade de Salvador, Bahia, numa iniciativa do Grupo Interdisciplinar de
Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade - GIPE-CIT e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas – PPGAC, da Universidade Federal da Bahia –
UFBA, com apoio do Programa de Apoio à Pós-Graduação – PROAP, da CAPES, da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB, da Universidade do Estado da Bahia –
UNEB, do Instituto Politécnico de Leiria, da Maison des Cultures du Monde, das Universidades de Paris 10 Nanterre e Paris 8 Saint Denis e dos Accords em Régions de Coopération
Universitaire et Scientifique – ARCUS 7;
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Se organizaram em três grupos de “avaliação e crítica”, cada um com uma média de 11
participantes, dedicados às temáticas dos “Imaginários”, das “Poéticas” e das “Cenas”, e
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
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em um grupo de “vivência e criação’, cujas sessões de trabalho reuniram a cada vez, em
média, 25 pessoas;
Se integraram em vivências comunitárias com os grupos artísticos Male Debalê e
“Ganhadeiras”, do entorno do local sede do evento (Centro de Treinamento de Líderes
da Arquidiocese de Salvador, localizado entre os bairros de Pedra do Sal, Abaeté e Itapuã);
Se reuniram em seis sessões plenárias, com uma média de 40 presentes a cada vez, e
duas reuniões de trabalho, estas dedicadas ao Projeto ARCUS e ao Grupo de Trabalho
“Etnocenologia”, da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – ABRACE;
Apresentaram e discutiram 33 comunicações;
Decidiram produzir o presente documento, contendo as seguintes recomendações:
Para a comissão organizadora do evento:
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Enviar o presente documento a todas as Instituições que realizaram e apoiaram o evento, agradecendo-lhes o estímulo e informando-lhes sobre o sucesso do Colóquio;
Iniciar contatos com as Instituições parceiras, no sentido de detalhar projeto para a
realização do VI Colóquio Internacional de Etnocenologia, com a proposição preliminar
da temática “A voz do corpo, o corpo da voz: artes e ciências do espetáculo”, na cidade
de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, no mês de julho de 2009, inserida na programação do Ano da França no Brasil e constando de conferências plenárias, mesas redondas,
grupos de trabalho para a apresentação e discussão de comunicações, oficinas, apresentações artísticas, exposições, estúdio para a apresentação de audiovisuais, lançamento e comercialização de publicações e obras audiovisuais;
Encaminhar, a título de informação e divulgação, à diretoria da Associação Brasileira de
Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – ABRACE, representada neste Colóquio
por seu presidente, solicitando-lhe distribuir a todos os associados este documento,
que registra a primeira ação presencial efetiva do Grupo de Trabalho “Etnocenologia”,
criado na IV Reunião Científica da ABRACE, realizada em junho de 2007, em Belo Horizonte, Minas Gerais;
Para todos os presentes:
•
Fazer chegar até seus grupos de pesquisa e diversas instâncias institucionais seu
testemunho pessoal da realização deste Colóquio;
•
Divulgar o seguinte calendário de eventos, identificados com questões de interesse para a
etnocenologia
9
o Em outubro de 2007, em Paris 10, Colóquio franco-brasileiro (ARCUS) sobre
Ariano Suassuna;
o Em novembro de 2007, na Maison des Cultures du Monde, Jornada em
homenagem a Jean Duvignaud;
o Em dezembro de 2007, na UNIRIO, Colóquio franco-brasileiro (ARCUS) sobre
“o corpo e suas traduções”;
o De 21 a 23 de janeiro de 2008, em Paris, Colóquio internacional sobre a presença
das vanguardas norte-americanas na França;
o De 10 de março a 18 de abril de 2008, na Maison des Cultures du Monde, em
Paris, Festival de l’imaginaire;
o Em setembro de 2008, em Paris 10, Université d’été internacional sobre
“métissages” (sous réserve);
o Em outubro de 2008, em Belo Horizonte, V Congresso da ABRACE;
•
Reconhecer, no momento de realização deste Colóquio, a presença predominante da
França e do Brasil, como principais espaços de criação e produção em etnocenologia,
bem como a existência de importantes diferenças entre suas respectivas estruturas
universitárias e de pesquisa, o que acarreta outras diferenças, no âmbito epistemológico e
metodológico; correspondendo, ainda, a distintos resultados das próprias pesquisas
desenvolvidas, particularmente no que concerne a escolha de seus objetos, posto que, no
Brasil, destaca-se o interesse por sua própria cultura e pela criação artística, como parte
do próprio percurso metodológico;
•
Aprofundar a reflexão e a discussão epistemológica sobre a proposição da etnocenologia,
suas noções teóricas de base, perspectivas metodológicas de articulação entre teoria e
prática, arte e ciência, criação e crítica, e, sobretudo, a grande riqueza transdisciplinar que
lhe permite, enquanto uma forma de abordagem nova, e não, estritamente, uma nova
disciplina, dialogar com múltiplos campos do saber, contribuindo, assim, para seu
enriquecimento mútuo;
•
Incluir este documento na publicação dos anais do V Colóquio Internacional de
Etnocenologia.
Salvador, 29 de agosto de 2007
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
PERFIS
DOS
PARTICIPANTES
Adailton Silva dos Santos é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), sob a orientação do professor Dr.
Armindo Jorge de Carvalho Bião, em co-tutela em Paris 10 Nanterre com Idelette MuzartFonseca dos Santos. Professor de Artes e Metodologia Científica do Campus XIII da
Universidade do Estado da Bahia.
Alexandra Gouvêa Dumas é atriz, arte-educadora, produtora e pesquisadora de teatro.
Mestre em Artes Cênicas pelo PPGAC- UFBA (2005), é graduada em Educação Física (1994)
e Teatro (2003) pela UFBA, com curso de Especialização (Lato Sensu) em Estudos do Lazer/
Educação Física (1998)- UESB. Atualmente é doutoranda em Artes Cênicas pela UFBA.
Ana Caldas Lewinsohn é atriz, formada em Artes Cênicas pela Unicamp e Mestranda em
Artes Cênicas, no Instituto de Artes da Unicamp; e bolsista da FAPESB.
Antonia Pereira Bezerra é atriz e dramaturga, graduada em Licenciatura em Artes Cênicas
pela Universidade Federal da Bahia (1993); Mestre em Litterature Française (DEA) pela
Université De Toulouse Le Mirail (1994); Doutora em Lettres Modernes - Université De Toulouse
Le Mirail (1999) e Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université Du Québec À Montréal. Também foi segunda secretaria eleita para o biênio 2000/2002 da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós Graduação em Artes Cênicas. Atualmente é professora adjunta da Universidade
Federal da Bahia, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC/
UFBA) e pesquisadora do GIPE-CIT e CNPQ (Bolsa Produtividade Pesquisa). Tem experiência
na área de Teatro e Dramaturgia, com ênfase em Literatura Comparada, atuando principalmente nos seguintes temas: drama, ator, pesquisa em artes e criação teatral.
Armindo Jorge de Carvalho Bião é ator e encenador, licenciado em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia - UFBA (1975), especialista em Planejamento para o Ecoturismo Cultural pela SUDENE (1978), mestre em Interpretação Teatral pela Universidade de Minnesota
(EUA, 1983), mestre (1987) e doutor (1990) em Antropologia Social e Sociologia Comparada
pela Universidade René Descartes Paris 5 Sorbonne (França), com aproximadamente 70
orientações concluídas, entre as quais 16 mestrados e oito doutorados; Fulbright scholar,
Chevalier des Arts et des Lettres da República Francesa, bolsista de produtividade em pesquisa e consultor do CNPq; professor convidado da Université de Paris 8 Saint Denis (França, 1997/ 2000), da Université Ouverte des Cinq Continents (Mali, desde 2005) e da Cátedra
Valle-Inclán/ Lauro Olmo (Universidad de Alcalá de Henares, Espanha, 2007/ 2008); primeiro
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coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA (1997/ 2003), primeiro presidente da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas ABRACE (1998/ 2002), diretor geral da Fundação Cultural do Estado da Bahia (2003/ 2006),
ex-bolsista e consultor da CAPES; coordena o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão
em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade - GIPE-CIT, desde 1994, e atua nas áreas
das Artes do Espetáculo (Etnocenologia, Interpretação Teatral, Teatro de Cordel, Treinamento com Máscaras) e da Cultura Baiana (Matrizes Estéticas e Relações Internacionais).
Carlos Alba se doctora en 2004 en «Teoría, Historia y Práctica del Teatro» por la Universidad
de Alcalá con su tesis Ángel Facio y los Goliardos. Teatro Independiente en España (19641974). Ha sido lector de español en la Universidad Tribhuvan de Kathmandu (Nepal) entre
2000 y 2002 y en la Universidad del Punjab de Lahore (Pakistán) en 2004. Sus estancias por
Oriente le han llevado a profundizar en la influencia significativa que los paradigmas
orientales han tenido en el desarrollo del teatro contemporáneo. En 2005 trabajó como
doctor-investigador en la Universidad de Alcalá en un proyecto sobre la recepción teatral
en Madrid durante los años veinte. Desde el otoño de 2006 es profesor titular interino del
Instituto Politécnico de Leiria (Portugal) donde se encarga de coordinar los estudios de
Máster en Artes Escénicas.
Célia Conceição Sacramento Gomes é graduada em Psicologia pela Universidade Federal
da Bahia. Mestre em Artes Cênicas - Universidade Federal da Bahia. Especialista em
Psicodrama pela Federação Brasileira de Psicodrama - FEBRAP, atuando como Professora
Titular de Psicodrama da PROFINT - Profissionais Integrados, instituição credenciada pela
FEBRAP. Psicóloga da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, com experiência na área de
Gestão de Pessoas, com ênfase no trabalho com Grupos. Publicou o livro Teatralidade e
Performance Ritual dos Folguedos da Ilha de Itaparica, uma narrativa poética de histórias e
folguedos da Região do Recôncavo Baiano (2004). Integrante do Dicionário de Autores
Baianos, publicado pela Secretaria da Cultura do Estado da Bahia (2006). Participou da VII
Bienal do Livro na Bahia como conferencista do tema Folguedos Populares (2005). Como
Pesquisadora Colaboradora tem participado do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e Teatralidade - GIPE-CIT com foco de interesse
nas manifestações culturais e suas representações no contexto da Etnocenologia e da Antropologia das Populações Afro-Brasileiras.
Christine Douxami est Maître de Conférences en Arts du spectacle à l’Université de
Franche-Comté - Professora em artes cênicas na Universidade de Franche-Comté, França.
Cláudio Cajaiba é ator e professor da Escola de Teatro da UFBA. Pós-doutor em Artes Cênicas pela FAPESB-PPGAC e Doutor pela UFBA/FU-Berlin. É mestre em Comunicação e Cultura
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação e bacharel em Interpretação pela Escola
de Teatro, da UFBA. Já participou como ator de várias montagens soteropolitanas a exemplo de “Arlequim, servidor de dois patrões”, direção de Ewald Hackler e “Merlim”, direção de
Carmen Paternostro, entre outras.
Eduardo Bastos (Duda Bastos) é mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da
Bahia e graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica do Salvador
(2000). Atualmente é professor titular das Faculdades Jorge Amado – no Curso de Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda das disciplinas: Direção de Arte,
Fundamentos da Dramaturgia e Atelier de Criação II. Tem experiência de 20 anos na área de
Comunicação com ênfase em marketing e propaganda, redação publicitária e direção de
arte. Em Artes Cênicas, atua principalmente nas seguintes atividades: direção musical para
espetáculos, instrumentista, interpretação e composição musical.
Elizabeth Firmino Pereira (Uberlândia – MG, 1966) é atriz, arte-educadora, diretora teatral
e performer. Licenciada em Educação Artística / Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da
Unesp, Campus São Paulo; doutoranda em “Teoria, Historia y Práctica del Teatro”, na Universidade de Alcalá de Henares, Madri, Espanha. Pesquisadora de rituais afro-brasileiros e africanos, desde 1988; investiga o caráter espetacular nos rituais públicos e nas tradições orais.
Eliana Rodrigues Silva é Pós Doutora pela Université de Paris 8, Doutora em Artes Cênicas
pela Universidade Federal da Bahia, Mestra em Artes pela University of Iowa. Possui Licenciatura e Bacharelado em Dança pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é Professora Associada I na Universidade Federal da Bahia, onde leciona nos cursos de Graduação
em Dança e Pós Graduação em Artes Cênicas. Tem publicado artigos em periódicos nacionais, prefácios, capítulos de livros e livro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em
Coreografia Moderna e Pós Moderna, vem atuando mais especificamente em História e
Crítica da Dança, sendo convidada para participar de diversos congressos e eventos nacionais e internacionais. Avaliadora nacional dos Cursos de Graduação em Dança pelo INEP,
Instituto Anísio Teixeira, MEC.
Florabelle Spielmann é etnomusicóloga, da equipe do festival de l’Imaginaire, da Maison
des Cultures du Monde, instituição que representou no V Colóquio Internacional de
Etnocenologia, e doutoranda da École des Hautes Études em Sciences Sociales, de Paris,
França, com a orientação de Michel Agier, com pesquisa sobre os combates de bastão de
Trinidad Tobago.
Gilberto Icle é ator, encenador, professor doutor do GETEPE - Grupo de Estudos em Educação, Teatro e Performance, do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pósgraduação em Educação, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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Gisela Reis Biancalana é Bacharel (1991) e Licenciada (1993) em Dança pela UNICAMP
(Universidade Estadual de Campinas/SP). Ministrou aulas em escolas de dança de 1984 a
1993 nas cidades de Americana, Indaiatuba, Campinas e São Paulo. Foi animadora cultural
nos Centros Integrados de Educação (Cieps), professora de expressão corporal em Conservatórios para atores e preparadora corporal de atores. Depois de formada atuou como bailarina do Grupo de Dança-Teatro “Uma Só” com os espetáculos Transitando e Dois ou Um.
Foi atriz do Grupo de Teatro “Praticável” onde atuou no espetáculo É Proibido…Em 1994
mudou-se para Santa Maria/RS e coordenou o GUD (Grupo Universitário de Dança do Centro de Educação Física e Desportos da UFSM – Universidade Federal de Santa Maria/RS)
onde coreografou os espetáculos Marimba Teatro e Dança e A Espera. Em 1996 fez seleção pública para professora substituta no curso de Artes Cênicas do Centro de Artes e
Letras da UFSM e em 1998 fez concurso público para professora assistente do mesmo curso. Fez mestrado na UNICAMP em artes corporais quando dirigiu o espetáculo Valsa que fiz
pra ti. Foi coordenadora do curso de Artes Cênicas de 2002 a 2006 quando ingressou no
doutorado na UNICAMP onde está atualmente realizando sua pesquisa sobre a Performance
daTrova Gaúcha.
Giselle Guilhon Antunes Camargo possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), mestrado em História pela Universidade Federal de
Santa Catarina (1997), especialização em Dança Cênica pela Universidade do Estado de
Santa Catarina (2001) e doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia
(2006), com Estágio de Doutorado Sanduíche na Universidade de Paris 8 (2004). Atualmente é pós-doutoranda júnior no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, na Universidade Federal de Santa Catarina, onde ministra as disciplinas “Sufismo e Cinema: imagens do êxtase” e “Introdução à Antropologia da Dança”. Atua nos seguintes temas e áreas:
Islã, Sufismo, práticas corporais extáticas, dança (e música) sufi. Trabalha nos campos
interfacetados da Etnocenologia, da Antropologia da Dança, dos Estudos da Performance e
da Antropologia da Religião.
Idelette Muzart-Fonseca dos Santos é professeur des universités na Universidade Paris X
– Nanterre onde dirige o Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Brésil et le monde
lusophone (EA 369 “Etudes romanes”, CRILUS), além de coordenar o Programa ARCUS, Linguas,
Culturas, Discursos, e orientar mestrandos e doutorandos. Recebe doutorandos brasileiros
em sistema de co-direção ou co-tutela. Encarregada das relações com o Brasil, na área das
relações internacionais da universidade Paris X, mantém intercâmbios com várias universidades brasileiras e coordena o Ponto de Cultura brasileira na França, criado em 2005. Entre
suas publicações recentes: Matériaux pour une histoire culturelle du Brésil, coorganizadora, Paris, L’Harmattan, 1999; Em demanda da poética popular : Ariano Suassuna
e o Movimento Armorial Campinas, Editora da Unicamp, 1999; Le Noir et la Culture africaine
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
au Brésil, co-organizadora. Paris, L’Harmattan, 2003 ; « A pintura de Juraci Dórea e os imaginários nordestinos », Memória em movimento : o Sertão na obra de Juraci Dórea, (Rita
Olivieri-Godet, Rubens Alves Pereira, org.), Feira de Santana, UEFS – Universidade Estadual
de Feira de Santana, 2003, p. 87-101; « Souvenirs des Chrétiens et des Maures (Portugal,
Brésil, Príncipe) : le Jeu de Floripes », Eclats d’Empire : du Brésil à Macao, (Idelette Muzart –
Fonseca dos Santos, Ernestine Carreira, org.), Paris, Maisonneuve et Larose, 2003; Triompher
du Maure : permanence et mutation de l’imaginaire ibérique de la reconquête », Archivos
do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, vol. XLVI, Lusophonie et multiculturalisme, Paris,
Centre Culturel Portugais / Fondation Calouste Gulbenkian, 2003 ; « Literatura de cordel :
Literature for Market and Voice », Literacy Cultures of Latin America, A Comparative History
(Mario J. Valdes & Djelal Kadir, ed.), vol. 1 : Configurations of Literacy Culture, New York, Owford
University Press, 2004, p. 614-619 ; « Les œillets de la mémoire : le 25 avril dans les récits de
vie des migrants portugais en France », Matériaux pour l’histoire de notre temps 80 : 7682, Nanterre, Bibliothèque de Documentation Contemporaine Internationale, 2005, Memória das Vozes : Cantoria, Romanceiro & Cordel, Salvador, Fundação Cultura da Bahia, 2006;
« Ariano Suassuna, um intelectual a serviço da cultura », in : Intelectuais e Estado, (Elide
Rugai Bastos, Marcelo Ridenti & Denis Rolland), Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2006.
Inês Alcaraz Marocco é Professora Doutora lotada no departamento de Arte Dramática do
Instituto de Artes da UFRGS.
Ingrid Bueno Peruchi possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP (2000) e mestrado em Lingüística Aplicada pela mesma universidade (2004).
Atualmente é Prof. Leitora do Itamaraty na Université Paris X – Nanterre (França). Seu doutorado está em curso na mesma universidade. Tem experiência na área de Lingüística, com
ênfase em Lingüística Aplicada. Atua principalmente nos seguintes temas: Discurso didático-pedagógico, Ensino de línguas e aspectos culturais e Identidade.
Isa Maria Faria Trigo é professora titular da Universidade do Estado da Bahia nos cursos de
Pedagogia, Design e Comunicação Social – Mestra e Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC/
UFBA. Atriz e Diretora Teatral. Trabalha com atores e máscaras teatrais expressivas inspiradas na cultura baiana e brasileira.
Jean-Marie Pradier é titular de um Doutorado de especialidade em Psicologia, e de um
Doutorado de Estado em Letras consagrado à abordagem interdisciplinar do fenômeno
teatral. Professor na Universidade de Paris 8, é co-diretor do Departamento de Teatro, diretor do laboratório de etnocênologia (EAB1573), e coordenador do tema « Criação, Práticas,
Públicos » da Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord. Membro permanente da
International School of Theatre Anthropology (ISTA) desde a sua fundação em 1979 por
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Eugênio Barba. É responsável pela criação do Laboratório Interdisciplinar das Práticas Espetaculares que estava na iniciativa do Colóquio de fundação da etnocenologia. Diretor científico da revista L’Ethnographie, é autor de numerosas publicações.
Jerusa de Carvalho Pires Ferreira é graduada em Letras pela Universidade Federal da Bahia
(1967), é mestre em História pela Universidade Federal da Bahia (1977) e doutora em Ciências Sociais (Sociologia da Literatura) pela Universidade de São Paulo (1980). Coordenadora
do Centro de Estudos da Oralidade do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica e do Núcleo de Poéticas da Oralidade, pesquisadora e professora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Atua na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da
Comunicação, tratando principalmente dos seguintes temas: cultura, oralidade e memória.
Tradutora de Paul Zumthor e autora de obras de referência sobre a literatura portuguesa e
brasileira, a exemplo dos livros Fausto no horizonte: razões míticas, texto oral, edições
populares (São Paulo: EDUC; HUCITEC, 1995); O livro de São Cipriano: uma legenda de massas (São Paulo: Perspectiva, 1992); e Cavalaria em cordel: o passo das águas mortas (São
Paulo, Hucitec, 1979), é conferencista freqüentemente convidada para diversas instituições
de pesquisa no Brasil e no exterior.
João de Jesus Paes Loureiro é poeta e professor de Estética, História da Arte e Cultura Amazônica, na Universidade Federal do Pará. Mestre em Teoria da Literatura e Semiótica, PUC/
UNICAMP, São Paulo e Doutor em Sociologia da Cultura pela Sorbonne, Paris, França. Expôs
poemas visuais na X Bienal de São Paulo. Participou com um poema-objeto, da mostra “A
Vanguarda Visual Brasileira – 50 anos depois da Semana de Arte Moderna”, organizada por
Roberto Pontual, para a Galeria Colletio/SP. Prêmio Nacional de Melhor Livro de Poesia, em
1984, pela Associação Paulista de Críticos de Arte, com Altar em Chamas. Suas obras poéticas
são: Cantares Amazônicos (Porantim, Deslendário, Altar em Chamas) pela Ed. Civilização
Brasileira, Pentacantos, Romance das Três Flautas (Edição bilíngüe - português e alemão), O
Poeta Wang Wei (699-759AD) na Visão de Sun Chian Chin e João de Jesus Paes Loureiro
(Edição bilíngüe - chinês e português), Iluminações e Iluminuras, traduzido por Kikuo Furuno
e ilustrado por Tikashi Fukushima (Edição bilíngüe - japonês e português) publicados por Roswi
Kempf Editora/SP. Gesãnge des Amazonas (Edição alemã) pela Editora DIA, de Berlim, 1991 –
Cantares Amazônicos (Edição italiana) L´Áquila, 1990. Altar em Chamas e Outros Poemas, O
Ser Aberto. Elementos de Estética (Filosofia da Arte) e Cultura Amazônica – Uma poética
do Imaginário (tese de doutoramento) e A Poesia como Encantaria da Linguagem, editados pela CEJUP. Em 1998/99 e pela Escrituras/SP em 2000 e 2001 e pela Íman Editora, Lisboa,
Portugal, 2003, “Belém. O Azul e o Raro” (Poema em CD), pela Violões da Amazônia/PA, “Pássaro da Terra” (Teatro), pela Escrituras Editora/SP, e Obras Reunidas (4 Volumes) S. Paulo, Escrituras Editora, 2000. Do Coração e suas Amarras, Escrituras Editora/SP, 2001. Edição universitária de“Obras Reunidas”, 2001. Elementos de Estética, 3ª edição, pela Editora da UFPA, 2002,
16
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
lançado na 17ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo. CD duplo “O Poeta e seu Canto”,
edição do autor, 2002. Fragmento poesia, Escrituras Editora, SP, 2003 “Au Delà Du Méandre
de Ce Fleuve” (Além da Curva daquele Rio), primeiro texto de ficção em prosa e publicado
pela Editora Actes Sud, de Paris, 2002. LÁmour aux vêtements blancs ( Amor de roupas brancas) e Le fleuve aux royaumes enchantés ( Rio das Encantarias), peças de teatro, Lês Édictions
de la Gare, Vitri sur Seine, França, 2005. A Conversão Semiótica – Na arte e na cultura. Editura
Universitária/UFPA, 2007.
Jolanta Rekawek é coordenadora de Núcleo de Estudos da Espetacularidade na Universidade Estadual de Feira de Santana. Licenciada em Filologia Hispânica pela Universidade de
Varsóvia (Polônia), doutora pela Universidad de las Islas Baleares (Espanha) com a tese sobre performance e teatro no cinema de Glauber Rocha.
Jorge das Graças Veloso (Graça Veloso) é bacharel em Comunicação Social (Publicidade e
Propaganda) pelo Centro Universitário de Brasília (1978), tem Licenciatura Plena em Educação Artística: Artes Cênicas, pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (2006), mestrado
em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2001) e doutorado em Artes
Cênicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2005). Atualmente é professor substituto da Fundação Universidade de Brasília e professor titular da Fundação Brasileira de Teatro. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Interpretação Teatral, atuando principalmente nos seguintes temas: arte-educação, teatro, teatralidade, espetacularidade, cultura, tradição e encenação. Tem como principal foco de suas pesquisas, ritos espetaculares
localizados no interior do estado de Goiás e na região do entorno do Distrito Federal.
José Simões de Almeida Jr. é doutor em Artes (ECA/USP), Mestre em Comunicação e
Semiótica (PUC/SP), Professor da Universidade de Sorocaba (UNISO) e da Faculdade de
Valinhos (FAV).
Laure Garrabe possui um Master 2 em Antropologia – Dinâmica das Culturas e das Sociedades (Pós-graduada em Antropologia) na Université Lumière Lyon2 - França (2005). Doutoranda em Estética, Ciências e Tecnologias das Artes – Teatro, na Université Paris 8 Vincennes
– Saint-Denis (França).
Lícia Maria Morais Sanchez é graduada em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia (1977), possui especialização em dança-teatro na Alemanha (orientação de
Pina Bausch), é mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (2001) e doutora
em Artes pela ECA/USP (2006). Atualmente é pesquisadora de Dança Jornal junto ao Balé
do Teatro Castro Alves, da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Tem experiência na área de
artes, com ênfase em criação, atuando principalmente com temas relacionados às artes
cênicas, formação, inclusão e memória.
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Lúcia Fernandes Lobato é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1969) possui Bacharelado (1981) e Licenciatura (1982) em Dança
pela Universidade Federal da Bahia (1982), Mestrado em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia (1990) e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia
(2002). É membro do GT de Pesquisa em Dança no Brasil: Processos e Investigações e é
pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade,
Imaginário e Teatralidade GIPE-CIT. Atualmente é professora adjunta da Universidade Federal da Bahia lecionando na Escola de Dança e no Programa de Pós Graduação em Artes
Cênicas, atuando nas áreas das Artes do Espetáculo com ênfase na dança.
Luís Cláudio Cajaíba é ator e professor da Escola de Teatro da UFBA. Pós-doutor em Artes
Cênicas pela FAPESB-PPGAC e doutor pela UFBA/FU-Berlim É mestre em Comunicação e
Cultura Contemporâneas pela Faculdade de Comunicação da UFBA e bacharel em interpretação pela Escola de Teatro da UFBA. Já participou como ator em várias montagens
soteropolitanas como “Arlequim servidor de dois patrões” sob a direção de Ewald Hackler e
“Merlim” sob a direção de Carmem Paternostro.
Makarios Maia Barbosa é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), sob a orientação do Professor Dr. Armindo Jorge de Carvalho Bião. Professor de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Maria de Fátima Barretto Bastos é jornalista graduada pela Faculdade de Comunicação da
UFBA, atriz, mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, doutoranda no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, sob orientação do Profº Dr. Armindo
Bião. Pesquisa as relações dialogais entre Jornalismo e Teledramaturgia. É colaboradora freelancer de periódicos e publicações especializadas na área de cultura. Atualmente faz parte
da equipe de assessoria de imprensa da Diretoria de Artes Visuais e Multimeios (Dimas), da
Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) e integra a comissão de seleção do Prêmio
Braskem de Teatro 2007. Sua experiência na área de Comunicação - com ênfase em jornalismo cultural e opinativo - envolve principalmente abordagens em crítica de teatro, cinema,
resenha literária, dramaturgia e jornalismo.
Miguel de Santa Brígida é mestre e Doutor em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA. Professor
da Escola de Teatro e Dança da UFPA. Encenador e Carnavalesco.
Murilo Freire é ator, diretor, professor e pesquisador de teatro. Aluno do curso de Artes
Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco. Ex-aluno da Licence em Arts du Spectacle,
na Universidade de Paris-8 Vincennes / Saint-Denis. Atua desde 2004 na equipe do Programa Multicultural do Recife / Prefeitura do Recife. Foi membro titular da Comissão Deliberativa
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
do Funcultura – Fundo Estadual para a Cultura / SIC / Governo de Pernambuco. DiretorOrientador da Associação Labô-Espetáculo para a Pesquisa, Formação e Criação Teatral.
Nadja Magalhães Miranda é jornalista e professora adjunta IV da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em Artes Cênicas da UFBA, com estágio sanduíche em Paris X - Nanterre. Graduada em Comunicação, (habilitação em Jornalismo) pela Universidade Federal da Bahia (1972)
e mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (2001). Suas atuações se
dão na área da Comunicação, com ênfase em Assessoria de Co-municação à cultura e ao
teatro, Comunicação e Cultura, Comunicação e Saú-de, e do Jornalismo Especializado (Comunitário, Rural, Empresarial, Científico, Cultural).
Patrícia Medeiros é dançarina profissional, graduou-se pela Universidade Federal da Bahia
em 1998, especialista em Didática do Ensino Superior /FAMA e em Fisiologia do Exercício e
do Envelhecimento/SEST. Atualmente ministra as cadeiras de Expressão Corporal, Dança e
Danças Dramáticas Brasileiras na Universidade Federal do Maranhão como professora substituta.
Ricardo Barreto Biriba é professor da Escola de Belas Artes da UFBA e doutor em Artes
Cênicas – UFBA.
Sarah Carneiro é jornalista graduada pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com especialização Lato Sensu em Associativismo pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE) e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é professora universitária e educadora da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia / Cipó
Comunicação Interativa.
Sérgio Coelho Borges Farias é ator e diretor teatral. Possui mestrado em Educação pela
Universidade Federal da Bahia (1981) e doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (1990). Realizou estágio Pós-Doutoral na Universidade de Paris 10 – Nanterre, França.
Atualmente é professor titular da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área
de Artes Cênicas, atuando principalmente nos seguintes temas: Elementos da cultura nordestina brasileira em trabalhos de teatro-educação; Poéticas e processos de encenação
em trabalhos educacionais; Corpo cênico: texto, improvisação e performance.
Sylvie Debs nasceu na França (Strasbourg) e mora no Brasil desde 2007 onde trabalha como
Adida de Cooperação e Ação Cultural na Embaixada da França em Belo Horizonte. Jornalista, ensaísta e crítica, realizou curtas e documentários de ficção na década de 80. Doutora
em Literatura Geral e Comparada pela Universidade Le Mirail de Toulouse, Sylvie Debs viajava sempre para o Brasil, notadamente pelo Nordeste. No Brasil, ela participa dos festivais
19
(como jurada), acompanha as filmagens, colabora com várias revistas, participa de seminários e eventos culturais, dá palestras e mantém trocas com cineastas, artistas, sociólogos e
críticos. Na França, ela publica livros e artigos sobre a cultura popular, o cordel, a literatura
e o cinema brasileiros, traduz os filmes brasileiros assim como livros de crítica de cinema,
participa de exposições, dá palestras sobre cordel e cinema, e assume curadorias de festivais de cinema brasileiro. Professora na Universidade Robert Schuman e na Universidade
Marc Bloch de Strasbourg, ela ensina teoria da comunicação e cinema brasileiro. Ela é considerada uma das mais ativas introdutoras de cinema brasileiro na França. No Brasil, ela
publicou Patativa do Assaré (2000), Editora Hedra e Cinema e Literatura no Brasil. Os mitos do
sertão : emergência de uma identidade nacional (2007), Editora Interarte.
Virginia Brasil é atriz, diretora, arte-educadora, produtora e pesquisadora de teatro. Já
atuou como dançarina popular para o Balé Brasílica / Balé Popular do Recife. Estudante de
Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Atriz-Pesquisadora e Diretora Administrativa e Financeira da Associação Labô-Espetáculo para a Pesquisa, Formação e
Criação Teatral.
20
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
IMPREVISTO NA RUA:
A FIGURA DO MATEUS NA BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO
Ana Caldas Lewinsohn - UNICAMP
Resumo: O Cavalo Marinho é uma manifestação popular que acontece principalmente na Zonada-Mata norte de Pernambuco. A brincadeira é realizada por cortadores de cana-de-açúcar da
região, que cantam, dançam, declamam loas (versos), tocam instrumentos e “colocam” diferentes
figuras (personagens) durante uma noite inteira. Uma das figuras que se destaca é o Mateus, um
negro que chega para tomar conta da brincadeira e passa o tempo todo em cena, cerca de 10 horas
em média, tendo por isso que lidar com todos os acontecimentos inesperados, além de ter a função
de coordenar as entradas e saídas das outras figuras do espetáculo e proteger o espaço como um
todo. Este artigo propõe uma descrição e análise da figura do Mateus a partir de observações de
pesquisa de campo e pretende, dessa forma, refletir sua função na brincadeira e sua relação com o
público. Busca-se, ainda, estudar a corporeidade e gestualidade do brincante em estado cênico de
modo a contribuir com as pesquisas sobre improviso e sobre o treinamento do ator, principalmente
direcionados ao teatro de rua.
Iniciando: Relatos de um caminho em direção ao Teatro de Rua
O teatro de rua desde sempre me chamou a atenção e me despertou grande interesse. Seu caráter transgressor e democrático intrínseco faz muito sentido num momento
em que a arte teatral, no Brasil, é cada vez mais elitista, fazendo com que poucos realmente
consigam ter acesso e desfrutar dos espetáculos que são produzidos e encenados nas salas muitas vezes distantes e até desconhecidas da grande maioria da população.
Claro que não pretendo afirmar, com essa colocação, de que as salas teatrais deveriam
se extinguir e os espetáculos todos irem para o meio da rua. A grande questão é que não há
uma política de formação de público, para que qualquer pessoa possa criar o hábito de
freqüentar teatros como parte de sua formação cultural.
A ausência de uma política de formação para a cultura teatral pode ser observada desde a educação primária, nos jardins de infância, onde os conteúdos artísticos oferecidos
não passam de produtos pasteurizados da indústria cultural, sejam músicas em CDs ou até
mesmo espetáculos teatrais de qualidade duvidosa, nas quais esses pequenos consumidores em potencial já vão sendo inseridos, sem qualquer perspectiva crítica ou criativa.
Sendo assim, as crianças já se tornam, em geral, adolescentes e adultos desinteressados
pela arte teatral ou por qualquer outra arte que não pertença à indústria cultural. Ou seja: o
buraco é bem mais embaixo.
Devemos reconhecer, no entanto, a existência de algumas iniciativas, públicas e privadas, que estão tentando levar arte à população, seja por meio de eventos gratuitos e pre21
Ana Caldas Lewinsohn
ços populares, seja por apresentações em praças, parques e espaços públicos. O problema,
porém, está na falta de continuidade desses projetos, que acabam sendo esporádicos. Infelizmente, podemos constatar que tais iniciativas não deixam de ser, de fato, mais um instrumento de marketing cultural das empresas e dos governos.
Não sendo devidamente realizada a política de formação de público ou de formação de
pessoas com desejo de se nutrir do teatro, seja através de sua participação efetiva ou somente como uma alternativa para a diversão, cabe aos artistas uma postura guerreira. É
necessário ao artista cidadão se colocar no mundo não somente como produtor de sua
arte, mas também como veiculador.
Nesse sentido, o teatro de rua representa uma possibilidade de atingir o público comum onde ele está: nos grandes centros das cidades, nas praças de periferia, nos parques,
metrôs, ou qualquer espaço público. A busca do teatro por esse público, significa não somente os artistas acreditando nesse encontro, mas acima de tudo uma suposta necessidade que o público teria do espetáculo de rua, como afirma André Carreira1:
“Esta necessidade existiria porque o teatro, transformado em uma arte de elite, teria se
distanciado de seu âmbito natural, e conseqüentemente seria necessário articular um
discurso teatral alternativo. O teatro de rua representaria neste esquema um teatro de
volta às origens.” (CARREIRA, 2005, p.25)
O teatro de rua pede uma linguagem própria. O artista cênico ao experimentar sua
criação na rua, logo percebe as exigências que ela coloca, ficando evidente o que funciona
e o que não. Nesse sentido, faz-se necessária uma busca por técnicas e inspirações que
auxiliem nesse processo de criação e tais recursos podem ser encontrados nos mais diversos lugares. Nesse artigo apresentarei um possível caminho no qual venho apostando nos
últimos dez anos da minha trajetória.
A rua, por ser um espaço repleto de múltiplas informações visuais e sonoras exige do
artista que queira utilizá-la como palco, uma postura versátil e extremamente competente.
Não é fácil chamar a atenção na rua. E mais difícil ainda é fazer com que o público conquistado permaneça nesse encontro na maior parte das vezes imprevisto e inesperado. As dificuldades são numerosas, mas a recompensa é valiosa.
Para que o corpo do artista cênico cresça suficientemente para chamar atenção na rua
e suas ações físicas alcancem a precisão necessária dentro de tamanha dispersão, o treino
da técnica de máscara é um grande recurso, pois, como afirma Lecoq (1987) “a máscara
aumenta o jogo do comediante e essencializa o propósito da personagem e da situação.
Precisa os gestos do corpo e o tom da voz”. Buscando esses elementos, além de uma linguagem popular que utilizasse o improviso para lidar com as tantas interferências expostas na
rua, encontrei na Commedia dell’Arte uma Escola.
1
André Carreira é diretor teatral e professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós Graduação em Teatro da UDESC-SC.
22
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Durante cinco anos estudei e pratiquei a Commedia dell’Arte através de cursos, grupos
de estudos, espetáculos, treinos e confecção de máscaras. Buscávamos, no “Teatro ViraRua”,
encontrar os tipos urbanos e brasileiros de hoje, criando máscaras com base nos tipos italianos porém adaptados à nossa realidade.
Paralelamente, desenvolvi junto a outro grupo de teatro, “Grupo do Santo”, uma densa
pesquisa de teatro de rua que utilizava a máscara somente como técnica sem a utilizar
sobre o rosto. Nos sete anos de trabalho do Grupo fizemos inúmeras apresentações na rua,
em diferentes cidades brasileiras, ganhando experiência a partir da prática. Além das apresentações, mantínhamos um cotidiano de treino de acrobacia, jogos teatrais, máscara, corda, bastão, treinamento energético2 e vocal, canto e toque de instrumentos musicais. Estávamos em busca de uma linguagem própria e popular.
Em 2001, no Riso da Terra - Encontro Mundial de Artistas Populares, Circenses e Palhaços - que se realizou em João Pessoa, PB, tive o primeiro contato com a brincadeira do
Cavalo Marinho de Pernambuco. Desde sempre interessada nas danças brasileiras, encontrei no Cavalo Marinho aproximações com a Commedia dell’Arte. As máscaras e seus tipos ou figuras, como são chamadas pelos brincantes -, me encantaram pelo fato de pertencerem à cultura brasileira.
Desde então desenvolvo minha pesquisa sobre o teatro de rua a partir das brincadeiras
populares e das máscaras brasileiras, em especial do Cavalo Marinho. Encontrar nas tradições nacionais possibilidades de troca com o trabalho de ator é o grande foco desse caminho que venho trilhando atualmente e, portanto, objetivo primeiro desse artigo.
Como demonstra o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, o estudo das tradições pode ser
de extrema importância para as investigações sobre o teatro de rua:
“O teatro de rua não é uma invenção contemporânea como alguém mais desavisado
poderia imaginar. E mais do que inventar o espetáculo de rua, talvez fosse mais interessante recuperar as formas tradicionais desse espetáculo, estudar sua forma e dar-lhe voz e
forças contemporâneas. O que Mário de Andrade chamou de danças dramáticas brasileiras revelam, sob a pele do olhar folclórico, uma complexa forma dramatúrgica que tem
muito a nos ensinar sobre o espetáculo de rua. (...) Um olhar profundo e demorado sobre
nossa própria tradição de manifestações teatrais de rua pode, com certeza, nos ajudar a
responder as questões impertinentes que esse teatro nos coloca.” (ABREU, 2004)
Adentrando: O Cavalo Marinho
O Cavalo Marinho é, antes de mais nada, um espetáculo artístico completo. É uma brincadeira popular de rua na qual podemos contemplar dança, teatro, música, poesia e artes
plásticas. Os brincantes são em sua maioria cortadores de cana da área rural do interior de
Pernambuco, mais precisamente da Zona-da-Mata norte.
2
O treinamento energético do grupo LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP) é uma dança livre que se utiliza da
exaustão física para poder codificar distintas qualidades de energia.
23
Ana Caldas Lewinsohn
A brincadeira dura uma noite inteira, cerca de 10 horas, nas quais os dançarinos-atoresmúsicos brincam o tempo todo praticamente sem parar. Os músicos ficam sentados juntos
em um banco e tocam os seguintes instrumentos: bage (reco-reco de taboca), mineiro
(ganzá), rabeca e pandeiro. Quem toca o pandeiro normalmente é o toadeiro (cantor), que
puxa as toadas e todos os outros repetem os refrões em coro. O ritmo é o mesmo durante
quase toda a noite, com variações melódicas e das letras.
Cada parte da brincadeira tem sua toada característica, fazendo com que a música seja
um dos principais fios condutores do espetáculo. As partes são encenadas pelos brincantes
que dançam trupés (passos) extremamente complexos e se alternam entre galantes e
figureiros. Os galantes, em conjunto, executam pelo espaço da roda várias coreografias, de
extrema beleza, com seus cantos e loas (versos). Geralmente, quem começa a brincar o
Cavalo Marinho, entra como galante, principalmente os mais jovens e as crianças.
As figuras - personagens, em sua maioria mascarados -, são encenadas por quem sabe
“botá-las3”. Assim, muitas figuras não são mais encenadas hoje, porque não há mais quem as
coloque. As figuras representam seres humanos, animais e seres fantásticos – como o Diabo, e a Morte.
Toda a brincadeira é conduzida pelo Capitão com seu apito, que dá início e fim às toadas. O Capitão permanece em cena quase o tempo todo e dialoga com as figuras que
entram e saem da roda, após realizarem sua cena. No início da brincadeira, o Capitão diz
que vai viajar e para isso contrata dois “negos”, Mateus e Bastião, para tomarem conta do
terreiro enquanto ele não volta.
Mateus e Bastião são parceiros, entram na roda e nela permanecem até o dia amanhecer. Fazem a função de protetores da roda, lidando com todas as interferências que acontecem durante a noite, como bêbados, cachorros, crianças... Sempre de uma maneira cômica,
os dois acabam como se fossem os palhaços da brincadeira.
Esmiuçando: A Figura do Mateus
“É porque o Mateu é uma peça do Cavalo Marinho,
que se o povo der valor à ele e ele souber brincar, é quem
faz o Cavalo Marinho. O Mateu é que nem o palhaço.
Quem faz o Cavalo Marinho é o Mateu.” (MARTELO)4
3
Os brincantes utilizam a expressão “botar figura” quando se referem a encená-la.
4
Entrevista concedida à autora, dia 07 de janeiro de 2007, Condado, Pernambuco.
24
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Seu Martelo e suas bexigas de boi, em sua casa.
Mateus (Martelo), Cidade de Tabajara, 25.12.2006
Fotos: Ana Caldas Lewinsohn
Mateus entra na brincadeira antes de Bastião. O Banco (músicos) inicia a sua toada e,
sozinho, Mateus vem vindo de longe, passando pelo meio do público, até entrar na roda.
Caminha com seus trupés característicos, pequeninos, e aproveita sua entrada para trocar
olhares com as pessoas mais próximas. Sua entrada é esperada pelo público da região, que
já conhece a brincadeira. Todos querem saber se vai fazer o povo rir e como vai brincar, pois
boa parte do público sabe o que as figuras fazem, mas querem ver o como.
Seu Martelo5 é um brincante que faz um dos melhores Mateus existentes hoje, sendo
respeitado e conhecido por onde passa. Vive na cidade de Condado, em Pernambuco onde
brinca no Cavalo Marinho Estrela de Ouro, do mestre Biu Alexandre. A descrição a seguir se
baseia principalmente em observações6 desse brincante, tanto em estado de brincadeira
quanto em seu dia-a-dia.
Mateus entra com um olhar dilatado, vibrante, e, ao mesmo tempo, extremamente concentrado, com seu corpo inteiro tonificado e presente. Segura na mão uma bexiga de boi,
que é seca e inflada com ar, para percutir em seu corpo, mais precisamente na lateral das
pernas, acompanhando o ritmo da música, nos seus dois tempos fortes.
Vai chegando pelo meio do público, com um olhar fixo, a princípio, sem brincar muito,
concentrado na sua chegada, que é uma das suas grandes cenas. Ao entrar na roda, cai no
chão, pois está enfadado de tanto caminhar. Cai de barriga para cima e, com seu olhar ainda
vivo e aberto, mantém a conexão com os que estão ao redor. Seu corpo, apesar de estirado ao
chão, mantém todos os músculos ativos, pronto para, a qualquer hora, reagir ao inesperado.
No chão, movimenta-se levantando e abaixando o quadril, ação esta que consegue arrancar risos da platéia. No Cavalo Marinho, explora-se muito as palavras de duplo sentido,
5
Sebastião Pereira de Lima
6
As observações foram realizadas em pesquisa de campo, de 25 de dezembro de 2006 a 10 de janeiro de 2007, em Condado e Cidade de Tabajara,
Pernambuco.
25
Ana Caldas Lewinsohn
sempre evocando o lado sexual, além de gestos também sexuais e grotescos, que acabam
sendo grandes motivos de gargalhadas do público.
Depois de muito esforço, Mateus se levanta do chão. Essa ação é lenta e seu corpo se
mantém firme, preenchido de presença física. Mateus explora muitas caretas em seu rosto,
na maior parte do tempo da brincadeira, divertindo as pessoas. Muitas vezes realiza quebras precisas na expressão facial: está fazendo careta e de repente volta ao normal, fixando
seu olhar em alguém. Isso também acaba sendo outro recurso bem cômico.
O eixo corporal do Mateus, e da maioria das figuras, é com os joelhos flexionados, a base
bem firme no chão e o tronco curvado para frente. A movimentação da cintura para cima é
menor. Os trupés todos são localizados na parte de baixo do corpo, com uma movimentação ligeira dos pés e joelhos e passos rítmicos complexos, que sempre acompanham e
marcam também os pulsos fortes da música, que é em tempo ternário, com acento nos dois
primeiros.
Vale observar que esse eixo surge do cotidiano dos brincantes, que em sua maioria
trabalham no corte da cana, situação esta que molda seus corpos e se reflete nas suas
expressões criativas. Essa organização do corpo, durante a brincadeira, acaba propiciando
uma notável agilidade nos pés e pernas, uma vez que a base, bem presente, proporciona
imensa estabilidade. O centro do corpo, no abdômen, concentra toda a energia e faz com
que a parte de baixo e a parte de cima fiquem bem independentes, dando aos brincantes
uma grande flexibilidade e disponibilidade física.
Seu Martelo no seu roçado.
Eixo do trabalho na roça e da figura na brincadeira.
Foto: Ana Caldas Lewinsohn
26
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Após se levantar do chão, Mateus inicia uma conversa com o Capitão, na qual este pede
para que ele dê “boa noite” a todas as pessoas da roda. Mateus pergunta se pode dar o “boa
noite” de uma vez só, e o Capitão responde que tem que dar um a um. Mateus inicia então
sua cena dizendo “boa noite” a cada uma das “categorias” existentes no público, como: moças casadas, moças solteiras, crianças, rapazes casados, etc. Nesse momento, há boa participação do público, respondendo ao “boa noite” e se sentindo desde já parte da brincadeira,
num processo de interação e alimentação mútua do espetáculo.
O Capitão, em seguida, diz precisar de pessoas para tomarem conta do seu terreiro
enquanto ele viaja. Pergunta se Mateus anda sozinho no mundo, e Mateus então fala de
Bastião, seu “pareia” (par). Assim, o Capitão contrata os dois para juntos enfrentarem essa
empreitada. O diálogo acontece de uma forma um pouco intimista, pois um está bem perto
do outro, ambos perto do banco, ficando distantes de boa parte do público.
A partir desse momento, após a chegada do Bastião, inicia-se um entra e sai de diversas
figuras, que vão dialogar com o Capitão e com o banco, realizando suas cenas para depois
irem embora. Mateus e Bastião são responsáveis por receber essas figuras na roda e às
vezes mandá-las embora por meio de bexigadas. A bexiga de boi que Mateus e Bastião
carregam serve também para tirar pessoas que estão atrapalhando a brincadeira, e estas
podem ser tanto pessoas do público, como as próprias figuras, caso demorem demais na
roda ou não estejam fazendo bem o seu papel. A bexigada é sempre uma ação cômica, pois
além de ser violenta, faz muito barulho, sem que se machuque a pessoa atingida.
Além da bexiga de boi, Mateus carrega seu surrão, matula ou mudança nas costas, pois
está viajando. Este é feito de várias palhas amarradas na cintura e concentradas acima do
quadril, nas costas. Sua roupa é bem colorida, muitas vezes feita de chita, sendo a calça de
uma estampa e a camisa de outra. Tem um chapéu comprido em forma de cone, enfeitado
com muitas fitas coloridas e brilhantes. Seu rosto é todo preto, melado de carvão, remetendo às épocas de escravo, pois, segundo Martelo, o Cavalo Marinho nasceu nas senzalas dos
engenhos, ainda na época da escravidão.
O rosto pintado de preto funciona como uma máscara. Esta porém, engrandece inclusive as expressões faciais do brincante, enquanto as máscaras das outras figuras, feitas em
couro, cobrem todo o rosto, deixando somente as expressões do corpo em destaque. Suas
caretas e seu olhar penetrante cativam as pessoas do público. As crianças muitas vezes
misturam sentimentos de medo e curiosidade, mas demonstram grande fascínio pela figura do Mateus.
Mistério e brincadeira são dois componentes mesclados e fundidos na figura do Mateus,
que tem que lidar com tudo o que acontece de improviso. Sabe muitas loas (versos) decoradas, afinal, “Se ele não tiver, ele não é Mateu. (...) Agora tem que ter uma loa comprida. (...)
Tem que saber umas 15 loas ou mais, e fazendo de juízo. Agora é difícil...”7. O brincante deve
7
Martelo, em entrevista à autora, dia 02 de janeiro de 2007, Condado, Pernambuco.
27
Ana Caldas Lewinsohn
ter um imenso repertório de loas além de ir sempre renovando-as, para que não se repitam
na brincadeira.
Além das loas, Mateus utiliza um repertório de gestos e caretas engraçados que “carrega na manga”, pronto para lançar mão a qualquer momento. Se jogar no chão com as pernas
para cima ou altas gargalhadas com o tronco bem abaixado são alguns exemplos do repertório de Martelo.
Para ser um bom Mateus tem que se conhecer o Cavalo Marinho completo – todas as
figuras, as cenas, as toadas -, já que ele é responsável por conduzir a brincadeira e impedir
que algo dê errado. Além disso, a figura exige grande resistência física, por permanecer a
noite inteira em pé, dialogando, dançando, brincando, criando.
Como no palhaço, é necessário ao Mateus um estado de jogo, uma disponibilidade para
lidar com o novo, sempre de uma maneira surpreendente, que divirta a platéia. Muitas
vezes, é o Mateus que inclui o público na brincadeira por meio de seus gracejos, piadas,
olhares ou até mesmo golpes de bexigadas, “porque se ele não brincar com aquele povo,
como é que fica? Não tem graça, não tem graça”8. O riso é sinal de aprovação para os
brincantes do Cavalo Marinho e é sinônimo de roda cheia, fazendo com que a própria aglomeração de pessoas convide mais gente para o público.
Despedindo
A observação da figura do Mateus, no Cavalo Marinho, aponta diversas qualidades do
brincante que podem e devem ser treinadas no ator de rua. Não se pretende imitar a figura
e suas características, mas apreender seus princípios, a fim de aprimorar novas experimentações de teatro de rua.
Precisão, estado de jogo, improviso a partir de um repertório, relação direta com o
público, dança, canto, humor, concentração e agilidade são alguns elementos que propiciam presença no ator e segurança para lidar com as interferências expostas na rua.
Assim, o Cavalo Marinho, e outras manifestações da cultura popular brasileira, apresentam imensas possibilidades de pesquisa para o ator. É possível incorporar alguns dos elementos dessas tradições para a elaboração de metodologias de treinamento técnico, além
de valorizá-las como fonte criativa a partir da observação de seus símbolos, arquétipos e
histórias, que se comunicam diretamente com a cultura do povo brasileiro.
Não se trata de ignorar e eliminar o conhecimento de técnicas estrangeiras de treinamento para o ator, mas sim de reconhecer no Brasil a riqueza de elementos técnicos e
imaginários existentes nessas manifestações ampliando as fontes de pesquisa para a criação de novas metodologias.
8
Idem.
28
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Bibliografia
ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza: uma abordagem antropológica da estética do Cavalo Marinho. Dissertação de Mestrado em
Antropologia, Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2002.
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Carneiro, Ana e Telles, Narciso (org.) Teatro de Rua; Olhares e Perspectivas. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed. Global, 2001.
_______________________. Antologia do Folclore Brasileiro. São Paulo: Ed. Global, 2
volumes, 2002.
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Valmor Beltrame-Níni. (Não publicado).
OLIVEIRA, Joana Abreu. Catirina, o Boi e sua Vizinhança - elementos da performance dos
folguedos populares como referência para os processos de formação do ator. Dissertação de Mestrado, Instituto de Artes da Universidade de Brasília, 2006.
OLIVEIRA, Mariana Silva. O Jogo da Cena do Cavalo Marinho: Diálogos entre Teatro e
Brincadeira. Dissertação de Mestrado, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2006.
MURPHY, John. Performing a moral vision: an ethnography of Cavalo Marinho, a
Brazilian musical drama. Tese de Doutorado em Etnomusicologia, New York: Columbia
University, 1994.
_____________. Cavalo-Marinho, a regional Variant of the Traditional Bumba-meu-boi
in Pernambuco, Brazil. Texas, 2006. (No prelo).
Entrevistas:
Martelo (Sebastião Pereira de Lima). Dia 02 de janeiro de 2007, Condado, Pernambuco.
Realizada pela autora.
Páginas da Internet:
URL: http://www.cooperativadeteatro.com.br/portal/articles.php?id=72&page=3
Teatro De Rua, Questões Impertinentes, Por Luis Alberto de Abreu
Extraído do “Cadernos da ELT” nº 1 , Jun/04
29
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ETNOTEXTOS COMO PRETEXTOS PARA A CRIAÇÃO
DRAMATÚRGICA E CÊNICA.
Antonia Pereira Bezerra
Quando tudo começou:
Com o desenvolvimento, do projeto Do texto à Encenação: Construções Dramáticas e
Explorações Cênicas acerca das Noções de Alteridade e Memória e Narrativa, o qual investiga a criação textual e cênica numa perspectiva teórica e prática, envolvendo alunos
da Graduação e da Pós-Graduacão da Escola de Teatro da UFBA e contempla em particular,
as três peças de uma trilogia acerca das noções de memória, alteridade e narrativa1. Nesta
perspectiva, no final de 2005, escrevo o texto, A Morte nos Olhos2, por meio do qual voltome paralelo e completamente para a criação dramatúrgica, inspirada na literatura acerca
da alteridade, da memória e da narrativa. Desse itinerário emerge e afirma-se o desejo de
ser, também, pesquisadora-dramaturga, além de atriz e teórica; aumenta meu interesse
pela narrativa numa perspectiva sociológica e filosófica; nasce o projeto Alteridade, Memória e Narrativa: Construções dramáticas acerca do outro, da memória e da experiência partilhada3. Expectativas amplamente saciadas neste plano, um outro desejo se impõe: o de
aprofundar, para além da escrita dramática, essas noções de alteridade, memória e narrativa, desta vez, numa perspectiva eminentemente prática. Nada muito surpreendente, se
lembrarmos que a um doutorado essencialmente teórico - em Literatura Comparada - sobre o Teatro do Oprimido, sucede um projeto, também preponderantemente prático, resultando na montagem de um espetáculo apresentado por mais de um ano no Estado da
Bahia e em Santa Catarina.
Se num primeiro tempo delimitei esta pesquisa à criação de uma trilogia dramática e
à produção de ensaios teóricos, agora, num segundo tempo, vislumbro um espaço cênico,
atores e público, estruturas materiais outras para explorar cênicamente as mesmas questões que tanto me interrogaram no âmbito da criação dramatúrgica4
1
De minha autoria, a produção textual dessa trilogia inscreveu-se no âmbito de um estágio Pós-Doutoral em Dramaturgia, realizado na École
Supérieure de Théâtre de l‘Université du Québec à Montreal, de janeiro de 2006 a janeiro de 2007.
2
Título escolhido propositalmente (como homólogo da obra teórica francesa) não somente por dialogar com Jean Pierre Vernant, mas porque
nesse texto afirmo o meu intento em aprofundar minhas investigações dramatúrgicas e teóricas acerca da incapacidade de produzir uma narrativa,
explorando algumas figuras do estupor, aludindo às Górgonas pesquisadas por Vernant, P. Lê-Queau, entre outros.
3
Na École Supérieure de Théâtre, de l‘UQAM encontro pesquisadores e grupos que desenvolvem pesquisas no âmbito da escrita dramática e que
respondem inteiramente aos meus objetivos e intenções: desenvolver pesquisas na Província de Quebec, no domínio da criação dramatúrgica
e em língua francesa.
4
O processo de pesquisa bibliográfica acerca das noções de alteridade, memória e narrativa, bem como a sua exploração cênica, se inscreve
numa perspectiva transdisciplinar e num enfoque comparatista. Sob a minha orientação estão diretamente implicados nesta pesquisa quatro
alunos da graduação, contemplados com bolsa de Iniciação Científica e uma aluna de Pós-Graduacão contemplada com Bolsa de Apoio
Técnico 2 - FAPESB. Assim, o espetáculo A Morte nos Olhos, com estréia marcada para 30 de outubro, às 20H00, no Teatro do SESC/SENAC
Pelourinho é dirigida por Carol Vieira (minha Orientanda de Mestrado) e traz no seu elenco Hebe Alves –Doutoranda do PPGAC e Professora
da Graduação na Escola de Teatro da UFBA, além dos seguintes alunos da Graduação bolsistas IC: Ana Paula Brasil, Danilo Cairo, Fernanda Júlia e
Bruno Fagundes.
31
Antonia Pereira Bezerra
O processo de pesquisa bibliográfica acerca das noções de alteridade, memória e narrativa, bem como a sua exploração cênica, se inscreve numa perspectiva transdisciplinar e
num enfoque comparatista. Sob a minha orientação estão diretamente implicados nesta
pesquisa quatro alunos da graduação, contemplados com bolsa de Iniciação Científica e
uma aluna de Pós-Graduacão contemplada com Bolsa de Apoio Técnico 2 - FAPESB.
Assim, o espetáculo A Morte nos Olhos, com estréia marcada para 30 de outubro, às
20H00, no Teatro do SESC/SENAC Pelourinho é dirigida por Carol Vieira (minha Orientanda
de Mestrado) e traz no seu elenco Hebe Alves –Doutoranda do PPGAC e Professora da
Graduação na Escola de Teatro da UFBA, além dos seguintes alunos da Graduação bolsistas
IC: Ana Paula Brasil, Danilo Cairo, Fernanda Júlia e Bruno Fagundes.
. Precisamente, a finalidade prática desta investigação consiste na elaboração de três
espetáculos teatrais montados a partir dos textos A Morte nos Olhos (em cartaz em Salvador
nos meses de novembro a dezembro de 2007), A Memória Ferida (já traduzido para o português) e Na Outra margem (em processo de tradução para a língua portuguesa). Todas as
dimensões práticas do projeto serão trabalhadas ao termo de cada segundo semestre,
durante três anos e a partir da data de implementação da bolsa, Produtividade Pesquisa/
CNPQ, março de 2007.
Etnografia, etnotexto e dramaturgia:
O principal interesse desta pesquisa é a exploração cênica das diversas possibilidades
e utilidades da narrativa enquanto instrumento e meio privilegiado de encontrar e compreender o outro, de atribuir sentido à experiência vivida. A exploração desse tema numa
perspectiva prática pressupõe uma interface entre as abordagens estética e teórica acerca do drama e da especificidade da narrativa. Nesse sentido, acolherei saberes diversos
sobre narrativa, contemplando em particular as teorias de Paul Ricoeur (os quatro tomos
do “Temps et Récit et La Métaphore Vive) e de Jean-Pierre Vernant (La Mort Dans Les Yeux e La
Grèce Ancienne). A opção por esses autores justifica-se na medida em que suas teorias propõem duas entradas independentes no coração da minha problemática: o primeiro pela via
dos paradoxos do tempo e da memória; o segundo pela via da organização mitológica e
inteligível da narrativa (as lógicas históricas da narração).
Sabe-se hoje, graças às contribuições da fenomenologia, que toda consciência é consciência de alguma coisa, que o homem não é mais ilha, prisão, essência. Ele se define pelos
seus contatos, pela sua maneira de compreender o mundo e de se compreender. Se define,
ainda, pelo estilo de relação que lhe une aos objetos, aos outros homens, e a si mesmo. E a
dramaturgia, o teatro, entre outros, representam espaços privilegiados onde se tenta com
simplicidade e até mesmo, muita ingenuidade, compreender o “mundo” e o outro. Buscando entender mais sobre alteridade, memória e narrativa, pretendo unir a minha verdade de
pesquisadora à profundidade da dramaturga e encenadora em devir. É nessa perspectiva
que evidenciarei os cruzamentos intertextuais, atentando para nunca incorrer no risco de
32
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
defender neste itinerário teórico-prático a idéia da existência de uma “estética de cunho
científico”, ou de uma “arte científica” ou, ainda, de uma “ciência artística”. Considero-me, simplesmente, como uma artista-teórica indo ao encontro dos princípios que fundamentam a
sua arte. Acredito assim que “o querer-saber-do-fazer, querer entender como se processa o
fazer, é ir ao encontro da metalinguagem própria de todo artista”5.
Delimitação do objeto: a problemática
A finalidade prática deste estudo consiste na encenação de uma trilogia dramática cujos
espetáculos abordam, sucessivamente, temas acerca da “suspensão da consciência”; da
Memória e Identidade e da História e Identidade. Em cada um dos espetáculos desta trilogia
a compreensão como teoria do conhecimento, tanto comum, quanto acadêmico ou artístico, constitui o “fio de Ariadne” ao longo de todo o trajeto. E perseguindo esta pista, conseqüentemente suscito questões transversais de interesse de varias áreas do conhecimento,
seja no reino das ciências humanas ou no reino das artes. Todavia, a ênfase é dada à encenação de intrigas, na produção e representação de símbolos que alimentam e motivam o
debate acerca do que significa compreender o outro, seja este outro um ator social comum
ou um artista. No âmbito destas interrogações, pretendo discutir as diversas formas da
narrativa e sua eficácia, porque trata-se, com efeito, do meio mais freqüente e funcional de
encontrar, compreender o outro e se aproximar de sua experiência, tanto na vida cotidiana, quanto numa pesquisa universitária ou de criação cênica.
Tal problemática pode parecer, a priori, por demais evidente. De fato, o mito, a narrativa,
não tem sido desde os tempos ancestrais, e em quase todas as civilizações, o principal
objeto da literatura e da arte? Em Mil e uma Noites, não é de fato a narrativa que literalmente salva Sherazhade e tantas outras mulheres da morte, colocando um termo a uma matança injusta e desigual? Não é a narrativa com todo o seu ritmo, toda sua eficácia simbólica
que dá a Dom Quixote, o mítico herói de Cervantes, as ferramentas necessárias para impor
e assimilar seus sonhos à realidade? E o que dizer de Hamlet onde a verdade vem à tona
desalienando e clamando por justiça, não mais pela voz, talvez enganosa, de um fantasma,
mas por meio dos potentes e demascaradores recursos da narrativa dramática (Mise-enabîme)? Diante destes e de tantos outros exemplos, onde então reside a singularidade e o
aporte específico desta problemática?
Afinal de que narrativa se trata: etnográfica, mitológica ou
fictícia?
De todas e de nenhuma especificamente. Decerto, não pretendo reinventar o fogo,
afinal desde Aristóteles a narrativa, a fábula é a alma do drama. Existem muitas obras que
5
A exemplo de Julio Plaza em Arte, Ciência, Pesquisa: Relações. Trilha, Campinas, São Paulo, Janeiro-Fevereiro de 1997, p. 21-32.
33
Antonia Pereira Bezerra
tratam genericamente do assunto, mas raramente encontramos uma abordagem
aprofundada da narrativa em si. Adotarei, aqui, as perspectivas sociologias e/ou antropológicas. Na teoria sociológica ou antropológica, por exemplo, trata-se muitas vezes da assim
chamada “entrevista não-diretiva de pesquisa” ou “história de vida”, em que um pesquisador
convida um ator social comum a produzir uma narrativa. O que me interessa essencialmente é esta noção de História de Vida. Com base nesta técnica etnográfica e numa perspectiva criativa, parto do princípio, conhecido por diversas teorias, de que a finalidade de uma
narrativa é sempre a de unir, de integrar em todos os sentidos. Assim, proponho a exploração cênica da sua eficácia simbólica, evidenciando na montagem da trilogia, as contribuições da narrativa em três sentidos, a saber:
- Num sentido psicológico, em primeiro lugar (integração psicológica): quando a narrativa consiste em produzir uma continuidade no curso de uma vida, reduzindo as fraturas
e os traumatismos;
- Num sentido sociológico, em segundo lugar (integração sociológica): quando a narrativa consiste num rito de passagem para introduzir-se numa comunidade. De fato, integrar-se numa coletividade começa muitas vezes por uma autobiografia, mais ou menos
formal, na qual se manifesta um tipo de dom que vai de si ao outro, do individual ao
coletivo.
- Num sentido antropológico6, finalmente (integração antropológica): quando a narrativa
consiste em reconhecer, no curso de uma vida, a presença de um Princípio ou do Ser.
Horizonte Teórico-metodológico:
De maneira geral, a questão da narrativa é estratégica para a compreensão: com ela se
colocam questões práticas, metodológicas e teóricas importantes, muito embora não exista uma teoria global neste domínio. Na fenomenologia contemporânea, sobretudo com
Paul Ricoeur, mas também com outros hermeneutas, como Hans-Georg Gadamer, a narrativa se torna um objeto de pesquisa em si, inteiro e completo, instaurando a possibilidade de
uma poética geral7. Neste contexto, a narrativa aparece como o paradigma do ato criador,
incluindo o drama e a epopéia. Foi estabelecendo relações entre estas teorias
fenomenológicas da narrativa e a prática da pesquisa; foi tentando compreender mais e
melhor o que acontece quando não é possível atribuir sentido à experiência vivida, que
cheguei a este momento de revisão dos meus conhecimentos e, principalmente, a este
desejo de reorientar minhas pesquisas teóricas e práticas no domínio da dramaturgia e da
criação cênica. Ora, uma narrativa, longe de ser um reflexo mais ou menos fiel da realidade,
é uma construção, uma criação.
6
Sobre a eficácia simbólica da narrativa e seus sentidos psicológicos, sociológicos e antropológicos, é necessário citar, aqui, um outro pesquisador
que a exemplo de Paul Ricoeur e Jean Pierre Vernant, muito me inspirou e auxiliou. Trata-se de Pierre Lê-Quéau, Maitre de Conference de L’UPFM,
Grénoble II e Pesquisador Visitante do PPGAC, com que dividi a Disciplina Tópicos Especiais em Artes Cênicas no primeiro Semestre de 2000. LêQueau muito me ensinou sobre as contribuicões da narrativa e o Estado de Estupor, que abordaremos mais adiante.
7
Temps et Récit. 1. L’intrigue et le récit historique. Paris, Éditions du Seuil, 1983.
34
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A exemplo de Paul Ricoeur, não será possível falar de como a narrativa se relaciona com
o tempo, sem antes expor, em toda a sua amplitude, a questão da referência entrecruzada
– entrecruzada com a experiência temporal viva – da narrativa de ficção e da narrativa
histórica8. Que seja na vida cotidiana ou no domínio da ficção, na narrativa se manifesta a
primeira capacidade criativa do ser humano, a qual consiste em introduzir um tipo de ruptura no fluxo da vida e um tipo de descontinuidade na continuidade do real. A narrativa tem
uma relação não com a realidade em si, mas com uma consciência que compreende esta
realidade, isto é, ela reduz a realidade ao produzir significações. Além disso, essa dinâmica
própria da narrativa produz muitos efeitos de ordem simbólica. Para Pierre Lê-Quéau, contar uma história, na prática comum e cotidiana de cada um é sempre integrar, estabelecer
conexões, estabelecer elos no curso de uma vida entre o presente e o passado; nas relações sociais ou religiosas, entre si e os outros, humanos ou divinos. É nesse sentido comum
da narrativa que, também e para além da História de Vida, se inscreve a prática científica da
entrevista não diretiva de pesquisa, por exemplo. É porque a narrativa é uma prática social
comum com uma dinâmica interna e uma eficácia própria, que a mesma se justifica também como prática científica. Neste ponto preciso, disponho de um excelente argumento,
com todo um instrumental teórico e prático, para iniciar os alunos de graduação no universo da pesquisa tanto científica quanto artística. Um dos grandes interesses da narrativa,
ainda segundo Pierre Lê-Quéau, reside no seu poder de ligação: importa mais saber como
se estabelecem as relações significativas entre os fatos do que os fatos em si mesmos. No
ato de narrar se revela a construção de uma subjetividade inteira e completa, no duplo
sentido dessa expressão: a construção da realidade por um sujeito e, ao mesmo tempo, a
construção desse sujeito através de sua narrativa. No entanto, o trabalho da narrativa não é
somente subjetivo: ele contém também uma parte objetiva9.
Neste ponto preciso da discussão, é importante frisar que nas civilizações tradicionais,
as quais, ainda nos dias de hoje, preservam a oralidade, os etnólogos empreendem pesquisas de campo, nas quais a escuta e a exploração de diversas narrativas, retomadas de geração em geração, constroem a intriga e tecem a trama dos saberes comuns aos membros de
um grupo. Embora esse estudo não ignore toda uma tradição de pesquisa com métodos
específicos nesse domínio, não é esse o caminho que seguirei e nem é nesse sentido que
trabalharei com a narrativa em minha teoria e prática. Para esta investigação, não buscarei
mitos que vivem e renascem de palavras incessantemente repetidas e modificadas pelas
subjetividades dos narradores, atores sociais do cotidiano. Os mitos explorados no âmbito
desta enquete serão extraídos de três textos dramáticos de minha autoria e explorados
8
Ibid., p.68. Tradução nossa.
Lê-Quéau pondera ainda que o uso de uma linguagem comum, em si, já se constitui numa fuga da subjetividade. Ademais, contar uma história
pressupõe também mobilizar um amplo conjunto de saberes coletivos para dar uma forma compreensível à narrativa. Uma narrativa é sempre
uma experiência subjetiva, mas condicionada, todavia, em seu conteúdo e forma, pelas interações anteriores do sujeito com a sua coletividade
e o senso comum ao qual ele pertence.
9
35
Antonia Pereira Bezerra
em consonância com o sistema conceitual abaixo descrito, o imaginário e o potencial criativo dos alunos de Bacharelado em Interpretação e Direção Teatral.
Alteridade, Memória e Narrativa:
Semioticamente, alteridade constitui um conceito indefinível que se opõe a um outro
do mesmo gênero: identidade. Na melhor das hipóteses, este par pode ser considerado
como interdefinível, por natureza, em função da relação de pressuposição recíproca. Assim
como a identificação permite muitas conjeturas em torno da identidade de dois ou mais
objetos, do mesmo modo a distinção torna-se a operação através da qual se reconhece
suas alteridades. Neste domínio os ensaios que figuram na obra, Le Soi et l‘Autre, l‘énonciation
de l‘identité dans les contextes interculturels10, constitui um precioso aporte no esclarecimento e aprofundamento destas questões.
Além da filosofia e da fenomenologia, a literatura científica e psiquiátrica, por sua vez,
pode fornecer muitas pistas na compreensão desta estranha função que nos permite captar, codificar conservar e restituir os estímulos e informações que recebemos: a memória. A
noção de memória diz respeito tanto às estruturas físicas quanto psíquicas. Não existe uma,
mais várias memórias. A exemplo de Paul Ricoeur, interesso-me pela memória a longo prazo, aquela que estoca informações durante um longo período ou mesmo, durante toda uma
vida. Dotada de uma considerável capacidade, a memória a longo prazo é depositária das
nossas lembranças, das nossas aprendizagens, em suma da nossa história.
Quanto à narrativa (récit), trata-se de um termo da linguagem corrente, empregado
quase sempre para designar discursos narrativos de caracteres (ou seja, discursos comportando personagens que executam ações). Por tratar-se de um esquema narrativo acionado
no discurso e, por essa razão, inscrito em coordenadas espaços-temporais, muitos
semioticistas, após V. Propp, definem a narrativa como uma sucessão temporal de funções
(no sentido de ações). Além da semiologia, as teorias filosóficas e fenomenológicas de Paul
Ricoeur iluminam neste domínio. De toda maneira, no percurso teórico-metodológico, bem
como na pragmática da cena, esses três primeiros e primordiais conceitos deste estudo
são indissociáveis: contar uma historia pressupõe um outro (alteridade), ainda que este outro não seja mais que um desdobramento de si mesmo (identidade); para contar é necessário distanciamento, vivência passada, ainda que remota; pressupondo um apelo inexorável
à memória: e o limite do inteligível é o memorável. O que não se pode lembrar não existe.
Muthos, Lógos e Compreensão:
É, também, a noção de atividade mimética (a mimeses aristotélica, contemporaneamente
lida como produção das ações humanas11) que me coloca na via desta problemática, a saber:
10
11
Organizado sob a Direção de Pierre Ouellet e publicado por Les Presses de l‘Université Laval. Montreal, Québec, Canadá, 2003.
Definição de Anne Ubersfeld, a qual se recusa a definir mímesis como cópia ou representação das ações humanas. In Lire le Théâtre I. Op. Cit. p 11.
36
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
a problemática da experiência temporal viva pelo viés da mise-en-intrigue e da mise-enscène. O desenvolvimento dessa problemática conclama a dissecação de outros conceitos
que lhe são atrelados, como por exemplo, o conceito de Muthos: agenciamento sistemático
das ações. Para Jean Pierre Vernant, a dupla investigação empreendida pelos helenistas, de
um lado, sobre a história da palavra muthos na cultura antiga e pelos antropólogos, de
outro lado, sobre a dificuldade de aplicação desta noção, herdada dos gregos, às sociedades de tradição oral, deveria atenuar a tentação em situar o mito numa espécie de realidade mental inscrita na natureza; que se encontraria disponível sempre e em qualquer lugar,
seja antes das operações propriamente racionais, seja ao lado destas ou como pano de
fundo.
Nesse sentido Vernant enfatiza: Quero lembrar que a palavra mito vem do grego, ela não
tinha, para os que a empregavam nos tempos arcaicos, o sentido que lhe atribuímos hoje. (...)
Muthos quer dizer palavra, propósito, narrativa. E para começar, não se opõe a logos, cujo sentido primeiro é igualmente “palavra, discurso”, antes de significar explicação e razão12. No quadro
de uma discussão semelhante Paul Ricoeur nos lembra que desde as primeiras linhas da
Poética, muthos é definido como complemento de um verbo que quer dizer compor: A
Poética é assim identificada, sem outras possibilidades de interpretação, à arte de compor intrigas (de contar estórias)13. O conceito de logos, por outro lado, também é intrínseco ao ato de
narrar. Ora, na narrativa, com a voz de um sujeito, se faz ouvir também a voz do senso comum, do Logos que funda a possibilidade de compreensão recíproca entre os membros de
uma comunidade. Tracemos, aqui, um paralelo entre o sentido profundo da invocação das
musas por Homero, no início da Odisséia.
Nesta invocação é como se alguma coisa maior que Homero, tal qual o espírito do tempo, falasse através de sua boca. Da mesma maneira, através da voz individual, fala o Logos, o
senso comum, que torna possível e inteligível a expressão da subjetividade. Na via da criação dramatúrgica e cênica, outro conceito conclamado e aplicado à prática desta pesquisa
é o de compreensão. Na concepção de Paul Ricoeur, tanto no domínio da metáfora, quanto
no da intriga (narrativa de ficção), explicar mais é compreender melhor: Compreender, no
primeiro caso (no da linguagem metafórica), significa acompanhar o dinamismo em virtude
do qual, num enunciado metafórico, uma nova pertinência semântica emerge das ruínas.
Compreender, no segundo caso (no universo da ficção), significa reconstituir a operação
que unifica, numa ação inteira e completa, os diversos constituídos pelas circunstâncias, os
fins e os meios, as iniciativas e as interações, as reviravoltas de fortuna e todas as conseqüências (desejadas ou não) das ações humanas14. Nos dois casos, da metáfora ou da intriga,
tratar-se-á, ao mesmo tempo, de prestar conta da autonomia das disciplinas racionais que
12
La Grèce Ancienne. Du mythe à la raison. Jean-Pierre Vernant et Pierre Vidal Naquet, Paris, Édition du Seuil, 1990, p. 10.
Paul Ricoeur. Op. Cit., p. 69.
14
Temps et Récit. L’intrigue et le récit historique. Op. Cit., p. 11.
13
37
Antonia Pereira Bezerra
se ocupam do tema e de reconhecer o ato de compreender como filiado de forma direta
ou indireta, próxima ou distante, à inteligência poética.
A Petrificação: estupor e alexthimia
Antes de expor como, em termos pragmáticos, pretendo explorar as possibilidades da
narrativa numa prática cênica concreta, a exemplo de Pierre Lê-Qéau, me parece importante também discutir o que acontece quando uma narrativa não é possível. O patológico,
nesse sentido é-me útil na compreensão do normal. De fato, há situações, pessoais, sociais
ou históricas nas quais não se pode produzir uma narrativa. Há situações onde a compreensão da realidade pela consciência se interrompe, se suspende. Já na antiguidade, os Gregos
tinham consciência de uma tal possibilidade que era representada pelas Górgonas15. Se na
verdade as Górgonas nunca existiram, pelo menos fisicamente, seus poderes, entretanto,
são bem reais e o estupor – que consiste em permanecer petrificado por elas - é uma
situação com a qual, analogicamente, podemos nos confrontar na modernidade. Não é exatamente o horror em si, mas a primeira aparição dele: o evento único, sem precedente; é a
novidade absoluta que causa uma ruptura no senso comum e uma aceleração do tempo
imposto que impede o trabalho da consciência em estabelecer uma ligação entre o passado e o presente. É o passado, acumulado na experiência coletiva – o senso comum - que
pode dar uma forma inteligível ao presente.
Jean Pierre Vernant defende o princípio de que os mitos constituem maneiras através
da qual a consciência toma consciência de uma parte de si. Mas a petrificação (o estado do
estupor) significa seu próprio fim ou, ao menos, a sua suspensão16. Seguindo o raciocínio de
Vernant pretendo, ainda, explorar cenicamente essa imagem da petrificação, do estupor,
tentando investigar algumas experiências-limites que suspendem o trabalho da consciência e, por conseguinte, a possibilidade da narrativa17. Este estado mórbido é caracterizado
a partir do momento em que mesmo estando desperto, o paciente passa a não reagir mais
a perguntas nem a estímulos externos, permanecendo imóvel, numa só posição. Certos
psiquiatras dão atualmente um novo nome científico ao estupor: alexithimia, que significa
literalmente, “o sofrimento da falta de palavras”, a impossibilidade de contar e de exprimir a
sua subjetividade. O termo vem do grego a (que significa ausência), Lexis (palavra) e Thymos
(que significa emoção). A palavra grega Thymos, além de designar emocões, pode significar também “alma” ou espírito. Portanto, alexitimia pode também ser definida como a ausência de palavras na alma.
15
Na mitologia grega as Górgonas eram três mulheres monstruosas que podiam petrificar (converter em pedra) alguém que mirasse o olhar delas.
La Mort Dans Les Yeux. Figures de l’autre en Grèce Ancienne Artemis, Gorgô. Paris, Hachette Littérature, 1998.
17
O conceito de estupor tem origem na palavra latina Stupore e significa um estado de entorpecimento ou de paralisia súbita. O estupor é
caracterizado pela diminuição dos movimentos, pelo mutismo e pela aparente indiferença aos estímulos externos.Geralmente associado na
psiquiatria a um tipo de catatonia, o estupor é considerado um dos sintomas para o diagnóstico de alguns tipos de esquizofrenia.
16
38
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
O Itinerário da pesquisa: primeiro desenho:
Foi me interrogando sobre as possíveis causas ou origens dos fatores que engendram a
alexitmia, que cheguei ao primeiro objetivo prático desta pesquisa, o qual resultou em três
produções dramatúrgicas. Pensando na eficácia e poder de integração da narrativa, me
interroguei acerca de situações suscetíveis de provocar o estado de estupor, e cheguei,
então, ao argumento dos meus três textos dramáticos.
A Morte nos Olhos é a fábula de uma moça desmemoriada que acorda num quarto de
uma casa no Sertão do Nordeste sob os cuidados de uma Senhora muito generosa, de nome
D. Maria, que lhe revela as verdadeiras circunstâncias de sua amnésia: a moça foi encontrada inconsciente, à beira de uma estrada deserta e levada à casa de Dona Maria, portando
consigo apenas uma bolsa com um livro de mitologia e as páginas manuscritas de um conto
fantástico inacabado. Por influência e estímulos intensos de Dona Maria, a moça decide
continuar essa história, invocando seres mitológicos e imaginários, mergulhando num universo, onde ficção e realidade, pesadelo e memória se fundem. Não obstante, é nesta aventura que ambas, Dona Maria e a Moça, encontram formas de atenuar a angústia da identidade perdida.
A Memória Ferida reconstitui o trajeto de dois jovens de culturas diferentes que se
reencontram em Montreal, Canadá. Ana Kharima é brasileira e Stéphane é Francês. O encontro casual dos dois num Bistrot Montréalais, desencadeará todo um passado doloroso
vivido em Paris. Mas esse retorno ao passado esconde um outro passado ainda mais longínquo e agudo: Os Pais de Ana Kharima eram militantes que, tentando fugir dos militares no
auge da ditadura, conhecem um destino trágico no Sertão do Nordeste. Na verdade, em
plena preparação de sua fuga, o Pai, acuado pelos militares, prefere o suicídio, estratégia
comum entre os “subversivos desta época”. A mãe, após alguns meses de esconderijo no
Sertão parte em exílio para Paris, mas sem a filha que é deixada sob os cuidados de uma
Senhora num lugarejo árido e desértico. Em Paris, Ana Kharima iniciará a narrativa de uma
“história”, que mais tarde, numa atmosfera de tensão, de crise e de angustia profunda,
Stéphane descobrirá que trata-se, em verdade, da própria história de Ana Kharima e não de
uma ficção como ela própria pretende e como Stéphane cria. É, no entanto, a narrativa, a
reconstituição da história que atenua o terror da memória ferida.
O terceiro texto intitulado Na Outra Margem ocorre num cenário hospitalar, num quarto com apenas um leito e conta a fábula de uma Jovem vítima de um acidente automobilístico grave. Com vários traumatismos físicos e psíquicos, sob efeito intenso de grandes doses de morfina e outros tranqüilizantes, a Jovem vê desfilar diante de si os personagens da
mãe, da enfermeira, da irmã, dos médicos e de seus amantes, os quais lhe reconstituem,
cada um ao seu modo, a sua história de vida. Os eventos são narrados não tal qual eles
ocorreram, mas como eles poderiam ter acontecido. De fato é a (re) Invenção da história
atravessando espaços sociais, culturais e psicológicos diversificados e intensificados, que
39
Antonia Pereira Bezerra
vem instaurar um possível equilíbrio. Por suas eficácias simbólicas, são as imagens e as
fantasias que reestruturam o psiquismo como se quisesse dizer: a porta de entrada para o
real é a ficção.
De posse destes argumentos e profundamente influenciada pelas teorias acerca da
narrativa, dos usos e abusos da memória, desenvolvi dois atos, para cada uma destas peças.
Nestes dois atos, a memória do passado é reconstituída sob a forma de narrativa e testemunhos, através dos quais me esforço para evidenciar que a memória e a imaginação têm
em comum o vetor da ausência: a ausência no presente18. Uma outra problemática debatida nesses textos é a daquele que foi e não é mais, ou não consegue mais sê-lo. A noção de
uso da memória retirada das teorias de Paul Ricoeur é ressaltada no universo destas tramas
na medida em que a prática da memória é exercida não na categoria da memorização, nem
da rememoração diretamente, mas no sentido da invenção criativa, da rememoração
fantasiosa que coloca um termo ao estado de suspensão da consciência, restaurando e
trazendo ao plano do consciente um Saber-Fazer e um Saber-Ser recalcados pelos
traumatismos.
Considerações Finais:
Essa pesquisa situa-se justamente neste terreno tão antigo e familiar onde a dramaturgia
e a encenação teatral abraçam a história, a filosofia e os mitos. Aqui a ancestral tríade teatro/história/filosofia é mais uma vez acessada para abrir as portas do drama aos eventos
relacionados ou ocasionados pela memória e a alteridade. Eventos estes reconstituídos e
fixados sob a forma de narrativa dramática. Se até o momento, me referi apenas aos conteúdos dos textos dramáticos que serão montados ao longo de 36 meses, não significa que
não atribuo importância à forma, à convenção ou às convenções nas quais inscreverei as
montagens de tais fábulas. Acredito como Anne Ubersfeld, que não se escreve para teatro
sem nada saber de teatro. Escreve-se para ou contra um código, uma convenção teatral19.
Importa destacar que na criação cênica se ancoram nas questões acerca do problema da
identidade e de algumas causas da fragilidade da identidade (quem sou eu?); no confronto
com o outro, o estrangeiro que habita fora ou dentro de nós; na incapacidade de definir
uma memória individual face às grandes tradições do olhar anterior e face às memórias
individuais e coletivas do presente e do passado.
18
Asserção de Paul Ricoeur em sua Conferência “Us et Abus de la Mémoire“, proferida no Institut d’Études Doctorales, de l’Université de Toulouse
II, Le Mirail, aos 30 de abril de 1998.
19
École du Spectateur . Paris, Éditions Belles Lettres, SUP, 1995.
40
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
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Antonia Pereira Bezerra
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42
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
UM LÉXICO PARA A ETNOCENOLOGIA:
PROPOSTA PRELIMINAR
Armindo Bião
Desde a proposição da etnocenologia, em 1995, os preconceitos lingüísticos e a necessidade de um vocabulário epistemológico específico têm sido questões centrais na construção dessa nova disciplina (PRADIER, 1995) ou, talvez, melhor dizendo, dessa nova perspectiva transdisciplinar, conforme registra o documento final do V Colóquio Internacional
de Etnocenologia, realizado em Salvador, Bahia, Brasil, de 25 a 29 de agosto de 2007.
O esforço de se conhecer o diferente e o diverso passa pelo desafio de se compreender o discurso do entorno do novo objeto que se quer conhecer, bem como conhecê-lo de
seu próprio interior, inclusive seu léxico e sua língua nativa. A nova forma de se referir, por
exemplo, ao que se chamava, há alguns anos, na Europa ocidental, de “Ópera de Pequim”,
agora denominada de “Jing-Ju”, revela essa busca e a complexidade de nosso desafio. Pois
aqui se trata de uma transcrição fonética do chinês original para a língua francesa. Como se
poderá transcrever Jing-Ju para o português, por exemplo, admitindo-se que todos, entre
o Brasil e a França, compreendam o Jing-Ju como uma forma, uma arte espetacular autônoma e não uma ópera, um teatro, ou uma dança, da China? É fato que o que se chamava
anteriormente de Pequim - em português - e Pékin - em francês, passou-se a chamar mais
recentemente, no Ocidente, de Beijing. O peso crescente da China no panorama mundial
sugere muitas novas mudanças, como, por exemplo, a do antigo Cantão no contemporâneo Cuandong – em inglês, em português? - ou Guangdong ou ainda Kouang-Tong – em
francês?!
A complexidade desse desafio é tão maior quão se pode, facilmente, perceber tratarse de uma busca sem fim e extremamente pretensiosa, esta de se conhecer tudo como
cada um que vive e faz cada coisa o conhece. Talvez tão pretensiosa seja essa idéia quanto
o próprio desejo humano de se construir um edifício até o céu, que, segundo a bíblia cristã,
teria resultado na aparição da multiplicidade de línguas diferentes, no mito da Torre de
Babel. E talvez menos pretensiosa ao se pensar num só objeto. Mas como comunicar seu
conhecimento ao mundo?
Conhecer-se o que não se conhece é se reconhecer, no novo que se busca conhecer,
algo que já existe no velho e, paulatinamente, ir-se transformando (o velho), ao mesmo
tempo em que, inevitavelmente, também se transforma o que se passa a conhecer (o novo).
É se nascer de novo, a cada passo, junto com o próprio caminho que se percorre, transformando-o, continuamente.
Na tentativa – vã? – de contribuir para a construção de um léxico para a etnocenologia
e a partir de meu próprio trajeto e de meus colegas e alunos mais próximos (BIÃO, 2007), é
que proponho o conjunto de 18 expressões da língua portuguesa abaixo, com uma descrição mínima, na esperança de que, eventualmente, possa vir a ser útil.
43
Armindo Bião
No âmbito epistemológico
Assim, inicialmente, no âmbito da epistemologia, consideremos as 12 palavras seguintes, sendo metade delas apresentada a propósito do sujeito da pesquisa e a outra metade,
que comentarei em primeiro lugar, dedicada ao mundo dos objetos.
Dos objetos:
Teatralidade – Palavra dicionarizada em língua portuguesa (HOUAISS, 2001, p. 2682;
AURÉLIO, 1986, p. 1655), originada do vocábulo grego que se constituiu para designar a
ação e o espaço organizados para o olhar, que compreendo como uma categoria reconhecível em todas as interações humanas. De fato, toda interação humana ocorre porque seus
participantes organizam suas ações e se situam no espaço em função do olhar do outro.
Assim, penso em todas as interações mais banais e cotidianas, nas quais, podemos compreender, todas as pessoas envolvidas agem, simultaneamente, como atores e espectadores
da interação (aqui utilizo esses vocábulos do mundo do teatro certamente – e apenas, como
metáfora). A consciência reflexiva de que cada um aí presente age e reage em função do
outro pode existir de modo claro ou difuso ou obscuro, mas nunca de modo explicitamente
compactuado – ou compactuadamente explicitado, o tempo todo. Trata-se de um hábito
cultural enraizado (uma espécie de segunda natureza), individual e coletivo, amplamente
praticado pela maioria absoluta dos indivíduos de cada sociedade, de um modo inerente a
cada cultura, que codifica suas interações ordinárias e transmite seus códigos para se manter viva e coesa.
Espetacularidade – Palavra ainda não incluída nos mais importantes dicionários da língua portuguesa editados no Brasil, derivada do vocábulo espetáculo, de origem latina, destinado a designar o que chama, atrai e prende o olhar (HOUAISS, 2001, p. 1229; AURÉLIO,
1986, p. 704), que compreendo como uma categoria também reconhecível em algumas
das interações humanas. De fato, em algumas interações humanas – não todas – se percebe a organização de ações e do espaço em função de se atrair e prender a atenção e olhar
de parte das pessoas envolvidas. Aí e então, de modo – em geral - menos banal e cotidiano
que no caso da teatralidade, podemos perceber uma distinção entre (mais uma vez, de
modo metafórico) atores e espectadores. Aqui e agora a consciência reflexiva sobre essa
distinção é maior e – geralmente – mais visível e clara. Trata-se de uma forma habitual ou
eventual, inerente a cada cultura, que a codifica e transmite, de manter uma espécie de
respiração coletiva mais extraordinária, ainda que para parte das pessoas envolvidas possa
se tratar de um hábito cotidiano. Assim como a teatralidade, a espetacularidade contribui
para a coesão e a manutenção viva da cultura1.
1
Propus essas categorias em minha tese de doutorado, orientada por Michel Maffesoli (Paris 5 Université René Descartes, Sorbonne, 1990), das
quais também já tratei em português (1991, p. 104-110; 2000, p. 364-367).
44
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Estados de consciência – Esta expressão é parte do jargão das ciências do homem
interessadas nos rituais, que provocam a alteração do modo mais habitual de se ter consciência do mundo e de si próprio. Daí se falar de estados modificados (LAPASSADE, 1987) ou
alterados (BOURGUIGNON, 1973) de consciência, freqüentemente associados, por exemplo, ao transe, ao êxtase e à possessão (BIÃO, 1990, p. 132-142). As interfaces entre as artes
do espetáculo, os rituais e os estados de consciência têm sido constantemente eleitos como
objeto de pesquisa e se constituem em um grupo importante de objetos transversais de
estudos para a etnocenologia. O interesse pelos estados “alterados” de consciência nos
rituais de possessão e cultos religiosos é uma constante, por exemplo, no âmbito da antropologia, que, eventualmente, alude ao teatro, como o faz, por exemplo, Michel de Leiris
(1958). Mais contemporaneamente, a relação entre artes e formas de espetáculo e estados
modificados de consciência tem sido ressaltada2, levando-nos a sugerir que o treinamento
corporal e mental de dançarinos e atores, por exemplo, gera, não apenas estados modificados de corpo, relembrando as reflexões de Marcel Mauss (1985) sobre as técnicas de corpo, mas também gera estados modificados de consciência.
Estados de corpo - Expressão que utilizo em associação à anterior para me referir, por
um lado, à indissociabilidade, tão cara à etnocenologia, entre corpo e consciência e, por
outro, para me reportar às artes do espetáculo que se sustentam, em boa medida, na prática e exercício de alteração dos estados de corpo habituais do dia-a-dia. Problemática essa,
que levaria, por exemplo, Eugenio Barba (1985), inspirado na noção de técnicas de corpo
de Marcel Mauss, a falar de técnicas extracotidianas de corpo. É bem disso do que se trata.
No entanto, do ponto de vista léxico, assim como considero que a expressão antropologia
teatral reforça o etnocentrismo europeu que privilegia o teatro em detrimento de outras
artes e formas espetaculares, também prefiro as expressões estados de corpo e estados
de consciência para tratar dos objetos da etnocenologia. Decerto que esses estados, dinamicamente construídos e mantidos apenas temporariamente, quando nos referimos à vida
da arte, são construídos com base em práticas, comportamentos e técnicas, mas nosso
objetivo aqui e agora é propormos um léxico coerente e o mais simples possível para o
fortalecimento do corpo epistemológico da etnocenologia.
Transculturação - O conceito sugerido por Fernando Ortiz (2003) e comentado por
Rafael Mandressi (1999) se aproxima decerto de algumas possíveis leituras de outros conceitos correlatos mais antigos. Mas sua proposição, cunhando um novo termo, reafirma o
fenômeno do contato cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que
lhes deram origem, o que remete ao desejo de identificação de suas matrizes culturais, o
que só vale pesquisar, nunca é demais reafirmar, considerando-se a certa reconstrução
constante e dinâmica da tradição.
2
Ver, entre outras contribuições publicadas nessa obra, a de Jacques Pimpaneau, “ Les liens entre les cultes médiumniques et le théâtre, entre
les chamans et les acteurs “, in Actes des Rencontres Internationales sur la fête et la communication, Serre/ Nice-Animation, 1986.
45
Armindo Bião
Matrizes estéticas – Essa expressão é mais uma noção teórica “mole” que um conceito
“rígido” (MAFFESOLI, 1985, p. 51, 52 sq., 63), considerando-se que, no âmbito geral da cultura, assim como no campo mais específico da estética, pode-se sempre buscar compreender um fenômeno contemporâneo a partir do esforço de identificação de sua filiação histórica e de seu parentesco atual, com outros fenômenos. A utilização dessa expressão – matrizes estéticas, sempre no plural, possui, do ponto de vista retórico, uma consciente proposição paradoxal, posto que a palavra matriz remete à idéia de mãe, que também remete
à idéia de unicidade, quando pensada como uma e única pessoa, do gênero feminino, que
alimenta em seu próprio corpo e assim é explicitamente geradora de outra, enquanto que
a palavra matrizes multiplica esse ente, ainda que se referindo a um mesmo fenômeno –
seu descendente direto. O que se pretende, ao se recorrer a essa figura paradoxal de linguagem, é chamar a atenção para o fato de que, na cultura, cada fenômeno possui, simultaneamente, múltiplas matrizes, fato que é de diversos processos de transculturação. A isso,
chamei de “família de formas culturais aparentadas [...], “identificadas por suas características sensoriais e artísticas, portanto estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade,
quanto num sentido estrito, de criação e compreensão do belo (BIÃO, 2000, p. 15)”. Assim,
podemos falar, por exemplo, de matrizes estéticas, a partir de referências lingüísticas, religiosas, geográficas, históricas, geo-históricas, étnicas, técnicas, temáticas, teóricas,
tecnológicas etc.
Dos sujeitos:
O conjunto das noções de alteridade, identidade, identificação (MAFFESOLI, 1988), diversidade, pluralidade e reflexividade (GARFINKEL, 1967; TURNER, 1979, p. 65; SCHÜTZ, p.
1987, p. 114 e s.), remete à consciência das semelhanças e diferenças entre indivíduos,
grupos sociais e sociedades, por um lado e, por outro, à capacidade humana de refletir a
realidade e sobre ela, de modo consciente, experimentando e exprimindo sensibilidade,
sensorialidade, opções de prazer, beleza, desejo e conforto. Nesse conjunto de noções, vale
ressaltar a emergência da noção de “identificação”, como uma construção temporária,
existencialista e dinâmica, contraposta à de “identidade”, como uma categoria definitiva,
essencialista e estática, que se encontraria em crise na contemporaneidade.
Alteridade – A categoria de reconhecimento pelo sujeito de um objeto humano (no
caso da etnocenologia), distinto de si próprio.
Identidade – A categoria de reconhecimento da especificidade do sujeito em relação à
alteridade.
Identificação – A categoria de momentâneo reconhecimento do sujeito, em parte ou
no todo, na alteridade.
46
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Diversidade – A categoria que permite ao sujeito reconhecer a coexistência das diferenças humanas.
Pluralidade – A categoria que, como à anterior, dá ao sujeito condições de reconhecer
a coexistência das, reafirme-se, múltiplas e variadas diferenças humanas.
Reflexividade – A categoria referente ao sujeito que dá conta de sua capacidade de
pensamento e teorização (reflexão), espelhando as semelhanças e diferenças reconhecidas
em sua relação com os objetos, suas identidades e identificações.
No âmbito metodológico
O horizonte teórico-metodológico que busca revelar a presente proposição preliminar
de um léxico para a etnocenologia remete à necessária e imprescindível articulação entre
o sujeito e o objeto, retomando, por minha própria conta, as idéias de “objetivação do subjetivo” de Erwin Panofsky (1975, p. 158-170), de “trajeto antropológico” de Gilbert Durand
(1969, p. 38 e s.) e de “trajetividade” de Augustin Berque (1986, p. 147-153).
Dos trajetos:
Objeto – O campo da pesquisa, o fenômeno espetacular de interesse.
Trajeto – As técnicas e princípios que buscam permitir o conhecimento do objeto por
parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e sua opção pelo objeto.
Sujeito – O pesquisador.
Projeto – A proposta construída pelo pesquisador, que explicita o objeto do estudo
pretendido, o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele e sua perspectiva de aproximação e pesquisa.
Dos projetos:
Apetência – A qualidade, simultaneamente essencial e existencial, que justifica o interesse do sujeito em seu objeto e trajeto de pesquisa, sem a qual não se pode construir
competência.
Competência – O conjunto de capacidades, experiências e práticas, que pode ao permitir ao sujeito a plena consecução de seu projeto.
3
Eu próprio, ainda em 1995/ 1996, usei e justifiquei essa palavra (1996, p. 12-20), que se encontra na denominação de uma outra perspectiva
aparentada à etnocenologia, os performance studies (SCHECHNER, 2002), que com ela não se identifica plenamente, mas que com ela pode
eventualmente se confundir (BIÃO, 2007, p. 24), o que temos a pretensão de vir a evitar com a proposição deste léxico.
47
Armindo Bião
Conclusão
A proposição desse léxico é apenas preliminar, mas fruto de reflexão de uma boa dúzia
de anos de pesquisa. Aqui se considerou o poder abstrato e mágico da palavra, bem como
suas possíveis implicações ideológicas, ainda que – admitamos – a partir de nossos próprios preconceitos. Este léxico não levou, por exemplo, em conta, a palavra performance, que
muitos colegas na etnocenologia utilizam. De fato, considero que essa palavra só contribui
para a confusão epistemológica e metodológica na etnocenologia3.
Prefiro, também, para designar o artista do espetáculo, ou o participante ativo da forma
– ou arte – espetacular, palavras com aquelas usadas pelos próprios praticantes dos objetos de nossos estudos, quando se autodenominam de ator, dançarino, músico, brincante,
brincador, sambador e outros, por exemplo. Prefiro sinceramente isso a usar outras palavras, como as que já foram sugeridas por outros (performer, actante, ator-dançarino ou
ator-bailarino-intérprete, por exemplo).
E à palavra performance, tão polissêmica (COHEN, 2006, p. 240-243), prefiro, sempre,
usar espetáculo, função, brincadeira, jogo ou festa, conforme quem vive e faz chama aquilo
que faz e vive.
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49
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
UNA BRÚJULA EN EL TEATRO CONTEMPORÁNEO:
LA TENSIÓN Y SUS MEDIACIONES
Dr. Carlos Alba Peinado*
[Diario de a bordo en latitud y tiempo actuales:]
Parece que la tempestad amaina y esta cáscara de nuez nos mantiene aún a flote en el piélago
de la historia. Hace millas que arrojamos a Fukuyama por la borda y con él la bitácora. Su ruta
no puede ser la única. A la deriva, el firmamento nos ofrece infinitos rumbos en sus constelaciones.
No es posible que todo aquello de lo que hablaban las cartas haya sucumbido en la tormenta.
[Fin del Diario]
Como pueden apreciar, atraco en Bahía con las bodegas a rebosar de desazón europea.
Barriles y barriles de incertidumbre que deseo transformar aquí en una gran armada de
navíos dispuestos a la lucha. No se asusten. No es mi intención reclutarles aquí para
embarcarles hacia un rumbo desconocido ni arrojarles por la borda con las cadenas del
pesimismo a sus pies. Lo único que les pido es indulgencia para atender un discurso que
he concebido precisamente como reacción a esa relatividad indolente y cuyo pretencioso
y prepotente engaste en la racionalidad del viejo continente espero que disculpen.
Comenzaré por una frase lapidaria en la que, sin haber contado con ninguno de ustedes
previamente, ya les hago a todos partícipes de mis preocupaciones: ninguno de los que
estamos aquí podemos ignorar la trágica devaluación que el conocimiento y su aprendizaje
han sufrido en las últimas décadas. Permítanme que asuma la veracidad de esta proposición
sin descender a ejemplos particulares que les resultarían en su ámbito académico,
lamentablemente, muy familiares. Y si el valor del conocimiento decrece, menor aún es el
interés que en los grupos de investigación existe por explorar alguna nueva ruta que nos
ayude a entender quiénes somos y dónde estamos. Hace tiempo que en las humanidades
nos hemos resignado a dejar vagar la balsa sin remos por el pantano de la posmodernidad,
incapaces de avistar otra certeza que la de nuestra propia deriva.
Estemos o no de acuerdo con el relativismo de este punto de vista, lo cierto es que la
duda –más cínica que cartesiana- ha arraigado bien en la sociedad y pocos son ahora los
que se atreven a defender un estatus científico de las ciencias sociales. En su lugar se
prefiere insistir en el carácter subjetivo de la materia social y reducir su análisis a aplicaciones
metodológicas. En el fondo, aferrados a paradigmas de revoluciones pretéritas, los investigadores de lo social admiten su incapacidad para enfrentarse a los problemas teóricos que
plantea la ciencia actual.
* Instituto Politécnico de Leiria
51
Dr. Carlos Alba Peinado
Algunos tratan de enmendar la situación insistiendo en la adopción superficial de los
métodos de las ciencias físicas, a pesar de que Karl R. Popper había ya avisado del riesgo
que suponía aceptar posturas pronaturalistas del tipo: «si le es posible a la astronomía el
predecir eclipses, ¿por qué no le iba a ser posible a la sociología el predecir revoluciones?»
(POPPER, 2006: 50) Así, la introducción de Newton en las ciencias humanas pone al
descubierto una dinámica social cuyos movimientos simulan una tensión entre fuerzas de
la sociedad. Se quiere pensar que estas fuerzas –y no la racionalidad de un planteamiento
evolutivo- son las que provocan la sucesión de las revoluciones en la historia. Sin embargo,
Popper advierte que lo que los sociólogos están tomando como ley universal es en realidad
una metáfora. De ahí que, al ser la física reformulada en un nuevo paradigma a principios
del siglo XX, los métodos de análisis basados en el paradigma anterior –incluidos los métodos sociales decimonónicos- se vuelvan obsoletos. Esto provoca una gran depresión en los
investigadores sociales que solo alcanzan a interpretar los hechos contemporáneos como
una señal de decadencia y extinción, cosa que, en realidad, corresponde únicamente a la
debacle de su propio paradigma. Y es por ello que ante conceptos como el “caos”, la
“indeterminación” o la “probabilidad” del nuevo universo de Einstein el investigador social
opta por aceptar un relativismo vital que poco o nada tiene que ver con su paradigma
científico.
Un caso muy diferente son las ciencias físicas donde la asunción de la teoría de la
relatividad por parte de la comunidad científica no ha sido causa de depresión para el
investigador. Que el universo se haya vuelto inestable y lleno de agujeros negros no ha
deprimido nunca al físico ni le ha llevado a adoptar una postura cínica respecto al mundo.
Muy al contrario. El cambio de paradigma le ha ofrecido al físico un nuevo escenario para
sus hipótesis y le ha permitido, a través del cálculo y de la imaginación, esbozar una nueva
imagen del universo que fuera más exacta que la anterior.
Tenemos así dos reacciones muy diferentes ante la tensión que genera un cambio de
paradigma. En el nuevo sistema, además, el físico ya no es un investigador que trabaje
únicamente con hechos reales y experimentables. Como nos indica John Gribbin, profesor
de Astronomía en la Universidad de Sussex, el observador es, en la física cuántica, «una
parte integrante del experimento: lo que el observador decida mirar desempeña un papel
fundamental en lo que ocurrirá». (GRIBBIN, 2007: 33) Así sucede, por ejemplo, en los experimentos con electrones y otras partículas subatómicas que llevaron a los investigadores a
abandonar el concepto de trayectoria newtoniano y sustituirlo por el nuevo término
einsteiniano de evento. Los eventos siguen sucediéndose en una línea temporal pero incluyen
también posibilidades de variación allí donde el observador haya dejado de actuar. El físico
asume así su incidencia en el experimento y aprovecha su creatividad para generar ex nihilo
nuevas partículas como el positrón, el pión, el mesón, el muón, los hadrones, los leptones,
los bosones, los fermiones, etc. Antes de ser descubiertas en los laboratorios todas estas
52
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
partículas han sido formuladas en la necesidad del cálculo tratando así de anticipar una
representación imaginaria del universo.
¿Por qué, por lo tanto, si la representación imaginaria del universo constituye un fin
para toda ciencia resulta ésta menos creíble –menos racional- en el caso de las ciencias
humanas que en el de las físicas? Apenas nadie cuestiona la entidad científica de una
investigación sobre leptones y en cambio la gran mayoría de la sociedad se muestra
sorprendida –cuando no reacia o indiferente- ante una pesquisa científica sobre, por ejemplo,
el romanticismo o el realismo. ¿No son ambos eventos productos de una mente humana
que trata así de aprehender el mundo en el que vive? ¿No será que la aparente diferencia
entre las ciencias no reside tanto en la naturaleza del sujeto investigador –que al fin y al
cabo persigue el mismo fin de una representación imaginaria de su universo- como en la
pertinencia del método utilizado?
Esto fue lo que le llevó a Ángel Berenguer de la Universidad de Alcalá a revisar las bases
sobre las que se estaban realizando los estudios de teatro en España. Descubrió que
efectivamente los métodos utilizados no correspondían con los paradigmas que estaban
vigentes en la ciencia. Basada en conceptos como generación o estilo, la historia del teatro
español se reducía a una relación de textos literarios en los que el autor no constituía más
que una anécdota. Todos esos estudios parecían ignorar que el teatro es esencialmente
representación1 y que más allá de la elocución de un texto y la ejecución de unos movimientos
existe un creador que está tratando de transmitir precisamente su propia representación
imaginaria del universo.
Durante las últimas dos décadas, Ángel Berenguer ha estado trabajando en la
construcción de un método científico con el que fuera posible la observación del teatro
contemporáneo sin tener que aislar su representación de la actividad biológica del creador.
El reto constituye uno de los principales intentos que existen en la actualidad para reconciliar los paradigmas sociales con los nuevos avances de la ciencia. No se trata aquí, como
veremos, de adoptar superficialmente un paradigma biológico de análisis –en el sentido
plagiario que lo entienden los pronaturalistas- sino de comprender la producción escénica
como la reacción que experimenta y construye un sujeto biológico-creador ante las
agresiones que le está infringiendo su Entorno.
Y ahora detengo las máquinas e inicio la inmersión en este método. Por cuestiones de
tiempo –y para no abusar de la paciencia de la tripulación- voy a realizar tan sólo dos calas
en el sistema de Berenguer. La primera tiene que ver con el concepto de tensión que es la
brújula conceptual que nortea esta propuesta metodológica. La segunda, y vinculada
estrechamente con la anterior, nos permitirá entrar en contacto con las mediaciones que
constituyen en sí los instrumentos de análisis más adecuados para la comprensión de una
obra de arte generada desde la tensión a la que aludíamos antes.
1
«El teatro es, fundamentalmente, una acción en la que se representa una sucesión de circunstancias. Esta acción es siempre imaginaria y se realiza ante un público colectivo,
en un lugar previamente convenido y por unos personajes encarnados material y circunstancialmente por actores.» (BERENGUER, 1992: 156)
53
Dr. Carlos Alba Peinado
La tensión y la génesis de la reacción
Desde las primeras Poéticas el conflicto dramático ha determinado la acción dramática
y su desenlace final ha sido la base de la tipología de géneros dramáticos que aún utilizamos hoy. Sin embargo, el conflicto así concebido parece afectar únicamente a las fuerzas
agónicas que intervienen en el plano imaginario de la representación. Es un simple conflicto
entre personajes: protagonista versus antagonista. Pero ese conflicto que es el que le llega
físicamente al espectador a través del escenario está motivado en el plano conceptual del
autor por una tensión particular que éste mantiene con su Entorno. Podemos, por lo tanto,
entender toda obra dramática como una reacción que el autor establece en un plano
imaginario y a la cual es incitado por una serie de motivos que proceden de su realidad más
íntima.
La tensión se convierte así en la clave para entender cómo una obra de arte se relaciona
con su creador. El cambio de perspectiva que supone pasar de un análisis de conflictos a un
análisis de tensiones implica ya una transformación de paradigma. La obra deja de entenderse
como un ámbito de análisis cerrado y se convierte en parte del sistema vital que mueve al
artista. De algún modo, Berenguer está integrando en su método el aserto orteguiano de
“Yo soy yo y mi circunstancia”. En un prólogo que redactó el filósofo español a principios de
los años treinta para sus lectores alemanes afirmaba: «El sentido de la vida no es, pues, otro
que aceptar cada cual su inexorable circunstancia y, al aceptarla, convertirla en una creación
nuestra.» (ORTEGA Y GASSET, 1981a: 51) Esta aserción le lleva a reflexionar sobre la relación
que el hombre mantiene con el mundo a lo largo de la historia y descubre que tras la
pérdida de confianza en la religión al final de la Edad Media, el Renacimiento se convierte
en «la inquietud parturienta de una nueva confianza fundada en la razón físico-matemática,
nueva mediadora entre el hombre y el mundo.» (ORTEGA Y GASSET, 1981b: 19)
Efectivamente, Berenguer sitúa el origen de la tensión en la escisión que comienza a
producirse entre Yo y Entorno a partir del Renacimiento y que será experimentable por
todos los ciudadanos durante la edad contemporánea. En este proceso la nueva definición
que recibe el Yo en el sistema cartesiano es un punto de partida que nos lleva a la revolución
copernicana del sujeto kantiano: ahora ya no es el objeto-sol el que gira sobre el sujetotierra sino viceversa; el sujeto orbita en torno al objeto para determinar las posibilidades
de su conocimiento. Esto supone ciertamente una gran revolución en el pensamiento pero
adquiere aún mayor relevancia al haberse descubierto recientemente que ese nuevo Yo
aparece como resultado de la activación en la especie humana de un cerebro ejecutivo.
Según Elkonon Goldberg, neurólogo que ha dedicado sus investigaciones a descubrir
cómo funciona este cerebro ejecutivo:
La capacidad para responder a estímulos externos es el primer atributo de un cerebro
primitivo. En un ambiente rico en sucesos, sin embargo, tal cerebro primitivo quedará
inmediatamente abrumado por una plétora de distracciones aleatorias. En un cerebro más
54
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
complejo, esto quedará equilibrado por un mecanismo que protege al organismo del caos
de la aleatoriedad y le permite seguir su camino en búsqueda de un comportamiento particular. La evolución del cerebro se caracteriza por la transición lenta y laboriosa desde un
cerebro que simplemente reacciona hasta un cerebro capaz de sostener una acción deliberada y sostenida. (GOLDBERG, 2004: 142)
Berenguer concibe así al Yo como «la perspectiva del individuo que ha sido elaborada por su cerebro ejecutivo y que se convierte en la medida de la realidad en que está
inmerso.» (Berenguer, 2007: 19) Este cerebro establece estructuras y funciones a fin de
conseguir una adaptación biológica de todo el ser al nuevo Entorno. Este Entorno es concebido a su vez como «el conjunto de señales y circunstancias que, de algún modo, imponen
al YO un marco definido de actuación.» (BERENGUER, 2007: 19)
La función ejecutiva aparece en la historia del hombre como el resultado de una
evolución al final de la cual los lóbulos frontales se han convertido en los órganos de control
de la persona. Esto provoca también un cambio de perspectiva a la hora de entender el
funcionamiento modular de los hemisferios. La diferencia entre ambos no está en su
procesamiento de contenidos sino en su especialización para atender la novedad cognitiva
y la rutina cognitiva. Como explica Goldberg:
En una etapa primitiva de todo proceso de aprendizaje el organismo se enfrenta con la
“novedad”, y la etapa final del proceso de aprendizaje puede considerarse como “rutinización”
o “familiaridad”. La transición de novedad a rutina es el ciclo universal de nuestro mundo
interior. (GOLDBERG, 2004: 60)
A partir de aquí Berenguer diferencia entre un Yo individual que opera con el lóbulo
derecho y que por lo tanto trabaja con proyectos relativamente nuevos y un Yo transindividual
que activa el lóbulo izquierdo y que ejecuta líneas de producción ya probadas y establecidas.
Esto significa que el Yo individual está generando las estrategias con las que el sujeto responde a las agresiones del Entorno mientras que el Yo transindividual está conformando
reacciones, entendidas éstas como «sistemas de respuesta a la agresión del Entorno (motivos) que recogen las estrategias positivas del Yo individual (en su búsqueda de los valores
fundacionales: autenticidad) y las adopta cómo fórmula para la adaptación del grupo al
Entorno cambiante.» (BERENGUER, 2007: 22) De una forma algo más elemental ya había
formulado algo parecido el filósofo de origen español George Santayana: «Los impulsos
humanos convulsionan a la sociedad, pero las necesidades humanas la estructuran».
(SANTAYANA, 1954: 20)
Berenguer redefine así aquellas estructuras significativas que dotaban de coherencia al
estructuralismo genético de Lucien Goldmann2 y las libera del marco marxista sin tratar de
2
A pesar del interés que despertó su sociología en las décadas de los sesenta y los setenta en toda Europa, Lucien Goldmann es en la actualidad un pensador muy desconocido
en las universidades españolas y sus textos son muy difíciles de conseguir en español. Sin embargo, en Brasil los trabajos de Celso Frederico citados en la bibliografía - «A
sociologia da literatura de Lucien Goldmann» (2005) y Sociología da cultura. Lucien Goldmann e os debates do século XX (2006)- han devuelto el interés en lengua
portuguesa sobre este intelectual.
55
Dr. Carlos Alba Peinado
adscribirlas a unas clases sociales determinadas. La asimilación y acomodación del individuo
de Jean Piaget perviven en el método de Berenguer frente al desfase que experimentan
los fines abstractos de unas clases sociales que son cada día más heterogéneas. Si Goldmann
había dotado al Yo transindividual de una cierta voluntariedad –recuérdese a los tres hombres
que mueven el piano- en contraste con la pasividad de la conciencia colectiva de Émile
Durkheim –el Estado como órgano de pensamiento social-, Berenguer logra además dotar
de una motivación individual la adscripción del Yo a su visión del mundo. Son los individuos
y no los grupos los que generan las manifestaciones artísticas y éstas surgen tanto de la
creación de nuevas estrategias por parte del autor como de la adopción –siempre individual- de reacciones que ayudan a transmitir un determinado mensaje.
El Yo actúa así frente a su Entorno y el Entorno modifica sus propias características como
resultado de esta interacción. El mundo contemporáneo se entiende así como el proceso
que nos lleva de una sociedad cerrada, regida por un sistema de tribus, clanes y tabúes, a
una sociedad abierta donde la razón organiza las relaciones entre iguales. El proceso de
apertura está íntimamente conectado con la activación del cerebro ejecutivo ya que una
sociedad abierta implica una mayor participación del sujeto en su toma de decisiones
personales. En este sentido, Popper nos remite de nuevo a la tensión como concepto fundamental que cohesiona a una sociedad abierta:
Es la tensión creada por el esfuerzo que nos exige permanentemente la vida en una
sociedad abierta y parcialmente abstracta, por el afán de ser racionales, de superar por lo
menos algunas de nuestras necesidades sociales emocionales, de cuidarnos nosotros solos
y de aceptar responsabilidades. (POPPER I, 1992: 173).
Y es esta tensión la que Thomas Kuhn (1977) reclama como “esencial” en todo progreso
científico. Si bien es cierto que el investigador debe ser innovador, debe poseer una mente
flexible y debe de saber reconocer los problemas allí donde se presenten, es también
necesario que este científico esté comprometido con la ciencia de su tiempo. El avance
depende de una gestión acertada de la tensión que exista entre innovación y tradición,
entre rutina y novedad. De ahí que la razón –como observó Santayana- en lugar de concebirse
como una nueva fuerza del mundo físico haya de entenderse como una nueva armonía de
las fuerzas vitales. (SANTAYANA, 1954: 449)
La tensión, opina finalmente Berenguer, lejos de concebirla como la fuente del estrés,
hay que considerarla como el impulso que permite a un grupo humano tomar conciencia
de que «su éxito como especie estará ligado a su comprensión racional de los fenómenos
naturales y las leyes de la naturaleza para elaborar respuestas adecuadas y responsables a
las inclemencias del Entorno natural.» (BERENGUER, 2007: 19)
Las mediaciones como instrumentos de análisis
Si toda obra tiene su génesis en la tensión y es esta tensión la que además le confiere
unidad y complejidad, deberíamos plantearnos qué clase de instrumentos de análisis serían
56
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
adecuados para comprender los parámetros que conforman esa tensión. La elección de
estos instrumentos debería ser coherente tanto con la propia naturaleza de la tensión como
con la constante mutación que experimentan el Yo y el Entorno en cada evento
contemporáneo.
Es aquí donde Berenguer rescata el concepto de mediación que Goldmann había
asignado a las visiones del mundo como entidades intermediarias entre la vida económica
de una sociedad y sus expresiones culturales. De esta forma Goldmann había adaptado a la
sociología de la literatura el concepto hegeliano de saber mediato que implicaba un reflejo
de la realidad y que permitió en la corriente marxista la expresión de relaciones concretas.
En Berenguer la mediación «constituye el conjunto de hechos, ideas y experiencias que
afectan al individuo y generan su inserción en un determinado grupo humano de modo
permanente, o temporal, en el caso de personas cuya orientación ideológica cambia radicalmente en distintos períodos de su vida.» (BERENGUER, 1995: 8) Obsérvese que aquí la
mediación no es tanto el reflejo de las estructuras económicas en una producción cultural
como el instrumento que nos permite analizar desde la tensión la complejidad de la perspectiva del individuo.
El estudio de la mediación no implica, en absoluto, que el crítico deba dedicarse a la
reconstrucción lógica del proceso de creación. Pues lo cierto, como advierte Popper en La
lógica de la investigación científica, es que tal proceso no existe. (POPPER, 1985: 31) El propio
Einstein, como nos recuerda también Popper, reconoce que no hay una senda lógica que
nos lleve a unas leyes universales a partir de las cuales podamos obtener una imagen del
mundo por pura deducción. Esto es sólo posible a través de la intuición. Y es así como hay
que entender el empleo de la mediación como instrumento de análisis crítico que en buena
parte concuerda con la afirmación que Henri Bergson lanza en La evolución creadora: «la
realidad está ordenada en la medida exacta en que satisface nuestro pensamiento».
(BERGSON, 1994: 200) Sorprende observar cómo Bergson ya en 1907 postulaba dos tipos
de órdenes -uno vital que sigue la dirección de lo natural y otro inerte que invierte esa
dirección hasta llegar al automatismo- que corresponden casi de forma exacta con el
procesamiento cognitivo de la novedad y la rutina en el cerebro ejecutivo.
Berenguer, al establecer la mediación como el instrumento de análisis fundamental de
su método, trata así de reconciliar la intuición que interviene en el proceso de creación con
la necesidad de establecer un sistema crítico que permita la comprensión de aquella
creación sino de una forma deductiva, sí al menos intuitiva. Así diferencia entre tres tipos
de mediación: histórica, psico-social y estética.
La mediación histórica nos permite contemplar en un proceso diacrónico cómo las
personas se reúnen en grupos de conciencia activa y concretan así un posicionamiento político. Como señala Berenguer,
En el terreno específico del teatro, el sistema de valores que determina su
“contemporaneidad” debe buscarse tanto en los constantes cambios de las mentalidades
57
Dr. Carlos Alba Peinado
que se llevan a cabo desde la terminación del Antiguo Régimen, como en el conjunto de
factores históricos (políticos, filosóficos, tecnológicos, etc.), así como en los elementos
específicamente “teatrales” (escenarios plurales, centrales, técnicas de iluminación y de
actuación, etc.) cuyas referencias históricas anuncian o revelan ese carácter contemporáneo.
(BERENGUER, 1995: 10)
No se trata, por tanto, de historiar en el sentido positivista de la acumulación de datos
sino de descubrir en los eventos históricos – y recuerden la diferencia entre evento y
trayectoria que señalábamos al principio- aquellos motivos que estén relacionados con el
proceso de creación.
La mediación histórica nos concreta así las coordenadas espacio-temporales a través de
las cuales debemos valorar la naturaleza de la tensión que existe entre un creador y su
Entorno. El estudio específico de esta relación, sin embargo, es el objeto de la mediación
psicosocial. En ella vemos cómo el Entorno «desarrolla una visión de la realidad que afecta al
grupo, conforma el universo en el que se identifica un colectivo determinado, y sirve de
sustento a la génesis de ortodoxias.» (BERENGUER, 1995: 11) Su conexión con el creador se
realiza a través de su Yo transindividual que es de quien depende su adscripción a una
visión del mundo determinada. Pero muchas creaciones serían inexplicables si atendiéramos
sólo a estos aspectos sociológicos del Entorno. De ahí que Berenguer incida en la importancia
de la conciencia individual, «a través de la cual una persona decide y diseña su
posicionamiento así en la vida como en el arte, y se generan fórmulas heterodoxas.»
(BERENGUER, 1995: 12)
Esta relación problemática del Yo con su Entorno es la que explica en parte la desazón
con la que comenzábamos este artículo. El Yo percibe la realidad cada vez más como una
experiencia individual lo que produce una gran inestabilidad en los valores del Entorno. El
individuo ha de ir adaptándose constantemente a los cambios que el Entorno le hace experimentar y de los que se siente cada vez más responsable. El análisis de esta mediación
resultará fundamental para conocer el posicionamiento del creador y su capacidad para
transformar o ser transformado por su propia realidad.
Por último, la mediación estética se ocuparía de analizar las estrategias que diseña el
creador para trasladar al plano imaginario de la representación su respuesta a la agresión
que ha recibido del Entorno. En ella se incluye el origen de los conceptos y las técnicas
aplicadas a la formulación artística así como las diversas reacciones que los grupos humanos aceptan como expresión de su respuesta colectiva a esa misma agresión.
En este sentido, nuestro análisis de un arte en tensión nos lleva a interpretar la sucesión
de paradigmas artísticos como una dialéctica entre el impulso renovador del Yo y la actitud
preservadora del Entorno. Así la respuesta que ofrece el Yo a las revoluciones americana y
francesa de finales del siglo XVIII configura la reacción romántica donde la supremacía de
ese YO –original y sublime- acabará, poco después, sucumbiendo a la reacción realista de
los que consideran urgente una descripción detallada del nuevo Entorno. Ambas reacciones,
58
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
no obstante, hay que considerarlas contemporáneas pues más allá de que la reacción
obedezca a los intereses del Yo o del Entorno siempre implica una búsqueda –para su
implantación o para su preservación- de los valores fundacionales de la revolución: libertad,
igualdad y solidaridad. De ahí que Berenguer considere como factor fundamental para entender el arte contemporáneo la simultaneidad de sus lenguajes artísticos que «constituyen
cauces abiertos ante los creadores, quienes transitan uno u otro (con márgenes que van
desde la fidelidad casi absoluta hasta la transformación completa del estilo elegido) desde
el criterio de su adecuación para expresar la visión del mundo que la obra transpone.»
(BERENGUER, 2001: 25)
***
Emerjamos de nuevo a la superficie. Evidentemente, estas dos calas que acabamos de
realizar en la metodología de Ángel Berenguer son insuficientes para realizar siquiera un
pequeño esbozo del sistema en su conjunto. Aquellos que deseen profundizar en él pueden
hacerlo a través de la bibliografía que aquí adjunto. Ignoro, por otra parte, si he conseguido
transformar alguno de aquellos barriles de incertidumbre que crujían en la travesía en alguna
que otra cáscara de nuez con la que enfrentarse, como el Capitán de Shakespeare, a la
Tempestad. Si fuera así, mío no es el mérito que es del Capitán. Y si no, les ruego me perdonen
el mareo del oleaje.
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Teatrales nº 1, Universidad de Alcalá, pp. 155-179.
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Estudios Teatrales nº 6-7, Universidad de Alcalá, pp. 7-23.
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____ (2001), «El Teatro y su Historia (Reflexiones metodológicas para el estudio de la
creación teatral española durante el siglo XX» en Teatro. Revista de Estudios Teatrales nº
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Dr. Carlos Alba Peinado
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la Sociedad y el Gobierno, Buenos Aires: Editorial Sudamericana, (Trad. Guido F. P. Parpagnoli).
60
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
O RITUAL E O LÚDICO NAS TRADIÇÕES CULTURAIS:
poéticas e performances
Célia Conceição Sacramento Gomes1
Os criadores de cultura criam, educam sua gente: são intelectuais.
Joel Rufino dos Santos
A produção das formas de comportamento denominada de espetaculares indica uma
condição específica que expressa a maneira de ser, de se comportar, de se apresentar de
forma distinta do cotidiano. Esse modo espetacular pode ser observado nas cerimônias,
festejos, rituais religiosos e folguedos2, tradições culturais que revelam padrões característicos de representação de um determinado enredo que se tece no âmbito de uma comunidade, legitimando suas práticas coletivas.
Essas manifestações possuem um sentido próprio que é singularizado por um conjunto
de elementos como danças, músicas, figurinos e figuras representativas que colocam em
cena um enredo cuja narrativa expressa o imaginário coletivo, a realidade social e a história
de vida dos praticantes de cultura.
Nas manifestações populares tradicionais os grupos culturais levam para a rua seus
conhecimentos, mitos, crenças e rituais apresentados como brincadeiras, que para eles significam uma prática cultural comunitária. Refere-se a uma produção coreográfica que comporta a re-criação de eventos como festas, peditórios, folguedos, cortejos e outros. A ação
criadora desconstrói modelos e práticas corporais na busca do equilíbrio e do novo.
O corpo em performance dos brincantes3 dessas práticas culturais representa uma realidade concreta, que é a ritualização do enredo construído pelo grupo, originário de matrizes culturais ancestrais reinterpretadas. Eles elaboram uma releitura com base no ritual e
no lúdico (que expressa, de certa forma, uma sátira e uma comunicação metafórica); operando entre a tradição e contemporaneidade, consolidam as matrizes culturais que lhes
deram origem e incorporam transformações.
Esses elementos às vezes se justapõem realizando um processo de interação dinâmica,
verdadeiras teias que contêm significados cujos signos aludem a mitos e rituais, revelando
um modo de ser e de se comportar da comunidade.
Na concepção de Valle4, os folguedos “...propõem à percepção, diversas dimensões da
realidade, bem como vários ângulos através dos quais ela pode ser captada e compreendida”.
1
Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia. Autora do livro Teatralidade e Performance ritual dos folguedos da Ilha de Itaparica, publicado em 2004.
Psicóloga. Especialista e Professora Titular em Psicodrama pela Federação Brasileira de Psicodrama.
2
3
4
Manifestações populares caracterizadas por danças, cantos, rituais; festas, brincadeiras.
Termo adotado pela autora para denominar os participantes de folguedos, por ter uso corrente na literatura, quando se fala sobre os performers dessas tradições.
VALLE, Christina. Revista da Bahia. 2004, p. 8.
61
Célia Conceição Sacramento Gomes
O ritual, público ou privado, engendra uma percepção diferenciada, dialética e simbólica de aspectos do cotidiano da vida social de um povo.
O carnaval, festa que ritualiza eventos do contexto social, expressa, em suas várias dimensões, comportamentos que refletem, no ato de brincar, a alegria, o protesto político, o
deboche, a crítica social.
Em Salvador foi instituído oficialmente em 1897, mais restrito à população branca, que
desfilava nas principais ruas da cidade nos seus elegantes carros alegóricos. Os batuques e
outras manifestações representativas da população negra, que desagradavam a maioria da
classe média urbana, ocupavam espaços controlados, sujeitos a regras e concessões.
No entorno da Baía de Todos os Santos encontra-se a Ilha de Itaparica, uma das regiões
que integram o Recôncavo baiano, área de grande diversidade cultural e econômica, onde
se encontra extenso conjunto arquitetônico colonial e barroco “...um importante núcleo de
cultura lusa e a mais vigorosa comunidade africano-brasileira que traduz e representa muito da própria formação histórica do Brasil5”.
A Ilha de Itaparica é a maior da Baía de Todos os Santos. Nos três primeiros séculos do
Brasil Colônia, abrigou a mais intensa atividade produtiva do Recôncavo da Bahia, fornecia
matéria-prima e a cal usada na construção das edificações da cidade de Salvador, os engenhos de cana-de-açúcar produziam grande riqueza, mantendo-se esse apogeu econômico
até meados do século XIX.
Essa produção era transportada para o Porto de Salvador por meio de saveiros, embarcações típicas do Recôncavo feitas de madeira, de casco afilado e comprido, de fundo chato,
com mastros e velas, que possuem categorias distintas (de carga, barra-fora, de passagem, de
pesca, de vela de içar, entre outras). Construídos em estaleiros da região faziam a ligação do
Recôncavo com a cidade de Salvador até a metade da década de 70 do século passado.
Ir para a Bahia era deslocar-se para Salvador, exclusivamente pelo mar, o que se constituía em uma aventura, pelas dificuldades da viagem e características das embarcações
(prioritariamente destinadas ao transporte de carga e à pesca). O distanciamento do continente contribuiu para a preservação dos costumes e das tradições culturais da região como
os afoxés, o batizado do menino morto, os cortejos fúnebres, os ternos de reis, os cortejos
dos Presentes às Águas ou à Rainha do Mar.
Na Ilha de Itaparica onde desenvolvi pesquisa de campo para a Pós-Graduação em Artes Cênicas6, observei que essas práticas culturais rememoram e recriam importantes elementos rituais das culturas africanas e indígenas. Apresentam modelos distintos que indicam características singulares de cada comunidade: a produção artística, suas linguagens e
estéticas; condições geográficas; formas de liderança; visão de mundo; concepção de religiosidade, de cultura e de tradição.
5
BRANDÃO, Maria de Azevedo (Org.). Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. 1998.
6
GOMES, Célia. Dissertação de Mestrado - A espetacularidade dos afoxés: a religiosidade nas manifestações populares da Gamboa - Ilha de Itaparica. 2003. 205 f.
62
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
O cenário em que acontecem essas manifestações são as ruas, os rios ou matas, o mar,
as portas das casas, as praças. O espaço circunscreve um tempo e uma cosmo visão que
privilegia a natureza e comporta as interações comunitárias, com suas alianças e dissidências. O tempo tem como referência a dimensão estética, no sentido de uma
multissensorialidade que prioriza os sentidos, sem desconsiderar a lógica e a necessidade
de reinventar para sobreviver e viver em harmonia com o ambiente.
O corpo nesse contexto pode ser conceituado como espaço de inscrição da memória
pela performance; vincula-se à cultura, à religiosidade, ao lúdico e ao ritual, com suas formas singulares de organização no tempo e no espaço. Segundo um dos organizadores dessas manifestações: “o fundamento é uma forma de ligar as pessoas, pois todos comungam
dos mesmos princípios”.
Na comunidade de Barra Grande, município de Vera Cruz - Ilha de Itaparica, a Santa
Mazorra é uma tradição que reúne um grupo de homens que após o Carnaval, na quartafeira de cinzas, ainda saudosos da folia, saem pelas ruas da localidade visitando as casas
cantando e dançando, para recolher donativos para uma feijoada.
O símbolo da brincadeira7 é o jegue, animal que segue à frente do grupo todo enfeitado
com folhas, fitas coloridas, lenço nas orelhas e outros adereços disponíveis na hora do festejo; ele carrega dois caçuás (espécie de cesto confeccionado com cipó), onde são colocados
os produtos arrecadados. Quando chegam às casas cantam e dançam ao som das palmas e
instrumentos de percussão que marcam o ritmo das músicas. As cantigas fazem troça e
falam de forma jocosa sobre a Santa Mazorra, improvisando e satirizando as pessoas que
porventura não queiram contribuir com a brincadeira durante o percurso.
Durante o trajeto alguns componentes saem, outros se integram ao grupo, até fazer
todo o roteiro que vai sendo definido ao longo do caminho. Com as contribuições recolhidas é feita a feijoada para todos os participantes e a brincadeira continua. O grupo é comandado por um líder que puxa as cantigas; usa um figurino muito colorido e espalhafatoso, chapéu ornamentado, óculos escuros, barbicha e é o responsável pelo enredo, que vai
sendo desenvolvido livremente, conforme o que foi transmitido pela tradição oral; tudo
acontece no aqui e agora do evento.
A performance possui aspectos em comum com o jogo, o esporte e o rito. Existe em um
“mundo especial” que, conforme Pearson está submetido a normas, estratégias, jogos e
acordos que dependem do controle dos participantes do evento. É um mundo de interações
humanas dinâmicas em que se relacionam performer e espectador. Nas performances rituais. “...O tempo possui uma ordenação, que possibilita uma reescrita da história da própria
comunidade. ...Sua matéria central não é apenas um roteiro, mas um conjunto complexo de
regras e engajamentos8”.
7
8
Termo com o qual os habitantes da região denominam os eventos que fazem parte das tradições da comunidade.
PEARSON, Mike. Reflexões sobre a etnocenologia. In: Etnocenologia - textos selecionados. GREINER, Christine e BIÃO, Armindo (Orgs). 1999, p.157.
63
Célia Conceição Sacramento Gomes
A forma de elaboração da realidade, de lidar com a natureza, o respeito aos princípios
coletivos constroem uma concepção de si e do outro que denota um significado de existência. Nesse sentido a comunidade define e exercita paradigmas de convivência que orientam com simplicidade e autenticidade a conduta grupal.
Quando a etnocenologia lança um novo olhar sobre essas tradições identifica-as como parte de um “processo de trocas entre pólos interculturais” para “estabelecer padrões de análise
que lhe permitam observar os processos de interatividade presente nas manifestações enfocadas
adotando a perspectiva da transculturalidade”9; desta forma, ultrapassa o conceito de intercâmbio cultural para valorizar os saberes específicos e a história de cada povo.
Le Breton10 afirma que “...o homem africano tradicional está submergido no cosmos, na
comunidade, participa da linhagem de seus antepassados, de seu universo ecológico e tudo
isto está no fundamento de seu ser. É uma espécie de intensidade, conectada com diferentes
níveis de relação. Desta trama de intercâmbios extrai o princípio de sua existência”.
Esse importante legado dos antepassados contribui para o processo de desenvolvimento sócio-cultural das comunidades, possibilitando a afirmação de suas origens e de
seus valores identitários.
As manifestações tradicionais evidenciam uma combinação de aspectos do mundo real
e do mundo imaginário que se fundem pelo simbólico; representam uma forma de sair da
rotina do cotidiano e viver o contexto da partilha, do encontro, por meio do ritual e da
brincadeira.
Geertz11 menciona que a cultura “...denota um padrão de significados transmitido historicamente, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por
meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e
suas atividades em relação à vida”.
Estas práticas possuem uma linguagem simbólica e subjetiva organizada como registros que preservam a memória do corpo; focalizam os elementos da história dos praticantes de cultura reescritos pela memória performática, explicitando o que o texto escrito não
revela. Por serem transmitidos de forma poética, permanecem como função criadora e
transformadora dos grupos que detêm esses saberes.
A tradição não tem um sentido literal apenas de uma festa, mas uma afirmação da religiosidade, na medida em que para os brincantes significa uma obrigação. A religiosidade
representa um valor social, uma visão de mundo, uma forma de relação, recriação e
harmonização da comunidade para manter vivo seu patrimônio cultural.
9
GUINSBURG, J. FARIA, J. R.; LIMA, M. A. Dicionário do teatro brasileiro. 2006, p.139.
10
11
LE BRETON, David. Antropologia del cuerpo y modernidad . 1995 p. 25 (tradução minha).
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1989, p. 66.
64
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A dimensão comunicativo-simbólica inerente a esses eventos indica a existência de
vínculos importantes que orientam a elaboração, desenvolvimento e fruição, criando uma
rede de relações que institui e fortalece a identidade do grupo.
O ritual tem a função de ajudar as pessoas a retomarem suas memórias; a esse respeito,
Schechner12 afirma que “os rituais são memórias em ação, codificadas na ação. ...Ritual e
jogo, ambos conduzem as pessoas a uma “segunda realidade”, distinta da vida habitual”. O
lúdico designa uma forma simbólica de manifestar princípios e convicções e possui uma
função social, pois se constitui numa maneira criativa de tratar de temas por vezes complexos, com leveza e descontração.
Na Ilha de Itaparica os afoxés são sistemas complexos de performances rituais cujos
pilares fundamentais são os elementos da cultura afro-indígena. Observa-se que os
brincantes realizam uma leitura própria de alguns aspectos das religiões de matriz afrobrasileira, criando uma performance que se diferencia do gestual litúrgico.
O lúdico é a forma como os brincantes constroem a linguagem ritualística do folguedo, que
é apresentado por suas figuras representativas. Os rituais de preparação que antecedem o
desenvolvimento do enredo são essenciais, porque sem eles a brincadeira não se realiza.
O Pai João é o adivinho e curandeiro, um homem “engraçado e espirituoso”, responsável
pelo ritual de botar a mesa do afoxé. Usa a palavra para convencer e comunicar suas idéias e
propósitos de resolver problemas espirituais, afetivos, materiais e de toda ordem. Na religiosidade africana a comunicação é essencialmente oral, “...sendo a palavra agente mobilizador
por excelência”13.
Usando um figurino muito colorido, composto de bata, colares e uma espécie de boina,
o Pai João emprega a linguagem da comédia, para fazer adivinhações e receitar mezinhas,
curando os males dos donos das casas visitadas no cortejo pelas ruas da localidade. Ele
monta o cenário nas portas das casas para fazer a consulta e, desse modo, ganhar algum
auxílio para a brincadeira. Os brincantes ficam em círculo, o dono da casa fica no centro da
roda e o público em volta deles acompanhando o desenrolar da trama. Os assistentes do
adivinho, a um chamado deste aproximam-se, cada qual com sua função.
A Mãe Pequena delimita o espaço da consulta estendendo uma toalha branca no chão e
amparando o curandeiro quando ele entra em transe. No seu mocó14 ela traz as folhas para
tirar tizanga e os búzios para fazer o jogo de adivinhação.
Os Caboclos procuram auxiliá-lo a encontrar as respostas necessárias para resolver os
problemas; representam a concepção dos participantes do folguedo sobre os nativos, os
donos da terra. Além disso, simbolizam entidades das religiões afro-brasileiras que habitam as matas e florestas. Quando os Caboclos não enxergam a resposta apropriada o Pai
João pede ajuda à Boneca Preta.
12
SCHECHNER, Richard. Performance studies. 2002, p. 45 (tradução minha).
13
SODRÉ, Jaime. A influência da religião afro-brasileira na obra escultórica do Mestre Didi. 2006, p. 89.
Espécie de sacola feita de palha.
14
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Célia Conceição Sacramento Gomes
Ao final da consulta o adivinho faz as rezas e a limpeza de corpo com as folhas que a Mãe
Pequena colocou na mesa, neutralizando o feitiço ou qualquer outro malefício. O grupo
desfaz a roda e segue dançando e cantando pela rua.
A performance obedece a princípios aprendidos por meio da observação do gestual
de praticantes mais velhos da comunidade; reúne um repertório de movimentos repetidos e
re-criados que comporta a caricatura e a improvisação, de acordo com a circunstância e o
lugar. Segue padrões próprios de criação artística, colocando em cena a história da comunidade, narrada à maneira de um espetáculo, embora os brincantes não possuam, de forma
clara, a consciência da natureza teatral de sua representação. A teatralidade refere-se à
alteridade, à preocupação de oferecer-se em espetáculo sendo afetado pelo olhar do outro.
Essas práticas multiculturais que abrangem no campo da Etnocenologia as artes do
espetáculo, os ritos espetaculares (festas, rituais religiosos, cerimônias) e outras formas de
interações sociais, são consideradas em seu contexto, história e condições apropriadas para
serem definidas como tal.
Analisando o assunto, Bião 15 refere que as categorias da teatralidade 16 e da
espetacularidade17 possibilitam o estudo de modos de apreensão da realidade, em que,
utilizando-se da linguagem simbólica constroem-se possibilidades de compreensão e interpretação desses fenômenos.
Segundo Martins18 os ritos transmitem saberes, princípios e convenções que conformam as performances com base nos fragmentos de memória instalados no corpo.
Os grupos culturais reinterpretam esses saberes, organizando suas performances baseados no ritual e no lúdico; constroem metáforas estéticas, que representam as cenas e
dramaturgias que garantem as identificações comunitárias. Isto ocorre num espaço de fronteira entre o imaginário e o real, criando um contexto de afirmação, resistência e transformação social.
As manifestações culturais apresentam um enredo que é desenvolvido livremente; as
regras do jogo são ditadas pela tradição oral, que define o compromisso com a brincadeira,
fornece um sentido e a legitima. Assim, a cultura cria e re-significa a experiência humana.
15
16
17
18
BIÃO, Armindo. A metáfora teatral e a arte de viver em sociedade. In: Cadernos CRH 15. 1991, p.108.
Jogo cotidiano de papéis sociais, pertencentes ao domínio dos ritos de interação de ordem íntima e pessoal.
Colocação em cena extracotidiana de relações sociais que têm lugar nos espaços sociais e públicos.
MARTINS, Leda. Performance, exílio, fronteira. 2002, p.72.
66
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
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Cultural do Estado da Bahia, v.32, n. 38, maio/2004.
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
PERFORMANCE, TECIDO PERFORMATIVO, CULTURA
ORGÂNICA DO ESPAÇO
Cesar Huapaya*
Performance, ação-visão, camadas dos tecidos performativos
As artes performativas, como as práticas performativas, possuem a capacidade de interferência em todas as camadas sociais e em seus tecidos performativos.Os dispositivos
dos tecidos performativos de um grupo social possuem um jogo de linguagem própria. A
ação e o movimento fazem parte desse triângulo nervoso que o performer cria no tempo e
no espaço. Os dispositivos dos tecidos performativos1 de um grupo social possuem um jogo
de linguagem própria, ele é uma grande película efêmera, nessas películas existem regiões
e zonas. Os tecidos performativos podem ser classificados de intimo, privado e social.
O íntimo está relacionado ao comportamento e ações do performer mergulhado em seu
interior; o privado, no que diz respeito aos meus acontecimentos como performer, agindo
sobre outros performers; o social seria a minha relação coletiva como performer junto à sociedade na qual convivo.
Existe uma inter-relação entre o íntimo, privado e público. O íntimo entra no público,
criando uma interferência, e o público revela o íntimo. Uma performance sempre será uma
relação do público com o íntimo ou do íntimo com o público. Através de uma performance
corporal, o performer pode revelar toda uma violência política e social do público.
Podemos identificar pelas posturas corporais e ações sociais, o escravo e o patrão. Os
negros brasileiros trazem em suas partituras corporais, toda a história de desumanização
ocorrida no Brasil. O ato de mexer com o corpo no tempo e no espaço remete o performer
a uma ação radical dentro do sistema social. O performer em ação é um demiurgo, um
profeta e um condutor de suas ações no cotidiano. Mesmo que essas ações sejam delimitadas pelos papéis dos grupos sociais com suas “constelações sociais”. Para iniciar qualquer
estudo sobre as práticas performativas ou artes performativas são necessários estudos sobre
as camadas dos tecidos performativos da sociedade analisada. Uma performance não remete somente uma ação, ela é micro ações orgânicas e sociais.
A performance é uma cultura orgânica do espaço que só pode ser aprendida no espaço. A vida como a performance é a espacialização do pensamento, idéias, corpos, desejos.
Antonin Artaud, no texto sobre Les Tarahumaras, afirmava que o teatro como a
performance “é uma arte do espaço e é pensando sobre os quatros pontos do espaço que
*Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
1
Esse neologismo foi utilizado por Richard Martel, “Les tissus du performatif”,Arte Action-1958-1998, Québerc, intervention, 2001,pp.32-61. Também desenvolvi esse conceito
em minha tese de doutorado na Universidade Paris VIII, França. Ver César Augusto Amaro Huapaya, L’utlisation des matrices rituelles Afro-amérindiennes dans le processus créatif
du Théâtre Expérimental Capixaba (Vitória, Espírito Santo, Brésil), Paris VIII, 2002.
69
Cesar Huapaya
ele arrisca-se a tocar a vida. É nesse espaço habitado pelo teatro que as coisas encontram
suas figuras, e sob as figuras, o rumor da vida”2.
A vida como o teatro e a performance, precisa do espaço para concretizar a afirmação
do homem com seus habitus e pensamentos. O corpo é o veículo dessa concretização, que
vai do corpo vazio para o corpo pleno em presentações performativas, em civilizações e em
pensamentos. A encenação de uma peça de teatro ou de um filme não é somente uma
atividade artística3. Ela é um processo geral atendendo a todos os campos antropológicos
que constrói as operações sobre os corpos sociais e orgânicos da sociedade. O performativo
como a encenação, sãos os meios concretos dos grupos sociais se apropriarem para expressar os seus corpos no cotidiano e no social.
Os tecidos performativos de um grupo social podem ser divididos em camadas
performativas sociais, políticas, econômicas, artísticas, etc. Já os tecidos performativos do
performer em performatividade, performance libidinal, pulsão energética, bios, préexpressividade (Eugenio Barba)4, dispositivo pulsional (Lyotard) e pulsão orgânica (Grotowski).
Segundo Lyotard, o dispositivo pulsional é uma organização de captura de energia, um
bloqueio do intenso de acordo com as ligações intercambiadoras que transformam a energia em cores, palavras, sons, narrativas, arte, ciência etc. Esse dispositivo pode ser econômico, lingüístico, pictural e teatral. O dispositivo econômico e político podem dissimular a
economia libidinal.
Para Lyotard5, todo objeto é energia que repousa provisoriamente conservada ou inscrita. O dispositivo ou figura é somente um operador, metamórfico. Ele mesmo é energia
estabilizada, conservada, que captura a energia em cores, formas, sons, narrativas, danças,
gestos, movimentos e imagens cinematográficas. A captura do dispositivo pulsional pode
ser feita do corpo do performer sobre toda camada performativa e orgânica do mundo. O
performer de forma individual ou coletiva, captura no dispositivo pulsional, agindo nos tecidos performativos que vai do social ao privado.
No caso do teatro, o corpo do ator performer será o portador de todas as idéias, criando
uma dramaturgia do ator performer, uma película performativa e um dispositivo próprio em
cena. No cinema, o cineasta através da película (filme) capta todo esse dispositivo em imagens, planos e idéias. O indivíduo performer também cria uma partitura corporal como uma
dramaturgia, ao captar todo o mundo com sua corporeidade.
Nos tecidos performativos das práticas performativas brasileiras, algumas práticas transformaram-se em artes performativas. Podemos citar o carnaval das escolas de samba que se
tornou um grande espetáculo organizado com a participação de cenógrafos, figurinistas,
2
Antonin Artaud, Texto publicado em Os Tarahumaras, L´Arbaléte, Marc Barbezat,1963, pp.196-208. Conferência pronunciada em 1936 na Universidade do México.
3
Jean-François Lyotard, Des Dispositif pulsionnels, Paris :Galilée,1994,pp.57- 69.
Os tecidos performativos e os dispositivos
4
Ver Eugenio Barba , “La course des contraires”, Lês vois de la création théâtrale, vol.9, 1981.Ver também Em português de Eugenio Barba & Nicola Savarese, A arte secreta do AtorDicionário de antropologia teatral, São Paulo-Campinas, Editora Hucitec e Unicamp, 1995.
5
Jean.François Lyotard, « sur une figure de discours » , op .cit., p.115.
70
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
carnavalescos e aderecistas, sendo a maioria dos componentes oriundos das Universidades com especialização em Artes Cênicas (cenografia e figurino).
Os orixás do candomblé podem ser encontrados nos carnavais e maracatus do Maranhão
e da Bahia. Como também as músicas dos Orixás e das congadas fazem parte do repertório
da música popular brasileira.
Nos tecidos performativos econômicos e sociais, as práticas e as artes performativas se
encontram, tornando-se uma nova performatividade. Também podemos encontrar essas
práticas performativas manipuladas pelo sistema comercial e pelos políticos, que transformaram em mega espetáculos e eventos as práticas como o congo e o congo de máscara no Espírito Santo.
Para sobreviver dentro do sistema capitalista, essas práticas performativas ficaram presas as estruturas perversas que destroem toda ingenuidade desses grupos. Ao mesmo
tempo, eles conseguem fazer sobreviver suas manifestações e seus componentes, abrindo
um mercado de trabalho e uma nova profissão de performer das práticas performativas.
O performer indivíduo e o ator performer
A partir dos anos 80, nós tivemos o retorno do indivíduo ator social. O postulado da
antropologia e da sociologia, que via o indivíduo como um produto das estruturas sociais
será substituído pelo retorno do indivíduo livre do condicionamento coletivo para desenvolver suas vontades. As interações individuais não se realizam em grupos sociais, o performer
indivíduo6 foge à regra da manipulação do estado, criando um mundo próprio e uma personalidade própria.
Ao presentar sua performance em dança, instalação ou em rituais de Candomblé e carnaval, o performer cria uma tensão energética com seu corpo. Esse corpo pode ser visto dentro
de um conceito antropológico proposto por Barba e Grotowski nos manifestos de antropologia teatral. Grotowski criou o neologismo de “performer”7 e depois o substituiu por “atuante”.
Para Grotowski o performer é o homem em ação. O nome performer é profundamente associado à noção de ato, de realização. Para Patrice Pavis em seu dicionário de teatro:
“ O performer realiza sempre uma façanha (uma performance) vocal, gestual ou instrumental, por oposição à interpretação e à representação mimética do papel feito pelo ator”. O
performer é um termo inglês usado às vezes para marcar a diferença em relação à palavra
ator, considerada muito limitada ao intérprete do teatro falado. “O Performer, ao contrário, é
também cantor, bailarino, mímico, em suma, tudo o que o artista, ocidental ou oriental, é
6
Ver Essais sur l’individualisme (Louis Dumont,1983), L’Ere du vide, essais sur l’individualisme contemporain (Gilles Lipovetsky, 1983), Le souci de soi (Michel Foucault, 1984), 6886, l´ère de l´individu (Luc Ferry et Alain Renaut, 1987), Les Sources du moi (Charles Taylor, 1989).
7
Patrice Pavis, Dictionnaire du théâtre, Dunod, 1996,p .247. Sobre essa questão ver Jean-Marie Pradier, “Performers e sociétés contemporaines”, Théâtre/Public, Janvier-Février,
n°157, 2001, pp. 47-62. Ver também a tese de doutorado de César Augusto Amaro Huapaya, L’utlisation des matrices rituelles Afro-amérindiennes dans le processus créatif
du Théâtre Expérimental Capixaba (Vitória, Espírito Santo, Brésil), Paris VIII, 2002.
71
Cesar Huapaya
capaz de realizar (to perform) num palco de espetáculo”8.
Segundo Jean-Marie Pradier9 o nome performer é de origem francesa parforment,
que no século XIII sai da França e vai para Inglatera, retornando depois para o francês como
performer.
Como oberva em seus estudos RoseLee Goldberg, (La Performance du futurisme à nos
jours)10 : a performance surge sobre a estrela de fundo das lutas políticas e intelectuais em favor
das mudanças culturais que se desenvolveram nas grandes cidades da Europa, do Japão e dos
Estados Unidos.
Durante os anos 70, o trabalho de artistas de vangarda dos anos 60 - Hermann Nitsch,
Günter Brus et Arnulf Rainer em Viena, Tadeusz Kantor na Polônia, Gustav Metzger, John
Latham e Stuart Brisley em Londres. Durante os anos 70, o trabalho de artistas como Hermann
Nitsch e Günter Brus, continuam a exercer uma grande influência sobre as gerações seguintes. É dentro dessa perpectiva que se situa a performance.
Para caracterizar uma performance, é preciso que qualquer coisa se passe em um instante, e no espaço. Dentro dessa perspectiva a exibição pura e simples de um filme, por
exemplo, que foi filmado, não caracteriza uma performance, à menos que esse filme seja
inserido em um contexto, em uma seqüência, funcionando como uma instalação e exibido
ao mesmo tempo em um espetáculo. É nessa perspectiva que se situa a performance no
final dos anos 70 ao início do século XXI11. Para RoseLee Goldberg a performance constitui
uma referência essencial, não somente em matéria de história da arte, mas também nos
mais recentes estudos da civilização contemporânea (filosofia, sociologia, antropologia, fotografia, teatro, dança, candomblé, instalação, arquitetura e música):
Segundo os princípios atuais da teoria crítica, o espectador de arte, o leitor, de um texto, o
público de um filme ou de uma produção teatral são todos performers e intérpretes. Pois, as
nossas reações são imediatas e vivas diante de uma obra de arte, são essencialmente interpretações contínuas. 12.
Se eu faço um certo gesto, o espectador performer sente alguma sensação sinestésica13.
Os espectadores são performers, construtor final da performance. O corpo do espectador
tornou-se o vetor essencial da performance no processo criativo do Grupo de Teatro Experimental Capixaba nos anos 80 e 90.
O Grupo de Teatro Experimental Capixaba radicaliza o conceito de performance arte e
vai além do discurso da semiologia da arte e do teatro, trasformando seu discurso em um
8
9
Ibid.,p. 248.
Jean-Marie Pradier, “Performers e sociétés contemporaines”, Théâtre/Public, Janvier-Février, n°157, 2001, pp. 47-62
10
RoseLee Goldberg, La Performance du futurisme à nos jours, Paris, Thames & Hudson sarl, ( Titre original : Performance Art from Futurism to the Present, Thames & Hudson
Ltd, Londres, 1988.p. 37-38
11
Renato Cohen, Performance como linguagem, São Paulo, Perspectiva, p. 28.
RoseLee Goldberg, op,cit.,pp. 9-10.
12
13
Ludwig Wittgenstein, “Leçons sur l’Esthétique” Leçons et conversations, follio, Gallimard,1992[1951], p. 80.
72
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
teatro vivo, baseado no candomblé e sobre as práticas performativas afro-ameríndias. O
grupo mistura elementos reais com elementos fictícios em seus espetáculos dos anos 90.
O primeiro a substituir a palavra “atuação” por performer foi Bob Wilson. Segundo Luiz
Roberto Galizia em sua tese sobre Bob Wilson, “atuação”, restringe-se tradicionalmente à prática de interpretar um texto para o público, ao passo que performance é geralmente associada
a um certo ecletismo. “Essa palavra enfatiza o pessoal, as habilidades individuais do artista, e
não sua capacidade de saber imitar alguém”14. O performer proposto por Wilson é qualquer
artista incluindo escultores, pintores, arquitetos e compositores que se utilizam da representação artística ao vivo como meio de expressão. Considerando-se o enfoque teatral não-tradicional proposto por Wilson, o seu teatro é um teatro de performers não de atores.
Segundo Jean Bazin15, o homem deve ser estudado pelo ato como ele faz suas microações, e não como ele diz que é. Como eles fazem suas comidas, suas danças, sua cerimônia,
seus processos criativos. Não devemos julgar ou analisar um determinado grupo ou indivíduo pelo que eles são, mas sim como eles agem ou fazem suas ações no tempo e no espaço
social, individual e privado. Geralmente os seres humanos são estudados dentro da perspectiva evolucionista que procura avaliar as ações pelo o que as pessoas dizem do outro,
como julgamentos que o carioca é esperto, o mineiro é calado e o baiano é preguiçoso. Tal
julgamento é superficial e fantasioso. A análise das micro-ações proposta por Jean Bazin é
mais objetiva, quando propõem estudar como o homem realiza suas ações no tempo e no
espaço. E não quem são eles. O ato de julgar quem são os indivíduos é substituído pelo ato
de dizer como eles fazem suas artes, sua política e seus amores.
Os enunciados performativos passam a ser um objeto de estudo importante no campo
da antropologia e da sociologia como também na filosofia e na estética.
O indivíduo é estudado pelas ciências sociais em várias perspectivas: indivíduo racional,
ator estratégico, aquele consumidor do seu salário que luta por seus direitos e interesses;
os indivíduos narcíseos, hedonistas, egoístas, que buscam o seu prazer e sua autocelebração;
o indivíduo na busca de si mesmo. Para alguns sociólogos e filósofos, a volta do indivíduo se
dá devido à perda da crença no estado, no coletivo, na escola e na família.
Não podemos afirmar que esse pressuposto teórico da era do individualismo é a única
possibilidade de análise. As transformações sociais na esfera performativa da sociedade
14
15
Luiz Roberto Galizia,Os Processos Criativos de Robert Wilson, São Paulo,Perspectiva,1986,p.74.
Jean Bazin, “Questions de sens”, Le description, Enquete/Numéro six, Marseille, Parenthèses,1998,pp. 13-34.
73
Cesar Huapaya
onde o Estado, as leis e a escola não têm mais o seu papel regulador foram de fato marcantes
para a fragmentação do indivíduo cidadão e o surgimento do indivíduo performer. O
surgimento do performer indivíduo no mundo dito pós-moderno traz inúmeras questões,
como a função do artista performer, o papel do performer nas camadas dos tecidos
performativos e a construção do indivíduo performer que cria o seu mundo próprio, mesmo
vivendo em determinado estado ou país.
Referências
HUAPAYA, César Augusto Amaro, L’utlisation des matrices rituelles Afro-amérindiennes
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
PODER, POLÍTICA, MANIFESTAÇÕES POPULARES E
EXTENSÃO TURÍSTICA NO LITORAL NORTE DA BAHIA
Christine Douxami
Este texto se baseia num trabalho de campo realizado nesses quatro últimos anos no
Litoral Norte na Bahia. Aprofundou-se ultimamente nas regiões próximas às cidades de
Diogo, Baxios e Cidade do Conde. Tenta problematizar o estatuto social dos brincantes de
cultura popular nesta região altamente transformada pela construção da autopista chamada Linha Verde e pela chegada do turismo. A versão mais divulgada é que as brincadeiras
desapareceram. Porém, quando o pesquisador vai se aprofundando no assunto descobre
pessoas muito envolvidas nas manifestações de dança, de música e de teatro popular.
O que chamamos aqui de brincadeira ou de manifestação de cultura popular inclui de
forma ampla as expressões espetaculares realizadas pelas populações dos diversos povoados. Com o termo “espetacular”, entende-se que qualquer evento onde se tem uma pessoa
atuando e a outra olhando, ou até mesmo olhando e participando, se tem a dita brincadeira
ou manifestação popular. Isto inclui o teatro, a dança, a música, certas formas abertas de
rituais religiosos tais como as procissões religiosas. O termo “popular”, tão controvertido,
significa, aqui, simplesmente que as manifestações estão sendo realizadas pelo povo do
lugar.
Os povoados onde estudamos estão repartidos de um lado ou outro da Linha Verde, ou
seja, do lado interiorano ou do lado do mar. De fato, a Linha Verde criou uma verdadeira
fronteira nesses locais que eram previamente homogêneos tanto em termos geográficos
como populacionais. Estar do lado do mar significa geralmente beneficiar-se do turismo e
da renda criada pelo mesmo. Estar do outro lado, do interior, quer geralmente dizer que o
indivíduo trabalha do “outro lado”. Criou-se recentemente uma relação de poder em certas
comunidades, por exemplo, entre os que fazem a mão de obra para o artesanato de palha,
do lado do interior, fazendo as tiras de palha trançadas, e os que finalizam e vendem o
artesanato, como acontece nas cidades de Areal (interior) e Santo Antônio (litoral).
Ora, notamos que geralmente as formas de expressões da cultura popular se fomentam mais do lado oeste da estrada, no lado “interior” do que do lado leste, no litoral, pelo
menos até onde chegou o turismo de forma mais forte, ou seja, em 2007, até Costa do
Sauípe. Isso pode se explicar pela chegada do turismo que monopoliza a atenção dos moradores. Trata-se de “aproveitar” das oportunidades, construindo casas para alugar, hotéis,
realizando artesanato para vendê-lo, etc. Mas quando o pesquisador vai trabalhando descobre a presença das brincadeiras apesar das mutações devidas ao turismo, como se tem
na Praia do Forte ou na Cidade do Conde, seja na época de natal, de carnaval, de são joão ou
nas festas das padroeiras ou dos padroeiros das cidades (Pastoril, Reisado, Bloco de Carnaval, Boi) . É importante especificar, porém, que geralmente os componentes, pelos menos
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Christine Doux ami
os organizadores, são pessoas de certa idade... Além disso, nos complexos turísticos propriamente ditos, como Costa de Sauípe, não se tem nenhum tecido social que possa dar início
a tais brincadeiras.
Mas os trabalhadores dos hotéis que geralmente são das cidadezinhas do outro lado da
pista, participam ativamente das brincadeiras, quando acontecem nos seus lugares de
moradia. Existe um forte interesse por parte de muitos deles, eles consideram “engraçado”
o contraste entre a vida social deles nos hotéis “chiques” e a vida real participando das
brincadeiras. Assim um jovem que tinha um bom emprego no complexo turístico da Costa
de Sauípe ficou muito orgulhoso de nos dizer que ele era o sobrinho da senhora que organizava a brincadeira.
Outra distinção geográfica e de poder se formalizou ultimamente com a chegada da
autopista. Os povoados da Costa não são municípios e dependem, indo do sul para o norte,
das cidades de Camaçari, Mata de São João, Esplanada, e Cidade do Conde, sendo que só
esta última fica perto do mar. A distância entre os povoados do litoral e o município pode
fazer com que o cidadão tenha que viajar uma hora e meia, até duas horas até chegar ao
destino, como é o caso entre a cidade de Baxios e o seu município Esplanada. A lentidão das
comunicações de oeste até leste está ainda mais caracterizada pela velocidade das comunicações de norte ao sul com a autopista. Os municípios interioranos se desenvolvem muitas vezes graças ao boom turístico dos seus povoados como é o caso de Mata de São João
com a Praia do Forte, por exemplo.
Porque evocar essas relações? Por que os brincantes dependem do poder político
para realizar as suas brincadeiras e devem ir até o município para poder pedir um auxílio
financeiro para as prefeituras. As mesmas ficam distantes do assunto, pois o evento espetacular acontece longe do seu circuito social de referência, onde a presença da brincadeira
tem um peso social real em relação ao tecido social. Mesmo assim, as prefeituras podem
pedir aos brincantes para se apresentarem no município, o que acontece às vezes. As prefeituras costumam mandar o boneco gigante “Judas” cheio de bombas, na “queima de Judas”
na época da Páscoa, mandam os trios de forró para animar as brincadeiras, mandam o ônibus para buscar os participantes, raramente mandam dinheiro e, de fato o número das
brincadeiras vai decaindo.
Como são considerados os brincantes pelos políticos locais? São úteis, pois são representantes do folclore para os turistas ou mesmo para o político frente à comunidade num
comício, e ao mesmo tempo são considerados como um peso inútil, porque pedem auxílio
financeiro. Os artistas ficam, financeiramente, na dependência do político, mas continuam,
mesmo passivamente, existindo. Daremos aqui alguns exemplos do tratamento feito aos
brincantes.
Pegamos o caso de Dona Lisette na Cidade do Conde para exemplificar o certo descaso
feito aos brincantes. Dona Lisette tem mais de 80 anos. Ela organiza “O Terno das Pastorinhas”
na época de natal e um bloco de carnaval. Ela não consegue apoio nenhum da prefeitura.
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Todo ano vai de casa em casa recolher um real ou cinqüenta centavos para conseguir comprar o tecido das roupas para o terno das pastorinhas. A filha da Dona Lisette trabalha na
prefeitura no setor cultural e mesmo assim não consegue apoio. Dona Lisette não saiu este
ano por falta de apoio da prefeitura1. A igreja católica tenta apoiar com o empréstimo de
uma sala de ensaio.
Dona Lisette em janeiro de 2007. Fotografia Christine Douxami
A “Caminhada Axé” recentemente organizada na Cidade do Conde a cada mês de fevereiro para satisfazer os turistas e o povo da comunidade, parece não desbloquear fundos
suficientes para ajudar os brincantes. Só permite levar os que moram distantes até a cidade, mas não apóia financeiramente os grupos. Então temos que pensar em torno do significado real desta caminhada.
Será que a caminhada é um simples “folclore” ou existe uma vontade verdadeira de
valorizar as brincadeiras?
Outro exemplo significativo é o caso de Baxios no município de Esplanada. O atual prefeito, José Aldemir da Cruz, pretende estar criando um processo de revitalização da cultura
popular. Como nos explicou uma jornalista da Tribuna do Estado, uma jornalista muito atenciosa que quis pegar todos os nossos dados, certamente para “tranqüilizar” o prefeito presente na hora, sendo ela também responsável pela comunicação do dito prefeito. “...o prefeito é fantástico, está apoiando a cultura popular como nenhum outro fez antes dele”. Mas
como no Conde: o que significa revitalizar ? Para que fazê-lo?
1
Temos que precisar que os brincantes não querem sair com a brincadeira quando uma pessoa muito próxima esta adoentada ou morreu recentemente. Como isso acontece
frequentemente devido a idade dos participantes, as brincadeiras, muitas vezes ficam bloqueadas.
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Christine Doux ami
Estávamos presentes no dia dos Santos Reis, 6 de janeiro, na cidade de Esplanada para
uma apresentação do Reisado de Baxios, convidado para a festa da cidade. No mesmo momento iam se apresentar um Pastoril e um Auto de Natal. Os três eram revitalizados: o de
Baxios tinha um ano, empurrado com muita boa vontade por uma senhora que tem um hotel
em Baxios, depois de o prefeito ter pedido a ela. Os outros dois foram realizados este ano,
pela Associação da Terceira Idade de Esplanada com o apoio da Secretaria de Cultura do local.
O coral estava com roupa de Gospel norte americano o que deixa aparecer certas influências
nesta revitalização. Tanto o Pastoril como o Reisado, os dois grupos fizeram pesquisas com os
que participaram antes da brincadeira. Os dois estavam parados há vinte anos.
O que significa revitalizar as brincadeiras? De fato, neste dia, podíamos nos perguntar o
sentido destas apresentações. Tudo só pôde começar com a chegada do prefeito (José
Aldemir da Cruz) no local com duas horas de atraso, por volta das 22 horas. As senhoras de
70 e 80 anos do Pastoril e as moças de treze anos do Reisado de Baxios (distantes há mais
de duas horas das suas casas) tiveram que aguardar, mas tiveram direito a um pequeno pão
com queijo e um copo de guaraná.
A música dos bares não foi parada pela prefeitura quando as brincadeiras desfilaram na
praça antes de entrar no palco e não se ouvia o canto das meninas do reisado e das senhoras do pastoril. Também o alto-falante da prefeitura continuava gritando enquanto as meninas cantavam. Podíamos ouvir o nome do prefeito a cada cinco minutos no alto-falante,
“administração de ...”. Depois, o estandarte do Reisado foi logo dado ao prefeito enquanto o
alto-falante gritava “Que bonito! São as raízes, são as raízes!” e pedia aplausos que não vinham, pois o povo esperava o show de Arrocha que vinha em logo em seguida.
Prefeito de Esplanada, José Aldemir da Cruz, recebendo o estandarte no dia dos Reis, 6 de janeiro de
2007. Fotografia Chrisitne Douxami
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A apresentação do reisado de Baxios foi feita muito rapidamente, um ato apenas, depois da apresentação do nascimento de Jesus e do coral da terceira idade e do Pastoril. As
pastorinhas puderam se apresentar com mais calma, a presença da secretária de cultura no
grupo não deve ser por nada disso.
Ora, este ano, apesar de ter sido revitalizado o ano passado, o Reisado não iria sair em
Baxios. Só porque as pesquisadoras vieram é que quiseram se apresentar, mas, claro, na
última hora, o trio de forró não pôde chegar para a apresentação.
Meu questionamento continua por inteiro então, pois não estávamos num momento de
eleição e a boa vontade nesta revitalização parecia real.
Concluindo, diremos que a relação complexa do poder com as brincadeiras não é específica a esta região da Linha Verde, e vem mesmo das relações de “Casa Grande e Senzala”,
mas a presença do turismo criou novas expectativas do poder em relação às brincadeiras,
que ficaram ainda difíceis de entender. Além disso, a chegada recente, com a vinda da
auto-pista, das Igrejas Pentecostais transformaram o estatuto dos brincantes dentro da
comunidade mais próxima, familiar ou de aldeia, e isolaram os mesmos que são criticados
duramente como “gente do mundo”. As pessoas ficam isoladas e acabam se convertendo ao
Pentecostalismo e chegam até a quebrar os seus instrumentos.
Finalizando podemos afirmar que se as brincadeiras estão menos presentes nesta região, e não é apenas, como sempre se disse, porque os jovens se desinteressam, mas porque as modificações dos esquemas de poder contribuem para desmoralizar os participantes das brincadeiras.
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
“O PAGADOR DE PROMESSAS”, (Brasil, 1962).
Uma visão polissêmica do clássico de Dias Gomes adaptado
ao cinema por Anselmo Duarte: A Etnocenologia, os Motivos
e Estratégias e o processo de Desconstrução.
Elizabeth Firmino Pereira*
“Os pés ligeiros fazem parte do próprio conceito ‘deus’(...) eu só acreditaria em um deus que
soubesse dançar (...)”. Nietzsche
Este trabalho visa proporcionar uma visão polissêmica da obra cinematográfica “O Pagador de Promessas”, clássico de Dias Gomes, adaptado por Anselmo Duarte com grande
êxito; traduzido em mais de 12 idiomas no mundo todo. Apresentada até os dias de hoje,
com grande sucesso, em teatro, teatro de rua, ópera e minisséries televisivas. Trata-se de
um clássico brasileiro, atualizado e revitalizado muitas vezes. Mas que aporta elementos
relevantes ao estudo que aqui se propõe, polissêmico por natureza por abarcar vários ângulos de visão, pela tentativa de chegar ao significado estético e social da abrangência que
alcançou a obra.
Como obra cinematográfica, tem a primazia de ser a primeira e até o momento, a única,
a receber a “Palma de Ouro” no Festival Internacional de Cannes (em 1962), o que já a qualifica como uma referência em termos de estudo do cinema brasileiro. Tem também o mérito
de ser um filme que fala do Brasil, do povo brasileiro do sertão; seguindo a trilha de Euclides
da Cunha. E, sobretudo mostra as crenças brasileiras e elementos riquíssimos da cultura
popular, como o culto aos Orixás, ou Candomblé (a história é centrada em uma promessa
feita a Oyá / Iansã - sincretizada com Santa Bárbara), a Capoeira, o Samba de Roda e o Carnaval de Rua.
As análises que se pretende fazer são por três vias: a Etnocenologia, os Motivos e Estratégias e a Desconstrução; pois supõe um olhar atualizado e panorâmico não apenas da obra,
mas também do fenômeno em si e do que desencadeou.
A teoria dos Motivos e Estratégias foi criada por Ángel Berenguer Castellary, professor e
catedrático da Universidade de Alcalá de Henares (Espanha) e coordenador GIAE – Grupo
de Investigação Sobre Teatro Espanhol Contemporâneo da Universidade de Alcalá de
Henares. Sua teoria consiste em identificar do “Eu” (Individual ou Trans-individual) criador
do artista e, igualmente, dos atores sociais, examinando suas motivações, ou Motivos, ante o
processo de tensão e conflito que vivenciam através do choque com um entorno opressivo,
*Universidad de Alcalá de Henares – ES
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Elizabeth Firmino Pereira
de uma sociedade fechada, de acordo com os conceitos de sociedade aberta e sociedade fechada, de Popper (1967) – ao qual tenho algumas críticas, pois no Brasil a sociedade tradicional se desenvolveu de modo distinto e se mostra mais aberta e dinâmica que a sociedade
moderna, que gera muito mais exclusões. O estado de tensão e de conflito em relação do “Eu”
ao “Entorno”, desencadeia a elaboração interna do conflito e a elaboração externa da resposta,
através de uma Estratégia que pode ser mensurada pelo processo de mediação, que ocorre
por três vias: mediação histórica, mediação psicossocial e mediação estética.
A metodologia por mim utilizada na análise etnocenológica é derivada da experiência
no campo estudado, no caso os rituais de candomblé, iniciando minhas pesquisas em casas
de Candomblé em 1988, em Campinas, São Paulo; onde fui iniciada em 1990 e dei prosseguimento, realizando posteriores obrigações, inclusive tornando-me Egbomi em 1997. Entre 1998 e 2005 participei de uma casa de tradição yorubá, originária de Abeokutá, Nigéria,
situada em São Paulo, a quem devo a iniciação ao culto de Ifá, através do Babalauô Fabunmi
Sowunmi, falecido em 2003, porém um dos precurssores da re-introdução do culto de Ifá
no Brasil. Também tive contato Umbanda, na infância, por influência de minha mãe; guardo
da experiência vivas recordações, sobretudo das cantigas; depois reavivadas pelos trabalhos de campo que realizei junto a casas de culto a Orixás e Umbanda, em pesquisa que foi
desenvolvida em 2003, com bolsa de Iniciação Científica concedida pela FAPESP. Além da
memória e da vivência pessoal, me apoio na bibliografia e nas teorias existentes sobre
Candomblé, Orixás e Etnocenologia.
Este envolvimento com o campo pesquisado, de uma perspectiva desde dentro, me
serve de base para a investigação que estou desenvolvendo atualmente, em meus estudos
de doutoramento na Unversidade de Alcalá, em Madri, e terá outros desdobramentos no
decorrer do processo.
SOBRE A OBRA
O filme é fiel ao clássico teatral, são mantidos os mesmos diálogos e a história, adaptados por Dias Gomes, cuja sinopse é a seguinte:
Zé do Burro e sua mulher Rosa vivem em uma pequena propriedade, a 42 km de Salvador. Um dia, o burro de Zé foi atingido por um raio e ele termina por ir a uma casa de
Candomblé, onde faz uma promessa a Santa Bárbara, sincretizada com Iansã, para salvar seu animal.
Com a recuperação do animal, Zé vai cumprir a promessa, doa metade de seu sítio a
agricultores pobres e começa a caminhada até Salvador, carregando nas costas uma
imensa cruz de madeira.
Porém a via crucis de Zé se torna ainda mais angustiosa ao ver sua mulher Rosa se ligar ao
cafetão Bonitão e ao se deparar com a resistência do padre Olavo, ao lhe negar o acesso à
igreja, pela razão de Zé haver feito a promessa em um Candomblé e, portanto, a Iansã.
Os personagens principais e seus respectivos atores no cinema são:
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Zé do Burro (Leonardo Villar) – o pagador de promessa, agricultor ingênuo, religioso e
honesto.
Rosa (Glória Menezes) – esposa de Zé, mulher do sertão, mas de personalidade forte e
sensualidade latente, ao contrário de seu marido.
Marli (Norma Bengell)– prostituta explorada por Bonitão, ciumenta e obcecada por seu
cafetão.
Bonitão (Geraldo Del Rey) – um cafetão local, belo e inescrupuloso, ex-policial, foi expulso
da corporação, explorador de Marli e corruptor de Rosa.
Padre Olavo (Dionísio Azevedo) – o padre da igreja de Santa Bárbara, figura radical e severa, visa manter a tradição a qualquer custo.
Além desses há personagens pitorescos das ruas de Salvador, como:
Minha Tia - baiana do acarajé e Ekedi de Iansã.
Dedé Cospe Rima - um repentista de cordel.
Galego - um comerciante espanhol, além de Beatas e do Sacristão, policiais, um jornalista, fotógrafo e um grupo de Capoeira, que assume o protagonismo no momento decisivo.
A peça foi escrita em 1959, estreou no TBC em 1960 e no cinema em 1962, com direção
de Anselmo Duarte. Alcança sucesso mundial com a premiação em Cannes, onde recebe a
Palma de Ouro, convertendo-se na primeira e até hoje, única, obra cinematográfica brasileira com esta premiação. Recebe ainda muitos outros prêmios no Brasil e no exterior, inclusive a indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963. Apesar do êxito obtido,
Anselmo Duarte é duramente criticado por membros do Cinema Novo, por razões ideológicas, e tem sua carreira prejudicada por isso durante muitos anos, o que, somado aos anos
de ditadura militar e censura, limita consideravelmente sua produção. Logicamente, com o
tempo as divergências são revistas e hoje Anselmo Duarte é considerado um dos maiores
diretores cinematográficos brasileiros e O Pagador de Promessas eternizado, merecidamente, como obra de arte.
Entre os méritos do filme, partindo de uma análise etnocenológica, destaco o uso do
mito como fundo e como motivo para o enredo; a adequação da música de Gabriel Migliori
e da fotografia de Chick Fowle e de Carlos Coimbra a elementos simbólicos do Orixá Oyá,
como o berimbau que reproduz o toque de Iansã, antes ouvido no terreiro, no momento do
início da caminhada de Zé e de Rosa rumo a Salvador. A fotografia traz a imagem do vento
agitando as folhas dos altos coqueirais, em contraste com o homem que carrega uma cruz
maior que o próprio corpo, em momentos de grande exaltação imagética.
Por outro lado, as cenas do ritual de candomblé, da capoeira, do samba de roda e do
carnaval de rua, dão um caráter também documental ao filme, assim como em It’s All True, de
Orson Wells, filme inacabado do qual Anselmo Duarte participou como ator em 1942.
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Elizabeth Firmino Pereira
Sob o ponto de vista da teoria de Motivos e Estratégias, de Berenguer (2007), o personagem Zé do Burro (Eu Individual) é completamente oprimido por um entorno hostil e
fechado, porém, isso desperta a atenção de outros como ele (Eu Transindividual), pessoas
excluídas da sociedade, o que leva a uma mobilização e ao desenlace final do conflito. Todavia a sociedade dita ocidental, moderna, se mostra mais fechada que as sociedades tradicionais do Candomblé e da Capoeira, que demonstram total sensibilidade ao “outro” e um
processo dinâmico de abertura e inclusão. O que leva a questionar os conceitos de Popper
de “sociedade fechada” e “sociedade aberta”, pelo modo como se desenvolveram no Brasil
as sociedades fundamentadas no mito e a sociedade moderna, ou ocidental. Talvez, essa
discussão seja importante para compreender o momento mundial em que vivemos os processos de migração e os valores sociais, estendendo o olhar além das fronteiras do
etnocentrismo, quem sabe por uma melhor convivência. Ou talvez, por melhor proveito da
experiência de um contato com “o outro”, pois a cultura do mito, de origem africana, soube
estabelecer de modo eficiente as estratégias para sua sobreviência no Brasil, apesar de
todas as condições adversas a que esteve sujeitada.
A POÉTICA DO SILÊNCIO
A meu ver, uma das cenas mais marcantes do filme, é a seqüência de primeiros planos,
depois de um amplo e largo silêncio que se segue à morte de Zé do Burro. Os dois tipos de
silêncio, tal como descreveu Patrice Pavis1, o silêncio verbal (tácito) e o silêncio de movimentos (silène), como uma suspensão também do tempo, pela ausência completa de qualquer deslocamento pelo espaço. A esse silêncio, que também é utilizado em outros momentos, se segue à seqüência de primeiros planos mostrando os presentes, todos eles
personagens populares, coadjuvantes também na vida - negros, pobres, sem voz na sociedade. Todavia, mostra a comunicação do silêncio, do gesto mínimo, do olhar, a pronta
mobilização dos sentidos e da ação. A meu ver, a seqüência é genial.
O CONTEXTO
De certo modo, o filme, laureado com a “Palma de Ouro” em Cannes (1962) e indicado ao
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1963) é uma continuidade do olhar ao interior do Brasil
e ao sertão, iniciado por Euclides da Cunha em 1903 e nesse sentido, apesar das divergências, poderia afirmar que Glauber Rocha e O Pagador de Promessas dialogam entre si, mais
precisamente em dois momentos da obra de Glauber: Barravento (1960) e Deus e o Diabo
na Terra do Sol (1964); essa correspondência se estende também ao Movimento Tropicalista,
de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, entre outros. De certo modo, trata-se mais
de um fenômeno de contemporaneidade ou Transindividualidade, de acordo com os
1
Nota de Seminario proferido por Pavis no Ateneu de Madri, 16/03/2007, dentro do Programa de Doutorado em Teatro da Universidad de Alcalá de Henares entre 14 e 16/
03/2007.
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
conceitos de Berenguer (2007); em um momento importante na formação da identidade cultural brasileira.
A exibição do filme causou furor onde passou e coincidiu com a realização do Concilio
Vaticano II, que foi concluído em quatro sessões, entre 1959 e 1963, presididas pelos Papas
João XXIII, falecido em 1963 e por Paulo VI. Nos documentos finais do Concílio consta a
descanonização de Santa Bárbara, segundo fontes oficiais devido à escassez de dados consistentes sobre sua bibliografia, porém segundo declara Pe. Jordi Ribeiro (1998), em artigo
da internet, é devido ao “processo de sincretismo com os cultos afro-americanos, do qual alguns
santos católicos são vítimas”.
Cabe ressaltar que a Teologia da Libertação e as Pastorais, que no Brasil atuam fortemente até os dias de hoje são posteriores a esse Concílio. Abro esta discussão como uma
reflexão sobre a influência da arte sobre os processos de transformação cultural e social.
A ETNOCENOLOGIA
Elementos que devem ser destacados em uma análise da Etnocenologia da
obra
Dias Gomes utiliza os elementos mais vivos da cultura afro-brasileira: Candomblé e Orixás,
Capoeira, Samba de Roda e Carnaval de Rua, ambientados em Salvador, sua cidade natal. Está
claro o conhecimento do autor do contexto, pelas descrições que traça e pelo próprio enredo secundário da história, os triângulos amorosos, frequentes nos mitos de Iansã, na disputa
entre Ogum e Xangô, por Oyá ou, na disputa entre Oyá e Oxum pelo amor de Xangô.
Há outro mito de Iansã que pode ser identificado no enredo, de modo mais sutil, associado à elevação de Xangô à condição de Orixá, como é descrito na cantiga “Oba Kosó”, cantada
tanto no Brasil como em terras yorubás, descrito por Verger (1993) e encenado como ópera
por Ladipo (1972). Nele, Xangô é um rei vencido por seus inimigos que se enforca, paradoxalmente, o momento da morte de Xangô é uma exaltação à vida, pois a cantiga diz “O Rei não se
enforcou...”. Oyá é a única de suas mulheres a acompanhá-lo neste momento, semelhantemente,
Rosa acompanha o marido morto na entrada final à igreja. O que o mito é também uma das
explicações para o poder que Iansã detém sobre reino dos mortos em sua qualidade de Oyá
Igbalé, vinculada diretamente aos ancestrais, ou Baba Egun.
A força da devoção a Iansã é explícita na obra, pois o personagem Zé do Burro jamais
abjura. Assim como os antigos escravos que foram conduzidos ao Brasil, do porto de Ayudá a
Bahia e que foram, segundo Barbieri (1998), forçados a dar voltas em torno da Árvore do
Esquecimento para abandonar o passado, jamais abjuraram sua memória e sua
ancestralidade.
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Elizabeth Firmino Pereira
CAPOEIRA
No filme e na peça a presença dos Capoeiras é determinante, do início ao fim. O som do
berimbau aparece já nas primeiras cenas, como música de fundo, reproduzindo um toque
de Iansã e como elemento de tensão nos momentos cruciais.
Também carrega a representação simbólica de uma organização, de um grupo mobilizado de pessoas. E assim é,
desde o início, pois a história da Capoeira se mescla com a história do Quilombo dos Palmares.
Sobreviveu à proibição, que durou até a década de 30, hoje é ensinada em todo o mundo
como um esporte genuinamente brasileiro.
O Samba de Roda e, sobretudo o Carnaval de Rua apresentados, também servem ao
caráter documental, por registrar o gênesis do que hoje se apresenta.
O SINCRETISMO, A ORALIDADE, A HISTORICIDADE E O MITO
A explicação mais corrente para o sincretismo com os santos da igreja católica é que
esse recurso serviu de subterfúgio para o culto aos Orixás, inclusive esse argumento é
usado no filme, pelo personagem Padre Olavo. Porém, mesmo depois de libertos, os exescravos continuaram manifestando a fé católica, o que leva a crer que essas crenças possam ser genuínas. Por outro lado, é de conhecimento comum que o processo de
evangelização já ocorria antes na África através de missionários e muitos já chegavam aqui
com as suas crenças, tal como ocorreu em Cuba.
A meu ver trata-se mais de um modo de ver a vida, de uma dinâmica voltada ao universo simbólico e com grande poder de assimilação e de incorporação imediatos de novos
valores. Desse modo, o processo de simbolização atua, gerando sentido, assimilando e fixando os novos conceitos. Se a cultura é voltada ao simbólico, também é sensível ao arquétipo e agrupa os elementos por semelhanças, por correspondências e pela lógica dedutiva.
Esse processo de assimilação simbólica e mítica da realidade segue ocorrendo no Brasil
e pode ser observado na Umbanda, que traz à tona os elementos mais recentes da
ancestralidade brasileira, com cultos de Caboclos, Baianos, Preto-Velhos, etc. Por exemplo,
tenho na memória uma cantiga de Baianos, que ouvia em Uberlândia entre 1972 e 1974 e
se fixou em minha memória de tão interessante que me pareceu:
“Oi, na Bahia tem baiano que sabe ler/ Na Bahia tem baiano que sabe ler/Oi maltratar baiano, isso é que não pode ser!/Maltratar baiano, isso é que não pode ser!/
Depois eu te dou veneno, você morre sem saber/ Me chama de criminoso, mas não
pode me prender”
A meu ver, pode ser uma alusão à Revolta dos Malês, ocorrida na Bahia no século XIX,
cuja principal característica era o uso que faziam da escrita para se comunicarem e se mobilizarem – pois eram os únicos africanos a utilizarem a escrita naquele momento, pois os
caracteres gráficos surgiram posteriormente nas sociedades africanas, que não deve ser
confundido com analfabetismo, como coloca Salami (1999, p.28-29) e Leite (1992).
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Por outro lado, traduz uma sofisticada elaboração estética da violência, assim como na
Capoeira, que pode converter-se em um combate mortal, sem jamais perder a elegância.
A DESCONSTRUÇÃO
Os conceitos de Desconstrução são tomados de Jacques Derrida, tal como foi apresentado por Patrice Pavis2. Considero importante uma análise neste campo, porque a obra
O Pagador de Promessas já tem em seu cerne a idéia da Desconstrução, porque a cultura
brasileira foi formada pela desconstrução de suas matrizes, porque o retorno a essas fontes
geradoras passa pela desconstrução do que se formou depois ou de si própria, como que
para ver do que está feita. De Pavis, considero importante a pergunta lançada: “Como preservamos e como desconstruímos o que herdamos?”3 Penso que este questionamento aporta
muitos significados, pois ao processo de desconstrução, segue um processo de re-elaboração ou de reconstrução. Porque importa a estrutura, a memória, o conjunto, assim a fragmentação e a desconstrução, o “saber do que é feito?”, a tentativa de tocar “o intocável”, de
ver “o invisível”, têm seu sentido e seu encanto no processo de transformação e de criação.
Sobretudo por alargar a visão, por atentar a outros significados.
É importante pensar a Desconstrução como elemento formador da cultura brasileira e
inerente a ela, sobretudo no sentido em que é colocado por Pavis, como parte do processo
de Reconstrução, portanto pertencente ao processo de descoberta e de criação. Formada
por fragmentos, em constante processo de re-elaboração, a cultura brasileira se re-inventa
desde sempre, seguindo a linha do Movimento Antropofágico propagado por Oswald de
Andrade na Semana de Arte Moderna de 1922.
Se a antropofagia é a “incorporação do outro”, vivemos um processo contínuo de antropofagia simbólica e sexual. Porque a antropofagia está vinculada ao ato de comer, verbo
que em português tem uma conotação sexual, paradoxalmente do homem para a mulher; o
que denota a situação de poder, de fetiche e de erotismo em que se desenvolveu o processo de miscigenação forçado. Porém, denota a dinâmica cultural ativa no processo de reconstrução de sentido, na recriação de si mesma.
O artista Carlinhos Brown, no Encontro “Por uma Cidade Educadora”, realizado em São
Paulo (2004), disse: “O povo miscigenado é um povo de muitas almas”4. O que descreve bem
a profusão de vozes que ouvimos e que carregamos dentro de nós.
O processo de desconstrução se iniciou quando o primeiro europeu pisou aqui, pois a
visão de mundo nunca mais foi a mesma. Esse processo irreversível foi muito mais intenso
aqui, sobretudo pelo processo de miscigenação e a incorporação da outra cultura. Somos
2
Ver nota anterior.
3 Ver nota nº 1.
4
O encontro, ao qual estive presente, foi realizado no Anhembi, em São Paulo (2004); a referência é nota tomada por mim da palestra proferida pelo artista e coordenador
do Projeto Pracatum, que une educação musical e inserção social, dirigido a jovens do bairro Candeal, em Salvador de Bahia, Brasil.
87
Elizabeth Firmino Pereira
todos, de certo modo desconstruídos/reconstruídos, ou melhor, vivenciamos o processo
de reconstrução de uma identidade.
No filme O Pagador de Promessas esse processo é inerente ao personagem Zé do Burro,
que vê todos os seus valores em choque e tem que se reconstruir, se reestruturar para chegar à consecução de sua promessa. O mesmo se passa com os outros personagens, que no
ápice do conflito tomam as rédias da situação e ocupam um espaço que até então lhes era
negado. Por outro lado, mantêm sua identidade própria em meio à hostilidade do entorno
que nega esses valores, através de estratégias como o sincretismo, a fuga, a ocultação e,
em último caso, a luta esteticamente elaborada da Capoeira. A dinâmica desconstrução/
reconstrução é constante e nitidamente visível, assim como, o que se preserva da herança
ancestral.
Essa mesma dinâmica também está no cerne da cultura de mixagem, do hip hop, movimento mundial de origem afro-descendente, nos processos de pirataria, que permitem o
acesso à cultura de muitos mais; ou, no processo de Quebra de Patentes para a fabricação
de medicamentos do coquetel Anti-HIV / AIDS, distribuídos no Brasil e, enviados a países
africanos.
Nesse sentido, a dinâmica equivale a reelaborar a realidade, a memória e o corpo a
partir do fragmento, gerando outros desdobramentos. Assim como em cada fractal, como
os descritos Mandelbrot (1982), conta uma história.
CONCLUSÃO
A oralidade e o mito são formas de assimilação dos fatos da história e da cultura,
através da via simbólica e do ritual. Trata-se de um processo dinâmico, não estático como
descreve Popper (1967), pois a sociedade do mito pode ser sociedade fechada, em contraste com a sociedade ocidental e racional, que classifica como aberta, se o mito pertence
ao conjunto dos elementos vivos da sociedade e é reinventado, acrescido e reinterpretado
constantemente, como descrevem Abimbola (1975) e Salami (1998).
O mito mobiliza os sentidos, a imaginação e a memória e a sociedade racional, por si só.
Todavia não é garantia de abertura nem de liberdade, pois somos constantemente manipulados por “deuses” que mudaram de nome e de lugar, somos presas de uma sociedade de
consumo e de leis de mercado, como bem observa Marcuse (1984). Outros totens, para
outros tempos.
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90
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
O COMBATE DOS BASTÕES NO CARNAVAL DE TRINIDAD
Florabelle Spielmann
Na minha tese de mestrado trato de um ritual que se chama “Combate dos Bastões” e
que se realiza no contexto do carnaval de Trinidad.
Esse ritual é muito parecido com o ritual de capoeira ou maculelê. No etanto, ao contrário da capoeira, que é pura simulação, o combate dos bastões é uma luta totalmente verdadeira. Esse ritual mescla o som dos tambores, o canto e a luta propriamente dita. A música
é o elemento mais importante no desenvolvemento desse ritual. Os cantos se chamam
“calindas”.
As calindas associadas às lutas são expressões artísticas e populares, transmitidas desde o início do século XIX. Atualmente o combate dos bastões ocupa um lugar importante
no carnaval de Trinidad.
Na minha dissertação de mestrado me concentrei sobre os aspectos musicais do combate, ou seja, as calindas. Minha conclusão é que os combates dos bastões se aparentam a
um ritual segundo o qual a música é sinal de existência do coletivo. Esse ritual cria uma
dinâmica entre perenidade e desparecimento: o indivíduo morre, mas o grupo se perpetua através o combate.
Na minha atual pesquisa de tese de doutorado, eu tento fazer uma abordagem
pluridisciplinar desse mesmo ritual: antropologia, sociologia, etnomusicologia e
etnocenologia. Essa metodologia multidisciplinar permite apreender o complexo fenômeno que é o combate dos bastões, um ritual social cujas principais funções são: a resistência
da cultura negra, a integracão entre as pessoas dos bairros, um espaço de mestiçagem
entre a cultura indiana (devido à imigração mais recente) e africana (de imigração anterior),
uma catarsis da violência social.
91
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
PRÉ-EXPRESSIVIDADE, INATISMO E UNIVERSALIDADE:
Problematizações para pensar o trabalho do ator
Gilberto Icle
Resumo: O presente texto aborda o conceito de pré-expressividade, segundo a Antropologia Teatral. Procura problematizá-lo a partir de dois temas: a universalidade e o inatismo.
Discute relações entre o biológico e o cultural à luz da Etnocenologia de Pradier e pensa
questões sobre e para o trabalho do ator.
Palavras-chaves: Teatro, ator, Antropologia Teatral, Eugênio Barba, pré-expressividade,
Etnocenologia.
Tanto para a teoria, quanto para a prática do trabalho do ator, nenhum outro termo
parece mais consistente, dinâmico e imanente à Antropologia Teatral do que o conceito de
pré-expressividade, a ponto de tornar-se a teoria, proposição ou princípio definidor do que
Barba denominou como “o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que está na base
de diferentes gêneros, estilos, papéis e das tradições pessoais ou coletivas” (BARBA, 1993, p.23).
A hipótese de que subjaz ao trabalho do performer uma dimensão intrínseca, a qual
seja detentora do poder de organização de um bios cênico, configura a centralidade da
questão que a Antropologia Teatral se coloca desde suas origens.
Barba delimita na teoria da pré-expressividade duas instâncias distintas, embora solidárias, o cotidiano e o extracotidiano, esse último, constituindo a dimensão que caracteriza o que
chamamos no mundo euro-americano de teatro. Mover-se, respirar, falar, agir sob a égide do
extracotidiano significa, com efeito, trabalhar a energia numa qualidade que se distingue da
cotidiana. Ao contrário do que se poderia pensar num primeiro momento, Barba define a
dimensão cotidiana, na qual nos constituímos como sujeitos de uma determinada cultura,
como a dimensão automatizada, domesticada e banalizada. Não necessitamos nenhum tipo
de consciência mais rebuscada para vivermos e agirmos na inconsciência dos automatismos
cotidianos. Por outro lado, no teatro – e nas artes do corpo que lhe são similares – o uso
distinto do corpo, com bases e princípios pouco comuns para a vida cotidiana, constituem
uma utilização intencional a produzir tensões que fazem atrair a atenção do espectador. Essa
qualidade intencional de dar-se a ver, circunscrita como “presença”, supõe “a utilização
extracotidiana do corpo-mente [e] é isso que se chama ‘técnica’” (BARBA,1993, p.23).
A abordagem pragmática do diretor italiano, a reivindicar ares científicos, supõe uma
pesquisa, uma experimentação e uma, conseqüente, reflexão sobre os dados extraídos.
Apesar das lacunas ou, segundo De Marinis (s/d), “parcialidades”, que a Antropologia Teatral
*UFRGS
93
Gilberto Icle
contém, suas explorações parecem render um sem número de questões e desdobramentos, em particular, às pedagogias do ator que se beneficiaram sobremaneira dos princípios
descritos e desenvolvidos pela Antropologia Teatral, tais como o princípio da oposição, do
desequilíbrio, da equivalência entre outros. Esses princípios podem ser considerados verdadeiros instrumentos, pois organizam o bios cênico, permitindo um corpo dilatado, capaz de
atrair a atenção do espectador, quase a margem de seu caráter semântico. Eles circunscrevem uma idéia, tomada de Decroux, na qual
...as artes (...) ‘se assemelham nos seus princípios, não em suas obras’. Poderíamos acrescentar: também os atores não se assemelham nas técnicas, mas nos princípios (BARBA,
1993, p.29-30)
A semelhança atribuída por Barba – tomada de empréstimo de Decroux – aos princípios se refere tão somente ao nível pré-expressivo. É nele e não no nível expressivo – semanticamente articulado, culturalmente determinado e individualmente singular – que os princípios encontram modos de operação similares. Esses modos similares que recorrem em
distintas culturas, articulando o nível pré-expressivo para lhe conferir a possibilidade de
organicidade e eficiência, não existem separados da expressão, tampouco podem ser cientificamente identificados, delimitados, rastreados. Eles estão, com efeito, articulados na
própria ação, no próprio comportamento. Podem ser mais ou menos conscientes; gradualmente explícitos ou implícitos na ação. Mas nunca configuram o objeto do ator, senão seu
instrumento de trabalho.
É preciso também afastar as intrepretações equivocadas sobre o nível pré-expressivo,
as quais compreendem ou fazem relações entre conteúdo e forma; preparação e atuação;
dentro e fora; técnica e emoção. Nenhum desses pares traduz a diferença – que só existe
virtualmente – entre os planos expressivos e pré-expressivos.
Se o nível pré-expressivo constitui um instrumental para o ator ele seria, em
consequência, uma técnica? Não se poderia, a essa altura, tomar a palavra técnica no sentido restrito, mas, perceber que por detrás, por baixo (a posição na qual localizamos não é
essencial) do modo expressivo do ator trabalhar, existe um conjunto de princípios, mais ou
menos objetivos, nos quais a superfície semântica se apóia. Como toda técnica é sempre
um segredo, pois não deve estar à frente do que o espectador vê, mas sim, sub-repticiamente
entranhada, mascarada, escondida, o nível pré-expressivo é, com efeito, a organização dinâmica e culturamente variada, senão de todos, ao menos de muitos dos modos espetaculares que conhecemos. O nível-expressivo se ocupa do como, antes de se ocupar do significado. Funciona à parte, mas não independentemente, do nível semântico que expressa e
ao qual confere apoio. Esse como não é a forma de tradução cultural, a técnica, os códigos,
o tema, tampouco, as idéias intencionais, os não do artista cênico; mas, um mundo de modos limiarmente corporais de se fazer presente e, com isso, interessar, encantar, atrair a
atenção do outro.
Abusando um pouco dessa exploração, não seria incorreto dizer que a Antropologia
94
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Teatral é a teoria, por excelência, da pré-expressividade, essa última, por sua vez, circunscrevendo um campo novo de investigação e abrindo um sem número de problemas a serem explorados, tal qual tem sido feito em diversos espaços, nos últimos anos.
Uma das questões que os estudos de Barba, e seus colaboradores – por intermédio da
ISTA – International School of Theatre Antropology – apresenta é justamente a condição de
imanência da pré-expressividade. Assim sendo, para se pensar a pré-expressividade como
condição ou, melhor ainda, pré-condição do trabalho do ator, algumas problematizações
são necessárias. Os problemas que gostaria de levantar no momento dizem respeito a duas
ordens distintas: a primeira de natureza antropológica, na qual se questiona a universalidade da proposição e, a segunda, de caráter epistemológico, que aborda possíveis laivos de
inatismo.
A pretensão universalista de Barba representa um ponto atenuado na demonstração
de seu pensamento, re-discutido em La canoa di carta (1993). Dizer que existiria um nível
universal no trabalho do ator, significaria reconhecer uma unidade – lingüística, discursiva,
prática – que seria capaz de englobar e dar um sentido único à palavra teatro. Barba não se
arrisca de forma tão ingênua.
Quando Barba define a pré-expressividade como condição de possibilidade do trabalho do ator, de que ator ele estaria falando? Essa parece ser uma questão basilar para se
problematizar o sentido universalista da pré-expressividade. Suporíamos que ele fala de
todos os atores ou uma parte deles? Ao procurar uma condição universal, Barba estaria
imerso numa posição etnocêntrica, na qual a verdade teatral estaria do seu ponto de vista,
na dimensão pré-expressiva. Esse olhar centrado, reduzido, trataria as diferentes formas
espetaculares como o teatro, como um fenômeno generalizado. Entretanto, chamar teatro
determinadas manifestações e práticas culturais individuais e/ou coletivas é alocar no discurso hegemônico euro-americano e somente por efeito de uma operação artificial, o rico e
infinito modus operandis de dar-se a ver, de chamar a atenção, de se fazer humano por
intermédio da ação espetacular. Isso – essa posição de quem fala sobre – plasmaria outras
formas espetaculares, circunscrevendo-as nos limites daquilo que uma determinada cultura – a qual pertence o autor – convencionou chamar de teatro.
A saída para tal armadilha pode ser pensada com a Etnocenologia de Pradier (2002) e,
do mesmo modo, no próprio plano imanente, o qual a teoria de Barba supõe.
Os modelos caóticos propostos por Pradier (2002), para compreender os comportamentos humanos espetaculares, borram as fronteiras entre o biológico e o cultural. A idéia
de comportamento, para ele, não se reduz a um padrão de respostas de ação a partir de um
estímulo (como ao gosto de Skinner), e tampouco a biologia se reduz ao funcionamento da
substância viva. Ao contrário, comportamento e biologia se emaranham de tal sorte que as
fronteiras entre o que é inato e o que é adquirido se tornam cada vez mais obnubiladas
pela visão não linear de sua investigação.
Assim, se o olhar de quem pensa tais práticas do ator é uma posição sempre compro95
Gilberto Icle
metida com sua própria cultura é, com efeito, uma condição de qualquer teorização, pois
toda manifestação carrega em si o prefixo etno, uma vez que sempre estará impregnada,
advinda e constituída de e numa determinada cultura. Fala-se sempre de um lugar preciso,
logo, nos manifestamos dentro de uma cultura, ainda quando falamos do outro.
Os laivos dessa dificuldade de se afastar de si mesmo já impregnam o próprio conceito
de pré-expressivo. O prefixo pré possui tão somente um caráter lógico e não cronológico,
dessa forma, não há uma anterioridade à expressão. É nela que os indícios, os sinais, as
inferências do pré-expressivo se assinalam. É no plano da expressão que vivemos – nós os
atores – nossas vidas espetaculares. Trata-se da dimensão na qual nos reconhecemos como
herdeiros de uma tradição, como possuidores de uma técnica, como artesãos de nós mesmos, mas representantes autorizados de nossa comunidade – ainda que ela não seja apenas o nosso entorno.
Essa posição é, então, dada a partir do ponto de vista – profundamente cultural – do
espectador. São os efeitos de atenção, a eficiência da presença do ator que Barba normatiza
como o princípio dos princípios. Ele pré-supõe que todo teatro estaria preocupado, interessado e se apoiaria na premissa de chamar a atenção do espectador, antes mesmo de
querer significar. Há, portanto, um sentido quase biológico e, senão biológico, limiar entre o
biológico e o cultural. É nessa função de espectador que Barba, ainda nos primórdios da
Antropologia Teatral, reconhece os princípios recorrentes e deles extrai, abstrai considerações. No entanto, nas palavras de De Marinis,
Afirmar que todo teatro [...] tem a ver com a atenção do espectador significa que todo
teatro, indubitavelmente, tem que ver com o mesmo problema, mas não exatamente
com a mesma coisa e, muito menos, com as mesmas soluções. (1997, p.104).
Um possível universalismo da Antropologia Teatral se desfaz, dessa forma, na medida
em que o olhar que Barba lança sobre os fenômenos estudados, ainda que de seu próprio
ponto de vista cultural, faz reconhecer que para essa cultura, da qual ele afirma chamar a
atenção do espectador pareça ser uma verdade profundamente legitimada culturalmente.
Trata-se, também, de uma operação linguística que faz unir o que reconhecemos como
teatro com um modo específico de se dar a ver, de se comportar de forma espetacular e,
sobretudo, de ter êxito em chamar a atenção do outro nessa tarefa. É desse ator que Barba
fala e somente dele. Do ator que apoiado em um comportamento espetacular, culturalmente constituído e intencional, é eficiente em chamar a atenção do espectador além do
que narra, conta, expressa e significa. Além, mas não independentemente.
Se Barba não está falando de qualquer ator, de um modelo universal, resta ainda pensarmos: seria a pré-expressividade uma condição inata do ser humano? Haveria um a priori
definitivo nessa dimensão pré-expressiva? Barba suporia um antes como condição suficiente e necessária para as artes de dar-se a ver?
A questão é complexa e sugiro aqui uma primeira aproximação. Dificilmente poderíamos sustentar – depois de tudo o que, no século XX, foi desenvolvido nessa área – um
96
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
discurso sobre um a priori como condição, na qual se apoiariam e se sustentariam os desdobramentos do pré-expressivo. A esse respeito se pode lembrar dos trabalhos desde Piaget
(1990) até Maturana (2002), para citar alguns.
O comportamento de chamar a atenção - que Bião (1996) já localiza nas reações do
bebê como gênese do que virá a ser ulteriormente comportamento espetacular - poderia
ser até uma espécie de instinto, uma informação genética que se manifesta em nosso comportamento, mas, as estruturas de pensamento e ação que essa informação pode engendrar pressupõem, em grande medida, a interação. E não devemos subestimar o poder
desse conceito. Interagir possibilita, sobretudo, tomar as informações biológicas e refazêlas na ação. O processo de interação é um processo limiar – está já dado biologicamente
como potência, como possibilidade, mas forma, também, e na mesma direção, o processo
de culturalização, de ingresso em uma cultura, pois permite ao sujeito se tornar o que é, ou
o que virá a ser. Esse caráter de dinamismo das relações de interação entre o biológico e o
cultural – presentes em teorias tão distintas quanto a Epistemologia Genética de Piaget, as
ciências cognitivas de Maturana, a Etnocenologia de Pradier – que se manifesta nas fronteiras de idéias, que nossa tradição insistiu em delimitar como separadas, articula suposições
para o pré-expressivo que vão além de um mero inatismo.
Quando Barba fala sobre uma dimensão pré-expressiva do trabalho do ator como um
nível de organização do bios cênico, não está a defender um a priori, pois não há uma separação entre o plano pré-expressivo e o plano expressivo. Somente por uma operação racional
de investigação inferimos que a eficiência – também ela culturalmente constituída – em chamar a atenção, é constituída no amálgama que forma a constituição da dimensão expressiva.
Eis dois usos duvidosos que poderíamos fazer do conceito de pré-expressividade e que
constituem perigos preementes para a pesquisa: tomá-lo como universal e como inato.
Poderíamos, entrementes, pensar que o trabalho do ator na dimensão pré-expressiva é um
lugar limiar entre a ficção e a vida (Ruffini, 2001), local descontínuo no qual o ator se dá a
ver, explorando e articulando informações culturalmente construídas a partir de pequeninas
– mas fundamentais – possibilidades biológicas. Não se é ator, portanto, desde sempre,
torna-se ator. Tampouco, não existe um único modo de ser ator, senão uma diversidade de
possibilidades.
Barba não está, portanto, falando de qualquer ator. Não poderá fazê-lo. Não haverá de ser
o seu, um ator transcendental, ideal, legítimo. Sua pesquisa se baseia, ainda que parcialmente, em experimentos artísticos que, sem um controle científico no senso tradicional (DE
MARINIS, s/d), estão inseridos numa cultura, ao mesmo tempo pessoal e histórica. Disso, sobressai o caráter pessoalizado de sua proposição. E cabe a nós, sabendo de todas as parcialidades e limites da Antropologia Teatral, aceitá-la ou não, usá-la como pedagogia ou não, pensar com ela, a favor dela, a partir dela, mas conscientes que estamos falando de um lugar
determinado e, portanto, o que dizemos serve aos interesses teatrais não como uma verdade
única e normativa, mas como um conjunto de explorações titubeantes, provisórias e parciais.
97
Gilberto Icle
E não seria essa a postura de qualquer ciência contemporânea?
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98
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A TROVA PAMPEANA INSERIDA NO UNIVERSO CULTURAL
TRADICIONALISTA GAÚCHO E SUA VOCALIDADE POÉTICA.
Gisela Reis Biancalana*
O objeto desta investigação é a Trova Pampeana relacionada ao estudo de alguns conceitos que possam contribuir para a compreensão desta manifestação performática enquanto fenômeno artístico-cultural presente em determinado contexto social que é o
tradicionalismo do Rio Grande do Sul e, posteriormente, analisar sua poesia peculiar.
Para tal, buscou-se partir do conceito de Cultura Popular e desdobrá-lo nos conceitos
de Folclore, Tradição e Tradicionalismo. Subseqüentemente, voltou-se para a Trova Gaúcha
sem a pretensão de enquadrá-la ou fixá-la rigidamente em alguns dos conceitos abordados. As relações buscadas nos conceitos mencionados justificaram-se: primeiro, pela amplitude do termo Cultura que engloba os seguintes; segundo, porque a Trova é uma manifestação da Cultura Popular Brasileira; e terceiro porque ela se autodenomina Folclore Tradicional pertencente ao Movimento Tradicionalista Gaúcho. Enfim, ao analisar sua poesia, observa-se que a Trova Gaúcha possui qualidades peculiares muito interessantes enquanto
performance artística e cultural.
A Trova é uma poesia oral cantada de improviso e realizada em desafio por dois trovadores, também chamados repentistas ou cantadores. Os desafiantes são acompanhados
por músicos que tocam o acordeon (ou gaita) e a melodia mais utilizada é a Mi Maior de
Gavetão em ritmo de xote, que é a preferência dos trovadores, mas, outros ritmos são
utilizados como a milonga, a vaneira, a polca, a toada e até a valsa. Os versos são sextilhas e,
segundo Barboza (1996, p.106), apresentam, em geral, uma seqüência que vai da saudação, onde os repentistas cumprimentam-se entre si e a platéia; o assunto, quando ambos
discorrem sobre o tema proposto; passam pelo puaço, que é uma espécie de agressão
verbal onde é proibido ofender a mãe, a esposa e a filha; e terminam com a despedida, que
é o encerramento da trova.
Os praticantes costumam declarar que para ser trovador é preciso ter um talento natural de nascença, pois, a prática exige, além de muita habilidade técnica, destreza de pensamento, resistência e disponibilidade para o jogo. De acordo com Marocco (1999, p.5) “o
‘gaúcho’ se distingue (...) por sua virtuosidade verbal perceptível na sua maneira particular de se exprimir no cotidiano com expressões verbais, regionalismos e metáforas, assim
como na sua capacidade de improvisação ao fazer poesia que é reproduzida na trova”.
As performances de Trova não têm tempo delimitado podendo estender-se por horas.
O assunto vai tomando consistência até esgotar um dos desafiantes que, por sua vez, pro-
*UFSM/UNICAMP
99
Gisela Reis Biancalana
põe o verso de despedida e é seguido pelo cantador vitorioso, responsável pelo fechamento da trova.
No que se referem às origens da Trova, alguns pesquisadores apontam para uma reminiscência galaico-portuguesa denominada leixa-pren que significa larga-retoma (MARQUES,
1998, p.57) devido à deixa da trova que subordina uma estrofe a outra. Alguns afirmam que
o marco inicial da trova é a prática do repente nos antigos galpões das estâncias após as
lides campeiras. O repente é uma criação de versos, na grande parte das vezes, cantados
individualmente pelo seu criador em improviso.
De acordo com Lamberty (1996, p.75), as origens do peão gaudério campeiro, e boa
parte do desenvolvimento de suas práticas e costumes acontece nos galpões das grandes
estâncias, distantes dos focos urbanos. Os galpões eram ambientes rústicos de chão batido, e cobertos por santa-fé. Quando se recolhiam, os peões faziam seu fogo de chão, colocavam a carne no espeto para o churrasco, cevavam um mate para o chimarrão e sentavamse em roda para prosear. É desta convivência nos galpões, distante dos familiares, que favoreceu o clima fértil para os temas de saudade; das valentias do gaúcho sobre cavalos; dos
“causos”; da viola e da gaita. Este foi um ambiente perfeito para o surgimento das Trovas
também chamadas galponeiras. As carreteadas e tropeadas eram lugares próprios para a
prática da trova entre peões de diferentes estâncias. As Trovas, então, já corriam de galpão
em galpão e, no anonimato, tornaram-se patrimônio da Cultura Popular Gaúcha e são, atualmente, de domínio público.
O conceito de Cultura adotado remete-se à abordagem antropológica contemporânea
que considera os aspectos das relações sociais; como relações de produção, exploração,
dominação, entre outras; que determinados grupos; sejam eles delimitados por etnia, religião ou nação; mantém entre si e com outros grupos, porém, considerando os “caracteres
distintivos que apresentam os comportamentos individuais, dos membros deste grupo, bem
como suas produções originais (artesanais, artísticas, religiosas,...)” (LAPLANTINI, 1996, p.120).
Para desenvolver brevemente o conceito de Cultura Popular buscou-se discorrer, a princípio, sobre o adjetivo popular.
Popular é uma palavra de origem latina que se remete às coisas do povo, e também às
coisas que agradam e tem a simpatia do povo como o governo popular, por exemplo. Há os
que usam o termo de modo pejorativo para designar coisas vulgares, como uma marca de
sapatos popular, por exemplo, e também para referir-se a pessoas de fama carismática. De
acordo com Zumthor (1997, p.23), a palavra remete-se à qualidade, é um ponto de vista,
não é um conceito.
Cultura Popular, então, pode significar muita coisa como, por exemplo, o modo de transmissão de conhecimentos do povo, a permanência de características tradicionais que venham refletir uma etnia, aos depositários de certas tradições, entre outras. Inevitavelmente
o termo comporta uma tensão com o erudito. Neste contexto bipolar a cultura erudita
possui uma hegemonia sobre a cultura popular. Zumthor (1997) propõe graus de populari100
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
dade, quando há intensa participação ou grande adesão, também quando há oposição ao
erudito. Enfim, é muito difícil delimitar a cultura dita popular, pois ela transita em um universo de possibilidades.
Bakhtin (1987, p.2), por sua vez, aproxima o adjetivo popular das coisas de caráter não
oficial, que não são categorizadas, que não se perceba dogmatismo, autoridade, formalidades com limitações definitivas e estáveis. Para o autor, o popular tem caráter público consagrado pela tradição e oferece uma visão de mundo diferente da oficial por princípio, e que
parece construir “ao lado do mundo oficial um segundo mundo e uma segunda vida” e cria
“uma espécie de dualidade de mundo” (1987, p.4-5).
A crescente cisão entre os universos intelectual e sensório/emotivo/espiritual gera fragmentações que abarcam todo o campo do sentir, pensar e agir humanos. Esta cisão afetou
o conceito de Cultura desdobrando-o em erudita e popular, sendo esta última marginalizada e reconhecida, muitas vezes, apenas por suas características pitorescas. O respeito às
manifestações típicas da cultura humana em seus grupos sociais deve-se a estudos que
procurem entendê-las enquanto Cultura, Cultura Popular. A sobrevivência instintiva das
culturas populares deve-se, em grande parte, a sua independência dos valores oriundos da
cultura erudita, com seus critérios de produtividade, suas relações com o capitalismo, sua
excessiva valorização da esfera intelectual. A visão de mundo da Cultura Popular é desafiadora, pois, apóia-se na inversão dos valores voltados para a razão.
O conceito de Folclore desenvolvido neste trabalho, uma vez que o conceito de Cultura
Popular adotado cabe bem ao estudo da trova, é porque os gaúchos tradicionalistas consideram suas produções artísticas como folclore nativo.
Inicialmente, entre os séculos XVIII e XIX, o termo Folclore foi usado apenas para designar um conjunto de costumes populares a partir da origem etmológica da palavra folk=povo
e lore=saber, conhecimento. Os saberes e costumes do povo englobavam as idéias de simplicidade, autenticidade, espontaneidade, tradição e anonimato e já se opunham ao conjunto de saberes eruditos ocupando, desde sua origem, posição subalterna. O termo foi
criado pelo inglês Willian John Thomas em 22 de agosto de 1846 que passou a ser o Dia
Internacional do Folclore. No Brasil foi decretado o Dia Nacional do Folclore em 1965, pelo
presidente Castelo Branco.
De acordo com Zumthor (1997, p.22) foi a partir do século XX que a palavra desdobrouse em conceitos vagos e foi quando muitos etnólogos chegaram a negar-lhe valor científico, e muitos pesquisadores consideraram-no “as diversas práticas de recuperação dos regionalismos e de animação turística”. O autor cita como exemplo o Dicionário de Leach, de
meados do século XX, que explora trinta e três definições diferentes para Folclore.
O termo também é, com muita freqüência, utilizado para designar tradições populares
que, relegadas aos meios marginalizados, subalternos e, muitas vezes, até esquecidas, foram artificialmente resgatadas pelo seu caráter pitoresco e, conseqüentemente engessadas,
cristalizadas, tornando-se intocáveis como se fossem peças de museu.
101
Gisela Reis Biancalana
Para Barboza (1996, p.11), escritora tradicionalista, o Folclore é sim uma ciência que
estuda manifestações espontâneas da Cultura Popular e fato folclórico seria, para ela, a
“parcela do conhecimento humano que se transmite no tempo e no espaço de geração a
geração (...) sem ensino formal”, considerando-o como elemento dinâmico da Cultura Popular em constante transformação. Segundo a autora, o fato folclórico tem algumas características intrínsecas que são a aceitação coletiva, a funcionalidade, a espontaneidade, a
intemporalidade e a tradicionalidade e, ainda, duas características que não são consideradas necessariamente essenciais como a oralidade e o anonimato. Desta forma ela coloca
uma classificação temporal para o fato folclórico: nascente, quando a aceitação popular é
inferior a vinte e cinco anos, a exemplo do pular elástico; vigente, quando resiste no tempo
e é dinâmico, a exemplo da trova; e histórico, quando perdeu sua função, mas é cultuado
apenas para lembrar o passado, é estático, a exemplo das danças tradicionalistas.
Semelhante aos conceitos de folclore acima colocados por Barboza, Zumthor (1997, p.23)
coloca que há uma tendência contemporânea que confere uma ampla acepção ao termo
trazendo a idéia de folclore-em-situação, libertando o termo de sua ligação com a idéia de
produção cristalizada que atravessou um processo de folclorização - “movimento histórico
através do qual uma estrutura social ou uma forma de discurso perde progressivamente
sua função”- que, por sua vez, cairia na classificação de folclore histórico de Barboza.
Quanto aos conceitos de Tradição e Tradicionalismo buscou-se remeter, em especial, ao
universo pesquisado e suas definições conceituais. O Movimento Tradicionalista Gaúcho
(MTG) é uma entidade sem fins lucrativos e que possui sua própria jurisdição. É um movimento cívico, cultural e associativo que orienta as atividades de seus filiados os Centros de
Tradição Gaúcha (CTGs). Estas atividades compreendem os piquetes de laçadores, os grupos de arte nativa. O MTG responsabiliza-se pela preservação da cultura gaúcha e da filosofia do movimento.
As práticas gauchescas são realizadas em sua maior parte nos CTGs. Estas agremiações
promovem anualmente um evento chamado ENART (Encontro de Arte e Tradição Gaúcha).
Ao longo do ano são realizadas diversas etapas regionais e no mês de novembro acontece
o encerramento na cidade de Santa Cruz do Sul. Após esta breve explicação, buscou-se
realizar a abordagem dos conceitos acima mencionados orientadas a partir dos pressupostos do MTG.
A bibliografia gaúcha não se cansa de reforçar sua diferenciação destes conceitos. Para
tanto, os autores colocam a origem latina da palavra traditio que significa entregar, transmitir ou ensinar, portanto é o culto de valores, hábitos, enfim, modos de vida que os antepassados legaram as gerações atuais, é o ato de passar fatos culturais através dos tempos.
Desta forma, tradicional é tudo aquilo que foi conservado pela tradição por gerações. Segundo Barboza (1996) o tradicional resiste vivo no tempo e no espaço e tem aceitação
coletiva por mais de 25 anos.
102
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Já o tradicionalismo, como indica o emprego do sufixo ismo, seria o apego intenso às
tradições e o tradicionalista seria o sujeito partidário, praticante do tradicionalismo, e também é uma forma de qualificar determinadas práticas culturais como as danças tradicionalistas, por exemplo. Para os integrantes do MTG, a palavra tradicionalismo pertence ao seu
movimento, é intencional, organizada, e datada e visa preservar as tradições do passado
riograndense sem entrar em conflito com o futuro.
No que se refere aos conceitos abordados, a idéia de fato folclórica vigente, defendida
por Barboza, e a de folclore-em-situação, de Zumthor, aproximam-se e estariam contidas na
concepção antropológica de Cultura adotada e, por ser produzida pelo povo, pertence à
Cultura Popular. A Trova Pampeana é, então, uma manifestação da Cultura Popular Gaúcha
por ser um fato folclórico vigente ou folclore-em-situação, que possui uma característica
tradicional e pertence ao rol de atividades praticadas pelos tradicionalistas do MTG. Neste
contexto, os conceitos abordados podem integrar-se harmonicamente sem necessariamente um anular o outro.
Assim, a performance da Trova enquanto manifestação artístico-cultural popular do Rio
Grande do Sul pertence a uma tradição oral que possui elementos de uma vocalidade poética. A vocalidade acontece no momento performático, no ato da publicação e, ainda, na
materialização de todo corpo que fala, transcendendo o conteúdo veiculado e incorporando
o gesto, a musicalidade, enfim, todo jogo poético que se manifesta. De acordo com Lopes
(1997), “se o som da voz é gerado por processos físicos, os músculos do corpo são receptores
dos impulsos sensíveis do cérebro, que criam a fala. Assim o corpo fala.” (LOPES, 1997, p.27). A
autora coloca a articulação da voz em um discurso, reflete um pensamento claro e um desejo
de comunicar os impulsos deste pensamento que são, por sua vez, “processos internos da
palavra significante para que se faça ouvir aquele que fala e não apenas a sua voz”.
Sendo assim, para a prática de uma manifestação da cultura oral não basta o conhecimento técnico da voz em sua concretude corpóreo-fisiológica, nem apenas o conhecimento da língua e suas maneiras de falar, bem como não basta conhecer o significado das palavras. É preciso conhecer profundamente a identidade, a cultura do povo em questão. As
manifestações brasileiras carecem de estudos que mergulhem nesta identidade cultural.
O repentista que se diz dotado de talento natural, usa sua voz, sua melodia, seu ritmo na
Trova e com isto manifesta sua vocalidade poética traduzindo a identidade e o contexto
sociocultural de seu povo.
A cultura oral enquanto prática artística seja ela popular ou erudita, ou que seja até
capaz de fundir estes universos, difere da linguagem cotidiana que se baseia em critérios
de utilidade. A vocalidade poética exige profundidade na exploração de suas possibilidades e características, bem como em seus objetivos, que são artísticos e, portanto, devem
ser poéticos. Esta poesia, na Trova, emerge de todo jogo que envolve os repentistas. É uma
voz-corpo-gesto-foco-ritmo que vai muito além do conteúdo dos versos, pois é o conjunto
performático que compõe o jogo.
103
Gisela Reis Biancalana
Bibliografia
BAKHTIN, Mikhail. Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento Trad. Yara Frateschi
Vieira São Paulo, Brasília, Hucitec, Ed. Universidade de Brasília,1987.
LAMBERTY, Salvador Fernando. ABC do Tradicionalismo Gaúcho Ed. Martins Livreiro, POA,
RS, 1996.
LAPLANTINI, François. Aprender Antropologia Ed. Brasiliense, SP, 1996.
BARBOZA, Maria Cândida. Aspectos de Folclore, Tradição, Cultura Ed. Pe Berthier, Passo
Fundo, RS, 1996.
LOPES, Sara. Diz isso cantando: a vocalidade poética e o modelo brasileiro Tese Doutorado, USP, SP, 1997.
MAROCCO, Inês A. Aspectos da Dimensão Espetacular da Trova e da Performance do Trovador da Rio Grande do Sul In: Expressão - Revista do Centro de Artes e Letras da UFSM,
Santa Maria/RS, ano 3, número 2, 1999.
MARQUES, L. A. B. Rio Grande do Sul, Aspectos do Folclore Ed. Martins Livreiro, POA, RS,
1998.
ZUMTHOR, Paul. Introdução a Poesia Oral Trad. Jerusa Pires Ferreira Ed. Hucitec, SP, 1997.
104
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
MÚSICA, DANÇA E ÊXTASE:
NOTAS ETNOCENOLÓGICAS DE UM RITO(-ESPETÁCULO) SUFI
Giselle Guilhon Antunes Camargo
Às 20h dos dias 14 e 15 de maio de 2004, a Salle des Concerts da Cité de la Musique de
Paris abriu suas portas para quatro confrarias sufis2 do mundo muçulmano – Murid (do
Senegal), Yesevi (do Alto Egito), Kadiri (do Afeganistão) e Chisti-Qawwâli (do Paquistão) –
apresentarem, uma após a outra, seus concertos espirituais. A audição (al-sama) da Nuit
Soufie (nome dado ao concerto) terminou, nas duas noites, de madrugada.
Através das declamações e cantos poéticos dos Murids do Senegal, dirigidos por Sérigne
Abdourahmane Fall Siby, das recitações corânicas proferidas em elaboradas técnicas vocais, pelo Sheikh Ahmad Al-Tûni (do Egito), da roda de zikr (repetição dos nomes de Deus),
comandada por Mir Fakr al-Din Agha (do Afeganistão) e do canto alegre e contagiante dos
Qawwâli (do Paquistão), sob a batuta de Asif Ali Khan, discípulo direto do lendário músico
paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan, os rituais sufis rivalizaram com os “transes” technos e
profanos da cultura rave3 atual. Não se pode, todavia, afirmar que os “transes vertiginosos”
produzidos nas pistas rave de dança sejam os mesmos “transes” ou “êxtases” esotéricos4
experimentados pelos participantes (“musicantes” e “musicados”) 5 dos e nos concertos ou
audições (al-sama) públicos, sufis. Embora constatemos que, em ambas as audições, rave
(que significa “dançar em transe”) e Sama (que também pode ser traduzido por “dançar em
1
Primeira e última estrofes do poema Namî dânam cheh manzil bûd shab jâe keh man bûdam – “eu ignoro em que estado e em qual lugar
maravilhoso eu me encontrava na noite passada” – do grande poeta sufi da literatura hindu-persa, Amir Khusrau (?-1325). Nela, o poeta é transportado
para uma cerimônia ideal de sufis extáticos, presidida pelo próprio Deus, em pessoa, e que exalta a presença do Profeta Muhammad (cf. QURESHI,
Regula Burckhardt. Localizer l’Islam: La Samâ’ à la Cour Royale des Saints Chisti. Musiques rituelles, Cahiers de Musiques Traditionelles, n. 5.
Genève: Ateliers d’Ethnomusicologie, 1992, p.130).
2
A variedade de ordens (tariqat[s]) e sub-ordens ou confrarias sufis, existentes no mundo muçulmano, forma um vasto sistema de ramificações de
extrema complexidade. É, porém, no contexto da zawiya (forma árabe) ou tekke (forma turca) ou dergah (forma persa) – o lugar físico onde os
dervixes ou sufis se reúnem para praticar seus rituais – que elas são mantidas. O ensinamento da escola é passado através de uma longa corrente
de transmissão oral, denominada silsila, que remonta ao fundador (Sheikh ou Pir) da Ordem.
3
Rave: “Reunião pontual, organizada tarde da noite, onde se consome a música gravada [e também drogas, como o ‘ecstasy’]. Dar uma definição
musical é mais difícil. Na linhagem das sonoridades e do espírito acid house, a música mais comumente passada é a techno [até 170 bpms: batidas
por minuto] rápida e o hardcore, ao ritmo de 125 a 140 pulsações por minuto” (cf.: GORE, G. The beat goes on: danse et tribalisme dans la culture
rave. Dança nômade, Nouvelles de Danse, n. 34, 35. Bruxelles: Contredanse, 1998, p.86). A cultura rave, diz Gore (1998, p.88), pode ser considerada
“um microcosmo da metrópole contemporânea, que os próprios ravers qualificam de metáfora da pós-modernidade, este ‘estado’ que glorifica
a fragmentação, a desconstrução, a dispersão, a descontinuidade, a ruptura, a ausência de subjetividade, a fugacidade, a superficialidade, a falta de
profundidade, a falta de sentido, a hiper-realidade”.
4
Segundo o antropólogo José Jorge de Carvalho, o “esoterismo” pode ser definido como “a busca do sentido arcano, transcendente e da experiência
iniciática, individual e plena, na era do mundo exaurido dos mistérios doutrinais e da caução sagrada [...]; isto é, no caso do esoterismo moderno,
na era do descrédito e da crítica à religião oficial e da ascensão definitiva da ciência como fonte primordial de saber e gnose” (cf. CARVALHO, J.J.
Antropologia e Esoterismo: dois contradiscursos da modernidade. Horizontes Científicos, n. 8. Porto Alegre: junho de 1998).
5
Categorias usadas por Gilbert Rouget para designar, do ponto de vista da pessoa que está em “transe”, respectivamente, o “emissor” e o “receptor”
da música (ver ROUGET, G. La Musique et la Transe – Esquisse d’une théorie générale des relations de la musique et de la possession. Paris,
p.Gallimard, 1990, p. 497).
105
Giselle Guilhon Antunes Camargo
êxtase”), a ênfase no tempo presente ou mítico6 (“a vida é um fluxo”, “tudo passa”), a experiência do “aqui e agora”, o esvaziamento do self, a não-identificação (que, no contexto sufi,
pode ser traduzida por desapego: das coisas, das pessoas, do mundo) 7 e a sensação de
desterritorialização (para os sufis: Unidade8; para os ravers, tribalismo9) sejam, real ou
idealmente, vivenciados pelos adeptos10, o caminho que cada uma dessas coletividades faz
para chegar “lá”, assim como os meios utilizados como “gatilhos” ou “mecanismos de disparo”,
do “transe” e do “êxtase”, somados à intenção que norteia o percurso dos dois eventos – um,
o rave, buscando o prazer (sobretudo físico) sem limites; outro, o Sama, a realização espiritual – são completamente distintos:
O Sufismo (Tasawwuf) abre o coração (qalb) para a percepção mística, convertendo o
prazer da sensualidade em deleite espiritual, estabelecendo uma harmonia entre os
dois. Não se trata de um conceito ou de um pensamento, mas de uma experiência vivida,
um estilo de vida [...] que conduz a pessoa, pouco a pouco, à união com Deus. [...] A Arte
não é, todavia, o objetivo do Sufismo. Nas cerimônias e cultos realizados pelos sufis, [...]
a dança, em seu sentido mais amplo, exerce um papel importante, assim como também
a música e a literatura, em suas formas mais exaltadas. Mas essas artes não correspondem
à meta do Sufismo: elas são apenas meios para conduzir o ser humano até Allah. A
música, a dança e até mesmo o estilo das roupas [...] despertam a percepção estética
inerente à natureza humana, transformando o gozo sensual em realização divina. Esta é
a proposta da Arte no Sufismo porque o único objetivo do Sufismo é Allah.11
6
“O tempo sagrado nada tem de histórico, o seu passado é mítico, é um tempo que permite ao homem e à mulher reencontrarem a presença do
Ser supremo, recuperar a unidade viva e articulada do cosmo, mergulhar no não-tempo” (cf. OLIVEIRA, Vitória Peres de. O sufismo e a ênfase no
tempo presente. NUMEN – Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, v. 4, n. 2, Jul-Dez. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2001, p.72).
7
A máxima sufi “estar no mundo sem ser do mundo” traduz bem a idéia de desapego: “Poder-se-ia, aqui, argumentar que o buscador é levado a viver
o tempo presente, mas de uma forma ausente; entretanto, para um místico, esta ausência [...] é uma ausência do que eles chamariam de ilusório,
mundano, para poder estar presente e participante no êxtase divino, no verdadeiro presente absoluto. É vivendo esse alheamento e alternandoo com a identificação necessária à vida cotidiana que o sufi, segundo dizem os mestres, se torna livre” (OLIVEIRA, V. P., op. cit., p.62).
8
Ilustremos o sentido de desterritorialização e de Unidade sufis com o poema do mestre sufi persa Jalaluddin Rumi (1207-1273): “Nem deste
mundo, nem do próximo, nem do céu, nem do purgatório. Meu lugar é o não-lugar, Meu passo é o não-passo./ Não sou corpo, não sou alma. A alma
do Amado possui o que é meu. Deixei de lado a dualidade, Vejo os mundos num só. / Procuro o Um, conheço o Um, Vejo o Um, invoco o Um. Ele é
o Primeiro e o Último, o exterior e o interior. – Nada existe senão Ele” (RUMI, J. Poemas místicos – divan de Shams de Tabriz. Seleção, Tradução
e Introdução: José Jorge de Carvalho. São Paulo: Attar Editorial, 1996, p. 84-85). Segundo a antropóloga Vitória Peres de Oliveira (2001, p.60),
especialista em Sufismo, um buscador quer viver esta unidade, conhecer esta unidade. “Meu passo é o não-passo”; para ele, paradoxalmente, não
há porque caminhar, “basta estar aqui”, na experiência do Um.
9
É o DJ (disc-jokey), essa figura “xamânica”, a quem os ravers atribuem poderes “mágicos”, que conduz – através do seu diálogo eletrônico com o
material musical, gravado, disponível – os participantes da festa rave a uma viagem sensorial e corpórea comparável à dos “rituais liminais” de
algumas culturas não-ocidentais, cujo objetivo é chegar, igualmente, a uma celebração coletiva e/ou ao transe. Não se trata, todavia, de um
processo ativo de recuperação e de reprodução, mesmo que uma facção dominante e ruidosa do movimento rave clame em favor da alteração
da consciência por intermédio de práticas ritualistas e da absorção de drogas (cf. GORE, G., op. cit., p.92). Contudo, conforme relativiza o sociólogo
francês Michel Maffesoli, o “neo-tribalismo” rave implica em relações táteis, corpo a corpo; e a preferência dada aos sentimentos coletivos, na
medida em que servem de “cola”, mantendo os indivíduos juntos, não significa que busquem, conscientemente, uma “união plena”, uma “união de
projeto”; a união do rave é uma “união na falta”, “no vazio”; uma “comunhão de solidões” (MAFFESOLI, M. La transfiguration du politique: la
tribalisation du monde. Paris: Livre de Poche, 1995, p. 224).
10
Em seu sentido esotérico, designa o iniciado numa determinada tradição mística ou esotérica, cujo conhecimento, antes disseminado na
qualidade de cultura ou representação coletiva, adquiriu um caráter pessoal, de gnose interiorizada (cf. CARVALHO, J.J., op. cit., p.66). Em seu
sentido geral, designa, simplesmente, a pessoa que é habituée de tal ou tal movimento, de tal ou tal prática, de tal ou tal tipo de evento, como, por
exemplo, aquele que é freqüentador assíduo das festas rave.
11
Explicação do Sheikh Mevlevi Yakup “Baba” Efendi para a relação entre Arte e Sufismo. Yakup “Baba” vive em Istambul e respondeu à minha
questão por e-mail, em agosto de 2005. (Tradução: minha)
106
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
O fato de eu ter privilegiado, no título desta comunicação, a categoria “êxtase” em detrimento da categoria “transe”, não significa que eu considere o “êxtase” o único “estado
alterado de consciência”12 experimentado pelo público durante a performance das quatro
confrarias sufis. Se considerarmos que o “êxtase”, tal qual é concebido pelo etnomusicólogo
Gilbert Rouget (1991), é um estado mental caracterizado por uma contemplação profunda
feita de silêncio, imobilidade e privação sensorial, e que o “transe”, ao contrário, é sempre
marcado por um hiper-estímulo sensorial, manifestando-se através de movimentos corporais, sons e comunicação entre os participantes, eu diria que o público, para ser mais precisa, experimentou, alternadamente, um e outro estado, de modo mais ou menos intenso,
conforme o tipo de estímulo e outras tantas variantes que, certamente, escaparam à minha
percepção.13
O “êxtase” e o “transe”, como bem relativizou Rouget14, devem ser vistos, sempre, como
pertencentes a um contínuo no qual cada um deles ocupa um pólo. Os pólos estão ligados
por uma série ininterrupta de estados intermediários, de sorte que é difícil, por vezes, decidir se nos encontramos diante de um “êxtase” (tadjali) ou de um “transe” (wajd).
A Nuit Soufie teve início com as Declamações e Cantos Poéticos Murids, do Senegal, dirigidas
por Sérigne Abdurahmane Fall Siby. Dela participaram o próprio Fall Siby – que é o chefe
religioso do grupo – e os cantores Babacar Mbaye Ndur, Mawa Diop, Babacar Siby (cantor),
Abubakrine Siddikh Siby, Mbaye Seck, Mamadu Lamine Siby, Mohamed Siby, Magueye Siby
e Detubad Seck.
Vestindo elegantes túnicas de seda, os membros da confraria Murid ou Muridiyya entraram lentamente no palco, caminhando em direção a um mosaico de tapetes orientais,
situado no centro do tablado, sobre o qual formaram um semicírculo. Uma vez sobre o
quadrado de tapetes, sentaram-se. Logo no início da recitação dos cânticos poéticos
(khassidas), de autoria do Sheikh senegalês Ahmadu Bamba (1853-1927) ou Sérigne Tuba,
como também é conhecido, as vozes limpas e afinadas dos Murids do Senegal, somadas à
simplicidade, à elegância e à serenidade com que eram declamadas, impactaram o público, visual e auditivamente, levando-o a um estado coletivo de contemplação.
Nascido em 1853 (1272 da Hégira) em Mbacke Baol, pequena cidade do Senegal, o
Sheikh Ahmadu Bamba foi discípulo do grande místico persa Al-Ghazali (1085-1111) – célebre por ter conciliado a sabedoria corânica com a filosofia racionalista, o que lhe valeu o
título de “Prova do Islã” –, tornando-se um dos mais prestigiosos filhos da comunidade mu-
12
“Um estado alterado de consciência, para um indivíduo dado, é aquele no qual ele, claramente, sente uma mudança qualitativa no seu padrão
de funcionamento mental, isto é, ele sente não só uma mudança quantitativa (mais ou menos alerta, mais ou menos imagens visuais, mais aguçado
ou mais vagaroso, etc.), mas também alguma qualidade, ou qualidades, dos seus processos mentais são diferentes. Funções mentais operam que
não operam, em absoluto, comumente; qualidades perceptuais aparecem que não têm contrapartidas normais e assim por diante” (TART, Charles.
Introdução. Altered states of consciousness. Garden City, NY: Anchor Books/Doubleday, 1969, p.1-2). (Tradução: Vitória Peres de Oliveira).
13
Ver o capítulo “Transe et Possession”, de Gilbert Rouget. In: ROUGET, G., op. cit., p.39-83.
14
Ibidem, p. 53.
107
Giselle Guilhon Antunes Camargo
çulmana. Conjugando suas inerentes qualidades religiosas com suas habilidades pedagógicas, o Sheikh Amadu Bamba fundou, em 1883, o Muridismo: “eu recebi do meu Senhor a
ordem de conduzir os homens a Deus, o Altíssimo. Aqueles que quiserem pegar esta via
terão apenas que me seguir. Quanto aos outros, que não desejam nada além de instrução, o
país dispõe de vários letrados”. Depois de uma curta estada em Mbacke Baol, o Sheikh
Ahmadu Bamba fundou, em 1886, Daru Salam e Tuba. Tuba se transformou na “cidade da
paz”, um lugar onde se ensina o Alcorão e onde se aplica a tradição do Profeta. Diante da
influência crescente do Sheikh Ahmadu Bamba sobre as populações locais, o poder colonial
o fez prisioneiro em São Luís do Senegal, em agosto de 1895, condenando-o, mais tarde, à
deportação ao Gabão. Após sete anos e meio de exílio na floresta do Magal, Sheikh Ahmadu
Bamba, um dos maiores peregrinos muçulmanos da África, entrou, em 1902, em Dakar,
morrendo em 19 de julho de 1927. Seu mausoléu, em Tuba, é visitado por homens e mulheres de todos os continentes. O ensinamento da confraria Murid está intimamente ligado à
filosofia do trabalho: “trabalha como se tu não devesses jamais morrer e reza como se tu
fosses morrer amanhã!” Esta valorização do trabalho, oriunda do sistema de castas das monarquias (wolofs) 15 da época, acabou se transformando numa poderosa força de revolução
e luta pela libertação e independência econômica do Senegal.
Terminada a apresentação dos Murids do Senegal, teve início o show dos Yesevis, com as
Recitações Corânicas do Sheikh Ahmad Al-Tûni – conhecido como o Sultão do Alto Egito. A
tariqat Yesevi ou Yeseviyya foi fundada pelo turco Ahmad Yesevi (?-1165), que viveu no século
XII, na parte da Pérsia conhecida como Khorasan. Ahmad Yesevi recebeu seus primeiros
ensinamentos sufis na cidade de Yesi, onde se tornou discípulo de Arslan Baba, um conhecido
murshid (guia espiritual) da região. Após a morte de Arslan Baba, mudou-se para Bukhara,
onde continuou seus estudos tornando-se murid (discípulo) do famoso Sheikh Yusuf Hamadhani
(?-1140). Quando Hamadhani morreu, Ahmad Yesevi permaneceu em Bukhara por mais algum tempo, antes de voltar a se estabelecer em Yesi, onde viveu o resto de seus dias, tendo
a sua volta um grande número de discípulos. Conta-se que Ahmad Yesevi estava tão decidido
a imitar o Profeta Muhammad em todas as coisas, que desejava morrer com a mesma idade
do Profeta, sessenta e três anos: “com isso em mente, ele tinha uma tumba, construída por ele
mesmo, embaixo de sua cela. Quando completou sessenta e três anos, entrou na cela, jurando
que dela não sairia mais pelo resto de sua vida. Como a data do seu nascimento é desconhecida, não se sabe por quanto tempo ele realmente viveu nesta chilakhana [casa mortuária]”. 16
As recitações do Sheikh Ahmed Al-Tûni foram acompanhadas pelos músicos Ahmad
Soliman Turny (canto), Mohamed Ahmed Turny Soliman (percussão: tabla e reqq), Mustafa
15
Os wolofs (mahabutas) costumavam se retirar em grutas para praticar a khalwa (reclusão) e assim ter visões divinas (jenneer) (ROUGET, G., op.
cit., p.47).
16
CF. ÖZTÜRK, Yasar Nuri. The Eye of the Heart – An Introduction to Sufism and the Tariqats of Anatolia and the Balkan. Istanbul: Redhouse
Press, 1998, p.49. (Tradução: minha)
108
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
Abdelhadi Abdelrehman (flauta: ney), Mohamed Ahmed (alaúde: ud), Sayed Ali Mohamed
Hassan (violino: kamanga) e Hamada Ahmed Hassanein Ahmed (percussões: derbuka).
Originário da cidade de Hawatka, próxima à Assiut, no Egito, Ahmad Al-Tûni é o símbolo
de uma geração que conheceu as últimas grandes efervescências da música egípcia, representadas por cantores como Mohammed Abdel Wahab e Omm Kalsûm. O carisma de
Ahmad Al-Tûni reflete, em certa medida, esse período-chave no qual o inshad (canto sufi)
começou a receber a influência dos cantos citadinos. O munshid (cantor do inshad) 17 já era
um personagem público nessa época e passou a moldar o seu estilo de acordo com o modelo de Omm Kalsûm, ou seja, misturando as técnicas vocais de recitação corânica (tajwid)
com ornamentações clássicas e populares:
A aprendizagem de um músico sufi – que nós chamamos de munshid – [...] e o conjunto
de canções que ele canta, são oriundos dos antigos textos dos grandes santos sufis e
muçulmanos, como Abdal Qadir al-Gilani [1077-1166] [...]. E é através desses textos que
eles entram na via mística [Sufismo] e que aprendem o canto sufi [inshad]. E é a partir
desses textos que transmitem, de fato, a mensagem. Então, o que é mais importante: eles
transmitem a mensagem a todos, muçulmanos ou não-muçulmanos, porque fazem parte,
todos, da Unicidade. 18
Enquanto Ahmad Al-Tûni cantava o inshad (canto sufi), batia ritmicamente o seu rosário
de contas (sîbha) num copo de vidro, dialogando com os instrumentos de percussão (tabla
e reqq) e com o violino (kamanga) da orquestra. Não havia preocupação alguma com a
qualidade acústica – a amplificação modificaria os dons da escuta! – e a orquestra se reduziu num dado momento, à simples percussão da tabla, do reqq e do kamanga. Este último,
graças a um pedal de distorção, cobria os espectros sonoros dos antigos instrumentos com
o mesmo espírito experimental dos anos 70 ou da nova música eletrônica de hoje. Distante
de qualquer possível conservadorismo, a voz de Al-Tûni parecia se remodelar19 continua-
17
O munshid, seja ele egípcio, marroquino ou paquistanês, não é, necessariamente, afiliado a uma confraria particular; seu papel é o de criar,
unicamente, o tarab (transe profano) – oposto a wajd (transe místico) – e ele se torna, então, o mutrib (músico), o provocador de tarab, esta emoção
que provoca a perda de si mesmo: “Mesmo os antigos sultãos, sob o efeito de tal força emocional, dilaceravam suas vestimentas, perdidos neste
oceano de plenitude e conhecimento. Eles se banhavam naquele mar de voluptuosidade, naquele turbilhão das épocas descritas nas poesias
do deserto [...], ornamentadas pela rica métrica dos salmos árabes. Essa poesia e esse canto fizeram do Sufismo uma expressão artística inteiramente
à parte, capaz de veicular um sentimento por vezes terapêutico, espiritual e emocional” (WEBER, Alain. Transes Musicales. Cité Musiques – La
Revue de la Cité de la Musique, n. 45. Mars à Juin 2004, p.23). (Tradução: minha)
18
Explicação dada a Benjamim Minimum – organizador da Nuit Soufie – pelo Sheikh Ahmad Al-Tûni. A entrevista foi feita na primeira noite da
apresentação, logo após o seu término. (Tradução: minha.) A entrevista completa está no site www.mondomix.com/archives/cite-musique04/
main_citemusique.html .
19
De acordo com o músico e musicólogo Peter Michael Hamel, fundador do grupo Between, alguns cantores sufis usam a “voz em falsete” quando
estão em transe: “Em momentos de êxtase, o cantor de textos sagrados consegue uma espécie de gorgolejo em que a voz passa do peito para
a cabeça com grande rapidez, o que lhe permite atingir uma região aguda de sons harmônicos, tal qual uma flauta em que se sopra com muita
força. Esta técnica de canto afeta o ouvinte, também fisicamente, e de maneira tão forte que a música, ao envolvê-lo, pode lhe trazer lágrimas
aos olhos. Em meio a esse canto poderoso, a mensagem mística dos textos ou das invocações extáticas, é transmitida diretamente ao iniciado.
Trata-se de uma técnica que corresponde à união místico-islâmica entre vigor rústico e abandono amoroso” (HAMEL, P. M. O auto-conhecimento
através da música – uma nova maneira de sentir e de viver a música. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 109-110). Conforme ainda Hamel, quando o
ouvido não-treinado se depara, repentinamente, com esse tipo de intervalo “desafinado”, pode, a princípio, ter uma sensação desagradável; mas
quando, ao contrário, se abre aos mistérios da música monofônica, relacionada às “notas pedal”, pode ter uma experiência auditiva inteiramente
nova, que o levará a estados de consciência nunca antes experimentados.
109
Giselle Guilhon Antunes Camargo
mente, deixando que a emoção fosse o principal condutor da expressão. Conjugando, simultaneamente, tradição e modernidade, Ahmad Al-Tûni incendiou o público parisiense
com suas inesperadas improvisações vocais. Sobre seu estilo de cantar e a forma como
articula seu canto com os outros músicos Yesevi, diz o próprio Al-Tûni:
Eu não costumo preparar nada. Há cantores que ensaiam, trabalham [...]. Eu estou completamente sob a inspiração divina, sigo o espírito do momento, o espírito da palavra
que canta. Antes de chegar ao microfone, não sei ainda o que vou cantar e nem sei como
eu vou cantar. [...] [Quanto aos músicos], seja lá qual for o lugar [o ponto] em que o canto
estiver eles vão me seguir, seja qual for o ritmo em que eu estiver. Eles acompanham
completamente a minha inspiração. [...] Eu não sigo a música jamais. São sempre os
músicos que acompanham minha palavra. 20
Além de praticarem o inshad (canto sufi), os Yesevis costumam praticar alguns zikr(s) ou
dhikr(s) (repetição dos nomes divinos) de um modo característico. O mais notável entre
eles, e que não foi executado neste espetáculo, é o chamado “zikr-serra”, devido ao som de
serra produzido na garganta daqueles que o executam. A performance deste zikr foi descrita pelo Sheikh Muhammad Ghaws da seguinte maneira:
Colocando ambas as mãos nas coxas, e expelindo o ar para baixo em direção ao umbigo,
o som ha é articulado (com o ‘a’ prolongado). Então, conduzindo o ar, de debaixo do
umbigo para o alto, e mantendo o corpo ereto, o som hay é pronunciado (este hay é
alongado e áspero). Deste modo, o zikr continua. O resultado desejado é obtido serrando o coração como um carpinteiro serra a madeira [...]. 21
A exaltação provocada pelo canto contagiante de Al-Tûni contrastou com a sóbria roda
de zikr (repetição dos nomes de Deus) da Ordem Kadiri ou Kadiriyya, de Masar-i Shariff
(Afeganistão), dirigida e executada pelo Sheikh Mir Fakr al-Din Agha e pelos músicos Said
Fakhruddin Said Abdullah (canto), Abdulrashid Khan (canto), Mohammad Yasin Ghulam
Mortaza (canto), Ghulam Ali Aminullah (canto), Said Ishaq Said Mustafa (canto) e Abdulhakim
Abdulaziz (canto).
O Afeganistão faz parte do antigo percurso iniciático que atravessava as estepes, os
desertos e as montanhas na época da Rota da Seda. Desde o século II, importantes vias
comerciais atravessavam a China de Norte a Sul e de Leste a Oeste, concentrando em Xi’na,
a antiga capital, os mercados do Império do Meio. Cada vez mais densa essa rede de pistas
estendeu-se consideravelmente ao curso dos séculos, reunindo, em sua malha, tanto as
rotas traçadas anteriormente pelas conquistas orientais de Alexandre, o Grande, quanto
àquelas que, sob o comando de Gengis Khan e Tamerlão, foram fundadas pelos Turco-Mongóis
da Ásia Central. Desse modo, da China ao mundo árabe, passando pela Índia, as tradições
20
Sheikh Ahmad Al-Tûni, em resposta à pergunta de Benjamim Minimum: “Como você faz para se coordenar com os músicos?” (Tradução: minha)
A entrevista completa encontra-se no site www.mondomix.com/archives/cite-musique04/main_citemusique.html .
21
ÖZTÜRK, Y. N., op. cit., p. 54. (Tradução: minha)
110
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
musicais do Xamanismo nômade e tribal, do Budismo e, mais tarde, do Islã, se entrecruzaram.
Hoje em dia, infelizmente, o Afeganistão – transformado em objeto de cobiça e manipulação geopolítica – concentra seus esforços em conservar a terra e, principalmente, a vida,
das últimas grandes tribos de cavaleiros montanheses. A presença sufi, muito importante
no Afeganistão, é representada por quatro confrarias sunitas: a ordem Chisti ou Chistiyya,
criada na Índia pelo Santo sufi Muînuddîn Chistî ‘Kwaâjâ Gharîbnawâz’, falecido em 1236, em
Ajmer; a ordem Suhrawardi ou Suhrawardiyya, fundada por Abû Nagîb al-Suhrawardî (11541191) e seu sobrinho Shahabuddin Suhrawardî (1145-1235); a ordem Naqshbandi ou
Naqshbandiyya, pertencente a uma longa tradição iniciática (silsila), da qual a última grande figura foi Bahauddin Muhammad al-Bukhari (1318-1388), mais conhecido como Shah
Naqshbandi, falecido em Bukhara (ver Prólogo da tese); e, finalmente, a ordem Kadiri ou
Kadiriyya, fundada por ‘Abd Al-Qâdir Al-Jilânî (1077-1166). É a esta última que pertence Mir
Fakr al-Din Agha. Nascido em Balkh e criado em Kabul, ele canta desde 1958 e é uma das
grandes figuras do canto religioso afegão. Como é comum entre os grandes cantores de
sua geração, ele pode cantar em Persa as poesias do Hafiz (recitador do Alcorão) durante
uma noite inteira. Os membros dessa escola encontram-se freqüentemente às quintas-feiras à noite, no interior da mesquita de Mazar-i Shariff, fazendo um círculo para praticarem a
hadra 22, a cerimônia ritual sufi de recolhimento e meditação.
A prática do zikr (repetição dos nomes de Deus), dos Kadiri do Afeganistão, transformou, pouco a pouco, a exaltação sensorial (“transe”) provocada pela música dos Yesevi em
“êxtase contemplativo”. A extroversão dos cantos Yesevi fora substituída pela sóbria e
centrada repetição dos nomes divinos, realizada pelos Kadiri afegãos. O público, que, instantes antes, dançava, eufórico, em pé, em frente às suas poltronas, encontrava-se, agora,
sentado, em silêncio, com os olhos fechados, a experimentar um outro tipo de “estado de
consciência”. Além das vozes que saiam de dentro do círculo (halka) de dervixes (ou sufis),
não se ouvia nenhum outro ruído no ambiente. Quando a apresentação terminou, havia
como que um manto invisível de energia pairando no ar. As pessoas pareciam realmente
afetadas por aquela influência sutil – que os sufis chamam de baraka23 – da ordem do
imponderável, que as envolvia, muito sutilmente, criando uma atmosfera de inesperada
amorosidade. Levou um tempo para que as pessoas batessem palmas.
Em entrevista concedida a Benjamim Minimum (organizador da Nuit Soufie), o Sheikh
Mir Fakr al-Din Agha fez uma declaração, logo após o término da cerimônia Kadiri, que con-
22
A hadra, adoração salmodiada e cantada, tanto quanto o zikr (literalmente: lembrança, reminiscência) – repetição dos diferentes nomes de
Deus acoplada a uma técnica respiratória particular – faz parte do conjunto de técnicas usadas no Sufismo com o objetivo de despertar a
consciência do adepto para o contato com o divino: “Esta técnica é freqüentemente enriquecida com movimentos rodopiantes e/ou gestos
entrecortados onde os corpos se tornam o receptáculo de um êxtase dramatizado. Mas é no interior profundo [...] do círculo confrárico que nasce
a luz que engendra aquela desordem dos sentidos, aquele transe do absoluto” (WEBER, A., op. cit., p. 23). (Tradução: minha)
23
Baraka: benção, influência espiritual, graça divina, beleza impalpável. Designa, também, a influência espiritual de determinada corrente de
ensinamento (silsila).
111
Giselle Guilhon Antunes Camargo
firma, até certo ponto, minhas impressões, tanto como “ouvinte” quanto como “etnógrafa”
(aproximando as duas categorias) 24, do evento extático em questão:
Há, evidentemente, a barreira da língua. (Eu não posso conversar com as pessoas!) Mesmo assim, o sentimento é passado. Eu senti que as pessoas o compreenderam. Que elas
o sentiram. E isso é verdadeiramente próprio do Sufismo, porque das palavras cantadas
nós passamos ao transe [wajd], que é conhecido de todo mundo, que todo mundo pode
sentir, que vai além das palavras. O transe, na verdade, cria uma linguagem comum que
aproxima os corações, que aproxima as pessoas. [...] Os espectadores tiveram uma percepção muito boa dessa linguagem comum; eles a sentiram muito bem; eles a apreenderam muito bem. [...] A língua falada muda com o tempo, o sentido das palavras muda,
mas quando se chega à linguagem do coração [qalb], do transe, aqui nada muda. E eu
senti que os corações dos ouvintes estavam abertos nesta noite [...], impregnados com o
nosso canto. 25
No decorrer da entrevista, Benjamim Minimum perguntou ao Sheikh afegão o que o fez
aceitar o convite para vir apresentar-se, pela primeira, na Europa. O Sheikh respondeu:
Quando tu me convidaste para vir me apresentar aqui [em Paris], eu me fiz a pergunta:
como o farei? Como poderei cantar para pessoas que não compreendem a minha língua, que não pertencem à mesma cultura? Como poderei fazer-lhes sentir? E tu me
explicaste que não, que uma vez rompida a barreira da língua, nós podemos nos comunicar muitíssimo bem com o público, fazendo-o sentir. E foi por isso que eu vim. E aqui
está a prova: tudo que eles apreenderam dos nossos cantores, eles sentiram com os seus
corações, eles compreenderam bem. [...] O coração é capaz de comunicar as coisas boas
e as coisas ruins, de um coração a outro, através de uma via secreta. Então, mesmo que
eles não tenham compreendido nada do que eu cantei, do ponto de vista da linguagem, eles compreenderam quase tudo, do ponto de vista do sentimento. 26
Quando o zikr (repetição dos nomes divinos) dos Kadiri do Afeganistão terminou, a Noite
Sufi já penetrava a madrugada. Deu-se início, então, a performance musical dos Qawwâli do
Paquistão: Asif Ali Khan (voz), Hussain Shibli Sarafraz (voz e harmonium), Ali Raza (tabla), Hussain
Raza (voz de sustentação), Fayyaz Hussain Bakhat (harmonium), Nawaz Hussain Shah (voz e
palmas), Hussain Shibli Imtiaz (voz e sopro), Hussain Aftab Omer Draz (voz e palmas), Ahmad
Zahoor (voz e sopro) e Normann Yasser (voz). O público, uma vez mais, experimentaria, sem
qualquer resistência, outra mudança radical de estado de espírito e/ou consciência.
24
Inspiro-me, aqui, na fertilíssima comparação entre a atitude esotérica e a atitude antropológica, desenvolvida pelo antropólogo e etnomusicólogo
José Jorge de Carvalho, em seu ensaio “Antropologia e Esoterismo: dois contradiscursos da modernidade”: “A atitude antropológica guarda
bastante similaridade com a atitude esotérica [ocidental], sobretudo se pensarmos num conceito central para a constituição da atitude esotérica
moderna: o conceito de tradição. Por trás desta palavra está a transmissão viva e direta de um conhecimento arcano e fundamental, que resiste
ao trabalho do tempo, precisamente por sua capacidade de renovar-se a cada geração, encarnando em pessoas dotadas da sensibilidade que
estamos chamando de esotérica. [...] E assim se passam as coisas, a prática etnográfica conduz o antropólogo a deparar-se constantemente com
os mestres que transmitem o conhecimento místico e espiritual que circula no seio das tradições religiosas vivas. Essa dimensão da oralidade é
feita através da presença, da encarnação do saber lembrado” (CARVALHO, J.J., op. cit., p.65). Da mesma forma que o esoterismo só pode ser assimilado
pela experiência direta, a etnografia do fenômeno religioso, diz Carvalho, só pode ser vivida mediante a imersão do etnógrafo numa corrente oral
de conhecimento que lhe permita estabelecer contato direto com a presença viva.
25
Sheikh Ahmad Al-Tûni. (Tradução: minha) O restante da entrevista pode ser ouvido no site: www.mondomix.com/archives/cite-musique04/
main_citemusique.html .
26
Ibidem.
112
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
O canto Qawwâli, expressão sufi da região indo-paquistanesa, sobrevive graças aos
Qawwâl, cantores-músicos pertencentes à ordem sufi Chisti ou Chistiyya, criada na Índia
pelo Santo Muînuddîn Chistî ‘Kwaâjâ Gharîbnawâz’, falecido em 1236, em Ajmer, no coração
do Rajastão. Todos os anos, centenas de peregrinos e adeptos do Sufismo Chisti vão à dergah
(ou zawyia [forma árabe] ou tekke [forma turca]) – o lugar físico onde os sufis se reúnem
para realizar suas práticas mentais-corporais-espirituais – de Ajmer, no interior da qual se
encontra a tumba de Muînuddîn Chisti, para celebrar o seu ‘urs 27 (literalmente, casamento),
o aniversário de sua morte.
Segundo a etnomusicóloga Regula Burckhardt Qureshi, todos os santuários Chisti dispõem de um ou mais samakhana(s), salas reservadas à prática do Sama (audição musical).28
Semelhantes às salas (diwan-e’am[s]) onde os soberanos muçulmanos costumavam realizar
suas audiências gerais, sobretudo na Índia, o samakhana é o lugar do mahfil-e’am (reunião
geral) do Sufismo, um enorme auditório destinado à audição espiritual (al-sama). Nos santuários mais espaçosos, acrescenta Qureshi, costuma haver, ainda, outra peça – em geral, aquela
na qual o santo tinha o hábito de meditar e ensinar –, destinada às audições mais íntimas de
Sama. Nela, apenas um pequeno número de sufis eleitos tem permissão para participar do
mahfil-e khas (assembléia especial), que utiliza, geralmente, um repertório especial de cantos
arcaicos. Em cada um desses santuários, o adro, em frente à tumba do santo, é também considerado apropriado para acolher uma assembléia de Sama. É neste local que se desenrola a
comemoração ritual da morte do santo (‘urs), com recitações de extratos apropriados do Alcorão (qul), seguidas de cantos do repertório tradicional do Sama Chisti:
Na assembléia do Sama, a presença do santo [é atualizada] através dos participantes
que representam diretamente o santo. Tal representação é possível graças à filiação e à
autoridade espiritual transmitida pelo santo ao longo do silsila, a corrente de mestres
escolhidos para comunicar a mensagem espiritual. Esta autoridade espiritual é reforçada por um laço de parentesco com o santo ou um de seus parentes próximos, embora
muitos dos santos não possuam descendência, a exemplo de ‘Kwaâjâ Muînuddîn Chistî
e Nizamuddin Auliya. No santuário, os dois princípios de filiação são reunidos na pessoa do sajjada nashin. Ocupando o sajjada (tapete de oração) ou o gaddi (trono) do
santo, o sajjada nashin ou gaddi nashin é o representante mais próximo do santo, e,
ainda, juntamente com os outros membros da comunidade de descendentes, seu representante mais direto: eles são também os laços vivos com a morada que abriga a presença terrestre do santo. 29
No mahfil sama (audição geral), a representação do santo se insere, sempre, numa organização estruturada segundo este princípio de hierarquia espiritual. O representante mais
27
A palavra ‘urs designa, na Índia, e também no Paquistão, o aniversário ou o dia em que se comemora a união final de um santo muçulmano com
Deus. Equivalente ao Shab-i Arûs turco, que quer dizer “noite de núpcias” ou “noites espirituais”.
28
QURESHI, R. B., op. cit., p.130-131.
29
Ibidem, p.132. (Tradução: minha)
113
Giselle Guilhon Antunes Camargo
alto da autoridade santa, juntamente com o mir-e-mahfil, o dirigente do Sama, assume a
direção da assembléia. A ordem dos lugares é estabelecida levando-se em conta todos os
membros presentes da hierarquia espiritual, incluindo-se, conforme o caso, os descendentes diretos do santo e os Sheikhs que ocupam apenas um lugar espiritual (não-familiar) em
relação ao santo ou à sua linhagem.
Considerando a hierarquia espiritual de todos os membros presentes, mais do que nunca, as regras pertencentes à etiqueta (adab) sufi devem ser observadas, afim de que as
relações sejam estabelecidas convenientemente. Desse modo, os sufis que serão “musicados”
durante a audição (al-sama) não podem dar livre expressão à sua experiência espiritual, a
menos que esta esteja em acordo com a forma estabelecida (adab). O dirigente (mir-emahfil) do ritual é aquele que estabelece as normas e vela pela boa conduta dos participantes. Nesse contexto, os intérpretes da música do Sama ocupam um lugar à parte na
cerimônia: sob as ordens do mir-e mahfil, eles “servem” aos objetivos espirituais da assembléia. Especialistas profissionais derivam sua identificação espiritual com o santo, não do
fato de serem seus discípulos, mas de estarem ligados ao seu santuário ou a um Sheikh vivo.
O que lhes permite, todavia, assumir a parte musical da assembléia é menos o seu estatuto
no seio da hierarquia espiritual, do que o fato de terem reconhecida competência textual,
musical e ritual:
Através da interpretação musical do Sama [...], toda a corte de santos ganha vida, porque
[o Samâ’] invoca sua presença, confirmando, assim, a legitimidade dos Sheikhs vivos,
seus descendentes espirituais. Certos membros da comunidade sufi reconhecem que
esta atividade é crucial para que o poder do santo possa ser ativado. 30
No coração do vasto repertório vocal dos Qawwâl encontram-se as composições poéticas e musicais de Amir Khusrau (?-1325), o grande poeta sufi da literatura hindu-persa.
Khusrau é considerado o pai fundador do Qawwâli, o gênero musical do Sama praticado
pelos músicos da Ordem sufi Chisti (assim como o Ayîn é o gênero musical do Sama Mevlevi,
ordem fundada pelo poeta persa Jalaluddin Rumi [1207-1273] ou Mevlana, em Konya (Turquia), no século XIII). Sobre as origens e os objetivos do Sama Chisti, encontramos a seguinte explicação, que vem de um importante Sheikh Chisti contemporâneo:
O Sama nos permite atingir a elevação espiritual. Muitos pensam que o Sama remonta a
Amir Khusraw. Outros, a Gharîbnawâz’. Na verdade, ele vem de mais longe. Nós acreditamos que, do ponto de vista espiritual, o concerto místico vem do Imã Ali e de seus quatro
discípulos: Hassan, Husseyn, Hassan Al-Basri e Fazal Bin Miazi. A Ordem ligada a Hassan
Al Basri é a nossa, a dos Chisti. O concerto místico [Sama] nasceu na sua época. O Sama
deve chegar a uma escuta perfeita. 31
30
Ibidem, p. 133. (Tradução: minha)
31
Declaração atual de um Sheikh Chisti da Índia. Extraída do filme de Mahmoud Ben Mahmoud, Le Soufisme des Qawwâli (Inde), Les Mille et Une
Voix: Terres et Voix de l’Islam. França: Artline Films/ Les Productions du Sablier/ Arte France/ RTBF Bruxelles/ Mezzo/ SIC/ Canal Horizons/
Editions Montparnasse, 2003.
114
V Colóquio Internacional de Etnotecnologia
O apogeu da música Qawwâli foi assimilado, no Ocidente, pela personalidade de Nusrat
Fateh Ali Khan, monstro sagrado dessa arte, capaz de induzir centenas de pessoas a um
estado coletivo de “transe”. O termo qawwâl vem do Árabe qaul, que significa o verbo, a
palavra ou a ação de dizer. O Qawwâl canta a palavra sagrada do poeta inspirado, quer seja
em Persa, Hindi ou Urdu, de acordo com a origem da poesia.32 Para além dos efeitos vocais,
extremamente sofisticados e emocionais, o cantor deve, com efeito, ter o dom da fala e da
palavra, de modo a ser capaz de provocar o estado de graça (amad) no público. Quando a
sessão musical chega a este ápice, o cantor, sustentado pelo ritmo das palmas, repete (takrâr)
como que num crescendo, o seu canto, até que este provoque um estado de completa
hipnose coletiva. Os louvores ao Santo são repetidos pelo coro como uma invocação – por
vezes, dilacerante e extática – provocando o efeito do tarab, esse estado de perda de si
mesmo no qual mesmo os sultãos de outros tempos, tomados de uma estranha força emocional, rasgavam suas vestimentas. É graças ao grande poeta hindo-persa Amir (Abul Hasan
Yaminuddin) Khusrau, que a Música Clássica do Hindustão, assim como o canto qawwâli
alçou o seu grande vôo modal e poético. Esse grande poeta místico, discípulo de Nizamuddin
Auliya, um dos mais célebres mestres sufis da Ordem Chisti ou Chistiyya – cujo mausoléu,
em Delhi, é lugar de freqüentes peregrinações e reuniões místicas –, é a origem do rico
repertório poético clássico indo-paquistanês, cantado até hoje pelos qawwâl, em Farsi (Persa)
a língua erudita do fim do século XIX.
Se as pessoas que participaram da audição da Nuit Soufie tinham ou não consciência
dos quatro silsila(s) (linhagens de transmissão) que norteavam a performance musical das
quatro confrarias sufis – Muridi, Yesevi, Kadiri e Chisti – é um dado que não pude averiguar
de modo sistemático, uma vez que conversei com poucas pessoas após o concerto. Essas
poucas conversas, entretanto, somadas à minha “observação participante” na audição, levaram-me a concluir que o Sama das quatro confrarias sufis induziu o público – independentemente do conhecimento prévio que as pessoas pudessem ter acerca do Sufismo – a
diferentes estados espirituais: uns mais contemplativos ou “extáticos”, como os induzidos
pelos Muridi, do Senegal, e pelos Kadiri, do Afeganistão; outros, mais dançantes ou
“transísticos”, como os induzidos pelos Yesevi, do Egito, e pelos Chisti-Qawwâli, do Paquistão.
32
A poesia mais venerada é aquela redigida em Farsi, a língua original do Sufismo e idioma poético de eminentes santos e poetas do passado. A
segunda língua clássica do Sufismo indiano é o Hindi, que costuma ser associado ao misticismo “primitivo” indianizado e ao seu forte caráter
devocional. A terceira língua, o Urdu, é, sobretudo, um idioma contemporâneo do Sama, faltando-lhe, ainda, suas próprias conotações santas e
espirituais. Conforme Qureshi (1992, p.135), uma categoria à parte é constituída por um repertório bastante limitado de cantos especiais utilizandose uma forma do Árabe: “Intitulada ‘qaul’ (dicção), exprime os aforismos atribuídos ao Profeta Muhammad, validando, antes de tudo, um princípio
de sucessão espiritual proveniente de Muhammad, por intermédio de seu genro, Ali. Ainda que não estejam diretamente ligados aos santos,
estes cantos ilustram, através de sua linguagem e de seu conteúdo, a hierarquia espiritual inteira do Sufismo e a posição que cada santo ocupa”.
115
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
REFLEXÃO SOBRE A METÁFORA DO CONCEITO DE REDE NO
TREINAMENTO E NA TRANSMISSÃO DO TRABALHO DO ATOR
Inês Alcaraz Marocco
Quando iniciei a pesquisa “As Técnicas Corporais do gaúcho e a sua relação com a
performance do ator/dançarino”, juntamente com um grupo de alunos1 do Curso de Teatro do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, em 2001, o seu primeiro objetivo era o
de criar um sistema de treinamento que desenvolvesse a presença física do ator/dançarino a partir das técnicas corporais dos gaúchos2 campeiros nas suas atividades de lide. Essa
idéia surgiu a partir da formação que realizei na Escola Internacional de Mimo, Teatro e
Movimento de Jacques Lecoq3 cuja pedagogia se fundamenta, entre outros aspectos, na
observação da vida cotidiana, no movimento, nos fenômenos dinâmicos da natureza e a
sua recriação no corpo mimético do ator e que tem como base um Sistema de 20 Movimentos. Este se constitui de movimentos estilizados retirados de ações da vida cotidiana,
da ginástica4 e do esporte, e alguns movimentos básicos de acrobacia, os quais servem
para desenvolver a presença física dos atores. Eu poderia transmitir para o grupo de alunos
o Sistema dos Vinte Movimentos que por si só continham o que eu queria alcançar, que era
o desenvolvimento da presença física do ator/dançarino. Mas como, durante o processo de
criação artística do espetáculo Manantiais5, em 1989, eu tive a oportunidade de assistir a
uma demonstração de um gaúcho campeiro realizando a atividade de laçar e havia percebido no seu corpo uma grande presença física, vislumbrei ali um rico material para a criação de um sistema de treinamento para o ator/dançarino. Percebi naqueles movimentos,
princípios da extra-cotidianidade, segundo as Leis do Movimento6 a partir do corpo humano em ação de Jacques Lecoq que se confirmavam com os preconizados por Eugenio
Barba quando na sua definição de Pré-expressividade7. Para a realização do espetáculo sobre a cultura gaúcha, tínhamos que ambientar os atores no contexto das histórias que
1
O primeiro grupo de alunos foi composto por Andressa de Oliveira, Carla Tosta, Cristina Kessler Furtado, Daniel Colin, Elisa Lucas e o profissional
Luiz Antonio Texeira.
2
O gaúcho a que me refiro aqui é o habitante do interior da campanha do Rio Grande do Sul.
3
A Escola Internacional de Mimo, Teatro e Movimento foi criada por Jacques Lecoq em 1956, em Paris. Em diversos países do mundo várias
gerações de atores,diretores e autores de teatro se inspiraram e se inspiram ainda hoje no ensino que eles receberam na Escola de renome
internacional Jacques Lecoq : Ariane Mnouchkine, Luc Bondy, Yasmina Reza, Philippe Avron, Claude Evrard, Geoffrey Rush entre outros
4
Jacques Lecoq foi professor de ginástica para pessoas portadoras de deficiência física
5
Espetáculo constituído por lendas e contos de autores riograndenses como Barbosa Lessa e Simões Lopes Neto, além de descrições históricas
e antropológicas recolhidas pelo historiador Auguste de Saint-Hilaire. O espetáculo foi realizado pelo TEU (Teatro Experimental Universitário
) sob a minha direção ,e obteve subvenção e apoio do FIPE e Pró Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Santa Maria.
6
As Leis do Movimento a partir do corpo humano em ação, segundo Jacques Lecoq são: Equilíbrio, Desequilíbrio, Oposição,Alternância,
Compensação, Ação, reação.
7
Os princípios da extra cotidianidade segundo Eugenio Barba são: Equilíbrio de luxo, Oposições, Incoerência coerente e virtude da omissão. in
Anatomie de L’Acteur. Un dictionnaire d’Anthropologie Théâtrale de Eugenio Barba e Nicola Savarese, Cazilhac (FR)/Roma/Holstebro(Dinamarca):
Bouffonneries Contrastes/Zeami Libri/ International School of Theatre Anthropology, 1985.
117
Inês Alcaraz Marocco
seriam encenadas e ao mesmo tempo desenvolver a presença física dos mesmos. Para isso
então através da técnica de Análise de Movimentos do sistema pedagógico de Jacques
Lecoq criamos um exercício de quarenta e quatro ações estilizadas correspondentes a atividade de laçar. Esta partitura de movimentos foi memorizada e treinada diariamente pelos alunos/atores proporcionando domínio, amplitude e limpeza gestual8.
Como os resultados foram excelentes, entendi que da mesma forma que trabalhamos com
uma das atividades, poderíamos investigar as possibilidades dramáticas das diferentes técnicas corporais do gaúcho campeiro, numa pesquisa científica. Depois de uma seleção, instrumentei
os alunos do primeiro grupo da pesquisa, para criarem um sistema de treinamento constituído
por partituras estilizadas, a partir das técnicas corporais dos gaúchos campeiros retiradas de
suas atividades de lide. Inicialmente, como eu aprendi com o mestre Lecoq, transmiti o Sistema
de 20 Movimentos e as técnicas de Mimo de Ação e Análise de Movimentos do seu sistema
pedagógico para que eles pudessem ter condições de realizar este tipo de transposição de
atividades cotidianas para partituras teatralizadas. Após a pesquisa de campo9 onde realizamos
o registro das atividades, retornamos a Porto Alegre e fizemos a seleção das seguintes atividades, conforme as suas densidades dramáticas, obstáculos e resistências: o laçar, o pealar10,a
tosquia11, o tronco12o ginetear13, tirar o leite e fazer a lingüiça. Depois, iniciamos o processo de
decodificação utilizando as técnicas já referidas acima. Primeiramente aplicamos a técnica Mimo
de Ação, onde por meio da imitação das ações fizemos a reprodução de cada atividade. A segunda etapa do processo foi de separar, enumerar e codificar as ações por meio da técnica de
Análise de movimentos, criando novas seqüências. Por fim, as sintetizamos, aplicando em cada
uma delas os princípios da extra-cotidianidade segundo Lecoq e Barba. O resultado foi a criação
de nove partituras de movimentos estilizados.
Com a realização do sistema do treinamento, surgiu a necessidade de testá-lo quanto a
sua eficácia e por isto partimos para uma criação artística. A idéia era a de que este servisse
somente como treinamento para os atores/dançarinos aperfeiçoando a sua presença física.
Desenvolvemos durante oito meses, um processo que resultou no espetáculo O Nariz14,
onde realizamos não só a criação artística, mas também a adaptação dramatúrgica do conto. Durante o processo percebeu-se que os movimentos das partituras do sistema estavam
8
Maiores referências sobre o processo e a construção do espetáculo Manantiais está descrito no artigo Manantiais:pesquisa teatral sobre a
cultura gaúcha de Inês A Marocco e Nair D’Agostini in: Revista do Centro de Artes e Letras ,v.13,n°1-2,jan/dez 1991, pg 141-162.
9
A pesquisa de campo foi realizada na região da campanha do Rio Grande do Sul, na cidade de Caçapava do Sul, numa fazenda onde os peões ainda
realizam atividades campeiras rústicas.
10
O pealar consiste na atividade de laçar o animal pelas patas.Esta atividade está em extinção.
11
A atividade da Tosquia , no sentido mais rústico, corresponde a de tirar a lã da ovelha com uma tesoura que não machuca o animal.
12
Tronco , segundo o Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul de Zeno e Rui Cardoso Nunes, é um corredor estreito , junto à mangueira,
no qual se faz entrarem os animais vacuns e cavalares que vão ser marcados, tosados, etc.Denominamos Tronco a seqüência de movimentos que
faz o peão ao abrir o portão do corredor por onde passam os animais.
13
A ação de Ginetear constitui uma das fases da doma do cavalo chucro,em que o ginete (peão especializado na doma ) tenta dominá-lo, montandoo sem utilizar dos arreios.Definição retirada do Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul.
14
Espetáculo com criação e adaptação a partir do conto homônimo de Nicolai Gogol.
118
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
presentes nos corpos dos atores/pesquisadores, pois os seus movimentos estavam impregnados dos desenhos das partituras do sistema de treinamento. Após este trabalho de criação artística, vislumbramos também a possibilidade de utilização do próprio material das
partituras do sistema como instrumental na criação e composição de personagens e de
situações dramáticas15. Com isto ficou demonstrado que além de servir como um sistema
de treinamento os movimentos das partituras poderiam ser utilizados como material concreto, um instrumental para a criação de personagens e situações dramáticas. E ao contrário do que possa parecer, a precisão gestual e o corpo instrumentalizado do ator, longe de
prejudicar o jogo, ao contrário, possibilita ao ator uma eficácia maior. Apesar das diferenças
de princípios e procedimentos16 entre o nosso sistema e o de Meyerhold na Biomecânica,
eu a tomo aqui como referência para melhor justificar a eficácia de um treinamento no jogo
do ator. Da mesma forma que os études biomecânicos possibilitam treinamentos para a
virtuosidade técnica que permitem ao ator de exercitar seu corpo, como o músico exercita o seu
instrumento e liberam a imaginação17 , o sistema de treinamento criado possibilitava ao ator
disponibilizar seu corpo e sua imaginação para o jogo.
Uma vez comprovada a eficácia do sistema de treinamento como instrumental técnico
para a formação do ator/dançarino, concluí que da mesma forma que eu aprendi e transmiti o sistema de Jacques Lecoq, os alunos do primeiro grupo deveriam, eles também passar
adiante os seus conhecimentos, verificando assim a eficácia pedagógica do mesmo.
E desde 2003, realizamos de forma sistemática a transmissão do sistema de treinamento
que já foi trabalhado por três grupos de alunos. O procedimento adotado é de que o grupo
que recebe o sistema o transmita para o próximo, até porque o tipo de aprendizagem é mais
corporal e só pode ensinar aquele que aprendeu pela prática. Este tipo de ensino-aprendizagem de um sistema corporal composto de partituras de movimentos é específico porque só
pode ser realizado através de uma prática constante e se desenvolve pela observação e imitação, nos moldes da formação artística no Oriente. A transmissão se faz então, primeiro pela
demonstração dos movimentos pelos alunos/instrutores para o grupo aprendiz, o qual depois imita e é corrigido pelos primeiros, através da manipulação de seus corpos. Trata-se
então de um processo de aprendizagem essencialmente corporal que se caracteriza pela
forma ‘artesanal’ com que é feito, onde cada aprendiz é trabalhado individualmente no seu
tempo/ritmo, caracterizando assim uma verdadeira formação artística.
15
A aluna Elisa Lucas se utilizou no seu trabalho de graduação em 2003, de fragmentos de movimentos das partituras do sistema de treinamento,
para a criação e composição da personagem principal do espetáculo, Confesso Capitu de Machado de Assis.
16
Parece que, apesar de Meyerhold construir o movimento cênico sobre o modelo do movimento perfeito do operário no trabalho (Economia de
energia, ritmo, equilíbrio e precisão), ele não utiliza nem comportamentos nem situações do trabalho e da vida cotidiana, mas sim aqueles do jogo,
que é o trabalho do teatro.Situações e comportamentos na sua maioria já teatralizados na tradição dos lazzi da commedia dell1arte que servem de
pontos de partida escolhidos para a análise contemporânea do movimento. Assim a biomecânica, que tira seus princípios do estudo do movimento
racional, se desenvolve não no cotidiano, mas no teatral,mesmo se ela lança uma “ponte” entre o teatro e a vida, mesmo se cada um pode encontrar
aí princípios úteis de equilíbrio e eficácia. Béatrice Picon-Vallin, no capítulo Autour de L’Octobre Théâtral in: Les Voies de La Création ThéâtraleMeyerhold, n° 17, Paris: CNRS, pg 107.Tradução por Inês Marocco.
17
Citação de E.Garine, utilizada por Béatrice Picon-Vallin, Idem., pg 118. Trad.Inês A Marocco.
119
Inês Alcaraz Marocco
A verificação da eficácia do sistema na criação artística e na sua transmissão para um
novo grupo de alunos18 foram tão producentes que continuar a trabalhar com o sistema
tornou-se imprescindível. Tratava-se de um sistema de treinamento que possibilitava o
desenvolvimento de competências e habilidades além de constituir um alfabeto concreto
para a criação do trabalho do ator. Durante a etapa de transmissão deste, do primeiro para
o segundo grupo de alunos/pesquisadores percebi a sua importância e que ela por si só se
constituía num trabalho tão fundamental quanto foi a criação do próprio sistema, pois estávamos construindo um núcleo de valores, uma identidade profissional como explica Eugenio
Barba através desta citação,
“A meta a ser atingida não é identificar-se em uma tradição, mas construir um núcleo de
valores, uma identidade pessoal, rebelde e leal para com as próprias raízes. O caminho a
alcançar é sempre uma prática minuciosa que constitui a nossa identidade profissional”19.
Outro fator importante que se delineou neste tipo de transmissão de conhecimentos
foi o fato de ela ser feita de forma vertical, no sentido de cada vez aperfeiçoar mais os
movimentos do sistema de treinamento. Isto se dá porque há uma necessidade, por parte
de quem transmite de entender melhor os movimentos aprendidos, para poder passá-lo
para o outro, com mais competência e eficácia. Dessa forma, com esta prática o resultado
está sendo o aperfeiçoamento do sistema de partituras com movimentos cada vez mais
delineados, precisos e pontuais. Tomo emprestado de Grotowski a noção de verticalidade,
para quem, ela se caracteriza por ser uma investigação axial, perpendicular como alguém
que cavasse um poço 20.
Esta verticalidade também aparece no processo de criação durante a etapa de Construção de Dramaturgias do Ator21 desenvolvida em 2005/2006. Dando continuidade a perspectiva iniciada por uma das componentes do grupo, como já foi citado mais acima e também no sentido de aperfeiçoar ainda mais as possibilidades de uso das partituras de movimentos do sistema, como instrumental na criação e composição de personagens e situações dramáticas, iniciamos com os alunos do segundo grupo22 da pesquisa, uma investigação experimental no processo de construção de dramaturgias do ator. Primeiramente, o
objetivo deste experimento era o de explorar as inúmeras possibilidades de uso destas
partituras como matriz para a elaboração de ações físicas dramáticas que levasse em conta
a complexidade dos estados e paixões humanas, ultrapassando a mera imitação de sensa18
Os alunos que constituíram o segundo grupo de pesquisa foram: Carina Ninow, Felipe Vieira, Lesley Bernardi, Maico Silveira e Mariana Mantovani.
19
Barba, Eugenio.Tradição e fundadores de tradição.Editado por Rina Skeel.Trad. Patrícia Alves Braga e Cláudia Tatinge. In: A Tradição da
ISTA.Londrina: FILO/UEL, 1994.
20
Jerzy Grotowski,Tu eres hijo de alguién.In: Revista Máscara, México, año 3, n° 11-12, enero 1993, pg.73-75.
21
A noção de Dramaturgia do Ator que empregamos aqui é a de Eugenio Barba : Dramaturgia é uma sucessão de acontecimentos baseados em uma
técnica, a qual busca dar à cada ação trabalhada sua própria peripécia, isto é, uma mudança e direção e conseqüentemente de tensão.The Theme
of XII ISTA Session/septembre 2000. Trad.para fins exclusivamente didáticos por Maria Lúcia Raymundo.
22
Grupo de alunos já citados na nota de rodapé de n° xix.
120
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ções e sentimentos. A maioria dos atores, quando na criação do personagem de um texto
dramático tende a imitar as emoções e os estados propostos pelo autor, de forma superficial. Esta pesquisa pretendia investir numa via indireta, ou seja, possibilitar ao ator partir do
movimento físico para atingir o estado interior da personagem. Inicialmente os alunos criaram cada um uma seqüência de movimentos, a partir de uma das partituras do sistema de
treinamento. E depois passaram a investigar as possibilidades de criação de ações físicas
respeitando a seqüência da partitura, estabelecendo pequenas situações dramáticas. A
seguir, estas composições dramatúrgicas passaram a ser repetidas até se tornarem memória física, intelectiva e afetiva. Num segundo momento, foi realizado um bricolage23 com as
composições de dois ou três alunos/pesquisadores, o que gerou uma terceira situação.
Os resultados não nos satisfizeram, mas mesmo assim os apresentamos num Congresso
de Teatro em Buenos Aires24 até para expor as nossas dúvidas e incertezas e discutir com
outros pesquisadores as possíveis soluções para o problema. A partir das reações dos pesquisadores, entendemos a razão de nossa insatisfação: as ações tinham perdido as qualidades originais dos movimentos do sistema de treinamento e haviam se tornado banais, lineares e estereotipadas. Iniciamos, então, uma segunda investigação, com os mesmos objetivos, tendo como ponto de partida a idéia de que seria interessante criarmos partituras mais
diversificadas e desta forma propiciaríamos a criação de ações físicas mais complexas e coerentes com o comportamento humano. Definimos que as partituras seriam construídas a partir de movimentos de diferentes fontes: de fragmentos de algumas das nove partituras do
próprio sistema de treinamento, da técnica do Mimo Corpóreo25 e de movimentos acrobáticos.
Através de um processo de montagem com esses diferentes recursos, cada aluno criou a sua
própria seqüência de movimentos. O passo seguinte foi o de explorar as qualidades de cada
movimento destas partituras, a partir das oito ações básicas do sistema de Análise de Movimentos de Rudolf Laban26, quanto à energia, tempo e espaço. Investigamos também as possibilidades desses mesmos movimentos quanto aos planos e níveis em relação ao espaço. Depois de trabalhar com as qualidades de cada um dos seus movimentos e de realizar um trabalho minucioso na organização de sua composição, inserimos fragmentos de textos de personagens dramáticas assim como ações concretas a serem realizadas, de forma aleatória. Constatamos, através dos resultados, que esta abordagem de construção de dramaturgias é eficaz, pois além de dar autonomia ao artista na sua criação, possibilita ao mesmo um instrumental na composição de personagens mais complexos através do seu próprio corpo. Tivemos
23
A expressão bricolage aqui é utilizada na sua conotação francesa de construção, montagem ou colagem.
24
Desde 2004 temos apresentado os resultados da pesquisa nos Congressos Internacionais de Teatro Iberoamericano e Argentino que se
realizam anualmente em Buenos Aires.
25
Mimo Corpóreo ,disciplina criada no final dos anos 20 por Etienne Decroux (1898/1991) foi ensinada ao grupo da pesquisa pela atriz profa Leela
Alaniz, em julho de 2005.
26
Rudolf Laban (1879-1958) desenvolveu uma notação de movimentos capaz de registrar qualquer um de seus tipos, a Kinetography Laban,
conhecida nos EUA como Labanotation.
121
Inês Alcaraz Marocco
alguns resultados bastante interessantes: o jogo do ator se aproximando mais da dança e ao
mesmo tempo cheio de peripécias, gerando constantes surpresas, nos aproximando mais do
teatro de imagens, onde o texto é parte orgânica do todo.
Atualmente, ao sistematizarmos a fase em que se encontra o terceiro grupo de alunos/
pesquisadores27 concluímos que alguns aspectos da pesquisa, que até então não haviam
sido analisados, deveriam ser enfocados pela sua importância e recorrência. Estes são o da
transmissão sistemática de um sistema de treinamento que já está no seu terceiro grupo e
o aspecto da verticalidade das investigações desenvolvidas. Estes fatores têm promovido
não só um aperfeiçoamento contínuo nos movimentos das partituras como na sua utilização como instrumental cada vez mais elaborada, na construção de processos artísticos.
Podemos afirmar que a transmissão sistemática desses conhecimentos, de grupo para grupo, se processa como uma rede, a palavra rede é aqui utilizada no seu sentido metafórico
segundo Assmann28.
REDE. Network. Teia. Com uma série de usos no sentido comum (teia de aranha, rede de
tecido, rede elétrica, etc.) o termo transmigrou por diversas áreas, especialmente das
tecnologias da informação e da comunicação (redes digitais, e se erigiu em metáfora da
interconectividade praticamente inabarcável. Rede de computadores interligados. internet
é a “rede de alcance mundial”, (worldwideweb,abrev.www). Redes neuronais. O ápice da
metáfora é, sem dúvida, a própria teia da vida. A metáfora da rede sinaliza, além disso,
descentralização do dinamismo fundamental de um sistema. O conceito é inovador enquanto aponta para uma complexidade de interconexões tal que nela já não existe propriamente um centro, nem uma simples multiplicidade de centros, mas uma espécie de continua interpenetração e convocabilidade do todo29.
O outro aspecto importante que caracteriza a pesquisa tem sido o fator da verticalidade,
isto é , de sempre aprofundarmos a investigação, inicialmente com a criação do sistema e
depois com a utilização do material proveniente deste como instrumental para a criação e
composição de dramaturgias do ator e de espetáculos. Acreditamos, seguindo os princípios de Grotowski, que a arte do teatro se faz a partir de um trabalho de investigação no
sentido de um aprofundamento diferente daquele mais superficial, sem compromisso com
o essencial. Neste tipo de trabalho é o processo que conta, o aprender fazendo, lidando
com o erro, experimentando e gerando outros conhecimentos a partir disto. Neste sentido
também encontramos na metáfora do conceito de rede dentro da nova concepção de edu-
27
O terceiro grupo de alunos/pesquisadores que iniciou em março de 2006 é composto por: Elisa Beschorner Heidrich, Kalisy Cabeda, Philipe
Philipsen, Rodrigo Fiatt e Sofia Vilasboas Slomp.
28
Natural de Venâncio Aires (RGS) , Hugo Assmann é Doutor em Teologia e Mestre em Ciências Sociais.Ele escreveu um dos primeiros livros sobre
a Teologia da Libertação,abrindo caminho para Leonardo Boff entre outros.
29
Assmann ,Hugo.Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente .Petrópolis (RJ): Vozes , 2001,pg 30.
30
Fritjof Capra (Áustria, 1939 - ) é um físico teórico e escritor que desenvolve trabalho na promoção da educação ecológica. Htp//pt.wikipedia.org/
wiki/Fritjof_Capra 6/8/2007.
122
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
cação ecológica de Fritjof Capra30, fundamento para justificar esta maneira de ensinar/aprendendo. Para ele a nova concepção de conhecimento como uma rede, se caracteriza por uma
mudança da estrutura para o processo e por uma mudança da ciência objetiva para “a ciência
epistêmica”31.
E é este tipo de trabalho em profundidade, em que cada um é responsável e tem autonomia na sua aprendizagem que tem favorecido as várias descobertas e links realizados
pelo grupo. Desta forma fica reforçado o tipo de transmissão realizada, como uma rede,
onde não existe um centro, mas partes, subconjuntos que continuamente se interpenetram
e alteram o todo, com uma interconexão mais complexa onde não existe um centro do
saber ao qual os alunos devem se dirigir e depender, mas, sim uma espécie de contínua
interpenetração e convocabilidade do todo32. Neste mesmo sentido, Capra expressa a mudança da parte para o todo33 como uma das características do novo paradigma da concepção de conhecimento.
Além disso, este tipo de trabalho da pesquisa possibilita aos grupos de alunos experimentarem um tipo de formação que não lhe é possibilitado na academia, pela sua estrutura
fragmentada e divisão de conhecimentos. Procura-se desenvolver uma formação do indivíduo como um todo. Além de proporcionar o trabalho em equipe, a pesquisa proporciona
encontros teóricos e a prática do jogo teatral como complementares a investigação. É importante ressaltar que a aquisição de competências técnicas e habilidades implicam para
quem faz, entre outras coisas, persistência, trabalho árduo, rotineiro, convivência e tolerância no grupo, um treino diário muito difícil. Trabalho em equipe, mas sempre privilegiando
a autonomia do artista. Neste sentido, segundo Taviani, o treinamento assim como o trabalho em equipe é eficaz porque além de privilegiar a autonomia do artista ele reforça também a consciência do indivíduo cidadão na sua integralidade.
“O treinamento do ator é na maioria das vezes considerado de maneira reducionista:
como a marca do caráter profissional do ator (se ele treina todos os dias como um atleta
ou um pianista) ou como o signo de sua consciência moral (todos os dias ele faz seus
exercícios). Não se compreende que o treinamento é -ou pode ser- um fator de independência. Independência do ator em relação ao diretor. Independência da continuidade de seu trabalho em relação ao caráter episódico dos espetáculos sucessivos, mas
independência também em relação aos espectadores. Quando ele não é episódico, o
treinamento serve, no início, a introduzir o ator ou aluno na profissão teatral. Além disso,
ele o integra numa tradição, grande ou limitada na história de um grupo restrito (...)”34
31
Assmann,H.Idem.
32
Idem.
33
Idem.
34
Ferdinando Taviani, Les deux visions: vision de l’acteur, vision du spectateur.In: Anatomie de l’Acteur. Idem.,pg.204.Tradução Inês A Marocco.
123
Inês Alcaraz Marocco
E qual é a relação da Etnocenologia35 com os paradigmas já citados de Assmann e
Capra? Esta disciplina, perspectiva adotada pela pesquisa em questão, é definida por Jean
Marie Pradier, como sendo o “estudo nas diferentes culturas das práticas e dos comportamentos
humanos espetaculares organizados (PCHSO)”36. A noção de espetacular segundo Pradier,
considera os comportamentos e as manifestações organizadas do homem nas suas respectivas culturas como um conjunto do qual fazem parte vários subconjuntos, dentre os quais
podemos citar o teatro. Da mesma forma que a metáfora do conceito de rede de Assmann,
esta noção compartilha deste mesmo pensamento sistêmico, onde se desenvolve numa
interconexão contínua e complexa, caracterizando um sistema organizado, onde não existe
um centro, mas partes, subconjuntos que continuamente se interpenetram e altera o todo.
As manifestações e comportamentos humanos organizados aos quais se refere o conceito
de Pradier fazem menção àqueles advindos de uma tradição, isto é de um sistema cultural
de transmissão de pai para filho, ou de mestre para discípulo, como a metáfora do conceito
de rede explicita muito bem quando faz referência a teia.
Num mundo pluralista e midiático, onde a tecnologia toma cada vez mais o lugar do
homem, estudar o vivo pode se tornar no futuro um grande desafio a ser encarado pela
Etnocenologia,
“Uma ciência da presença do vivo, uma disciplina voltada a descrição dos comportamentos
emergentes fundadores da identidade não tem somente um valor de erudição. Ela introduz
a descoberta do múltiplo na unidade da espécie, do sutil na diversidade, no mais profundo do
enigma da vida e de seu respeito amoroso”3737
Como conclusão podemos afirmar que, da mesma forma que a Etnocenologia a metáfora do conceito de rede de Assmann tem também como princípio comum, o estudo do
homem na sua complexidade e especificidade cultural que se revela através de suas manifestações e comportamentos vivos.
35
Esta disciplina criada por um grupo de intelectuais entre os quais o professor Jean Marie Pradier foi oficializada na sede da UNESCO ,por ocasião
do Colloque de fondation du Centre International d’Ethnoscénologie, nos dias 3 e 4 de maio de 1995 na Maison des Cultures du Monde, em Paris.
36
Pradier, idem,pg.16.
37
Pradier, idem,pg.41.
124
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Referências
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Vozes, 2004.
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. Anatomie de L’Acteur. Un dictionnaire d’Anthropologie
Théâtrale. Cazilhac (FR)/Roma/Holstebro(Dinamarca): Bouffonneries Contrastes/Zeami Libri/
International School of Theatre Anthropology, 1985,
BARBA, Eugenio. A Terra de Cinzas e Diamantes. São Paulo: Ed Perspectiva, 2006
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In: Revista do Centro de Artes e Letras, v.13, n°1-2, jan/dez 1991, pg 141-162.
GREINER, Christine, BIÃO, Armindo (org.). Etnocenologia: Textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1998.
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avril 1991. Saintes-França,La Rochelle/Saintes (France): Rumeur des Âges/Maison de
Polichinelle,1993.
_____________ Autour de L’Octobre Théâtral in: Les Voies de La Création ThéâtraleMeyerhold, n° 17, Paris: CNRS, 1990.
PRADIER, Jean Marie. Ethoscénologie:La profondeur des émergences.In: Internationale de
L’imaginaire: La scène et la Terre.Questions d’Ethnoscénologie.nouvelle série,n°5,1996.
RUFFINI, Franco. ’Sistema’ de Stanislavski.In: A Arte secreta do Ator:Dicionário de
Antropologia Teatral. BARBA, E.SAVARESE, N.Campinas: Ed.Hucitec/UNICAMP, 1995.
Pesquisa sobre Fritjof Capra no site Htp//pt.wikipedia.org/wiki/Fritjof_Capra 6/8/2007
125
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
“A LAVAGEM PRA FRANCÊS VER” :
REINTERPRETAÇÃO E JOGO IDENTITÁRIO NA LAVAGEM DA
MADALENA EM PARIS - FRANÇA
Ingrid Bueno Peruchi
A tradicional festa baiana da Lavagem das escadarias da Igreja do Senhor do Bonfim,
que em mais de dois séculos de história firmou-se como a representação maior da fé e do
sincretismo religioso na cidade de Salvador, vem sendo promovida anualmente na cidade
de Paris (França) por iniciativa da associação franco-brasileira Viva Madeleine, desde 2002.
A festa, que ocorre na Igreja de Santa Madalena, (chamada Église de la Madeleine), tem
por objetivos expressos o desenvolvimento de um espírito ecumênico e dos valores de
Paz e Tolerância, baseados nos princípios da festa baiana. Ela guarda, no entanto, diferenças
em relação à festa original que vão além do « estranhamento » do espaço geográfico e dos
olhares estrangeiros. Com base em um vídeo promocional produzido pelos organizadores
da festa, buscaremos observar não somente as diferenças e semelhanças entre o evento
original e sua cópia no exterior, mas, a partir deles, perceber que mais do que a divulgação
ou representação de uma nova forma de expressão religiosa estranha ao público francês, a
festa representa um espetáculo de identidades em jogo e uma forma de mercantilização.
No início do vídeo, deparamo-nos com a seguinte pergunta, proposta pelo apresentador : “Mas na verdade, o que é o Brasil?”. Para os franceses, conforme sugestão do vídeo,
o Brasil seria o país do carnaval, da festa, do samba e da dança sensual protagonizada pelas
mulatas. O apresentador adverte desde o princípio, entretanto, que o Brasil é ainda formado por muitas outras coisas, como o telespectador poderá comprovar ao conhecer o evento que ele apresentará, ou seja, a “Festa da Madalena”.
Após um panorama da festa, o organizador principal, em entrevista, afirma que celebra-se ali Santa Madalena, e explica que se trata de uma tradição que possui um século e
meio de existência no Brasil. Sua intenção, segundo ele, é levar a paz às cidades e purificálas dos maus espíritos. Perguntado sobre a iniciativa da lavagem, diz que ela era um sonho,
o sonho de “ver Paris de branco, o povo, os orixás, as divindades, os brasileiros e os franceses”. Focalizando a atenção sobre o percurso pessoal do organizador, o apresentador pergunta sobre seu papel de destaque junto à comunidade brasileira de Paris e sobre sua
trajetória até chegar à cidade e ser consagrado.
Posteriormente, o apresentador destaca a relação particular que o organizador tem
com a religião e lhe pergunta se o Brasil é um país puritano, ao que ele responde que sim,
afirmando que se trata de um país católico que tem uma igreja por dia e que ele e seus
familiares praticam o candomblé. O filme tem fim com vistas da festa, que destacam grupos de percussão e uma roda de capoeira, e com entrevistas breves com brasileiros e
franceses ali presentes. Brasileiros ressaltam a felicidade em estar na França ouvindo músiUniversité Paris X-Nanterre
127
Ingrid Bueno Peruchi
ca brasileira e participando de um evento brasileiro e um francês destaca a semelhança do
ambiente criado com aquele da cidade de Salvador.
O objetivo maior do evento, ou seja, trazer para a França uma forma de festividade
religiosa tradicional da cidade de Salvador, parece, no entanto, no conjunto do vídeo e na
festa em si, de valor minoritário. Como vimos, o organizador, ao ser questionado sobre o
significado do evento, explica que ele é uma tradição brasileira que visa a “levar a paz às
cidades e livrá-las dos maus espíritos”, sem maiores informações sobre a expressão religiosa que propiciaria tais benefícios, ou sobre os modos através dos quais se chegaria a eles.
Além disso, em momento posterior, observa-se uma oposição claramente efetuada entre o
catolicismo e o candomblé, tanto no discurso do apresentador quanto no do organizador, o
que gerará uma confusão ou um estranhamento ainda maior quanto à dimensão religiosa
do evento. O apresentador, ao classificar a relação do organizador com a religião como
“particular” e sugerir em seguida que a religião católica no Brasil é sinônimo de “puritanismo”, evidencia não somente seu ponto de vista francês sobre o exotismo ou a diferença
característica do evento que ali se produzia mas ainda efetua um dualismo entre as religiões em questão, anulando a religião católica, sinônimo de puritanismo, em prol do que
seria a religião do candomblé. O organizador, por sua vez, efetua a mesma oposição ao
confirmar o puritanismo de um país que é majoritariamente católico e afirmar, por outro
lado, que ele e sua família são adeptos do candomblé.
Tais formulações, em primeiro lugar, contradizem a própria prática e concepção histórica do candomblé no Brasil, religião que não se constitui de modo autônomo ao catolicismo,
mas que, pelo contrário, encontra nele sua complementaridade necessária. Em segundo
lugar, essas formulações provocam um estranhamento da prática que ali se efetua, ou seja,
se o candomblé é uma religião distinta do catolicismo, por que razão a festa em questão
ocorre nas dependências da Igreja Católica e é dedicada a uma santa católica? A resposta
aponta não para a anulação da causa religiosa no evento, mas para uma clara indicação de
que ela é ali marginal, de que ela está relegada a segundo plano1.
A Festa da Madalena guarda semelhanças com a Festa do Bonfim, que podem ser
verificadas através da repetição de determinados símbolos, como a presença das baianas,
da caminhada do povo até a igreja, do ritual da lavagem das escadarias, da bênção dos
presentes e da dominante branca nas roupas. Tal festa, no entanto, não é dedicada a Oxalá
ou ao Senhor do Bonfim, como ocorre na festa sincrética de Salvador, que não somente atrai
uma multidão de fiéis mas que tem razões religiosas e históricas profundas. Ainda que se
conserve o branco associado a essa divindade do candomblé nas vestimentas, a santa homenageada é Santa Madalena, que não tem destaque no culto afro-brasileiro, o que nos
leva a crer que a escolha de uma igreja em Paris que proporcionasse um espaço físico
1
Ou sujeita a uma reinvenção que visa à mercantilização, como veremos no final dessa comunicação.
128
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
apropriado para a encenação da lavagem, ou seja, a Igreja da Madalena e sua escada, foi
mais importante que a celebração religiosa a uma entidade.
Essas observações nos conduzem para a percepção de que a festa, entendida como um
transplante de um evento religioso que perde os valores que tem na comunidade de origem, uma vez que o fato histórico e os elementos que o alimentaram não podem se repetir
com as mesmas significações, fundamenta-se de fato na representação de um espetáculo,
que celebraria uma suposta identidade brasileira.
Dentro da perspectiva dos estudos da sociologia pós-moderna, Stuart Hall afirma sobre
a identidade que
...como todas as práticas de significação, ela está sujeita ao “jogo” da différance (...) [envolvendo] um trabalho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas,
a produção de “efeitos de fronteiras”. Para consolidar o processo, ela requer aquilo que é
deixado de fora – o exterior que a constitui. (2000, p.106)
Os efeitos de fronteira estabelecem-se nessa situação em relação àquela que é concebida como a outra identidade em questão, ou seja, a identidade francesa. Nota-se, de fato,
no discurso dos entrevistados em geral, que a festa é sempre definida como “um evento
tradicional que ocorre no Brasil”, e nunca como um evento representativo de uma localidade do país. O organizador afirma, ainda, a fim de comprovar a força do catolicismo no país,
que “o Brasil tem uma igreja por dia”, ditado que se refere na verdade unicamente à cidade
de Salvador, a qual teria 365 igrejas, ou seja, uma para cada dia do ano.
Tudo se passa, assim, como se essa festa que se define como brasileira, que seria a
reprodução da Festa do Bonfim, ocorresse há quase dois séculos em nível nacional. Verificase, no entanto, que esta generalização não é sentida como estranha pelos brasileiros presentes, o que pode ser explicado por duas razões primordiais.
A primeira razão diz respeito ao próprio funcionamento da identidade, a qual é sempre
ilusoriamente essencialista, una, fundada na tradição que persistiria ao tempo e na idéia de
que, pelo fato de formarmos uma comunidade, partilhamos os mesmos hábitos, a mesma
cultura, as mesmas crenças e tradições, enfim, fundada na idéia de que somos iguais. Esse
comportamento se confirma por exemplo no fato de não estranharmos afirmações
generalistas como “o brasileiro é festivo”; ao contrário, sentimo-nos identificados, sobretudo em contraposição a uma outra cultura nacional.
A segunda razão diz respeito ao conjunto de símbolos nacionais que se misturam ao
evento, provocando o que Hall denominou de “jogo da différance”, em alusão ao conceito de
Jacques Derrida.
O “jogo da différance” é marcado pelo adiamento e pela negociação que caracterizam a
construção da identidade, que nunca se acaba ou se fixa, a não ser ilusoriamente. Este jogo
se estabelece por formas simbólicas que definem o que somos “nós” em contraposição a
“eles”. A oposição, no espetáculo da festa, não somente se constrói pela presença dos símbolos, anteriormente aqui evocados, que coincidem com os da Festa do Bonfim, mas sobre129
Ingrid Bueno Peruchi
tudo por símbolos como o carnaval de rua e a música brasileira, que não somente interpelam os brasileiros em geral presentes, provocando sua identificação, como ainda provocam
a confirmação da expectativa dos franceses sobre o que seria a cultura brasileira.
Assim, se para o francês o Brasil é sinônimo de carnaval, com todo o conjunto de fatores
que ele pressupõe, como as fantasias, o samba e as mulatas, sua expectativa não se frustra
no conhecimento desse outro Brasil que a festa representaria, isso porque nesse outro Brasil há pessoas dançando na rua atrás de um pequeno trio elétrico onde se apresentam
sobretudo cantores brasileiros estabelecidos na França, que cantam músicas de carnaval;
há ainda a ostentação do símbolo maior da nação, a bandeira brasileira; há a presença, em
meio ao cortejo, de pessoas vestidas com os paramentos de diversos orixás, os quais podem ser facilmente interpretados, pelos olhares estrangeiros ou mesmo brasileiros inadvertidos, como meras fantasias carnavalescas. A presença de populações negras, não somente formadas por brasileiros, mas também por antilhanos e por africanos, convidados
pelos organizadores para se integrarem à caminhada até a igreja, momento em que eles
dançam e tocam instrumentos, é também uma forma de reconforto da expectativa do francês em relação ao imaginário que eles possuem sobre a população brasileira, ou seja, a de
que o país é constituído por uma população essencialmente negra.
O “jogo da différance” que se encena confirma expectativas, tanto dos franceses quanto
dos brasileiros, reforça fronteiras da diferença entre eles, e, dessa forma, reafirma o exotismo
do país que se representa, ou seja, do Brasil em relação à França.
Essa noção de exotismo, de diferença e não compartilhamento entre as identidades em
jogo, também pode ser observada no momento em que se evoca a comunidade na discussão entre o apresentador do vídeo e o organizador da festa. Fala-se de uma “comunidade
brasileira em Paris”, que de fato não existe como tal, de forma unificada ou organizada, mas
cuja suposta existência representa a construção de mais uma fronteira.
Característico das comunidades é a idéia de fechamento, de união entre os membros;
no mundo da pós-modernidade, elas representam as chamadas minorias, que reivindicam
a valorização de suas particularidades culturais e de suas tradições, à contra-corrente da
uniformização ou do intercâmbio cultural próprio ao mundo globalizado. Uma suposta comunidade brasileira em Paris se estruturaria, assim, na afirmação e valorização de sua
brasilidade, sem buscar ou mesmo sentir uma integração com os preceitos culturais das
outras comunidades que a acolhem ou a circundam. Essa situação, porém, não tem lugar,
uma vez que os brasileiros estabelecidos em Paris não se organizam para esse fim, pois não
constituem uma forte imigração, e raramente se encontram ou se conhecem.
Ainda que a Festa da Madalena fale fortemente de uma questão de identidade, como
discutimos, uma outra dimensão não escapa ao espetáculo que se representa – a dimensão
da mercantilização.
Defende Roberto Motta, em artigo sobre a expansão histórica das religiões afro-brasileiras, que elas passariam no momento atual por uma reinvenção e uma decomposição, que
130
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
estão ligadas à noção de mercantilização. Em síntese, defende o autor que as religiões afrobrasileiras estariam sofrendo um processo de reafricanização que representa, na realidade,
uma estratégia de legitimação e autenticidade de certos terreiros em relação a outros
como forma de atração de um mercado abstrato de clientes e de consumidores de artigos
mágico-religiosos.
Essa nova realidade transformaria essas religiões em produtos, desvinculados doravante
de sua base social e étnica originária e submetidos a uma forma capitalista personalizada e
utilitarista. As religiões, como produtos, passariam ainda por um processo de
“espetacularização”, processo do colossal, do excessivamente elaborado. Nesse sentido, sobre a prática dos sacrifícios, afirma o autor que:
...ele não é mais um rito praticado na intimidade de um grupo fechado pelo parentesco,
tanto real quanto ritual, a tradição étnica ou a solidariedade de classe, mas alguma coisa
de espetacular, que se anuncia frequentemente na imprensa ou na televisão. (2002,
p.122)
A Festa da Madalena, como vimos, banaliza o candomblé, através da pouca ou confusa
informação disponibilizada sobre os preceitos desse culto, através da presença nas ruas
dos orixás carnavalizados e, ainda, através do isolamento discursivo desse culto em relação
à religião católica, como forma de torná-lo uma expressão religiosa autônoma. Nesse sentido, a festa é também objeto da crítica de Motta: o evento constitui um espetáculo, transmitido pela imprensa, que visa a um grande público, a um grande mercado, tanto de brasileiros residentes em Paris, os quais mesmo não tendo conhecimento da Festa do Bonfim participam da Festa da Madalena por sua evocação de símbolos brasileiros mais amplos, quanto de franceses, que vão ao evento motivados por uma expectativa, um imaginário sobre o
Brasil, que não se frustra.
Mais do que a ocorrência de um evento religioso, observou-se a encenação de uma
grande festa de tema brasileiro. A festa representa, ainda, o palco de artistas brasileiros
estabelecidos em Paris ou vindos diretamente de Salvador. Esses artistas, praticantes ou
não do candomblé, devotos ou não do Senhor do Bonfim, concorrem por um espaço de
representação, que nada mais é que uma forma de divulgação mercadológica de seu trabalho para o público presente.
Promove-se, assim, uma festa, uma imagem do Brasil, artistas brasileiros e uma suposta
forma religiosa diferente e criativa, simples nas suas concepções e cuja existência é independente da fé daqueles que na festa se reúnem. Promove-se, globaliza-se, reinventa-se
uma cultura brasileira adaptada ao público ou aos clientes, que guarda, assim, poucas semelhanças com as culturas de origem. Promove-se uma “Lavagem para francês ver”, que
não deixa de funcionar, ao mesmo tempo, como uma forma de interpelação identitária dos
brasileiros presentes e como mercantilização de uma expressão religiosa.
131
Ingrid Bueno Peruchi
Referências
BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução: Myriam Ávila, Eliana L. de Lima Reis, Gláucia R.
Gonçalves. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 1ª reimpressão, 2001.
HALL, S. « Quem precisa de identidade ? » In : Tomaz Tadeu da Silva (Org), Identidade e
Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais, Petrópolis, Ed. Vozes, 2000.
________ A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2ª ed, 1998.
MOTTA, R. « L’expansion et la réinvention des religions afro-brésiliennes : réenchantement
et décomposition. », In : Arch. de Sc. soc. des Rel., 2002, n° 117 (janvier-mars).
WOODWARD, K. « Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual », In : Tomaz
Tadeu da Silva (Org), Identidade e Diferença – A perspectiva dos Estudos Culturais,
Petrópolis, Ed. Vozes, 2000.
132
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A ETNOCENOLOGIA NA FRANÇA
HISTORICO
EVOLUÇÃO
ESTADO DA PESQUISA
PERSPECTIVAS
Jean-Marie Pradier1
Da questão da definição à elaboração de uma metodologia:
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A aparição recente da etnocênologia no campo da antropologia da estética vem do
fato que o objeto de pesquisa reúne as mais fundamentais aporias de civilização.
O imaginário e a sua incarnação.
As modalidades de ação e da percepção.
A articulação do simbólico e do orgânico.
Ciências e cultura:
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Os conhecimentos, a ciência, como toda produção humana, se inscrevem em contextos históricos e locais
As ciências humanas (humanidades), mais do que as ciências da matéria e dos números, são particularmente sensíveis aos fatores culturais.
« Espírito nacional »:
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A ideologia – filosofia, religião, crênças diversas - , a organização social, as instituições
acadêmicas, artísticas, determinam em grande parte a constituição e a evolução do
« corpo dos saberes ».
No início do século XX, os físicos franceses se opuseram à teoria quântica, considerada
como « science boche ».
Ciências do « vivo »:
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A medicina chinesa antiga ignorava a anatomia (estudo analítico dos cadaveres), fundamento da medicina européia e em seguida « ocidental »), e privilegiava o estudo dos
circuitos energéticos do vivo.
Medicina do orgão e medicina sistémica se opõem hoje ainda.
133
Jean-Marie Pradier
O vivo e as culturas latinas:
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Junho 1965, Londres. Colóquio organizado por Sir Julian Huxley : « Ritualization of
behaviour in Animals and Man »
Etólogos : Huxley, Konrad Lorenz, R.A. Hinde, W.H. Thorpe, Desmond Morris, N.M. Cullen,
F.W. Braestup, I. Eibl-Eibesfeldt…
Antropólogos : Sir Edmund Leach, Meyer Fortes, Victor Turner…
Darwin e a questão da organicidade:
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Março 1898 : expedição antropológica do naturalista britânico Alfred Haddon nas Ilhas
do Estreito de Torres : encara a arte como uma forma de vida que cresce e evolui. Haddon
encoraja os seus informadores à retomar em segredo as práticas proibidas pelos missionários locais.
O ascendente de Darwin sobre Freud.
Darwin e a performance:
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Universalidade do jogo (« jeu »), acting, performance.
N. Evreinov : a teatralização tem um valor biológico universal, no homem, no animal e
nas plantas.
Monte Verita, lagoa d’Ascone, e a busca da organicidade.
Darwin e Frazer:
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O anglicanismo de Frazer incita-o à considerar o ritual como o ancestral primitivo do
teatro.
Darwin considera os fundamentos biológicos da arte.
É pela etologia – filha do darwinismo – que a cultura anglo-saxona vai reabilitar as práticas « rituais ».
Performance studies:
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As performances studies, nascidas nos Estados Unidos nos anos 70, foram aceitas nas
Universidades de cultura anglo-saxona, ou abertas às correntes de pensamento norteamericanas.
As performances studies são frequentemente ignoradas ou vivamente criticadas nas
Universidades de cultura latina, ou sensíveis à essas culturas (África francofona).
134
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
2008
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O primeiro encontro importante organizado na França que evocará a influência das
performance studies acontecerá em Paris dias 21, 22, 23 de janeiro 2008 no quadro do
colóquio :
« The impact of US avant-garde theatre in Europe (from the sixties to now) »
Colóquio de fundação da etnocênologia:
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Na origem, a idéia de criação de um « centro » no modelo de uma ONG.
Estrutura : Associação Lei 1901.
Etnocênologia : situação anterior na França 1 (as práticas) :
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XVIII ème siècle : os Jesuítas e a Ásia (China, Japão) ; Voltaire.
Desde o fim do século XIX : exposições coloniais, exposições universais.
Danças e espetáculos « exóticos » (Sada Yacco, Hanako & Loïe Fuller…).
Museu Guimet : exposições, espetáculos, conferências de Emile Guimet.
Escolas das Missões católicas (Colônias de África, Oriente-Médio).
Diretores, artistas (Rodin ; Peter Brook ; Ariane Mnouchkine…).
Autores contemporâneos : Antonin Artaud ; Paul Claudel (China, Japão)
International School of Theatre Anthropology (E. Barba 1979).
Centros e oficinas práticas (danças indianas ; danças africanas ; danças « primitivas »).
Théâtre des Nations.
Maison des Cultures du Monde.
Etnocênologia : situação anterior na França 2 (a pesquisa):
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Etnomusicologia : desde mais de um século, já que estamos de acordo, apesar das observações ou dos trabalhos de Jean-Jacques Rousseau (1768), do Padre Amiot (1779),
de William Jones (1784) e de Guillaume Villoteau (1816), em considerar o artigo de John
Ellis (1884) consagrado à análise das escalas não-harmônicas, quer dizer estrangeiras à
nossa cultura ocidental, como o primeiro trabalho de etnomusicologia.
Século XX : Antropologia : Marcel Mauss, Marcel Jousse.
Sociologia : Jean Duvignaud.
Antropologia do imaginário : Gilbert Durand.
Os especialistas das « línguas e civilizações orientais » (Índia, China, Japão) INALCO,
Collège de France, EHESS.
Université Paris 8, Etudes Théâtrales : LIPS Laboratoire Interdisciplinaire des Pratiques
Spectaculaires – Pesquisa sobre os CHSO, Comportements Humains Spectaculaires
Organisés (comportamentos humanos espetaculares organizados).
135
Jean-Marie Pradier
Etnocênologia : situação anterior na França 3 (a pesquisa):
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Os colóquios do LIPS.
Colóquio : « Aspectos científicos do teatro », Karpacz (Polônia), 12-16 de setembro 1979
(H. Laborit; E. Barba; J; Grotowski; G. Busnel; Roy Art Theater; K; Lupa...).
Colóquio internacional : « Teatro e ciências da vida », 4-6 de junho 1984, Paris, Maison
des Cultures du Monde.
Collège européen : « Práticas espetaculares e ciências da vida », Saintes, 24 de julho- 3
de agosto 1989.
Seminário Internacional para a Pesquisa : « Emoções e complexidade », Saintes, 23-31
de julho 1991.
Etnocênologia na França 2007:
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Reconhecimento nos estudos teatrais (Artes Cênicas) : Especialidade de cursos universitários.
Université Paris 8, enseignant titulaire (professor titular).
Université de Nice Sofia-Antipolis (pólo de etnoestética : música, etnocênologia,
etnocoreografia).
Ensinamentos por chargés de cours (professores substitutos) : Caen, Montpellier, Evry.
Especificidade reconhecida nas Artes Cênicas :
« Cada tradição especacular, segundo nossa opinião, não deve ser analisada relativamente à sua simples relação ao teatro ocidental, esse que conhecemos e praticamos,
mas observando seu próprio funcionamento, principalmente com os instrumentos da
etnologia, o que nós não saberíamos fazer aqui. Para isso, remetemos à outras obras e
outros críticos, bem mais conhecedores do que nós dos modos de reprensentações ou
de ritualizações particulares à esses gêneros e à essas civilizações, de Richard Schechner
à Jean-Marie Pradier. E, evidentemente, remetemos o leitor à disciplina etnológica que
merece não ser confundida com os estudos teatrais, por que ela tem os seus próprios
métodos e suas próprias teorias », (GALLIMARD, 2006, p.14 - 983 páginas).
Especificidade reconhecida:
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Michel Corvin (Org.), Dictionnaire encyclopédique du théâtre, Larousse 2003, 2 tomes, 1920
pag.
Artigo « Ethnoscénologie », de Cherif Khaznadar e J-M Pradier (nova edição aumentada,
publicação em breve).
136
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Encyclopaedia Universalis:
Versão imprimida e DVD mutimídia 2000.
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Artigo « Théâtre et société ».
z
A Encyclopaedia Universalis é o resultado de uma colaboração única entre o mundo do
saber e o da edição, a integralidade dos 33.000 artigos é redigida e assinada por mais
de 6.600 autores famosos que garantem os conteúdos da Enciclopédia.
z
Preâmbulo
l « O objeto de pesquisa » é (re)definido pela competência do pesquisador.
z
A sua análise diz tanto sobre o objeto, quanto sobre o estado dos conhecimentos e dos
métodos do pesquisador.
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Toda teoria remete a uma biografia : a do teórico.
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Aporias...
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Aporias de civilização, que são os sedimentos nutritivos de uma História...
« As ordens da cultura se revezam e, próximas de desaparecerem, cada uma transmite
à ordem mais próxima o que foi a sua essência e a sua função. Antes de substituir-se a
ela, as belas artes estavam dentro da religião, como as formas da música contemporânea estavam dentro dos mitos antes mesmo que essas começassem a existir ».
Claude Lévi-Strauss, Mythologiques : L’Homme nu, Plon, (1986, p.584).
O movimento das noções:
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As noções de referência em etnocênologia se inscrevem no movimento crítico de trabalhos que levam à reconsiderar as teorias antigas enraïzadas na história da filosofia
européia.
Essas « noções em movimento » obrigam o leitor a se informar do estado de múltiplas
disciplinas:
Disciplinas em movimento:
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Antropologia do sensível.
Antropologia social e política.
Antropologia cognitiva.
Etnolingüística.
Ciências religiosas.
Historiografia.
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Jean-Marie Pradier
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Psicobiologia.
Neurobiologia.
Etologia.
Ecologia evolutiva.
Estudos teatrais e coreográficos etc...
Noções em movimento:
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Ação.
Cognição.
Contexto.
Emoção.
Imaginário.
Crênça (religião).
Ritual & al..
Os a priori:
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A noção de « artes primitivas » (« arts premiers »).
Estatuto privilegiado do teatro, « marcador » da civilização : noções de pré-teatro, paleoteatro...
A antropologia evolucionista e a tese da « origem ritual do teatro ».
Orientação literária dos estudos teatrais.
Concepção fechada da noção de « cultura ».
Concepção normativa e fixista da noção de « tradição » (as artes, as culturas tradicionais).
Os a priori (Continuação 1):
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As traduções : Ópera de Pekim, em vez de « Jingjiu », « teatro » indiano (ou teatro dançado do Kerala) para o Kathakali...
Ignorância do « teatro não clássico » europeu.
As adaptações (exemplo : Loïe Fuller e os Japoneses)
Os a priori (Continuação 2):
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O recurso à metáfora teatral em antropologia, sociologia e etnomusicologia.
É então retomado sem espírito crítico um sistema ideológico próprio à história do pensamento europeu :
138
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
La musique et la Transe (1980), Gilbert Rouget
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« Na possessão, a dança é então por um lado representação dos deuses, quer dizer
teatro – teatro sagrado, mas também teatro que a gente atua à si-mesmo, como mostrou-o Leiris, e que a gente atua também para os outros, por outro lado exercício físico,
como ela é sempre, por definição. Através desses dois aspectos, ela é comunicação,
com ela mesma e com os outros.
Ela é um sistema de signos para o possuidor em relação a si-mesmo no que ela o significa sua personalidade de empréstimo, e em relação ao grupo no que ela exprime essa
personalidade e que ela mostra qual é seu papel, no sentido banal e no sentido teatral
do termo, nessa representação do mundo que é uma sessão de possessão ».
Metáfora teatral
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A metáfora teatral veicula várias teorias implicítas da cognição, da emoção e da personalidade, presentes nas noções correntes de:
Catarsis.
Distanciação.
Desdobramento (da personalidade).
Mimesis, imitação.
Ciência e ideologia :
A etnocênologia, como toda etnociência, somente alcançará um estado pleno de ciência
quando pesquisadores africanos, asiáticos, oceanianos, indianos... tomarão como objeto de pesquisa as práticas « ocidentais », e como referente epistemológico, lógicas outras que « ocidentais ».
Teses :
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Ainda hoje inúmeras teses de doutorado tendo por objeto de pesquisa práticas não
européias são defendidas por estudantes franceses e estrangeiros, sem unidade
metodológica e às vezes, sem concertação, nos departamentos de:
Artes cênicas
Dança
Antropologia, etnologia
Etnomusicologia
Estudos das línguas e civilizações orientais
139
Jean-Marie Pradier
Teses (Continuação)
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Os antropólogos ignoram o que tem a ver com o teatro (história, noções, práticas...).
Os especialistas do teatro ignoram o que tem a ver com a antropologia (história, conceitos, métodos).
Os estudantes estrangeiros tem uma idéia simplista, ingênua e incompleta dos contextos culturais europeus e da história européia das práticas : pobreza do vocabulário.
Estudantes estrangeiros :
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Muitos estudantes de origem africana e do Oriente-Médio consideram a noção de teatro ao sentido normativo e tendem a demostrar que o « teatro » é presente na sua própria história nacional.
Muitos estudantes asiáticos ignoram as formas codificadas ou populares: os departamentos de teatro, nas universidades, se consagram ao teatro contemporâneo « falado », inspirado dos modelos euro-americanos.
A questão identitária:
Exemplo
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Em Taïwan, a antiga academia Fu Hsing, agora em 2006 National Taïwan College of
Performing Arts forma às « artes chineses e taïwanêses da herança ».
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Os departamentos das artes cênicas das diferentes Universidades formam à teorias e à
práticas dos teatros contemporâneos.
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Le Gezai Xi, gênero popular em grande parte improvisado faz o objeto de uma
codificação e de uma institutionalização.
Os estudantes e o idioma:
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A adoção dos termos e noções do idioma não vernacular não é dominada: Opera para
Jing Jiu ou Gezai Xi.
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A difusão da palavra « ritual » tende hoje à apagar as nuances e as especificidades das
práticas (exemplo do li em chinês ; missa para os católicos; « culto » para os protestantes...).
Teses & problemas
Continuação
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Influência das teorias e noções, vocabulário europeus e norte-americanos.
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Ignorância das teorias « outras ».
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Monodisciplinaridade.
140
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
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Museo-centrismo.
Vocabulário normativo: « superstições », « seita » etc...
Bilan des thèses, Paris 8
Teóricos inspiradores :
Japon
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Yuasa Yasuo : a questão do corpo.
Susumu Shimazono : o fato religioso.
Nakamura Yujirô : a intuição ativa.
A história do pensamento japonês não se enraïza na doxa mas na praxis. Então, ele é
fortemente longe da onto-teologia, domínio da história do pensamento europeu.
Dificuldades epistemológicas:
Confusões frequentes entre as ordens do :
z
Descritivo.
z
Normativo : julgamento implícito ou explícito.
z
Explicativo (a « curiosidade causal »).
z
Optativo (« teria que... », culturalismo, indigenismo, muséocentrismo).
Perspectivas institucionais:
z
Fortalecer a rede internacional, inter-institucional e interdisciplinar (Ecole Normale
Supérieure, Collège de France; EHESS; INALCO).
z
Tema de reflexão : a interdisciplinaridade.
2009 : Colóquio Internacional
« Etnocênologia e Interdisciplinaridade »
Perspectivas epistémologicas 1:
z
z
z
Considerar como ponto de partida a questão da incarnação do imaginário, tendo em
consideração a capacidade de invenção caractéristica da espécie humana.
Adoptar um ponto de vista sistémico, sem exclusiva, reconhecendo o ganho e os limites das diferentes abordagens.
Manter e desenvolver a relação da « teoria » e da « prática ».
141
Jean-Marie Pradier
Perspectivas epistémologicas 2:
Distinção do que diz respeito ao:
z
Espetacular (a percepção do objeto).
zl Performativo (a atividade de aqueles e aquelas que « fazem »).
zl Simbiótico : a relação dos indivíduos ao contexto (as relações interindividuais).
Conclusão
z
z
z
John Blacking.
Em vez de interrogar-se sobre a possibilidade da definição de um objeto de pesquisa –
a música - , é melhor interrogar-se : « Qual é a natureza do homem? »
How musical is man?
142
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A ETNOCENOLOGIA POÉTICA DO MITO
João de Jesus Paes Loureiro
O caráter poético do poema e do mito, fragmentos da cultura que pretendo inicialmente abordar, advém do fato de que ambos navegam no rio da linguagem, como troncos
submersos em sua encantaria.
Dimensão transfigurada do real, as encantarias dos rios da Amazônia, espécie de Olimpo
submerso e lugar onde moram os encantados da teogonia indígena-cabocla, tornam-se
uma espécie de “expressão simbólica do sentimento”, que é qualidade da poesia percebida
por Suzanne Langer. Ao serem narradas como mito as encantarias são transfiguradas também em formas significantes. E, como formas significantes da expressão simbólica do sentimento, assumem a dimensão estética. Revelam a pregnância lingüística do estético com
o caráter auto-reflexivo de signo-objeto semelhante à individualidade de um poema.
A poética do mito deflui de uma dimensão do seu dizer alguma coisa sobre algo sem
que, necessariamente, faça algo acontecer. Como tal, constituindo-se esse algo que é narrado como uma finalidade e sem a configuração de um fim (na medida em que respiramos
uma atmosfera kantiana), o mito, quando oralizado ou transformado em literatura, também
não se dirige à provocação de um acontecer, mas ao mistério gozoso da poesia ou ao desfrute desse vago estado de crispação suspensa da alma a que denominamos estética.
Há um poema de W. H. Auden, em memória de W. B. Yeats, que bem expressa esse nada que
é tudo na poesia e que Fernando Pessoa viu no mito, ao dizer que ele “é o nada que é tudo”.
Eis um excerto do poema de Auden:
“Pois a poesia nada faz acontecer; sobrevive
No vale de sua criação onde jamais executivos
Quereriam brincar, e corre para o sul
De ranchos de isolamento e atarefada águas,
Rudes cidades nas quais acreditamos
e morremos; sobrevive
um jeito de acontecer, um estuário
Na linguagem, o mito revela essa qualidade de poesia quando se apresenta como “um
jeito de acontecer” sendo um modo de ser e não do fazer, do conceber, não do provocar.
Sortilégio instaurando esse “algo de algo” próprio do maravilhoso não fazer acontecer que
é a substância do fazer poético.
No uso informativo da função referencial da linguagem que representa o seu uso comum e não artístico, quando o processo de comunicação parece ser o seu uso privilegiado,
a dimensão poética está contida em potência, submersa, capaz de se tornar a função dominante, no momento em que o poeta, pelo toque imperativo na palavra, faz a poesia emergir na escrita como poema – forma privilegiada e essencial da expressão poética.
143
João de Jesus Paes Loureiro
Imagem de Orfeu que mergulha na profundidade das coisas, para resgatar a mulher
amada, o poeta mergulha na linguagem para desentranhar de suas encantarias, o poético,
a poesia, os poemas ali contidos. Evidentemente que, valorizando o sentido mítico e poético de ambos, não dizemos que mito e poesia seja uma coisa só. Mas, reconhecemos a dimensão poética do mito, na medida em que, mesmo tendo o primado da intuição semântica, o mito também revela uma configuração formal significante que é o princípio essencial
da consciência poética.
Utilizando a metalinguagem dos símbolos e tendendo a criar, por sucessivas aproximações, uma sorte de persuasão iluminante (como bem observa Gilbert Durand, ao estudar
mito e poesia), creio que o mito, pela linguagem, não faz outro percurso que não seja o do
antropológico para o poético. A incorporação da condição poética pelo mito revela também, por substância, o denso processo que denomino de “conversão semiótica”.
A “conversão semiótica”, conceito amplo que apresento em Cultura Amazônica: Uma poética do imaginário (2000) e o desenvolvo em A Conversão Semiótica na Arte e na Cultura
(2007), é o processo de mudança de função ou de significação dos fatos da cultura, ressaltando especialmente as artes, quando se dá uma mudança de dominante, re-hierarquizando
dialeticamente as outras funções.
No caso do mito, a sua conversão em poesia acontece quando a dominante deixa de ser
mágico-religiosa para tornar-se estética. Quando o mito deixa de ser o funcionamento de
códigos sociais e passa a ser linguagem significante, ou uma “prática significante”, como diz
Júlia Kristeva que é próprio das artes. Interfere nesse processo, o gesto de distanciamento
contemplativo diante do mito, que pode ocorrer tanto no interior de uma determinada
cultura, como na relação com o mito de outra cultura.
É verdade que organizar cronologicamente um sistema de pensamento, é papel do
mito, enquanto que à poesia compete organizar metaforicamente um sistema de valores
de palavras. Todavia, como nada que está só, está somente só, essas funções se
complementam e se alternam hierarquicamente, dependendo de um movimento dialético
de relações culturais.
Usando-se a consagrada predicação de Lévi-Strauss, pela qual “a poesia semelha situarse entre duas fórmulas: a da integração lingüística e a desintegração semântica” pode-se
dizer que, a conversão semiótica do mito em poesia, se dá quando o mito, deixando sua
matéria existencial oriunda de situações individuais ou de grupo, passa a reiterar ou legitimar, pelo relato de palavras, o processo poético de integração lingüística e desintegração
semântica. Isto é, quando o mito, deixando de ser algo que parte de fatos naturais ou sociais buscando a reiteração do sentido, passa a se constituir numa significação metafórica,
alegórica, numa imagem, numa ficção, num modo irruptivo do instante que nunca é igual a
outro.
Não estamos tratando, na dimensão poética, do mito como explicação de uma realidade. Falamos do prazer de ouvir sua narração, quando o interesse está centrado na forma do
144
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
narrar, quando então o mito se torna uma finalidade sem a representação de um fim. O mito
não estará sendo lido pelo intelecto, como forma de conhecimento que visa integrar compreensivamente uma realidade, mas sim, como um fato gestual da linguagem que se “reevoca” permanentemente. Como verbo epifanizado. Verbo na coreografia de si mesmo.
O mito, distanciando-se de ser a consciência da coletividade, torna-se a expressão do
sentimento, de uma sensibilidade estética. Passa a ser operado como uma integração lingüística, na medida em que é percebido pela linguagem significante e não pelo caráter
normativo que lhe dava equilíbrio e estrutura. O mito torna-se poesia quando, de forma
oral ou escrita, passa a ser narrado no domínio da linguagem, como matéria de linguagem.
Essa mesma linguagem que o poeta Hölderlin diz ser “o mais inocente e o mais perigoso de
todos os bens”. Tanto a poesia quanto o mito testemunham o nosso acontecer em diálogo,
para lembrar, ainda, o poeta da poesia. É no acontecer em diálogo que a vida deixa de ser
um destino solitário.
Pode-se dizer que, pelo mito, as pessoas sentem que algo existe, enquanto que, pela
poesia, elas sentem a sua própria existência. Instaurando o mito na palavra a poesia instaura
o ser do mito dessa palavra.
Intermediação entre o poeta e a coletividade, a poesia, na conjunção dos signos do
poema, vibra pela expressão da alma do poeta dialogando com a alma recriadora de quem
o lê. Linha inconsútil de sílabas e significações cristalizando a experiência luminosa do espírito, a poesia no poema, é um permanente religar do mundo dos homens ao mundo dos
deuses e dos mitos.
O suporte material da poesia é o poema. E o poema é uma construção de palavras. De
palavras articuladas em linguagem e convertidas em signos. Uma linguagem, portanto, carregada de significação. Para compreendê-la intelectualmente, Roland Barthes caracteriza a
linguagem poética como um desvio sistemático da norma lingüística. Roman Jakobson também fez, sobre o mesmo tema, uma hoje consagrada conceituação na linha formalista, segundo a qual a linguagem poética é o resultado de uma equivalência do eixo da seleção
sobre o eixo de combinação. Conseqüência disso, o metafórico sobrepuja o metonímico e o
poema, sob a dinâmica obstinada da função poética e dotado de uma significação intrínseca, assume o estatuto de um signo-objeto, capaz de conter em si mesmo a sua significação.
Desse modo, é o texto que fala. O poema é a fonopéia de uma outra voz. Nele se privilegia
a imanência da emoção e não a intencionalidade do interesse. A estrutura do texto poético
ultrapassa a finalidade da mensagem. Constitui-se fonte de significação insaciável e campo
de “correspondências”, como se percebe no homônimo poema de Baudelaire, poeta angular das transfigurações poéticas deflagradas a partir do fim do século XIX.
O mito, enquanto mito ou poesia, não faz uma cultura superior ou inferior à outra no
termômetro de graus de valor. Nele, o que se pode fazer quando o contemplamos como
artefato de palavras, como expressão poética, é deixá-lo dissolver-se na doçura de uma
degustação saborosa de brevidade e leveza. A realidade real do mito, a verdade de seu
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João de Jesus Paes Loureiro
enredo, só está dentro dele, no entrevero bélico das personagens ou na candura dos seus
gestos de amor. Fora dele há a irrealidade das aparências essenciais, a essência revelandose pela aparência, isso que faz de toda arte Arte e, acima de tudo, poesia. Verdadeiramente,
e por tudo isso, o mito é um jorro de poesia na superfície do rio da linguagem.
Passam para o primeiro plano da expressão da língua padrão outros componentes dessa encantaria poética, nela submersos, como a entonação, o ritmo, a fonética, a plasticidade,
as assonâncias e as consonâncias. Signos de encantados que são o próprio recolhimento da
palavra no sagrado dos mitos, até que a palavra se torne, ela mesma, o sagrado que se
mostra na poesia.
Uma poética de visualidade virtual. Cena teatral fora do teatro, mas própria da
espetacularidade da linguagem poética. Uma etcenologia poética.
A etnocenologia se vincula ao conceito da cena moderna ultrapassando, no entanto, a
refencialidade estritamente teatral, ampliando a encenação como meio de figurar uma situação poética formal. No sentido da etnocelogia poética do mito, o grande interesse está
na cenarização que se opera através da linguagem. A forma lingüística configura o cenário,
revela uma espécie de meio-ambiente cenográfico em que a história se desenrola como
narrativa polifônica concentrada. Cada frase compõe com outra a arquitetura cenográfica e
presentificadora da ação. O seu sentido poético está em que a espetacularidade acontece
no âmbito virtual da linguagem expressiva do sentimento humano.
O mito como recepção é racionalizador, mas como comunicação formalizada é um impulso do sentimento decorrente da função simbolizadora da mente humana. Configura-se
uma cena que pertence à eficácia do mito como ordenador de comportamentos, mas subordinada aos efeitos da linguagem que lhe atribui um caráter poético.
As correntes que estudam as origens o mito, assim como da epopéia e da tragédia,
permitem perceber-se que o ritualismo é cenográfico. É dramatização de um sentimento
refletido em espaços diferentes do teatro. O mito contém figuras (personagens) acontecimentos (dramatização). Tudo ocorrendo no âmbito narrativo da linguagem, na virtualidade
expressiva da palavra. Muitas formas teatrais também derivaram de rituais primitivos que
ilustravam os mitos, podendo-se lembrar os “mistérios”, as “tragédias gregas”, o “teatro kabuki”,
o “teatro Nô”, etc. É de Claude Lévy-Strauss a idéia de que o ritual, contrariando o mito,
procura imitar a continuidade do fluxo da vida. Penso que essa mimese da continuidade do
fluxo da vida se faz espetacularizando-se por via da linguagem, com acento em sua função
poética. É o que compreendo ser a dramaticidade cênica virtual do mito ocorrendo no
palco da linguagem.
O mito é uma etnoencenação poética da linguagem com uma finalidade contemplativa
e sem ordenamento legal executivo. Nesse ponto assemelha-se à epopéia. O mito é uma
épica comprimida. Narra algo objetivo e tem intercorrência com o maravilhoso que é o
imaginário fabuloso nele contido. Há no mito a oscilação entre o mágico-religioso do ritual
e o estético de sua investida na linguagem.
146
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Aqui não se deseja definir origens genéticas do mito: se ritualística, se poética. Procurase contemplar o mito como uma cena virtual no palco da linguagem. A linguagem, assim
como o theátron, como um lugar de se ver,
O cenário da narrativa legendária do mito e da sua construção decorre da imaginação
configurada segundo uma cultura. É o pertencimento cultural que estabelece a identificação entre o real e o imaginário, entre história e imaginário. As imagens cênicas e cenográficas
se impõem como co-reais, oscilando entre o virtual e o real. O imaginário, pelo mito, converte-se em história. Caminha em sua realidade paralela no livre jogo entre real e surreal, fascinando pelo maravilhoso revelado, aproximando-se da criação artística. O cenário do mito
resulta do rico material da imaginação nas mãos artesanais da razão.
O mito é uma epifania do imaginário irrompendo na realidade. Semelhante ao teatro é
a apresentação de uma ação através de personagens. Como espaço de ilusão equivale à
encenação teatral. A encenação de uma espécie de sonho. A imaginação encenando-se a si
mesma.
A modelação mitológica se constrói na configuração de um cenário virtual que expressa o sentimento de espaço cênico onde o mito é encenado. É, portanto, uma “representação” fabulosa. Essa representação é no sentido da simbolização de algo, mas, também, como
atuação. É neste segundo sentido que emerge a etcenografia. Exatamente quando o mito
configura-se como representação espetacular.
O espaço mítico é sempre construído cenicamente, isto é, em função da ação narrada.
Um espaço em separado delimitado pela ação cênica virtual do mito. Um palco. É, portanto,
um espaço construído dentro das exigências cênicas funcionais da ação. Como no teatro é
um espaço no qual o espectador se inclui em uma participação contemplativa, como ocorre na experiência estética e no sonho. Assiste-se a uma encenação de acontecimentos para
os quais a “cenarização” é parte constitutiva e expressiva da ação. Cada elemento do cenário
mítico é simbólico. Constitui parte da linguagem cênica do mito, de sua eficácia expressiva.
O mito institui-se em um cenário que é de expressividade poética teatral, mas de significação transcendental. Atrai para sua aparência estetizada, mas remete a uma esfera de
significações superiores. É uma etnocenarização poética equivalente a um ritual da linguagem que tem sua significação além dela. Uma espécie de mitopoética teatral.
A representação do mito é sua “leitura”. Portanto, a representação cênica do mito é de
ordem mental e alegórica. Trata-se de uma idéia abstrata manifesta de forma visual, mas
virtual. A aparência imaginada de seres e coisas em que o mito mesmo é a idéia que representa. Uma alegoria que contém um conceito. Alegoria pura que através da encenação
introduz diretamente no universo das idéias. Um “agonistes” da subjetividade teatralizada.
A criação do mito é intercorrente com sua encenação. E a encenação do mito é sua
etcenologia poética.
147
João de Jesus Paes Loureiro
No entanto, a encenação do mito é da modalidade do “agonistes”: um conflito de ordem
espiritual. O “agonistes” é a tensão paralela da representação “concreta” do mito. O “agonistes”
à semelhança do que diz Aristóteles, em sua Poética, existe “... mesmo sem representação
(concreta, esclareço) e sem atores, existe.
Há a essência do “agonistes” na encenação teatral no mito, uma vez que este não é
criado para a encenação visível, mas pela encenação virtual da linguagem. Sendo essa uma
intenção cênica que perdura no mito.
O “agonistes” existe como encenação virtual do mito pelo ato de sua narração. No mito
construído cenicamente pela narração está contido seu “agonistes”, que corresponde à tensão de forças morais que estruturam o sentido de sua co-realidade.
Os mitos que mais se popularizaram são os que têm a encenação virtual mais atraente.
Uma encenação mental que estimula e deflagra significados. O mito, como etnocenologia
não assume a “maldição do efêmero” própria do teatro, porque sua encenação dura nas
culturas. Sendo que os que mais perduram na história cultural são aqueles se revelam com
mais atraente “agonistes” nos conflitos de sua encenação poética virtual.
Referências
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AUDEN, W.H., Poemas. Companhia das Letras, São Paulo. 1994. (Trad. José Paulo Paes e João
Moura Jr.).
GREINER, Christine e BIÃO, Armindo. Etnocenologia. (Textos selecionados) Anna Blume/
PPGAC. Bahia. 1998
DURAND, Gilbert. Mythe et Poèsie. In: Courrier du Centre international D´Études Poètiques.
Maison de la Poèsie. Bruxeles, Belgique. 1961
HOLDERLIN. Poemas. Relógio D´Água Editores. Lisboa. 1991. (Trad. Paulo Quintela)
KRISTEVA, Júlia. La révolution du langage poétique. Édiction du Seiul. Paris. 1977
LANGER, Susanne. Sentimento e Forma. Perspectiva. São Paulo. 1980 (Trad. Ana M.
Goldberger e J. Guinsburg)
MUKAROVSKY, Yan. Linguagem padrão e linguagem poética. In. Escritos sobre Estética e
Semiótica da Arte. Editorial Estampa. Lisboa. 1981. (Trad. Manuel Ruas)
MIELIETINSKI, E.M. A poética do Mito. Forense-Universitária/Rio de Janeiro. 1987 (Trad. Paulo Bezerra)
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura Amazônica - Uma poética do imaginário. 3ª. Edição. Escrituras Editora. São Paulo, 2000.
148
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
______. A Conversão Semiótica na Arte e na Cultura. Edição trilingue: Português, Inglês e
Espanhol. Editora Universitário/UFPA. Belém do Pará. 2007.
______. A Poesia como Encantaria da Linguagem. Editora Cejup. Belém do Pará. 1997
149
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
DOIS MUNDOS EM CONVIVÊNCIA NA CENA
CONTEMPORÂNEA:
A BRASÍLIA (PÓS)MODERNA E A AFIRMAÇÃO DAS TRADIÇÕES
NAS FOLIAS DO DIVINO E NAS CARETADAS DE SÃO JOÃO.
Jorge das Graças Veloso*
Resumo
A partir de diálogos propostos pela etnocenologia, este trabalho, originalmente produzido como parte da tese de doutorado: “A visita do Divino: o sagrado e o profano na
espetacularidade das Folias do Divino Espírito Santo no entorno goiano do Distrito Federal”,
é uma reflexão sobre os processos de ofuscamento que a história recente da criação da
nova capital do Brasil proporcionou ao período pré-brasiliense, principalmente no que se
refere às práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados. E este estudo é
feito tendo como referência duas manifestações tradicionais da região: as Folias do Divino,
presentes em quase todos os municípios circunvizinhos a Brasília, e as Caretadas de São
João, em Paracatu, Minas Gerais. Apesar da prevalência dos ideais modernistas que predominam em quase todos os ambientes em que a cidade é assunto, esses dois ritos espetaculares têm como um de seus principais componentes, a afirmação, pelas pessoas comuns,
de um discurso que segue na contramão dessa via. Em seu cotidiano ordinário ou extraordinário, esses atores, em teatralidades e espetacularidades que se repetem a cada ano, se
afirmam como participantes de uma verdadeira cena contemporânea, tanto em suas manifestações estéticas, quanto na presença de homens e mulheres que se negam a viver outro
tempo que não seja o seu aqui/agora. As duas manifestações têm em comum o fato de se
caracterizarem como cortejos votivo/precatórios, de adoração a divindades católicas, em
ambientes de atuação não oficial das paróquias das duas regiões. Ambas levando bandeiras de casa em casa, as Folias do Divino são derivações de festejos brancos, originalmente
europeus, enquanto as caretadas aqui vistas são praticadas em uma comunidade quilombola,
com vários componentes advindos de grupos de resistência negros do Brasil escravocrata.
Palavras - chaves: Etnocenologia, ritos espetaculares, Folias do Divino, caretadas,
teatralidade, espetacularidade.
Pela perspectiva das pessoas comuns, é este trabalho uma busca de compreensão do
que ocorre com algumas manifestações tradicionais na região denominada entorno do
Distrito Federal, a partir da inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960. Desde então o
*Jorge das Graças Veloso é Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia – UFBA, ator, diretor, dramaturgo e professor na
Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, em Brasília – DF.
151
Jorge das Graças Veloso
tratamento dispensado às práticas culturais dos que por ali viveram anteriormente é de
quase descaso, ou, em algumas situações, de considerar que por lá aqueles habitantes nunca passaram.
Primeiro, pelo ofuscamento que a história recente da criação da nova capital do Brasil
proporcionou ao período pré-brasiliense. Poucas são as referências àquele tempo, relativamente falando, nas publicações disponíveis em várias áreas do conhecimento, principalmente nas situadas no universo das ciências sociais, ou quase nenhuma quando o assunto
são as manifestações artísticas.
O segundo aspecto a ser considerado é que, quando estudada, a região é tratada quase
que simplesmente como uma grande arena para os embates políticos ou para o denominado “desenvolvimento econômico”. As práticas e comportamentos mais relacionados às convivências e interações societais ficam quase sempre relegados ao segundo plano.
O advento do modernismo da nova capital só reforça a forma menor com que as práticas
culturais não-brasilienses da região sempre foram tratadas. Se a cultura das pessoas comuns
da localidade já não era considerada, a partir de então, mesmo estas questões relacionadas às
convivências sociais cotidianas, como também as extra cotidianas, passam a ser distinguidas,
quase sempre, no âmbito do universo da nova cidade, e a ela subordinadas.
Talvez até pelo etnocentrismo que pode ser detectado no julgamento dos que por aqui
passaram, mesmo em tempos mais remotos, como, por exemplo, a herança da visita de
Auguste de Saint-Hilaire a Santa Luzia (hoje Luziânia), em maio de 1819. Mesmo reconhecendo que os paradigmas reinantes na época eram outros e que, apesar disso, Saint-Hilaire
tenta incluir em suas anotações as manifestações cotidianas e extra cotidianas dos habitantes da região, alertando que “não se deve julgar o interior da América segundo os padrões
europeus”, é constatado que não deixa o teórico francês de falar do povo da região com sua
visão colonizadora de mundo:
[...] ruínas, e uma triste decadência, tal é, em poucas palavras, a história da província de
Goiás. [...] A indolência contribuiu bastante para levar os fazendeiros da região a este
estado de penúria. Mas a miséria, que os embrutece e desanima, deve necessariamente,
por sua vez, aumentar a sua apatia. [...] em meio a bizarras cerimônias (SAINT-HILAIRE,
1975, pp. 14, 27, 96-97).
Ora, mesmo no mundo desses “indolentes, brutos, bizarros e miseráveis decadentes”, é
inegável que neste período já eram perceptíveis, em maior ou menor escala, várias práticas
que poderiam ser consideradas como componentes do discurso identitário daqueles povos, ainda presente nos dias de hoje. Maiores que tantas características desqualificantes,
como as registradas acima, existiam, indiscutivelmente, outras, relacionadas à culinária, à
tecelagem, com as rodas de fiandeiras e seus cantares, jogos e brincadeiras, e às comitivas
de boiadeiros e tropeiros, condutores de gado e outros produtos. Sem citar todas as
vivências, cotidianas e extra cotidianas, das conversas de fim de tarde em frente aos casarões, das festas religiosas, das visitas dos ciganos e dos mascates, ou até dos bailes na roça
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V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ou as “treições”, mutirões feitos de surpresa para os beneficiados.
Segundo seus criadores e os teóricos que a eles deram sustentação, Brasília é uma cidade modernista que veio para “mudar a história” do Brasil. Como podemos verificar em vários
escritos sobre a transferência da capital federal.
Segundo Maria de Souza Duarte (1983), na busca de uma “identidade nacional” através
de projetos educacionais que se propunham privilegiar a cultura brasileira, existia uma
intenção generalizada de se criar, por parte das elites, uma consciência de pertencimento
a grupo. O que vinha complementar a idéia de que era necessário mudar o mundo. Esta
proposta colocava a partir do interior de seus próprios ambientes de atuação, algumas
atividades como pretensas redentoras da espécie humana.
Somente para citar, aquele era um tempo em que o teatro salvaria a humanidade através de revoluções socialistas, a psicologia redimiria o indivíduo de todos os pecados e a
educação seria a pedra fundamental de um novo tempo.
Não era diferente o que ocorria na arquitetura e urbanismo, a atividade mais consagrada pela construção da cidade planejada por Lúcio Costa e Carlos Niemeyer. Chegando Le
Corbusier, o grande mentor da arquitetura modernista, a afirmar que no “dia em que a
sociedade contemporânea, atualmente tão enferma, tornar-se verdadeiramente consciente de que apenas a arquitetura e o urbanismo podem receitar o remédio exato para seus
males, terá então chegado o tempo de pôr a grande máquina em funcionamento” (LE
CORBUSIER apud HOLSTON, 1993, p. 63). Fica clara, por esta afirmação, a intenção modernista de rompimento total com qualquer resquício do passado que porventura viesse a se
insinuar nas ideologias dos projetos daqueles grupos.
E, nesse aspecto, concordo com o que diz James Holston (1993) em sua crítica da Brasília
modernista, que comprova esta intenção de desistoricizar o problema, principalmente por
parte de Lúcio Costa. Segundo Holston, Lúcio Costa caracteriza a fundação de Brasília “nos
termos de um mito de fundação, feito por inspiração divina” (HOLSTON, 1993, p 64).
É a partir desse mito da inspiração divina, do qual o urbanista da nova capital tão bem
lança mão, inclusive, afirma Holston, como instrumento de sensibilização do júri para um
projeto que chegaria a ser chamado pela imprensa de “brincadeira” (HOLSTON, 1993, p. 70)
– que Brasília se consolida. E o que o arquiteto tem como objetivo fica claro em sua Memória Descritiva para o que propõe para a nova cidade: “Trata-se de um ato deliberado de
posse, de um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial. [...]
Nasceu de gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz” (COSTA, 1980, pp. 51-52).
Todos nós sabemos o que significa, historicamente, e em especial desde o advento do
cristianismo, este tomar posse. Várias e várias culturas desapareceram ou foram brutalmente violentadas sob o jugo da cruz da espada. E todas as cruzadas tiveram a marca da deliberação, da imposição do uno. Então não foi diferente com a tomada “colonial”, pelo sinal da
cruz, das terras do Centro-Oeste. Tomada esta que teve como auxiliar, a mitologia sobre o
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Jorge das Graças Veloso
sonho de Dom Bosco e toda a sua mística sobre a fundação da cidade. A grande utopia “de
uma terra prometida, que jorra leite e mel”. Onde haverá “uma riqueza inconcebível” e “onde
serão construídas dezenas de casas de salvação”.
Por esta perspectiva não poderia ser diferente a visão que estudiosos das artes têm
sobre a cultura da cidade. Em seu trabalho A Educação pela Arte: O caso Brasília, Maria de
Souza Duarte (1983) fala de uma “convergência de várias culturas para um ‘vazio’ localizado
no Planalto Central, sem tradições ou experiências anteriores que funcionassem como núcleos iniciais para uma identidade comum”. Angélica Madeira (2002, p. 188) diz que “Brasília
é especial por ser projetada para sediar o governo e por ser inscrita sobre um espaço vazio,
onde não havia nenhuma referência cultural prévia”.
Esta idéia de que Brasília veio ocupar um vazio só reforça o raciocínio de que a cultura
pré-brasiliense é desconsiderada. E o paradoxo do tratamento dispensado às culturas que
antecederam na região, a inauguração da nova capital, também é demonstrado por todas
as letras, igualmente em escritos de diversos outros autores e teóricos que discorreram
sobre a cidade.
Vários são os estudos que demonstram o quanto Brasília é tratada como o centro místico do Brasil, e, em arroubos de exagero, até como a nova terra prometida do universo1. Ora,
se este caráter místico-religioso tem sua força cultural reconhecida por tantos autores, como
poderia o Distrito Federal estar ocupando um vazio, se o espaço por ele “tomado” era antes
habitado por povos que tinham na religiosidade um de seus traços mais característicos?
Práticas sagrado-profanas relacionadas a manifestações religiosas da região foram iniciadas pelo menos duzentos anos antes, como pode ser comprovado na criação da festa do
Divino Espírito Santo em Luziânia, Formosa e Planaltina, na segunda metade do Século XVIII.
Existem registros de cavalhadas, folguedos, dramas e comédias, nas mesmas cidades, muito antes do evento da transferência da capital (REIS, 1978). Sem falar de Pirenópolis que,
com suas igrejas centenárias, seu teatro do século XIX e suas famosas cavalhadas, é hoje um
dos grandes pólos turísticos do Estado de Goiás, com suas manifestações da mais pura e
genuína característica místico-religiosa ou sagrado-cultural.
Donde podemos constatar a existência de uma rica cultura pré-brasiliense estabelecida
nos costumes, na arquitetura, na alimentação e, principalmente, no sagrado/profano relacionado às manifestações religiosas. Manifestações estas que, queiramos ou não, criam uma
ética e uma estética próprias das pessoas comuns que habitavam a região e que continuam
fazendo do entorno de Brasília seu principal espaço de convivências.
1
Sobre este tema podem ser consultados desde o mítico Sonho de Dom Bosco até publicações mais recentes, incluindo várias teses e dissertações
sobre a cidade. Ver, dentre outros: BOSCO, Terésio. Dom Bosco: uma biografia nova, São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1993; CALMON, Pedro. Brasília:
Catedral do Brasil, Rio de Janeiro: Fon-Fon, 1970; FREITAG-ROUANET, Bárbara. A cidade brasileira como espaço cultural. Brasília: Série Sociológica
N. 161, 1999; IBARRA, Andrés Rodrigues. Em busca da sintonia universal: O narcisismo e a procura pelo esotérico em Brasília. Dissertação. (Mestrado
em Sociologia). PGSOL – Universidade de Brasília. Brasília: UNB, 1992; NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Brasília: A construção do cotidiano, Brasília:
Paralelo 15, 1997; ZAGO, José Marques. Brasília: símbolo de fé: guia turístico de Brasília, Brasília: Departamento de Turismo e Recreação do Distrito
Federal, s.d.
154
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Mesmo Brasília tendo nascido com o que James Holston chama de “pedigree” dos CIAM2,
com uma premissa fundamentalmente utópica de que sua concepção e organização deveriam transformar a sociedade brasileira, o passar do tempo provou que, para o bem e para
o mal, para o pior e para o melhor, a nova capital federal se consolidou de forma bastante
diversa da utopia de seus fundadores.
Talvez porque, nesta utopia, possamos encontrar contradições intransponíveis nos planos das cidades modernas. Em Brasília, compreendo que existiu, na defesa de seus ideais, a
reafirmação dos processos de exclusão que se propunha extinguir. Seus idealizadores falam de uma “indesejável estratificação social” que deveria ser eliminada da sociedade, mas
propõe extirpar da cidade a noção de rua e de mercado popular. É nesses espaços onde se
dá, naturalmente, a maior força das manifestações culturais das pessoas comuns. É nessas
ruas e nessas praças de mercados que esses atores mais expõem seus valores relacionados
às práticas culinárias, de vestir-se, dos cantares e falares diversos, suas gestualidades e suas
manifestações cênicas de várias ordens, suas teatralidades cotidianas.
A “relação instrumental entre arquitetura e sociedade” (HOLSTON, 1993, p. 29), mesmo
sendo as pessoas “forçadas” pela “nova concepção de vida”, não foi capaz de ocultar as antigas experiências sociais com suas formas de associação coletiva e de hábitos pessoais. E,
novamente para o bem e para o mal, a força das pessoas comuns se impõe: novas trilhas
que teimam em surgir nos gramados dos eixos rodoviários da cidade obrigam as autoridades a criar novas calçadas, mesmo com o sentido simbólico de autorizar o desrespeito às
passagens subterrâneas por sob as pistas de alta velocidade; as quadras, proposta de substituição asséptica dos tradicionais quarteirões, são tomadas por camelôs, vendedores ambulantes e artistas de rua; áreas públicas são invadidas por bares, lanchonetes e restaurantes, em todos os níveis sociais, criando e reafirmando um mundo boêmio não previsto nas
pranchetas dos arquitetos; e, principalmente, grandes invasões de áreas públicas obrigam
os governantes a criar, quase que diariamente, novas cidades. E estas cidades, inicialmente
chamadas de assentamentos, se estabelecem com todas as formas tradicionais de convivência social, o que vem provar que as pessoas comuns, a despeito de tudo, acabam criando seus próprios atalhos.
Velhas práticas societais, dentre as quais destaco as folias e as caretadas, mesmo passando por um longo período de menor importância aparente, e mesmo tendo sido tratadas
com esta carga de desqualificação histórica, se mantiveram vivas o suficiente para, a partir
de meados da década dos noventa, readquirir seu antigo vigor.
2
Os CIAM, Consgrès Internationaux d’Architecture Moderne, se constituíram, de 1928 até meados da década dos sessenta, no mais importante
fórum internacional de debates sobre a arquitetura moderna. Tinham como premissa a transformação social, ou seja, a de que a arquitetura e o
urbanismo modernos seriam os meios para a criação de novas formas de associação coletiva, de hábitos pessoais e de vida cotidiana. O trabalho
de James Holston, A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia (1993) é bastante esclarecedor de como os CIAM, que tiveram em Le
Corbusier seu nome de maior excelência, se propuseram a mudar o mundo.
155
Jorge das Graças Veloso
Exatamente nesse contexto é que proponho uma reflexão sobre a contribuição da
etnocenologia para uma abordagem que poderíamos definir como compreensivista destas práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados – PCHEO, inseridas no
subconjunto dos ritos espetaculares3, nos ambientes de influência da modernista capital
brasileira.
A primeira prática rompe com o ordinário do cotidiano de incontáveis fazendas e sítios
da região. Geralmente nos meses de maio e junho, bandeiras vermelhas com pombas brancas pintadas no centro são conduzidas por homens e mulheres que rezam, cantam e pedem esmolas em nome de uma santidade sempre presente nas invocações de um grupo
muito especial de fiéis, os devotos do Divino Espírito Santo. Com o nome de Folia do Divino,
é uma procissão precatória, votiva e rogatória, que vai de pousada em pousada, levando
bênçãos e recolhendo donativos que são entregues, posteriormente, a uma paróquia católica a que esteja oficiosamente subordinada.
Elas, as folias, acontecem depois de preparativos que duram praticamente o ano inteiro. A partir de uma reunião chamada de “junta”, realizada em um dia e numa casa
preestabelecidos, quando se dá a arvorada das bandeiras, o grupo sai em peregrinação,
fazendo dois tipos distintos de reuniões. A primeira, denominada pouso, se dá durante a
noite e se inicia mais ou menos às dezoito horas. Ainda à distância, a visita é anunciada por
uma trovoada de fogos de artifício, seguida de um intermitente ressoar de dois pequenos
tambores, chamados de caixas. Com os alferes conduzindo as bandeiras à frente, seguidos
pelos caixeiros e os demais foliões, todos montados a cavalo, se aproximam da casa principal da fazenda ou sítio. Fazendo evoluções, com o grupo dividido em duas filas indianas,
desenham círculos, oitos e corações e, depois de um sinal do regente, espécie de capataz
da companhia, param em uma formação de frente para a moradia e entregam as bandeiras
ao dono da casa e sua esposa, ou quem a represente, chamados de barraqueiros.
Esta chegada, na sua totalidade, representa simbolicamente o pedido e a aceitação da
visita. A partir daí são cumpridas, com um rigor bastante considerável, várias etapas de um
ritual que vai de práticas sagradas, como as cantorias de saudação e de louvação a um
cruzeiro colocado na frente da casa, e a um altar armado na sala principal, até as mais profanas, como os jogos – o truco, por exemplo –, e o pagode. Não sem antes passar pelas orações do terço católico, muitas vezes encerrado com a ladainha, rezada em uma aproximação de canto gregoriano, e pelo catira, dança de palmas e sapateados que cumpre uma
espécie de transição para os festejos considerados mais mundanos.
Durante o pouso, os barraqueiros oferecem três refeições aos foliões: o jantar, logo após
a chegada, o café da manhã e o almoço, pouco antes de se iniciar o trajeto do dia seguinte.
3
Armindo Bião ( ) agrupa as PCHEO, objetos de estudos da etnocenologia, em três subconjuntos: artes do espetáculo, como prática substantiva,
que incluiria o teatro, a dança, a ópera, o circo e outras artes, mistas e correlatas; ritos espetaculares, englobando rituais religiosos, festas, cerimônias,
eventos políticos e esportivos; e as formas cotidianas que são repetidas rotineiramente, às quais chamo simplesmente de rituais.
156
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A segunda reunião, chamada de visita ou giro, ocorre durante o dia, entre um pouso e
outro ou, eventualmente, pela manhã, enquanto todos esperam pelo almoço. Geralmente
são paradas rápidas, onde são feitas orações e cantorias de saudação a imagens de santos,
em altares improvisados, e aos donos da casa e seus familiares. São consumidas, também,
grandes quantidades de quitandas, doces, bebidas diversas, inclusive alcoólicas, quase sempre cachaça de alambique, e, quando solicitado, dançado o catira. Com exceção de uma ou
outra visita efetuada pela manhã, o trajeto entre os pousos se dá a cavalo.
As folias representadas em terras brasileiras se caracterizam ainda como derivações
dos cortejos organizados no Portugal dos séculos imediatamente anteriores às viagens de
conquista que culminaram com a invasão espetacular das “terras brasilis” em 1500. São junções de procissões rogatórias em benefício dos coroados festeiros do Divino Espírito Santo
com as danças tradicionais realizadas ao som dos adufes, espécie de pandeiros. Por mais
que tenham tido contribuições das culturas ameríndias ou negras, são, essencialmente,
representações herdadas de brancos europeus.
Consideremos então os vários aspectos de caráter social das manifestações cênicas,
sejam elas estabelecidas no campo das artes do espetáculo ou dos ritos espetaculares, e
aos estados de corpos verificáveis em suas técnicas, cotidianas e extra cotidianas
(BIÃO,1999.). As Folias do Divino Espírito Santo se nos apresentam, então, como espaços
onde podemos refletir sobre o pilar epistemológico da etnocenologia, que nos remete às
categorias de teatralidade e espetacularidade.
Ainda segundo o artista pesquisador baiano, teatralidade é “quando o sujeito age e se
comporta para a alteridade, com uma consciência mais ou menos clara mais ou menos confusa de organizar-se para o olhar do outro”. Já espetacularidade é “quando o sujeito toma
consciência clara, reflexiva, do olhar do outro e de seu próprio olhar alerta para apreciar a
alteridade” (BIÃO, 1999, p. 366.).
Já no que diz respeito às caretadas, além de localizá-las no âmbito das práticas e comportamentos humanos espetaculares organizados – PCHEO, objetos de estudos da
etnocenologia, e sua relação com os mesmos caracteres localizados nas folias, nos interessam outro conjunto de percepções.
O primeiro aspecto a ser relacionado é o fato de que esta prática se localiza em um
ponto um pouco mais distante de Brasília. É um rito espetacular de adoração a São João,
que se realiza em uma comunidade quilombola, os Amaros, que luta para recuperar suas
terras, tomadas por fazendeiros na década de 60, nos arredores da cidade mineira de
Paracatu, aproximadamente a duzentos quilômetros do quadrilátero do Distrito Federal. As
influências da nova capital, portanto, não são as mesmas dos municípios do entorno oficial.
O que mais se alterou no cotidiano dos habitantes do lugar, além do êxodo provocado pela
proximidade do chamado “novo pólo de desenvolvimento”, foi o fato de que a cidade é
cortada pela rodovia federal BR 040, que liga Brasília ao Rio de Janeiro.
157
Jorge das Graças Veloso
O segundo se refere à descendência negra dos que fazem a festa observada. Sendo
também um cortejo, carrega como um de seus principais elementos o fato de que todos
permanecem anônimos durante o trajeto, que se dá conforme a narrativa a seguir.
Na noite de São João, de 23 para 24 de junho, durante vinte e quatro horas,
ininterruptamente, os homens da comunidade se vestem com roupas coloridas, metade
masculinas, metade femininas, e armações feitas de fitas que descem de seus chapéus de
palha, retrabalhados. Com máscaras (caretas, como eles dizem) cobrindo seus rostos, formam pares anônimos e, em cortejo, ao som de violões, acordeons, pandeiros e caixas, saem
dançando de casa em casa para louvar as virtudes do santo padroeiro. Nos mesmos moldes
das folias, em cada residência que fazem paradas, sinalizadas com bandeirolas de papel
crepom, são recebidos com um altar para o santo, muita comida e muita bebida.
Depois do pedido de licença para entrar, os mestres cantadores sentam-se numa das
extremidades do terreiro e começa a dança. Os “casais” fazem evoluções, algumas delas
parecidas com as quadrilhas, outras livremente improvisadas, e, ao se aproximarem dos
cantadores, são obrigados a dizer um verso de louvação. Todo o ritual é realizado como uma
oração que antecede a parada para a comida e as bebidas. Depois das rezas costumeiras, o
santo é retirado do altar e o giro recomeça, até o dia seguinte.
O terceiro aspecto que considero de maior relevância no universo dos Amaros é que, na
fala dos fazedores das caretadas, está presente um discurso identitário consciente e deliberado, feito como afirmação da luta do grupo pela recuperação das terras perdidas. Para
eles, manter a tradição das caretadas é manter viva a possibilidade de resgate da herança
do patriarca Amaro das Mercês. Esta é uma prática com a qual todos eles conviveram, os
vivos e os que os antecederam, muitas décadas antes do surgimento de Brasília.
Da mesma forma que as folias do Divino Espírito Santo, tão recorrentes na região, por
significações antigas ou por re-significações mais atuais, as caretadas permanecem como
testemunho de que, apesar de todas as mudanças impostas pela convivência com a proximidade da já quase cinqüentenária capital do Brasil, continuam vivas para cada um de seus
participantes.
Donde podemos constatar que, a despeito de ordens e imposições ideológicas, de direitas ou de esquerdas, a vida social se dá por outros caminhos. E principalmente pela ordem da interação, em que os homens e mulheres comuns da vida cotidiana, a partir de
éticas e estéticas próprias, estabelecem as suas práticas de si, individuais ou societais,
(re)criando as normas vivenciais de seu dia-a-dia muito mais a partir das coisas vistas como
elas são do que propriamente de um utópico “dever ser” imposto por outrem.
E donde também concluo que, mesmo sendo Brasília reconhecida mundialmente pelo
que tem de melhor em sua estética modernista, estando inclusive sua área mais “nobre”
inscrita entre os monumentos tombados pela UNESCO como patrimônio cultural da humanidade, as pessoas que vieram a habitá-la ou que em seu ambiente permaneceram desde
antes, se tornaram maiores que as ideologias dos que a fundaram. Com todas as contradi158
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ções perceptíveis também nos outros grandes aglomerados urbanos contemporâneos,
Brasília tornou-se, com o passar dos tempos, no bem e no mal, no pior e no melhor, somente
em mais uma metrópole brasileira.
E também, como em qualquer outro lugar, características dos dias de hoje, as pessoas
comuns continuam fazendo seus meios de interação sejam eles tradicionais ou não, arcaicos ou novos. Mas, principalmente, não permitindo que suas convivências sejam construídas
pela imposição de modelos idealizados a partir de gabinetes, mas sim de suas vontades,
individuais ou coletivas, nas trocas simbólicas possíveis em suas rotinas cotidianas ou nas
celebrações extra cotidianas. Muitas vezes para o bem, para o melhor. Outras tantas para o
mal, para o pior. Mas por suas próprias vontades.
Referências:
BIÃO, Armindo. Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: por uma
Cenologia Geral. In: Memória ABRACE I: Anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e pósgraduação em Artes Cênicas, Salvador: UFBA, 1999; p. 364 – 367.
BOSCO, Terésio. Dom Bosco, uma biografia nova. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1993.
COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio de Janeiro: Bloch/FENAME, 1980 (Col. Biblioteca educação é
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DUARTE, Maria de Souza. A educação pela arte: o caso Brasília. Brasília: Ed. Thesaurus, 1983.
FREITAG-ROUANET, Bárbara. A cidade brasileira como espaço cultural. Brasília: Série Sociológica N. 161, 1999.
HOLSTON, James. A cidade modernista: Uma crítica de Brasília e sua utopia. Trad. Marcelo
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IBARRA, Andrés Rodrigues. Em busca da sintonia universal: O narcisismo e a procura pelo
esotérico em Brasília, 1992. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de pós-graduação em Sociologia. Universidade de Brasília – UNB. Brasília, 1992.
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Brasília (1958-1967). In: Tempo Social - Revista Sociologia da USP, S. Paulo, 14(2): p.187-207,
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NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Brasília: A construção do cotidiano, Brasília: Paralelo 15,
1997.
PIMENTEL, Antônio. Pela Vila de Santa Luzia ou Fragmentos de um passado. Brasília: Ed.
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159
Jorge das Graças Veloso
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RELATÓRIO do Plano Piloto de Brasília/elaborado pelo ArPDF, CODEPLAN, DePHA. Brasília:
GDF, 1991.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Trad. Regina Régis Junqueira.
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SIQUEIRA, Deis e BANDEIRA, Lourdes. O profano e o sagrado na construção da ‘terra prometida’. In: NUNES, Brasilmar Ferreira (Org.). Brasília: A construção do cotidiano. Brasília: Paralelo 15, 1997.
ZAGO, José Marques. Brasília – símbolo de fé: guia turístico de Brasília, Brasília: Departamento de Turismo e Recreação do Distrito Federal, s.d.
160
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
O LUGAR TEATRAL COMO AGENTE DO PROCESSO TEATRAL
José Simões de Almeida Jr.
Resumo. O artigo parte da hipótese de que a natureza do lugar teatral é ser um agente,
uma espécie de mídia definidora do processo teatral responsável. Desse modo, o lugar
teatral revelaria uma cartografia caracterizada pelo múltiplo, fortemente ligado ao conceito de cidade. A partir desse conceito de lugar teatral se discutiria uma poética da ocupação, destacando-se a “crise” do edifício teatral e a importância da atividade Teatro se vincular social e culturalmente ao lugar geográfico.
Palavras chave: Lugar teatral, teatralidade, comunicação teatral, espaço teatral
Para Anne Ubersfeld, o teatro é espaço (1996, p. 49). Tal afirmação é fruto da compreensão do teatro como a arte do concreto 1, cuja materialidade se formaliza por meio da organização desse espaço 2. Suas idéias, de certo modo, dão continuidade aos pressupostos de
Artaud, que dizia que “a arte teatral, por mais fugaz que possa parecer, é baseada na utilização do espaço, na expressão dentro do espaço (1995, p.83)”.
Não são raras as confusões conceituais que envolvem a noção de lugar teatral 3. Esta
situação se justifica, em parte, pela proximidade que existe entre os conceitos de espaço e
lugar, e pelo fato de existir uma multiplicidade de outros conceitos em torno da categoria,
ou seja, pelo sentido polissêmico da expressão.
No Brasil, adiciona-se a esta questão o fato de o termo lugar teatral não ser usual, pelo
menos até o presente momento, entre os artistas no seu cotidiano.
Assim, encontramos, em substituição à denominação de lugar teatral, algumas outras
nomenclaturas, tais como “edifício teatral”, ou simplesmente “teatro”. Estas denominações
são utilizadas naqueles eventos teatrais que se realizam em um edifício. Quando a ação se
desenvolve fora do edifício teatral, ao ar livre ou em algum tipo de edifício de outra natureza (casarão, fábrica, etc.), o termo empregado com mais freqüência é “espaço”, em várias
acepções: espaço cênico, espaço teatral, espaço alternativo, espaço inusitado. Em alguns
casos, mantêm-se a denominação “teatro”, associando-a ao nome do lugar, como são os
casos do Teatro Casarão do Belvedere, Teatro Casa FAU - Maranhão.
A questão proposta pode se desdobrar em vários questionamentos. Qual o significado
toponímico dessas variações? Serão elas aleatórias? Ou a existência de várias denomina1
“O fascínio exercido pelo teatro – em perpétua crise, mas indestrutível – mantém-se, antes de tudo, por ser ele um objeto no mundo, um objeto
concreto, por sua matéria não ser uma imagem, mas objetos e seres reais: seres, sobretudo, o corpo e a voz dos atores (UBERSFELD, 2005, p.190)”.
2
Cabe ressaltar que tais afirmações sobre o espaço não podem ser confundidas com a idéia de um lugar, seja ele da cenografia ou da arquitetura
teatral.
3
Segundo Gay McAuley (1999, p.286), alguns escritores franceses utilizam lugar teatral como sinônimo de espaço teatral, sendo possível de
constatar nos títulos da coleção Arts du Spectacle, publicado pela CNRS, Le lieu théâtral à la Renaisssence (1964); L’Espace Théâtral médiéval
(1975); e Lieu Théâtral dans la société moderne.
161
José Simões de Almeida Jr.
ções do lugar teatral seria resultado da expressão de uma tipologia do edifício teatral?
Estariam essas mudanças relacionadas a uma questão de identidade do Teatro na sociedade?
Para Santos:
O fato simples de reconhecer e nomear um objeto supõe um aprendizado, explícito ou
implícito. A linguagem tem um papel fundamental na vida do homem por ser a forma
pela qual se identifica e reconhece a objetividade em seu derredor, através dos nomes
já dados. Para alguns autores, o ato fundador é dar um nome e, por isso, é a partir do
nome que produzimos o pensamento e não o contrário (2004 a, p.67).
Colocada a questão desta maneira, podemos estruturar o seguinte raciocínio: o lugar
teatral é um dos modos da atividade Teatro tornar-se “visível” ao conjunto social, portanto,
de se deixar apreender pela sociedade. Uma variação na nomenclatura poderia indicar,
sim, uma mudança de atitude do teatro em relação ao grupo social. Todavia, não podemos
afirmar qual seria esse tipo de mudança ou quais seriam os fatores responsáveis por tal
procedimento.
Desse modo, tomamos como ponto de partida que a nomeação de um lugar ocorre,
basicamente, com o objetivo de identificá-lo geográfica em um dado espaço. Portanto os
nomes, nesse sentido, seriam registros sócio-políticos de localização, e estariam vinculados
ao contexto de uma época, como também revelariam a existência de uma tendência para a
substituição de velhos por novos lugares no conjunto urbano.
Esse “movimento” pela nomeação dos lugares teatrais nos leva a supor, nos casos em que
a denominação do edifício é “espaço”, que a proposta destes locais deveria romper arquitetonicamente ao menos (externa e internamente) com o modelo de edifício teatral dito à
italiana. Afinal, a denominação “espaço” faz parte de um conjunto de referências conhecidas
pelos profissionais da área, e se encontra vinculada a um modelo de espaço cênico denominado polivalente. O uso da palavra “espaço”, no ambiente teatral, carrega uma conotação
histórica articulada a uma tipologia específica de espaço teatral.
Se essa condição fosse uma norma praticada por todos esses lugares denominados
“espaços”, estes deveriam apresentar, pelo menos, duas propriedades. A primeira seria a de
um espaço cênico associado à noção de polivalência, isto é, dotado de mobilidade, com a
possibilidade de ser modelado de diferentes modos. E a segunda, ligada à idéia de neutralidade, refere-se a um lugar no qual se pode adaptar qualquer tipo de evento teatral.
A denominação “espaço”, logo não seria aleatória, pois estaria ligada a um tipo de lugar
teatral com as características do múltiplo. Um outro aspecto dessa denominação (espaço)
seria o de relacioná-la, no sentido polissêmico da palavra, a uma idéia de ocupação, que
poderia sugerir ao espectador também a idéia um local dinâmico, a ser ocupado, dotado
de simultaneidades, etc. O que, de certa forma, refletiria o entendimento, as condições e o
modo mais freqüente de apreensão teórica do espaço na atualidade.
162
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Freydefont comenta que, durante os anos de 1950 e 1970, havia na França uma preferência “por uma arquitetura temporária, inacabada, uma arquitetura desmaterializada” (1997,
p.26) que privilegiava a flexibilidade. Esse espaço seria, de acordo com o autor, “uma aplicação concreta do princípio do espaço vazio 4”, formulado por Craig (1997, p. 26).
Contudo, percebe-se na prática que nem sempre a denominação “espaço” corresponde
à proposta de um espaço cênico polivalente. O que nos traz de volta ao ponto de partida na
questão toponímica: o que significa, de fato, essa variação na nomenclatura dos lugares
teatrais em São Paulo?
Trata-se de uma questão que nos pode levar a vários caminhos, e vale aqui uma observação: independentemente da função ou de uma tipologia de espaço cênico, o nome dos
lugares muitas vezes expressam um desejo separado da coisa em si (FOUCAULT, 2002). Seja
ele qual for e do tipo que for, quer se concretize ou não, será a partir desse desejo, expresso
na sua nominação, que se irá projetar a apropriação cultural do lugar teatral pela cidade,
uma vez que é com o nome escolhido que ele se divulga, isto é, torna-se público.
Avancemos um pouco mais na reflexão. Se a denominação “espaço” estivesse relacionada com a identificação de um tipo específico de lugar teatral, teríamos aí, por conseguinte,
implícito o desejo (estético) de romper com o lugar teatral tradicional, e de propor um
espaço a ser utilizado na sua totalidade, dotado de reversibilidade entre a zona do público
e a zona do palco. Estaríamos oferecendo, enfim, um espaço livre.
Todavia no cotidiano, apesar de bem intencionados, tais espaços nem sempre atingem
esse objetivo. Em alguns casos, sob a denominação de espaço, o que se encontra é um
edifício teatral precário.
A precariedade, por si só, segundo Freydefont, não é uma qualidade negativa. Ao contrário, é dotada de um dinamismo provocador dentro do processo de criação. De acordo
com Freydefont (1997, p.31), foi esta qualidade que inspirou Ariane Mnouchkine para a
ocupação da Cartoucherie 5 - “um lugar improvisado” – que, mesmo após se institucionalizar,
mantém a aparência da precariedade 6 inicial.
Esses lugares precários a que nos referimos são locais improvisados, adaptados em
edifícios que foram construídos para uma outra função. Hoje, são uma recorrência em muitas cidades do mundo. No entanto, a questão que se coloca é a seguinte: até onde essa
precariedade, que deveria ser uma premissa ligada à estética da produção artística, não se
encontra, em muitos casos, associada à outra questão do “empobrecimento” da atividade?
Tal possibilidade revela não a opção pela precariedade, mas uma impossibilidade de se
fugir na luta pela sobrevivência – a precariedade como uma condição não escolhida.
4
Em 1922, Craig propõe um teatro que seja um espaço vazio, compreendido como um espaço modelável onde para cada tipo de drama se
construa uma arquitetura (cena-sala) que seja adequada e temporária (FREYDEFONT, 1997, p.21).
5
Cartoucherie – antiga fábrica de munições do exército francês – construída na época de Napoleão III, é a sede do Théâtre du Soleil, sob direção
de A. Mnouchkine, desde agosto de 1970.
6
Instituir a precariedade como característica de um espaço é uma ação antagônica ao conceito de dinâmico que um espaço precário pode oferecer.
163
José Simões de Almeida Jr.
Serroni afirma que temos poucos exemplos de espaços verdadeiramente pensados para
serem flexíveis ou polivalentes. Segundo ele, no Brasil “algumas tentativas isoladas são realizadas, geralmente calcadas na improvisação e na adaptação caseira de galpões ou garagens, sem recursos, sem condições acústicas e técnicas” (2002, p.33), o que reforça a idéia
do empobrecimento da função teatral.
A situação é complexa, pois os limites entre o processo artístico, sua opção estética e o
evento teatral, o social e o cultural são tênues. Esse empobrecimento estaria atrelado a
quê? À falta de uma política cultural? À formação legal da profissão? À ausência de parâmetros
normativos de regulação da atividade profissional? Sim, pois atualmente qualquer pessoa
pode, de um momento para outro, fazer teatro profissional. Praticamente, não há norma,
sequer parâmetros 7. Essa liberdade seria fundamental? Ou se encontraria ligada a uma
mudança do papel do teatro como função social? São indagações que não surgem somente da propalada “crise” criativa permanente do teatro. Referem-se à própria qualidade da
inserção da função artística do Teatro dentro do conjunto social.
Afirmar que o teatro mudou é incorrer em tautologia. Pois se a sociedade e as pessoas
mudam, o Teatro, sendo feito por pessoas em um determinado local-tempo, é puro dinamismo. Portanto, ele é sempre o presente em movimento. A “crise” se dá quando se tenta
fixar esse processo dinâmico em um modelo de sistematizações e reproduzível.
Nesse sentido, uma discussão do papel do lugar teatral é significativa, assim como o
papel da dramaturgia, pois eles são os elementos visíveis, representantes fixados no tempo e no espaço, tal qual a marca concreta de um modelo de uma outra época, o que Milton
Santos denomina de rugosidades.
Entretanto, ele nos alerta: “as rugosidades não podem ser apenas encaradas como heranças físico-territoriais, mas também como heranças sócio-territoriais ou sócio-geográficas” (SANTOS, 2004 a, p.43), o que equivale a dizer que o valor do local se altera no tempo e
no espaço de acordo com a produção que ali se realiza e se expressa para o conjunto da
sociedade.
Dito isto, ao propor a discussão do precário e do empobrecimento, não se deseja
posicioná-la na relação causa-conseqüência. Nem estabelecer juízos de valor, mas sim
relativizar o sentido do precário como opção estética.
Não são raros os exemplos de “romantização” do Teatro realizado em condições precárias. Por outro lado, tem-se a aceitação dessas situações de adaptação de lugares, vista como
uma solução diante do quadro de ausência de investimentos para a construção de edifícios
teatrais. Serroni comenta:
É alentador construirmos mais salas num país em que a quantidade de casas de espetáculos por metro quadrado é muito pequena, mesmo que esses espaços sejam inadequados. Melhor tê-los assim do que não tê-los (2002, p.34).
7
A Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artista e de Técnicos em Espetáculos de Diversões, e
fornece outras providências. Entretanto, ela não se constitui num fator limitante para o exercício da profissão.
164
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Ao discutir a questão do lugar, um dos aspectos relevantes está no fato de ele não se
encontrar, necessariamente, ligado a uma estrutura edificada determinada. Assim, a utilização do termo lugar teatral deve ser empregada, no sentido geográfico, para todos os lugares nos quais ocorram eventos teatrais. Por conseguinte, o lugar teatral contém, ao mesmo
tempo, os condicionantes do espaço teatral e do espaço geográfico.
Para Santos, o lugar representa o cotidiano. É o local da materialidade e da sociabilidade, onde se manifestam as técnicas necessárias para a produção e sobrevivência. O lugar
deve ser considerado como um mediador entre o Mundo e o Indivíduo. E afirma ser o lugar
“o depositário final, obrigatório, do evento 8” (2004 a, p.144).
A compreensão dos lugares somente se dá, de acordo com Santos, na compreensão da
Totalidade - Mundo: “o que se passa em um lugar depende da totalidade de lugares que
constroem o espaço” (2004 b, p.153). Portanto, não é possível compreender o lugar pelo
lugar, mas somente pelo entendimento da rede de lugares do qual faz parte.
Um lugar se diferencia de outros lugares por apresentar características e um modo de
organização própria. A definição do lugar, logo, está condicionada a esse conjunto de
especificidades.
Trata-se de uma característica importante do lugar – a sua especificidade. Cada lugar é
um lugar diferente, com respostas e operadores distintos, com tempos de respostas e de
ação próprios em relação ao conjunto social. Sendo assim, se imaginarmos que exista uma
ordem global econômica, que deseje impor a todos os lugares, em escalas superiores ou
inferiores, uma única racionalidade, apesar de tal ação, os lugares responderiam de maneiras distintas. Primeiro, porque não existem lugares iguais; segundo porque, seja qualquer a
ação global, devido à singularidade do lugar as respostas se dariam em escalas diferentes,
e terceiro porque, mesmo diante de uma ordem global, sempre existe uma ordem local.
Segundo Santos, a ordem local “funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na
contigüidade (2004 a, p. 339)”.
O conceito de lugar teatral proposto Ubersfeld (1996) também se aproxima do sentido
de lugar como singularidade. É designado aí como um “fato dado”, de caráter social, cultural,
de “base sociológica” e que, fundamentalmente, se estabelece pela relação com a cidade.
É essa singularidade que assegura ao lugar teatral distinguir-se no conjunto social. No
entanto é de perguntar: que elementos teriam permitido a um dado lugar geográfico ser
denominado lugar teatral?
Retomando as idéias apresentadas no capítulo anterior (pág.36), vale lembrar o lugar
teatral compreendido como um agente, uma espécie de mídia definidora do processo teatral. Nesse sentido, ele seria uma porção do espaço significado, no qual “se evidencia a
8
O evento para Santos em muito se assemelha à condição de evento teatral. Pois afirma “os eventos são, todos, Presente. Eles acontecem em dado
instante, uma fração de tempo que eles qualificam. Os eventos são, simultaneamente, a matriz do tempo e do espaço” (SANTOS. M., 2004 a, p.145).
165
José Simões de Almeida Jr.
consciência da operação perceptiva” (FERRARA apud DUARTE, 2002, p.66) decorrente do
seu uso. Vale dizer: é a partir do lugar teatral que o indivíduo toma consciência do espaço
teatral e dos seus desdobramentos espaciais.
O processo de significação que se desenvolve no lugar teatral deve ser percebido como
um fenômeno cultural, visto que ele se dá pelo uso social do lugar. É pela noção de uso de
um lugar, então, que temos a denominação lugar teatral.
O uso do espaço é o fator responsável pela sua delimitação e distinção. Revela uma
ação e, ao mesmo tempo, o comprometimento de um coletivo artístico com os valores
sociais vigentes. Um comprometimento que não significa submissão, nem concordância,
mas tão somente uma atitude de relação sócio-cultural. De acordo com Lucrecia Ferrara, “a
geração dos lugares é uma atividade informacional acionada pelo imaginário contido no
repertório cultural dos habitantes de um lugar (2000, p.124)”.
Outra questão significativa em relação à definição do lugar teatral encontra-se relacionada com a sua dependência em relação ao evento teatral. O que significa dizer que o lugar
teatral não necessita de que o processo teatral esteja ocorrendo para existir. A saber, um
edifício teatral existe durante e depois de um evento teatral. Ele não desaparece com o
término da função teatral. Mesmo nos eventos realizados fora dos edifícios teatrais, como
na rua, por exemplo, ele existe durante e deixa de “existir”, como lugar teatral, após o término do espetáculo, para retomar sua função anterior, no caso, de rua.
Tal questão reforça a idéia de autonomia do lugar teatral no momento em que o espetáculo está acontecendo. Bem por isso, apesar das suas singularidades, ele apresenta uma
série de traços comuns que nos permitem propor a seguinte definição: o lugar teatral é
uma porção determinada do espaço, edificada ou não, autônoma em relação ao evento
teatral e acionada pelo uso socializado (SANTOS, 2004 a; UBERSFELD, 1996 ). Por conseguinte, pode ser pensado como um agente do processo teatral, compreendido como uma mídia
onde as mensagens do evento teatral tomam forma e se desdobram em outras
espacialidades comunicacionais.
Por fim, é lícito afirmar que um estudo do lugar teatral como agente, e não como apêndice do processo teatral, pode nos proporcionar uma série de contribuições na compreensão da atividade teatral. Ao se assumir o espaço como um elemento constitutivo do espetáculo, não como um suporte ou um depósito da cena e sim como um agente no qual e pelo
qual se estabelece à teatralidade, que poderia ser definida por uma espacialização dos
signos cênicos, temos, de fato, uma mudança nos paradigmas da atividade teatral.
Portanto, as modificações propostas ao longo da história do Teatro não foram uma “explosão do espaço”, como afirma Roubine (1998); foram, isto sim, um procedimento de incorporação do espaço de modo consciente e efetivo no processo teatral.
A conscientização do espaço como um elemento definidor da atividade teatral, no entanto, não acaba com a tensão existente entre as noções de edifício e lugar teatral. Pois o
edifício teatral tem as suas especificidades que, vinculadas a um modelo arquitetônico dado,
166
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
o distinguem e o caracterizam no conjunto social com o qual o evento teatral deverá dialogar.
Referências:
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.
DUARTE, Fabio. Crise das matrizes espaciais – Arquitetura, cidades, geopolítica,
tecnocultura. São Paulo: Perspectiva, 2002.
FERRARA, Lucrécia D´Aléssio. Os significados Urbanos. São Paulo : EDUSP, 2000.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FREYDEFONT, Marcel. Tout ne tient pas forcément ensemble: essai sur la relation entre
architecture et dramaturgie au XXème siècle. In :______ . Le lieu, la scène, la salle,la ville.
No 11-12, Louvain-la-Neuve : Édutes Théâtrales,1997.
SANTOS, Milton. A Natureza do espaço - Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: EDUSP,
2004a.
______. Por uma Geografia Nova. 6ª ed. São Paulo: EDUSP, 2004b.
SERRONI, J.C. Teatros: uma memória do espaço Cênico do Brasil. São Paulo: SENAC, 2002.
UBERSFELD, Anne. Lire le Tréâtre II – L’école du spectateur. Paris: Belin, 1996 .
167
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ETNOCENOLOGIA E ANTROPOLOGIA DOS USOS SOCIAIS E
CULTURAIS DO CORPO :
A TROCA NECESSÁRIA
Laure Garrabe
A disciplina cujo colóquio é o objeto, mobiliza o prefixo « etno », então ela tem pretensões etnológicas ou antropológicas: assim, ela se inscreve de fato entre as disciplinas de
pesquisa dirigidas ao conhecimento do outro, através notadamente, o comparatismo. Me
interessarei aqui às interações entre a antropologia e o « estudo do corpo em vida nos
espetáculos do mundo », pois, a partir do meu percurso de jovem pesquisadora em antropologia e praticante do teatro, uma ligação estreita, acho, tece as suas abordagens
epistemológicas.
Eu fiz minha aprendizagem através de uma antropologia podendo ser qualificada de
« modal », ao lado de brasilianistas da Universidade Lyon 2, como François Laplantine, Thierry
Valentin e Martin Soares, pesquisadores ligados ao departamento de antropologia da UFBA.
Mas, afinal, não foram tanto os seus cursos e trabalhos passionantes que me levaram ao
Brasil, quanto um interesse fervente e uma prática profissional do teatro. Efetivamente, foi
fora do quadro acadêmico que me lancei numa verdadeira exploração das minhas
potencialidades físicas, notadamente com uma trupe britânico-dinamarquêsa baseada numa
região rural da França, o Théâtre Beliâshe. Foi com ela que eu entendi e experimentei o que
um corpo trabalhado, disciplinado e indisciplinado, pode produzir, tanto no plano biológico, social quanto individual.; o que expressões como « think in motions, not in thoughts »,
« dizer com o corpo », « a memoria do corpo », « gesto concreto-gesto abstrato », « exercício de sensação »... querem dizer.
Em vista de estudar o teatro de pesquisa no Brasil, intrigada pela noção de « ator-pesquisador » inexistente na França, efetuei meu primeiro campo brasileiro junto do grupo
fundado por Luis Otávio Burnier (LUME), baseado em Campinas-SP. Enquanto teatro mestiço e de pesquisa, conheci com o Lume1 técnicas do corpo brasileiras, usadas e reconduzidas
no tempo por trabalhadores rurais de Pernambuco, como danças e jogo de ator do cavalomarinho e dos maracatus ; e também, que os caracteres sociais e culturais podem suar em
técnicas novas que a gente cria, ou pensa criar.
A evocação desse percurso representativo de um estudante em etnocênologia hoje,
me permite de fazer o estado de uma colaboração – urgente – entre a etnocênologia e a
antropologia : as especificidades de uma (interdiciplinaridade, recorrência a biologia e as
ciências da cognição, competência prática do pesquisador, o objeto « corpo em vida ») e a
metodologia da outra são complementares.
1
Lume: Grupo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais.
169
João de Jesus Paes Loureiro
Minhas pesquisas sobre o maracatu de baque de solto e o cavalo-marinho me levaram
à varios questionamentos e me obrigaram a pensar juntos categorias e conceitos que, tradicionalmente, em nossos logocentrismos ocidentalizantes, são opostos e contraditórios: o
político e o sensível; o corpo e o espírito; a estética e a razão. O objeto construindo a
metodologia, e não o inverso, uma epistemologia da complementaridade se impunha.
Enquanto estudante em antropologia, e buscando observar os usos do corpo em formas espectaculares do Pernambuco, eu me dirigi para a « antropologia do corpo ». A antropologia do corpo, na França, hoje, é voltada para objetos tais como a doença e a saúde
(envelhecimento, o corpo-máquina), as condutas e riscos (como as atitudes de ordalia, as
condutas de nossos adolescentes, marcas corporais, esporte extremo, jogos de mortes...) ;
o espaço ; a religião. Até aqui, tudo bem, todos sabemos mais ou menos de que se trata. E
ela tem outros objetos como « a vida » (um seminário de antropologia da vida é ensinado
na EHESS2) ; a dança (a « antropologia da dança » se define como uma ramificação da antropologia) ; « gestual » (sem dúvida, este enunciado é próximo de uma antropologia do gesto encenado socialmente... performances em todos os gêneros, artísticos, políticos, religiosos...); a cognição ; e para terminar sem que essa seja uma lista exaustiva, as emoções.
Esses diferentes « campos » são então os mais representativos que a gente entende
por antropologia do corpo na França. Todavia, as polêmicas nascem (e não somente em
antropologia), a partir do tratamento, metodologia e perspectivas científicas do objeto « corpo ». O corpo observado no seio de « práticas corporais », como nesse último grupo – antropologia da vida, da dança, gestual, da cognição e das emoções – se torna mais problemático ainda, por que essas práticas são ligadas a representações sociais e mitológicas, à
estética e então também, à política. Elas não podem dar a ver o corpo somente em sua
motricidade e sua mobilidade (o que Sloterdijk chama um « utopismo cinético 3») mas que
ao contrário, no momento onde ele está movimentado, é por um indivíduo social que tem
efectuado um pré-trabalho de aprendizagem ou desaprendizagem. De fato, como isolar o
corpo social do corpo íntimo e individual?
Então, para limitar o objeto corpo e tentar teorizar os seus usos, as coisas se complicam.
Primeiro, por que o gesto, a dança, o vivo e as emoções não são entidades observáveis
independentemente umas das outras. Depois, por que são objetos de predileção de outras
disciplinas tendo formulado teses importantes sobre o corpo, mais ou menos socializado e/
ou socializante. Assim da etnomusicologia, neuropsicologia, antropologia teatral4, estudos
teatrais, as Performances Studies, as ciências da cognição, as psiquiatrias, a sociologia do
trabalho e do não-trabalho etc... Mas sobretudo, por que esse corpo emotivo, emocionante,
esse corpo dançado, gestualizado tem a particularidade de ser visto/presenciado por, ou
2
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
Expressao do Peter SLOTERDIJK, 2003. La mobilisation infinie, Paris, Seuil (Poinst), citado por F. Laplantine (2005:209)
4
A antropologia teatral de Eugenio Barba. Essa nao é uma ciência humana e nao tem nada ver com a antropologia.
3
170
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
apresentado a um público: nas relações entre espectadores e performers, outras sociabilidades e culturas nascem, em ligação com a percepção, e essas trocas produzem novidade
inédita. Para dizê-lo de outra forma, o corpo produz cultura, desenha-a e materializa-a, e
assim, produz conhecimento. E isso, mesmo quando opera a repetições (nunca idênticas)
no tempo. É justamente nessa propriedade a fazer cultura e reconduzir no tempo uma
cultura, que o corpo resiste a análise : no corpo em movimento, vivo, e nas imagens do
corpo, existe a « não-linguagem » e o « não-lingüístico ».
Também, o corpo, por que ele precede a linguagem5, é difícil de abordar cientificamente, de formular e de teorizar, ainda mais o corpo do outro, sabemos-o todos aqui. E mais
ainda quando a análise toca o campo da estética, e faz entrar em jogo nossos desejos e
subjetivações.
Não tem então por enquanto nenhuma antropologia consagrada a essas « práticas corporais » (fora a antropologia da dança, mas essa se consagra exclusivamente ao objeto dança6) mesmo se, várias vezes, pistas importantes foram lançadas. Nenhum ignora as magistrais « técnicas do corpo » de Mauss que são obrigatoriamente apresentadas aos estudantes e as quais todo pesquisador interessado pelo corpo acaba por recorrer. As antropologias culturais de Mead, Bateson e Evans-Pritchard (para citar somente eles) deixaram boas
análises sobre o corpo sexuado, as relações de polidez, cortesia, parentesco, e a dança na
África do Oeste. Não pode se esquecer, ainda menos aqui no Brasil, do Roger Bastide e seu
denso trabalho sobre as religiões ditas afro-brasileiras corporalizadas. Vem em seguida a
Escola de Chicago, estudando os músicos de jazz e os marginais-desviantes ; e depois o
interacionismo simbólico que teorizou os usos do corpo na sua miss en scène cotidiana. Depois veio Turner, ele também voltado para o fenômeno da ritualização, e seu encontro com
o Richard Schechner, pai do Performance Studies, tendo com êxito as modalidades do corpo encenado, não mais para o cotidiano mas para o extra-cotidiano.
Porém, mesmo se essas antropologias forneceram pistas interessantes, sem ter deixado de forjar inúmeros etnocentrismos emprestando ao teatro todo o vocabular em torno
do ator e da teatralidade, nenhuma propôs ferramentas bastante sólidas para teorizar o
corpo em situação espectacular organizada. Nenhuma atingiu o corpo na sua materialidade
concreta, enquanto se admite que em uma dança, em um rito religioso, em uma participação teatral, em uma performance improvisada ou política, nos gestos de um palhaço, um
imaginário é materializado.
Enquanto isso, e desde o início do acesso das massas aos mundos exóticos, aqueles que
iam se tornar no século XX os grandes reformadores do teatro, tiveram a intuição de que a
cultura dos outros não era menos rica e importante do que suas (senão mais), e começaram
5
Laplantine (2005:204)
O que pode ser discutivel pois o outro na vê forçosamente « dança » aonde eu vejo «
dança », e acha-se dança nos estadios de futebol, nas artes marciais, em homens politicos, em ritos religiosos, em cuzinheiros, na mimica corporal
etc...
6
171
João de Jesus Paes Loureiro
a criar, diante do choque da sua descoberta da diversidade e da « autenticidade », os
seus próprios métodos de acesso ao corpo dilatado e extra-cotidiano. Esses praticantes, do jeito deles, buscavam « teorizar o corpo » : operaram as suas próprias codificações,
nomearam-as e sistematizaram-nas. O corpo começava a ser dito e analisado : sua
organicidade e diversas existências, suas multiplicidades e seus minimalismos, suas
imanências e imobilidades foram exploradas.
Aqui entra em jogo a etnocênologia. Foi uma das primeiras à localizar os
etnocentrismos no campo dos estudos teatrais, e em reação, formou toda a sua epistémé
a partir das línguas vernaculares 7 e do imaginário original (nem revisitado nem
reinventado pelo imaginário do pesquisador). Quer dizer que ela operou a um verdadeiro reconhecimento social e estético do outro enquanto ele dar a ver suas preferências, seus estilos, seu sensível nas suas próprias incarnações do imaginário. Ela destacou que, pode-se comparar os espetáculos entre eles da mesma maneira que a antropologia clássica com os sistemas de parentesco, políticos, agrícolas, mitológicos etc...,
ela não podia portanto colar as miss en scène do imaginário e do trabalho das técnicas
corporais, ou seja suas incarnações stricto sensu, no seu próprio logos. O qual é ainda
mais redutor, decorrendo do teatro (ao senso stricto europeocentrado da palavra), e
que o adágio do Shakespeare « o mundo é um teatro », aparece frequentemente como
uma inferência não discutida.
Por exemplo, quando os cortadores de cana de açúcar da Zona da Mata Norte
me descrevem o que é o maracatu de baque solto, eles falam de brincadeira. Para descrever essa palavra vernacular a um público nao lusófono, vejo bem que nem « jeu » jogo literalmente em francês – nem « défilé carnavalesque » - literalmente desfile carnavalesco – não bastam : a dimensão estética das extensões do corpo (como os azougue, cachaça, ritmo rápido da música, 30kg de indumentárias, acessórios mágicos e
carregados...), como das suas técnicas (como saltos acrobáticos, a dança das lanças...)
por exemplo, não é bastante evidenciada numa tal expressão. Seguindo as propostas
da antropologia modal de Laplantine, a opção conveniente para traduzir o intraduzível,
e mesmo somente descrever, fica no grande rigor na escolha dos verbos e do vocabulário utilizados, não trabalhar por metonímias ou com palavras demais relativas: se desfazer, em primeiro lugar, das lógicas denotativas apobrecendo sentido e realidade. De
fato, a ciência é primeiramente comunicada pelo texto.
A outra atitude antropológica e inovadora da etnocênologia é essa alforria de certas oposições racionalocentristas a qual tenta atingir. A primeira é sem contestação
essa do corpo-espírito : não se pode entender o outro sem libertar-se dela, afinal, somente as sociedades herdeiras da filosofia grega e alemã usam-a, abusam-a e entendem-a. Aqui a etnocêlogia inspirou-se largamente nos grandes reformadores-pratican7
O radical latino verna significa : quem pertence do lar domestico.
172
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
tes do teatro que contribuíram enormamente à essa cênologia geral para qual pretende-se chegar. Eu penso à noções como dilatação (Decroux), performatividade
(Grotowski), extra-cotidiano e pré-expressividade (Barba). Notem que elas não são compostas de marcador local nem social.
Ela foi mais longe ainda fundando os instrumentos metodológicos de
performatividade, espectacularidade e relação simbiótica. Toda sociedade parece distinguir a espectacularidade e a performatividade, e concebe de imediato essa relação
simbiótica operando-se através da percepção. A antropologia do corpo ainda nunca
propôs tais noções aplicáveis a toda sociedade : no campo do religioso, da encenação,
da montagem (técnico-maquinista e corporal) e das incarnações do religioso, essas
noções podem ser muito pertinentes para observar o corpo em situação de incarnação,
ou, de « fé manifestada ». Que a divindade entra no corpo, que o indivíduo entra em
transe ou não, e como, a etnocênologia poderá explicá-lo com o recurso das
neurociências, a química e a biologia. Não é contraditório nem impertinente que voltarse para uma disciplina que sabe revelar quais são as partes do cérebro implicadas no
que já foi chamado de « estado alterado de consciência ». As antropologias do corpo se
apegam demais às representações e aos simbolismos do corpo e suas produções, enquanto os « outros » componentes do ser humano – carne, hormônios e enzimas, matéria putrescível e que envelhece – são caladas ou esquivadas. De fato, a fé não explica
tudo, notadamente quando um fiel da umbanda conta que ele pode e sabe recusar a
possessão se, numa noite aonde é celebrada uma entidade, não está a fim ou está cansado demais para hospedá-la ; e ao mesmo tempo, que ele pode ser cavalgado de surpresa fora de uma festa para os santos.
Para concluir, posso afirmar que a etnocênologia apresenta verdadeiros caminhos de
companheirismo com a antropologia : ela preconiza mesmo um tipo de « observação participante » que acontecera, por que o pesquisador deve ser também performer. Mesmo se um
pesquisador francês trabalha no domínio francês, observara a micro-cultura do grupo com
qual trabalha, que, forçosamente, pelos seus imaginários e mitologias escolhidas, suas diversas técnicas emprestadas ou criadas, não parecera completamente a uma outra. Não se deve
necessariamente praticar a forma espectacular estudada, por que as vezes é impossível, o
importante é saber como funciona um corpo sendo ele trabalhado para um fim preciso.
Por outro lado, com as noções e intrumentos metodológicos que ela propõe, ela pode
pertinentemente contribuir a uma antropologia dos usos sociais e culturais do corpo, a
partir da análise da sua materialidade concreta.
As ciências duram enquanto elas, não invalidaram nada do que a etnocênologia no seu
estado atual pretende, tanto mais que elas mesmas, como a genética, trabalham e revelam
os seus resultados com muita prudência. O fato delas nunca se avançarem precipitadamente em suas teorias - universais neste caso - lembrando sempre que os determinismos sociais nunca devem ser isolados no funcionamento biológico de um ser humano, confirma a
173
João de Jesus Paes Loureiro
atitude da etnocênologia. O que elas chamam de contexto, ou seja o ambiente social e
íntimo da pessoa, intervêm na evolução de uma doença, de um distúrbio psíquico etc...
Esse recurso ao ambiente social e aos determinismos individuais da parte de uma ciência
dita dura, é encorajante para o futuro : ele assinala e insiste no fato que o corpo não é
isolável do espírito, um dos primeiros paradigmas da etnocênologia. E um dos mais difíceis
com o qual lidar.
174
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A DRAMATURGIA DA MEMÓRIA NA CENA
CONTEMPORÂNEA DO TEATRO-DANÇA
Lícia Maria Moraes Sanchez
Resumo
A Dramaturgia da Memória, fruto de minhas vivências como bailarina e coreógrafa, apóiase na reconstrução do passado pela poesia do teatro-dança. Recupera pontos importantes
da criação artística que levam em consideração fatores constituintes do processo criativo
na arte: sensibilidade, flexibilidade, fluência, originalidade, capacidade de análise e síntese, coerência de organização e lógica. Também traz pontos relevantes das Ciências Humanas que propiciam o ingresso do criador-executante no campo político-social, levando sentimentos e emoções a configurarem um ato poético de resistência. Na reconstituição do
passado, tendo como pano de fundo uma pesquisa histórica, as ações realizadas mostramse como condição promotora de fortalecimento e construção de identidades. Essa identidade, memória coletiva compartilhada por todos, vem da história e à história retorna, transformada pelos desafios e pelas necessidades da realidade. No lugar de uma entrevista
com roteiro, propomos questões-geradoras de pontos de vista particulares de um passado a ser expresso pela teatro-dança.
O Processo Memorial
Busca trazer construções poéticas que sirvam de alicerces a realizações revestidas de
novos significados. Nasce como um processo artístico-criativo e mostra-se efetiva como
processo artístico-pedagógico, mas também mobiliza e fortalece outras instâncias do comportamento humano enraizadas no passado, uma vez que lida com...
...a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais
difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural
na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e
certos pressentimentos do futuro1.
A ligação verificada entre ancestralidade e corpo atuante remexe particularmente com
os mecanismos da minha identidade afro-brasileira. Sob a direção de Bausch, no Wuppertal
Tanztheater quando lá estive de 1986 a 1989, as minhas respostas aos estímulos dados nos
processos criativos da companhia traziam o traço da minha cultura e ancestralidade – nunca estive tão perto do que sou, no sentido do “sinto, logo existo”. Reconheço, assim, que
essa cultura não deve ser o outro quase sempre inaceitável, mas reconhecidamente memória constituinte de uma identidade brasileira, uma fonte rica de motivos.
1
Simone Weil (1943), apud Frochtengarten, A memória Oral no Mundo contemporâneo, op. cit., p. 368.
175
Lícia Maria Moraes Sanchez
A experiência com Bausch fortaleceu esse aspecto. As lembranças colhidas das relações interpessoais, com meus parentes, além de outros grupos constituídos de pessoas
afro-descendentes vieram à tona com força, mobilizando, entre outros, o meu interesse
pelo resgate dessa ancestralidade.
Um dado importante desse contexto, como coreógrafa, diz respeito a uma inquietação
pessoal quanto ao tratamento às vezes dado à cultura afro-brasileira, manancial rico de
possibilidades de abordagens por meio da arte, mas que, muitas vezes, vi ser levado para a
cena apenas por meio da imitação de seus rituais sagrados e danças dos orixás. À crença de
que o sagrado é o sagrado, tautologia que nos soa muito forte, dizendo-nos que o sagrado
é superior e intocável, somamos o que nos disse Bausch, em Palermo, 31 de maio de 1989;
“não devemos imitar a realidade, ela é muito mais forte do que qualquer imitação”. E, com
esta idéia, propusemos-nos o desafio de fazer o primeiro trabalho de dança-teatro em 1996
após nossa volta da Alemanha.
Dada a subjetividade intrínseca à memória individual, a relação com a ancestralidade
era movida pela intenção de mudança de perspectivas; enfim, de propor caminhos ainda
não percorridos ou insuficientemente batidos, capazes de levar a descobertas originais,
entendidas aqui como aquilo que nos é de origem. Esse referencial, todavia, não é buscado
em seus temas religiosos explícitos, mas na projeção associativa de experiências vividas e
imaginadas, sem imitação, com projeção contemporânea.
COMO DESENCADEAMOS O PROCESSO
Para ser desencadeada a “Dramaturgia da Memória” é necessário ter como pano de
fundo uma pesquisa histórica geradora de estímulos. O Projeto Alforria – “O que Rui Barbosa não queimou”, iniciado em 1996, pretendia, mediante pesquisas históricas e culturais,
resgatar alguns fatos sobre a vida dos negros na história das lutas pela liberdade e da
resistência à escravidão, dando-lhes um tratamento distinto dos usuais nos trabalhos de
temática afro-brasileira e uma projeção contemporânea, por meio do Teatro-Dança. O trabalho parte de um processo de pergunta-resposta que tem como finalidade despertar, na
memória dos dançarinos, respostas ancestrais, quiçá inconscientes; respostas guardadas
na memória de cada um dos participantes. Para a elaboração do roteiro, os pontos de partida são textos de provocação ou textos geradores, numa clara analogia com o que, no
método Paulo Freire, recebeu o nome de “questão geradora” – que toma por base as obras
de diversos autores2, estudiosos da vida e da cultura negra.
O primeiro trabalho montado pelo projeto Alforria “As Mulheres dos deuses - Força,
Transe e Paixão”, cujo objetivo era trazer à luz, por meio de ações femininas negras simboli2
Dentre outros, Eduardo Galeano, João José Reis, Roger Bastide, Manuel Querino, Evaristo de Moaes, Edison Carneiro, Décio Freitas, Antonio
Monteiro, Clóvis Moura, Richard Price, Ronaldo Vainfas, Jefferson Bacelar, Tomás Pedreira, Kátia Mattoso, Clóvis Moura, Juana Elbein, Júlio Braga, Ma.
Helena Machado, Maria Stela de Azevedo Santos, Pierre Verger, R. Slenes Ruth Landes, Vivaldo Costa Lima, Yeda Pessoa de Castro.
176
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
camente interpretadas, a vertente negra da cultura brasileira. A referência principal do
trabalho é Luiza Mahim, mãe do abolicionista Luiz Gama e uma das mulheres hoje reverenciadas como símbolo de luta e resistência. Pretendeu-se fazer, a partir dos pequenos registros encontrados na bibliografia sobre os negros na Bahia, uma apresentação da vida e do
papel das mulheres negras, não apenas no seu quotidiano, no silêncio do dia a dia, mas
também enquanto sacerdotisas, guardiãs da força, do saber e do poder dos orixás. Da sua
participação na resistência da África recriada dos quilombos, quando forneciam a retaguarda e o apoio a seus guerreiros, semeando a vida e os alimentos. Detentoras de uma cultura
da diáspora guardavam e guardam gestos, cantos, danças, jogos, e, sobretudo, a fé, a força
do axé3.
A extensa e cuidadosa pesquisa histórica4 permitiu definir um “grande objetivo”, uma
temática no referencial afro-brasileiro (ver Stanislavski): “a presença da mulher negra na
história das lutas e resistência à escravidão”. Da bibliografia levantada, selecionamos vários
trechos significativos (textos geradores) como, por exemplo: “Antes de escapar, as escravas
roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas
enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam aos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem as cabeças e fecundam, assim, a terra livre”5. Dos trechos significativos,
extraímos palavras-chave que se transformaram em matéria básica do trabalho:
ESCAPAR
LEVAR A VIDA NOS CABELOS
SEMEAR
RESISTIR
Direcionadas como perguntas, essas palavras e expressões geraram nas dançarinas uma
série de respostas-ações cuidadosa e detalhadamente anotadas. Quando da composição
coreográfica, as ações apresentadas foram reelaboradas em alusão ao quadro “As sementes
da resistência”, que segue o Prólogo do espetáculo.
A ABERTURA A OUTROS REFERENCIAIS
A Dramaturgia da Memória não está restrita a uma raça, a uma cultura ou tema específico; é um instrumento para todos aqueles que estão interessados em remexer as águas da
memória – ritos e mitos que são parte viva e integrante da cultura de um povo.
O processo, além de outros fatores, tem raízes em um tipo de universalidade, o das
vibrações arquetípicas, e pode ser desenvolvido tendo como estímulo qualquer outro
3
Texto extraído do Projeto Alforria; reflexão conjunta com o pesquisador roteirista e diretor Carlos Ramón Sanchez.
Idem.
5
Eduardo Galeano, As Caras e as Máscaras: Memória do Fogo (II). Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p. 30.
6
Heiner Müller, Quatro textos para teatro: Mauser Hamlet - máquina Quarteto. São Paulo: Hucitec, 1987.
4
177
Lícia Maria Moraes Sanchez
referencial. No caso da experiência prática em 2000 realizamos com alunos de Artes Cênicas da UNICAMP “Tua outra cabeça tua outra memória” baseado na obra de Eduardo Galeano
“As Caras e as Máscaras: Memória do Fogo II”, em 2003, com alunos do curso de Artes Cênicas da ECA/USP, associamos ao Candomblé o texto: “Quatro textos para teatro: Mauser, Hamlet
- Máquina, A missão, Quarteto” de Heiner Müller6. Em 2007 também com alunos formandos
da ECA/USP, “O que não Foi” baseado na obra de Artur Muller - “A Morte do Caixeiro Viajante”.
CONCLUINDO
A Dramaturgia da Memória é um processo criativo que valoriza o participante como
“cidadão” intérprete-criador. Os depoimentos (respostas aos estímulos) evocam a
pessoalidade de cada um. O produto artístico dessa forma traduz o ponto de vista deste
participante. Necessita-se para tanto, que os modelos pré-estabelecidos sejam descartados. Assim mobilizamos o fortalecimento e a criação de identidades neste universo da dança-teatro onde a busca de novas possibilidades de abordar um tema merece ser valorizada
em sintonia com os conteúdos memoriais.
178
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
ETNOCENOLOGIA EM VERSO ENCANTADO E CORDEL
Makarios Maia Barbosa
Introdução
O texto em cordel ora apresentado é o resultado dos estudos desenvolvidos na disciplina Etnocenologia,
ministrada pelo professor Dr.
Armindo Jorge de Carvalho Bião, em
2004, no Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia. A urdidura poética
deste cordel deve ser compreendida como uma expressividade
brincante, herdada da minha
ancestralidade paraibana, e reflete o
aprofundamento teórico promovido
através das leituras e discussões realizadas no curso. A estrutura teórica
deste trabalho busca atender às exigências acadêmicas e obedecer às premissas conceituais
da Etnocenologia.
A estética e estrutura discursiva deste poema, inclusive a imagem que tenta sugerir de
uma origem popular, são ainda tentativas de celebração da matriz crítico-criativa apresentadas pelo professor Bião no encaminhamento dessa disciplina, e teve a colaborativa inspiração em diversos diálogos paralelos, travados com os colegas Carlos Petrovich, Alexandra
Dumas, Adailton dos Santos, Euvaldo Mattos e Cássia Lopes.
O presente trabalho, portanto, concentra-se na possibilidade de ser uma escritura poético-teórica assentada no verso do Cordel, tradicional fenômeno literário de matriz cultural
européia, contextualizado no universo da Cultura Popular brasileira, para também se tornar um objeto espetacular próprio aos estudos da Etnocenologia. Esta despretensiosa artimanha artístico-acadêmica busca favorecer entendimentos conceituais, filosóficos e
semiológicos da Etnocenologia, como disciplina científica que se filia ao pensamento compreensivo e às práticas interdisciplinares para atender às incontáveis demandas do fenômeno espetacular.
179
Makarios Maia Barbosa
Os caminhos pelos quais a presente escritura busca uma aproximação dos preceitos
científicos que norteiam a Etnocenologia com o cordel nordestino vão desde o formato
tipográfico desse discurso – a métrica rimada, a rítmica cantante, a épica descritiva, a dramática comovente, portanto, a cênica oral –, passando por um ideal não eurocêntrico comum, até chegar à elaboração de analogias do modo de “pensar e produzir saberes”, que se
dá no senso comum, propondo para as artes cênicas, como área do conhecimento, uma
epistemologia menos rígida, que possa favorecer o discurso teorético, com o qual a
Etnocenologia tem se alinhado ao pensamento científico pós-moderno.
O interesse pelas temáticas populares, objetivado na abordagem da espetacularidade pela
Etnocenologia e pelo cordel, é um ponto de interseção pertinente e de valor histórico na
contemporaneidade. Desta forma, o presente trabalho reconhece que o fenômeno espetacular é constituído a partir de fecunda sinergia de expressividades etnológicas híbridas,
multiculturais, transnacionais, que se dão em infinitas materialidades e com sentidos variados. Assim, busca este cordel predispor-se à leitura cultural prazerosa e ao diálogo frutífero.
A forma encantadora do cordel
Optou-se, na construção deste cordel, pelo formato da estrofe de dez versos, com a
métrica da redondilha maior (versos de sete sílabas) e rimas variadas, algumas vezes, com
repetição de estruturas tradicionais e, em outras vezes, inovando na forma. Na intenção de
promover um ritmo cantante, de fácil reconhecimento e apelo popular, quase sempre a
medida sonora do verso foi dividida em duas: uma menor, de três tons crescentes, forçando
os fonemas finais (Ta ta tá) e outra maior, de quatro tons quase iguais, sem força na acentuação (ta ra ta ta).
As imagens cantantes desta métrica foram elaboradas para sugerir, ao mesmo tempo,
recorrências ao universo coloquial, cotidiano, ordinário e tradicional da territorialidade em
que se assenta a Etnocenologia e o cordel, mas também para expressar uma ordem poética
rebuscada, de valor simbólico, que se remete à significação extra-cotidiana, extra-ordinária, infra-ordinária e estética do conhecimento tratado nas artes cênicas, revelando, assim, a
construção de corpos e imaginários em espetacularidades.
A escolha por uma estrutura de rimas variadas, recolhidas a partir de diversos modelos
da tradição do cordel, busca efetivar uma alternância expressiva na locução sonora, que
promova a quebra com a possível monotonia fonal, sugerindo a diversidade de “falas” e de
“sujeitos” com os quais a Etnocenologia está disposta a dialogar. Desta forma, o modelo da
Redondilha Maior pôde ser enriquecido, favorecendo, dentre algumas formas de rimas, as
seguintes leituras:
1º Exemplo – Em uma estrofe, combinam-se as rimas do primeiro verso com o quarto,
com o sétimo e com o décimo; e do segundo verso com o terceiro, com o quinto, com o
sexto, com o oitavo e com o nono (ABBABBABBA);
180
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
2º Exemplo – Em outra estrofe, combinam-se as rimas do primeiro verso com o
quarto, com o quinto e com o décimo; do
segundo verso com o terceiro; do sexto com
o sétimo; e do oitavo com o nono
(ABBAACCDDA).
E assim por diante.
Por fim, deve-se lembrar do final do cordel, quando, na tradição popular, os autores
apresentam suas “assinaturas”, marcando a
efetividade de seu gênero poético, sua tradição e sua autoria. No presente texto, optou-se por grafar as últimas estrofes com
acrósticos 1, sendo eles destinados a identificar a sigla do PPGAC / UFBA, a dedicatória
do cordel e a assinatura do autor.
ETNOCENOLOGIA EM VERSO ENCANTADO E CORDEL
1
Doutores do mundo inteiro
De “Oropa, França e Bahia” 2
A Etnocenologia
Chegou no mei’ do terreiro
Deitou, rolou, deu flecheiro
Buliu na nossa existência
Despertando a consciência
De quem ‘tava abestalhado
Para propor, com cuidado,
Do espetáculo, a ciência.
2
Doutores da freguesia
A real definição
No radical, no bordão
1
2
“Etnocenologia”
Mostra bem a serventia
Da mistura e da razão
Eis a matriz, o brasão:
Se é ciência, é “Logia”,
Se vem do povo, “Etnia”,
“Ceno” é arte, corpo, ação.
3
E a Espetacularidade,
Este composto fecundo,
Face expressiva do mundo,
Matriz possibilidade
Que constrói sociedade,
É o objeto de pesquisa
Em que o Discurso organiza
Etnocenologias,
Suas Metodologias,
Sua cientificidade
4
A Etnocenologia
Fala aos senhores doutores
Para enaltecer amores
E encerrar a tirania
Que se fez contra a folia
Contra o modo de dançar
De cantar e de tocar
De dramatizar a vida
Que é riqueza preferida
De qualquer povo e lugar
5
Pois qualquer povo e lugar
Sabe como bem fazer
O espetáculo viver
A arte se manifestar
Palavras para serem lidas no sentido vertical, escritas a partir das letras iniciais de cada verso.
Romance versificado de Ascenso Ferreira que trata da universalidade da cultura, publicado pela editora Nordestal, de Recife/PE, 1995.
181
Makarios Maia Barbosa
Não há fábrica, e não há
Jeito pronto e “metiê”
Há conquista e há prazer
Sedução, muita magia
A Etnocenologia
É a mandinga, pode crer!
6
A Etnocenologia
Fala ao bruxo e ao faquir
Fala a quem quiser ouvir
Dia e noite, noite e dia
Propondo uma empatia
Um outro modo de olhar
A arte que sempre há
Pela rua, na calçada,
No gueto, no mei’ do nada
A excêntrica alegria
7
Geral Teatrologia
Paradigma similar
Já se fez especular
Essa razão/poesia
Quem propôs, lá na Bahia,
Foi Nelson de Araújo
Pois pensou, o dito cujo,
Em atender à carência
De estudar com ciência
Do teatro, a folia.
8
Os estudos teatrais
Já são fatos seculares
Na Europa e nos lugares
Chamados ocidentais
Heranças fenomenais
Dos Antigos postulados
Escavações e achados
182
Frutos d’arqueologia
Pra reviver a magia
Desta arte de ancestrais
9
Do Dionísio descende
A existência do ator
O teatro e o torpor
A crença que compreende
A celebração que rende
Muitos frutos, muita uva
Dança do Sol e da Chuva
E o teatro do passado
Só se afirma no traçado
No livro, que ali o prende
10
Dos gregos aos medievais
Todos beberam da fonte
Das encostas, atrás do monte,
Até os ritos clericais
O teatro fez sinais
E construiu sua crença
O que ficou foi sentença
De um modelo letrado
Do autor predestinado,
Mas da festa, só lembrança.
11
Mesmo no mundo moderno
Da Renascença pra cá
Drama escrito é o que há
O resto é coisa do inferno
Só o escrito é eterno!
O teatro vai no vento
A palavra toma assento
E o vivido é descartado
Como deixar registrado
O teatro do hodierno?
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
12
Essa é a real sentença
Se é verdade que a arte
É da existência a parte
Que nos afirma a presença
Como o povo diz na crença:
“Quem nada tem, nada dá!”
Se não se pode guardar
O que se faz no tablado
Nosso esforço é condenado
Mesmo se sai na imprensa
13
Como a festa, como a dança
O folguedo, o jogo, a reza
A culinária, a destreza
De se cantar na Chegança 3
De embalar a criança
Na hora de se deitar
E a coragem de caçar,
No lamaçal, goiamuns
Os saberes mais comuns
Como deixar na lembrança?
14
Resta ainda uma esperança
De se ver Verbo Encantado 4
Na consagração do fado
De carolíngia lembrança
De diáspora herança
De ameríndios e sertão
Africana encarnação
Do pé, do chão, do reboco
Neste Brasil de caboclo
De Mãe Preta e Pai João 5
15
Mas, retomando a questão,
Da Etnocenologia
Sua origem e serventia
Seu nascedouro e razão
É poesia e paixão
Feita de lua e de língua
Muda, migra, mexe e míngua
Carne do corpo de luz
Relva rala, erva, obus
Canto e fala, fruta e pão
16
Seu objeto de estudo
É um jeito de se dar
De se fazer, se mostrar
Festa do viver agudo
Mas quem oferece tudo
Tem consciência do olhar
Do outro que quer provar
Do que se vê de beleza
Fé, cultura e natureza
Corpo, alma, mito e ludo
17
Força interdisciplinar
Mapa de muitos caminhos
Que dá vazão a moinhos
E bem melhor faz pensar
Cuida do espetacular
Do saber cotidiano
Definindo plano a plano
3
Dança dramática de origem européia remontada ao século XVIII, com teor erótico. No Brasil, folguedo popular natalino em que se armam nas praças públicas grandes barcos
ou naus de guerra, onde os brincantes ou brincadores ou marujos, como se nomeiam, figuram uma expedição naval, no decurso da qual se travam combates com os Mouros
e se cantam feitos heróicos. Cf. os verbetes: Chegança e Fandangos em CASCUDO, L. C. Dicionário do folclore brasileiro . Brasília/Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1987.
4
Fanzine baiano, com marcada influência da Contracultura, editado em Salvador, nos anos setenta. Entre os seus articuladores estava Armindo Jorge de Carvalho Bião.
5
Citação festiva de antigo mote de violeiros, marcadamente presente na obra do poeta paraibano Severino de Andrade Silva, o Zé da Luz.
183
Makarios Maia Barbosa
“A contemplação do mundo” 6
E o sentimento profundo
Do que é fazer sonhar
18
O fato espetacular
Aquilo que mexe o nego
Que dá tesão, faz chamego
Germinação pulular
De alegria e pulsar
De vida, carne e raiz,
‘Coisas que o povo diz’ 7
Gozo, fé, sabedoria,
A Etnocenologia
Se dedica a abordar
19
O conceito tutelar
Deste novo estratagema
Pode ser um teorema
Mas também pode negar
Essa angústia secular
Do dualismo redutor
De abordar com rigor
E valor cartesiano
Coisas da fé, do “mundano”
Coisas que bóiam no ar
20
Disciplina similar,
A Cenologia Geral,
Quem afirmou foi Dadau 8
“Pode ser...” Falta afinar
E bem significar
6
Irmã metodologia
E taxionomia,
Objeto de estudo,
Para concretizar tudo
E o paradigma fundar
21
Proposta em um manifesto
Na pós-moderna idade
Sob a responsabilidade
De profundo e claro gesto
Em dia útil, profesto
Com intenção de atender
Ao comportamento que
Faz da vida um esplendor
Em cores, graça e furor,
Celebração e protesto...
22
Justifica-se por quê
A ciência é um bom lugar
E a arte espetacular
Pode lhe favorecer
Uma vez que faz valer
Os saberes mais comuns
Os modos todos e nenhuns
Mediando a comunhão
Da lógica com a tradição
Do ancestral com o erê
23
Justifica-se então
Pelo teatro que se faz
Muito decente e capaz
Obra de Michel Maffesoli, que se propõe a lidar com a comunicação, o conhecimento comum e a transfiguração da imagem e seu conceito, referencial que pode facilmente
dialogar com a Etnocenologia.
7
Famosa obra etnográfica de Luís da Câmara Cascudo.
8
Adailton Silva dos Santos, professor e pesquisador baiano da Etnocenologia, mestre e, atualmente, doutorando pelo PPGAC. Teve especial participação na disciplina como
professor colaborador.
184
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Fora do eixo padrão
Desconhecendo ao bordão
Erudito e secular
A regra fixa, o pulsar
Eurocêntrico e dominante,
Que é também muito importante
Mas, o único? O certo? Não!
24
Justifica-se na dança
Milenar filosofia
Do crear com sinergia
O movimento, a mudança
De mistura e temperança
Força que equilibra o mundo
Órbita, composto profundo
Cogito em forma de vento
Corpomente, pensamento
Música viva, aliança
25
Essa dança que balança
Vem de debaixo do chão
Vem do tambor coração
Vem do ventre, bole a pança
Estremece na lembrança
De um primitivo passado
O dançante no bailado
Que ao lembrar do sacerdote
Se expande e inverte o mote
Balança que é essa a dança
26
Dentre as artes, os padrões
Essa dança é um exemplo
Vai no beco, vai no templo
No festejo, nos cordões
Estudados em lições
Em Etnocenologias
Pode ser de cantorias
Ou de versos eruditos
De Salomão aos Benditos
De Zé da Luz a Camões
27
Mas pode ser visual
A matéria do estudo
Pode ser a voz do mudo
Em linguagem gestual
Ou a moda tropical
A roupa que usou Maria
A cor que define a guia
Do Orixá, do caboclo
Da santinha do pau oco
Do totem memorial
28
Tudo pode ser tocado
Em linguagens diferentes
Desde os seres transcendentes
E as lembranças do passado
Até o som do xaxado
A sapiência do velho
A lição do Evangelho
A “Catirina” e o “Boi”
Aquilo que sempre foi
Também vai ser estudado
29
Mesmo a História de Vida
De um grupo ou um alguém
Compreende e serve bem
De Método, e assim valida
De uma forma preferida
A ação de propiciar
Ao “objeto” propalar
Que está vivo e é “sujeito”
Soterrando o preconceito
De maneira divertida
185
Makarios Maia Barbosa
30
Por falar em diversão
Lembro-me do bom humor
Sem isso, a lida é um terror
A vida vira um padrão
De mera competição
Enchendo o mundo de chato
De fofoca e de boato
Falta criatividade
Pois ciência de verdade
É um sinal de comunhão
31
E Etnocenologia
É antes uma comunhão
Sem abolir a razão
Mas sem negar a magia
Que faz do saber folia
De Jean-Marie Pradier
Aos performance studies
Tudo busca celebrar
O brilho espetacular
Vida, gozo e alegria
32
A Etnocenologia
Tem raízes mundiais
Duas francesas, iguais
Em proposta e serventia,
Outra daqui, da Bahia
Engendrada por Bião
Um ator de profissão,
Professor, mestre e gestor
Que define com rigor
Seu alcance e parceria
33
A Etnocenologia
Destina-se com destreza
186
Ao garimpo da riqueza
Que jorra no dia-a-dia
E procura dar valia
Ao teor multicultural
Do que se faz de banal
Mas que é significante
Ontem, hoje e doravante
Cultura e sabedoria
34
Vem estudar com prazer
O que se faz na peleja
Nos botecos, na igreja
Com tudo quer aprender
E tudo quer conhecer
A disciplina em questão
Barro, sopro, massa e mão
Sonho divino da lida
Lição, labuta e guarida
Força do saber-fazer
35
Pensando nisso, Bião,
Depois de rodar o mundo
Em momento mui fecundo
Fez a configuração
De uma pós-graduação
Na Federal da Bahia
E a Etnocenologia
Ganhou assim seu Programa
Que mantém acesa a chama
De estudo e formação
36
Pra tornar realidade
Esta pós-graduação
Doutor Armindo Bião
Teve ajuda de verdade
Fora e na universidade
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
De bons profissionais
Professores e outros mais
Pesquisadores de peito
Que deram a esse pleito
Territorialidade
37
São Salvador da Bahia
Cidade da mestiçagem
Palco primeiro e paisagem
De gestação da alegria
Deste país fantasia
Brasil de todos os mitos
Que de vida adorna os ritos
Florescendo imaginários
É o melhor entre os cenários
Da Etnocenologia
38
A Etnocenologia
Sob o rigor acadêmico
E o compromisso sistêmico
De trans-metodologia
Favorece com ousadia
Projetos originais
Formulações sem iguais
De cenas, brinquedos, mitos
Resumidamente ditos
Nesta humilde poesia
39
O PPGAC 9 é fato
Programa de doutorado
Pós-graduação, mestrado
Guarita de bom contato
Artes como assunto nato
Cênicas, área afinidade
9
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA – Universidade Federal da Bahia.
Uma universidade
Federal pra dar suporte
Bahia, terreiro forte
A premunição e o ato
Dedicatória
Dedico com gratidão
Os versos deste cordel
Uns de seda, uns de papel
Todos na mesma intenção:
Oferecer a Bião
Reconhecidos carinhos
Bião, gestor de caminhos
Irmão que a vida nos traz
Anseio-lhe saúde e paz,
O amor e a consagração.
Assinatura
Minha mais sincera crença
Aqui deixo registrada
Know-how de longa jornada
Acompanhando a sentença
Respeitando a diferença
Imaginária razão
Obedecendo ao padrão
Subversivo, um bocado
Mesmo assim sintonizado
Ao que o mundo diz e pensa
Inventando em verso e prosa
Aprendiz de feiticeiro
Busco no chão brasileiro
As virtudes que há na glosa
Riqueza mais preciosa
Beleza que a vida traz
O tesouro mais fugaz
Sendo assim, sem vaidade
Assino com humildade
Makarios Maia
187
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A POÉTICA RITUAL DE “GESTOS CANTADOS”:
TRADIÇÃO E NATUREZA NA CRIAÇÃO CÊNICA
Márcia Virgínia Araújo
Ilustração nº. 1. Canto dos Ancestrais (In: SIOUX, 1999)
Com o objetivo de constituir a parte prática da tese de título “Gestos Cantados: uma
proposta em dança-coral ritual a partir de princípios xamânicos”, este trabalho foi desenvolvido envolvendo artistas de Teatro, Música e Dança, especialmente estudantes de Teatro
e Dança da UFBA. Com o patrocínio do Governo Federal, através do projeto “Jovens Artistas”
do MEC, veio a público entre os dias 19 e 27 de Julho, no Teatro do ICBA, com previsão de
apresentação em duas cidades da Chapada Diamantina (Lençóis e Vale do Capão), locais
onde a pesquisa de campo foi realizada.
Parte considerável dos dados da pesquisa etnográfica (PEIRANO, 1995) trata da
cosmologia dos ensinamentos tradicionais dos povos nativos1 norte-americanos, Sioux,
Cherokee, Navajo, Lakota, Hopi, Arapaho, Maia, dados encontrados durante minhas experiências como observadora participante de rituais xamânicos do Castelar da Alvorada, focalizados por Sylvie Shining Woman, em especial, nos encontros bimestrais do Círculo de Mulheres e no ritual da Dança da Águia. Uma parte complementar dos dados referentes aos
rituais da Alvorada é proveniente do repertório de Danças da Paz Universal (cuja mentora é
Zelice Peixoto, também integrante da Alvorada), que inclui danças-músicas2 de várias tradições, em especial a tradição nativa do Oriente Médio (LEWIS, 1993), consideradas como
práticas de oração corporal (DOUGLAS-KLOTZ,1996).
1
Utilizo o termo “nativo” para me referir aos indígenas norte-americanos (México, Estados Unidos e Canadá), uma vez que é assim como eles usualmente se denominam.
189
Márcia Virgínia Araújo
APLICAÇÃO CÊNICA DOS PRINCÍPIOS RITUAIS
Minha intenção em Gestos Cantados tem sido buscar a qualidade de um corpo e consciência xamânicos para o trabalho artístico, no sentido de como isto vem sendo abordado
contemporaneamente, como por exemplo, no trabalho de Rachel Karafistan (2003), que
pesquisa as dimensões xamânicas na prática teatral atual.
Visando uma experiência estético-existencial em direção ao equilíbrio de cada indivíduo, “Gestos Cantados” teve em seu processo e resultado cênico, a força da coletividade, e
a proposta de religar o homem à natureza em busca de paz. A experiência cênica com
atores-bailarinos foi baseada em alguns princípios básicos dos rituais, entre eles:
1. A intenção ou propósito que se busca alcançar;
2. A criação de um espaço sagrado;
3. O significado trazido por cada direção - sul, oeste, norte, leste e centro - , à medida em
que caminhamos por elas durante os rituais;
4. A qualidade que cada elemento da natureza - água, terra, ar e fogo - possui quando os
integramos em nosso ser;
5. A união dos reinos humano, vegetal, mineral e animal na compreensão das nossas relações e entre nós e o cosmos.
6. A diversidade dos sons e ritmos musicais-corporais das tradições orais;
7. As diferenças de história e missão de vida de cada pessoa do grupo;
8. A comunhão e a harmonia do coletivo;
9. A celebração ( o trabalho )
10. O agradecimento
A associação entre canto e movimento encontrados no trabalho de campo anterior tornou-se o fio condutor da criação coletiva artística, cujos sons e movimentos de antigas tradições incluíram aqueles provenientes das memórias corporais dos atores-dançarinos. Alguns cânticos e danças-músicas foram utilizados de acordo com o simbolismo de cada direção, utilizadas ainda para harmonizar e para energizar o grupo, para despertar o senso poético e ainda para serem re-elaboradas na composição cênica. Algumas, portanto foram
desconstruídas em favor do processo criativo.
CÂNTICOS XAMÂNICOS PELA PAZ
Existe uma relação visceral entre as Danças da Paz Universal (DPU) e as canções
do xamanismo da Alvorada, sendo que muitas canções estão no movimento da DPU. O inverso também é verdadeiro, como é o caso da dança-música chilena que se refere ao Deus
2
Termo utilizado por CAMÊU, Helza. Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1977.
190
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Wiracocha e à Deusa Pacha Mama, coreografada pelo Movimento DPU e incorporada ao
repertório musical da Dança da Águia. Em “Gestos Cantados” o repertório tornou-se único,
uma vez que grande parte das canções é comum a ambos os repertórios. Das sessenta
canções observadas na pesquisa, cerca de trinta foram utilizadas durante o processo de
montagem e dezessete foram selecionadas para encenação de Gestos Cantados. Além dessas músicas cantadas, o repertório do espetáculo possui uma canção Navajo, do CD Voices of
Forgotten Worlds, vol. 2.
Embora existam partituras para algumas canções da DPU, é recomendável que as músicas sejam vivenciadas antes através de transmissão direta, entre o mestre e o aprendiz. Não
se trata de pegar um manual e segui-lo, pois o que importa aqui não é a forma, mas o
significado do simbolismo da matéria sonoro-corporal presente nas danças-músicas. A opção de expor aqui as partituras como ilustração, é no sentido de revelar a simplicidade e
profundidade sonora a que me referi anteriormente, que pode ser observado nos primeiros dois exemplos que se seguem:
Canto dos Ancestrais- Invocação Lakota à Mulher Búfalo Branco
(Ver partitura na ilustração nº 1)
Yo hey há ya ya ya ya
Yo hey ha ya ya ya do
Yo hey há ya ya ya ya
Yo hey ha ya ya ya do
Yo hey há ya ya ya ya
Yo hey há ya ya ya ya
Yo hey ha ya ya ya do
Este cântico foi incluído no repertório das Danças da Paz Universal, desde 1987,
pela líder de danças, naturalizada canadense, Shemmaho Sioux, porém, segundo ela,
não há uma coreografia sistematizada. Cada frase é cantada com o corpo voltado para
uma direção - norte, sul, leste, oeste, incluindo a terra, o céu e o centro. A energia
desta dança traz equilíbrio entre a criança e o ancião e harmonia entre o masculino e
o feminino em cada pessoa e em suas comunidades. Traz também paz e serenidade
no trato com todas as nossas relações. A coreografia em “Gestos Cantados” foi elaborada a partir da cruz dimensional (Laban), que se adequou perfeitamente aos trajetos
das sete direções.
191
Márcia Virgínia Araújo
Hey Ya Na Na - Dança-música dos 4 elementos:
Este é um entre tantos cantos indígenas da América do Norte, originalmente usado na
época do plantio, ao semear, incorporado a coreografado pelo Movimento da DPU, na
Califórnia da década de 1960.
1. Hey ya na na, hey ya na na, hey ya na na hey (repete)
(movimento com as duas mãos descendo da posição acima da cabeça para baixo, pela
frente e ao longo do corpo, abençoando a terra)
2. Hey hey ya na na, hey ya na, hey hey ya na na hey
Hey hey ya na na, hey ya na, hey hey ya na na hey
(movimento relativo a cada elemento – alternando com o primeiro verso)
Ilustração nº 2.
Ororu – Canto das crianças Guarani
Ororu-Ñamandu-Tupã-ororu
Ororu-Ñamandu-Tupã-ororu
Tupã-Ñamandu-u, Tupã-Ñamandu-u
hôroru, hororu (Guarani)
Para honrar a matriz indígena brasileira, utilizamos esta música do povo Guarani de São
Paulo, tribo que vem sendo representada pelo índio Tukumbo e sua família, no ritual anual
da Dança da Águia da Alvorada. A canção evoca o Deus principal Ñamandu, pai verdadeiro
das numerosas crianças que estão por vir (CLASTRES, 1900, p.32) e deuses do seu panteão,
como Tupã e Ororu. Ainda que não soubéssemos, no momento da criação coreográfica, o
significado dessa letra cantada pelas crianças guaranis, esta canção contribuiu na composição de movimentos baseados na memória de infância de nosso grupo cênico, durante o
trajeto pela direção Sul.
DANÇA CORAL COMO PRINCÍPIO E RESULTADO CÊNICO
Associadas aos princípios e qualidades expressivas dessas músicas e danças-músicas, a
pesquisa de movimentação e de sonorização se deu com o suporte das teorias de Rudolf
192
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Laban (1879-1958) e seus seguidores, sobre os fatores e dinâmicas de movimento, os fundamentos corporais e a dança-coral, bem como o suporte técnico de respiração/fonação
encontrado em Bonnie Bainbridge Cohen (1993).
Os exercícios grupais de construção de danças-corais, no sentido de Laban, foram
motivadores dos processos de investigação e composição poética, junto com os princípios
básicos dos rituais (pontos cardeais, elementos ou matérias elementares da natureza, história do corpo, sons e movimentos de antigas tradições, harmonia do coletivo).
Exemplo de associação entre os fatores de movimento (Laban), os elementos naturais e
os elementos musicais: Terra – firmeza, interiorização, enraizamento (Peso/Intensidade);
Água – flexibilidade, fluidez (Fluência/Timbre); Fogo – determinação, propósito, precisão
(Tempo/Duração); Ar – leveza, liberdade (Espaço/Altura).
Apesar de toda complexidade técnica do Método Laban, o qual, segundo Fernandes
(2006), é utilizado como padrão internacional de análise de movimento, em Gestos Cantados, os aspectos labanianos utilizados contribuíram mais para sugerir e motivar as minúcias
de movimento pessoais, nos processos onde a técnica e a criação estavam imbricados, do
que para análises precisas e detalhadas das cenas. Como a intenção era tornar ritualístico
todos os momentos do processo, o mais importante era que cada um pudesse criar a partir
dos estados diferenciados pelos quais estava passando ao longo dos ensaios.
A poética ritual surgia com a sonoridade criada nos laboratórios de improvisação, a
partir dos fatores de expressividade (LABAN, 1978-1990), a partir dos pontos cardeais
referenciados no eixo central do corpo, a partir da qualidade sonora e rítmica de cada
canção. Alguns exercícios de organização corporal (Barttenief ) foram levados para a cena, à
medida que introduzíamos canções e melodias à seqüência de movimentos na dimensão
horizontal, no plano baixo, como a que se segue:
A partir do “Xis”, rolar e ficar sobre os joelhos (irradiação central e metade do corpo), ou
balançar para os lados direito e esquerdo, fazendo a conexão cabeça-cauda em nível médio, completando a espiral em seguida, verticalizando até o nível alto.
Em resumo, três aspectos da arte do movimento de Laban foram predominantes nesta
montagem ritualística: 1. Fatores expressivos a partir das dinâmicas de movimento e ações
corporais, associados aos elementos da natureza (FERNANDES, 2002); 2. Relação sonoridades/vocalidades/movimentos integrativos (B.B.COHEN, 1993; I. BARTTENIEF, In: FERNANDES,
2002); 3. Partilha de gestos e movimentos na criação em dança-coral (ARRUDA, 1988).
Trabalhamos ainda alguns aspectos da harmonia espacial, a saber, os planos do icosaedro
(vertical, horizontal e sagital), as diagonais do cubo e os movimentos provenientes da cruz
dimensional do corpo. Todos estes princípios universais de movimento contribuíram para
que cada um pudesse situar as direções tendo como referencial o próprio corpo.
Um dos princípios da dança-coral é o de aprender e ensinar movimentos entre as pessoas do grupo, ou seja, trata-se do ato de compartilhar, que é um dos padrões de crescimento da natureza, como observou Doczi (1990). Mesmo havendo diferentes abordagens
de composição entre os que trabalham com Rudolf Laban, há um ponto em comum: o prin193
Márcia Virgínia Araújo
cípio de elaboração de seqüências de movimento individualmente, depois em duplas, e
em seguida, as duplas se juntam em quartetos e assim por diante, até formarem uma grande coreografia. Uma descrição deste tipo de composição criativa pode ser visto em
Fernandes no seu artigo Corpo-Com-texto (2005).
A utilização da expressão “dança-coral”, nesta pesquisa deve-se também ao fato de que
ambos os termos são explorados em seu sentido original, o gestual dançado e o coral de
vozes. Este, por sua vez tem dois significados (união de vozes cantadas e de vozes do corpo
em movimento). Os movimentos e gestos são cantados e a ação vocal é realizada com o
corpo todo. Nesse sentido essa noção aproxima-se do caminho labaniano de explorações
vocais para ampliação expressiva.
DANÇA DOS POEMAS - SIMBOLISMO DAS DIREÇÕES
À medida que íamos experimentando as qualidades e o simbolismo de cada direção e
seus elementos predominantes respectivos, alguns iam compondo poemas que traduziam
as sensações de movimento e também as lembranças evocadas. Isto deu uma característica diferente ao processo e complementou as composições de dança-música que estávamos elaborando. Os poemas abriam ou fechavam cada um dos quatro blocos de cenas
fundamentadas pelas direções. O simbolismo das rodas, como é chamado o percurso pelas
direções, compreende que as pessoas passam por cada ponto da roda em diferentes momentos da vida, reiniciando sempre de um ponto de vista diferente, com outro estado de
ser, como numa lógica espiral. A proposta dos trabalhos rituais observados é a de experimentar propositalmente passar por estes pontos e sentir suas possibilidades criativas. E
em cada experiência com as direções, cada um trabalhou seu propósito, sua intenção para
aquele trabalho.
Assim, os pontos geográficos foram sendo incorporados de diversas maneiras durante
o processo cênico. Estas direções geo-referenciadas (fora de nós) nos rituais observados,
quando transpostas para o corpo dos atuantes transformaram-se em direções autoreferenciadas (no nosso corpo), cujo trajeto entre as direções pôde ser realizado de duas
maneiras, uma, através das polaridades e outra, circular.
Segue um breve resumo sobre o simbolismo das direções em “Gestos Cantados”, ilustradas com poemas elaborados pelos atores-dançarinos:
Direção Sul – Elemento água
No sul encontramos a alegria e a brincadeira, a inocência e a beleza interior. Ao liberar
as partes rígidas de nosso ser, poderemos ser mais flexível, para sentir nossa própria criança. A pureza da infância nos permite ver beleza em cada uma das coisas mais simples. O Sul
está relacionado à matéria emocional de nosso corpo físico, onde o elemento predominante é a água, que por sua vez representa nossas emoções. A expressão das emoções elimina
a tensão e causa prazer.
194
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Poemas do Sul:
1. Autor: Victor Cayres
Um dia retornarei àquele limoeiro. Àquele dos limões mágicos. Aquele dos limões que
faziam com que as nuvens mudassem de lugar! Você não lembra?
Nesse dia... Ah! Nesse dia! Terei a força necessária para mudar o mundo e a sabedoria
para gozá-lo do jeito que ele for.
Poderei saltar do mais alto degrau de enormes escorregadeiras sem me machucar.
Poderei me pintar de guerreiro ou vestir-me como o Pierrot.
Poderei tocar corpos e almas de pessoas que eu nunca vi. E beijar rostos estranhos, e as
bocas que quiser.
Poderei cantar sem medo de que minha felicidade cause inveja. E dançar tão livremente que todos à minha volta se sintam convidados a viver. De fato. Como eu... Viverei.
2. Autora: Andréia Reis
Aconchego, carinho, conforto, Aqui me sinto segura, amada,
Nada me importa,Somente este momento, Único e precioso
Lembranças, saudades, Volto à infância e sinto
O cheiro e o toque da essência da vida
Direção Norte - Elemento Ar
O conhecimento e sabedoria milenares provêm de todos os reinos: animal, vegetal,
mineral e humano (mestres, professores, ancestrais), de todas as nossas relações, cujas tradições devemos honrar e reverenciar. O Norte está relacionado ao corpo mental, aos pensamentos e à respiração, através da qual os valores e crenças são renovados. A clareza da
mente vem quando permitimos que o ar circule dentro de nós.
Tradução da canção “Mahk Jchi”:
Cem anos se passaram, contudo eu ouço a batida distante dos tambores do meu pai. Eu
ouço seus tambores por toda a terra. Sua batida eu sinto dentro de meu coração. O
tambor baterá, então meu coração baterá. E eu viverei cem mil anos.
Direção Oeste – Elemento Terra
Direção onde se encontra as verdades pessoais e o reconhecimento de nossas forças
interiores através da introspecção e interiorização. O Oeste oferece o dom da coragem
como o melhor caminho manter nosso instinto de sobrevivência e para superar o medo do
195
Márcia Virgínia Araújo
desconhecido. É onde exercitamos a confiança aprendida no Sul e os pensamentos renovados do Norte. É no Oeste que se cumpre o ciclo de vida-morte e renascimento e onde
exercitamos a entrega e o desapego. Esta direção está relacionada à terra, à energia feminina, à receptividade, ao útero, à fertilidade, à sexualidade e à criação. Criando raízes e
fundamentos, transformamos as limitações em princípio criador.
Poemas do Oeste:
1. Autora: Diana Oliveira
Terra, mãe de seios fartos e braços fortes
Recolhes o meu lamento, Seja regada com minhas lágrimas
Me dá a força que gera em tuas entranhas e me faz árvore de raízes profundas
2. Autora: Iêda Dias
A terra estava molhada, molhava o pé, minava água da fonte, vida
mãe chamei, mãe clamei! Mãe me fiz pra mãe entender
os corpos suados, pingados moviam-se em ondas magnéticas
sensuais, exalavam odores panteísticos
ervas, ervas, ERA
cura, curam ATER-RÁ!
Direção Leste - Elemento Fogo
O Leste oferece a possibilidade de determinar e focalizar a ação. A energia criativa e a
vitalidade, a força, o lado masculino, estão em ação no Leste, onde se coloca em prática a
intenção. O elemento é o fogo, e tem a luz e o calor do sol como seu representante e a
precisão do tempo para a realização dos propósitos. O Leste é o lugar mais iluminado, o
lugar do espírito e da busca de visão. É no leste que encontramos a conexão com o mistério
que nós somos e podemos expressar nosso ideal de vida.
Poema do Leste
Autor: Victor
Emergido das entranhas da Terra
Agora sigo para o Leste
Voando como águia.
Em busca do nascer do Sol,
Eu, camelo, serei Leão.
Em busca do fogo sagrado,
196
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Eu, Leão, vencerei o dragão.
Achado o fogo perdido,
Retornarei ao Sul.
Renascerei menino.
Assim poderei transitar
Por todas as direções,
Livre como o ar.
Referências:
ARRUDA, Solange. Arte do Movimento: As descobertas de Rudolf Laban na dança e na
ação humana. São Paulo: Editora Parma, 1988.
CAMÊU, Helza. Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. Rio de Janeiro, Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1977.
COHEN, Bonnie Bainbridge. The mechanics of vocal expression. In: Sensing, feeling, and
action. The experimential anatomy of Body-Mind Centering. Northampton: Contact
Editions, 1993, p. 85-96.
DOCZI, György. O Poder dos Limites: harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura. São Paulo, Ed. Mercuryo, 1990.
DOUGLAS-Klotz, Neil. Sabedoria do Deserto. Rio de Janeiro: Record, 1996.
ELIADE, Mircea. Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: O Sistema Laban/Bartenieff na formação e
pesquisa artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.
___________________. Corpo Com-Texto: dança-teatro na formação de atores. In: “re Vista – Arte e Conhecimento”, set. 2005, Ano 4, nº 4, programa de Pós-Grad. em Artes, IdA,
UnB, Brasília, D.F. p.p, 17-34.
___________________ Técnica Corporal, Tradição e Performance: O Trânsito Intercultural
Na Cena Contemporânea. Projeto para a Seleção pública de projetos de pesquisa nas áreas de Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. EDITAL CNPq nº 50/2006.
KARAFISTAN, Rachel. ‘The Spirits wouldn’t let me be anything else’: Shamanic Dimensions
in Theatre Practice Today. Cambridge University Press, 2003.
LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
_____________ . Dança Educativa Moderna. São Paulo: Ícone, 1990.
LEWIS, Samuel L. Spiritual Dance and Walk: An Introduction to the Dances of Universal
197
Márcia Virgínia Araújo
Peace and Walking Meditations of Samuel Lewis. California, Peace Works, International
Center for the dances of Universal Peace, 1993.
PEIRANO, Marisa G. S. A Favor da Etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992, 1995. (a)
SIOUX, Shemmaho. Good Where We Been, Good Where we’re Going To. Seatle: PeaceWorks
International Center for the Dances, 1999.
198
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A ETNOCENOLOGIA COMO DESÍGNIO DE UM NOVO
CAMINHO PARA A PESQUISA ACADÊMICA - AMPLIAÇÃO DO
MODO E DO LUGAR DE OLHAR A CENA CONTEMPORÂNEA
Miguel de Santa Brigida
As perspectivas racionalistas que predominaram até as primeiras décadas do século
XIX, ainda como herança do positivismo, descartavam o que estava circunscrito na tradição
oral, nas festas populares, nos costumes das comunidades, no cotidiano e em tudo que era
pouco passível de provas. Privilegiavam-se as pesquisas de comprovações e resultados
aceitos pelas ciências humanas.
Ainda é recente no ambiente universitário brasileiro o acolhimento de pesquisas que
conciliam o saber científico com o saber popular, numa abordagem que associa a teoria e a
prática como principal premissa epistemológica. Nesse sentido, vivemos um novo momento na academia, especialmente no âmbito das Artes Cênicas, onde já encontramos programas de pós-graduação que recebem estudos desta natureza, promovendo assim, um avanço
na produção e reflexão dos artistas da cena no Brasil.
Nessa travessia do conhecimento encontramos o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC) que lançou no país a Etnocenologia,
nova vertente das etnociências de caráter essencialmente transdisciplinar, que privilegia a
inteligência do discurso indissociado da fonte que o gerou, abrindo um novo caminho para
a análise dos fenômenos espetaculares.
A proposição etnocenológica ratifica a indissociabilidade entre prática e teoria para a
pesquisa científica, reafirmando a importância do trinômio artista-pesquisador-participante na vivência, na experiência encarnada, em suas escolhas teóricas e nas suas práticas
criativas identificadas com o processo criador. Remarca, também, a importância da academia utilizando-se do seu saber estruturado para junto com a construção do saber popular,
produzir formas e teorias capazes de desvelar a diversidade das práticas espetaculares
contemporâneas, reconhecendo valores e a originalidade deles na produção do conhecimento simbólico.
Nessa direção a Etnocenologia vem apontar para caminhos diferenciados dos fluxos
paradigmáticos vigentes. Se pensarmos no legado grego no qual Método = Meta + Hodos
significa precisamente “o caminho através do qual”, observaremos que seus principais
parâmetros epistemológicos revelam uma postura não etnocêntrica, são mais flexíveis, e
porque não dizer, mais poéticos, apresentando os métodos como perspectiva de multiplicação, trocando Conceitos por Noções, Princípios por Preceitos, e acolhendo outros saberes na abordagem dos fenômenos cenológicos, num desenvolvimento acadêmico-artístico
199
Miguel de Santa Brigida
no qual “a etnocenologia compreende análises interiores que partem dos critérios próprios
de cada cultura estudada e análises exteriores, fundadas sobre as noções e métodos em
uso” (PRADIER, 1996, p.21).
Ao alargar a compreensão e análise dos fenômenos e das práticas espetaculares observamos que:
Ela favorece uma perspectiva integrativa e interacional já que se interessa pelo aspecto
global das manifestações expressivas humanas, incluindo as dimensões somáticas, psíquicas, cognitivas, emocionais e espirituais. O primeiro reflexo da análise etnocenológica será
abordar uma etnometodologia que pense os meios de comentar/analisar/abordar adequadamente o espetáculo de uma outra área cultural (PAVIS, 2003, p.272).
Com esta nascente de etnociência das artes cênicas, a etnocenologia vem promovendo
importantes investigações de fenômenos espetaculares de diferentes áreas da cultura brasileira, trazendo significativas contribuições para a análise da diversidade de nossa
espetacularidade popular expressa em grandes eventos como o Festival de Parintins, o Malê
DeBalê, o Auto do Círio, os Ternos de Reis da Lapinha, o Carnaval carioca, entre outros estudos.
Investigando em especial o carnaval carioca, partimos de uma importante pesquisa realizada em 2002 dentre as maiores festas populares de todo o planeta que o apontou como
“O Maior Espetáculo da Terra”. O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro vem se
constituindo a cada ano em um complexo fenômeno estético e dramático revelando uma
especial interdisciplinaridade em sua criação, marcada pela reunião de diversas linguagens como o teatro, a dança, artes plásticas, circo, vídeo e performance, configurando um
denso e fértil campo para a pesquisa acadêmica.
Da sociologia à antropologia, da etnologia à política, várias foram as áreas de conhecimento que já abordaram o tema das escolas de samba, remarcando a importância cultural desse rico universo da manifestação da cultura carnavalesca no Brasil. Entretanto, a
singularidade espetacular do moderno e luxuoso desfile das escolas de samba carioca
necessitava também de uma análise de sua dimensão artística, de acordo com o seu
redimensionamento que, a cada ano, o consagra como espetáculo cênico hiperbólico vitalizado por seu próprio processo em intercorrência com os novos contextos que promove “o delírio, a confusão, a coesão, a comunhão, a efervescência da festa” (MAFFESOLI,
1985, p.11).
A indicação de Maior Espetáculo da Terra levou em consideração, evidentemente, a sua
dimensão espetacular singular, sua repercussão mundial, o número de pessoas envolvidas
entre público e participantes, seu impacto nas comunidades que o produz e as dimensões
simbólicas e sociais, além de suas projeções midiáticas de alcance internacional.
Este espetáculo reúne ao vivo um público de setenta mil pessoas, somados aos milhões
de espectadores que assistem pela televisão, numa transmissão que contempla mais de
setenta países, além do livre acesso via internet, o que atesta a grande força midiática de
sua espetacularidade em sua recepção pluridimensional mundialmente atrativa.
200
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Ao analisarmos com os parâmetros etnocenológicos o hiperbólico espetáculo das escolas de samba do Rio de Janeiro, imerso no trinômio artista-pesquisador-participante desdobramos importantes aspectos que a nova metodologia apresenta ao acolher objetos desta
natureza. Remarcamos, também, o pesquisador dionisíaco passageiro do carro-naval de
Dionísio na travessia do conhecimento pelas artes e na pesquisa artística, com a vivência no
plano interno e o conhecimento adquirido na prática cênica. O pesquisador que assume e
reafirma a associação do conhecimento científico com o conhecimento artístico como premissa etnocenológica no universo acadêmico, “...que inaugura linhas originais de indagação. Sabe apenas a direção a tomar em busca do desconhecido. Chega a ser banal a pergunta: que seria da ciência sem o aspecto aventuroso da mente, sem uma iniciativa propriamente dionisíaca?” (MAFFESOLI, 1998, p.42).
Remarcamos, porém, que inseparável dessa prática de investigação dionisíaca, caminha a reflexão apolínea em permanente inter-relação. Dionísio será sempre inquietação,
movimento e descoberta nos desígnios etnocenológicos. Mas o sentido abissal profundo
do dionisismo é flexibilizado, e o deus Apolo passa no céu instigando o pesquisador, promovendo o equilíbrio necessário para a abordagem da etnocenologia que busca reconhecer outros tipos de conhecimento.
Ao decompor o universo do espetáculo do samba carioca em sua configuração contemporânea como fazer artístico, suas representações simbólicas e sua estética particular revelada em sua singular espetacularidade, partimos de um dos pilares fundamentais da
etnocenologia, as Práticas e Comportamentos Humanos Espetaculares Organizados (PCHEO)
considerando os seguintes aspectos de seu corpus teórico:
1. Análise das modalidades segundo as quais as práticas e os comportamentos humanos
se inserem em seu contexto sócio-cultural.
2. O estudo dos elementos que constituem os modelos sistêmicos das práticas e dos comportamentos organizados.
3. A abordagem das estratégias cognitivas que sustentam a emergência dos componentes e das práticas.
4. Quanto ao espetacular:
4.1. Não se reduz ao visual.
4.2. Refere-se ao conjunto das modalidades humanas.
4.3. Sublinha o aspecto global das manifestações expressivas humanas, incluindo as
dimensões somáticas, físicas, cognitivas, emocionais e espirituais.
Acolhemos também como eixo da disciplina o sentido e pensamento de ETNO destacando o sentido comunal e a diversidade cultural do universo do samba, CENO com destaque especial para a ampliação do modo e do lugar de olhar a cena, entendendo o sentido
do corpo para além do corpo de seu praticante em comportamento espetacular no seu
espaço de atuação, alargando-o para o sentido do corpo biológico e inter-relacional na
201
Miguel de Santa Brigida
constituição do corpo vivo, imaginário e social, numa articulação do “corporal e
comportamental enquanto interação coletiva necessariamente incorporada nas pessoas
participantes” (BIÃO, 1999, p.18). LOGIA no sentido de justapor o espírito ao aprendizado
adotando uma abordagem fenomenológica, privilegiando aquilo que vivemos no seio desta complexa prática espetacular brasileira, utilizando a vivência e a descrição do fenômeno
como impulso investigador e criador, considerando-a como categoria fundamental por revelar o plano interno do artista-pesquisador-participante, com sua história de vida inserida
nas práticas espetaculares. Reafirmamos a atitude fenomenológica por prescindir do olhar
blindado em conceitos prévios e privilegiar o corpo com todos os seus sentidos na descrição interna do fenômeno.
Ainda como referencial teórico circunscrito pela etnocenologia adotamos a Sociologia
Compreensiva de Michel Maffesoli para analisarmos a força do coletivo que constrói o Maior Espetáculo da Terra. Esta Sociologia da Orgia estabelece importantes conexões com a
prática etnocenológica por valorizar as representações e a demonstração do formismo da
vida social como procedimento metodológico, privilegiando o respeito à complexidade
das representações e suas particularidades, no exercício teórico de revelar suas experiências e compreender as comunidades emocionais e o ser ou estar junto com no fenômeno
carnavalesco carioca. Privilegia também as instituições humanas não apenas como um fenômeno exclusivamente da ordem do social, mas principalmente conseqüência de fatores
emocionais e sensíveis.
Do mesmo modo adotamos como ciência congruente aos parâmetros etnocenológicos
a Antropologia do Imaginário para análise das estruturas e dos significados dos rituais nas
sociedades contemporâneas em suas manifestações populares como as escolas de samba,
privilegiando desta maneira, o fazer artístico e suas dimensões simbólicas, sublinhando o
sentimento, a emoção, o corpo as crenças e as festas como experiências com poder revelador
da ordem ou da desordem nas sociedades. Destacamos também o imaginário como força
do coletivo que se interpõe a todo instante como matriz e motriz da criação espetacular do
samba brasileiro.
Ainda na Antropologia do Imaginário destacamos o coletivo popular cênico do espetáculo do samba, cuja complexidade investigada vem confirmar o trajeto antropológico
proposto por Gilbert Durand, ao observar nesses fenômenos populares a experiência de
vida que os sedimenta no fluir da própria vida e que é enriquecida pelo que vivemos
como uma rica matéria humana que vai se acumulando. Nesse trajeto de contato com a
realidade cultural, vamos nos integrando à ela e esta, por sua vez, se integra em nós
elevando a significação e importância dos fatos culturais.
Esta nova postura adotada como artista-pesquisador-participante ao analisar objetos
desta natureza, ganha uma outra densidade e aprofundamento na pesquisa acadêmica ao
investigarmos a intervenção dos fenômenos carnavalescos nas complexas sociedades contemporâneas com o caminho metodológico que a etnocenologia vem engendrando.
202
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Nesta conjunção, ao analisarmos fenômenos espetaculares hiperbólicos como fato cultural de intensa e constante renovação como o carnaval carioca, a prática etnocenológica
remarca sua importância na defesa do relativismo metodológico como procedimento de
pesquisa, com espaço para livres analogias, aproximação de idéias e conceitos, nas quais
liberdade de construção de narrativas, fora de um método investigativo
epistemologicamente mais rígido, garante uma dinâmica de construção e desconstrução
permanente ao pesquisador de perfil dionisíaco mergulhado na complexidade estética e
na diversidade da espetacularidade popular brasileira. Reafirmamos também, nessa travessia, a importância da autonomia do pensamento dos artistas cênicos que daí resulta ao
pensarem a si mesmo, analisando seus próprios princípios, processos e produtos como
elaboradores de conhecimento imersos na polifonia e polissemia das linguagens cênicas
reveladas na contemporaneidade.
Referências
BIÃO, Armindo e GREINER, Chistine (Orgs). Etnocenologia, textos selecionados. São Paulo:
Annablume, 1999.
_____.Aspectos epistemológicos e metodológicos da etnocenologia: Por uma cenologia
geral. In: Associação Brasileira de Pesquisa em Artes Cênicas. Memória ABRACE I: São Paulo: ABRACE, 2000.
KHUN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dionísio. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985.
_____.O conhecimento comum: Compendio de sociologia compreensiva. São Paulo:
Brasiliense, 1998.
PATRICE. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2003.
PRADIER, Marie Jean. Etnocenologia manifesto. TRANSE. Performance, performáticos e
sociedade. Brasília: UNB, 1996.
_____.Etnocenologia: a carne do espírito. Repertório Teatro & Dança. Salvador. UFBA/SEC.
1998.
SANTA BRIGIDA, Miguel de. O auto do círio: Drama, fé e carnaval em Belém do Pará. Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2003.
_____.O maior espetáculo da terra. O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro
como cena contemporânea na Sapucaí. Tese de Doutorado. Salvador: UFBA, 2006.
SANTOS, Adailton. O estado pré-paradigmático da etnocenologia. In: Cadernos do GIPE-CIT,
nº1, Etnocenologia: A teoria e suas aplicações. PPGAC/UFBA, Salvador, 1998.
203
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
TREINAMENTO PRÉ-EXPRESSIVO, BIOMECÂNICA E
AÇÕES FÍSICAS – UMA ABORDAGEM
À ETNOCENOLOGIA E À ANTROPOLOGIA TEATRAL
PELO LABÔ-ESPETÁCULO.
Murilo Freire
À Sidmar Gianette, pela atenta revisão;
À Virginia Brasil, por tão singulares paciência, carinho, cuidado,
colaboração, parceria e amor que nem mereço; À Vira, Theo e Tatá:
Muito Obrigado.
O grupo Labô-Espetáculo foi criado em 2002, entre experiências realizadas no Brasil e na
França, com o objetivo de desenvolver uma pesquisa prático-teórica sobre a arte de ator e o
fazer teatral, tendo como eixos de ação atividades no âmbito da formação permanente do
atuante, a produção intelectual documentada e a livre criação artística. Todo o trabalho recebendo direta influência da Antropologia Teatral e da Etnocenologia, disciplinas que continuam a
orientar as pesquisas e o direcionamento ético e filosófico do processo e do grupo.
No Brasil, foi realizado um experimento cênico batizado de “Laboratório Espetáculo”, posto que se tratasse de uma demonstração de trabalho sob forma espetacular, acerca do
Método das Ações Físicas (Stanislavski/Grotowski), do Treinamento Pré-Expressivo e da Pesquisa Biomecânica, dirigido e orientado por Murilo Freire, então ator-pesquisador da Cia. A.R.T.Vivant1, estudante na Universidade de Paris-8, ainda vinculado à UFPE, com atuação e demonstração da atriz-pesquisadora Virginia Brasil; no teatro Joaquim Cardozo / Centro Cultural Benfica / IAC – Instituto de Arte Contemporânea / UFPE. Em Paris-8, o amigo e Chargé
d’Élèves da universidade, Bob James Eboumbou, dirige os dois brasileiros visando à formação de um grupo internacional, que trabalhasse segundo as orientações já propostas, chegando a contar com a participação de dez integrantes de seis diferentes nacionalidades.
Nascia o Labo-Spectacle, assim batizado por Bob, em alusão à experiência ocorrida no Brasil
meses antes. Desde 2003 em Recife, o Labô-Espetáculo – definitivamente brasileiro – vem
desenvolvendo suas atividades através de cursos, oficinas, projetos de extensão e pesquisa, promoção e participação a mesas de debates e palestras, criações artísticas e participações em festivais, circuitos, projetos e eventos ligados à produção cultural.
1
O A.R.T.-Vivant – Association pour la Recherche du Théâtre Vivant (Associação pela Pesquisa do Teatro Vivo) era uma trupe do que se convencionou chamar de Teatro
Laboratório, indiretamente ligada à Universidade de Paris-8 Vincennes/Saint-Denis, dirigida pelo espanhol Jorge Lapeña, onde Freire foi de fato iniciado num método
sistemático de treinamento e pesquisa prática no campo da Pré-Expressividade (Barba, 1995), do qual sabia teoricamente apenas, tomando pela primeira vez ciência do
trabalho sobre o Método das Ações Físicas.
205
Murilo Freire
O grupo, buscando desenvolver praticamente o “estudo do comportamento do ser humano, quando ele usa sua presença física e mental numa forma organizada de representação e de acordo com princípios que são diferentes dos usados na vida cotidiana” 2, é conseqüentemente levado ao estudo do próprio Homem em sua totalidade. Pensamos
darwinianamente o ser humano como o resultado natural da evolução de seu corpo: espécie de mamífero que adestrou sua coordenação motora pôs-se de pé e passou a olhar o
mundo de frente, desenvolvendo assim consideravelmente seu cérebro e uma extraordinária capacidade de observação, compreensão e adaptação à natureza – da qual é apenas
parte integrante. Partimos de um incipiente, porém concreto entendimento do funcionamento do corpo em situação de representação social e organizada, que nos fez compreender a dicotomia entre o que chamamos de corpo material (carne e ossos) e o corpo imaterial
(espírito, alma, consciência). Acreditamos, porém, não ser esta a única “divisão” do corpo
humano. O corpo imaterial, ao qual preferimos chamar de consciência para evocar um sentido mais concreto e palpável, constitui, certo, um corpo em si, independente, capaz de
abandonar os limites do corpo material e viajar por outros espaços, ver e vivenciar outras
situações, concretizando-se na suspensão do ar – matéria invisível, mas perceptível, composta por átomos livres. Já o corpo material, este, não constitui uma unidade, mas uma
tríade de funções orgânicas fundamentais sejam elas a física, a racional e a sensitiva, que
atuam em regime de constante correspondência – no sentido delsarteano – uma sobre a
outra. Vejamos: a função física, mais elementar (nem por isso a mais simples), diz respeito ao
corpo periférico, o que age e faz – nervos e músculos; a função racional, diz respeito ao
nosso entendimento, tradução em signos lingüísticos, numéricos, imagéticos, lógicos e
cognitivos dos frutos de nossa faculdade perceptiva – do mundo e de nós mesmos
(propriocepção); a terceira função, sensitiva, essa é mais indomável e diz respeito a tudo
aquilo que definimos como sentimentos, emoções, ID – tudo o que se passa internamente,
com efeitos fisiológicos, cuja razão pura é incapaz de classificar em termos, mas que, no
entanto, sentimos concretamente chegando a compreender a influência sobre nossos aspectos físicos e racionais. Os resultados mais palpáveis dessa terceira função são, sem dúvidas, o pensamento poético, a estética e a arte em suas diversas manifestações: meio pelo
qual tentamos comunicar aquilo que não se pode por em palavras, nem dito com um simples choro, grito, gesto de violência, ou riso, mas através destes. Ora, tais funções – repito:
fundamentais – encontram-se em regime de correspondência mútua, guiando nossos atos,
segundo a necessidade. A consciência (não a razão, como nos costuma fazer pensar os sistemas de crença e científicos predominantes) é, pois, a regente deste processo inter-funcional, como uma presença que nos é manifestada quando há justeza no que realizamos,
ratificando seu sentido, ou como voz inquisidora que condena atos que não engajem toda
2
BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral. Hucitec. Campinas. 1995.
206
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
nossa verdade, por mais que encontremos argumentos plausíveis para justificá-los. Consciência esta que nos faz Humanos e que por sua vez só pode existir num corpo vivo (“e o
verbo se fez carne”), remetendo-nos novamente à unidade do ser. Donde a necessidade de
desenvolvimento técnico de uma musculatura sensível e racionalmente organizada dirigida
pela consciência, ou o Duplo, como diria Artaud. “Somos dois: um pássaro que bica e outro
que observa”3. Buscamos, pois, estudar e desenvolver esta “esquizofrenia”, necessária ao atuante.
Estudamos, pois, a cena, mas não simplesmente da forma como a palavra é comumente
entendida. Nosso conceito refere-se ao próprio sentido da palavra ‘cena’, que, como lembra
Pradier, “é oriunda do grego ‘skenos’ [‘skênê’], em seu sentido arcaico definindo tanto o espaço cênico, quanto o corpo humano, evocando, pois, a ‘dimensão orgânica da atividade simbólica, numa perspectiva universal que transcende às particularidades culturais”4. “Pradier
lembra-nos que a palavra skênê significa tanto corpo quanto o lugar por ele ocupado.”5.
Seguindo lógica, podemos nos referir tanto ao corpo do espaço cênico e suas divisões (cena
x platéia), quanto a uma cena que se passe dentro do próprio corpo do atuante, enquanto
espaço definido em si mesmo, cujos fatores significantes operam em sua categoria
proprioceptiva6. “Skenos é tomado aqui no seu sentido arcaico para evocar o corpo humano
e sua relação dinâmica com a alma”7. Existe também, a noção de cena tal como se é entendida atualmente, como sendo o que se mostra no palco, nas cerimônias religiosas, de magia
ou xamânicas, situações cotidianas, ou na tela: ações, textos, imagens, etc. – matéria poética
e/ou resultado estético. “Na contemporaneidade, este sentido tornou-se dominante”8. Esta
noção amplia ainda mais o sentido epistemológico do termo (skenos), no qual representa
em si um corpo poético. A cena é, então, um espaço (cênico), no qual outro espaço (corpo)
realiza um ato, materializando a existência de um terceiro espaço (poético). Tais conceitos
têm claros reflexos em nossa prática de trabalho no campo da pré-expressividade9, sobre o
qual discorreremos adiante.
Faz-se então necessário que este corpo seja preparado para realizar tal ato. É grande a
sua responsabilidade. Em todas as culturas desenvolveram-se métodos de transmissão,
aculturados e inculturados, visando ao aprimoramento técnico do atuante, todas ressaltando a importância de um corpo capaz de comunicar formal e precisamente, todo o universo
3
4
GROTOWSKI, Jerzy, De la compagnie théâtrale à l’art comme, In, RICHARDS, Thomas. Travailler avec Grotowski sur lês actions physiques. Actes Sud / Académie Expérimentale
des Théâtres. France. 1995.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia, In, GREINER, Christine e BIÃO, Armindo (org.),
Etnocenologia – textos selecionados. Annablume. São Paulo. 1ª ed. 1998.
VASCONCELOS, Everaldo. Etonocenologia e Pesquisa em Artes Cênicas. Revista Engenho.
5
http://www.funesc.pb.gov.br/002_cenicas01.shtml.
Ver: WEISZ, Gabriel. Textura Xamânica do Corpo, In, GREINER, Christine e BIÃO, Armindo (org.), Etnocenologia – textos selecionados. Annablume. São Paulo. 1ª ed.
6
7
8
9
PRADIER, op.cit.
VASCONCELOS, op. cit.
BARBA, op. cit.
207
Murilo Freire
interior e simbólico do personagem, em gesto e voz. Na busca por métodos de preparação
do seu instrumento de trabalho (o corpo), o atuante recorre muitas vezes a técnicas não
necessariamente teatrais de treinamento físico e vocal – yoga, tai-chi, ten-chi, artes-marciais, esportes, dança, circo, canto (lírico ou popular), música, etc. Mas o que o ator está procurando nestas disciplinas? Que vantagens para sua arte serão propiciadas por tais técnicas?
Seguramente benéficas para a saúde do corpo humano e para o processo de auto-conhecimento, como podem tais técnicas ser úteis para que se atinjam um corpo e uma consciência dilatados, tão necessários em cena? No que influenciam para o desenvolvimento da tão
almejada “presença cênica”? Como deve o atuante abordá-las?
Acreditamos que a chave está em desenvolver-se um trabalho no campo da préexpressividade, ou seja, voltado para o processo de preparação, anterior à criação e que
deve ser realizado independentemente desta, no sentido de adquirir uma consciência sempre mais aguçada dos princípios regentes e desenvolvimento operacional de sua arte de
ator10, assumindo o termo proposto por Etienne Decroux, por concordar com a justeza. Mas
isso ainda diz pouco em relação aos questionamentos acima propostos. A problemática
persiste sobre como os atores têm buscado trabalhar seus corpos. O problema não está na
técnica da qual se sirva, ou nos exercícios que possa vir a praticar, mas o que se está treinando através destes. A capoeira, por exemplo, é um exercício bastante completo para
atuantes, se assim o desejarem, pois aí lhes é trabalhado o ritmo, a precisão, a relação com
o parceiro, o improviso... Mas se, ao adquirir todas estas habilidades, o atuante não estiver
preocupado com a aplicação prática destes conhecimentos segundo os princípios que regem a arte da expressão cênica, tornar-se-á certamente um excelente jogador de capoeira,
não um grande ator. Mesmo havendo princípios semelhantes entre a dança, as artes marciais e o teatro, suas aplicações práticas e seus objetivos são diferentes e específicos.
No Labô-Espetáculo, desenvolvemos e aplicamos um treinamento pré-expressivo, físico, plástico e vocal, baseado em técnicas corporais diversas e princípios semelhantes aos
da hata e kundalini yoga, ginástica, acrobacia e circo, artes-marciais, capoeira, dança contemporânea e popular, nunca pela prática pura desses métodos, mas adaptando-os aos
nossos objetivos investigativos e metodológicos. Acerca do trabalho vocal, nossa experiência baseia-se na pesquisa sobre o reconhecimento e controle do funcionamento da coluna
de ar, estudo dos campos vibratórios, dicção, articulação e emissão, ou irradiação, da voz no
espaço. Buscamos – segundo o mesmo pensamento que conduz o trabalho físico e na lógica de que se deva abordar o treinamento vocal como um processo corporal isolado, já que
a voz é produto e resultado do corpo – atingir níveis cada vez mais sutis de precisão técnica
10
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator – Da técnica à representação. Editora das Unicamp. Campinas. 2001.
11
GROTOWSKI, Jerzy, In, O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959-1969 – textos e material de Jerzy Grotowski e Ludwik Falszen com um escrito de Eugenio Barba; curadoria
de Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli com a colaboração de Renata Molinari ; Trad. Berenice Raulino. São Paulo. Perspectiva / SESC; Pontedera, Itália / Fodazione Pontedera Teatro.
2007.
208
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
e de organicidade da voz. O treinamento destina-se à apreensão dos princípios pré-expressivos, ou elementos, segundo a terminologia grotowskiana11, transculturais e recorrentes, que
regem todo trabalho cênico e o bom desenvolvimento da performance ou atuação12. Na
teoria do Labô-Espetáculo, dividimos academicamente os princípios em dois grupos, os
aculturáveis – princípios aplicáveis conscientemente durante o treinamento – e os
inculturantes – forças da natureza que agem sobre nós e o nosso trabalho apesar de nossa
vontade. O primeiro grupo, os aculturáveis, é composto por aqueles que são aplicados voluntariamente ao treinamento (não importando se este é baseado numa técnica aculturada
ou inculturada), de modo a serem absorvidos e compreendidos pelo ator, tornando-se uma
segunda natureza (velho jargão) e reproduzidos, nem sempre conscientemente, ora cada
vez mais precisa e convenientemente, em cena, esta compreendida em seu amplo sentido
epistemológico, findando por recriar artificial e esteticamente a vida. Catalogamos neste
grupo princípios como: a precisão, a fluidez, a variação dinamorítmica, a mudança de direção, o desequilíbrio, o risco, o silêncio, a escuta afetiva (perenzivânia13), o stop (sats14), o
alongamento (forma), a omissão, a tensão, as oposições, a irradiação, a respiração e o olhar.
O segundo grupo, os inculturantes, são aqueles princípios que, independentemente de
nossa vontade, agem sobre a vida, a natureza e a arte. Esse segundo grupo não é tanto
aplicado artificialmente ao treinamento, mas, sobretudo, é a consciência de sua existência
e influência que pode ser aplicada, permitindo que se aja sobre eles, interrompendo ou
potencializando a ação de tais princípios. São assim chamados porque sua influência encontra-se na gênese de toda a Criação, promovendo e interferindo em toda a ordem e fenômenos naturais, em toda a vida e todos os seres pertencentes à natureza, bem como na organização destes em seus respectivos grupos – bandos, cardumes, famílias, sociedades... Promovem o próprio processo de inculturação. Neste grupo catalogamos princípios como: a
linearidade, o círculo e a curva, o jo-ha-kyu, a expansão e retração, o espaço-tempo e a
correspondência. Não trataremos aqui de como nos apropriamos, compreendemos e aplicamos tais princípios, nem de seus significados práticos. A este respeito cabe um novo
trabalho. Ressaltaremos apenas um ponto que consideramos significativo na particularidade de nosso pensamento, relativo às conclusões que chegamos quanto à questão da “dilatação”, a qual difere conceitualmente do tratamento usualmente dado ao termo, geralmente compreendido como um princípio, o qual deve ser trabalhado, em treinamento, de modo
a ser desenvolvido pelo atuante (ou ator-bailarino). Alguns exercícios, de notórios pesquisadores na matéria, chegam a requerer diretamente a aplicação desta faculdade15. Discordamos. Para nós, a dilatação é sim, característica fundamental do trabalho cênico (do corpo
no espaço), donde se pode verificar inclusive o grau de qualidade da chamada (e almejada)
12
BARBA, op. cit.
13
RICHARDS, op. cit.
14
BARBA, op. cit.
15
Ver: FERRACINI, Renato. A Arte de Não Interpretar como Poesia Corpórea do Ator. Campinas. Editora da Unicamp. 2003.
209
Murilo Freire
“presença cênica”, uma vez que ter presença cênica significa, antes, estar presente em seu
próprio corpo (espaço) e consciente da presença deste no espaço (corpo em si). Não se
trata, porém, da qualidade de aplicação direta de um princípio determinado, senão do
resultado de uma junta aplicação de todos os princípios exigidos, a cada novo instante,
provocando um constante estado de alerta e observação, que por sua vez promovem o
estar presente em si mesmo, tendo como conseqüência uma quase involuntária dilatação.
Em termos de princípios, preferimos trocar “dilatação” por “alongamento”, remetendo diretamente ao aspecto físico, material, do trabalho prático, relacionado à forma, estética e
plasticidade, no treinamento e na performance.
Sob o ponto de vista metodológico, o treinamento é realizado através da chamada “via
negativa”16, sendo o espaço para apropriação dos princípios, bem como para o estudo da
ação destes sobre o corpo e a atuação. Propomos um treinamento que denominamos apenas como pré-expressivo, onde o atuante é trabalhado segundo a necessidade imediata de
correção na aplicação dos princípios, ora valorizando aspectos técnicos, ora energéticos do
processo, não sendo feita a distinção, por exemplo, entre treinamento técnico e treinamento
energético17. A esta etapa, o trabalho visa dilatar a consciência do participante e sua atuação
no “meio-cena”18 – as simultâneas relações estabelecidas pelo atuante: consigo mesmo e
seus estados psicofísicos, com o espaço e com o outro, seja seu parceiro de cena ou, sobretudo, o público. O atuante toma conseqüentemente consciência de estar sendo observado,
de ter-se posto voluntariamente nesta condição, sendo levado à necessidade de desenvolver suas faculdades propriceptivas – interoceptivas e exteroceptivas19. Consideramos aqui
as orientações etnocenológicas. O treinamento conduz, pois, a uma consciência dilatada de
si mesmo, de sua relação com o espaço e da percepção do outro acerca de sua ação, de
modo a que o atuante possa desenvolver-se na transmissão precisa e sinestésica (mais que
racional) de sua informação.
No âmbito do trabalho vocal, tal relação com o pensamento etnocenológico se apresenta ainda mais significativo. Podemos atingir resultados significativos, do ponto de vista
metodológico, a partir da noção de corpo e espaço como uma só unidade. Se a voz nasce
nos campos vibratórios do corpo; se o corpo está inserido e é parte constituinte do espaço;
se entre o corpo e os limites físicos do espaço existe uma matéria invisível, porém, concreta, como o plasma de uma célula – o ar; é possível, então, conduzir o trabalho para a obtenção de uma qualidade de vibração tal, que a voz seja propagada em ondas, irradiando desde o corpo até as paredes da sala de espetáculo. O corpo passa a funcionar em Dolby Sound
Surround. Desnecessário falar na influência direta dos trabalhos de Grotowski, Barba e Burnier
16
GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2ª ed. 1976.
17
FERRACINI, op. cit.
18
PICON-VALLIN, Béatrice. L’acteur à l’exercice: des quelques expériences remarquables,
In, Le Training de l’Acteur. Actes Sud-Papiers / Concervatoire National Supérieur d’Art Dramatique. France. 2000.
19
WEISZ, op. cit.
210
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
no nosso. Estamos convencidos de que a voz possa ser treinada ao ponto de tornar-se matéria concreta, palpável. Não fossem pelos resultados obtidos em laboratório, fatos presenciados podem comprová-lo, como ocorrido no XI Encontro Internacional de Teatro Universitário de Besançon (França), onde um notável trabalho vocal, realizado pelo ator suíço Matteo
Capponi, foi descrito da seguinte forma:
“...ele nos ofereceu um dos momentos mais teatralmente mágicos do encontro: atrás de
uma cortina, sobre a qual via-se apenas sua silhueta, Matteo, dizendo seu monólogo, projetava
de tempos em tempos sua voz sobre o tecido, provocando um efeito de ondas como gotas d’água
que caem num lago tranqüilo. Tive (...) a sensação de ouvir uma voz que tinha peso e forma”20
Assim sendo, o treinamento pré-expressivo é antes de tudo uma via de auto-conhecimento, onde, através da aplicação consciente e do estudo da ação dos princípios pré-expressivos, o atuante desenvolve-se e desenvolve sua técnica pessoal, dinamizando suas
energias potenciais, articulando sua sensibilidade no espaço e no tempo da ação dramática, por meio de suas ações físicas e vocais. A esta “via de auto-conhecimento”, no LabôEspetáculo, nos referimos sob o conceito de Pesquisa Biomecânica.
Não concordamos que o termo proposto pelo mestre russo Vsevlod Meyerhold se limite ao simples desenvolvimento de um método específico de treinamento, com exercícios
que de tão característicos chegaram a ser estigmatizados; tão pouco a uma mera concepção estética, cuja razão de ser justifica-se em seu contexto histórico e social. Somos orientados por um sentido filosoficamente mais profundo, no entanto forte esclarecedor sobre o
ponto de vista técnico, da expressão “biomecânica”, a partir de sua apropriação etimológica,
ou seja, o funcionamento da vida em movimento, ou ainda o movimento da vida em funcionamento. Compreendendo como se produz o funcionamento da vida em sua própria cena
(corpo), assim como suas movimentações (variações interiores), torna-se, então, possível
reproduzir o processo vital no corpo do espetáculo (espaço e poesia). A consciência do
princípio de correspondência – inculturante – revela-se crucial neste procedimento. Tal
entendimento não pode se dar teoricamente apenas, senão através de sua vivência, dado
que “saber não é compreender”21. Se pretendermos expressar a vida, será preciso, antes,
compreendê-la e isto significa “dominar o seu funcionamento na prática”22. Eis o conceito
que fundamenta o processo de auto-conhecimento que é materializado através do treinamento pré-expressivo, físico, plástico e vocal do atuante, proposto pelo Labô-Espetáculo.
Nossa pesquisa nos levará, pois, à compreensão do corpo em suas dimensões material (razão, sensação e físico) e imaterial (consciência), possibilitando a operacionalização íntima e
sutil de sua expressão no tempo e no espaço. Se pretendermos expressar o Humano será
preciso compreender o Humano... E que outro Ser Humano estaríamos mais aptos a conhe-
20
21
22
FREIRE, Murilo. Besançon: leçons de théâtre..., In, Coulisses, Presse Universitaire de Franche-Comté/ Théâtre Universitaire de Franche-Comté. Besançon. Nº 27. janvier 2003.
No A.R.T.-Vivant ouvíamos freqüentemente a sentença ser proferida por nosso diretor, Jorge Lapeña.
RICHARDS, op. cit.
211
Murilo Freire
cer que nós mesmos, em nossa totalidade – individual, social e ecológica. Alguns chamarão
de “corpo memória”23
Por fim, nosso trabalho se debruça sobre as Ações Físicas como meio operacional da livre
criação artística do atuante, sustentáculo da expressão cênica, a ação sendo aqui considerada “como unidade de base ‘do texto do ator’”24, no qual reside toda a poesia da arte
dramática, diferentemente do “texto do autor”, que, enquanto arte literária, ainda não é
teatro. Neste nível, desenvolvemos e aplicamos duas metodologias específicas de abordagem ao assunto. Primeiramente pela apropriação de diversos procedimentos neste nível,
via pela qual buscamos atender às aspirações poéticas, simbólicas e estéticas de cada projeto de criação, sendo muitas vezes confundidos num mesmo trabalho – ora em personagens diferentes dentro de uma mesma cena, ora em momentos diferentes de um mesmo
personagem, inclusive numa única cena – procedimentos diversos, regendo-nos pelo objetivo de lograrmos comunicar o que pretendemos da forma que queremos. O segundo
método é realizado através do trabalho sobre as corporeidades animais, partindo da idéia
de que o ser-humano é o único animal que, dada a sua capacidade singular de observação,
manipulação, antecipação e previsão de resultados, donde a consciência que caracteriza
sua espécie, reproduz todos os habitus e comportamentos dos outros animais. Cada atorpesquisador elege um animal sobre o qual irá trabalhar. Em laboratório, após observadas,
estudadas e codificadas as corporeidades do animal, os atores-pesquisadores passam a
reproduzi-las em seus próprios corpos, através de equivalências, tendo como ponto de
partida a respiração do animal escolhido, registrando as alterações sofridas em suas próprias corporeidades humanas. Atingido o domínio técnico desta fase, os atores-pesquisadores retomam, então, suas fisicidades humanas, preservando a corporeidade animal adquirida. Neste momento, há sempre um tipo humano que nos é revelado...
Tais teorias permanecem, no entanto, meras abstrações, se não forem postas à prova e
comprovadas na prática, como buscamos fazer cotidianamente no Labô-Espetáculo. Tão
pouco, pretendemos que sejam verdades absolutas, posto que não existe um único caminho correto a ser seguido, cada um devendo ser capaz de desenvolver sua própria técnica
e teoria. “Estamos apenas começando, a partir do ponto donde outros já chegaram. Não há
nada de original no que fazemos, meros ladrões que somos”25, auto plagiando-nos sempre.
23
GROTOWSKI, 2007. Op. cit.
24
BURNIER, op. cit.
FREIRE, Murilo. Notas do dia 23/11/04: Quanto tempo depois...? Manuscrito.
25
212
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
OS BOIS-BUMBÁS GARANTIDO E CAPRICHOSO:
UMA ABORDAGEM ETNOCENOLÓGICA DO FESTIVAL FOLCLÓRICO DE
PARINTINS
BIRIBA, Ricardo Barreto
Resumo
Este trabalho foi desenvolvido a partir da Tese de Doutorado1 Biriba. Parintins Cidade
Ritual: boi-bumbá, performance e espetacularidade e trata dos processos de transformação ocorridos nos Bois-Bumbás de Parintins, Amazonas. Estes Grupos incorporaram novas
tecnologias desenvolvidas por artistas locais, como recursos cênicos para as suas apresentações, que foram intensificadas com a criação do Festival Folclórico no ano de 1965. Situado na investigação de questões relativas a estudos etnocenológicos sobre a linguagem
cênica dos Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso enquanto fenômenos da cultura amazônica; discute a transculturação, a performance e o ritual enquanto processos dialógicos, entre os valores culturais locais, o imaginário indígena e as novas tecnologias na cena espetacular do Festival Folclórico de Parintins, e, como este interfere na construção da identidade
cultural parintinense; contribui para estudos das formas cênicas, métodos e processos criativos de manifestações da cultura brasileira com perfil étnico. Este trabalho traz também
para o âmbito acadêmico das artes, estudos a partir de análises dos métodos e dos processos criativos e das linguagens que compõem as cenas dessas manifestações com foco de
atenção situado na condição de um espetáculo-ritual-performático e suas relações que se
estabelecem entre o artista, a obra de arte e o público.
Palavras Chave: Etnocenologia, Estudos da Performance, Cultura Amazônica, Boi-Bumbá
1
BIRIBA, Ricardo Biriba. Parintins Cidade Ritual: boi-bumbá, performance e espetacularidade. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas. Salvador : UFBA.
1996
213
Ricardo Barreto Biriba
Ritual Indígena do
Boi Caprichoso 1999, Fotografia de Chisthopher
Pillitz.The Amazon Island
Where Legends come To
Life. Publicada na Revista
Sunes Magazine, England,
March 2000. p. 38-39
A abordagem deste estudo corresponde à história da arte de um povo, no campo das
artes performáticas, como qualidade conceitual, para estabelecer um discurso com as novas linguagens de expressão artística no campo das tradições populares enquanto área de
atuação e ação da arte contemporânea brasileira.
Os princípios de vida na arte e arte na vida de Alan Kaprow3, gênese da Performance Art,
adotava esses princípios como fazer artístico, consciente da sua realidade cotidiana. Desde
já, no boi-bumbá temos uma estrutura extremamente complexa, no ponto de vista da linguagem artística. Diante da condição natural dos brincantes se expressarem e se apresentarem diante de si mesmo e da sua própria realidade, a arte do boi-bumbá trafega no cotidiano quanto no “extra-cotidiano” parintinense, sem que se estabeleça diferenças mais acentuadas nos comportamentos de seus brincantes.
Diante da profusão de conceitos e de teorias que discutem a arte da performance no
universo artístico contemporâneo, nos colocamos como mais uma contribuição para estudos dessa natureza. As questões levantadas aqui nos conduzem às teorias da performance
como campo de conhecimento que acumula uma diversidade de estudos já realizados neste âmbito. Elegemos a peformance para compreender as diferentes maneiras de celebração de uma ação artística, oriunda de uma sociedade que demonstra comportamentos
2
3
(Kaprow, apud COHEN, 1989)
TURNER, Victorr, From Ritual to Theater - The Human Seriousness of Play NY, PAJ Publications, 1982.
214
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
inconstantes e possíveis tendências artísticas culturais, abertas à incorporação de linguagens, estilos, técnicas e materiais na sua tradição popular.
O que é performance? Uma peça teatral? Dançarinos dançando? Um concerto musical? O
que você vê na TV? Circo e carnaval?... (...).4
Essa definição demonstra as inúmeras possibilidades de fenômenos que são objetos da
performance. Turner (1982) salienta ainda que a performance nos fornece recursos valiosos
para o entendimento intercultural.
Foi através da performance, como método de estudos que podemos identificar os significados centrais, os sentidos, os valores e os objetivos da manifestação do Boi-Bumbá,
enfocando a interdisciplinaridade, os fundamentos estéticos, as relações dos brincantes
com o Boi-Bumbá, e os princípios filosóficos que dinamizam esta forma cultural.
Amarildo Teixeira, um dos diretores de alegoria do Boi-Bumbá Garantido expõe seu
ponto de vista quanto às suas relações e os seus sentimentos pessoais e profissionais como
brincante: “Meu sentimento pelo boi-garantido, eu sou o próprio boi, o boi não é aquele de
pano com chifre, o boi é cada um de nós [...]”
Na performance do Boi-Bumbá, o brincante constitui um elemento autônomo e permanente. Os seus gestos, movimentos e expressões, refletem e representam a sua vida cotidiana.
Richard Schechner5, afirma que a performance se encontra no limite entre a vida e a
própria arte, uma vez que a arte tem consciência de si mesmo e que reconhece o salto
entre a realidade e a representação – e que de certo modo qualquer outro tipo de arte
reconhece este salto – uma estrutura complexa formada por diversos níveis:
...Uma pessoa contempla o acontecimento; se contempla a si mesma; se contempla
vivenciando o acontecimento; se contempla vivenciando com outros que estão contemplando o acontecimento e que, quiçá, também se contemplam a si mesmo: estão aí a
performance, os performers, os espectadores; e o espectador dos espectadores; e o ser
autovidente que pode ser performer ou espectador, ou espectador de espectadores.
O mais significativo é perceber o sentimento de quem faz sentidos enquanto interferentes do campo histórico, por sentir que, quem faz está sentindo profundamente a sua
ação. E como diz John Cage (1981): Eu sou uma obra de arte. Ou seja, o artista não está em
uma obra de arte, ele é a obra de arte. Lindolfo Monteverde, criador do Boi-Bumbá Garantido, como poeta, cantador, repentista, artista plástico, pescador e católico, construiu a sua
arte e a viveu todos os dias da sua vida, para cumprir a promessa a São João Batista, como
devoto do santo que te salvou a vida. Os seus esforços se somaram a outros trabalhos (como
roças de mandioca e partes da pescaria) para que no mês de junho não faltasse a condição
necessária, para por o Boi-Bumbá Garantido nas ruas de Parintins.
4
SCHECHNER, Richard. P 191
5
ibd. P 209
215
Ricardo Barreto Biriba
O certo é que a vida se constrói com uma série de performances, Schechener6 deseja a
proliferação de semelhanças: “[...] entre literatura e recital, religião e entretenimento, ritual
e espetáculo...”
O Boi Garantido, hoje, cumpre a tradição recriada em um novo universo, situado entre o
cotidiano e o “extra-cotidiano”, entre o artístico e o não artístico e entre o sagrado e o lúdico,
que passam e se interagem um ao outro com o tempo. Este processo pode ser interpretado como um caminho natural em que os brincantes passam na vida, com amadurecimento
da consciência cultural, que se desenvolve com a prática do Boi-Bumbá, até chegarem a um
constante ritual artístico. Folha de Palmeira, Coroatá7, Inajá, carcaça de boi, pena de aves,
fibras, pau, corda, pano, música, dança, teatro, improvisos, ladainhas, rezas, raio laser, pirotecnia e o essencial, o brincante de corpo e alma presentes, materializados na performance
do boi-bumbá refletem o ritual parintinense.
De acordo com Schechner (1988), vimos que o termo performance amplia sua forma de
entendimento, na medida em que passa a incluir e referenciar o cotidiano da vida, abrangendo as ações das mais diversas que vão desde as ritualizações, o teatro, a dança, as
dramatizações, os afazeres do dia-a-dia e os demais ritos de uma sociedade. Isso nos possibilitou a visualizar Parintins, como um todo performático e ritual movimentado pela festa
do boi-bumbá.
Historicamente, os estudos realizados por Renato Coehn (1989) sobre a linguagem da
performance, relata a sua gênese como arte de ação, na qual aborda os principais fatos e
acontecimentos que desencadearam o surgimento desta linguagem, como termo independente e com formas e características próprias. Considerando a Performance como uma
linguagem cênica, Coehn8, faz uma abordagem antropológica, e conjuga: “o nascimento da
performance, ao próprio ato do homem se fazer representar, a performance é uma arte
cênica, e isso se dá pela institucionalização do código cultural”
Segundo Coehn (1989), a Performance se apóia ainda, numa forma teatral dionisíaca, ao
contrário do teatro clássico. Esta relação situa o seu surgimento oficial com a apresentação
da peça Ubu Rei, em 1896, no Théâtre de L’Oeuvre, em Paris. Essa peça, que rompeu com as
características formais do teatro da época, prenunciou o que iria acontecer no século XX
em relação às manifestações artísticas, alguns anos depois à publicação do manifesto Futurista por Marinetti, (Le Figaro) Le Roi Bombance, no Louvre, em 20 de fevereiro de 1909. Esta
manifestação escandalizou os parisienses pelo que o manifesto propunha: “O incêndio dos
museus e bibliotecas (...) O esplendor do mundo enriqueceu-se com uma nova beleza, a
beleza da velocidade”9.
6
Coroatá – Espécie de aguidá retirado da palmeira do Inajá.
7
Coehn, 1989, p. 41.
Gular. op. cit. 1985 p. 89
8
9
Coenh, 1989 p. 159
216
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
Assim como o movimento futurista foi o responsável pelo processo de transformação
da arte ocidental, chocando, escandalizando a sociedade conservadora da época, pela sua
“anti-estética”, pelo seu conteúdo e pelas suas formas voltadas contras os paradigmas sociais, políticos e culturais vigentes. Estabelecendo um paralelo histórico, a linguagem artística dos grupos de bumbas-meu-boi aterrorizou platéias, comunidades, políticos, autoridades, polícias e a classe burguesa de todas as localidades onde se manifestavam essa forma
artística, inclusive foram proibidas suas apresentações por um longo período em algumas
cidades brasileiras.
A vida social dos brincantes, os seus feitos e conquistas, as necessidades básicas, as
reivindicações para uma melhor qualidade de vida e as críticas ao modelo político, entre
outros acontecimentos do dia-a-dia, incluindo notícias de jornais e de televisão são levadas
à cena do auto do boi, adaptados ao seu tema central e expressos na poesia cantada, nos
textos dramatizados, nas mímicas, nas sátiras e nas danças. Então, a filosofia que rege a
tradição do grupo é posta em prática na cena trazida da vida cotidiana, onde o sentimento
de justiça, hierarquia, respeito aos mais velhos, a sabedoria dos mestres, a educação e os
ensinamentos às crianças, passam a ser elementos que de certa forma não se diferenciam
nos espaços de convivência, seja em casa, nas ruas ou no “curral” dos bois-bumbás.
Entendendo que a linguagem da performance contemporânea ocidental tem como ponto
fundamental, a presença do corpo, como objeto e sujeito da obra de arte e a relação “vidaarte-vida”, num processo de extensão uma da outra. Tanto na performance art quanto no
bumba-meu-boi, vida e arte não se separam. O brincante e o performer estão ligados através
de fazeres artísticos, que identificam suas práticas enquanto uma materialização do corpo
como arte. Suas atuações, além de apresentarem uma realidade vivida, tratam de uma manifestação do espírito em decorrência das suas crenças, seus valores, seus comportamentos e sua história. Coenh, (1989) demonstra como a performance art foi responsável pela
revitalização de formas artísticas das mais diversas qualidades numa releitura para o universo de cada indivíduo ou grupo.
Além de ser uma expressão que trabalha com alto grau de improvisação e criatividade,
tem por característica fortalecer o individualismo do artista. Em contra partida, tenta-se
conduzir o processo criativo de forma conjunta, buscando com esses meios atingir uma
arte humanista. Coehn continua explicando que: “A performance constrói a sua arte a partir
da imagem emocional e estruturas arquetípicas básicas e situações que pertencem ao “inconsciente coletivo” da comunidade”10. O brincante demonstra comportamento de
performer. O brincante do bumba-meu-boi vai além do jogo e da arte para chegar à vida,
para o brincante a vida é mais interessante do que a arte é por isso que o artista do boi não
faz um teatro da vida, faz do teatro vida, uma performance contemporânea de realidades
10
Goldberg, 1996, p. 128
217
Ricardo Barreto Biriba
amazônicas. Para o brincante, o bumba-meu-boi é uma forma de viver a própria vida, como
ressalta um deles: “A gente não pode parar de fazer o boi, ele é a nossa vida, sem ele acabou-se tudo”.
Não queremos dizer que o boi-bumbá se enquadra na categoria da performance nos
moldes europeus, mas gostaríamos de ressaltar que esta forma de expressão de arte contém características performáticas de acordo com sua condição cênica, do seu estado de
lugar e dos sentidos incondicionais de vida deste povo artista.
Poderíamos relacionar esta forma participativa e integrada, entre a arena e a galera dos
bois-bumbás, com a gênese da performance, reconhecidamente o primeiro happening,
catalogado como: 18 Happenings em Seis Partes, que Allan Kaprow apresentou na Reuben
Gallery de Nova York, em outubro de 1959. Fiel em seu pensamento de que o happenig
implicava forçosamente a participação dos espectadores, Kaprow soube preparar os seus
convidados. Segundo conta detalhadamente Roselee Goldberg11:
[...] Tras haber decidido que ya era hora de aumentar la “responsabilidad” del observador,
Kaprow imprimió invitaciones que incluían la afirmación “usted se convertirá en parte de los
happenings; usted los experimentará simultáneamente”. Poco después de este primer anuncio, algunas de las mismas personas que habían sido invitadas recibieron misteriosos sobres
de plástico que contenían trocitos de papel, fotografías, maderas, fragmentos pintados y
figuras recortadas. Éstos también daban idea de que podían esperar: “Hay tres habitaciones
para esta obra, cada una diferente en cuanto ha tamaño y sensación. [...]
A forma integrada entre galera e arena configura um grande espetáculo performático,
vivenciado por trinta e cinco mil brincantes, distribuídos entre a arena e a arquibancada do
Bumbódromo, com uma platéia especial, no máximo de 12 espectadores que atuam como
integrantes do corpo de jurados. Tal como Kaprow, o boi-bumbá confere responsabilidade
ao espectador com objetivos de promover a sua participação em níveis comprometedores
com a qualidade do espetáculo.
A linguagem artística da cena espetacular dos bois-bumbás, como manifestação coletiva, alcança um nível de interação de fatores subjetivos e objetivos, incorporados no curso
da vida de cada um dos brincantes e, logo, manifestada no esplendor do festival: os fatores
objetivos são os sentimentos comuns entre os brincantes de uma mesma agremiação que
usam toda sua força para lograr o título de campeão do Festival; os fatores subjetivos se
referem aos campos dos sentimentos mais íntimos, extravasados de formas diferenciadas,
no corpo e na alma de cada brincante. Seja com o cabelo pintado de vermelho ou azul, na
roupa, na forma de gritar, cantar, sorrir, chorar, cada um do seu jeito, com liberdade, livre
para sentir e agir. Os brincantes não fazem de conta que riem ou que choram, ou que cantam... Cada um é único e verdadeiro.
11
Coehn, 2000 p. 69
218
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A forma desta manifestação enquanto espetáculo de qualidade intermédia corresponde
na sua prática, às teorias da performance contemporânea. Neste sentido, buscamos algumas teorias da performance enquanto linguagem artística, para traçar marcas, que podem
estar associadas às formas artísticas “folclóricas” espetacularizadas, desenvolvidas pelos boisbumbás parintinenses. Contudo, ampliamos nosso método de interpretação inserindo em
nossas análises e discussões, as teorias da performance da “obra folclórica”, nas áreas de
conhecimento da Antropologia e da Sociologia, para entendermos até que ponto os espetáculos dos bois-bumbás são entendidos como ações performáticas.
Teixeira (2000), afirma que a teoria contemporânea da performance nasceu na consagração da metáfora da teatralidade, e que sociologicamente o conceito de performance
que tem prevalecido é o de Gofmam, diz ele:
“A performance é toda a atividade humana que ocorre durante um período marcado pela
presença contínua de um indivíduo ou mais, diante de um conjunto particular de observadores e que sobre estes exerce alguma influência, de acordo com esta definição o sujeito pode
estar envolvido em uma performance sem estar ciente disto.”
Deste ponto de vista, podemos perceber que este conceito, mesmo no campo da Sociologia dá uma conotação bastante abrangente. Ao observarmos a maioria das atividades
humanas, quase sempre recebemos alguma forma de influência procedente da comunicação com o outro. Estar envolvido ou não em uma performance poderá ser uma questão de
percepção, sentida ou não por um suposto cidadão. No campo sociológico, a performance
tem sido considerada uma maneira de dar vida a muitas idéias formais e conceituais, nas
quais se baseiam as criações, no sentido mais amplo da natureza humana. Nesta ótica, todos nós somos performáticos.
Somente a partir da década de setenta, os paradigmas ocidentais da teoria da arte da
era contemporânea, abre-se para as formas conceituais da arte, como um novo caminho,
que passa a ocupar espaços consideráveis nas galerias, teatros e espetáculos de música, de
dança e de poesia. Neste sentido, a abertura conquistada pelas novas formas artísticas, nos
centros conservacionistas derruba conceitos antigos e, oferece ao artista uma gama
diversificada e ampla de opções com materiais, linguagens e experimentos, possibilitando
a criação e atuação como processo contínuo da ação artística.
Os novos métodos artísticos especificamente, a performance, passam então a se desenvolver apoiados numa tríade construtiva inter-relacionada com uma lógica fora dos padrões convencionais, porém estruturada, e, logo aberta à transformação diante do acaso e
do imprevisto que possa surgir. Renato Coehn12 conceitua esta tríade como: “Linguagem
(texto e narrativa), suporte (mídia) e atuação (performance em si).”
219
Ricardo Barreto Biriba
As teorias da Performance art Européia e Norte-Americana definem seus próprios conceitos, afirmando o campo da performance, enquanto práticas artísticas de ações corporais
que vão de encontro aos seus próprios padrões tradicionais. Entretanto, seu princípio
“antiestético” reproduz conceitos e linguagens, próprias das milenares civilizações tribais –
africanas. Estes critérios “antiestéticos” são incorporados no contexto contemporâneo europeu, não somente no campo da performance art, mas em diversas outras formas de atuação
artística, conhecidamente, desde o modernismo com as obras de Picasso e outros cubistas.
A linguagem artística da performance corresponde a estes campos de influência, e também seria a que mais se aproxima da linguagem cênica dos bois-bumbás, pois contém
elementos onde, tanto o performer quanto o brincante se identificam. Um dos elementos
principais trata-se da necessidade imbicada do artista se fazer presente na obra de arte,
enquanto parte integrante desta, princípio número um da performance. Enquanto o
performer busca ao máximo transformar-se em matéria artística viva na sua atuação, no
brincante, esta busca já não é mais necessária, a naturalidade de ser parte da obra está
impregnada no seu corpo, na sua mente e no seu espírito, como diz Piçanã, tripa do Boi
Garantido: “Sou o criador e sou a criatura”. Interpretada por nós como sujeito e objeto da
obra de arte ao mesmo tempo.
Como uma escultura viva manifestada, tanto no brincante quanto no performer, não identificamos em ambos, uma distinção conceitual enquanto artistas atuando e as suas atividades
na vida real, ou seja, estar fazendo arte ou ser ela mesma é tudo o que são. A chave fundamental de suas intenções para com as suas culturas únicas, o performer e o brincante estão intimamente ligados aos seus mundos ordinários como atrativo sedutor deles mesmos.
Poderíamos dizer que a “arte-vida-arte” do brincante de boi-bumbá inserida no seu espetáculo configura um teatro dominado por imagens visuais espetacularizadas, do seu diaa-dia, onde este mesmo brincante funciona como elemento plástico, materializado na
interação corpo-alegoria para compor a obra no espaço da apresentação, determinando o
aspecto “pictórico” do quadro cênico. As alegorias e os brincantes aparecem em uma espécie de quadro vivo, determinado pelo êxtase, marcado pelo esplendor de cada movimento,
na fantasia da “pré-consciência” e da “simplicidade”. A linguagem do boi-bumbá está notavelmente expressa em um mundo “normal” de fenômenos coletivos e estéticos, de valores
próprios, valores da ambiência amazônica onde vive.
Sem a intenção de ser uma arte de vanguarda, nem com a intenção de quebrar a “tradição folclórica”, o aspecto abertamente teatral dos bois-bumbás e a grande escala de aparatos tecnológicos atrelados ao conjunto da sua obra artística, indicam sobretudo uma nova
direção para o “folclore” amazônico. Entretanto, a utilização de fatos da história, lendas e
mitos conferem um papel significativo nestas “novas” formas de representações espetaculares.
Um dos fatores primordiais de interferência artística que valorizou a cena performática
nos bois-bumbás, além dos aparatos tecnológicos, foi a influência do carnaval carioca – já
220
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
citada anteriormente. Essa influência está voltada para as formas alegóricas e o esplendor
da fantasia que os brincantes usam. O mestre Jair Mendes que viveu e trabalhou nos barracões das Escolas de samba do Rio de Janeiro foi quem levou para Parintins estes conhecimentos. Segundo Jair, em entrevista para este trabalho nos diz que quando retornou a
Parintins depois de longo período trabalhando na Escola de Samba do Salgueiro, o único
espaço que encontrou para desenvolver sua arte, foi o Boi-bumbá.
Não queremos dizer com isso que o boi-bumbá se transformou em um carnaval de
influência carioca. De acordo com as nossas observações, as semelhanças com o carnaval
carioca estão voltadas para as imagens que se veiculam na TV, devido ao esplendor das
fantasias e alegorias que atuam na arena do Bumbódromo. Pois, a maioria do povo brasileiro vê o carnaval carioca, a única referência como espetáculo dessa qualidade. As diferenças
entre estas duas manifestações são muito evidentes enquanto forma, conteúdo e linguagem artística: Uma delas é que o boi-bumbá trata-se de um espetáculo com roteiro
estruturado, que se desenrola numa arena, onde são montadas estruturas cenográficas para
a performance dos brincantes, que se apresenta para um corpo de jurados específicos. Já o
carnaval carioca é um desfile de alegorias e de fantasias, com um enredo pré-estabelecido,
que se apresenta para um público espectador, e, que também pode ser visto como uma
ação performática, devido às suas características próprias, de não representação de algo, e
sim de apresentação de si mesmo – princípio número dois da performance.
Os Bois-Bumbás Garantido e Caprichoso entre outros aspectos, diríamos que se assemelham conceitualmente, com as mais antigas formas de carnaval, como acontecia na Idade Média, no Renascimento, em algumas cidades do mundo e incluindo, muitas do Brasil,
nos tempos de hoje.
Segundo Bajtin13, em seus estudos sobre a obra de François Rabelais, nos diz que:
Las formas teatrales del espectáculo de la edad media se asemejan en lo esencial a los
carnavales populares, de los que forman parte en cierta medida. Sin embargo el núcleo de
esta cultura, es decir, el carnaval non es tampoco la forma puramente artística del espectáculo
teatral, y, en general non pertenece al dominio del arte. Está situado en la frontera entre el
arte y la vida.
A festa do boi-bumbá como os atos performáticos, ademais com características carnavalescas no sentido circunstancial da vida, ao mesmo tempo, real e ideal, está situado na
fronteira entre a vida e a arte, princípio número três da performance.
O jogo performático e a lucidez das imagens da festa dos bois-bumbás, os acontecimentos cotidianos e todos os elementos que integram a festa, adquirem materialidade
própria, plenitude e manifestações de particularidades coletivas e individuais (livres dos
vínculos impostos por sentidos estreitos e dogmáticos), e, reveladas em uma atmosfera de
liberdade que suscita a riqueza da diversidade cultural da Amazônia.
13
Bajtin (1974, p. 13)
221
Ricardo Barreto Biriba
As características dos espetáculos dos bois-bumbás ocupam propriedades formais do
corpo do brincante, no espaço-tempo que implicam uma forma cênica, como uma maneira
de conhecer a si mesmo através do culto ao ícone maior da festa, o índio. As cenas indígenas são apresentadas dentro de um contexto renovado, que apesar da forma teatral
estruturada, a sensação energética que emana da ação dos brincantes, se estende aos “quatro
cantos” do Bumbódromo, como um cerimonial festivo e contagiante, onde todos se integram numa só “oração”. Este ato espetacular funciona como um meio de liberar a
potencialidade criativa concentrada, em forma de arte e ação auto-expressiva, com efeitos
que estimulam a auto-estima do parintinense.
Segundo Jorge Glusberg14, a performance vivencia o ritualístico, como purificação e
sacralização de uma prática; o histórico, como relações ancestrais e sociais; o semiológico,
enquanto mutabilidade dos códigos e mobilidade dos significados e o artístico, como imaginário e purificação da arte através do corpo.
A espetacularidade nos bois-bumbás vivencia o desenvolvimento corporal em comunhão com a plástica dos objetos, da forma, do espaço, do movimento, da dança, da luz e da
cor, integrados ao tempo e à música, num só momento.
O tema escolhido e a forma adotada remontam um passado histórico que se faz presente nas relações sociais atuais, no desenvolvimento do construto de uma postura política
além de um encontro com a identidade cultural.
Considerando a performance do boi-bumbá uma “obra aberta”, suscetível a várias formas de interpretação, não sendo jamais passível de uma única forma de entendimento,
seus signos culturais passam a criar uma variedade de significados perceptíveis, favorecendo estímulos e reações que se processam entre os brincantes. Estas trocas simbólicas estão
apoiadas na produção da cultura material e imaterial do grupo e da comunidade, no qual se
situam. Neste contexto, o brincante, consciente do seu caráter pessoal-cultural e subjetivo,
como cidadão político e integrado, desenvolve processos de inter-relação cultural de forma ritualística, teatral, política e festiva, configurando as qualidades performáticas deste
gênero artístico.
A apresentação dos bois-bumbás parintinense ampliou seus campos de atuação para
as diversas outras novas linguagens técnicas, como parte de toda a criação do espetáculo.
Esta interdisciplinaridade de linguagens representa novas maneiras de sacudir a um público enfastiado pelo marasmo social, que até a criação do Festival, no ano de 1965, pairava
sobre a Ilha de Tupinambarana. Este fato, além de promover um aquecimento nas concepções tradicionais da arte do boi-bumbá e por suposto formais quanto ao seu gênero “folclórico”, levanta a cidade e acorda-a para sua arte, que transforma-se além de tudo, numa das
formas de sobrevivência econômica do município.
14
Glusberg, 1987 p. 60
222
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A liberdade organizada deste conjunto “folclórico” renovado produz uma acumulação de
ações, onde o brincante, tanto da arena quanto da galera torna-se sujeito singular e plural na
sua arte, ao ser objetivamente livre para refletir sobre si e sobre o todo, situado em uma
temporalização comum. As ações que se desenvolvem entre estes brincantes, os levam a um
encontro do tempo presente com as suas memórias coletivas, como expressão de uma obra
de arte integral. Isso porque são perceptíveis, a partir de conteúdos que são levados à cena
da arena e que exploram uma temática arraigada na história étnica amazônica.
Devemos pensar que o trabalho artístico é uma das mais complexas unidades de informação que dispõe o homem. Está evidente que é a mais individual e em Parintins, possivelmente possa ser a mais coletiva, demonstrando constantemente o interesse que a sociedade tem por comunicar-se. O artista, portanto, pode ser visto como um instrumento capaz
de mudar este coletivo.
Os espetáculos dos bois-bumbás demonstram a presença ativa do homem no mundo e
mais precisamente do homem amazônico, uma presença viva no brincante, enquanto homem e enquanto artista, que se empenha para que seja posta à mostra sua identidade de
forma consciente e analítica.
Temos que levar em conta que, paralelamente aos fatos que ocorrem em nosso planeta,
temos uma Amazônia ameaçada e destroçada impiedosamente pela mão do invasor. A arte
do boi-bumbá segue uma trajetória que altera substancialmente sua visão de mundo, advertindo os perigos que o desmatamento, a poluição dos rios e o esgotamento dos recursos naturais em nível acelerado, têm causado ao caboclo, ao índio e à espécie humana.
Tal como ocorre nos bois-bumbás, os movimentos da arte contemporânea ocidental,
anunciam um novo momento político, comprometido em denunciar as transformações sociais e as desigualdades do mundo atual.
A prática da performance ocidental pode ser observada por dois pontos de vista: por
um lado, alude ao descobrimento das possibilidades do corpo, enquanto matéria ligada
aos objetos que compõe a ação artística e por outro, em um evidente desejo de servir
como manifesto e como projeção política, com finalidades de promover uma nova transformação social.
Para os bois-bumbás, as possibilidades do corpo do brincante, sua integração com objetos diversos relacionados a seu cotidiano e a utilização de meios artísticos, como manifestação política configura-se como uma readaptação às novas realidades da nova era e das
transformações ocorridas ao longo dos tempos. A arte dos bois-bumbás adotou com característica estilística, a interdisciplinaridade de linguagens artísticas e da arte corporal, como
um dos principais veículos de comunicação, para os estratos sociais dessa natureza se manifestarem politicamente, seja através de poemas, personagens, mímica e dança seja instigando ao público a tomar parte de suas arremetidas quando em suas atuações públicas.
12
Bajtin (1974, p. 13)
223
Ricardo Barreto Biriba
Ressaltamos que, os movimentos de vanguarda como Dadá, Futurismo, Happening,
Performance e Arte de Ação inauguraram uma forma de arte que contraria os padrões
impostos pelo domínio burguês. O artista passou a adotar o corpo como matéria integrada
à obra e, inseparavelmente, contextualizada ao momento da ação. Lembramos que esta
forma artística já se manifestava em outras etnias, africanas, indígenas – na vida cotidiana –
alguns séculos antes do manifesto Futurista de Marinetti.
Podemos situar os bois-bumbás parintinense, como uma ampliação dos mecanismos
populares tradicionais (resistência cultural, formal, estética e técnica), a partir do Festival
Folclórico, que convertidos em uma arte de ação incomum, se transformou no acontecimento cultural mais significativo de Parintins. O espetáculo parintinense como um todo –
desde as ruas até o Bumbódromo estimulou o campo emotivo e a consciência coletiva
parintinense. Com isso, os fatos sociais, os valores culturais e os costumes regionais do cotidiano Amazônico, funcionaram nestes brincantes, como estímulos psicológicos contínuos,
que trabalhados artisticamente, os conduziram ao espetáculo das suas próprias vidas.
Vida que tem se transformado num espetáculo de performances, que abre o corpo
coletivo da comunidade parintinense, para a liberação dos sentimentos mais arraigados da
sua cultura, um ritual que celebra o viver e o pensar de um povo e denuncia as formas
especulativas de exploração da Amazônia.
Referências:
BAJTIN, Mijail. La Cultura Popular en la Edad Media y Renacimiento. Barcelona : Ed. Barral, 1971.
CAGE, John. Para los Pájaros. Monte Ávila Editoras. Venezuela 1981
COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo. Perspectiva, 1987.
GOLDBERG, Roselee. Performance Art. Trad. Hugo Mariani. Barcelona : ed. Destino, 1996.
___________. Performances: l’art de action. Paris: Ed. Thames & Hudson 2001.
GULAR, Ferreira. Etapas da arte contemporânea. São Paulo. Nobel, 1985.
SCHECHNER, Richard . El Teatro Ambientalista. México. Árbol Editorial, (1973) 1988.
____________. News, Sex, and Performance Theory, In: Innovation / Renovation P 191 (s/data)
TEIXEIRA, João Gabriel L. C. (Org.) Performáticos, performance e sociedade. Brasília: Universidade de Brasília, 1996
TURNER, Victor. El Proceso Ritual: Estructura y antiestructura. Madrid : Ed. Taurus, 1988.
224
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
COORDENAÇÃO
Antonia Pereira, Armindo Bião, Lúcia Lobato, Nadja Miranda e Sérgio Farias
COMISSÃO CIENTÍFICA
Bernard Müller (EHESS, FR), Carlos Alba (Instituto Politécnico de Leiria, Portugal), Chérif
Khaznadar (Maison des Cultures du Monde, FR), Eliene Benício Amâncio Costa (UFBA,
BR), Elizabeth Firmino Pereira (Alcalá de Henares, ES), Idelette Muzart-Fonseca dos
Santos (Paris 10 Nanterre, FR), Inês Marocco (UFRGS, BR), Isa Maria Faria Trigo (UNEB,
BR), Jean-Marie Pradier (Paris 8 Saint Denis, FR), Jerusa Pires Ferreira (PUC SP, BR),
João de Jesús Paes Loureiro (UFPA, BR), Jorge das Graças Veloso (FTB Dulcina/ UNB,
BR), Oswald Barroso (UFC, BR), Paulo Filipe Monteiro (U. Nova de Lisboa, PT), Rafael
Murillo Selva (Honduras)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Adailton Santos, Alexandra Gouvêa Dumas, Célia Conceição Sacramento Gomes, Eduardo
Cavalcanti Bastos, Luiz Cláudio Cajaíba, Makários Maia Barbosa, Maria de Fátima Barretto
Bastos e Sarah Roberta Oliveira Carneiro
227
A ETNOCENOLOGIA
Trata-se da etnociência das artes do espetáculo e dos comportamentos e práticas espetaculares humanos organizados, que busca articular teoria e prática, arte e ciência, criação e crítica, tradição e contemporaneidade, experimentação e profissionalismo.
Sua proposição aconteceu em 1995, na sede da UNESCO, em Paris, França e, desde então, já motivou colóquios internacionais no México, na França e no Brasil, tendo como pólos
principais as Universidades de Paris 8 Saint Denis, França e Federal da Bahia, em Salvador,
Bahia, Brasil.
O V Colóquio abriga reunião do projeto ARCUS, reunindo universidades francesas e latino-americanas, e consolidará a posição de liderança da Bahia, no âmbito da produção acadêmica internacional, incluindo a publicação dos anais, que reunirá material de referência
para a continuidade das pesquisas.
O PÚBLICO ALVO
Pesquisadores de artes do espetáculo e de áreas de conhecimento afins
OS OBJETIVOS
•
•
•
•
Promover o intercâmbio entre grupos de pesquisa da área das artes do espetáculo;
Fazer o estado da arte e divulgar a produção artística e científica em etnocenologia;
Fortalecer a rede internacional de pesquisa em artes do espetáculo e consolidar os
projetos de intercâmbio acadêmico entre o Brasil e outros países;
Abrigar experimentações teórico-práticas e criativo-críticas em etnocenologia.
O TEMÁRIO
OBJETOS, REFERENCIAIS, MÉTODOS E RESULTADOS
•
•
•
•
•
Os objetos – áreas de conhecimento, interfaces, limites e fronteiras;
Os referenciais teóricos – artes e ciências;
Os métodos - criação e crítica, teoria e prática;
Os resultados – produção bibliográfica, técnica e artística;
A etnocenologia, as humanidades e as artes, perspectivas transdisciplinares.
228
V Colóquio Internacional de Etnocenologia
A PROGRAMAÇÃO
Dia 25.08
14 às 16 – Recepção dos participantes
16h – Instalação do Colóquio: Apresentação dos convidados e do temário
18h – Intervalo para jantar
19h/ 21h – Vivência Malê Debalê – na sede do grupo cultural em Itapuã (lançamento de
publicações)
Dia 26.08
9h – Reflexão sobre a vivência da noite anterior
10h30 - Intervalo
11h – Formação dos grupos de “crítica e avaliação”, com coordenador e expositores
convidados
12h – Intervalo para almoço
14h30h – Reuniões dos grupos de “crítica e avaliação”
18h – Intervalo para jantar
19h/ 21h – Formação dos grupos de “vivência e criação”, por afinidades e competências
nas diversas modalidades das artes do espetáculo, a partir de uma primeira
dinâmica grupal com todos os participantes
Dia 27.08
9h – Reuniões dos grupos de “crítica e avaliação”
10h30 - Intervalo
11h – Reuniões dos Grupos de “crítica e avaliação”
12h - Intervalo
14h30 – Apresentação das comunicações selecionadas, problematizadas a partir das
discussões sobre o temário nos grupos “crítica e avaliação”
18h – Intervalo
19h/ 21h – Reuniões dos grupos de “vivência e criação”
Dia 28.08
9h – Apresentação em plenário dos resultados dos grupos de “crítica e avaliação”
10h30 - Intervalo
11h – Apresentação em plenário dos resultados dos grupos de “crítica e avaliação”
12h - Intervalo
14h30 – Reuniões e ensaios dos grupos de “vivência e criação”
18h – Intervalo
19h/ 21h – Serenata performance dos participantes na Lagoa do Abaeté em noite de
Lua Cheia
Dia 29.08 (programação complementar opcional)
A partir das 9h – Saída dos participantes do CTL/ Itapuã, Salvador BA, BR, e reunião
das comissões responsáveis pelo evento, para avaliação, definição de local e temário
do VI Colóquio; Reuniões de Coordenação do Projeto ARCUS e do GT Etnocenologia,
da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas - ABRACE.
229
A METODOLOGIA
O V Colóquio Internacional de Etnocenologia reunirá, de 25 a 29 de agosto de 2007, no
Centro de Treinamento de Líderes de Itapuã, suas diversas comissões (coordenação, científica e organizadora), pesquisadores convidados e pesquisadores inscritos, a partir da proposição de trabalhos escritos e/ ou de apresentações orais (com os devidos resumos escritos), relativos ao temário.
A Coordenação do evento e a Comissão Científica, a partir da análise das proposições inscritas e aceitas e da confirmação de participação dos diversos convidados, definirá
em qual dos grupos de trabalho de “crítica e avaliação” cada participante deverá atuar ou,
eventualmente, ser incluído numa sessão especial de comunicações - apresentadas
prioritariamente pelos convidados, além de definir os coordenadores e expositores da cada
um desses grupos.
Para todos os participantes interessados, será proposta, na noite do dia 26, uma dinâmica com foco na criação coletiva, a partir das vocações, experiências e expressões artísticas de cada um dos presentes, que poderão se organizar em grupos de “vivência e criação”, que terão a noite do dia 27 e a tarde do dia 28, para preparar uma performance artística, a ser compartilhada com todos os participantes do evento na noite de lua cheia do
último dia, 28 de agosto, na Lagoa do Abaeté.
O Colóquio prevê, portanto, dois tipos de grupos de trabalho, além de duas vivências
artísticas: uma na noite de abertura, no sábado, dia 25, com artistas da comunidade, próxima ao local de realização do evento, tendo seus participantes como espectadores privilegiados e em situação de observadores participantes; e, outra, na noite de encerramento, na
terça-feira dia 28, com os artistas pesquisadores integrados nos grupos de “vivência e criação”, apresentando-se para o conjunto dos participantes do colóquio e outros possíveis espectadores, externos ao evento, que se encontrem eventualmente no local de sua realização.
Assim, a proposição da etnocenologia, de articulação de prática e teoria e de arte e
ciência, acontecerá com a realização de momentos de avaliação, reflexão crítica e criatividade,
alternados com momentos de criação, vivência artística e reflexividade.
230
Realização:
ARCUS
UPX
UNIVERSITE PARIS X NANTERRE
7
Brésil & Chili
ARCUS - Actions en Régions de Coopération Universitaire et Scientifique
Université Paris X, porteur du sous - projet 7 : Langues, cultures, discours
GIPE-CIT
fapesb
UNIVERSIDADE DO
ESTADO DA BAHIA - UNEB
PPGAC
Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas
Fundação de Amparo
à pesquisa do Estado da Bahia