la littérature brésilienne contemporaine - Numéro 2
Transcrição
la littérature brésilienne contemporaine - Numéro 2
Numéro 2 – Automne 2012 Iberic@l dossier monographique : La littérature brésilienne contemporaine coord. Maria Graciete Besse José Leonardo Tonus Regina Dalcastagnè Comité de rédaction - Directeur de publication : Sadi Lakhdari, PR, directeur de l’UFR Etudes ibériques et latino-américaines, université Paris-Sorbonne - Rédactrice en chef : Nancy Berthier, PR, université Paris-Sorbonne, directrice du CRIMIC EA 2561 - Secrétaire de rédaction : Corinne Cristini, MC université Paris-Sorbonne - Comité de rédaction : Maria Araujo (MC Paris-Sorbonne), Adelaïde de Chatellus (MC Paris-Sorbonne), Irina Enache (doctorante Paris-Sorbonne), Véronique Pugibet (MC Paris-Sorbonne), Nadia Tahir (MC université de Caen) Comité scientifique international - Federico Alvarez Arregui (UNAM, Mexique) - Gema Areta Marigó (Universidad de Sevilla, Espagne) - Jordi Castellanos Vila (Universitat Autònoma de Barcelona) - Elsa Cross (UNAM, México, Mexique) - Josefina Cuesta (Universidad de Salamanca, Espagne) - Regina Dalcastagne (Universidade de Brasilia, Brésil) - Pere Gabriel Sirvent (Universitat Autònoma de Barcelona, Espagne) - Enric Gallen Miret (Universitat Pompeu Fabra, Espagne) - Eduardo González Calleja (Universidad Carlos III de Madrid, Espagne) - José Manuel González Herrán (Universidad de Santiago de Compostela, Espagne) - Isabel Pires de Lima (Universidade de Porto, Portugal) - Maria Rosa Lojo (USAL, Conicet, Argentine) - Esperanza López Parada (Universidad Complutense de Madrid, Espagne) - Consuelo Naranjo Orovio (Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid, Espagne) - Antonio Niño (Universidad Complutense de Madrid, Espagne) - Joan Oleza Simó (Universidad de Valencia, Espagne) - Vicente Sánchez Biosca (Universidad de Valencia, Espagne) - Julia Tuñón (INAH, Mexique) - Veronica Zarate Toscano (Instituto Mora de Mexico, Mexique) Cet ouvrage est conçu pour être imprimé en recto-verso sur feuilles aux formats A4 et Letter. Réalisation : Arts Négatifs http://www.arts-negatifs.com Rédaction : Iberical http://iberical.paris-sorbonne.fr Édition : Crimic http://crimic.paris-sorbonne.fr Sommaire Sommaire -IDossier monographique « La littérature brésilienne contemporaine » coordonné par Maria Graciete Besse (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561), José Leonardo Tonus (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561) et Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília, Brésil) Présentation 009 Marges et marginalité – Margens e Marginalidade Um território contestado : literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais Un territoire contesté : littérature brésilienne et les nouvelles voix sociales Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília) 013 A trilogia do refugo humano: o imaginário abjeto de Ana Paula Maia 019 La trilogie du déchet humain : l’imaginaire abjecte d’Ana Paula Maia Ricardo Araújo Barberena (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul –PUCRS) (Auto)biografias urbanas : percursos possíveis pela literatura marginal (Auto)biographies urbaines : parcours possibles de la littérature marginale Laeticia Jensen Eble (Universidade de Brasília) 027 Le champ littéraire au féminin – O campo literário no feminin Campo Literário e Identidades de Gênero: Diálogos (im)possíveis entre Editora Malagueta e Elvira Vigna 037 Champ littéraire, identité et genre : (im)possibles dialogues entre la Maison d’Edition Malagueta et Elvira Vigna Virgínia Maria Vasconcelos Leal (Universidade de Brasília) Escolhas inclusivas?A personagem na pena das escritoras brasileiras/paranaenses contemporâneas 051 Choisir l’inclusion? La femme sous la plume des écrivaines brésiliennes contemporaines du Paraná Lúcia Osana Zolin (Universidade Estadual de Maringá) « Não existe lugar como a nossa casa », ou, o retorno de Ponciá Vicêncio « Il n’y a pas de place comme à la maison », ou le retour de Ponciá Vicêncio Claire Williams (University of Oxford) 059 3 Iberic@l - Numéro 2 Identités brisées – Identidades estilhaçadas A contemporaneidade in extremis : desolação e violência nos romances Onze e As iniciais de Bernardo Carvalho La contemporanéité in extremis : désolation et violence dans les romans Onze et As iniciais de Bernardo Carvalho Paulo C. Thomaz (Universidade de Brasília). Como vai a família?As reconfigurações da instituição familiar no imaginário do romance brasileiro contemporâneo Comment va la famille? Les reconfigurations de l’institution familiale dans l’imaginaire du roman brésilien contemporain Anderson Luís Nunes da Mata (Universidade de Brasília). 071 077 O relato da (des)afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 Le récit sur la (dés)affiliation et le roman brésilien des années 1980 José Leonardo Tonus (Université Paris-Sorbonne/CRIMIC EA 2561) 087 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX L’immigrant allemand dans le roman brésilien de la deuxième moitié du XX° siècle Maria Isabel Edom Pires ( Universidade de Brasília) 097 - II Articles (Varia) Genette, l’autre de Borges Julien Roger (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561) 109 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès (Barcelone) Corinne Cristini (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561) 119 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 : la recomposition symbolique de l’empire hispanique dans l’Espagne post-impériale David Marcilhacy (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561) 135 - III Documents Entrevista Ariadna Pujol (20/01/2012) Véronique Pugibet (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA 2561) 4 154 Sommaire - IV Comptes rendus Nancy Berthier et Vicente Sánchez-Biosca (coord.), Retóricas del miedo. Imágenes de la guerra civil española, Madrid, Casa de Velázquez, 2012 Nadia Tahir (Université de Caen) Giuliana Di Febo, Ritos de guerra y de victoria en la España franquista, Valencia, PUV, 2012 Nancy Berthier (Université Paris-Sorbonne Paris IV, CRIMIC EA2561) 174 177 5 Iberic@l - Numéro 2 6 La littérature brésilienne contemporaine -IDossier monographique « La littérature brésilienne contemporaine » 7 Iberic@l - Numéro 2 8 Apresentação Apresentação José Leonardo Tonus, Maria Graciete Besse e Regina Dalcastagnè Espaço onde se constroem e se validam representações do mundo social, a literatura constitui igualmente um dos principais terrenos de reprodução e perpetuação de estereótipos e preconceitos, muitas vezes camuflados no pretenso realismo das obras. Cientes disso, diferentes grupos identitários têm reivindicado, cada vez mais, lugar e voz nos espaços de enunciação de discursos, acentuando desta maneira a chamada crise na representação literária. No momento em que se agudiza a consciência de que o criador é socialmente situado, e de que tudo o que ele(a) produz traz as marcas dessa circunstância, a legitimidade de suas representações tornou-se passível de questionamento. Instalada a dúvida, abriramse na contemporaneidade ranhuras em um sistema em geral bastante uníssono e refratário à presença de grupos sociais diferenciados, sejam eles constituídos por autores(as) ou por suas personagens. São essas vozes, que se encontram nas margens do campo literário, essas vozes cuja legitimidade para produzir (ou mesmo ser objeto da) literatura é permanentemente posta em questão, que tensionam, com a sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário. Os textos aqui apresentados são resultado do colóquio A Literatura Brasileira Contemporânea, realizado na Université de Paris-Sorbonne em janeiro de 2012. Ao reunir pesquisadores de diferentes instituições internacionais, o colóquio tinha como intenção questionar alguns dos problemas considerados relevantes no interior do conjunto literário brasileiro contemporâneo, especialmente no que diz respeito à presença, ao silenciamento e às formas de representação destes grupos sociais diferenciados. Neste sentido, ele marcava uma continuidade dos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília e pelo Grupo de Estudos Lusófonos do CRIMIC (Centre de Recherches Interdisciplinaires sur les Mondes Ibériques Contemporains ) da Université de Paris-Sorbonne acerca das relações e imbricações entre o fazer literário e o mundo social. A literatura brasileira contemporânea é heterogênea e de difícil definição. Ainda assim, algumas tendências são claras em seu interior. Ao lado de um conjunto majoritário de obras que se mantêm presas à ambientação e às preocupações mais tradicionais da narrativa no país – isto é, assuntos da esfera privada, envolvendo personagens de classe média, brancas e frequentemente intelectualizadas –, há um foco renovado nas periferias e na marginalidade, reforçado pela visibilidade que o cinema nacional tem dado a essas questões. Mas há, também, um crescimento (talvez impulsionado pelos estudos de gênero) na presença de autoras mulheres, que trazem consigo temáticas e problemas novos para a literatura. Ao lado disso, como não poderia deixar de ser, ganham destaque obras que marcam o momento de ruptura de identidades – de gênero, nacionais, afetivas, familiares etc. Daí a divisão deste dossiê em três partes: “Margens e marginalidades”, “O campo literário no feminino” e “Identidades estilhaçadas”. Na primeira parte se encontram os textos que problematizam a produção das margens. Regina Dalcastagnè, em “Um território constestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais”, põe em questão os valores utilizados para se pensar a literatura, indagando a quem eles servem e o que eles, sistematicamente, vêm excluindo. A partir de uma avaliação sobre o campo literário brasileiro recente, a ensaista propõe uma reflexão mais aprofundada e atenta tanto sobre a produção vinda da periferia e de grupos marginalizados quanto da recepção crítica desses textos. É essa, justamente, a preocupação de Ricardo Barberena em “A trilogia do homem comum: a narrativa brutal de Ana Paula Maia”, que se volta à escrita das margens para pensar, sem preconceitos nem condescendência, a construção de personagens e a reconstrução literária do vivido em ambientes de violência e de pobreza. Já Laeticia Jensen Eble, no artigo “(Auto)biografias urbanas: percursos possíveis pela literatura marginal”, se desloca em direção à 9 Iberic@l - Numéro 2 produção literária de autores da periferia urbana inseridos no movimento hip-hop. O foco principal do texto são as letras de rap, que, poeticamente, dão conta de uma outra realidade brasileira, mas a análise se detém ainda nas formulações críticas de seus representantes, ampliando, assim, o alcance da discussão. Consagrada à escrita produzida por mulheres e às questões de gênero, a segunda parte do dossiê problematiza o feminino tendo por base uma epistemologia antiessencializante que propõe uma radical diferença da mulher, no sentido derrideano do termo, isto é, fora da lógica dicotômica que marcou durante séculos o falogocentrismo ocidental. Os três estudos aqui apresentados se inscrevem no que Adrienne Rich denominava, em 1984, como uma “política da localização” necessária para desconstruir as fronteiras normativas e questionar as experiências da opressão a partir da perspectiva do gênero, da classe e da raça. Assim, Virginia Leal retoma as propostas teóricas de Judith Butler e Teresa de Lauretis, para examinar os “diálogos (im)possíveis entre Editora Malagueta e Elvira Vigna”, sublinhando a importância dos novos lugares de legitimação que promovem a temática lésbica, considerada durante muito tempo como marginal. Na esteira dos potenciais teóricos que exploraram a possibilidade de um entendimento mais amplo das relações entre os sistemas de gênero e a heterossexualidade normativa, as obras destas autoras interrogam a diferença sexual enquanto ideologia geralmente inquestionada, o que implica uma naturalização da própria opressão. Tanto o projecto político e militante da Editora Malagueta que, a partir de 2008, publica obras “de lésbicas para lésbicas”, como a escrita “falsamente” policial de Elvira Vigna, editada pela Companhia das Letras, demonstram, na perspectiva de Virginia Leal, a arbitrariedade das normas hegemônicas e repensam o caráter essencialista das categorias homem/mulher, promovendo um descentramento identitário que põe em causa a própria noção de gênero, construindo novos lugares de enunciação. Em “Escolhas inclusivas? A personagem na pena das escritoras brasileiras/ paranaenses contemporâneas”, Lúcia Zolin considera um outro campo cultural da produção feminina, geograficamente situado, resgatando a escrita de autoras periféricas para desenhar uma cartografia exaustiva de práticas discursivas singulares, tendo em conta a noção de representação proposta por Pierre Bourdieu. Em seu exame minucioso de um corpus abundante e representativo, a ensaista se apoia na metodologia desenvolvida por Regina Dalcastagnè para delinear o perfil da personagem do romance brasileiro contemporâneo entre 1990 e 2004, o que lhe permite elaborar, a partir das obras consideradas, questões relacionadas com o gênero, a orientação sexual, a cor, a etnia e a classe social, pondo em evidência as opções estéticas e ideológicas das escritoras paranaenses contemporâneas que rompem com o silenciamento subalterno e promovem sucessivos deslocamentos em relação às vozes dominantes, pertencentes a homens brancos, heterossexuais e de classe média. Por seu lado, Claire Williams aborda em “Não existe lugar como a nossa casa, ou, o retorno de Ponciá Vicêncio”, a obra de Conceição Evaristo, representando outra forma de marginalidade ilustrada pelas mulheres negras, invisíveis e silenciosas, apesar de sua importância na sociedade brasileira. Baseando-se na novela Ponciá Vicêncio, de 2003, a estudiosa analisa as implicações do percuso disfórico de uma negra que migra da roça para a cidade grande e sonha possuir uma casa própria, cuja simbologia é complexa. O tema da viagem, as dificuldades de adaptação, os processos de subjectivação e a denúncia da condição dos negros constituem alguns dos aspectos postos em evidência nesta obra que equaciona a identidade dos afrobrasileiros marginalizados. Encontramos assim nestes três estudos a imbricação de algumas modalidades de “localização” que se cruzam e interligam, convergindo no questionamento das fronteiras epistêmicas abertas sobre novas formas de pensar e agir, que o leitor é convidado a repensar. O debate sobre as novas formas de pensar e agir prossegue na terceira e última deste dossiê que interroga o colapso das identidades na contemporaneidade. No Artigo “A contemporaneidade in extremis : desolação e violência nos romances Onze e As iniciais de Bernardo Carvalho”, Paulo Thomaz propõe uma reflexão sobre a possibilidade da literatura brasileira contemporânea ainda conseguir pensar o mundo fora das convenções. É neste sentido que o ensaista lê a obra de Bernardo Carvalho e analisa 10 Apresentação a presença da lógica do paradoxo nos romances Onze e As iniciais, elemento articulador, segundo ele, de uma experiência agônica do mundo contemporâneo. A subversão das convenções constitui, igualmente, o ponto de partida do estudo de Anderson Luís Nunes da Mata, “Como vai a família? As reconfigurações da instituição familiar no imaginário do romance brasileiro contemporâneo”. Em seu texto, o ensaista observa as transformações dos modos de representação da família brasileira nas narrativas contemporâneas, e, em particular, após o abandono dos modelos alegóricos. Segundo Anderson da Mata, a literatura contemporânea tende a privilegiar novas modalidades representacionais, calcadas na constituição de comunidades mínimas, domésticas, atadas pelo afeto ou pelas experiências compartilhadas. A discussão sobre a família prossegue, com outro enfoque, em “O relato da [desa] filiação e o romance brasileiro da década de 1980” de José Leonardo Tonus que questiona a presença da temática da filiação na ficção brasileira pós-ditatorial e nos chamados relatos de ou sobre a imigração. Mais do que o desejo de contrução, o que está em jogo nestes romances é a constatação de uma fratura que se manifesta, segundo o ensaista, pela impossibilidade de exumação e de conservação das memórias individual e coletiva. O imigrante face à contemporaneidade constitui o último trabalho deste dossiê consagrado à literatura brasileira contemporânea. A partir da noção de “acervo”, Maria Isabel Edom Pires debate, em “O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX”, a permanência dos paradimas representacionais na constituição da figura do imigrante alemão na literatura brasileira cujos relatos formam um ato, não propriamente inaugural, mas de inventário de experiências do desajuste, do insulamento e do estilhaçamento identitário. Os organizadores Paris-Brasília, Setembro de 2012 11 Iberic@l - Numéro 2 12 Um território contestado Um território contestado: literatura brasileira contemporânea e as novas vozes sociais Regina Dalcastagnè Resumo: Desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação da identidade nacional até agora, a literatura brasileira é um espaço em disputa. Afinal, está em jogo a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo. Hoje, cada vez mais, autores e críticos se movimentam na cena literária em busca de espaço – e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala. Daí os ruídos e o desconforto causados pela presença de novas vozes, “não autorizadas”; pela abertura de novas abordagens e enquadramentos para se pensar a literatura; ou, ainda, pelo debate da especificidade do literário, em relação a outros modos de discurso, e das questões éticas suscitadas por esta especificidade. Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea, grupos marginalizados. Résumé : Depuis l’époque où elle était considérée comme un instrument d’affirmation de l’identité nationale jusqu’à nos jours, la littérature brésilienne est un territoire ouvert à la discussion. Après tout, c’est la possibilité de parler de soi et du monde dans lequel on se trouve qui est ici en jeu. De nos jours, les auteurs et les critiques se déplacent, de plus en plus, sur la scène littéraire à la recherche d’un espace et d’un pouvoir – le pouvoir de parler avec légitimité ou de légitimer celui qui parle. D’où les dissonances et l’inconfort provoqués par la présence de nouvelles voix « non autorisées » ; par la mise en place de nouvelles approches et des cadres de réflexion pour penser la littérature ; ou encore, par le débat sur la spécificité du « littéraire » par rapport à d›autres modes de discours, et sur les questions éthiques soulevées par cette spécificité. Mots-clefs : littérature brésilienne contemporaine, groupes marginalisés. Desde os tempos em que era entendida como instrumento de afirmação da identidade nacional até agora, quando diferentes grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, a literatura brasileira é um território contestado. Muito além de estilos ou escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele. Hoje, cada vez mais, autores e críticos se movimentam na cena literária em busca de espaço – e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala. Daí os ruídos e o desconforto causados pela presença de novas vozes, vozes “não autorizadas”; pela abertura de novas abordagens e enquadramentos para se pensar a literatura; ou, ainda, pelo debate da especificidade do literário, em relação a outros modos de discurso, e das questões éticas suscitadas por esta especificidade. É difícil pensar a literatura brasileira contemporânea sem movimentar um conjunto de problemas, que podem parecer apaziguados, mas que se revelam em toda a sua extensão cada vez que algo sai de seu lugar. Isso porque todo espaço é um espaço em disputa, seja ele inscrito no mapa social, ou constituído numa narrativa. Daí o estabelecimento das hierarquias, às vezes tão mais violentas quanto mais discretas consigam parecer : quem pode passar por esta rua, quem entra neste shopping, quem escreve literatura, quem deve se contentar em fazer testemunho. A não concordância com as regras implica avançar sobre o 13 Iberic@l - Numéro 2 campo alheio, o que gera tensão e conflito, quase sempre muito bem disfarçados. Por isso a necessidade de se refletir sobre como a literatura brasileira contemporânea, e os estudos literários, se situam dentro desse jogo de forças, observando o modo como se elabora (ou não se elabora, contribuindo para o disfarce) a tensão resultante do embate entre os que não estão dispostos a ficar em seu “devido lugar” e aqueles que querem manter seu espaço descontaminado. Para isso é preciso dizer, em primeiro lugar, que o campo literário brasileiro ainda é extremamente homogêneo. Sem dúvida, houve uma ampliação de espaços de publicação, seja nas grandes editoras comerciais, seja a partir de pequenas casas editoriais, em edições pagas, blogs, sites etc. Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da mesma forma. Afinal, publicar um livro não transforma ninguém em escritor, ou seja, alguém que está nas livrarias, nas resenhas de jornais e revistas, nas listas dos premiados dos concursos literários, nos programas das disciplinas, nas prateleiras das bibliotecas. Basta observar quem são os autores que estão contemplados em vários dos itens citados, como são parecidos entre si, como pertencem a uma mesma classe social, quando não tem as mesmas profissões, vivem nas mesmas cidades, tem a mesma cor, o mesmo sexo... Só para citar alguns números, em todos os principais prêmios literários brasileiros (Portugal Telecom, Jabuti, Machado de Assis, São Paulo de Literatura, Passo Fundo Zaffari & Bourbon), entre os anos de 2006 e 2011, foram premiados 29 autores homens e apenas uma mulher (na categoria estreante, do Prêmio São Paulo de Literatura)1. Outra pesquisa, mais extensa, coordenada por mim na Universidade de Brasília, mostra que de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a homogeneidade racial : 93,9% dos autores são brancos. Mais de 60% deles vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quase todos estão em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso : os meios jornalístico e acadêmico2. Por isso, a entrada em cena de autores (ou autoras) que destoam desse perfil causa desconforto quase imediato. Pensem no senhor que conserta sua geladeira, no rapaz que corta seu cabelo, na sua empregada doméstica – pessoas que certamente têm muitas histórias para contar. Agora colem o retrato deles na orelha de um livro, coloquem seus nomes em uma bela capa, pensem neles como escritores. A imagem não combina, simplesmente porque não é esse o retrato que estamos acostumados a ver, não é esse o retrato que eles estão acostumados a ver, não é esse o retrato que muitos defensores da Língua e da Literatura (tudo com L maiúsculo, é claro) querem ver. Afinal, nos dizem eles, essas pessoas tem pouca educação formal, pouco domínio da língua portuguesa, pouca experiência de leitura, pouco tempo para se dedicar à escrita. E, ainda assim, alguns deles escrevem e publicam e tanto insistem que acabam atraindo nossa atenção, porque, como diz o rapper Emicida, “uma frase bonita escrita com a grafia errada continua bonita3”. Mas não é fácil aceitar isso. Afinal, o domínio da norma culta serve como fator de exclusão e há quem se beneficie com isso. Aqueles que valorizam a si próprios por saberem usar a norma culta da língua não têm interesse em desvalorizar essa vantagem, conquistada, às vezes, com muito esforço. Não é raro que, em sala de aula, algum aluno se refira à Carolina Maria de Jesus, por exemplo, como “escritora semianalfabeta”, como se alguém capaz de escrever livros com a força e a beleza de Quarto de 1. Foram contabilizados apenas os primeiros colocados nas categorias principais de cada prêmio. (No caso do Prêmio São Paulo de Literatura, uma vez que são excludentes entre si, foram consideradas como principais tanto a categoria “livro do ano” quanto a “autor estreante”.) Mas as proporções não seriam muito diferentes, caso fossem incluídos segundos e terceiros lugares ou as categorias parciais (“melhor romance”, “melhor livro de contos” etc.). 2. Ver DALCASTAGNÈ, Regina, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo : 1990-2004”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005, p. 13-71. 3. Emicidia, Mensagem publicada em perfil pessoal do Twitter (@emicida), 21 jun. de 2011, Disponível em : http://twitter. com/#!/emicida/status/83202871079870464, Acesso em : 21 jun. 2011. 14 Um território contestado despejo ou Diário de Bitita fosse ser analfabeto só por escapar, vez ou outra, daquilo que é determinado pelo Vocabulário ortográfico da Academia Brasileira de Letras. Pensem no quanto é grande o desejo de escrever para que essas pessoas se submetam a isso – a fazer o que “não lhes cabe”, aquilo para o que “não foram talhadas”. Imaginem o constante desconforto de se querer escritor, ou escritora, em um meio que lhe diz o tempo inteiro que isso é “muita pretensão”. Daí as suas obras serem marcadas, desde que surgem, por uma espécie de tensão, que se evidencia, especialmente, pela necessidade de se contrapor a representações já fixadas na tradição literária e, ao mesmo tempo, de reafirmar a legitimidade de sua própria construção. E isso aparece seja no interior da narrativa : “É preciso conhecer a fome para descrevê-la”, dizia Carolina Maria de Jesus4; seja em prefácios, como os de Ferréz, que defende a importância de deixar de ser um retrato feito pelos outros e assumir a construção da própria imagem5; ou mesmo em manifestos, como o de Sérgio Vaz, que diz que “a arte que liberta não pode vir da mão que escraviza6”; e há ainda as apresentações dos livros, as orelhas e os textos da quarta de capa que reforçam isso, explorando a ideia do lugar de fala do escritor. E então começa um outro problema, o nosso problema como pesquisadores de literatura. Ao estudar um escritor (ou uma escritora) nessa situação – uma Conceição Evaristo no início de carreira, por exemplo, mulher, negra, pobre, moradora da periferia de Belo Horizonte, ex-empregada doméstica – precisamos transferir para sua obra nossa própria legitimidade como estudiosos. Sem isso, não conseguimos trazê-la para dentro do universo acadêmico, e se ela não estiver legitimada enquanto objeto de estudo, um mestrando, por exemplo, não terá como inclui-la em sua dissertação. É o contrário do que acontece quando trabalhamos com um autor consagrado, um Guimarães Rosa, para ficarmos com outro exemplo de Minas Gerais. Nesse caso, é o objeto de análise que nos confere importância como pesquisadores. É ele quem nos assegura um espaço no mundo acadêmico. Em suma, para acolhermos um autor/autora dissonante, temos de fazer um investimento – o que tem seus custos. É um investimento simbólico diante de nossos pares, ou seja, outros pesquisadores reconhecidos, que podem discordar radicalmente de nossa valoração dessa obra, e por isso nos enquadrar em nichos menos valorizados dentro da academia (em vez de estudiosos literários, passamos a ser vistos como “aquelas feministas”, “aquele pessoal dos estudos culturais”, “aquele grupo que faz sociologia da literatura”). E isso se repete, sem parar, em outros espaços, ou entre outros agentes do campo literário : em meio a uma reunião de pauta na editoria de um jornal; ao lado de outros jurados em um concurso literário; junto a colegas que selecionam livros para o vestibular, para constar da bibliografia de um concurso, para serem comprados pelo Ministério da Educação, para serem lidos pela turma do terceiro ano de alguma escola. Voltando ao terreno das pesquisas – um espaço importante para conferir legitimidade a uma obra ou a um autor, uma vez que são elas que alimentam o processo da educação superior, que, por sua vez, forma, ininterruptamente, novos agentes do campo literário –, após decidir correr o risco com determinado autor, temos um novo problema : como abordar a obra? Bem antes de optar por quaisquer das abordagens teóricas e metodológicas possíveis, é preciso decidir por dois caminhos : podemos desconsiderar o julgamento de valor estético sobre a obra e analisá-la a partir de sua especificidade, sem hierarquizá-la dentro de códigos ou convenções dominantes, ou, ao contrário, usar as convenções estéticas mais arraigadas no campo literário para referendar essa obra dissonante, mostrando que ela poderia, sim, fazer parte do conjunto de produções culturais e artísticas consagradas na sociedade, desde que olhada sem preconceito. 4. Jesus, Carolina Maria de, Quarto de despejo, Rio de Janeiro, 10. ed., Francisco Alves, 1983 [1960], p. 27. 5. Ferréz (dir.), Literatura marginal : talentos da escrita periférica, Rio de Janeiro, Agir, 2005, p. 9. 6. Ver Vaz, Sérgio, “Manifesto da antropofagia periférica”, Disponível em : <http://colecionadordepedras.blogspot. com/2007/10/manifesto-da-antropofagia-perifrica.html>. 15 Iberic@l - Numéro 2 São, ambos, procedimentos legítimos, embora este último incorra em algumas dificuldades: em primeiro lugar, a necessidade permanente de se fazer todo um arrazoado a cada análise de uma obra para referendá-la. Ou seja, são páginas e páginas para dizer “isto é literatura”, antes de começar a discutir a obra – o que não é, absolutamente, exigido na análise de um autor melhor situado no campo literário (quer dizer, homem, branco, de classe média, morador do Rio de Janeiro e São Paulo, publicado por editoras mais centrais etc.). Com isso, mantém-se, de algum modo, inalterada a hierarquia dentro do campo literário, criando entraves à sua democratização. A necessidade de justificar a qualidade estética da obra também pode ser um empecilho para inclui-la dentro de uma discussão mais geral sobre aspectos considerados relevantes para serem analisados : a elaboração do espaço em diferentes narrativas, a construção do tempo, do narrador, das personagens etc. Parar a discussão para justificar a presença de um ou outro autor é contraproducente. Talvez por isso Carolina Maria de Jesus não entre em estudos literários sobre a representação do espaço urbano contemporâneo, por exemplo, embora tenha nos descrito com detalhes e poesia algumas das ruas de São Paulo. Da mesma forma que ela não figura nos estudos feministas sobre a maternidade, apesar dessa questão impregnar toda a sua obra. O problema é que mesmo quem estuda autores que estão à margem do campo literário brasileiro, muitas vezes insiste em fazê-lo de modo isolado, discutindoos no âmbito das margens – com isso, não estabelecemos a fricção necessária entre representações literárias provenientes de diferentes espaços sociais. E, assim, deixamos de observar a tensão entre essas construções, abandonando, ao mesmo tempo, a possibilidade de tornar mais completo o quadro sobre a literatura brasileira contemporânea. Tomar a obra de uma Carolina Maria de Jesus e mostrar como ela pode ser altamente avaliada com base nos critérios de julgamento estético mais tradicionais pode ser eficaz para forçar algumas margens do campo. Mas incorre numa armadilha. Acabamos por referendar estes critérios, aceitá-los em sua pretensa universalidade – e ficamos em posição pior para dar o passo seguinte, que é questionar esses mesmos parâmetros de julgamento estético, que são, eles próprios, reflexo de exclusões históricas. E faço aqui um parêntesis para dar um exemplo de outro campo, o político7: no movimento sufragista, um argumento em favor do voto feminino assinalava que as mulheres serviam ao Estado na qualidade de mães (e até podiam morrer no parto, como os homens podiam morrer no campo de batalha). Um discurso de forte apelo na época, que contribuiu para a vitória do movimento, mas que fez com que as mulheres se integrassem à política como ocupantes de um nicho específico e, na verdade, subalterno : um nicho que as mantinha presas à esfera doméstica8. Ou seja, a opção por utilizar um facilitador no embate político, apelando para argumentos que se fundavam no senso comum e evitando questionar pressupostos nocivos ou errôneos, contribuiu para a conquista de um direito, mas gerou dificuldades para avanços futuros. Por isso, talvez seja mais produtivo percorrer o primeiro caminho – que é também o mais difícil –, desconsiderando os modelos de valoração estética nascidos da apreciação das “grandes obras” e partindo para um questionamento do nosso conceito de literatura. Afinal, a definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros, o que significa que determinadas produções estão excluídas de antemão. São essas vozes, que se encontram nas margens do campo literário, essas vozes cuja legitimidade para produzir literatura é permanentemente posta em questão, que tensionam, com a sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário. É preciso aproveitar esse momento para refletir sobre nossos critérios de valoração, entender de onde eles vêm, por que se mantém de pé, a que e a quem servem... Afinal, o significado do texto literário – bem como da própria crítica que a ele fazemos – 7. Devo a lembrança deste paralelo a Luis Felipe Miguel. 8. Ver Phillips, Anne, Democracy and difference, University Park, The Pennsylvania State University Press, 1993, p. 107. 16 Um território contestado se estabelece num fluxo em que tradições são seguidas, quebradas ou reconquistadas e as formas de interpretação e apropriação do que se fala permanecem em aberto. Ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e da hierarquização social, deixando de lado suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório. 17 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Dalcastagnè, Regina, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo : 1990-2004”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005, p. 13-71. Emicida, Mensagem publicada em perfil pessoal do Twitter (@emicida), 21 jun. de 2011. Disponível em: http://twitter.com/#!/emicida/status/83202871079870464, Acesso em: 21 jun. 2011. Ferréz (dir.), Literatura marginal talentos da escrita periférica, Rio de Janeiro, Agir, 2005. Jesus, Carolina Maria de, Quarto de despejo, Rio de Janeiro, 10. ed., Francisco Alves, 1983 [1960]. Phillips, Anne, Democracy and difference, University Park, The Pennsylvania State University Press, 1993. Vaz, Sérgio, “Manifesto da antropofagia periférica”, Disponível em: <http://colecionadordepedras. blogspot.com/2007/10/manifesto-da-antropofagia-perifrica.html>, Acesso em : 10 fev. 2012. 18 A trilogia do refugo humano A trilogia do refugo humano: o imaginário abjeto de Ana Paula Maia Ricardo Araújo Barberena Resumo: A trilogia de Ana Paula Maia, composta por Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, O trabalho sujo dos outros e Carvão animal, descreve cruelmente um grupo de personagens, situados num espaço caracterizado pela subalternidade, humilhação e exclusão social. Através de uma escritura pulp, Ana Paula Maia apresenta uma série de imagens abjetas que tematizam uma polpa de sangue, bichos, violência e dejetos. Alijados do status quo, esses habitantes dos subterrâneos da nossa sociedade, enquanto seres-refugo, desperdiçam as suas vidas fazendo o trabalho sujo para-os-outros. Brutalizadas e coisificadas, essas identidades marginais divertem-se pendurando porcos em ganchos ou contemplando os cães dilacerando-se. Esses homens-de-rinha esperam, sob um calor sufocante do subúrbio, a parte carnosa do real que está urdida sob a égide do resto mutilado do cotidiano: os pedaços dos corpos, dos porcos, dos cães, das esperanças. Palavras-chave: Literatura Pulp, Identidade, Alteridade, Literatura Contemporânea. Résumé : La trilogie de Ana Paula Maia, composée des romans Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, O trabalho sujo dos outros et Carvão animal, décrit, avec cruauté, un groupe de personnages situés dans une région caractérisée par la subalternité, l’humiliation et l’exclusion sociale. A travers une écriture pulp, Maia présente dans ses livres une succession d’images abjectes qui mettent en scène le sang, les animaux, la violence et les déchets. Loin du status quo et complètement rejetées par la société, ces personnages vivent dans les souterrains des villes et gaspillent leurs vies à faire le sale boulot pourles-autres. Brutalisées et objectivées, ces identités marginales s’amusent à suspendre des porcs sur des crochets ou à regarder des chiens se battre entre eux. Dans les banlieues étouffantes, ces hommes-decombat attendent la partie charnue du réel, tissée à partir des restes mutilés du quotidien: les morceaux de corps, de porcs, de chiens et d’espoir. Mots-clés : Littérature Pulp, Identité, Altérité, Littérature Contemporaine. Epígrafes-mordentes “Deve-se entrar em si armado até os dentes” (Paul Valéry) “Até os meus dentes me mordem” (frase de uma redação de supletivo que eu corrigi... não sei precisar a data e o autor. Apenas a sua força lírica que atravessa o pátio da minha memória) “No fim tudo o que resta são os dentes” (Ana Paula Maia) Desconforto. Talvez seja essa a melhor palavra para definir metonimicamente a novela Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, de Ana Paula Maia. Ao longo dos doze capítulos, inicialmente 19 Iberic@l - Numéro 2 publicados na internet, esse folhetim pulp apresenta a brutalidade abjeta de um cotidiano cruel e sujo que não suporta espaços de lirismo e redenção. Sob o inóspito calor dos abatedouros do subúrbio carioca, Edgar Wilson e Gerson penduram porcos em ganchos enquanto esperam que as rinhas de cães comecem para que possam ter um “verdadeiro” momento de divertimento. Os dois seres-besta se comportam como máquinas desumanizadas que dividem o seu dia em dois momentos pontuais: matar os porcos e ver os cães se matarem. O único divertimento está transformado em rito-de-morte no qual o dilaceramento dos animais acaba se metaforizando como uma triste paródia da própria mundanidade subalterna e nadificada. Nas mandíbulas dos cachorros, sublima-se um ato de mastigar a pedregosa miséria que não permite sonhar com melhores dias. Esses dois brutamontes, que pouco falam e pouco sentem, convertem-se em refugos humanos que esperam muito pouco da vida. Quanto ao ambiente do frigorífero, torna-se bastante explícita a simbologia do porco enquanto animal que vive na sujeira e nunca olha para cima. E é justamente na construção dessa alteridade animal que surge um terrível paralelismo identitário. Afinal, como os porcos, os dois personagens vivem no lixo e numa área onde as táticas de amnésia social são presentificadas através do não reconhecimento dos valores daqueles que transitam na periferia. Acostumados com o esquelético colchão e com a rala comida no prato, esses habitantes de uma identidade nacional clandestina têm poucas forças para olhar para cima na busca de saída reparadora, epifânica e salvacionista. Aos seus olhos resta apenas o triste espetáculo de uma polpa de sangue, tripas e excremento. A vulgarização da morte é percebida em diferentes momentos da novela, mas é no episódio do “resgate” do rim da irmã que a violência assume contornos nauseantes. Ao “reconquistar” o seu rim, Gerson não terá nenhum constrangimento em esfaquear a sua irmã, mas tal atitude será insuficiente porque o seu pai distraído não perceberá que cometeu um pequeno engano: – Eu não tô nada bem – diz Gerson preocupado. – Meu mijo ta secando. – E o teu rim que tava com tua irmã? Tá onde? – Deixei no congelador até achar a porra de um médico que o colocasse no lugar e meu pai fritou ele com cebolas e comeu enquanto assistia ao jogo Ipiranga X Uberlândia com mais dois amigos. – Eles comeram o teu rim? – É o que to dizendo. Chego em casa tá lá o velho fedido barrigudo comendo o meu rim com cebolas e tomando cerveja. Achei melhor não dizer nada. Eles pensaram que era fígado de boi. O velho é nojento, você sabe1. Essa cena absurdista exemplifica a animalização humana no tocante à perda absoluta de afetos, pois o destrinchar dos porcos não se mostra distante das lacerações e profanações do corpo humano. Rasgar a carne da irmã é imprescindível. Digerir o rim do filho (e da filha) com cebolas é um mero descuido. O desossar dos porcos, dos cães e das pessoas estabelece uma perigosa vertigem na qual as lascas mutiladas se intercambiam sem que haja uma hierarquização entre os pedaços-do-humano e os pedaços-do-animal. Essa massa carnosa desafia a própria centralidade logocêntrica, teatralizando-se uma sombria circularidade do sacrifício das rações de carne-viva: os cadáveres são jogados aos cães, os porcos são lançados aos cães, os cães são arremessados aos cães, os porcos digerem os restos dos restos, os restos humanos devorados pelos porcos, pelos cães e pelo pai. É essa deformidade digestiva que marca essa comunidade distópica de bichos humanos, bichos escrotos (porcos) e bichos bárbaros (cães de rinha). Ao naturalizar a violência, a novela se articula através de uma escritura excessiva que hiperboliza uma retórica do sangue e das tripas na qual imagens ignóbeis são fetichizadas como uma forma de linguagem carnavalizada. A aberração – ou o (a)normal – se transforma em norma de conduta 1. Maia, Ana Paula, Entre rinha de cachorros e cães abatidos, Rio de Janeiro, Record, 2009, p. 55. 20 A trilogia do refugo humano num ambiente onde não restam mais separações entre a razão e a brutalidade. Fica apenas uma pasta de fígados, rins, tripas, porcos, pessoas. Segundo Beatriz Resende, essa polpa de carne moída é representada por intermédio de uma textualidade aderente: « Do folhetim traz um grude, um arrebatamento especial, e é pulp no sentido em que o cinema Tarantino é pulp. O volume de sangue circulando é de similar nível2 ». Cabe lembrar que o conceito de “pulp fiction” é derivado das pulp magazines dos Estados Unidos da primeira década do século XX, assim denominadas pelo baixo custo do papel (produzido a partir de polpa de celulose) em que elas eram impressas. Além disso, as pulp magazines, fonte de entretenimento que provia todo o tipo de narrativa, incluindo Faroeste, Espionagem, Guerra, Aventura, Erótico e mais, foram responsáveis ainda pela criação dos gêneros Ficção Científica e Policial Noir (Hardboiled Detective). A escrita pulp de Ana Paula Maia carrega esse desejo de ser digerida rapidamente. Mas não podemos deixar de mencionar os momentos em que se percebe uma reflexão identitária sobre a pertença subalterna das personagens: Cão de rinha é um cão que não teve escolha. Ele aprendeu desde pequeno o que o seu dono ensinou. Podem ser reconhecidos pelas orelhas curtas ou amputadas e pelas cicatrizes, pontos e lacerações. Não tiveram escolhas. Exatamente como Edgar Wilson, que foi adestrado desde muito pequeno, matando coelhos e rãs. Que carrega algumas cicatrizes pelos braços, pescoço e peito. São tantos riscos e suturas na pele que não se lembra onde conseguiu a metade. Porém a marca da violência e resistência à morte de outros animais nunca tiraram o brilho de seus olhos quando contempla um céu limpo. Dia ou noite, ele passa boa parte do seu tempo olhando para cima. Quem sabe espera que alguma coisa aconteça no céu ou com o céu... Talvez queira retalhar algumas nuvens com seu facão. Apesar de ter sido criado feito cão de rinha, aprendeu que isso é melhor do que ser um porco3. Na trajetória de Edgar Wilson se evidencia a melancólica jornada de um sujeito assujeitado pelas suas não-escolhas de existir. Crivados por amputações, o “homem-de-rinha” e o cão-de-rinha são tristes espectros identitários. Ambos são marcados pelas cicatrizes. E como adverte Hannibal Lecter, ao ser consultado sobre as possíveis pistas que ajudem a desvendar o nome de um terrível assassino em série, “as cicatrizes lembram que o passado foi real”. Depois de tantas marcas indeléveis na carne, a personagem não sabe mais reordenar a estrutura causal que explicaria o seu script de existência. O corpo está embrutecido desde a tenra idade quando ele foi educado a matar coelhos e rãs. Homem e animal unidos por uma derradeira contingência: « não tiveram escolhas4 ». Ao trabalhador sobra unicamente a capacidade de olhar cegamente para o céu. Um olhar que apenas vê, mas não repara5. Não há como reparar aquela rotina de sangue e abjeção. Assim como não há como ser reparado pelos demais membros da sociedade. E é nessa territorialidade de cegueira social que transitam esses seres coisificados. Publicada juntamente com Entre rinha de cachorros e porcos abatidos, a novela O trabalho sujo dos outros, dividida em sete capítulos, também tematiza a rotina de homens absolutamente à margem do status quo. Habitantes de um subterrâneo social, as personagens principais recolem o lixo, quebram o asfalto, desentopem o esgoto. Eles fazem o trabalho sujo que ninguém quer fazer. Erasmo Wagner recolhe o lixo numa cidade onde « tudo se transforma em lixo6 ». O seu irmão, Alandelon, despedaça 2. Resende, Beatriz, Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2008, p. 98. 3. Maia, Ana Paula, Entre rinha de cachorros e cães abatidos, op. cit., p. 46. 4. Ibid., p. 44. 5. Na epígrafe de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago: « Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara ». Saramago, José, Ensaio sobre a Cegueira, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 6. Maia, Ana Paula, Entre rinha de cachorros e cães abatidos, op. cit., p. 91. 21 Iberic@l - Numéro 2 blocos de pavimentação há seis anos, sofrendo com a surdez gerada pelo som estridente das britadeiras. E a terceira personagem, Edivardes, desobstrui latrinas, canos, fossas e todos os lugares para onde escoa a imundície da cidade. Anônimos e invisíveis aos olhos das outridades, as três personagens constituem uma espécie de ratos-humanos que se ocupam das sobras rejeitadas e dos restos abundantes. Novamente percebemos uma brutalização humana na qual o grotesco se mostra naturalizado na própria carne do homem-refugo: « Sua vida não é um lixo. Sua vida é muito lixo. Seu olfato está impregnado com o aroma do podre. Seu cheiro é azedo, suas unhas imundas e sua barba crespa e falhada é suja. Ninguém gosta muito de Erasmo Wagner7 ». O lixeiro é representado como um ser que-presta-para-limpar-asujeira-dos-outros. Mesmo sofrendo com a tuberculose e o tétano, ele está acostumado a colecionar « o que não presta pra ninguém » e serve « apenas para os urubus, ratos, cães, e para gente como ele8 ». Mais uma vez notamos um assustador paralelismo entre o humano e os ignóbeis animais. Educado no mundo disforme dos dejetos, Erasmo Wagner reconhece o conteúdo de alguns sacos somente pelo cheiro, formato e peso. E é neste estado de completo abandono que a personagem « prefere os urubus, os ratos e a imundície, porque isso ele conhece9 ». Como o seu cheiro afasta as pessoas para bem longe, o lixeiro se aproxima somente da sua namorada, Suzete, que é faxineira de banheiro público, e, por isso, « cheira a mijo, bosta e pinho10 ». Impregnados do cheiro-do-dejeto-dos-outros, o casal exala a profunda podridão que nasce naqueles tenebrosos lugares da (des)memória social. Na rua os únicos parceiros de jornada são os cães que disputam cada pedaço despedaçado de qualquer coisa: « Erasmo Wagner corre para apanhar um saco de lixo que caiu na rua. Chuta um vira-lata que abocanhou uma cabeça de galinha. O bicho foge grunhindo sem largar o pedaço de carne podre11 ». Edivardes, primo de Erasmo Wagner, desentope fossas sépticas, poço de recalque, caixa de decantação, caixa de gordura, ralos e pias. Ou seja: « chafurda mais na imundície que os porcos12 ». Como se fossem sísifos imundos e apodrecidos, os primos recomeçam a cada dia o mesmo trabalho de limpar o que foi sujado, de empurrar o que foi deixado, de retirar o que foi olvidado. O lixeiro acaba se apiedando do seu primo, pois a proximidade com os excrementos ainda é maior na sua fétida realidade: « Meu primo Edivardes trabalha desentupindo esgoto. Isso é um trabalho de merda. Você precisa ver o esgoto das áreas mais ricas. Ele diz que é uma bosta densa13 ». Não há um instante de suspiro para exercitar a esperança e os falíveis sonhos futuros, porque quando chove a situação piora ainda mais para Erasmo Wagner ao se deparar com o lixo mais azedo do que o normal e com as fezes dos mendigos e dos cachorros por toda parte. É preciso sobreviver àquela forma viver. Resistir ao resto do Outro. Mas mesmo que estejam embrutecidos existem caros episódios heroicos na novela. O que ocorrerá na cena em que Erasmo Wagner salva a vida de um idoso, prestes a ser devorado por um pitt bull feroz: Puxa o cão contra seu próprio corpo e rolam pelo chão. Ele grita para o motorista ligar a esmagadora. (...) Erasmo Wagner abraça o cão pelas costas. Corre para o caminhão. A esmagadora está pronta para mastigar detritos e ossos caninos. Ele joga o cão lá dentro e consegue desenterrar seu canivete de estimação do pescoço da besta-fera pouco antes de a esmagadora arriar. Pedaços do cão são devorados e regurgitados. O sangue e um pouco de tripa espirram em Erasmo Wagner. Ele limpa o rosto com as costas da mão. As entranhas da besta fedem a carniça. Depois de tudo, Erasmo Wagner precisará tomar mais cuidado pra 7. Ibid., p. 92. 8. Ibid., p. 91. 9. Ibid. 10. Ibid., p. 93. 11. Ibid., p. 94. 12. Ibid., p. 115. 13. Ibid., p. 94. 22 A trilogia do refugo humano não ser devorado pelos ratos e urubus14. Se analisarmos o excerto acima, notaremos que, até nesse raro fragmento no qual o ethos humano apresenta protagonismo, o imaginário grotesco se faz presente na referência às tripas, ao sangue, à carniça, aos ratos, aos pedaços de cão. A engrenagem narrativa de Ana Paula Maia parece depender de um emprego descomunal – talvez óbvio e demasiadamente consumível – de símbolos crus que possam ser moídos já numa primeira leitura. Do blog e do folhetim, possivelmente tenha permanecido, enquanto artesania eletrônica, uma frenética vontade de consolidar cenas que sejam impactantes, em termos imagéticos, e devoráveis hermeneuticamente. Se de alguma forma a escritora carioca pode ser refém da velocidade da cognoscibilidade pulp, salienta-se sobremaneira o projeto mimético de buscar a representação da (ex)centricidade do homem-dejeto, do indivíduo exilado na sua própria cidade, do alienígena social. A partir do detalhamento do ser/estar dos personagens marginalizados, o conteúdo destas narrativas está assinalado enquanto paisagens identitárias antagônicas ao tradicional nacionalismo conjugado num bloco de poder declinado sob figurações nacionais hegemônicas. Tal projeto estético pressupõe um compromisso representacional que coloque em xeque as representações da nação enquanto reflexos de uma superestrutura amarrada por construções políticas, culturais, raciais, linguísticas monolíticas. Mas essa nação que se move através da sua diferença cultural não deve ser confundida como uma forma de absolutizar a alteridade por intermédio de um aglomerado pluralista e apolítico. O que está em jogo, na representação de sujeitos de tamanha subalternidade social, não é um relativismo que oblitere as relações reais de poder em nome de uma noção nivelada de multiplicidade na qual todos se caracterizam como “outros”, pertencentes a um grupo minoritário qualquer. Ao buscar iluminar estes sujeitos nacionais sujos, as novelas propõem releitura de uma identidade nacional não mais orquestrada por um sentido de brasilidade pura. À medida que se admite que o sujeito nacional possa ser nãomasculino, não-branco, não-burguês, abre-se um leque crítico para revisitar as crises e os combates de uma cotidianidade marcada por várias esferas de poder e por múltiplos pertencimentos identitários. Há, portanto, que se notar como o imaginário abjeto deflagra uma estratégia de narrativização para reificar uma dada identidade agenciada num lúgubre espaço de exclusão dos matizes nacionais. E isto quer dizer várias coisas: além de projetar uma narrativa excessiva para mimetizar o humano brutalizado, a escritura de Maia busca uma investigação no tocante à catastrófica velocidade de uma linguagem do sangue. E é no interior desta gramática do exagero que surgirão duas perguntas trucidantes: Esses sujeitos sujos fazem parte da nossa nação? Fazem parte do nosso cotidiano? Afinal, na tradição literária brasileira, personagens como Edivardes, Erasmo Wagner e Gerson se metamorfoseiam em estereótipos, cunhados sob a égide das essencializações psíquicas e políticas. O discurso estereotipificado caracteriza-se como uma forma de representação que rejeita a alteridade e nega o intercâmbio da diferença como um diálogo entre um Eu e um Outro. A autoridade desse discurso se encontra permeada por uma duplicidade discriminatória psíquico-discursiva, acarretando numa estratégia de individualização e marginalização vinculada a um estereótipo nacional: o malandro, o favelado, o sambista. Daí fica uma indagação: ao descrever a pobreza entre tripas, porcos e ratos, Maia estaria repetindo um cacoete naturalista e determinista através de uma ontologia da periferia fétida? Talvez essa indagação não tenha resposta nesse momento. Mas para responder essa pergunta proponho outra pergunta: Pode o subalterno falar? E para essa provocação Gayatri Spivak sentencia que “o subalterno não pode falar”. Assim sendo, é preciso que consideremos a mediação pulp como uma forma de linguagem violentada que não está inocentada por postiçamente traduzir um idioma daqueles que não têm voz. Trata-se de ocupar o lugar da outridade e fazer-ela-falar-por-uma-enunciação-alheia. Se não há voz do subalterno, materializa-se uma amputação 14. Ibid., p. 97. 23 Iberic@l - Numéro 2 representacional quanto ao locus autoral. Curioso é o caso do personagem Alandelon, em O trabalho sujo dos outros, que começa a perder a audição: « Alandelon quebra asfaltos há seis anos. Seu corpo está talhado e rígido, assim como seu cérebro sempre foi: embrutecido. Ele é irmão caçula de Erasmo Wagner15 ». Ironicamente, ou tristemente, o seu nome, que é uma homenagem ao astro francês de olhos azuis, soa dissonante perante um corpo malcheiroso e abrutalhado. Esse personagem, quase surdo, tem sérias dificuldades de ouvir e ser ouvido. E a metaforicidade da perda da audição parece bastante significativa. Há algo na escuta, no entanto, que marcaria a situação fantasmática do viver-juntos com mais propriedade do que a visão. Nas comunidades contemporâneas, seria a escuta que determinaria a vida idílica imaginada por Roland Barthes16, pois o traço da escuta tem como uma das propriedades o poder de demarcar o território. Os espaços são experimentados não unicamente pela visão, mas pela audição. Enquanto rede polifônica de ruídos familiares, o território passa a ser entendido como um reconhecimento dos sinais sonoros. Nesse sentido, Alandelon se torna incapaz de escutar a materialidade familiar, pois a pessoa conhece pelos sons o que lhe pertence. É quase impossível dissociar essa definição de uma sensação de “segurança” e conforto. Ruídos conhecidos não nos trazem preocupações, diferentemente de ruídos desconhecidos, que nos obrigam a um trabalho hermenêutico: o que este ruído representa? A perda da escuta acaba representando analogamente um lento silenciamento do mundo hostil que o circunda, restando apenas os blocos a serem quebrados sisificamente. Maquinalmente esse personagem trabalha dia após dia sem mais ouvir-o-outro e sem mais ser-ouvido-pelo-outro, encandeando-se uma triste equação do silêncio e da anulação. A terceira obra, que fecha essa trilogia do refugo humano é Carvão Animal. O romance conta a estória do bombeiro Ernesto Wesley e seu irmão Ronivon, funcionário do crematório da fictícia e cinzenta cidade de Abalurdes. Assombrados por uma tragédia do passado, que ao longo da narrativa os persegue, esses dois irmãos lidam com o fogo: um para combatê-lo e o outro para utilizá-lo para apagar os vestígios da existência. Mais uma vez nos deparamos com uma espécie de brutalização humana que não permite a menor possibilidade de sonhar com uma saída reparatória e redentora: Ernesto Wesley é um brutamontes de ombros largos, voz grave e queixo quadrado, porém tudo isso se torna pequeno caso se repare em seus olhos. São olhos profundos, de cor negra e de intenso brilho. Mas não é um brilho de alegria, senão do fogo admirado e confrontado diversas vezes. Quando se atravessa a barreira de fogo que ilumina o seu olhar, não há nada além de rescaldo. Sua alma abrasa e seu hálito cheira a fuligem17. O fogo se converte em um signo mortuário que se alimenta dos corpos. Na rotina de carbonizar os mortos, Ronivon aprende a reconhecer como a gordura funciona como combustível e como as extremidades se contorcem e encolhem. É com o extremo calor que tudo « o que já foi humano parece voltar-se para o lado de dentro18 ». Com Ernesto Wesley, completa-se o quadro das monstruosidades sensoriais: Erasmo Wagner não repara, Alandelon não escuta, Ernesto Wesley não sente. O bombeiro não sente o fogo queimar na sua pele, pois possui um raro tipo de doença, analgesia congênita, que se configura como uma deficiência estrutural do sistema nervoso periférico central. Isso o « torna insensível ao fogo, a facadas e espetadas19 », adaptando-o a dor que seria vivenciada todos os dias. Novamente evidenciamos um homem-besta que na sua condição de humano-coisa deve aturar/naturalizar as mais 15. Ibid., p.10. 16. Barthes, Roland, Como viver juntos, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 54. 17. Maia, Ana Paula, Carvão animal, Rio de Janeiro, Record, 2011, p. 18. 18. Ibid., p. 23. 19. Ibid., p. 16. 24 A trilogia do refugo humano extremadas situações terrenais. Ronivon, por sua vez, foi educado, desde cedo, pelo calor dos corpos dos mortos. O calor gerado pelos fornos crematórios passa por uma tubulação ligada a um conversor termoelétrico, que transforma calor em energia elétrica. Ele sabe como poucos que os mortos carbonizados ajudam a suprir parte da energia usada tanto no crematório quanto no hospital que fica a um quilômetro dali, além de alguns estabelecimentos comerciais da redondeza. Nesse estranho ciclo entre morte-calorvida, o funcionário do crematório orquestra as filas dos mortos, « principalmente os indigentes », para serem « cremados no Colina dos Anjos e seu calor transformado em energia para abastecer os vivos20 ». Habitante do subterrâneo, Ronivon tem uma cor pálida que o transforma num tipo de morto-vivo, acostumado aos ratos e ao espetáculo da cremação no qual a boca do morto se escancara, fazendo os dentes saltar e o rosto murchar como se fosse um grito de horror. E resta a esse operário do matar-amorte a atividade de passar um detector de metais portátil sobre o peito mirrado antes de fechar o caixão. Sem qualquer resquício de emoção, o trabalhador mensura o tempo de transformação da carne em carvão animal através da estória de cada morto: O velho que morreu de complicações no pulmão. Fumou por quarenta e sete anos. Praticamente, o velho estava sendo cremado ao poucos durante todo esse tempo. Dos pulmões restou apenas um pedaço do lado esquerdo. Sua pele amarelenta é extremamente enrugada, parecendo uma pele de cobra. Os vincos são profundos. As pontas dos dedos são de tonalidade caramelo, manchado pelo fumo. Mas um corpo assim tão magro e ressecado levará mais tempo para queimar. O caixão seguinte é uma mulher de quarenta e oito anos. Rosto bonito. Cabelos lisos e pretos. Morreu de infarto, pouco comum às mulheres. Na ficha de controle ainda há seis corpos a serem cremados neste dia 21. No interior dessa insólita “carvoaria” de Ronivon, os corpos menos saudáveis são aqueles que mais resistem ao fogo, enquanto os mais debilitados queimam lentamente numa espécie de resistência ao tornar-se pó. Mas o operário das cinzas tem uma convicção quanto aos corpos, sadios ou não, que o acompanha: « no fim tudo o que resta são os dentes22 ». É preciso cuidar dos dentes porque eles permitem identificar a sua dignidade, preservando-os será possível reconstruir o indivíduo, pois, quando o corpo carboniza, « sua profissão, dinheiro, documentos, memória, amores não servirão para nada 23 ». Afinal, no fim apenas sobram os dentes. Essa parece ser uma excelente metáfora para finalizar uma reflexão sobre esses seres-refugo que constituem a trilogia do homem comum. Dentes, presas que mordem e mastigam as sobras do sujo cotidiano, numa digestão empobrecida. Dentes, lancinantes e perfurantes armas dos cães-de-rinha, que mutilam para sobreviver. Dentes, ausentes nas bocas fétidas de Edivardes e Erasmo Wagner, que pastam os grudes de lixo. Dentes, vestígios paleontológicos, de uma espécie de ser humano que habita as áreas abjetas, porcas e invisíveis da nossa sociedade. 20. Ibid., p. 69. 21. Ibid., p. 24 22. Ibid., p. 9. 23. Ibid. 25 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Barthes, Roland, Como viver juntos, São Paulo, Martins Fontes, 2003. Maia, Ana Paula, Carvão animal, Rio de Janeiro, Record, 2011. ---, Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos, Rio de Janeiro, Record, 2009. McCracken, Scott, Pulp: Reading popular fiction, Manchester, Manchester University Press, 1998. Resende, Beatriz, Contemporâneos: expressões da literatura brasileira do século XXI, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2008. Saramago, José, Ensaio sobre a Cegueira, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. Spivak, Gayatri Chakravorty, Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte, UFMG, 2010. Valéry, Paul, Monsieur Teste, São Paulo, Ática, 1997. 26 (Auto)biografias urbanas (Auto)biografias urbanas: percursos possíveis pela literatura marginal1 Laeticia Jensen Eble Resumo: Neste trabalho, trataremos da produção literária de autores da periferia urbana inseridos no movimento hip-hop e imbuídos de um compromisso social com aqueles tradicionalmente deixados à margem pela sociedade capitalista e pela chamada literatura de elite. Tais textos, usualmente referidos como literatura marginal, têm ganhado destaque, dentro e fora dos estudos literários, e provocado, também, a necessidade de se buscar novos caminhos críticos para melhor apreendê-los. A projeção de obras como essas, tradicionalmente desclassificadas pela teoria e pela crítica literárias, abala a organização e hierarquização do campo literário, na medida em que traz para a luz vozes até então silenciadas. Palavras-chave: literatura brasileira contemporânea, literatura marginal, rap, representação Résumé : Dans cet article, nous aborderons la production littéraire des auteurs issus des banlieues, appartenant au mouvement hip-hop et engagés envers ceux qui se trouvent traditionnellement en marge de la société capitaliste et de la soi-disant littérature d’élite. Du fait de l’importance acquise ces derniers temps à l’intérieur et à l’extérieur des études littéraires, ces textes nous invitent à chercher de nouvelles approches critiques susceptibles de mieux les appréhender. La projection de ces œuvres, traditionnellement disqualifiées par la théorie et la critique littéraire, bouleverse ainsi l’organisation et la hiérarchie du champ littéraire, d’autant plus qu’elle met à jour l’existence de voix jusqu’alors étouffées. Mots-clefs : Littérature brésilienne contemporaine, littérature marginale, rap, représentation. O que é ser o maior? Mandar bem? É, o maior é o que vende mais, tanto faz, sou eu também. Emicida Mircea Eliade, ao final de seu livro Aspects du mythe2, trata da “mitologia das elites modernas”, que ele caracteriza como pautada na função redentora da “dificuldade”, remetendo-se, em especial, à arte moderna. Eliade afirma que, “se a elite é apaixonada por Finnegans Wake, pela música atonal ou pelo tachismo, é também porque tais obras representam mundos fechados, universos herméticos onde não se penetra senão à custa de enormes dificuldades equivalentes aos testes de iniciação das sociedades arcaicas e tradicionais3”. O autor explica-se, dizendo que, de um lado, tem-se o sentimento de uma espécie de iniciação, no que se relaciona ao aspecto mítico – algo praticamente inexistente no mundo moderno –; por outro lado, fixa-se, aos olhos dos “outros”, da “massa”, o pertencimento a uma minoria secreta. “Por 1. Este texto é o desdobramento de uma comunicação apresentada no Simpósio Internacional de Literatura Brasileira Contemporânea, realizado em janeiro de 2012, em Paris. A autora agradece o apoio recibido da Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (Finatec), que viabilizou sua participação no evento. 2. Eliade, Mircea, Aspects du mythe, Paris, Gallimard, 1963. 3. Ibid., p. 230. 27 Iberic@l - Numéro 2 meio do culto da originalidade extravagante, da dificuldade, da incompreensibilidade, as elites marcam seu distanciamento do universo mundano de seus semelhantes4”. Nesse sentido, Pierre Bourdieu também afirma, acerca do poder simbólico, que a “cultura que une (intermediário de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que legitima as distinções5”. A colocação de Eliade é interessante para iniciar a reflexão aqui proposta, porque, mantém, de certo modo, uma relação com a crítica acerca do local ocupado pela literatura marginal ante o sistema literário tradicional e a literatura de elite6. Ao tratar desse tema, que é escopo deste texto, é impossível não questionar os valores convencionalmente estabelecidos e os juízos acerca do que seja ou não literatura, bem como do que teria ou não qualidade para figurar na historiografia literária de um país. Isto é necessário não apenas para poder situar a produção dos artistas da periferia, mas porque esse embate é uma questão central nos princípios éticos e estéticos que o movimento hip-hop propõe a si mesmo. Para Bourdieu7, o valor da obra de arte é dado não pelo artista, mas pelo campo de produção, “enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista8”, ou seja, o valor da obra de arte depende, sobretudo, do reconhecimento pelo conjunto de agentes e das instituições que participam da produção do valor da obra. Nesse sentido, Bourdieu sustenta que, às diferentes posições que se ocupa face à estrutura do campo literário “correspondem tomadas de posição homólogas”. Assim sendo, é preciso recusar a explicação da obra literária ou artística pura e simplesmente por meio de uma leitura interna da obra e buscar entendêlas em função das condições sociais de sua produção ou de seu consumo. Como ilustração da posição inversa a essa perspectiva, temos a opinião de Harlod Bloom, que, em entrevista recente concedida ao jornal El País9, afirmou que a crítica literária feminista e racial está destruindo a literatura. Para Bloom, cujas preocupações são essencialmente a busca pela beleza e pelo sublime em arte, “a ficção é o supremo” e, se os poetas utilizam um pensamento figurativo para falar, a crítica deve ter muita sabedoria e muita experiência para poder se aproximar de seres como Cervantes, Shakespeare, que ele classifica como “os grandes”. Concebendo a crítica dessa forma, Bloom reprova a crítica literária feita atualmente, pelo fato de haver se politizado. Bloom é categórico ao afirmar que a crítica literária que se preocupa com questões como orientação sexual ou origem étnica tem empobrecido a literatura, porque, segundo ele, orientam a leitura sem estarem pautadas em critérios intelectuais. É uma afirmação bastante grave, no sentido que desqualifica totalmente uma parcela grande e crescente da crítica hoje, sobretudo a praticada na academia10. Reconhecendo valor unicamente no que foi produzido no passado (ou em alguns poucos jovens escritores fiéis a seus preceitos) e defensor da continuação de uma tradição baseada no velho e bom “gosto literário”, Bloom profetiza, afirmando que “embora a crítica não possa reverter a derrocada da cultura, pode dar seu testemunho sobre ela”. Não podemos deixar de notar que, ao editar a matéria, o entrevistador Winston Sabogal, logo 4. Ibid. 5. Bourdieu, Pierre, O poder simbólico, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004, p. 11. 6. Adjetivamos aqui a literatura “de elite”, na medida em que é ela que predomina no sistema e é a partir dela que se instaura uma certa hierarquia que desvaloriza as demais expressões que não se coadunam com os mesmos critérios valorativos de classificação. Ao usar a expressão, pretende-se evidenciar que essa distinção existe, ao mesmo tempo em que se propõe sua dissolução. Ou seja, não se pretende analisar a literatura marginal como restrita a um território específico no sistema literário, mas questionar os julgamentos de valor que elegem o cânone e deixam de fora essas expressões. 7. Bourdieu, Pierre, As regras da arte : gênese e estrutura do campo literário, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. 8. Ibid., p. 259. 9. Sabogal, Winston Manrique, “Canonizador”, El País, 23 nov. 2011. (Entrevista com Harold Bloom. Disponível em : <http://goo.gl/iAkDp>. Acesso em : 5 dez. 2011). 10. Em outras palavras, Bloom está chamando a todos nós da linha de pesquisa de representação e do grupo de estudos em literatura brasileira contemporânea de incapazes. 28 (Auto)biografias urbanas após esse julgamento de Bloom acerca de uma cultura agonizante, descreve que o crítico levanta-se para caminhar, necessidade justificada por problemas de circulação nas pernas : “Apoia-se na mesa para se levantar, pega o caminhador e avança até adentrar nas sombras de um corredor no apartamento. Escutase apenas o roçar débil de suas pantufas sobre o solo”. Parece-nos uma bela metáfora : é realmente a cultura que está agonizante ou essa visão crítica da qual Bloom é representante? Se ainda há críticos que propõem uma valorização exagerada dos clássicos, Eliade, por sua vez, observa que atualmente é solicitado ao artista que se dedique a “fazer o novo” – configurando um “triunfo da revolução permanente”. Nesse sentido, toda inovação é decretada como um avanço genial e igualada às inovações de um Van Gogh ou de um Picasso, seja um cartaz rasgado ou uma lata de sardinha assinada pelo artista11. Este fenômeno cultural é significativo, na medida em que, pela primeira vez na história da arte, se dissolve o atrito entre artistas, críticos, colecionadores e público – todos concordam quando se trata de afirmar que uma nova obra foi criada ou que um artista foi descoberto. Segundo Eliade, o que importaria, sobretudo, é não mais correr o risco de terem de dizer algum dia que não compreenderam a importância de uma nova experiência artística12. Nesse terreno movediço em que, por um lado, só existe um valor possível, e, por outro, há lugar para tudo, optou-se aqui por pensar a produção artística dos autores da periferia inseridos no movimento hiphop em relação a sua tomada de posição em duas frentes indissociáveis : i) política e/ou ética; e ii) estética, ou seja, naquilo que a define dentro do “espaço dos possíveis”. Isto porque é preciso considerar que uma obra recebe um valor distintivo, negativo ou positivo – em função de outras já existentes ou de um gosto cultivado no público –, mas que esse valor também pode mudar, conforme se alterem os interesses em jogo no campo literário. Segundo Bourdieu, O campo literário é um campo de forças a agir sobre todos aqueles que entram nele, e de maneira diferencial segundo a posição que aí ocupam, ao mesmo tempo que um campo de lutas de concorrência que tendem a conservar ou a transformar esse campo de forças. E as tomadas de posição que se pode e deve tratar como um “sistema” de oposições pelas necessidades da análise, não são o resultado de uma forma qualquer de acordo objetivo, mas o produto e a aposta de um conflito permanente13. O hip-hop é um movimento contra-hegemônico que tem um objetivo político e acredita poder usar a cultura como arma para mudar a realidade social de uma comunidade historicamente marginalizada. Nesse sentido, são emblemáticas as palavras de protesto de Sérgio Vaz14, criador do sarau da Cooperativa Cultural da Periferia – Cooperifa, em seu Manifesto da Antropofagia Periférica, escrito por ocasião da Semana de Arte Moderna da Periferia, realizada em 2007 e inspirada na Semana de 22 : Contra os carrascos e as vítimas do sistema. Contra os covardes e eruditos de aquário. Contra o artista serviçal escravo da vaidade. Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada. A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza15. 11. O que nos remete ao fetiche do nome do autor, de Benjamin. 12. Eliade, Mircea, Aspects du mythe, op. cit., p. 229-230. 13. Bourdieu, Pierre, As regras da arte : gênese e estrutura do campo literário, op. cit., p. 262-263. 14. Autor de vários livros, entre eles, A poesia dos deuses inferiores, a biografia poética da periferia (Cooperifa, 2004), Colecionador de pedras (Global, 2007) e Literatura, pão e poesia (Global, 2011). 15. Vaz, Sérgio, Literatura, pão e poesia, São Paulo, Global, 2007/2011, p. 50 (grifo nosso). 29 Iberic@l - Numéro 2 No que tange à representação e ao reconhecimento, podemos dizer que o campo literário é, sim, um espaço de disputa de poder, na medida em que alguns grupos são tradicionalmente excluídos e silenciados. Quanto menos poder, mais discriminados. O poder pode ser entendido como a capacidade de fazer julgamentos e impor verdades ao outro, ou seja, na medida em que imponho uma verdade a outrem, passo a ter poder sobre aquela pessoa, e esta não só é vista pela sociedade a partir dessa verdade determinada por outrem como, muitas vezes, assume essa verdade para si. É interessante refletir que a ascensão da literatura marginal, em especial a hip-hop, move-se, em muitos aspectos, não apenas pela reivindicação de um direito à voz, mas trata-se, também, de uma luta por empoderamento. Para isso, há a necessidade do autorreconhecimento, que é o reconhecimento do desrespeito. Quando o indivíduo se autorreconhece como cidadão que estava sendo desrespeitado e excluído politicamente, ele luta por seus direitos e por políticas de reconhecimento, por uma representação legítima. Tal mobilização política é aqui vinculada à cultura. Nas palavras do rapper Gog, na letra Fogo no pavio : “DMN, H. Aço16 é necessário ouvir! / Ler Ferréz, Sérgio Vaz, e, quem sabe / se libertar / das algemas da carne!”. Se por um lado, há um interesse crescente das editoras por obras oriundas desse contexto marginal (em virtude de vislumbrarem uma nova e promissora fatia de mercado), por outro, tal como afirma Ferréz17, no seu manifesto intitulado “Terrorismo literário”, escrito para a abertura do suplemento especial de literatura marginal da revista Caros Amigos, os autores da periferia não precisam da legitimação do sistema para existir. Porque no sistema capitalista « o jogo é objetivo, compre, ostente, e tenha minutos de felicidade”. Mas o efeito desse jogo é cruel : “traz morte, dor, cadeia, mães sem filhos, lágrimas demais no rio de sangue da periferia”. Conscientes desse mecanismo, Ferréz decreta : “Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe sua parte”. Contudo, Ferréz coloca que o que está em pauta não é negar o sistema, isso não é novidade. O que se destaca é um movimento de resistência, é mostrar que apesar de excluídos, os sujeitos periféricos não sucumbiram e ainda preservam sua humanidade, porque estar perto do lixo não os torna um. Ele diz : “não é o quanto vendemos, é o que falamos, não é por onde, nem como publicamos, é que sobrevivemos”. Muitos trabalhos críticos sobre a produção literária de autores da periferia debruçam-se unicamente sobre o aspecto ético que impregna estas produções, tentando entendê-las e interpretá-las por um viés etnográfico. Esta é uma abordagem válida, sobretudo porque o movimento hip-hop é, sem dúvida, um movimento de luta por reconhecimento, de resgate de direitos suprimidos18, é um movimento preocupado com o social. E nesta pesquisa, o movimento hip-hop funciona como chave de leitura, a partir da qual se explicam as diferenças entre a produção de um Paulo Lins, em seu Cidade de Deus, e um Ferréz, com seu Capão Pecado. Contudo, ao tratar da produção dos artistas periféricos inseridos nesse movimento, é comum se ignorar seus elementos constitutivos no que diz respeito ao seu caráter estético, como se elas não tivessem tal preocupação, como se isso estivesse ainda em evolução ou como se e elas fossem consideradas débeis tendo em vista o padrão canônico da cultura de elite. Mas, não se pode negar que existam, sim, determinados princípios orientadores da criação, que se coadunam com os anseios do movimento. Um 16. H. Aço (Homem de aço) é o nome de uma música do grupo paulista de rap DMN (Defensores do Movimento Negro). Entre os versos críticos da letra, pautados na realidade da periferia, lê-se : “ser Homem de Aço é resistir / não posso dar as costas se o problema mora aqui / eu não vou fugir / nem fingir que não vi”. 17. Autor de Capão pecado (2000), Manual prático do ódio (2003), Ninguém é inocente em São Paulo (2006), entre outros. 18. “Só direitos pra eles e deveres pra nós. / Muita fartura pra eles, migalhas pra nós. / Vulcão em erupção / é o hip-hop” (GOG, Periferia ao vivo). 30 (Auto)biografias urbanas desses princípios, por exemplo19, é manter na escrita os mesmos desvios gramaticais produzidos e ouvidos no uso corrente do dia a dia da periferia. Não se trata de um erro (que poderia ser facilmente corrigido na edição dos livros), mas de uma postura consciente, porque tais autores se negam a se submeter às correções da revisão20. Como afirma o poeta Sérgio Vaz, Muitos intelectuais nos acusam de assassinar a gramática e sequestrar a crase [...]. Mas esconder e negar a educação por quinhentos anos também não é crime? Menos vírgulas, mais acento, mas ainda assim literatura 21. Além disso, temos as palavras de Barthes22, para quem “a linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva”. Precisamos, então, antes de qualquer julgamento, relativizar a imposição da norma culta e considerar o que está por trás dessa marcação de posição ao se preservar traços de oralidade típicos de um grupo social. Ao idealizar a Semana de Arte Moderna da Periferia, Vaz esclarece que a ideia da Semana era “propor um outro tipo de linguagem, mas também um outro tipo de artista. Um artista mais humano e solidário e uma arte que preze pela estética, mas que também ofereça conteúdo”. Então, não se deve erroneamente entender que os autores da periferia estejam fadados a uma escrita débil gramaticalmente, mas, sim, que, para além de preconceitos linguísticos, eles são livres para criar e se expressar usando suas próprias palavras, podendo optar : i) pela espontaneidade da escrita, que reproduz a fala do dia a dia da periferia, com suas riquíssimas gírias23 – o que não anula o caráter literário das obras24; ou, ainda, ii) por fazer uso de um tom mais culto, que revela a habilidade desses autores, ao colocarem em prática aquilo que a linguística convencionou chamar de diglossia, ou seja, a capacidade de, dominar dois registros linguísticos diferentes (a norma e o coloquial, o de maior prestígio e o de menor prestígio), e saber fazer uso deles em situações comunicativas sociopolíticas diferenciadas. Nesse sentido, é irônico notar como a crítica trata o problema, com “dois pesos e duas medidas”. Pois, quando o autor da elite simula a oralidade nas falas de seus personagens, ele é aplaudido tanto mais habilidoso se mostre nessa tarefa. Diferentemente, quanto mais o autor de periferia se aproxime da norma culta, mais ele é criticado, como se estivesse apresentando algo forçado, artificial e totalmente estranho à sua realidade; como se essa “liberdade” fosse vetada a ele. Tampouco se trata, simplesmente, como a crítica costuma colocar, de associar a literatura marginal a uma “linguagem desengonçada” e de dizer que se ela abdica dessa mesma linguagem seria para “obter o potencial título de literárias”, ou seja, para se render a uma “lógica dominante do universo letrado”, o 19. Para além do preconceito e da resistência que ainda insiste em fazer distinções entre uma literatura escrita, letrada, de elite, e uma literatura oral, que, apesar de substantivada como literatura, estaria inserida numa categoria popular. 20. Essa foi uma condição para que Sérgio Vaz, Sacolinha, Alessandro Buzzo, Allan da Rosa, Dinha entre outros aceitassem participar da coleção Literatura Periférica, proposta pela Global Editora e lançada em 2007. 21. Vaz, Sérgio, Cooperifa – Antropofagia periférica, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2008 (Coleção Tramas urbanas), p. 251. 22. Barthes, Roland, Aula, São Paulo, Cultrix, 1989 (1977), p. 12. 23. As gírias, sempre lembradas no que diz respeito à conformação da identidade de um grupo, são uma face poética da prática enunciativa que acaba sendo levada para dentro dos textos, e, de forma metafórica, alcançam uma precisão muitas vezes difícil de ser alcançada pela linguagem mais culta (por exemplo, chamar de “ponta firme” alguém em quem se pode confiar é uma imagem bastante produtiva). 24. Seria mesmo uma visão extremamente ingênua e reducionista avaliar a literariedade de uma obra em função da correção gramatical. Como afirmou no Twitter o rapper Emicida : “uma frase bonita escrita com a grafia errada continua bonita”. 31 Iberic@l - Numéro 2 que implicaria, assim, deixar de ser marginal, como insinua Fernando Villarraga Eslava25. Trata-se, em vez disso, de mostrar que – ao contrário dos discursos estereotipados que sempre se fizeram a propósito da falta de cultura na periferia (“as palavras lhes faltam”) –, na periferia também há, sim, conhecimento. Muitos desses artistas costumam relatar que frequentavam bibliotecas e sebos desde a infância e, não por acaso, se autointitulam “traficantes de conhecimento”, ou seja, usam de sua arte para difundir para sua comunidade aquilo que aprenderam. Nas palavras de Sérgio Vaz, a periferia nunca esteve tão violenta : pelas manhãs, é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até quatrocentas páginas. Jovens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha 26. Outra característica a deslindar é a intertextualidade, extremamente profícua tanto nas letras de rap quanto nos poemas e narrativas em prosa. Este é um recurso criativo muito explorado por esses autores, que recolhem frases soltas de pessoas célebres e inserem nos textos reelaborando-as e dialogando criticamente com elas ou mesmo parodiando-as. Um exemplo mais explícito é a versão do rapper Criolo para Cálice, famosa canção de Chico Buarque27. Como ir pro trabalho sem levar um tiro Voltar pra casa sem levar um tiro Se as três da matina tem alguém que frita E é capaz de tudo pra manter sua brisa Os saraus tiveram que invadir os botecos Pois biblioteca não era lugar de poesia Biblioteca tinha que ter silêncio, E uma gente que se acha assim muito sabida Há preconceito com o nordestino Há preconceito com o homem negro Há preconceito com o analfabeto Mais não há preconceito se um dos três for rico. A ditadura segue meu amigo Milton A repressão segue meu amigo Chico Me chamam Criolo e o meu berço é o rap Mas não existe fronteira pra minha poesia, pai. Afasta de mim a biqueira, pai Afasta de mim as biate, pai Afasta de mim a coqueine, pai Pois na quebrada escorre sangue. 25. Eslava, Fernando Villarraga, “Literatura marginal : o assalto ao poder da escrita”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n° 24, p. 35-51, jul./dez. 2004. Disponível em : <http://www.gelbc.com.br/pdf_revista/2403.pdf>. Acesso em : 5 dez. 2011 26. Vaz, Sérgio, Literatura, pão e poesia, op. cit., p. 46. 27. Letra e vídeo original da música (cantada em parceria com Milton Nascimento, disponível em : <http://letras.terra. com.br/chico-buarque/45121/>. 32 (Auto)biografias urbanas (Criolo, Cálice)28 A música de Criolo, que se aproveita de uma melodia e letra bem conhecidas e reconhecidas pelo público como música de protesto à ditadura, por um lado, reverencia Chico na medida em que se reporta a ele como modelo, mas, por outro, é uma grande crítica a tudo que esse mesmo poeta representa hoje : a elite e seu mundo idealizado. Para os objetivos deste ensaio, é importante destacar também que, nos textos desses autores periféricos, evidencia-se um “falar por uma coletividade”. É fato que os autores estudados se posicionam permanentemente como porta-vozes de uma de suas comunidades e se colocam como seus representantes legítimos. Há textos em que os autores se colocam em primeira pessoa e colocam-se como personagens, mas também há textos em que os personagens não têm nome, contam sua história, que é, na verdade, a história de muitos (um bom exemplo disso é o conto “Fábrica de fazer vilão”, de Ferréz29). Outro aspecto evidente é o caráter pedagógico presente nas narrativas (que nos remete à lição horaciana do placere et docere), visto que a literatura marginal, em especial o rap, traz discursos que funcionam como uma cartilha, cheia de conselhos e preceitos morais para os jovens da periferia não se envolverem com a violência e com as drogas, ou de incentivos para que leiam, estudem e enfrentem as dificuldades com dignidade. Isso se vê, por exemplo, em várias letras do rapper Emicida, como em E agora? Aí, cê pode ter 13 anos pra sempre ou mais Botar a culpa nos boy ou nos seus pais Só xingar o sistema ou resolver o problema Adotar a Lei de Murphy como lema Mas saiba que culpar a vida, djow É como o atacante culpar a bola porque não sai gol. Assim, narrar sua história30 ou a história de outros, suas mazelas, erros e acertos, tem também o propósito de dar exemplo para seus semelhantes, especialmente às novas gerações31. O forte tom (auto) biográfico, portanto, além de ter a validade de um discurso testemunhal (pelo qual a literatura marginal tem sido muito referenciada), pode ser lido também como um discurso de formação e/ou de provação (amplamente usados na prosa romanesca tradicional), em que aparecem heróis e vilões em relação aos quais o narrador se coloca moralmente. Não se trata de simplesmente relatar as condições de vida da periferia, ou os acontecimentos trágicos aos quais seus personagens são submetidos, mas também da construção do caráter dos sujeitos, em que o ambiente urbano aparece como “escola” na qual o homem se forma. Um ótimo exemplo dessa relação são as letras do rapper Ogi, que compõem seu disco “Crônicas da cidade cinza”, como, por exemplo, A vaga : saí à captura num ônibus lotado às 5 da matina, num dia acinzentado eu tava precisando de uma remuneração sonhava em superar os meus dias de cão numa bolsa aberta eu vejo um pote de Danone 28. Como o próprio Criolo conta, essa música foi gravada de forma informal, sem pretensões, e acabou virando um hit. O vídeo está disponível em : <http://www.youtube.com/watch?v=utJENUg2NJ4>. 29. Ferréz, Ninguém é inocente em São Paulo, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006. p. 11. 30. Claro, sabendo-se que, enquanto autobiografia, autor e personagem nunca coincidem e o autor não se entrega plenamente, mas, afinal, são duas instâncias que não se contrapõem. 31. Assim com diz Criolo, em Na linha de frente : “Quem tá na linha de frente / Não pode amarelar / O sorriso inocente / Das crianças de lá”. 33 Iberic@l - Numéro 2 e um CD do Ramones, também um iPhone quando a minazinha moscou, mão coçou consciência me alertou com trombones dei sinal, desisti, logo refleti [...] esse é o teste pra você provar o seu valor existirão atalhos por onde for preste atenção no que o mundão lhe oferecer a vaga tá lá esperando você [...] Se por um lado temos como pano de fundo um ambiente que não só situa a narrativa, mas diz muito acerca de seus personagens e das dificuldades que enfrentam (o ônibus lotado, o desempregado que sai “à captura” de um emprego às 5h da manhã), por outro, temos a narração do conflito interno pelo qual o personagem passa ao tentar resistir à tentação de roubar a moça distraída que esqueceu a bolsa aberta (o teste recompensado com a vaga de emprego). Ao contrário de uma visão simplista que vê nas narrativas apenas um valor de testemunho (que de certa forma vem para lhes negar o valor literário), ou mesmo naquelas em que parece haver uma intenção quase hagiográfica, é preciso observar as nuances em que se revelam as estratégias de resistência dos personagens diante da opressão e da exploração a que são vítimas. Vejamos o poema em que Sérgio Vaz reproduz a biografia de sua mãe : Maria das Dores Filha de Saturnina Maria nasceu em ladainha, No intestino de Minas Quase Bahia. O nome Maria Quem deu foi o pai, Seu Firmino. Das dores, Sobrenome da agonia Quem lhe deu Foi o destino. Na cidade grande Vendeu cosméticos, Roupas e sapatos. Doméstica, Varreu chão, lavou pratos, Mas nunca foi domesticada. Sorria, Por desobediência Por falta de instrução. Por alegria? Só se fosse Descuido do coração. Sob o disfarce De mulher maravilha, Morreu sem avisar. 34 (Auto)biografias urbanas Frágil, Mas sem implorar. Feito flor Que rasteja, Mas que a primavera Não pode humilhar32. Para além de simples registro da vida sofrida dessa mulher, ou da intenção de “santificá-la”, de forma sutil, a personagem passa a servir como modelo de resistência para outras como ela : era forte, foi explorada, mas nunca domesticada – “sorria” por “ignorância”, numa realidade em que sorrir poderia ser considerado um ato um tanto quanto atrevido e subversivo. Essa “estratégia” talvez seja reveladora da resistência silenciosa que se processa, e aparece no poema como um prenúncio daquilo que dizia Jean Baudrillard (não sem questionar o esvaziamento político decorrente da criação do termo “massas”) : Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” [...] As massas não estariam aquém, mas além da política. O privado, o inominável, o cotidiano, o insignificante, os pequenos ardis, as pequenas perversões etc., não estariam aquém mas além da representação. As massas executariam em sua prática “ingênua” [...] a sentença de anulação do político, seriam espontaneamente transpolíticas, como são translinguísticas em sua linguagem33. 32. Vaz, Sérgio, Cooperifa – Antropofagia periférica, op. cit., p. 140. 33. Baudrillard, Jean, À sombra das maiorias silenciosas : o fim do social e o surgimento das massas, São Paulo, Brasiliense, 2004, p. 10 e p. 36. 35 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Barthes, Roland, Aula, São Paulo, Cultrix, 1977/1989. Baudrillard, Jean, À sombra das maiorias silenciosas : o fim do social e o surgimento das massas. Tradução de Suely Bastos, São Paulo, Brasiliense, 2004. Bourdieu, Pierre, As regras da arte : gênese e estrutura do campo literário, Tradução de Maria Lucia Machado, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. (Título original : Les règles de l’art : genèse et structure du champ littéraire, Éditions du Seuil, 1992). Bourdieu, Pierre, O poder simbólico, Tradução de Fernando Tomaz, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004. Eliade, Mircea, Aspects du mythe, Paris, Gallimard, 1963. Eslava, Fernando Villarraga, “Literatura marginal : o assalto ao poder da escrita”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n° 24, p. 35-51, jul./dez., 2004. Ferréz (dir.), Literatura marginal : talentos da escrita periférica, Rio de Janeiro, Agir, 2005. Ferréz, Ninguém é inocente em São Paulo, Rio de Janeiro, Objetiva, 2006. Gagnebin, Jeanne Marie, Lembrar, escrever, esquecer, São Paulo, Editora 34, 2006. Sabogal, Winston Manrique, “Canonizador”, El País, 23 nov. 2011. (Entrevista com Harold Bloom. Disponível em : <http://goo.gl/iAkDp>. Acesso em : 5 dez. 2011. Vaz, Sérgio, Cooperifa – Antropofagia periférica, Rio de Janeiro, Aeroplano, 2008. (Coleção Tramas urbanas). Vaz, Sérgio, Literatura, pão e poesia, São Paulo, Global, 2011. 36 Campo Literário e Identidades de Gênero Campo Literário e Identidades de Gênero: Diálogos (im)possíveis entre Editora Malagueta e Elvira Vigna Virgínia Maria Vasconcelos Leal Resumo: A entrada da Editora Malagueta no mercado editorial brasileiro em 2008, que publica livros “de lésbicas para lésbicas”, movimentou as relações entre campo literário, feminismos e identidade lésbica. A partir de um projeto de autorrepresentação de um grupo determinado, são discutidos os posicionamentos de cada escritora de seu catálogo. Em contraponto, são propostos problemas relativos ao descentramento das identidades contemporâneas, como os representados na obra da escritora Elvira Vigna, publicada pela Editora Companhia das Letras, que tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas personagens. Mulheres sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, conforme o conceito de “matriz de inteligilidade de gênero”, teorizada por Judith Butler. A ideia é promover diálogos quase (im)possíveis entre projetos literários distintos, mas que problematizam igualmente a questão das identidades de gênero. Palavras-chave: gênero, identidade, homossexualidade. Résumé : En 2008, l›entrée sur le marché éditorial brésilien des éditions Malagueta avec leurs livres « écrits par des lesbiennes pour les lesbiennes » a bouleversé les rapports entre le champ littéraire, les mouvements féministes et l’identité lesbienne. Tout en s’interrogeant sur la spécificité d’un projet d’autoreprésentation d’un groupe particulier, cet essai vise à comprendre les positions de chacune des écrivaines au sein de ce catalogue. En contrepartie, nous nous pencherons sur les questions du décentrement des identités contemporaines telles qu’elles sont représentées dans l’œuvre d’Elvira Vigna qui, publiée chez Companhia das Letras, propose une solution alternative pour ses personnages : des sujets toujours « en procès », à la recherche d›un « visage » possible dans un monde qui leur impose la stabilité et la logique du sexe et du genre, selon le concept de « matrice de l’intelligibilité du genre », théorisé par Judith Butler. L’idée ici est de promouvoir des dialogues presque (im)possibles entre deux différents projets littéraires qui problématisent, tous les deux, la question des identités de genre. Mots clefs : genre, identité, homosexualité. A proposta do artigo é promover o diálogo, em seu conceito mais amplo, exposto por Mikhail Bakhtin, que envolve interação e polêmica, intersubjetividade e alteridade. É esse encontro com o “outro”, com outro sentido que marca qualquer interação verbal, que nos permite confrontar experiências diversas. Assim, a ideia é promover diálogos quase (im)possíveis entre projetos literários distintos, mas que problematizam igualmente a questão das identidades de gênero. De um lado, a Editora Malagueta, que iniciou suas atividades em 2008, publicando livros “de lésbicas para lésbicas”, conforme se anuncia, e movimenta relações entre campo literário, feminismos e identidade. E, em contraponto, a obra da escritora Elvira Vigna, publicada pela Editora Companhia das Letras, que tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas personagens, ao propor problemas relativos ao descentramento das identidades contemporâneas. Ao criar, por exemplo, mulheres sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, conforme o 37 Iberic@l - Numéro 2 conceito de “matriz de inteligilidade de gênero”, teorizada por Judith Butler. A Editora Malagueta, agora Brejeira Malagueta, dirigida por Laura Bacellar e Hanna Korich, tem uma proposta bem focada: livros de lésbicas para lésbicas. Experiência inédita na Brasil, conforme anunciado no site da editora, pois outras empresas, como as Edições GLS, selo criado também por Bacellar e anteriormente dirigida por ela, não são exclusivamente dedicadas às mulheres homossexuais. A simples existência de uma editora assim no Brasil denota a chegada de novos produtores/as, consumidore/as e agentes no campo literário, na concepção de Pierre Bourdieu, dialogando com as mudanças e demandas do campo social. Nesse sentido, o movimento feminista, especialmente no século XX, ao lutar pela inclusão das mulheres à cidadania plena, como acesso à educação, saúde e direitos políticos, provocou alterações no campo literário, mesmo que, muitas vezes, tenha havido a reprodução das assimetrias entre homens e mulheres também na esfera literária. Poderíamos, então, ampliar tal ideia em relação à visibilidade de sexualidades não-hegemônicas, como é o caso das lésbicas, vinculando essa entrada também à militância dos movimentos de direitos LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros). Nesse caso, poderíamos imaginar em que medida a atuação de uma editora como a Malagueta seria legitimada ou não pelos agentes do campo literário, a partir mesmo de sua tomada de posição inicial, ou seja, uma proposta de atuação política e de visibilidade de escritoras e temáticas específicas. Se a literatura de autoria feminina sofre toda sorte de questionamentos a respeito de sua própria existência e as mulheres escritoras tem cerceamentos próprios ao exercício de seu ofício, há uma suspeita ainda maior a respeito de uma literatura lésbica, se existiria e o que seria. Nesse caso, poderíamos imaginar em que medida a atuação de uma editora como a Malagueta seria legitimada ou não pelos agentes do campo literário, a partir mesmo de sua tomada de posição inicial, ou seja, uma proposta de atuação política e de visibilidade de escritoras e temáticas específicas, em relação aos discursos relativos à arte e à estética pura. Nesse sentido, o livro As heroínas saem do armário, de Lúcia Facco, é referência inescapável, pois está focado nessas questões: haveria uma identidade lésbica, uma literatura lésbica brasileira contemporânea e quais seriam suas principais características? Em formato epistolar, Lúcia Facco expõe o caminho de pesquisa, criando uma personagem que vive seu próprio processo de descoberta da sexualidade. Os percalços teóricos tornam-se também o cenário de fundo para a história da mestranda Luciana e seus relacionamentos com orientadores/as, a namorada, as amigas e a família. E, também subsidiada por entrevistas com autoras e editoras de literatura lésbica, incluindo Laura Bacellar, a autora conclui que há uma literatura lésbica sim, pois “se a transgressão da linguagem é condição sine qua non para que um texto seja considerado ‘literário’, estes o fazem, com certeza. São textos transgressores, por natureza, a partir do momento que inserem no lugar de sujeito do discurso personagens tradicionalmente marginais1”. E também ressalta o fato dos textos terem uma proposta marcadamente política, não como um problema, mas sim como algo recorrente na literatura, citando, por exemplo, os escritores modernistas brasileiros da Semana de 1922. O que se deduz das entrevistas e do percurso de pesquisa de Lúcia Facco é que existe, por parte das escritoras e das ativistas culturais, uma certa angústia e/ou ansiedade em relação à sua própria existência enquanto uma literatura toda própria. Reporto-me aqui aos termos criados por Sandra Gilbert e Susan Gubar, no já clássico The madwoman in the attic. Para elas, o impasse dar-se-ia em relação à inexistência de uma “tradição” anterior de autoria feminina. Haveria não uma “angústia da influência”, segundo o modelo patriarcal de Harold Bloom, e sim uma “angústia de autoria”, diante da falta de modelos com os quais poderiam dialogar, bem como condições materiais, sociais e psicológicas para se colocarem como “autoras”. Daí as imagens recorrentes de reclusão e confinamento nas autoras estudadas. Tal ideia também está na obra de Virginia Woolf, escrita em 1931. Ela ressalta que todas as mulheres em quaisquer profissões devem matar “o anjo da casa”: 1. Facco, Lúcia, As heroínas saem do armário, São Paulo, GLS, 2004, p. 172. 38 Campo Literário e Identidades de Gênero Porque, como percebi no momento que coloquei a caneta no papel, você não pode resenhar sequer um romance sem ter uma opinião sua, sem expressar o que você acha ser verdadeiro nas relações humanas, na moral, no sexo. E todas essas questões, de acordo com o Anjo da Casa, não podem ser tocadas livre e abertamente por mulheres; elas devem encantar, elas devem conciliar, elas devem - para ser direta - mentir, se for preciso para que se saiam bem. Portanto, todas as vezes que eu sentia a sombra de sua asa ou a luz de sua aura radiante sobre a página, eu pegava o pote de tinta e jogava nela. Ela custou a morrer2. Se, para Gilbert e Gubar, as escritoras contemporâneas podem ter autoridade suficiente para escreverem sem passar por todas essas dúvidas, deve-se isso às escritoras primeiras que optaram por enfrentar essa angústia inicial e, com estratégias diferenciadas, como “matar o Anjo da Casa”, às vezes ao preço de um isolamento social, e se colocarem como escritoras, mesmo que anunciando, com modéstia, as suas “limitações” como mulheres. Estratégias que algumas escritoras brasileiras do século XIX e do século XX o fizeram, como Maria Firmina dos Reis e Júlia Lopes de Almeida, diante de um cenário avesso à sua inserção no campo literário de então. E como isso se relacionaria com as escritoras lésbicas estudadas por Facco? Algumas escritoras entrevistadas por ela negaram a intenção de produzir “uma grande obra literária”, como Valéria Melki Busin, enfatizando mais seu caráter engajado, ou negandose como escritora, artista ou acadêmica, como Fátima Mesquita, ou refutando quaisquer rótulos como Stella Ferraz. Por sua vez, Vange Leonel se diferencia por não querer dar respostas categóricas, apesar de ter uma resposta mais objetiva a respeito do que seria literatura lésbica, como “toda literatura centrada no homoerotismo feminino”3. Pela forma do livro de Lúcia Facco, em que há uma ênfase e uma ficcionalização do processo de pesquisa, por meio de sua personagem Luciana, aparece tal ansiedade na escolha do seu objeto de pesquisa: se a Academia aceitaria o estudo de texto tão distantes dos canônicos, se caberia tal pesquisa em um Departamento de Estudos Literários, já que muitos e muitas não consideram tais textos literários com “L” maiúsculo e sim uma “paraliteratura”, “literatura erótica”, “de massa” etc. Ao expor esse percurso e essa angústia da legitimidade da autoria (mesmo que de uma dissertação de Mestrado), Lúcia Facco perfila-se ao lado de suas próprias fontes. E enfrenta as dúvidas e se sai muito bem. Incluo mais uma possível característica para a literatura das mulheres em questão. Característica lembrada por Elvira Vigna, em seu texto “Em busca de um narrador”. Será uma narrativa “espetacularizada”? Será um produto que mobiliza os repertórios esperados de suas leitoras definidas em seu projeto, que reitera o que se espera de um livro de “lésbicas para lésbicas”? A Malagueta, enfim, defende o lançamento de obras para atingir o público homossexual e, em princípio, produzido por escritoras também homossexuais. A primeira questão levantada é a razão pela qual essas escritoras querem publicar sob tal editora. Antes de mais nada, é importante ressaltar a importância simbólica que a forma do livro ainda detém. Não é simplesmente pelo fato do encantamento suscitado por sua materialidade concreta. O livro editado, e não apenas aquele impresso por encomenda, traz o aval de um agente importante do campo literário - a editora -, que o selecionou em meio aos inúmeros originais recebidos. Passar por isso já traz uma primeira legitimação para a escritora. As escritoras, individual e socialmente, sentiram-se chamadas a criar, lembrando o conceito de “vocação enunciativa” de Dominique Maingueneau. Ou seja, “foi necessário que a representação da instituição literária relativa a um certo posicionamento lhes proporcionasse a convicção de que tinham a autoridade exigida para se colocarem como escritores”.4 Tal convicção nasceu da própria visibilidade das comunidades LGBTT, que vem se firmando, principalmente 2. Woolf, Virginia, Profissões para mulheres, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996, p. 45. 3. Facco, Lúcia, As heroínas saem do armário, op.cit., p. 158. 4. Maingueneau, Dominique, O contexto da obra literária, São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 178. 39 Iberic@l - Numéro 2 depois da década de 60 do século passado. Mas, frequentar blogs e sites destinados à literatura lésbica não é suficiente para muitas autoras. Com a publicação por uma editora, que coloca seus produtos em livrarias, que fomenta resenhas, há um novo patamar a ser atingido. Nesse sentido, a presença do selo Malagueta é fundamental, pois inscreve a presença da temática homossexual declinada no feminino. Essa presença buscada pela Malagueta não está restrita apenas à temática homoerótica feminina, mas também às outras pontas do processo - a autoria e as potenciais leitoras. A temática tem aparecido, mesmo que esporadicamente, na literatura brasileira. Podemos citar o relacionamento de Leónie e Pombinha do romance naturalista O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou as relações presentes em Parque Industrial, de Patrícia Galvão - ambos estereotipando bastante a figura da lésbica sedutora de jovens - ou mesmo o caso de Lygia Fagundes Telles, em seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, no qual se repete esse mesmo papel da sedutora mais velha, em uma relação cheia de poder. Contemporaneamente, várias escritoras têm tratado da temática lésbica, seja em contos ou romances publicados por editoras de peso no campo editorial. A já citada Lygia Fagundes Telles, no conto “Uma branca sombra pálida”, traz a perspectiva da mãe em relação ao namoro da filha. Tal produção é presença sempre lembrada, ao mostrar um amadurecimento da escritora em relação à temática. Em meu artigo anterior, “Deslocarse para recolocar-se”, trabalhei com livros de escritoras contemporâneas, como Cíntia Moscovich, Fernanda Young, Heloísa Seixas, Stella Florence e Cecília Costa, que tematizam relações entre mulheres. A primeira delas, especificamente, tem vários contos e uma novela - Duas iguais - centrada nas relações lésbicas. Entretanto, na maior parte das narrativas analisadas, as personagens precisam estar fora de suas vidas cotidianas, em um deslocamento causado por uma viagem, uma doença (ou ambos), em um encontro com a morte ou com o sobrenatural, em desvios astronômicos, ou em quartos separados. E, no caso específico de Cíntia Moscovich, que mais tem tratado o tema, nas suas narrativas perpassa sempre o sentido de perda, seja de um valor importante no passado, seja pela própria morte da pessoa amada. Se, por um lado, as suas narrativas subvertem o modelo heterossexual, por outro lado, seu componente trágico também assinala, do ponto de vista da autora, a impossibilidade de subversão total de tal modelo. No caso das outras escritoras, a impossibilidade permanece por outros caminhos, mesmo que recheadas de humor, autoironia ou romantismo assexuado. Este tem sido um traço da literatura brasileira contemporânea de autoria feminina, ao tratar da temática lésbica, pelo menos, nas grandes editoras. Diferente das editoras pelas quais as escritoras citadas foram publicadas, como a Record, a Objetiva e a Rocco, a Malagueta defende o lançamento de obras de escritoras cujo objetivo maior seria atingir também o público homossexual. Enfim, é um projeto de autorrepresentação de um grupo determinado, cuja proposição vem ao encontro do conceito de perspectiva social de Iris Young, em Inclusion and Democracy, que salienta que “pessoas posicionadas diferentemente [na sociedade] possuem experiência, história e conhecimento social diferentes, derivados desta posição5”. A Malagueta quer defender a perspectiva social de seu grupo - as lésbicas - trazendo histórias que, a princípio, as interessariam. Um público, então, que seria “representado” nas obras publicadas. A questão da representação apresentase novamente complexa. Iris Young centra o seu conceito de representação baseado na natureza do relacionamento entre os representantes e seus representados. A sua tese, na qual é enfatizada a perspectiva social, distancia-se da noção de identidade, base das noções tradicionais de representação, em que os representantes teriam autorização para falar “como” seus representados (ao compartilharem a mesma identidade) ou “por” seus representados (quando autorizados). Estão aqui colocados problemas relativos ao próprio problema contemporâneo do descentramento da identidade. Como representar um indivíduo que é múltiplo? Ela defende a noção de representação pela forma da perspectiva, que considera as diferenças 5. Young, Iris apud Dalcastagnè, Regina, “Personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004”, Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea nº 26, Brasília, Universidade de Brasília, 2005, p. 18. 40 Campo Literário e Identidades de Gênero e apóia-se em uma visão aproximada dos eventos sociais, e, a partir, dessas múltiplas aproximações, possibilitar discussões. Cai-se inevitavelmente na questão permanente da identidade lésbica, que ressoa a mesma complexidade da identidade feminina ou de gênero. Discussão que tem perpassado todo o movimento feminista. Resumindo o debate, detalhado por Claudia de Lima Costa, em seu artigo “O sujeito do feminismo”, bastaria um essencialismo estratégico para não esvaziarmos as lutas políticas específicas ou esse mesmo essencialismo esvaziaria essas mesmas demandas? No artigo, a autora discute a capacidade das teorias feministas trazerem definições alternativas do sujeito e da identidade, a partir da construção de novos lugares de enunciação e localização, a partir de lutas materiais, não apenas de construções abstratas das diferenças. As discussões no campo feminista levaram a tendências várias que podem ser resumidas, em um primeiro momento e para efeitos explanatórios, entre noções essencialistas e não-essencialistas da “identidade” ou da “mulher”, ou entre feminismos da “diferença” e da “igualdade”. Nos primeiros momentos do feminismo contemporâneo, a prática e a teoria recaíram sobre a obtenção de direitos iguais para homens e mulheres, bem como direitos especiais para as mulheres (em alguns casos, principalmente em relação a demandas específicas vinculadas à maternidade). De outro lado, os feminismos da diferença concentraram seus esforços na revalorização do feminino na ordem simbólica e da linguagem. De qualquer modo, em suas várias facetas, mantinham-se vinculados a um conceito apriorístico do que seria o feminino ou a mulher, questões que dividiram o movimento feminista. Vale lembrar que as mulheres lésbicas e negras foram as primeiras a questionar a ideia de um feminismo monolítico, o que não fez com que o campo de questionamentos não deixasse de se ampliar. Sônia Weidner Maluf lembra essa questão, com o mote da realização do 10º Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, ocorrido em 2005, no qual as mulheres transexuais reivindicaram uma participação marcada no movimento feminista. Como resume Sônia Maluf, a respeito da tematização do sujeito como a questão principal do feminismo contemporâneo, há dois movimentos distintos: De um lado, a reivindicação das transgêneros de serem “incluídas” como mulheres e feministas nos encontros nos remete a uma dinâmica e a um processo que se pode definir como centrípeto, ou seja, em direção a um centro comum, ao compartilhamento (na diferença) de uma “identidade comum” às mulheres e feministas no encontro. De outro, em relação às jovens, lésbicas, negras, etc., a dinâmica é inversa, centrífuga, ou seja, o deslocamento de um centro comum (mulheres) para uma fragmentação e diferenciação (compartilhada) de especificidades não redutíveis ao termo comum. Dois movimentos opostos em relação ao que parece ser uma mesma questão: a reivindicação de um lugar político legítimo e qualificado no interior do movimento. De um lado, “apesar da diferença”, apontar o que é semelhante; de outro, apesar de serem todas mulheres, apontar a diferença como o lugar dessa legitimidade6. Por sua vez, uma das saídas do impasse teórico foi abraçar a categoria “gênero”. A noção de gênero permitiria também pensar relações entre os sexos biológicos e entre outros significados sociais, como classe, cultura, idade etc. Por outro lado, a ideia de gênero conteria, ainda, o conceito de “diferença sexual” e a pressuposição de uma identidade fixa, que muitas feministas teóricas contemporâneas começariam a questionar. O corpo como dado de interpretação cultural, o gênero como lócus das outras estruturas de poder, as negociações identitárias são algumas dessas questões. Judith Butler problematiza, por exemplo, a noção de gênero utilizada pelo movimento feminista. Para ela, a noção de gênero solicita muitas intersecções políticas e culturais para que se mantenha 6. Maluf, Sônia Weidner, “Políticas e teorias do sujeito no feminismo contemporâneo”, in Gênero em movimento: novos olhares, muitos lugares, Silva, Cristiani Bereta de, Assis, Glaucia de Oliveira, Kamita, Rosana C. (dir.), Florianópolis, Editora Mulheres, 2007, p. 37. 41 Iberic@l - Numéro 2 coerente ou consistente, sem que seja acentuada uma presunção universalista tanto do patriarcado quanto do próprio feminismo, ou da definição de homem e/ou mulher. Uma das possibilidades de emancipação das categorias normativas seria, para Judith Butler, a consideração de uma construção variável da identidade. Assim, a ideia de um sujeito “estável” para o feminismo terminaria por minar a sua emancipação, pois estaria sempre evocando a “lógica” e a inteligibilidade do gênero, que teria por base a matriz heterossexual. A base de sua crítica é a ordem compulsória do sistema sexo/gênero, ou seja, a presunção que o gênero seria culturalmente construído “sobre” uma identidade sexual biológica. Não haveria, para ela, um sexo prediscursivo, mas o gênero também seria o aparato que construiria esse sexo. Em sua concepção, “gênero é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser7”. Teresa de Lauretis também argumenta que a noção de gênero baseada na diferença sexual mostra uma limitação do pensamento feminista, uma vez que mantém ligados os termos - homem/mulher - ao patriarcado ocidental e às narrativas fundadoras dos vários campos do conhecimento. Além disso, tornaria “muito difícil, se não impossível, articular as diferenças entre mulheres e Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres ou, talvez mais exatamente, as diferenças nas mulheres.”8 Teresa de Lauretis trabalha o gênero como uma representação que tem implicações concretas ou reais, tanto sociais quanto subjetivas, na vida material das pessoas. Como se trata de uma instância da ideologia, o gênero é (re)construído em diversas tecnologias que “engendram” homens e mulheres, por meio de “efeitos de significado e as autorepresentações produzidas no sujeito pelas práticas, discursos e instituições socioculturais9”. Inclui-se aí as práticas artísticas, como a literatura, como uma das “tecnologias de gênero”, nos termos da teórica. Pensar, então, uma construção comum de uma representação de gênero para, por exemplo, um grupo de escritoras e/ou leitoras lésbicas - como é o propósito da Editora Malagueta - seria pensálas como um grupo, que tem um objetivo também comum, com atributos compartilhados. Mas têm trajetórias como indivíduos, que geraram obras também individualizadas. Iris Young, em seu texto “Gender as seriality”, problematizou uma das questões mais difíceis das teorias de gênero. Ela discute tanto o problema de se isolar a categoria de gênero de outras (como classe, etnia, idade, sexualidade, nacionalidade etc.), que leva a normatizações e exclusões, quanto o risco de não se considerar as mulheres como um coletivo que, efetivamente, sofre coações e desvantagens por conta de seu gênero. Ou seja, tanto o essencialismo quanto a ideologia individualista trazem dilemas para a categoria das mulheres. Ela propõe, então, categorizar o gênero como “serialidade”: uma espécie de coletividade social, diferenciada dos grupos: “Isso provê um modo de pensar as mulheres como uma coletividade social sem exigir que todas as mulheres tenham a mesma situação10”. Iris Young explica que os indivíduos participam de coletividades sociais, unidos, de forma passiva, pelos resultados objetificados das ações dos outros, no sentido histórico e na realidade material cotidiana. Para ela, as estruturas de gênero não definem atributos específicos para as mulheres, mas os fatos sociais e materiais com os quais cada indivíduo deve lidar. Cada pessoa, subjetiva e empiricamente, relaciona-se com as estruturas de gênero de forma variável. Não há como negar que elas existam, como a divisão sexual do trabalho, a heterossexualidade compulsória, as relações com o corpo, as estruturas lingüísticas, entre outras. Para algumas mulheres, em contextos sociais e individuais específicos, outras relações de identidade, como 7. Butler, Judith, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p. 59. 8. Lauretis, Teresa de, “A tecnologia do gênero”, in Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura , HOLLANDA, Heloísa Buarque de (dir), Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 207. 9. Ibid., p. 229. 10. Young, Iris, “Gender as seriality”, in Intersection Voices, Princenton, Princenton University Press, 1997, p. 22. Tradução minha. 42 Campo Literário e Identidades de Gênero a nacionalidade, a classe, a etnia, podem ser mais definidoras de si mesmas. Mas isso não as impede que, em alguns momentos, elas se unam a outras, como um grupo, diante de um objetivo comum e específico. Por outro lado, mesmo que nunca se identifiquem com outras mulheres, o gênero “serializa” a todas, mas de modo particular: Cada identidade pessoal é única, a história e o significado que ela faz e desenvolve com suas negociações com outras pessoas, interações comunicativas por meio da mídia, e suas maneiras pelas quais ela utiliza as estruturas específicas em série, cuja história prévia a posicionou. Nenhuma identidade de uma mulher individual, então, irá escapar das marcas de gênero, mas como o gênero caracteriza a sua vida é próprio dela11. No caso da Malagueta e das escritoras reunidas por seu selo, seria possível pensar que a orientação sexual das autoras, de seu público e/ou de suas personagens como a principal relação identitária, definindo uma “serialidade” nos termos de Young, ou realizando, nos termos de Sônia Maluf, um movimento centrífugo em relação, por exemplo, à literatura de autoria feminina, de forma geral. Mesmo antes de definir - caso fosse possível - uma identidade lésbica, a existência da editora movimenta essas mesmas definições. Da mesma forma que as escritoras mulheres, elas são perguntadas se fazem “literatura lésbica” e o que seria isso. É um enquadramento inescapável para aquelas que participam do projeto da Editora Malagueta. Um catálogo, várias identidades Em termos de “identidade” visual, todos os livros da Malagueta tem o mesmo formato: relativamente pequeno, sem orelhas, com capas trazendo ilustrações ou fotos de mulheres, acompanhadas ou não, com o título com destaque maior que o nome da autora. Nas contracapas, em sua maioria, aparece um pequeno resumo do enredo, iniciado com o nome da personagem principal e as suas características, em um tempo verbal presente, enfatizando o caráter referencial e as ações previstas. Uma fórmula que segue o padrão dos romances mais comerciais e populares, cuja maior ênfase é a divulgação da intriga, da história, como estratégia de atração à leitora, supondo, por exemplo, um encontro com o livro numa livraria convencional ou virtual. Seu catálogo é, majoritariamente, composto de romances (foco principal aqui, deixando de lado um livro baseado em uma dissertação sobre a série de televisão L Word e um de crônicas sobre lesbianismo), de diferentes recortes temáticos, mas sempre protagonizados por personagens lésbicas, com histórias de amor com “final feliz”. Aparecem descrições de relações sexuais que não fogem dos padrões estabelecidos das narrativas eróticas mais habituais, mescladas com declarações de amor, em alguns momentos. Os “finais felizes”, que fazem parte da ideia de representação positiva da homossexualidade feminina por parte da editora, também tem sido continuamente celebrados, inclusive com rituais de casamento, como uma reafirmação de um modelo hegemônico de relacionamentos. Há exceções, como os novos arranjos familiares do romance de Lúcia Facco, que busca resgatar um tempo prepatriarcal, e também o de Fátima Mesquita, Amores Cruzados, que traz um final mais aberto, sem a preocupação de definir caminhos para uma relação recém-iniciada. Contudo, em outros, como Aquele dia junto ao mar, de Karina Dias, Os caminhos de Lumia, de Lara Orlow, Glamour, de Drikka Silva ou Shangrilá, de Marina Porteclis, tal expectativa é cumprida Ao percorrer alguns títulos da Editora Malagueta, tanto em relação ao seu formato material quanto à estrutura textual, é possível perceber um atrelamento à literatura de massa, popular ou de entretenimento. Vale frisar que utilizo tais termos sem 11. Ibid., p. 33. 43 Iberic@l - Numéro 2 nenhum caráter pejorativo, mas ressaltando à sua vinculação a um certo nicho de mercado editorial. É importante ressaltar que os traços das personagens enfatizam características socialmente valorizadas, como a beleza (em sua definição mais padronizada) e juventude, não aparecendo possibilidades de corporalidades alternativas. Apesar disso, ainda são distintos dos romances populares - como aqueles vendidos em banca de jornais e revistas - que reforçam continuamente papéis de gênero tradicionais. Dada à pouca visibilidade e muito preconceito em relação às mulheres homossexuais, o catálogo ainda é restrito a poucas escritoras que, corajosamente, se expõem às mais variadas críticas. Se algumas já detêm algumas tomadas de posição que as permitem transitar melhor entre a linguagem “literária” de proposta e/ou acadêmica, como é o caso de Lúcia Facco, outras - muitas frequentadoras de sites lésbicos - repetem mais as fórmulas da literatura popular romântica. Esse é um lado da questão. Por outro lado, diante de alguns posicionamentos feministas, em especial os mais contemporâneos, como analisar o catálogo da Editora Malagueta sem pensarmos na rigidez identitária envolvida? Será que essas personagens e temáticas também não se associariam a uma espécie de “pedagogia” sobre as formas de vivenciar suas experiências? Como lembra Guacira Lopes Louro, “as muitas formas de fazer-se mulher ou homem, as várias possibilidades de viver prazeres e desejos corporais são sempre sugeridas, anunciadas, promovidas socialmente (e hoje possivelmente de formas mais explícitas do que antes). Elas são também, renovadamente, reguladas, condenadas ou negadas12”. Talvez haja uma espetacularização dessas narrativas, citando Elvira Vigna, pela: apresentação de uma história de forma já enquadrada em uma explicação prévia, contando com um acervo de conhecimentos rasos, sem possibilidade de renovação. E tudo que não der para ser enquadrado dentro deste acervo já conhecido é rejeitado por lento ou ininteligível. Tal leitor e tal narrador são limitados e continuarão sendo limitados pela vida afora, porque estão fechados a experiências diferentes das que já ‘conhecem’13. Mesmo que seja uma narradora, no feminino, dirigindo-se a seu público também feminino, criadas por escritoras mulheres, todas “serializadas” pela orientação sexual. Em contraponto a isso, a obra de Elvira Vigna tem destacado com suas personagens em constantes movimentos entre máscaras, identidades e corpos. Ela está concatenada com paradigmas contemporâneos como o da diferença sexual, além dos papéis de gênero, mostrando o lado arbitrário das normas, buscando subverter e questionar tal representação também no nível narrativo e na instabilidade das descrições corporais. Como sabemos, o corpo tem sido um terreno de disputas conceituais por diversos campos de saber, incluindo aí teorias feministas. É um dos “nós” onde se disputam as próprias definições de sexo e gênero, sendo o local tanto de ancoragem das identidades quanto da inscrição das construções culturais e da atribuição das diferenças. Se os corpos são constituídos por distintos discursos e formas de conhecimento, são também um produto cultural que pode (e deve ser) indeterminado – como estratégia para se tentar minar os pares binários que se perpetuam, em sua continuidade normativa. E a narrativa literária pode ser também esse local de indeterminação. Aí destaca-se a obra de Elvira Vigna. Seus romances trabalham em um gênero literário “falsamente” policial. Apesar de suas narrativas poderem ser assim “vendidas”, pois sempre aparecem cadáveres, policiais e crimes, não é a “resolução” de um assassinato o principal mote do enredo. O foco narrativo de seus romances é sempre em primeira pessoa e suas protagonistas são (ou poderiam ser, em alguns casos) as perpretadoras dos assassinatos ou acidentes causadores de morte. Essas narradoras são habilidosas, na medida em 12. Louro, Guacira Lopes, “Pedagogias da sexualidade”, in O corpo educado, Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 9. 13. Vigna, Elvira, “Em busca de um narrador”, [Recurso eletrônico], 2011, Disponível em www.vigna.com.br, Acesso em 06 de março de 2012. 44 Campo Literário e Identidades de Gênero que estruturam seus relatos conforme seus interesses em (re)velar o que é possível ou desejável. O seu primeiro romance, O assassinato de Bebê Martê, já traz, em seu título, um elemento da literatura policial. A narradora (sem nome) edita um concurso de contos em sua empresa e faz referências ao relato que teria recebido de Lúcia, no qual narra o assassinato do próprio pai, o Bebê Martê do título. Lúcia, ainda moradora de uma cidade do interior - Miraflores - teria sufocado seu pai com um travesseiro. Única filha de Bebê Martê, entre quatro irmãos, Lúcia pede para o pai, após a festa dos 80 anos dele, para ensiná-la a gozar a vida (ele, o italiano que tanto sabia viver, com muitas mulheres e fanfarrão). O pai ri de seu desejo e ela o sufoca com um travesseiro e relembra o sentimento de alteridade, lembrando-se que, se o pai era imigrante, a estrangeira sempre tinha sido ela. Nada provado, Lúcia se reinventa. Muda de cidade, de roupa, de nome e de “cara”. Cruel consigo mesma e com os outros, autoavalia-se e avalia os outros, com muitos preconceitos de gênero e de classe. Sempre diante de espelhos e até dos vidros dos quadros nas paredes. Os quadros aqui são importantes, pois há um pintor entre as duas mulheres do romance: Stefano. Ele é um homem “pequeno, insignificante, feminino” e que atrai a narradora desde menina. Ela, uma mulher que tem gestos “masculinos” e que, ao final, se relaciona sexualmente com ele, um homem de pele lisa, cujo peito ela beija, arrancando-lhe suspiros, “brincando” com os papéis sexuais tradicionais. Stefano é que provoca as mudanças e “desmascara” ambas. Também ele ensinará restauração de pinturas no curso planejado pelas duas. Restaurar é reconstituir o original, por baixo dos resíduos do tempo. Um tempo que também se instaura, apesar do rosto “retocado” dessas mulheres. No romance seguinte, Às seis em ponto, a autora, mais uma vez, faz a narradora matar o pai, agora acidentalmente. Algumas situações se repetem, como uma narradora, em primeira pessoa, nada confiável, um crime que envolve pai e filha, que vive no espaço entre uma cidade do interior e a grande cidade, bem como referências à pintura. Com intertítulos, marcadores do distanciamento da narradora diante de si e dos outros (por exemplo, “A mulher que levantava às seis em ponto”, “A mulher que lembrava de um quadro que nunca existiu” etc.), Maria Teresa está sempre se vendo à distância, preparando gestos e rostos como máscaras. Aprende a reproduzir sorrisos alheios, expressões e até entonações de outras pessoas, próprias para cada situação, em performances corporais, faciais, vocais aprendidas da mãe e de “quase-amigas”. Ou seja, personagens como Maria Teresa ressaltam as “pedagogias” sociais ancoradas nos corpos, como aponta Guacira Lopes Louro, em relação às “pedagogias” atuantes nos corpos: A produção dos sujeitos é um processo plural e também permanente. Esse não é, no entanto, um processo do qual os sujeitos participem como meros receptores, atingidos por instâncias alheias. Ao invés disso, os sujeitos estão implicados e são participantes ativos na construção de suas identidades (...) Na constituição de mulheres e homens, ainda que nem sempre de forma evidente e consciente, há um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos na determinação de suas formas de ser ou “jeitos de viver” sua sexualidade e seu gênero14. Em Coisas que os homens não entendem, desde seu título, há um jogo com vários sentidos. Desde o mais denotativo, como um desabafo feminino, mas também faz referência a Os Lusíadas, de Camões. Nita, a narradora, está entre Nova York e o bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. No momento da narrativa está voltando (ou chegando?) no Rio de Janeiro, à casa onde se deu todo o episódio desencadeador de sua ida aos Estados Unidos: ela, acidentalmente, matou o amigo Aureliano (o Lia). A ideia da ida e da volta e do encerramento da viagem se dar quando se retorna ao ponto inicial marca o poema épico português e também o romance contemporâneo de Elvira Vigna. Nita enfrenta “coisas que os homens não entendem” (não mais as perigosas coisas do mar, do Canto V de Camões), não só os grandes desafios da aventura ultramarina, mas o elucidar da própria história em busca de um ponto ou 14. Louro, Guacira Lopes, “Pedagogias da sexualidade”, op.cit., p. 26. 45 Iberic@l - Numéro 2 (porto) de chegada que, no fim, estaria no seu relacionamento com Nando, irmão do morto. Ela reluta a se entregar a isso pois, se chegar e parar nesse “porto”, não mais poderá continuar andando. Não há uma revelação de toda essa trajetória da personagem, desde sua infância até o momento presente do enredo. Aos dezessete anos, começa a trabalhar, única mulher no jornal onde Barbosa, pai dos amigos, é repórter policial. Tornam-se amantes “para que ele e os outros homens de uma redação de um jornal que não existe mais soubessem que eu não era uma criança, que eu não estava intimidada, que eu, porra, era igual a eles15”. Nessa relação com Barbosa, sente que ele tem medo dela, apesar de ser uma “menina”, mas dura e sem afeto, alguém que “inverte” as coisas e “trepa” em cima dele, e de outros e de outras, como a namorada norte-americana Eva, sem nem tirar a roupa toda, olhando olhos nos olhos, dura.” No evento do tiro acidental que mata Lia, Barbosa está segurando o revólver e Nita o agarra com raiva, “pois descobrira que ela não tinha estado tão no controle: “Uma parte de mim, uma parte importante de mim teria querido que fosse à vera, eu fêmea, que tivesse sido bom demais e não foi16”. A impossibilidade de ser essa “fêmea” faz tudo dar errado. Retorna ao Brasil, com Nando, entre idas e vindas, como os marinheiros de Camões, mas com discurso irônico e ambígüo de Nita: “Não foi bem assim, cortando o mar sereno, com vento sempre manso e sempre irado, até que houveram vista do terreno em que nasceram, sempre desejado. Foi mais complicado17”. Ambigüidades, impossibilidades e instabilidades são características das suas personagens, acentuadas no seu romance Deixei ele lá e vim, também narrado em primeira pessoa, sob a perspectiva de Shirley Marlone. Aliás, não há certezas no livro, principalmente sobre o assassinato de Dô no hotel em que Shirley se encontrava na noite do crime. É possível que ela seja a criminosa, mas a ênfase é no sentimento de deslocamento da protagonista. Ela está constantemente procurando “portas de saída”, escondendo seus olhos atrás de óculos escuros, já que não é possível esconder-se dos olhares alheios. Há controle sobre o volume da sua voz, seu silicone está torto, seus pés e suas pernas nem sempre respondem. As suas falas deixam escapar pistas causadoras dessas dificuldades: Recém-chegado a esta organização que, em falta de melhor definição, chamo de eu, ele, no entanto, não se nega a me acompanhar, e se arrasta embaixo de mim porta afora. Consigo de alguma maneira me tornar uma só unidade, fazer com que meus pedaços, sempre tão díspares, se integrem. Nunca dura, mas aproveito18. Se, logo antes, parece que o pronome “ele” refere-se ao pé, conforme os pedaços que se juntam, esse “ele” pode se referir à identidade masculina anterior de Shirley, uma mulher transexual. Ela, recusada pelo teste para um filme, que só seleciona “loiras gostosonas” não tem um corpo adequado (por ser uma mulher fora dos padrões?). Ou poderia ser “abjeto” nos termos de Judith Butler, como avalia Adelaide Miranda: É a operação de delimitação que qualifica os “corpos que importam” e aqueles que são excluídos da significação, opacos à representação. Esses últimos são simultaneamente resíduos indesejáveis e condição de possibilidade dessa operação Mas os excluídos resistem a esse processo, como faz Shirley por meio de várias estratégias. De acordo com Judith Butler, a rematerialização seria justamente uma possível representação. Assim uma das estratégias de Shirley é a busca por uma identidade, ou, nas palavras da protagonista, uma unidade, 15. Vigna, Elvira, Coisas que os homens não entendem, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, p. 85 16. Ibid., p. 119. 17. Ibid., p. 156. 18. Vigna, Elvira, Deixei ele lá e vim, São Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 24. 46 Campo Literário e Identidades de Gênero referindo-se ao seu corpo19. A história de Shirley, enfim, é cheia de eventos do tipo “deixei ele lá e vim” que poderiam ter por referência tanto o seu depoimento sobre a morte de Dô, quanto a seu próprio corpo masculino abandonado, mostrando arbitrariedade cultural inscrita nos corpos e nos gêneros. Elvira Vigna tem arriscado uma forma de representação alternativa para suas personagens sempre em processo, buscando uma “cara” possível em um mundo que lhes pede estabilidade e lógica de sexo e de gênero, lembrando da matriz de inteligilidade de gênero, teorizada por Judith Butler: “Gêneros ‘inteligíveis’ são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo20”. As personagens da escritora ora buscam se tornar “inteligíveis” ora transgridem a matriz. Daí a estranheza de suas narrativas, que apelam também à inteligência do leitor e da leitora incomodandoos e chamando-os a um novo posicionamento. Ou como ela mesma diz, busca um narrador que se desvencilhe da expectativa do outro. De certa forma, questionar a matriz de inteligibilidade de gênero é também parte do projeto da Malagueta, ao fazer de um grupo marginalizado pelo gênero e pela orientação sexual a sua temática, o seu corpo de escritoras e seu público. Poder-se-ia pensar que os livros da editora estaria falando “por” seu público, constituído, em sua maior parte, por homossexuais. Esse público teria, então, uma possibilidade de se identificar e ser “representado” nas obras da editora. Como citado anteriormente, Iris Young trabalha o conceito de representação pela forma da perspectiva e da natureza do relacionamento entre aproximações possíveis entre representado/as e representantes. Talvez possamos pensar em uma fala do representante não “por” ou “como” seus representados, mas uma fala “com”. Um diálogo, enfim. Como aproximar a ideia de representação, desenvolvida pela filósofa política, e a representação literária, por exemplo, de grupos marginalizados? Uma das possibilidades seria a aproximação da noção de perspectiva social com o posicionamento do narrador. Assim, poderíamos pensar, analogicamente, qual seria a natureza que o/a autor/a desenvolve com esse sistema de representação de linguagens, que é o romance. E, especificamente, na representação de grupos marginalizados, o autor/a falaria “por”, “como” ou “com” seus representado/as? Estaria construindo, segundo a teoria bakhtiana, um romance verdadeiramente polifônico e dialógico, ao representar as diferentes perspectivas de suas personagens? Mas, ao adotar um interesse, não haveria também a possibilidade de estabelecer também um diálogo “com” o leitor, “com” a leitora, de forma geral, não só “com” seus representados/as? Parece-me que essa é a proposta de Elvira Vigna ao problematizar a posição de suas narradoras, mostrando esse processo de movência e, não partindo de um pressuposto de uma identidade fixa de gênero e de orientação sexual, por exemplo. A busca pelo seu próprio jeito de ser é um processo doloroso, pois, como lembra Zygmunt Bauman, a identidade pode ser vista não como um estado, mas sim como uma procura. Como salienta Bauman, não são todos que poderão “escolher” suas identidades como num guarda-roupa. Na nossa sociedade estratificada, pairamos entre duas frentes. Num dos pólos dessa hierarquia global estão aqueles que constituem e desarticulam à vontade as suas identidades e : No outro pólo se abarrotam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não tem direito de manifestar suas preferências e que, no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros - identidades de que eles próprios se ressentem mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que 19. Miranda, Adelaide Calhman de, “Gêneros indefinidos, corpos inadequados em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”, in Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, Dalcastagnè, Regina, Leal, Virgínia Maria Vasconcelos (dir), São Paulo, Horizonte, 2010, p. 116. 20. Butler, Judith, Problemas de gênero, op.cit, p. 200. 47 Iberic@l - Numéro 2 esteriotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam21. Daí, talvez, desse pólo, surjam propostas políticas e militantes como a da Editora Malagueta: uma resposta, ainda incipiente, ainda problemática, para uma posição tão estigmatizada. Por sua vez, histórias como as das personagens de Vigna mostram o difícil processo de identidades marginalizadas, divididas entre as que podem escolher e as que querem escolher e fugir de estereótipos - lugares que não lhes comporta. Os romances de Elvira Vigna representam, literariamente, o desconforto de se estar no meio do caminho entre o que desejamos ser e o que os outros nos fizeram, lembrando aqui de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos. E, nos convidam sempre a dialogar com elas e com nós mesmas/os. 21. Bauman, Zygmunt, Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005, p. 44. 48 Campo Literário e Identidades de Gênero Referências bibliográficas Bauman, Zygmunt, Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi, trad. de Carlos Alberto Medeiros, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. Bakhtin, Mikhail, Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, trad. de Aurora Fornoni Bernadini e al, São Paulo, Hucitec, Editora da Unesp, 1993. Bourdieu, Pierre, As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário, trad. de Maria Lúcia Machado, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. Butler, Judith, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Costa, Claudia de Lima, “O sujeito no feminismo: revisitando (novamente) os debates”, in Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, Dalcastagnè, Regina, Leal, Virgínia Maria Vasconcelos Leal (dir.), São Paulo, Horizonte, 2010, p. 200-233. Dias, Karina, Aquele dia junto ao mar, São Paulo, Malagueta, 2009. Facco, Lúcia, As heroínas saem do armário: literatura lésbica contemporânea, São Paulo, GLS, 2004. ---, As guardiãs da magia, São Paulo, Malagueta, 2008. Gilbert, Sandra M. et GUBAR, Susan, The madwoman in the attic: The woman writer and the nineteenthcentury literary imagination, New Haven, Yale University Press, 1984. Lauretis, Teresa de, “A tecnologia do gênero”, trad. de Susana Borneo Funck, in, Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura, Hollanda, Heloísa Buarque de (dir), Rio de Janeiro, Rocco, 1994, p. 206-242. Leal, Virgínia Maria Vasconcelos Leal, “Deslocar-se para recolocar-se: os amores entre mulheres nas recentes narrativas brasileiras de autoria feminina”, in Pelas margens: representação na narrativa brasileira contemporânea, Dalcastagnè, Regina, Thomaz Cesar Paulo (dir.), São Paulo, Horizonte, 2011, p. 248-261. Louro, Guacira Lopes, “Pedagogias da sexualidade”, in O corpo educado: pedagogias da sexualidade, Belo Horizonte, Autêntica, 2007, p. 7-34. Maluf, Sônia Weidner, “Políticas e teorias do sujeito no feminismo contemporâneo”, in Gênero em movimento: novos olhares, muitos lugares, Silva, Cristiani Bereta da, Assis, Gláucia de Oliveira, Kamita, Rosana C (dir.), Florianópolis, Mulheres, 2007, p. 31-44. Mesquita, Fátima, Amores cruzados, São Paulo, Malagueta, 2009. Miranda, Adelaide Calhman de, “Gêneros indefinidos, corpos inadequados em Deixei ele lá e vim, de Elvira Vigna”, in Deslocamentos de gênero na narrativa brasileira contemporânea, Dalcastagnè, Regina, Leal, Virgínia Maria Vasconcelos Leal (dir.), São Paulo, Horizonte, 2010, p. 114-123. Orlow, Lara, Os caminhos de Lumia, São Paulo, Malagueta, 2010. Porteclis, Marina, Shangrilá, São Paulo, Malagueta, 2009. Silva, Drikka, Glamour, São Paulo, Malagueta, 2010. Vigna, Elvira, O assassinato de Bebê Martê, São Paulo, Companhia das Letras, 1997. ---, Às seis em ponto, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. ---, Coisas que os homens não entendem, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. ---, Deixei ele lá e vim, São Paulo, Companhia das Letras, 2006. ---, Em busca de um narrador, [Recurso eletrônico] 2011. Disponível em www.vigna.com.br. Acesso em 06 de março de 2012. Woolf, Virginia, Profissões para mulheres, trad. de Patrícia de Freitas Camargo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. Young, Iris Marion, “Gender as seriality: thinking about women as a social collective”, in Intersecting 49 Iberic@l - Numéro 2 Voices: dilemmas of gender, political philosophy and policy, Princeton, Princeton University Press, 1997. ---, Inclusion and democracy, Oxford, Oxford University Press, 2000. 50 Escolhas inclusivas? Escolhas inclusivas? A personagem na pena das escritoras brasileiras/paranaenses contemporâneas1 Lúcia Osana Zolin Resumo: A partir de um corpus constituído por narrativas publicadas por escritoras brasileiras/paranaenses pós 1970, tratamos de empreender, nesse ensaio, reflexões acerca das identidades aí representadas, perscrutando questões relacionadas a gênero, orientação sexual, cor, etnia, classe social, entre outras. O aporte metodológico é fornecido por teóricos/as do feminismo crítico, empenhados/as, de um lado, em questionar, no âmbito da literatura, as balizas epistemológicas tradicionais dos discursos hegemônicos, responsáveis pela naturalização das diferenças hierarquizadas de gênero; de outro, empenhados/as em desnudar as práticas discursivas de escritoras, bem como o modo como representam a sociedade e se posicionam frente às suas mazelas. Palavras-chave: personagem, representação, literatura brasileira contemporânea, autoria feminina, Paraná/Brasil. Résumé : À partir d’un corpus composé de récits publiés par des écrivaines brésiliennes, originaires de l’état du Paraná et publiées après 1970, nous entreprenons, dans cet essai, une réflexion sur les identités qui y sont représentées, en interrogeant notamment, les questions liées au genre, à l’orientation sexuelle, à la couleur, à l’origine ethnique et à la classe sociale, entre autres. Notre approche méthodologique s’appuie sur des théoricien[ne] s issu[e]s de la critique féministe qui, d’une part, cherchent à questionner, dans le cadre de la littérature, les balises épistémologiques traditionnelles des discours hégémoniques, responsables de la naturalisation des différences hiérarchisées entre les genres, et, d’autre part se proposent de dévoiler les pratiques discursives des écrivaines, ainsi que la façon dont elles représentent la société et se positionnent face au malaise social. Brésil. Mots-clefs : personnage, représentation, littérature brésilienne contemporaine, écriture-femme, Paraná/ A exclusão da escritora brasileira do cânone literário nacional consiste em um dos principais debates empreendidos pela crítica literária feminista no Brasil. Do mesmo modo, a exclusão de segmentos sociais marginalizados e/ou de minorias do universo representado na literatura legitimada pelas grandes casas editoriais brasileiras tem sido, também, problematizada. Nesse contexto, têm-se problematizado, por outro lado, o fato de, tradicionalmente, como atestam tantas pesquisas realizadas no âmbito da crítica literária feminista, o fato de a mulher ser representada na literatura hegemônica nos moldes como era/é concebida no seio da ideologia patriarcal – silenciada, oprimida, objetificada 2. A literatura de autoria feminina, na medida em que vai se consolidando, vai lhe conferindo novos contornos, compondo 1. Resultados parciais da pesquisa intitulada “A personagem na literatura de autoria feminina paranaense”, desenvolvido, sob nossa coordenação, na Universidade Estadual de Maringá, com o financiamento da Fundação Araucária, e divulgado no Simpósio Internacional “A literatura brasileira contemporânea” (Université de Paris-Sorbonne - 2012) com ônus da CAPES. 2. Referente à objetificação, entendida como maneira pela qual indivíduos ou grupos de indivíduos tratam os outros como objetos. É a prática das ideologias patriarcal e pós-colonial de tratar o outro como inferior (cf. Bonnici, 2007). 51 Iberic@l - Numéro 2 outros rostos, nem sempre subjetificados3, mas, em sua heterogeneidade, mais próximos da ideia que o pensamento feminista vem construindo em torno da categoria “mulheres”. A pesquisa cujos resultados parciais tratamos de analisar nesta ocasião caminha no mesmo sentido de diversas outras iniciativas de pesquisadores/as brasileiros/as que se empenham em “resgatar” a produção literária de mulheres em regiões periféricas do país, ocupando-se de publicar antologias, dicionários, entre outras formas de divulgação, que se misturam aos ensaios acadêmicos no sentido de promover-lhe a visibilidade junto ao campo literário nacional. Trata-se de tentar responder questões como: quem são as escritoras brasileiras/paranaenses? O que lhes caracteriza a produção literária? Quais suas opções estéticas e ideológicas? Em que termos representam o contexto de onde emergem? E a mulher? Que lugar ocupa nas páginas que engendram? Nessas reflexões, ocupamo-nos dessas questões, tomando como corpus um rol de 22 (vinte e dois) romances e 26 (vinte e seis) coletâneas de narrativas curtas, sendo 16 (dezesseis) de contos e 10 (dez) de crônicas, de escritoras paranaenses contemporâneas, publicados a partir dos anos 1970 por editoras comerciais ou por meio de órgãos públicos, como a Secretaria de Estado da Cultura (SEEC). O recorte pauta-se na legitimação que a casa editorial oferece, uma vez que nossa opção metodológica se esquiva da abordagem qualitativa desses textos literários para se valer de aspectos quantitativos, relacionados às opções das escritoras na construção das personagens que lhes compõem as histórias. De modo mais específico, analisamos os/as protagonistas desses romances, contos e crônicas, perscrutando-lhes aspectos que lhes alicerçam a construção, como sexo, estrato socioeconômico, ocupação, faixa etária, orientação sexual, tipo de relações que estabelecem com outras personagens e época em que estão ambientados/as. Salientamos que se trata da mesma metodologia utilizada por Regina Dalcastagnè, pesquisadora da UNB/CNPq, para delinear o perfil da personagem do romance brasileiro contemporâneo publicado entre os anos de 1990 e 2004, por três grandes editoras brasileiras: Record, Companhia das Letras e Rocco. Os resultados dessa pesquisa de grande fôlego servem, também, de contraponto a essas nossas considerações preliminares acerca da personagem feminina que povoa a ficção de autoria feminina brasileiro/paranaense. Dentre os aspectos conclusivos dessa pesquisa que mais de perto nos interessam aqui, assinalamos: 1) o fato de os homens contabilizarem 72% dos autores publicados; 2) dentre as 1245 personagens importantes desses romances, 62% são masculinas; 3) dentre os/as protagonistas, 71% são homens; 4) são, também, pertencentes ao sexo masculino 68% dos/as narradores/as; 5) quanto à ocupação das personagens femininas desses romances, quase 50% são donas-de-casa, empregadas domésticas, não têm ocupação, ou não há indícios de sua ocupação. Como bem assinala Dalcastagnè, no romance brasileiro contemporâneo, escrito por aqueles que possuem legitimidade para produzirem literatura – os homens brancos, cultos, de classe média, oriundos dos grandes centros –, estão ausentes os negros, os pobres, os velhos, os homossexuais, os deficientes físicos e até as mulheres; as chances desses grupos terem voz ali são ainda mais reduzidas: “os lugares de fala no interior da narrativa também são monopolizados pelos homens brancos, sem deficiências, adultos, heterossexuais, urbanos de classe média4”. A literatura de autoria feminina tem, não raro, sido lida como um lócus privilegiado de reflexão acerca de algumas dessas questões. Isso porque se constitui a partir de outra perspectiva social, nos 3. Relacionado à idéia de sujeito enquanto agente, termo relacionado à teoria feminista poruq subjaz às percepções que a mulher tem de sua identidade e de suas habilidades para assumir sua posição na sociedade e revidar as atitudes e os pressupostos do patriarcalismo (cf. Bonnici, 2007). 4. Dalcastagné, Regina, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo”, Cronópios - Portal de literatura e arte. São Paulo, 2007, p. 2. Disponível em http://www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2398. Acesso em 15 de outubro de 2008. 52 Escolhas inclusivas? termos de Iris Marion Young5, fora do ângulo de visão do grupo hegemônico, regulador do chamado senso comum. Como tal, capaz de promover o desnudamento da distância existente entre o modo como a ideologia patriarcal resolve as questões relacionadas à mulher e seus supostos desejos, conferindo-lhe papéis a serem desempenhados e lugares a serem ocupados, e o modo como a própria mulher pensa e sente essas questões. Nesse sentido, há que se salientar que a noção de perspectiva social surge atrelada à ideia de vivência, de experiência vivida e, como tal, implica uma maneira peculiar de ver e de expressar o mundo. Embora por vezes polêmica – uma vez que a categoria “mulheres” não pressupõe uma identidade fixa, conforme pondera Judith Butler6, afetada que é, além do gênero, pelo entrecruzamento com outros eixos culturais, sociais e políticos –, considerar a perspectiva social feminina no processo representacional que a literatura opera, sobretudo no que se refere ao modo de estar da mulher na sociedade, certamente implica promover importantes ruídos “na medida em que pode desnaturalizar as perspectivas sociais dominantes incorporadas no habitus, forçar seus limites e, assim, gerar mudanças7”. Assim é que, ao examinarmos a construção do/a protagonista na amostra referida de romances, contos e crônicas de autoria feminina paranaenses, deparamo-nos, conforme se pode verificar na tabela 1, logo abaixo, com um universo que se em parte reduplica certos padrões de representação do senso comum, circunscrevendo, por exemplo, protagonistas brancos/as, em sua maioria de classe média e adultos, chama a atenção para o fato de, nos romances, 77,3% deles/as serem mulheres; nos contos, 46,2%; nas crônicas, as protagonistas somam 61,4%. Isso implica dizer que as narrativas de autoria feminina dessa amostra são protagonizadas, em sua maioria, por mulheres. Feminino Masculino Sem indícios TOTAL Romance 77,3% (17) 22,7% (5) 0 100 % (22) Conto 46,2% (96) 38,9% (81) 14,9% (31) 100 % (208) Crônica 61,4% (305) 37,1% (184) 1,2% (6) 100 % (496) TOTAL 57,6% (418) 37,2% (270) 5,1% (37) 100% (726) Tabela 1 – construída sobre 726 observações, definidas pelo critério: Protagonista & sexo Há que se considerar, ainda, no caso dos contos, o fato de quase 15% dos/as protagonistas serem construídos/as de modo a não deixarem indícios do gênero a que se ligam. Isso não nos parece um dado gratuito, antes parece apontar para certa tendência de as escritoras minimizarem, nessas narrativas, a importância das hierarquias de gênero. Noutras palavras, ao não deixarem indícios se a voz que fala é masculina ou feminina, elas abrem a possibilidade da equivalência: homens e mulheres partilhando interesses comuns. Apesar de esses resultados, num certo sentido, serem esperados, já que a literatura de autoria feminina tem se mostrado sensível a fenômenos como o da invisibilidade e o do silenciamento históricos conferidos à mulher, nossa hipótese era a de que, no Paraná, essa prática fosse relativizada, dadas certas conjunturas impostas pelo contexto sociocultural. Como já nos referimos em trabalhos anteriores8, trata-se de um Estado de tradição agrária, constituído a partir de importantes regiões agrícolas e de 5. Young, Iris Marion, Inclusion and democracy, Oxford, Oxford University Press, 2000. 6. Butler, Judith, Problemas de gênero: o feminismo e a subversão da identidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. 7. Miguel, Luis Felipe, “Perspectivassociais e dominação simbólica: a presença política das mulheres entre Iris Marion Young e Pierre Bourdieu”, Revista Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n° 36, jun. 2010, p. 25-49. 8. Zolin, Lúcia Osana, “Escritoras paranaenses: questões de estética e de ideologia”, in Deslocamentos da escritora brasileira, Zolin, Lucia Osana, Gomes, Carlos Magno (dir.), Maringá, Eduem, 2011. 53 Iberic@l - Numéro 2 núcleos coloniais cujas características conservadoras, relacionadas a papéis sociais e de gênero, num certo sentido, ainda subjazem às práticas socioculturais contemporâneas. Como bem esclarece Teixeira, “sob o manto da permissividade, ou do respeito a todas as expressões individuais e coletivas, está um Paraná austero, conservador em suas práticas políticas e sociais, um estado vigilante de seu código patriarcal9”. No entanto, a romancista paranaense contemporânea traz para o primeiro plano das tramas que engendra figuras femininas que, já num primeiro olhar, parecem deslocadas em relação aos papéis tradicionais femininos e aos esquemas de representação mais recorrentes na arena literária. Não só por figurarem como protagonistas, mas também por assumirem, no âmbito profissional, lugares inimagináveis na pena dos já referidos escritores prestigiados nas grandes casas editoriais. No lugar das tradicionais ocupações femininas que, predominantemente, giram em torno de afazeres domésticos, as protagonistas em questão ocupam-se de variadas funções, menos a de donas de casa ou de empregadas domésticas, apontando para uma espécie de ruído que sugere a desestabilização do habitus, a que se refere Bourdieu, associado aos papéis femininos. São elas advogadas, jornalistas, escritoras, diretoras de produção, farmacêuticas, professoras, modelos, empresárias, balconistas, cantoras, profissionais do sexo e estudantes. A representação literária da mulher assume, portanto, nesse recorte, matizes contra-ideológicos na medida em que implica a construção de imagens femininas subversivas em relação àquelas erigidas pelo imaginário patriarcal e tornadas legítimas pelas práticas de poder. Um dos sentidos que o historiador italiano Carlo Ginzburg confere ao conceito de representação é o de tornar visível a realidade representada e, portanto, de lhe sugerir a presença10. Também para Roger Chartier, o conceito de representação deve ser entendido como instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar como ele é11. Nesse caso, o “objeto ausente” – a mulher – é representado não só como capaz de ocupar legitimamente lugares de destaque nas narrativas em questão – o lugar de protagonistas –, como também na sociedade em que se inserem, como profissionais das mais diversas áreas. É, ainda, dotado de voz, já que, nos romances, quase 30% dessas protagonistas acumulam a função de narrar a própria história; nos contos o número de narradoras-protagonistas ultrapassa os 28%; nas crônicas, chega a 33%. Nesse caso, ainda que o número de narradoras protagonistas não pareça muito significativo, há que se destacar o fato de que, no romance e nas crônicas, dentre os protagonistas do sexo masculino (5% e 37,5%, respectivamente), nenhum ocupa a função de narrador da história; nos, contos, apenas 18% deles narram a própria história. Protagonista/narradora (feminino) Protagonista/narrador (masculino) Romance 29,4% (5) 0 Conto 28,1% (27) 22,2% (18) Crônica 33,3% (99) 0 Total 131 18 Tabela 2 – construída sobre 726 observações, definidas pelo critério: Protagonista-narrador & sexo Parece que esses resultados nos convidam a pensar, não na simples inversão dos papéis como forma de revide feminista, em que a lógica binária voz x silêncio, tradicionalmente associada a homem x mulher, passa a ser inversamente associada a mulher x homem. E sim no fato já constatado na pesquisa maior a que nos referimos anteriormente (Dalcastagnè, 2008) de que a escolha do sexo das personagens, em certa 9. Teixeira, Níncia Cecília Ribas Borges, Escrita de mulheres e a (des)construção do cânone literário na pós-modernidade: cenas paranaenses, Guarapuava, UNICENTRO, 2008, p. 68. 10. Ginzburg, Carlo, Olhos de madeira, Nove Reflexões sobre a Distância, São Paulo, Companhia das Letras, 2001. 11. Chartier, Roger, A história cultural, Rio de Janeiro, Bertrand, 1990. 54 Escolhas inclusivas? medida, está relacionada ao sexo do/a autor/a do livro. Escritoras tendem a promover a visibilidade não só da mulher, mas da mulher capaz de narrar, já que, da perspectiva social de que falam, não soa natural a marginalização e o silenciamento históricos que lhe tem marcado a trajetória social. Nesse sentido, ganha importância, por si só, a existência dessas narrativas de autoria feminina paranaenses/brasileiras. Se é no centro das representações que o problema da legitimação do poder se encontra, uma vez que elas suscitam a adesão dos indivíduos aos sistemas de valores representados, essas narrativas, embora não sejam publicadas por grandes editoras nacionais e não circulem, portanto, no campo literário brasileiro, elas se oferecem como alavancas capazes de suscitar questionamentos. Em Esboço de Uma Teoria da Prática, Pierre Bourdieu pensa o conceito de representação como estratégia de que dispõe o indivíduo para transformar ou conservar estruturas sociais, produzindo-as, reproduzindo-as e/ou legitimando-as. Segundo ele: tem-se que homens e mulheres constroem representações de si mesmos e explicam suas práticas de acordo com tais representações. Dessa forma, numa sociedade patriarcal, as referidas práticas determinam atitudes de dominação / submissão. A sociedade através da família e depois através de outros canais (escola, religião, meios de comunicação), introjeta nos indivíduos as representações geradoras de atitudes e comportamentos que se mantêm ao longo de suas vidas12 . Por esse viés, conforme os dados exibidos na tabela 3, logo a seguir, as representações que as escritoras brasileiras/paranaenses fazem acerca das mulheres nas narrativas que engendram apontam para a quebra do silenciamento feminino e, portanto, para o deslocamento do eixo das tendências hegemônicas, em que a dominação masculina, nos termos de Bourdieu, é abalada13. Protagonistas Feminino Protagonistas/narradoras Feminino Romance 77,3% (17) 22,7% (5) Conto 46,2% (96) 33,7% (29) Crônica TOTAL 61,4% (305) 57,6% (418) 33,3% (99) 31,8% (133) Tabela 3 – construída sobre 418 observações, definidas pelo critério: protagonista feminina & narradora Sendo, tradicionalmente, no campo literário brasileiro, o lugar da fala ocupado por homens brancos, heterossexuais de classe média, nosso entendimento, diante desses números, não pode ser outro: ao escolher trazer para a cena narrativa quase 32% de protagonistas do sexo feminino imbuídas da missão de narrar a própria história, a escritora brasileira/paranaense confere à mulher, afinal, o direito de falar. Outro dado que chama atenção nessa amostra diz respeito à orientação sexual das protagonistas dos romances. Em um universo de 22 personagens centrais, duas pelo menos se declaram homossexuais, 9% portanto. Sendo, também, uma delas a narradora da história que se desdobra acerca dos conflitos advindos dessa sua condição. No limite, considerando o tabu que envolve a questão da homossexualidade feminina no âmbito social, bem como o silenciamento da temática na seara literária, trata-se, sim, de um dado relevante. Embora estejamos falando de apenas dois casos, proporcionalmente, eles ganham relevo, já que a amostra é bem pequena – 22 romances, apenas. De qualquer modo, é uma iniciativa que contribui para com a visibilidade e a penetração de perspectivas minoritárias e/ou marginalizadas. Nesse caso, a perspectiva social da/s mulher/es, tradicionalmente silenciada/s e oprimida/s em suas escolhas e 12. Bourdieu, Pierre, Esboço de Uma Teoria da Prática, Oeiras, Celta, 2006, p. 175. 13. Bourdieu, Pierre, A dominação masculina, trad. Maria Helena KÜHER, 4ª ed, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005. 55 Iberic@l - Numéro 2 orientações, ou, simplesmente, a do outro em relação ao universal masculino. Trazer, portanto, para o primeiro plano do romance os conflitos da narradora-protagonista circunscritos em torno de sua orientação sexual, dissonante da heterossexualidade dominante, implica, como nos ensina Bourdieu, abrir, via representações, canais de problematização dos esquemas de pensamento dominantes, os quais tem, tradicionalmente, dirigido e/ou coagido a ação e a representação da sexualidade feminina. Há que se considerar, ainda, segundo essa mesma linha de pensamento, o estrato socioeconômico a que se ligam as protagonistas investigadas: no caso dos romances, 18,2% são da elite econômica, 40,9% são de classe média, mas o que se destaca, todavia é o fato de 36,4% delas serem representantes da classe pobre/baixa; no caso dos contos, 15,9% são da elite econômica, 26,4% são de classe média, 21,6% são da classe pobre/miserável; também nas crônicas, 14,7% são da elite econômica, 59,3% são de classe média, 13,4% são da classe pobre/miserável. No clássico ensaio Pode o subalterno falar? (2010), Gayatri Spivak chama a atenção para a dificuldade de o sujeito subalterno conseguir se autorrepresentar fora do contexto patriarcal e pós-colonial, salientando que quando consegue falar, encontra dificuldades em se fazer ouvir – sua fala permanece subalterna. A pensadora indiana, em vista disso, fomenta as discussões acerca das formas de repressão dos sujeitos subalternos, como a das mulheres pobres que aqui nos interessam, pondo luz na cumplicidade dos intelectuais contemporâneos nesse processo. Elite econômica Classes médias Pobres e miseráveis Sem indícios Protagonista do romance (feminino) 11,8% (2) 52,9% (9) 35,3% (6) 0 Protagonista do romance (masculina) 40% (2) 0 40% (2) 20% (1) 5 Protagonista do conto (feminino) 17,7% (17) 31,3% (30) 22,9% (22) 28,1% ( 27) 96 Protagonista do conto (masculina) 19,8% (16) 23,5% (19) 28,4% (23) 28,3% (23) 81 Protagonista do crônica (feminino) 12,8% (38) 60,3% (179) 13,8% (41) 13,1% (39) 297 Protagonista da crônica (masculina) 18,3% (33) 59,4% (107) 13,3% (24) 8,9% (16) Total de protagonistas 108 344 118 106 Total 17 100% 100% 100% 180 676 Tabela 4 – construída sobre 676 observações, definidas pelo critério: Protagonista & estrato socioeconômico Ainda que nossas reflexões partam de uma avaliação preliminar, de caráter quantitativo, parecenos significativos os 35,3% de mulheres pobres que protagonizam esses romances contemporâneos escritos por escritoras paranaenses, bem como os 22,9% e os 13,8 % de pobres e miseráveis que, respectivamente, protagonizam os contos e as crônicas da amostra. Será, talvez, uma tentativa por parte dessas intelectuais de romper com o silenciamento do/a subalterno/a – nesse caso, duplamente 56 Escolhas inclusivas? subalterno/a: pobre e mulher? Parece que sim. Não há como não considerar esses números um avanço que, em alguma medida, perturba as “verdades” da cultura ocidental, cuja voz dominante silencia de maneira implacável as vozes daquelas que, em virtude de seu gênero e de sua classe, se constituem como o outro. De qualquer modo, representar mulheres ocupando a posição de maior destaque na narrativa (protagonistas), bem como o lugar da fala (narradoras), além de postos considerados importantes no mercado de trabalho (diferentes das clássicas ocupações relacionadas ao mundo doméstico), ou ainda assumindo uma orientação sexual minoritária, implica um avanço significativo na arena das representações literárias. Ainda que seja bem plausível a explicação de que, em função das perspectivas sociais de onde falam, homens escritores sintam-se mais à vontade para engendrar personagens masculinas e mulheres escritoras, personagens femininas, ainda assim, esses dados marcam uma situação que não pode ser desprezada: a importância da literatura de autoria feminina no questionamento das práticas hegemônicas. Nesse sentido, a escritora brasileira/paranaense parece se juntar às vozes de seus pares, em âmbito nacional, no sentido de promover sucessivos deslocamentos, no caso dessa investigação, de ordem ideológica em relação às vozes dominantes. Trata-se de fazer emergir vozes femininas imbuídas da missão de lhes salientar a alteridade, não do lado do suposto essencialismo da mulher, legitimamente refutado nos discursos feministas, mas da multiplicidade e da heterogeneidade de interesses, de expectativas e de necessidades. Trata-se, no fim, de provocar ranhuras no discurso fechado de ideologias hegemônicas como a patriarcal e de promover a quebra da continuidade e/ou da simetria entre tradição sociocultural e produção romanesca. 57 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Bourdieu, Pierre, A dominação masculina, trad. Maria Helena Küher, 4ª ed, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2005. ---, Esboço de Uma Teoria da Prática, Oeiras, Celta, 2006. Bonnici, Thomas, Teoria e crítica literária feminista, Conceitos e tendências, Maringá, Eduem, 2007. Butler, Judith, Problemas de gênero: o feminismo e a subversão da identidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003. Chartier, Roger, A beira da falésia, A história entre as certezas e as inquietudes, Porto Alegre, EdFRGS, 2004. ---, A história cultural, Rio de Janeiro, Bertrand, 1990. Dalcastagné, Regina, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo”, Cronópios - Portal de literatura e arte. São Paulo, 2007. Disponível em http://www.cronopios.com.br/site/ensaios. asp?id=2398. Acesso em : 15 de outubro de 2008. Ginzburg, Carlo, Olhos de madeira, Nove Reflexões sobre a Distância, São Paulo, Companhia das Letras, 2001. Miguel, Luis Felipe, “Perspectivas sociais e dominação simbólica: a presença política das mulheres entre Iris Marion Young e Pierre Bourdieu”, Revista Sociologia Política, Curitiba, v. 18, n. 36, jun. 2010, p. 25-49. Spivak, Gaiatry Chakravorty, Pode o subalterno falar?, Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010. Teixeira, Níncia Cecília Ribas Borges, Escrita de mulheres e a (des)construção do cânone literário na pósmodernidade: cenas paranaenses, Guarapuava, UNICENTRO, 2008. Zolin, Lúcia Osana, “Escritoras paranaenses: questões de estética e de ideologia”, in Deslocamentos da escritora brasileira, ZOLIN, Lúcia Osana, GOMES, Carlos Magno (dir.), Maringá, Eduem, 2011. Young, Iris Marion, Inclusion and democracy, Oxford, Oxford University Press, 2000. 58 Não existe lugar como a nossa casa « Não existe lugar como a nossa casa », ou o retorno de Ponciá Vicêncio Claire Williams Resumo: Conceição Evaristo (n. 1946) já publicou contos, poesia e dois importantes romances: Ponciá Vicêncio(2003) e Becos da Memória (2006). Este trabalho busca analisar as maneiras súteis como suas narradoras atravessam os espaços simbólicos da paisagem brasileira: da roça para a favela, do campo para a cidade, do seguro para a incerteza. Os locais emblemáticos da opressão e resistência afro-brasileiras são o pano de fundo para as lutas cotidianas das personagens para encontrar um caminho doloroso até uma forma de auto-realização. Será estudada a importância da viagem na perspectiva da personagem, sobretudo as sensações de deslocamento e alienação, acabando por discutir o conceito e significado do retorno a casa. Palavras-chave: Conceição Evaristo, literatura afro-brasileira, lar, família, viagem, deslocamento, herança. Résumé : Conceição Evaristo (n. 1946) a déjà publié des contes, des recueils de poésie et deux romans importants: Ponciá Vicêncio (2003) et Becos da Memória (2006). Ce travail cherche à analyser la subtilité utilisée par les narratrices pour traverser les espaces symboliques du paysage brésilien: de la roça vers la favela, de la campagne vers la ville, de la sécurité vers l’incertitude. Les lieux emblématiques de l’oppression et la résistance afro-brésiliennes constituent la toile de fond des luttes quotidiennes des personnages à la recherche d’un chemin douloureux pour leur réalisation personnelle. L’importance du voyage sera étudiée du point de vue du personnage, notamment les sensations de déplacement et d’aliénation, avant de discuter le concept et le sens possible du retour à la maison. Mots-clefs : Conceição Evaristo, littérature afro-brésilienne, foyer, famille, voyage déplacement, héritage. Quando se está longe da terra conhecida, às vezes, basta aguçar certos sentidos para experimentar o gozo da invenção do retorno. Quando a terra desejada é desconhecida, podese perder nos incógnitos caminhos, mas nunca deixar esmorecer o desejo da viagem. Conceição Evaristo1 A ficção de Conceição Evaristo narra a herança da escravidão na sociedade brasileira contemporânea, sobretudo os efeitos nas vidas de mulheres negras. As personagens de Conceição representam simbolicamente a experiência de sujeitos afro-brasileiros tentando sobreviver digna e honestamente, lutando para serem felizes, apesar de preconceitos de profunda raíz; uma luta de « equilibrista », para usar uma metáfora tirada de seu conto « Beijo na face2». Sua obra se caracteriza pela denúncia implícita da injustiça da situação histórica dos negros no Brasil, e insiste na democracia e na igualdade, com foco nos mais humildes. Todos, na escrita de Conceição (mulheres, homens, idosos, crianças, doentes) têm 1. Evaristo, Conceição, Poemas da recordação e outros movimentos, Belo Horizonte, Nandyala, 2008, p. 67. 2. Id., « Beijo na face », in Cadernos negros, 26, São Paulo, 2003, p. 17. 59 Iberic@l - Numéro 2 direito à voz, bem como o leitor que tem acesso aos seus pensamentos mais íntimos, o que permite a partilha de sensações, intenções, motivações, e aspirações3. As críticas que ela faz ao racismo sofrido são fortes, mas sutis, (o que Eduardo de Assis Duarte chama de « brutalismo poético4») porque a autora nunca identifica o local nem a época em que decorrem os eventos narrados. Sabemos que é a época da pós-Abolição, mas a experiência de escravidão continua viva, crua e próxima. É também óbvio que as atitudes e as oportunidades não mudaram e um estado de quasi-escravatura persiste. Segundo a narradora de Ponciá Vivêncio : « A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia5». Efetivamente, no texto são diversas as referências à eternidade, ao fato que nada muda, apesar do tempo que passa, à repetição/replicação ou à perpetuação de eventos e situações, e à esterilidade do tempo parado6 . Na obra de Conceição, as tentativas de sobrevivência, vivamente evocadas, muitas vezes tomam a forma de uma viagem solitária e transformadora, à procura de uma comunidade à qual se juntar, uma casa própria onde se instalar e, chegando ao mais íntimo, o que isso tudo ajuda a construir: a sensação de felicidade e bem-estar, o sarar das feridas que a vida infligiu, e a autocriação de uma identidade coesa. Neste artigo, analisarei a novela Ponciá Vicêncio (2003), focando na questão da viagem de deslocamento na procura de um cantinho próprio e também dos esforços para manter as tradições que afirmam a identidade quando os hábitos e costumes perniciosos que tentam apagá-la são quebrados, encontrando assim uma saída em vez de um circuito infrutífero de desilusões constantes. Espaços, territórios e non-places No romance, os eventos decorrem em cenários que são altamente simbólicos da experiência afrobrasileira: a roça e a favela. A roça é dividida entre as terras dos brancos, que pertencem aos descendentes do dono original, Coronel Vicêncio, onde os homens ainda trabalham, e as terras dos negros, onde as mulheres e as crianças tomam conta das casas e das hortas7. Conta-se que os brancos enganaram os negros ao oferecer-lhes as terras de presente depois da Abolição, com a intenção de mantê-los por perto para poder controlar a mão de obra barata: Há tempos e tempos, quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estivessem ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muito pouca coisa a situação de antes diferia da do momento. As terras tinham sido ofertas dos antigos donos, que alegavam ser presente de libertação. E, como tal, podiam ficar por ali, levandar moradias e plantar seus sustentos. Uma condição havia, entretanto, a de que continuassem todos a trabalhar nas terras do 3. Jorge Marques nota que « o desenho do convívio entre os familiares de Ponciá é feito de palavra e murmúrio, ordem e aquiescência. Neste sentido, é extremamente feliz a inexistência do discurso direto no texto. É como se a autora quisesse abafar as falas das personagem, não lhes dando a oportunidade da palavra. O resultado é que, mesmo quando se pronunciam, o leitor só tem acesso ao que é por elas dito através da mediação exercida pelo discurso indireto ». MARQUES, Jorge, « O Deslocamento em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo », in Deslocamentos da Escritora Brasileira, Lúcia Osana Zolin e Carlos Magno Gomes (dir.), Maringá, Eduem, 2011, p. 140. 4. Duarte, Eduardo de Assis, « O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo », in Estudos Feministas, Florianópolis, 2006, p. 306. 5. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, Belo Horizonte, Mazza, 2003, p. 84. 6. Como sublinha a narradora : « um pulso de ferro a segurar o tempo. Uma soberana mão que eternizava uma condição antiga », Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 48. 7. A rejeição do nome faz parte de sua auto-reinvenção como indivíduo e sujeito de sua própria vida. Ponciá tem dificuldade em aceitar seu sobrenome (aliás, o sobrenome de todos na vila), que « tinha vindo desde antes do avô de seu avô » porque « [n]a assinatura dela, a reminiscência do poderio do senhor, de um tal coronel Vicêncio. O tempo passou deixando a marca daqueles que se fizeram donos das terras e dos homens », Ibid., p. 26-27. 60 Não existe lugar como a nossa casa Coronel Vicêncio. O coração de muitos se regozijava, iam ser livres, ter moradia fora da fazenda, ter as suas terras e os seus plantios. [...] Sonhando todos [...]. Todos, ainda, sobre o jugo de um poder que, como Deus, se fazia eterno8. O pai de Ponciá quando criança perguntou ao seu pai se eram livres e por que continuavam ali. A resposta que recebe é uma dolorosa mistura de choro e riso, indicando a frustração face à aparente inevitabilidade da situação. Para confrontar a tragédia da exploração, os laços entre os membros da comunidade são fortes e baseados na partilha e no apoio mútuo: na terra dos negros, o alimento não era vendido. Quem que tivesse fome era só chegar à casa de alguém e pedir o que comer. [...] Havia um enorme prazer em oferecer, em dividir o alimento com o outro. Dormia-se também em qualquer casa, o abrigo era uma dádiva para todos, contanto que o acolhido não se importasse com a pobreza de seu acolhedor9. A comunidade funciona como uma grande família, o que, de fato, é, já que todos levam o sobrenome do antigo dono (o Coronel Vicêncio), até mesmo o povoado: Vila Vicêncio10. Mesmo com esta marca invisível, mas poderosa do dono branco, os negros conseguem manter vestígios da cultura que os antepassados trouxeram da África: a língua que só os mais velhos entendiam, as canções (de trabalho, de despedida), os remédios (garrafadas, benzeduras) e a sabedoria da anciã Nêngua Kainda. A colaboração e a solidariedade da comunidade democrática parecem desaparecer na cidade, que é vista como o domínio dos brancos: « O saber que se precisa na roça difere em tudo da da cidade11». Na cidade, Ponciá e seu irmão Luandi se vêem sempre deslocados. Suas habilidades respectivas de oleira talentosa e trabalhador agrícola (era « pau-de-toda-obra. Sabia fazer de tudo12» ) não são reconhecidas, nem o fato de Ponciá ser alfabetizada lhe ajuda. Os irmãos dependem da generosidade de terceiros e só conseguem trabalho como empregados domésticos, limpando a sujeira alheia. A vida na cidade se transforma numa série de decepções, embora não tão trágicas como as míticas idas para a cidade, narradas por vizinhos que tentaram lhes dissuadir de partir13, nem tão violentas e crueis como as notícias que Ponciá decora14. Na cidade, Ponciá sempre se sente fora do lugar, e sozinha, mesmo quando consegue comprar um quartinho e depois, com o marido, alugar um barraco numa favela. Até esse ponto ela transita por espaços públicos (a estação de trem, a igreja, a rua) e as casas onde trabalha como empregada doméstica. Na roça, todos se conhecem e se reconhecem e um dos aspectos mais chocantes e dolorosos da cidade é o fato de muito raramente verem caras conhecidas. À procura da irmã, Luandi (que chegou à cidade « sem eira nem beira15») navega por espaços de transição temporária como a delegacia, a rua e a zona 8. Ibid., p. 47-48. 9. Ibid. p. 95. 10. « Todos eram parentes por ali. Desde que os negros haviam ganho aquelas terras, ninguém tinha chegado e eles se casavam entre si. Eram parentes, talvez, desde sempre, desde lá onde tinham saído », Ibid., p. 58. 11. Ibid., p. 25. 12. Ibid., p. 68. 13. « Ponciá Vicêncio não entendia por que no povoado as pessoas temiam tanto a cidade. Algumas pessoas saíam e ficavam bem; entretanto, eles só relembravam, só repetiam os casos infelizes, as histórias de fracasso. Viviam contando o acontecido com Maria Pia. A moça havia se contaminado com uma doença do filho do patrão. [...] E o Raimundo Pequeno? Enganouse com os amigos, crendo neles e seduzido pelo dinheiro que chegava tão rápido, aceitou vender tudo o que eles traziam. [...] Outros e outros casos de conhecidos que saíam do povoado a caminho da cidade e eram roubados na estação de chegada. [...] Outros não conseguiam trabalho ou ganhavam pouquíssimo e não tinham como viver. A vida se tornava pior do que na roça », Ibid., p. 35-36. 14. Ibid., p. 92-93. 15. Ibid., p. 68. 61 Iberic@l - Numéro 2 de prostituição. É interessante notar que o lugar em que acontece a reunião tão ansiosamente esperada é precisamente a estação de trem, por onde todos os três já haviam passado sozinhos. É o espaço de chegada e de partida, de despedidas e acolhimentos, uma zona limiar que potencializa encontros e desencontros16 . Casa, lar, homeplace e a voz da mulher afro-brasileira Em Casa-Grande e Senzala (1933), obra antropológica clássica sobre o Brasil colonial, Gilberto Freyre analisa com certa nostalgia o mundo de relações interpessoais dentro das residências dos senhores de engenho pernambucanos, descrevendo em detalhes o interior e a decoração das casas dos brancos, mas reservando pouca atenção às senzalas evocadas no título. Embora reconhecesse a importância da mulher negra (ama, mucama, mãe preta) na vida dos senhores, até a maneira como machucavam e amoleciam o português ao pronunciá-lo, na literatura e na sociedade em geral, as negras permanecem invisíveis e silenciosas. A voz da mulher afro-brasileira descrevendo sua própria vida cotidiana, suas opiniões e seus desejos só se ouviu com a publicação dos diários de Carolina Maria de Jesus, a partir de 195817. Oferecendo uma perspectiva muito afirmativa (por vezes arrogante) e tão diferente à do escritor convencional e hegemônico, Carolina conta a vida de uma pobre favelada vivendo no que ela chama de quarto de despejo na cidade de São Paulo, ansiosamente esperando um dia conseguir morar numa casa de alvenaria18. As últimas palavras do autobiográfico Diário de Bitita (1986) anunciam esta procura desperada de uma mulher sem posses, sem documentos, sem identidade política, mas cheia de sonhos e determinação: « Quem sabe ia conseguir meios para comprar uma casinha e viver o resto de meus dias com tranqüilidade...19». O desejo de possuir uma casa própria é comum em narrativas de autores marginalizados porque representa não só abrigo e segurança como também representa, psicologicamente, um centro, um lugar fixo. A casa se associa ao conceito de família e à figura da mulher – nomeadamente a mãe, que, tradicionalmente cuida, limpa e ordena 20. Na Antiguidade, o lar ou a lareira (foyer ou âtre em francês, hogar em espanhol, hearth em inglês) era o lugar onde se guardava o fogo sagrado dos deuses romanos protetores (os lares), marcando uma intersecção de eixos: o eixo vertical que ligava o céu ao mundo subterrâneo dos mortos, e, no eixo horizontal, o trânsito do mundo, o vaivém dos humanos. John Berger enfatiza o sentido ontológico do lar, mais do que o geográfico, desenvolvendo a idéia do filósofo Mircea Eliade segundo a qual o lar é o coração do real: In traditional societies, everything that made sense of the world was real; the surrounding chaos existed and was threatening, but it was threatening because it was unreal. Without 16. Augé, Marc, Non-Lieux, Introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris, Seuil, 1992. 17. Conceição Evaristo reconhece o quanto a publicação de Quarto de Despejo significou para ela e para sua mãe, porque, segundo ela, ao ler o diário, « nos sentíamos como personagens », já que, finalmente existia uma « personagem » negra reconhecível, não estereotipada, com quem era fácil identificar-se e, além disso, protagonista e autora da narrativa. Evaristo, Conceição, « Conceição Evaristo por Conceição Evaristo », in Escritoras Mineiras – Poesia, ficção, memória, Constância Lima Duarte (dir.), Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2010, p. 70. 18. Jesus, Carolina Maria de, Quarto de Despejo: diário de uma favelada, São Paulo, Francisco Alves, 1960. Id., Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, São Paulo, Francisco Alves, 1961. 19. Id., Diário de Bitita, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 203. 20. Lembramos dos sonhos dos personagens em constituir sua própria casa e família: Bilisa prepara o enxoval, ao passo que Ponciá tenciona constituir uma família própria : « Um dia [...] teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse, e teria filhos também. », Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p.24-25. 62 Não existe lugar como a nossa casa a home at the center of the real, one was not only shelterless, but also lost in nonbeing, in unreality. Without a home everything was fragmentation. [...] And at the same time, one was at the starting point and, hopefully, the returning point of all terrestrial journeys21. A novela Ponciá Vicêncio tem dois eixos fundamentais: o eixo vertical da cronologia, da herança, espécie de cadeia de parentes que acaba definitivamente em Ponciá, que cria múltiplos utensílios de barro, espalhados pela região, mas não procria ; o eixo horizontal: da comunidade de vizinhos e de amigos que se apoiam uns aos outros. No cruzamento está a casa familiar, o lar, onde os membros da unidade discreta da família colaboram e se respeitam, tecendo um ambiente de paz e conforto, mas também um lugar de resistência, que lembra o conceito de homeplace imaginado pela escritora norteamericana Bell Hooks: Historically, African-American people believed that the construction of a homeplace, however fragile and tenuous (the slave hut, the wooden shack), had a radical political dimension. Despite the brutal reality of racist apartheid, of domination, one’s homeplace was the one site where one could freely confront the issue of humanization, where one could resist22 . A casa simples da família Vicêncio também tem seu fogo sagrado: as brasas que a mãe, Maria, mantém acesas sob cinzas, durante a noite, « para começar o novo dia 23 ». É do fogão que emana calor, transmitindo « uma sensação de conforto e segurança 24», significando que a casa está habitada, e, por extensão, que a família se reunirá. Em cima do fogão estão as quatro canecas de café (« teimosamente se postavam, como se tivessem à espera do líquido 25», também simbolizando a família unida. O edifício se parece aos outros domicílios das terras dos negros : Chão batido, liso, escorregadio, paredes de pau-a-pique e cobertura de capim. As camas dos adultos e das cranças eram jiraus que os homens e mesmo as mulheres armavam com galhos de árvores amarrados com cipós. O colchão de capim era às vezes, cheiroso, dado ao alecrim que se misturava ali dentro na hora de sua feitura. Os grandes vasilhames de barro ou de ferro e os tachos onde as mulheres faziam doces permitiam imaginar farturas26 . Nesta descrição, pelos olhos de Ponciá, cheia de saudade, vemos que os negros construíam suas casas com orgulho, partilhando as tarefas entre homens e mulheres. Elas são feitas de materiais naturais 21. Berger, John, And Our Faces, My Heart, Brief as Photos, Londres, Bloomsbury, 1984, p. 55. 22. hooks, Bell, « Homeplace as site of resistance », in Yearning: Race, Gender and Cultural Politics, Boston, Turnaround, 1991, p. 42 et 47. É interessante notar que em sua mais recente coleção de ensaios, intitulada Belonging: A Culture of Place, Hooks descreve a experiência de regressar para Kentucky, o estado onde nasceu e cresceu, para trabalhar na Universidade de Berea, depois de viver, estudar e lecionar em cidades nos outros extremos dos Estados Unidos. Nos ensaios intitulados « Kentucky is my Fate », « A Place where the Soul can Rest », « Healing Talk », e « A Community of Care », entre outros, fala do conceito de homecoming como uma viagem circular, a volta a uma zona rural e mais « natural », um reencontro com as raízes e « ancestral imprints ». Em Kentucky, « One might live with less, live in a makeshift shack and yet feel empowered because the habits of being informing daily life were made according to one’s own values and beliefs. In the hills individuals felt they had governance over their lives », HOOKS, Bell, Belonging: A Culture of Place, Routledge, Londres, 2009, p. 8. Os sentimentos que Hooks descreve ecoam com o retorno tão ansiado de Ponciá para a casa familiar, a comunidade e o rio. 23. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 53. 24. Ibid., p. 56. 25. Ibid., p. 48. 26. Ibid., p. 59. 63 Iberic@l - Numéro 2 e por isso lembram os cheiros, sensações e sabores da infância. Ao longo da narrativa, a casa de Ponciá se esvazia de habitantes quando ela, e mais tarde Luandi, saem para uma vida nova e menos dura na cidade. A mãe, vai à procura deles. Entretanto, todos os três voltam e encontram sinais que os outros continuam vivos. A casa assim funciona como uma maneira de comunicação entre eles e, para o leitor, sinaliza a passagem do tempo: quando Ponciá visita a casa, há uma cobra no fogão; quando Luandi entra na casa algum tempo depois, só resta a pele da cobra no fogão; quando Maria entra na casa vai pela última vez reacender o fogão, antes de reencontrar seus filhos27. Mesmo não estando presentes, a entrada de uma das pessoas provoca uma corrente de lembranças e sensações estranhas: na volta de Ponciá, por exemplo, « [e]scutou na cozinha os passos dos seus. Sentiu o cheiro de café fresco e de broa de fubá, feitos pela mãe. Escutou o barulho do irmão se levantando várias vezes, à noite [...]. Escutou as toadas que o pai cantava 28». A casa é tão familiar que parece estar aguardando a volta da família: quando Luandi chega, por exemplo, a porta está apenas encostada. Nem Ponciá, nem Luandi aguentam ficar lá sozinhos enquanto os outros membros da familia estão ausentes, Ponciá, « não suportava a ausência deles, no jogo de esconde-aparece que eles estavam fazendo29», mas cada um deles acredita que a família se reconstituirá um dia. « A casa era sua enquanto os outros existiam30» , mas assim como ela, a casa « estava vazia dos vivos e dos mortos31». Durante o curso da novela, o estado físico e mental de Ponciá se deteriora progressivamente. A moça cheia de esperança e confiança, tenaz e trabalhadora, que queria « deixar o pensar de lado e ir à luta 32», vê-se cada vez mais invadida de lembranças do passado e saudades da terra e da família. A doença de Ponciá está intimamente ligada aos espaços que habita e os substantivos que a descrevem se relacionam com a sensação de deslocamento e com o lento esvaziar de tudo que era individual e ativo nela: era como se um buraco abrisse em si própria, formando uma grande fenda, dentro e fora dela, um vácuo com o qual ela se confundia. [...] No princípio, quando o vazio ameaçava a encher a sua pessoa, ela ficava possuída pelo medo. Agora gostava da ausência, na qual ela se abrigava, desconhecendo-se, tornando-se alheia de seu próprio eu33. ( Grifo meu )34. Ao ver que a vida só lhe cria obstáculos, Ponciá perde pouco a pouco a energia e fica lenta, vazia, literalmente cheia de nada. Sua condição torna-se tão grave que as metáforas espaciais e de perda de identidade se transformam em metáforas de morte: « Caía meio morta, desfalecida, vivendo, porém, o mundo ao redor, mas não se situando, não se sentindo35 », «enterrada morta-viva dentro de casa 36». As penas e as dores se manifestam em sintomas físicos: letargia, mudez, uma coceira entre os dedos que ela coça até sangrar, chorar e rir ao mesmo tempo, falar sozinha, andar em círculos. O seu corpo sofre brutalidades: as agressões do marido frustrado e a perda de sete filhos ainda bebês, por causa de « uma 27. Outros sinais da passagem do tempo são as visitas que cada um dos três faz a Nêngua Kainda e os recados que deixam com ela. 28. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op.cit., p. 57. 29. Ibid., p. 58. 30. Ibid., p. 58. 31. Ibid., p. 64. 32. Ibid., p. 61. 33. Ibid., p. 44. 34. Veja também : « A cabeça rodava no vazio, ela vazia se sentia sem nome. Sentia-se ninguém. [...] Gastava horas e horas ali quieta olhando e vendo o nada », Ibid., p. 16. 35. Ibid., p. 63. 36. Ibid., p. 123. 64 Não existe lugar como a nossa casa complicação de sangue37». A doença de Ponciá é hereditária (são ecos dos sintomas de que sofria o avô enlouquecido), e uma forma de saudade patológica extrema (nos dedos ela cheira o barro que moldava em casa com a mãe). Na cidade, onde o marido trabalha na construção, o barraco de Ponciá é tão precário que « flutuava no vento38». Ela passa os dias à janela (lugar limiar associado simbolicamente ao desejo da mulher de escapar de algo ou de alguém), a pensar, e a casa, como ela, cai na desordem39. A comparação entre mulher e casa se faz explícita quando se lê que Ponciá, « se adentrava num mundo só dela, onde o [marido], cá de fora, por mais que gostasse dela, encontrava uma intransponível porta40». Fica cada vez mais óbvio que Ponciá não sobreviverá muito mais sem reencontrar a família e sem voltar para o lugar onde nasceu, onde tem raízes, onde « pedaços do ventre dela » haviam sido enterrados, segundo os costumes da comunidade41. Viagens de ida e volta A migração econômica é um fenômeno conhecido desde sempre, no mundo inteiro, e que cresceu enormemente no curso do século XX. Segundo o jornalista Doug Saunders, em estudo intitulado Arrival City: How the Largest Migration in History is Reshaping our World, um terço da população mundial está em processo de deslocamento das zonas rurais para as margens das grandes cidades, criando áreas limiares, cheias de potencial, que ele chama de Cidades de chegada42 . Em Ponciá Vicêncio, a protagonista homônima, e mais tarde seu irmão, migram da roça para a cidade na tentativa de sair de uma vida repetitiva sem ganho nem avanço nenhum. Eles têm que deixar para trás o calor da família e o conforto e segurança da casa de pau-à-pique. De criança, Ponciá observa a sua própria família e chega às seguintes conclusões: os homens trabalham fora e estão ausentes durante longos períodos, as mulheres trabalham e mandam na casa, os homens quase nunca falam. Ela gostaria de reproduzir este quadro feliz de mulheres independentes, sem saber o quanto é fora do comum: « Era tão bom ser mulher! Um dia também teria um homem que, mesmo brigando, haveria de fazer tudo que ela quisesse e teria filhos também43». Quando ela sabe da morte repentina de seu pai durante a colheita, seu primeiro sentimento é de raiva, ficando anos esperando o regresso do pai: « Como o pai poderia ter feito aquilo? Ela conhecia pessoas que tinham feito a derradeira viagem, mas que ficavam muito tempo fazendo a despedida. [...] Só depois de todos se acostumarem com a idéia da partida e elas próprias também, é que se despediam44». Ponciá se recusa completamente a acreditar que seu pai esteja morto ou mesmo que a morte exista, numa combinação 37. Ibid., p. 52. 38. Ibid., p. 17. 39. Longe de parecer a casa limpa e bem ordenada da mãe, o barraco está sujo, desleixado, cheio de pó, teias de aranha e picamãs, buracos, lagartixas e ratos. 40. Ibid., p. 112. 41. Ibid., p. 108. 42. O crítico Doug Saunders assinala que : « [w]e need to devote far more attention to these places, for they are not just the sites of potential conflict and violence, but also the neighbourhoods where the transition from poverty occurs, where the next middle class is forged, where the next generation’s dreams, movements and governments are created. [...] These transitional spaces – arrival cities – are the places where the next great economic and cultural boom will be born, or where the next great explosion of violence will occur ». No curso da pesquisa, Saunders visitou as favelas de Santa Marta no Rio de Janeiro e Jardim Ângela em São Paulo, além de « arrival cities » em vários outros países do mundo. Saunders, Doug, Arrival City: How the Largest Migration in History is Reshaping our World, Londres, Heinemann, 2010, p. 3. 43. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 24-25. 44. Ibid., p. 30. 65 Iberic@l - Numéro 2 de raiva e frustração com a injustiça, que propulsiona sua saída brusca para a cidade, sem mesmo se despedir do irmão: [...] a decisão chegou forte e repentina45. Estava cansada de tudo ali [...]. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer-se a todo o dia. Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova46 . Ela quer romper com as tradições, por medo de « ficar ali repetindo a história dos seus47». Simone Pereira Schmidt defende que a própria identidade de Ponciá se constitui precisamente na incessante e vã busca de um outro lugar « que não sabe exatamente qual é, mas que certamente [a] mobiliza. Pode-se mesmo dizer que sua identidade se faz no próprio momento. Sua condição de passagem e transitoriedade, a busca incessante que [a] impele de um a outro lugar, talvez possa ser identificada à condição dos exilados48». Ponciá está cada vez perdida no tempo e no espaço, até a reunião com a família e o regresso a casa. A citação de John Berger mencionada acima tem relevância aqui: « Without a home at the center of the real, one was not only shelterless, but also lost in nonbeing, in unreality. Without a home everything was fragmentation49». Quando Ponciá sai de casa, entra num mundo fragmentado, desconhecido, sem estabilidade. A metáfora da viagem é muito frequente na ficção de autoras negras norte-americanas, segundo Susan Willis: The journey into slavery, the journey into freedom, and finally the journey made by many contemporary black women writers – the journey back into history, reversing the migration of Afro-Americans from south to north – each of these journeys, no matter how arduous, has generated a growth in consciousness. Each of these journeys, no matter how perilous to the self, has provided a means for defining the self. This most recent form of journey [...] enacts the retrieval of the collective past50. Em Ponciá Vicêncio, ambientada num passado recente e fazendo referências frequentes a um passado longínquo, a metáfora da viagem surge muitas vezes também em relação ao futuro – « a estrada da menina51» , Ponciá « trazia esperança como bilhete de passagem52» , ela « tinha uma saída53» , Nengua Kainda diz que Luandi estava « num caminho que não era o dele54» – e até à última viagem de todas: « 45. Desde menina, Ponciá é precoce em relação às fases do crescimento: começou a chorar dentro da barriga da mãe, começou a andar sem ter gatinhado, sai de casa sem se dar conta do quanto vai lhe custar. 46. Ibid., p. 32. 47. Ibid., p. 38. 48. Para Simone Pereira Schmidt, as personagens vivem uma das mais representativas experiências contemporâneas, ou seja, « a experiência da perda de referências fixas, do sentido da origem, e o imperativo da mudança e do movimento como uma constante que desestabiliza e intercepta os vetores da identidade ». Schmidt, Simone Pereira, « De volta para casa ou o caminho sem volta em Marilene Felinto e Conceição Evaristo », in Deslocamentos de Gênero na Narrativa Brasileira Contemporânea, Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (dir.), São Paulo, Horizonte, 2010, p. 27. 49. Berger, John, And Our Faces..., op. cit., p. 55. 50. Susan Willis identifica três entradas para a literatura de escritoras afro-americanas que são relevantes também para o romance de Evaristo: « community, journey, and sensuality versus sexuality ». Willis, Susan, « Black women writers: taking a critical perspective », in Making a Difference: Feminist Literary Criticism, Gayle Greene e Coppélia Kahn (dir.), Londres, Methuen, 1985, p. 212. 51. Ibid., p. 25. 52. Ibid., p. 35. 53. Ibid., p. 42. 54. Ibid. p. 96. 66 Não existe lugar como a nossa casa a grande viagem55» da morte. A viagem da casa de família até a cidade, a pé e depois de trem, dura três dias e três noites, não é barata nem confortável. Quando os filhos saem de casa, Maria Vicêncio alivia a angústia do tempo de espera até os ver de novo, em peregrinações pela região, (« Era preciso andar sempre » ), cantando as cantigas «que tinha aprendido com a mãe e que tinha oferecido à filha56». O reencontro dos membros da família é apresentado como o cumprimento do destino deles, e a crença de que tudo tem que acontecer no tempo certo. Até chegar a hora desejada, a mãe se prepara para viajar à cidade «como quem cumprisse um rito preparatório para uma viagem maior, [Maria] ia se afastando aos poucos de casa. A cada saída, retornava e quando partia novamente, aumentava a distância do ponto original, avançando um pouco mais na rota em busca dos filhos57». Só partindo de casa é que os dois irmãos descobrem o quanto a família e a comunidade valem, e só então se dão conta que, se querem viver vidas completas, precisam se reunir. Sentem falta do convívio familiar, dos diálogos que mantinham em casa e das cantigas que Ponciá cantava com a mãe e as mulheres do povoado e Luandi com o pai e os outros lavradores58. Na primeira viagem de volta, que só fez quando tinha uma casa própria onde levar os seus, Ponciá se dá conta que, mesmo sentindo o conforto e a segurança da casa velha, não consegue estar lá sem a família: «a casa era sua enquanto os outros existiam59». Chega a reconciliar-se com o lugar cheio de objetos conhecidos, mas vazio dos entes queridos. A mulher fica numa encruzilhada de decisões: « não queria ir, não queria ficar60», finalmente decidindo-se por ir à procura da família. O fim do arco-íris Na primeira cena da novela, Ponciá infringe as regras: passa por baixo do arco-íris, mesmo sabendo que não deveria e que talvez fosse castigada e transformada em homem61. Ela também tenta romper o ciclo de decepção de seu povo, mas não consegue escapar dessa herança. Além de transgredir, a personagem reúne forças contraditórias: elementos masculinos e femininos, a espiritualidade africana e a européia, o cheio e o vazio, o riso e o choro, a criação e a negação, o movimento e a paralisia, a memória e o esquecimento, a presença e a ausência, a vida e a morte. Ela trabalha o barro: mistura do seco com o molhado, transformação do líquido cozido em sólido. Acaba manuseando o nada, « buscando fundir tudo num ato só, igualando as faces da moeda62 ». Encontra uma maneira de resistir, criando e não destruindo, que é a lição aprendida por Luandi. 55. Ibid. p. 30. 56. Ibid. p. 85. 57. Ibid. p. 108. 58. Ponciá e seu marido se comunicam por gestos que manifestam desejo e ternura, mas não conseguem manter um diálogo que lhes nutra. O choro-riso ininteligível de Vô Vicêncio, a mudez do pai e o silêncio de Ponciá podem ser considerados estratégias de protesto e de resistência. Ivette Wilson sublinha a importância da voz e do silêncio no romance como forma de subversão do discurso oficial da « História ». Wilson, Ivette, «Symbolic Representations of “Home” in AfroLatin American Women’s Literature », apresentado no congresso Lasa, Rio de Janeiro, junho de 2009, disponível em: URL: <http://lasa.international.pitt.edu/members/congress-papers/lasa2009/files/WilsonIvette.pdf> (consultado o 12 de dezembro de 2011). 59. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 58. 60. Ibid., p. 64. 61. É interessante notar que no primeiro capítulo do Diário de Bitita, Carolina Maria de Jesus conta que, quando criança, queria ser homem para ter mais força, e a mãe a aconselha a passar por baixo de um arco-íris. JESUS, Carolina Maria de, Diário de Bitita, op. cit., p. 11. 62. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 132. 67 Iberic@l - Numéro 2 Com poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, Conceição Evaristo evoca os obstáculos no caminho da mulher negra, que vive em posição de inferioridade em termos de educação, de lei e de respeito como ser humano63. Ponciá é o símbolo de séculos de angústia e humilhação: ela herda os choros e risos do avô, o resmungar de seu pai e, pouco a pouco, seus próprios sonhos se esfumam para dar lugar a memórias dolorosas. Ela se esvazia de aspirações futuras e se enche de revolta, prantos e gritos, virando um repositório da dor de seus antepassados. A associação de Ponciá com o barro, que ela costumava trabalhar tão bem, torna-se muito pessoal: ela manuseia, manipula a própria vida, mas sozinha e longe do rio ela seca e se esvazia, tornando-se uma estátua morta-viva de seu avô64. Se considerarmos o trajeto de Ponciá em termos simbólicos, ela é uma espécie de bode expiatório que se sacrifica: primeiro para servir de lembrança dos horrores sofridos por seus antepassados. Como não teve filhos, a doença herdada terminará nela. Mas sua história funciona de catalisador ao irmão Luandi, que, no fim do romance, se dá conta da importância da co-operação e da solidariedade necessárias para mudar o status quo: « Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. [...] Compreendera que sua vida, um grão de areia lá no fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas65». A agonia da repetitividade se transforma no alívio da volta para casa: a família salva Ponciá e finalmente Luandi poderá cantar a cantiga ancestral de retorno que aprendeu com o pai. Não sabe interpretar as palavras, mas sabe que significam o regresso para casa: Era uma canção que os negros mais velhos ensinavam aos mais novos. Eles diziam ser uma cantiga de voltar que os homens, lá na África, entoavam sempre quando estavam regressando da pesca, da caça ou de algum lugar. [...] Luandi não entendia as palavras do canto, sabia, porém, que era uma língua que alguns negros falavam ainda, principalmente os velhos. Era uma cantiga alegre. [...] Estava de volta à terra. Voltava em casa. Chegava cantando, dançando a doce e vitoriosa cantiga de regressar66 . O/a leitor/a poderia chegar à conclusão que a mensagem principal do romance é de que os negros deveriam ficar no campo a laborar a terra e resignar-se ao fato de que nunca seriam aceitos na cidade. A meu ver, seria um erro ler o livro desta maneira. A agricultura que eles praticam é ligada à natureza e à cooperação e não à exploração e injustiça que predominam na cidade. Voltar para o campo significa retornar a uma vida natural, criativa e honesta. A ideia que o romance revela é que a igualdade será conquistada gradualmente, através de pequenos ganhos, não por violência (contra si próprio, como no caso de Vô Vicêncio), nem por reprodução da opressão (como Luandi pretendia com sua aspiração de ser soldado, somente para « mandar nos outros » ), mas por reconhecimento e valorização, aproveitando as lições das gerações passadas (« argamassa de outras vidas67»), e por colaboração. Na figura de Ponciá, Conceição Evaristo cria uma personagem simbólica que, apesar da decepção e do sofrimento que 63. Ivette Wilson reforça o argumento de Maria José Somerlate Barbosa (no prefácio do romance) segundo o qual Conceição constrói, de maneira consciente, frases curtas e secas, sem adjetivos e conjunções superfluos. Segundo a crítica : « the words, in their simplicity, together with the “dryness” of the sentences used, trimmed of all syntactic excess, become a metaphor of the ever-present social displacement and oppression in the characters’ lives. [...] This linguistic strategy helps foreground the political aspect of the reader-text interaction: consciousness-raising is done at both levels as the narrative develop », Wilson, Ivette, « Symbolic Representations of “Home”...», in op. cit., p. 5-6. 64. Ela até começa a cheirar a barro. Jorge Marques sugere que a novela se assemelha a uma tragédia grega, sobretudo no caso da personagem de Ponciá, castigada pela crime de seu avô. A meu ver, no entanto, ela sofre as dores acumuladas por todos seus antepassados nas mãos dos brancos. Marques, José, « O Deslocamento em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo », in op. cit., p. 137. 65. Evaristo, Conceição, Ponciá Vicêncio, op. cit., p. 131. 66. Ibid., p. 89. 67. Ibid., p. 131. 68 Não existe lugar como a nossa casa vivencia, é também uma « autora » cujas obras de barro são exibidas ao público. A família Vicêncio funciona como um microcosmo, simbolizando tantas outras famílias afrodescendentes. A história da separação e reunião do núcleo familiar demonstra que nenhum indivíduo deveria esquecer do valor do lar, da família, da comunidade e da história como elementos fundamentais de sua constituição, justamente por serem as provas físicas e psicológicas de sua identidade, elementos esses que lhe permitem crescer e sobreviver num mundo muitas vezes hostil, preconceituoso e opressor68. 68. A autora agradece a Roberta Gregoli pela revisão do texto. 69 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Auge, Marc, Non-Lieux, Introduction à une anthropologie de la surmodernité, Paris, Seuil, 1992. Berger, John, And Our Faces, My Heart, Brief as Photos, Londres, Bloomsbury, 1984. Duarte, Eduardo de Assis, « O Bildugunsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo », in Estudos feministas, Florianópolis, 2006, p. 305-308. Evaristo, Conceição, Poemas da recordação e outros movimentos, Belo Horizonte, Nandyala, 2008. ---, Ponciá Vivêncio, Belo Horizonte, Mazza, 2003. ---, « Beijo na face », in Cadernos negros, 26, São Paulo, 2003, p. 11-18. ---, « Conceição Evaristo por Conceição Evaristo », in Escritoras Mineiras – Poesia, ficção, memória, Constância Lima Duarte (dir.), Belo Horizonte, FALE/UFMG, 2010, p. 68-72. Jesus, Carolina Maria de, Quarto de Despejo: diário de uma favelada, São Paulo, Francisco Alves, 1960. ---, Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, São Paulo, Francisco Alves, 1961. ---, Diário de Bitita, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986, p. 203. hooks, bell, « Homeplace as site of resistance », in Yearning: Race, Gender and Cultural Politics, Boston, Turnaround, 1991, p. 41-49. Marques, Jorge, « O Deslocamento em Ponciá Vicêncio de Conceição Evaristo », in Deslocamentos da Escritora Brasileira, Lúcia Osana Zolin e Carlos Magno Gomes (dir.), Maringá, Eduem, 2011, p. 135-143. Saunders, Doug, Arrival City: How the Largest Migration in History is Reshaping our World, Londres, Heinemann, 2010. Schmidt, Simone Pereira, « De volta para casa ou o caminho sem volta em Marilene Felinto e Conceição Evaristo », in Deslocamentos de Gênero na Narrativa Brasileira Contemporânea, Regina Dalcastagnè e Virgínia Maria Vasconcelos Leal (dir.), São Paulo, Horizonte, 2010, p. 23-31. Willis, Susan, « Black women writers: taking a critical perspective », in Making a Difference: Feminist Literary Criticism, Gayle Greene e Coppélia Kahn (dir.), Londres, Methuen, 1985, p. 211-237. Wilson, Ivette, « Symbolic Representations of “Home” in Afro-Latin American Women’s Literature », LASA, Rio de Janeiro, junho de 2009, disponível em: <http://lasa.international.pitt.edu/members/ congress-papers/lasa2009/files/WilsonIvette.pdf> (consultado o 12 de dezembro de 2011). 70 A contemporaneidade in extremis A contemporaneidade in extremis : desolação e violência nos romances Onze e As iniciais de Bernardo Carvalho Paulo C. Thomaz Resumo : Este estudo trata de demonstrar como os romances Onze, de 1995, e As iniciais, de 1999, do escritor Bernardo Carvalho, no interior da produção literária brasileira mais recente, conformam uma contemporaneidade agonizante por meio do caráter perturbador da experiência urbana representada. Ambas as obras configuram ficcionalmente a ingerência do poder e da violência na vida do sujeito contemporâneo, por meio de uma inquietante arquitetura narrativa e uma problemática relação com a História que envolvem personagens que se desencontram, cercadas pela deriva e pela morte. Palavras-chave: contemporaneidade, narrativa brasileira, experiência, violência, morte. Résumé : Cette étude vise à démontrer dans quelle mesure, au sein de la production littéraire brésilienne récente, les romans Onze (1995) et As iniciais (1999) de l’écrivain Bernardo Carvalho configurent une contemporanéité agonisante par le biais de la représentation troublante de l’expérience urbaine. Ces deux romans mettent en scène l’ingérence du pouvoir et de la violence dans la vie du sujet contemporain, en s’appuyant sur une inquiétante architecture narrative et sur des rapports conflictuels avec l’Histoire dans laquelle s’insèrent des personnages perdus, à la dérive et confrontés à la mort. Mots-clefs : contemporanéité, fiction brésilienne, expérience, violence, mort. Primeiro há um grande silêncio e depois surge um primeiro grito e percebe-se que alguém caiu, mas se não há grito é pior, pois fica-se na dúvida, pode ser que haja novos mortos, pode ser que não1. Onze, Bernardo Carvalho Este estudo trata de demonstrar como os romances Onze, de 1995, e As iniciais, de 1999, do escritor Bernardo Carvalho, no interior da produção literária brasileira mais recente, conformam uma contemporaneidade agonizante por meio do caráter perturbador da experiência urbana representada. Ambas as obras configuram ficcionalmente a ingerência do poder e da violência na vida do sujeito contemporâneo por meio de uma inquietante arquitetura narrativa e uma problemática relação com a História que envolvem personagens que se desencontram, cercadas pela deriva e pela morte. Bernardo Carvalho, em um artigo intitulado « O espaço negativo 2», comenta obras da artista plástica inglesa Rachel Whiteread e assinala como os grandes moldes negativos de espaços arquitetônicos criados pela artista proporcionam matéria e visibilidade ao avesso do espaço, ao que existe entre as 1. Carvalho, Bernardo, Onze, São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 35. 2. Id., « O espaço negativo », in O mundo fora dos eixos, Bernardo Carvalho, São Paulo, Publifolha, 2005, p. 85-87. 71 Iberic@l - Numéro 2 coisas, ao vazio em torno e no interior delas. O que Whiteread coloca em dúvida desse modo, segundo Carvalho, consiste na própria possibilidade da representação. Assim, ela discute e impugna uma série de convenções, que, uma vez negativadas, deslocam o sujeito que as observa de uma cômoda zona de sentido. Fora dos pactos semânticos que pressupõem as convenções, esse sujeito já não é capaz de entender o que acontece diante de seus olhos e mergulha em um estado de perturbação e mal-estar. Diante disso, Carvalho afirma : « Somos incapazes de ver o avesso das coisas. E o mundo pode ser o exato oposto do que acreditamos que ele é3 ». Sendo assim, será desde esta perspectiva, a de um mundo fora de suas convenções, que procuraremos entender a aspereza e causticidade incomuns que podemos observar nos textos ficcionais do autor brasileiro dos anos 1990. No entanto, esse questionamento dos moldes romanescos não impede Carvalho de preservar e estimar certa especificidade do campo literário e, ao mesmo tempo, adentrar e fabricar territórios associados à ruptura com uma noção tradicional de experiência vivida como base de uma verdade, de um conhecimento. Ruptura motivada por aspectos histórico-sociais, ligados ao caráter problemático da modernização latino-americana, que desembocará, por sua vez, na ficcionalização de uma experiência de desolação, expressa em personagens e intrigas que são variações de conflitos sem solução e que tendem para a dissolução ou para a morte. O romance Onze constitui-se de três blocos narrativos, sendo que a história de um assassinato em massa no aeroporto de Paris percorre, como marca de violência e destino fatal, os três conjuntos. Para o leitor, a única certeza é a de que todas as personagens concorrem para essa morte abrupta. O primeiro relato ocorre durante um fim de semana, em um sítio na periferia da cidade do Rio de Janeiro, e trata da história de onze adultos de classe média. O segundo conjunto narrativo consta de um grupo de onze meninos pobres da Baixada Fluminense e de um artista plástico holandês. E o terceiro, uma série de seis histórias, quase autônomas, que trazem as onze personagens que farão parte da tragédia final no aeroporto de Paris. Onze impõe-nos tratar desde o início da arquitetura da narrativa. O excesso de acontecimentos, personagens, focos narrativos, intrigas, que interdita por vezes o encadeamento episódico do texto, é responsável por derramar uma miríade de significados sobre o atônito leitor do romance. Como resíduos que intoxicam os vínculos de temporalidade e causalidade da narrativa – problematizados em vários romances de Carvalho –, os inúmeros desvios e o excesso de informação criam um ambiente de inquietação e mal-estar em toda a obra. À beira de cansar-se de buscar a unidade no texto, o leitor se vê, de repente, diante de um vínculo que o leva para algum elemento comum às histórias e às personagens da narrativa. Esta tarefa em determinados momentos parece impraticável, devido aos focos narrativos paradoxais, às dezenas de histórias, às existências quase autônomas dos relatos. Para entender o funcionamento do paradoxo nas narrativas contemporâneas, há uma obra exemplar de Gilles Deleuze, intitulada Lógica de sentido4. Nela, o filósofo francês assinala que o conceito de paradoxo expressa em um primeiro momento o que arrasa o bom sentido como sentido unívoco. No entanto, logo depois, destrói igualmente o sentido comum como atribuição de identidades estáveis. O paradoxo se oporia aos dois aspectos da doxa, o bom sentido e o sentido comum. O bom sentido é a afirmação de que, em todas as coisas, existe um sentido que pode ser determinado. Mas o bom sentido implica uma direção : o sentido único. E proclama a exigência de uma ordem segundo a qual temos que escolher uma direção e permanecer nela. Mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo. Desse modo, como podemos observar de um modo muito particular em Onze e também em As iniciais, de um conceito epistemológico, o paradoxo passa a ser um princípio narrativo, suspendendo sentidos, transgredindo limites e contradizendo lógicas discursivas. 3. Ibid. p. 87. 4. Deleuze, Gilles, Lógica de sentido, Barcelona, Paidós, 2005. 72 A contemporaneidade in extremis Em razão disso, podemos afirmar que as categorias narrativas convencionais, em que as palavras e os modos ficcionais são conduzidos a determinada naturalidade e rigidez semântico-lexicográfica, são deixadas de lado neste romance e substituídos por um tecido textual estranho e incômodo. Carvalho investe assim contra a calcificação e a fixidez das formas narrativas para conformar um fluxo de histórias ou versões de uma mesma história, entrelaçadas por pequenas peças, que figura contínuos deslocamentos e uma quase indecifrável experiência existencial em meio ao avanço silencioso da morte. Por outro lado, ainda que o texto não tematize a ampliação do que se entende como forças produtivas e técnicas da organização capitalista da sociedade latino-americana, os efeitos de sua política pós-industrial, que se funda no controle das subjetividades por meio de sofisticados modos de violência e de midiatização, são essencialmente os responsáveis pelas marcas trágicas da narrativa, como o assassinato de uma das personagens para a retirada de seus órgãos, por exemplo. Nesta perspectiva, partindo dos modelos de poder foucaultianos, soberania e biopolítica, é oportuno adentrar na obra do italiano Giorgio Agamben, mais especificamente em Homo Sacer5, uma vez que o filósofo avança na constituição de um presente em que, de uma política assentada na obediência dos corpos e voltada para um aumento da produção industrializada, passou-se a uma biopolítica fundada no controle da vida, visando à produção de subjetividades mais adaptadas a esse estilo de vida pós-industrial. Talvez esta excessiva fratura estrutural em Onze possa ser entendida no sentido da construção de um choque, um estranhamento, com o qual se confecciona na contemporaneidade o abandono de uma ideia de sistema, a recusa de um tempo cotidiano homogêneo. Por vezes impenetrável e ameaçadora, esta arquitetura narrativa aniquila os contextos orgânicos e faz emergir um presente em ruína, a desumanização desnudada do capitalismo tardio na América Latina finissecular e as repercussões negativas das experiências de violência das ditaduras e das diferenças de classes no Brasil. Em « A ficção brasileira de hoje : os caminhos da cidade », Tânia Pellegrini destaca por exemplo : Hoje a ficção urbana [brasileira] faz com que as cidades ultrapassem seus horizontes originais de representação, desde que ela funciona como tradução dessa espécie de lugar de opressão, nos seus múltiplos níveis : social, traduzindo a exclusão da maior parte dos indivíduos do sistema que ele representa; político, traduzindo a centralização do exercício do poder; ideológico, traduzindo a reiteração constante de normas e valores que oprimem o sujeito, cerceando sua realização pessoal e afetiva; estético, traduzindo linguisticamente os códigos da urgência e do medo que determinam o ritmo da cidade grande6 . Assim, os relatos em Onze se detêm na experiência presente das personagens, quase sempre de contornos trágicos, destinadas a uma morte violenta e não natural, à interrupção abrupta da vida. Afetividades ameaçadas por um distanciamento sucessivo, existências em sofrimento permanente, em meio à violência e à miserabilidade do dia a dia das cidades do mundo. Um mundo violento e intensamente hostil, marcado igualmente pelo destino fatal da AIDS. Já no romance As iniciais, temos doze personagens que se reúnem para jantar em um antigo mosteiro de uma ilha europeia, durante as férias de verão. Neste jantar, a personagem-narradora, jornalista e escritor, recebe uma caixinha de madeira com quatro iniciais entalhadas na tampa, como um código a ser desvendado. Dez anos depois, no Brasil, um país emergente, à beira de ser tragado por uma catástrofe financeira mundial, durante também um almoço na sede de uma fazenda, ele encontra um pintor exilado para curar-se de uma crise psíquica, cuja identidade verdadeira supostamente está 5. Agamben, Giorgio, Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia, Pre-textos, 2006. 6. Pellegrini, Tânia, « A ficção brasileira de hoje : os caminhos da cidade », in Revista de crítica literaria Latino-americana, Lima-Hanover, n. 53, 2001, p. 128. 73 Iberic@l - Numéro 2 relacionada com o jantar anterior. O romance está dividido em duas partes : o primeiro « capítulo » recebe o título de A., e o segundo, D., iniciais supostamente de uma mesma personagem. A personagem-narradora em ambos os textos é a mesma, ainda que possamos identificar pequenos desvios e diferenças de perspectiva entre os dois relatos. Cabe lembrar que os nexos de temporalidade e causalidade entre os dois textos muitas vezes apresentam incongruências e paradoxos, o que nos transporta novamente aos pressupostos do texto de Deleuze. Este deslocamento entre as partes do texto dá a conhecer um processo mnemônico que tem presente apenas alguns episódios e fragmentos desse tempo transcorrido. Ainda assim, faz-nos participar de uma arquitetura narrativa cujo trânsito pelas últimas décadas do século XX e pela geografia do mundo é igualmente marcado pela constante presença da morte, que parece acuar sem distinção às personagens. Uma vez mais, em conexão com Onze, os gritos e os silêncios dos « mortos-vivos » parecem organizar as múltiplas intrigas do texto. Os mortos retornam, até mesmo, para desmascarar os vivos de seus interesses banais e frívolos, como acontece, por exemplo, no relato da personagem « herdeira dos laticínios », em que uma aristocrata europeia desaparece, juntamente com suas joias, depois de um passeio de barco com alguns amigos, e retorna, vinte anos depois, ostentando as joias que supostamente lhe haviam sido roubadas. É importante assinalar, que as personagens centrais de As iniciais configuram um grupo de sujeitos indefinido até certo ponto com respeito à nacionalidade. Trata-se de uma singular pequena burguesia que faz questão de anular qualquer identidade social reconhecível, como observamos pela não designação de nomes às personagens. Este grupo se comunica e se expressa continuamente por meio de uma ambiguidade espectral, em que podemos dizer que desaparecem os conceitos de origem e unidade em que se fundam o indivíduo e a experiência. Estas figuras ficcionais nos conectam a um texto de Giorgio Agamben intitulado « Sin clases » em que ele afirma : Tudo aquilo que é, o pequeno burguês anula-o no próprio gesto com que parece obstinadamente aderir a ele. Ele apenas conhece o impróprio e o inautêntico e recusa até a ideia de uma palavra própria. As diferenças de língua, de dialeto, de modos de vida, de caráter, de vestuário e, acima de tudo, as próprias particularidades físicas de cada um, que constituíam a verdade e a mentira dos povos e das gerações que se sucederam na terra, tudo isto perdeu para ele todo o significado e toda a capacidade de expressão e de comunicação. Na pequena burguesia, as diversidades que marcaram a tragicomédia da historia universal estão expostas e reunidas em uma fantasmagórica vacuidade7. Portanto, em meio a este vazio fantasmagórico, As iniciais nos apresenta uma série de personagens que sofreram uma abrupta interrupção da vida, sendo que muitas delas têm a vida cortada pela AIDS. O curso normal de suas existências acaba suspenso e essa passagem se derrama sobre a perspectiva da personagem narradora. No entanto, ela não vivencia diretamente essa experiência de morte, mas a sofre de forma secundária, como testemunha e como sujeito do luto, visto que a maioria das personagens que faziam parte de seu grupo de amigos desaparece, devorada pela AIDS. Nesta perspectiva, ao tratar de duas narrativas que transitam entre a ficção e a autobiografia publicadas nos anos 1990, A doença, uma experiência8, de Jean Claude Bernadet (1996), que aborda as circunstâncias de ser aidético no Brasil, com um sistema de saúde ineficaz, escasso e corrupto, e De profundis, valsa lenta9, de José Cardoso Pires (1997), que relata a experiência de ter a memória apagada 7. Agamben, Giogio, « Sin clases », in La comunidad que viene, Valencia, Pre-textos, 2006, p. 53-54 (tradução nossa). 8. Bernardet, Jean-Claude, A doença, uma experiência, São Paulo, Companhia da Letras, 1996. 9. Pires, José Cardoso, De profundis, valsa lenta, Lisboa, Dom Quixote, 1997. 74 A contemporaneidade in extremis por um acidente vascular cerebral, a pesquisadora Vilma Areas assinala em « Narrativas in extremis 10» como ambos os textos, cada qual à sua maneira, e do mesmo modo que os romances Onze e As iniciais, tematizam « a reflexão benjaminiana acerca da perda da experiência no mundo contemporâneo 11», por meio de personagens retornadas do mundo dos mortos ou vizinhas dele. Isto posto, observamos como As iniciais configura, desde a ficção, uma ideia de experiência ligada, entre outras coisas, a processos discursivos e modos de construção narrativa impregnados de uma exterioridade desumanizada, vazia e opressora. As diferentes modalidades de violência – entre elas referências a personagens que foram torturadas durante a ditadura militar brasileira – que constituem o cenário da narrativa, conformam linhas de fuga e tensão que atravessam o território do romance e o carregam para um imaginário de mortes e sombras. Assim, em meio a expressões de autorreferência quase todas depreciativas, um passado, em que a morte e a degradação ganham relevo, vai sendo constituído. No entanto, com isso, Carvalho não parece querer apenas articular um discurso afirmativo de protesto e denúncia, pois há procedimentos discursivos que não permitem pensar que o referente aqui cumpra esse papel. Mas podemos dizer que se configura um universo em que salta aos olhos a vulnerabilidade e precariedade da vida de muitas figuras humanas, condenadas, por exemplo, pelo surto virótico mortal da AIDS. São igualmente vidas excluídas da proteção sanitária do Estado, expostas à violência de uma enfermidade letal, estigmatizadas, e pelas quais apenas o narrador parece estar de luto. São como vidas sobre as quais podemos dar morte sem nos importarmos com isso, como as que assinala Judith Butler, ao procurar repensar, em Vida precaria. El poder del duelo y la violência12, a possibilidade de uma comunidade sobre a base da vulnerabilidade e da perda. Segundo a autora Não se trata simplesmente de tornar possível a entrada dos excluídos em uma ontologia estabelecida, mas de uma insurreição a nível ontológico, uma abertura crítica de perguntas tais como : O que é real? Quais vidas são reais? Como se poderia reconstruir a realidade? Aqueles que são reais já sofreram, em algum sentido, a violência da desrealização?13 Espectros de personagens à deriva, que já não exprimem nenhuma experiência. Figuras dramáticas esvaziadas, marcadas por histórias fortuitas e violentas. O avançar da vida que se decompõe em infinitas perspectivas, pródigas em conjeturas indecisas sobre as coordenadas do mundo real. Modesto e hostil inferno em que o sentido padece de um horror ao pensamento sedentário, a fixação de personagens, enredos, tempos e causalidades. Desse modo, e a fim de encerrar este artigo, Onze e As iniciais expressam e ficcionalizam uma contemporaneidade in extremis. Os danos nefastos da organização capitalista na modernidade tardia, que eram talvez ainda incipientes nas primeiras formulações do filósofo alemão Walter Benjamin sobre a experiência, sedimentam-se indefinidamente em ambas obras do escritor Bernardo Carvalho. 10. Areas, Vilma, « Narrativas in extremis », in Literatura e sociedade, São Paulo, n. 8, 2005, p. 104-111. 11. Ibid., p. 105. 12. Butler, Judith, Vida precaria, El poder del duelo y la violencia, Buenos Aires, Paidós, 2006. 13. Ibid., p. 59-60 (tradução nossa). 75 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Agamben, Giorgio, « Sin clases », in La comunidad que viene, Valencia, Pre-textos, 2006. ---, Homo Sacer, El poder soberano y la nuda vida, Valencia, Pre-textos, 2006. Areas, Vilma, « Narrativas in extremis », in Literatura e sociedade, São Paulo, n. 8, 2005, p. 104-111. Bernardet, Jean-Claude, A doença, uma experiência, São Paulo, Companhia da Letras, 1996. Butler, Judith, Vida precaria, El poder del duelo y la violencia, Buenos Aires, Paidós, 2006. Carvalho, Bernardo, Onze, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. ---, As iniciais, São Paulo, Companhia das Letras, 1999. ---, « O espaço negativo », in O mundo fora dos eixos, São Paulo, Publifolha, 2005, p. 85-87. Deleuze, Gilles, Lógica del sentido, Barcelona, Paidós, 2005. Pellegrini, Tânia, « A ficção brasileira hoje : os caminhos da cidade », in Revista de crítica literária latinoamericana, Lima-Hanover, 2001, n. 53, p. 115-128. Pires, José Cardoso, De profundis, valsa lenta, Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 1998. Whiteread, Rachel, Untitled (Paperbacks), MoMa, 1997, gesso e aço, 450 x 480 x 632 cm. 76 Como vai a família? Como vai a família? As reconfigurações da instituição familiar no imaginário do romance brasileiro contemporâneo Anderson Luís Nunes da Mata Resumo: A instituição da família é uma invenção da modernidade. Se ela ocupou um espaço importante nas narrativas da América Latina pós-colonial, como alegoria para os laços sociais que vinham sendo atados ou como espaço socioafetivo em que elas se desenvolveram, no início do século XXI, ela encontra-se em crise. O objetivo deste artigo é, então, investigar o modo como o romance brasileiro contemporâneo tem investido na tematização da família, por meio das obras de autores como Ronaldo Correia de Brito, Adriana Lisboa, Luiz Biajoni, Beatriz Bracher e Heloisa Seixas. Palavras-chave: representação, família, romance brasileiro contemporâneo Résumé : L’institution familiale est une invention de la modernité. Si elle occupa une place importante dans les récits latino-américains postcoloniaux, à la fois comme allégorie de nouveaux liens sociaux qui se tissaient, et, comme espace socioaffectif dans lesquels ils se déployèrent, elle se trouve, de nos jours, en crise. L’objectif de cet article est d’interroger la manière dont le roman contemporain brésilien met en scène l’institution familiale, notamment, dans les œuvres de Ronaldo Correia de Brito, Adriana Lisboa, Luiz Biajoni, Beatriz Bracher et Heloisa Seixas. Mots-clefs : Représentation, famille, roman brésilien contemporain. « Como vai a família? » é uma expressão típica da linguagem fática do português do Brasil. Sem maiores consequências semânticas, o uso corriqueiro da expressão revela ao mesmo tempo a importância da instituição no imaginário da língua (e de seus falantes), e o descrédito dessa instituição, especialmente quando se percebe que deixa de ter importância o genuíno interesse pela família do outro e pelo fato de o bem estar do grupo familiar representar também o bem estar do sujeito. Como a pergunta é apenas retórica, espera-se que a resposta seja sempre positiva, pois as crises familiares dificilmente serão discutidas em público. Assim, resguardadas sob o manto do segredo, as famílias são matéria de literatura de fundamental importância desde o surgimento do romance, no século XVIII. Importantes para o arranjo das tramas e para a construção das personagens de muitas narrativas de ontem e de hoje, as relações familiares merecem um olhar atento dos pesquisadores da literatura contemporânea e não apenas daqueles que se dedicam ao estudo da literatura dos séculos XVIII e XIX. É preciso observar que o termo família tem sob seu escopo muitos e distintos arranjos sociais e afetivos nos seus recortes cronológicos, de gênero, de classe social, de nacionalidade e, desde que observados a partir das diferentes ordens discursivas presentes na sociedade, assume feições e papéis específicos. Aqui, será feito um recorte que se circunscreve à família brasileira composta em sua feição nuclear, em suas diversas configurações, oriunda da classe média, que é, segundo Regina Dalcastagnè1, 1. Dalcastagnè, Regina, « A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004 », Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, 2006, n. 26, p. 50. 77 Iberic@l - Numéro 2 de onde saem grande parte das personagens dos romances brasileiros contemporâneos, que comporão o corpus desta análise. Essa classe média, entendida aqui desde sua posição econômica e intelectual, constitui a perspectiva a partir da qual as narrativas são construídas, seja no que se refere à autoria, seja no que se refere ao ponto de vista do narrador. Nesse contexto, deve-se lembrar que, no ocidente, a instituição da família, tal como a conhecemos, é uma construção da modernidade2. A elaboração arquitetônica e afetiva do espaço privado ocupado pelo núcleo familiar (e pelo indivíduo dentro do espaço familiar) é paralela aos modos de tratar a infância, também influenciando ao mesmo tempo essa a preservação da descendência de uma linhagem. Eram as famílias dos mais abastados as primeiras constituídas a partir desse modelo de uma unidade que interage socialmente com as demais, mas que se constrói no âmbito do privado (com suas regras internas, seus segredos etc.). Trata-se de um modelo familiar que, começando a se forjar ao longo dos séculos XVI e XVII3, ganha força à medida que a burguesia se distancia dos pobres e miseráveis, fechando-se em seus núcleos familiares, ao longo do século XVIII. Esse sumário do conceito de família obviamente não dá conta da complexidade de sua história no ocidente moderno (nem é sua única versão), mas já auxilia a compreensão dos primeiros pontos relevantes para a discussão do papel do imaginário sobre a família na literatura brasileira, em particular. É sabido que a instituição familiar ocupou um espaço importante nas narrativas da América Latina pós-colonial, ou como alegoria para os laços sociais que vinham sendo atados ou como espaço socioafetivo em que elas se desenvolveram. Doris Sommer, em sua tese sobre o protagonismo do casamento como alegoria no romance pós-colonial latino-americano4, defende que parte do projeto de consolidação de um imaginário nacional, isto é, a construção das comunidades imaginadas5 que resultaram com maior ou menor sucesso nos estados nacionais latino-americanos modernos tiveram no romance parte importante de sua consolidação. Nesses romances, havia um espaço central dedicado ao casamento, de um lado como contrato social entre classes (e também com desdobramentos étnicos), mas, de outro, principalmente como encontro amoroso. Dois romances publicados ao longo da segunda metade do século XIX são exemplares do que trata Sommer : Iracema, de José de Alencar (1865), e O cortiço, de Aluísio Azevedo (1888). Alencar, objeto de estudo de Sommer, obedecia a um programa, posteriormente explicitado no prefácio a Sonhos D’Ouro (1872), de escrita de romances que dessem corpo ao imaginário nacional. Nesse projeto, a construção de um núcleo familiar miscigenado, e por isso nacional, (sintomaticamente sem a figura materna, já que o projeto é civilizador e há que prevalecer a cultura europeia – no caso, também, masculina) é o que resume a narrativa. Com uma proposta menos de construção de um mito e mais de investigação sobre as relações entre classes que se estabeleciam no contexto pós-independência, O cortiço, de Aluísio Azevedo, também apresenta o casamento como mediador dessas relações ao introduzir o novo rico João Romão na elite nacional a partir de seu casamento com a filha de um comerciante. Antonio Candido, no ensaio « De cortiço a cortiço6 », chama a atenção para o fato de o naturalismo brasileiro ter como peculiaridade justamente o investimento na elaboração de alegorias, isto é, de desvio 2. Ariès, Philippe, História social da família e da criança, Trad. Dora Flaskman, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. 3. Ibid. 4. Sommer, Doris, Ficções de fundação, Belo Horizonte, UFMG, 2004. 5. Benedict Anderson afirma que a nação é uma « comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles ». Anderson, Benedict, Comunidades imaginadas, São Paulo, Companhia das Letras, 2008, p. 32. 6. Candido, Antonio, « De cortiço a cortiço », in O discurso e a cidade, Antonio Candido, São Paulo, Ouro sobre azul, 2004, p. 128-29. 78 Como vai a família? do projeto naturalista francês, de cunho empírico, em prol da conotação. Entre um texto e outro notase, contudo, a mudança no modo de encarar o casamento. De mediação pacificadora porém fundada no amor genuíno, na literatura indianista de Alencar, o casamento se transforma em mera convenção social na literatura finissecular, seja nessa obra de Azevedo, seja nos primeiros, e principalmente, nos romances finais de um Machado de Assis, por exemplo. Essa mudança está relacionada a uma das faces das crises que farão a instituição familiar sofrer abalos ao longo do século XX. Se a representação do caráter de convenção social começa a ganhar espaço na literatura sem lugar para redenção, deve-se remarcar que a retomada da individualidade dentro do espaço doméstico também é um fenômeno da modernização da estrutura familiar ao longo do século XX. Antoine Prost7 afirma que, na França, a própria disposição do espaço doméstico sofreu transformações, inclusive com a interferência do Estado, no sentido de diminuir o número de habitantes de uma única casa e limitar o número de pessoas que poderiam viver em um cômodo. Para as famílias mais abastadas, essa construção de um espaço privado no interior da vida familiar data de mais tempo, e se relaciona com o processo de construção do próprio conceito de indivíduo. Na relação do indivíduo com o espaço individual no qual ele circula e a partir do qual ele elabora suas relações individuais com o mundo, privadas ou não, há um processo de intensificação da privacidade que, aliado às transformações sociais ligadas principalmente à educação pública, aos poucos vai problematizando a própria ideia de uma unidade familiar. Nesse sentido, a família passa a ser mais um ajuntamento provisório de indivíduos com interesses comuns, que propriamente um bloco fechado, do qual o sobrenome (ou nome de família) representaria o conjunto. Nas palavras de Prost, A família perde gradualmente as funções que a caracterizavam como uma microssociedade. A socialização dos filhos abandonou em larga medida a esfera doméstica. A família, portanto, deixa de ser uma instituição para se tornar um simples ponto de encontro de vidas privadas8. Essa tensão entre a família como unidade e os indivíduos que a compõem tem, no contexto da literatura brasileira, um romance-chave para sua compreensão : A crônica da casa assassinada, de Lucio Cardoso. Publicado em 1956, o texto é composto por depoimentos de membros de uma tradicional família cuja decadência não se encontra só na derrocada financeira marcada pela perda de importância do universo rural no processo de modernização industrial do país, mas principalmente nos desencontros entre os pontos de vista dos personagens que compõem a narrativa sobre suas histórias. Já se afastando dos riscos da alegoria nacional que, por vezes, paralisa a dinâmica narrativa, o romance de Cardoso apresenta olhares sobre os diversos eventos (e às vezes sobre os mesmos repetidas vezes) que dificilmente se encontram, pois as experiências individualizadas decorrentes da conquista da privacidade, mesmo em um espaço controlado como o da casa, transforma o grupo de habitantes daquele espaço em um ajuntamento dissonante de sujeitos. Essa dissonância, contudo, só existe porque está em tensão com o projeto unificador e homogeneizador que se encontra por detrás da própria ideia de « uma família » sob « um mesmo teto ». A profusão de narradores do texto de Cardoso também dá a medida da importância da construção dessas subjetividades na narrativa brasileira moderna. Esses sujeitos, cada vez mais voltados para si, colocam-se, em maior ou menor grau em conflito com os conceitos que norteiam também a montagem da instituição familiar, principalmente a ideia de unidade e de homogeneização que passa tanto pelo imaginário do « mesmo » sangue por detrás do parentesco quanto pelo nome de família compartilhado 7. Prost, Antoine. « A família e o indivíduo », in História da vida privada, v. 5, Philippe Ariès, Georges Duby (org.), São Paulo, Companhia de Bolso, 2009, p. 55. 8. Ibid., p. 74. 79 Iberic@l - Numéro 2 por todos os membros ajuntados. A partir de uma seleção de textos publicados na segunda metade da primeira década do século XX, observou-se o modo como a família surgia como um tema relevante na construção das narrativas. Chegou-se, a partir dessa observação, aos seguintes títulos : Galileia (2008), de Ronaldo Correia de Brito, Antonio (2007), de Beatriz Bracher, O lugar escuro (2007), de Heloisa Seixas, Azul corvo (2010), de Adriana Lisboa e Elvis e Madona (2010), de Luiz Biajoni. Aproximando, então, a discussão desses romances que nos interessam aqui, foram identificados, entre os textos do corpus, continuidades e rupturas em relação à tradição mais pronunciada da presença da família nos textos, isto é, desde a narrativa que a transforma em alegoria até aquela que deflagra sua crise ou aqueles em que a ruptura aponta para outras possibilidades narrativas, em que a família é tema que recorta a experiência do sujeito sob outras bases, seja nas suas possibilidades de reconfiguração no contemporâneo, seja mesmo no modo como o narrador e os personagens se posicionam em relação à família. Entre a alegoria e o intimismo Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, é um dos romances que se apresentam como continuidade a um projeto de esquadrinhamento das crises na constituição da família rural brasileira, apontando para uma alegorização dessa crise. O premiado romance de Brito apresenta uma estrutura em que o foco narrativo se alterna entre três membros de uma mesma família lidando com o retorno à fazenda Galileia, onde mora Raimundo Caetano, o avô outrora poderoso que se encontra no leito de morte. Os descendentes de Raimundo Caetano se espalharam pelo Brasil e pelo mundo e se reencontram em função da morte do avô. Os membros dessa família diaspórica apresentada no romance não estão marcados pela nostalgia de um passado em que eram um bloco inteiro, até mesmo porque as reminiscências que vão surgindo ao longo da narrativa apontam justamente para um desmonte de base nessa família, composta mais do que pela sucessão masculina linear e consanguínea de filhos, pais e avôs, pela agregação de filhos adotivos, que maculam a unidade marcada pelo parentesco consanguíneo, pelas separações, que maculam a unidade marcada pela aliança e pela lealdade, e pelos atos de violência, que maculam a unidade autoprotetiva da família. Ao incursionar pelo sonho e pelo delírio no relato dos traumas que compõem as histórias desses personagens, o romance se nega a enunciar, mesmo que provisoriamente, alguma verdade sobre a família de Raimundo Caetano. Por outro lado, o romance Galileia lida com o imaginário do sertão, espaço mitificado no imaginário nacional, seja nas artes visuais, cênicas, no cinema ou na literatura e, claro, enfrenta esse legado. O sertão da narrativa não deixa de ser o espaço marcado pela fixidez de costumes, mas também lugar a partir de onde é possível construir transformações. Não que o romance de Brito seja propositivo nesse sentido, mas os personagens, na sua viagem de volta à casa da infância, aproveitam o espaço do sertão para se examinarem, seja nos desencontros de uma companhia que nunca se consolida – ainda que viagem juntos –, seja no voltar-se para si mesmos de modo a analisar seu lugar naquela história. Cada uma das linhas narrativas acaba ganhando, portanto, esse peso da exterioridade da imensidão do sertão como uma espécie de referente, de algum modo, da experiência de cada um deles. Além disso, o tom grandiloquente da narrativa, evidente na escolha do nome da fazenda e dos nomes dos personagens, homônimos de personagens do Velho Testamento, tenta situar a história na suspensão do tempo, a partir da referência a um tempo ora ancestral, ora marcadamente contemporâneo, mas também na historicização radical e óbvia, com um conjunto de remissões à cultura pop dos anos 2000, desde a música de Thom Yorke até os gadgets que os personagens utilizam a todo tempo. A dupla face do tempo, ancestral e contemporâneo, estabelece a ligação entre o que é encenado na diegese e o que ela 80 Como vai a família? pode representar para além do texto. Dessa forma, Galileia é mais que a fazenda, o sertão é mais que o sertão e as relações construídas e desconstruídas na família de Raimundo Caetano têm a pretensão de alegorizar as mudanças sociais ocorridas na sociedade brasileira ao longo da segunda metade do século XX, passando do enraizamento em um Brasil rural, patriarcal e patrimonialista, ao desenraizamento urbano e diaspórico de trânsitos transnacionais. A narrativa de Antonio, de Beatriz Bracher, se concentra na busca da reconstituição de episódios familiares. O romance de Bracher é um conjunto de depoimentos dados ao jovem Benjamin, que busca remontar a história de seu pai a fim de legá-la ao filho, o Antonio do título. Os episódios, ao contrário dos de Galileia, recusam qualquer grandiloquência : cada um dos personagens – a mãe, os amigos da família – se alternam de modo a relatar, de modo intimista, sua própria relação com o investigado, e, a partir daí, falam muito mais sobre si mesmos do que sobre o pai de Benjamin. O personagem retratado não escapa a uma certa mistificação, como uma espécie de anti-herói outsider. Contudo, é sobre os demais personagens, principalmente na voz narrativa da mãe, que a narrativa se concentra. O descolamento do foco do texto já é anunciado na escolha do título, pois Antonio é talvez o personagem mais ausente da história – ausente inclusive como o narratário em que ele se constitui ao final. Trata-se de um texto que expõe as fissuras na estrutura familiar por meio de uma narrativa íntima, contada ao pé do ouvido entre familiares e amigos de família. O segredo, que sustenta a própria ideia de família, é, ao ser revelado, a razão de sua possível desestabilização. No entanto, não se trata de uma desestabilização que abale a existência da família em si, mas que, ao expor parte de suas estruturas e dos ingredientes que a compõem, acaba por desvelar essa família em particular, sem necessariamente se propor a narrar sua derrocada. O propósito de Benjamin ao recolher os depoimentos é, em última instância, fornecer ao filho recém-nascido parte dos fios que compõem a trama de sua história – uma possibilidade de biografia. Por isso mesmo, a tal família tradicional, aquela celebrada nos romances de Alencar, criticada nos de Machado e exposta no seu fracasso nos textos de Cardoso e Brito, está longe das preocupações dos narradores de Bracher, que não está em busca do reforço ou do questionamento da imagem externa dessa família, mas de uma compreensão de suas engrenagens a partir de dentro. Em busca da história do « patriarca », o Benjamin avô de Antonio, o que se encontra são enunciadores que, se dizem algo sobre o personagem em questão, apenas o dizem em função de si mesmos. Nesse sentido, mais que uma história de Benjamin, o que se recolhe são as histórias das relações estabelecidas com Benjamin ou em função dele. A voz mais contundente entre todas é a da mãe do personagem investigado. Dela, surgem as reflexões mais francas, que expõem a artificialidade de certas impressões cultivadas como mito dentro do imaginário familiar. De alguma forma, o papel de agregadora dessas narrativas familiares, e de voz legítima para narrá-las, parece caber no romance de Bracher, à mãe, que encerra a narrativa com sua própria morte. O corpo doente, e, mais que ele, o cadáver, cumprem no texto uma função importante : é em torno da morte que a família se reúne no capítulo final, quando as vozes individuais desaparecem e dão lugar a uma narrativa distanciada dedicada a tratar da preparação do corpo dessa matriarca, confirmando que sua morte põe fim àquela história. O narrador externo desse capítulo final, por sua vez, nos indica que o acesso à intimidade da família também se encerrou, pois, de acordo com Antoine Prost, « não existe nada tão privado quanto a saúde9 », ao que se pode completar, que, talvez, sim, exista: a morte. Tomando ao corpo doente e a morte como ponto de partida, o texto de Heloísa Seixas, O lugar escuro, discute as relações entre mãe e filhos. Tratado pela autora, pelos editores e pela crítica como um texto de não ficção, O lugar escuro, que é escrito em um formato de romance, apresenta uma narradora 9. Ibid., p. 93. 81 Iberic@l - Numéro 2 que enfrenta a decadência física de sua própria mãe que sofre de Alzheimer. Os modelos familiares tradicionais surgem no texto quase como um anedotário sobre as relações entre sua mãe e o pai, de quem se divorciou ainda jovem. São modelos perseguidos pela mãe, os quais a narradora busca desmentir com sua memória sobre a convivência familiar. Se a mãe tentava caber no papel de dona de casa exemplar, a filha remarca, na sua narração, a mesquinharia, o egoísmo e a falta de cumplicidade com o pai. Esse desmonte da figura materna é parte de um projeto que busca expressar, a partir daí intimidade, o modo como a relação entre mãe e filha vai sendo construída. A narradora parece buscar segredar para o leitor os sentimentos inconfessáveis, porque negativos, que uma filha pode sentir pela mãe ao longo da vida, e o modo como essa carga de rancores vem à tona quando o corpo se fragiliza, especialmente no que se refere à saúde mental. No texto de Seixas, desse modo, há uma busca pela reconstrução de algum tipo de relação que justifique a dedicação da filha à mãe doente. O ajuntamento de indivíduos parece perder o sentido para essa narradora no momento em que um passa a efetivamente depender do outro. Aí, outros tipos de laços têm de se constituir e algo da comunidade auto protetiva da família tradicional tem de ser retomado, antes que o lugar escuro em que a demência coloca sua mãe seja definitivamente o lugar por ela ocupado. Há, portanto, uma relação direta entre os procedimentos de representação da instituição familiar nas narrativas de Seixas e de Bracher. O segredo é, nas duas perspectivas apresentadas, o catalisador das relações familiares, aquilo que transforma os indivíduos em uma pequena comunidade. O compartilhamento e a interdição de revelar narrativas privadas é, então, o que constitui os textos. Em Seixas, o pacto é quebrado na medida em que a filha comunica diretamente ao leitor aquilo que tradicionalmente estaria restrito à cozinha da casa. A justificativa encontrada é a senilidade e a loucura da mãe, que é o último indivíduo a quem ela deve lealdade em relação ao pacto do segredo. A perda da razão por parte da mãe torna essa narradora a única proprietária de suas histórias e, por isso, autorizada a revelá-las. Além disso, a retórica da vitimização, uma vez que a mãe é apresentada como tirana, também justifica essa revelação. Sua confissão de desamor é, ao mesmo tempo, um pedido de licença e um projeto de vingança que ela busca partilhar com o leitor. Por outro lado, deve-se destacar que a saúde do indivíduo é, como já foi destacado, um campo de resistência no que se refere à revelação de segredos, e, no seu projeto de desconstrução para o leitor (e para si) da figura da mãe, é exatamente sobre a decadência do corpo que a narradora se debruça. É interessante notar que a demência da mãe da narradora põe fim ao núcleo familiar composto pelas duas. A narradora, no entanto, constitui outro núcleo familiar com o seu marido, que aparece em poucos episódios na narrativa, mantendo essa relação no âmbito da privacidade que é negada no que se refere à mãe. Assim, fica evidente que se há uma crítica a alguns dos pilares da família tradicional, o projeto de desvelo da família é parcial e conta com a manutenção da necessidade da privacidade como mantenedora da lógica da estrutura familiar. Já Antonio recorre a um truque narrativo, pois os narradores não se comunicam diretamente com o leitor, mas com um dos seus, Benjamim, que, por sua vez, dedica o livro a seu próprio filho. Tratase, portanto, de narrativa que passa de geração a geração e que, nós, leitores, espiamos pelo buraco da fechadura. Há, como em O lugar escuro, uma manutenção do princípio da privacidade da estrutura familiar, que, como de resto já foi apontado, não é alvo de uma revisão crítica no romance de Bracher. Comunidades de afetos Tanto Antonio quanto O lugar escuro reforçam a noção do segredo compartilhado como o cerne da constituição familiar. Contudo, o romance de Heloisa Seixas discute o modo como o desaparecimento do afeto e a ruptura com a noção de privacidade revelam a falência da unidade familiar, que passa a ser 82 Como vai a família? mais um ajuntamento de indivíduos vivendo sob o mesmo teto. Esse ajuntamento, porém sem vínculos de parentesco, é o modo como o romance Azul corvo, de Adriana Lisboa, elabora a família de sua protagonista. Mais uma vez, se trata de uma personagem em busca da reconstituição de sua história. Nesse caso, a adolescente Vanja muda-se para os Estados Unidos a fim de buscar o pai após a morte da mãe no Brasil. Enquanto o procura, a narradora passa a viver com Fernando, um ex-namorado da mãe e, aos poucos, adaptando-se ao novo mundo, ela vai estabelecendo laços com esse quase estranho, que a registrou como filha à época de seu nascimento, até entender-se, finalmente, em casa. Do estranhamento à afinidade, a narrativa não busca construir esse homem como um substituto de seu pai, mas como uma família possível, com novos papéis que vão sendo elaborados e reelaborados à medida que as experiências entre os dois são vividas. Mais uma vez, trata-se de uma narrativa sem qualquer apelo ao modelo de narração alegórica da família, e, nesse caso, sem sequer buscar apontar uma possível crise. É uma narrativa que trata da constituição de um sujeito, e aí, mais especificamente, da passagem da adolescência para a juventude, e das possibilidades de se estabelecer vínculos com essa comunidade mínima, doméstica, bastante transformada em relação ao que tradicionalmente se entende como família, mas por outro lado, mais fortemente atrelada pelos vínculos do afeto, e decorrentes da rotina, que daqueles das convenções sociais. Não apenas aos vínculos de afeto, pois a história de Fernando é recortada pela história recente do Brasil. Ex-guerrilheiro, o personagem guarda uma série de traumas em relação a sua participação e sobrevivência na guerrilha do Araguaia. Seu exílio nos Estados Unidos guarda íntima relação com uma recusa ao enfrentamento do Brasil e de sua história. A mãe de Vanja, por exemplo, desconhecia as histórias às quais ela passa a ter acesso na medida em que estabelece um vínculo de afeto com esse novo familiar. A história de Fernando com a guerrilha, no entanto, é íntima, e, mais uma vez, é revelada apenas no nível da confidência, ou seja, resguardada a privacidade e mantida a lógica do segredo. Não há, nesse sentido, qualquer busca por exteriorizar a narração dessa experiência – ela segue, na narrativa como parte da história de um personagem, e só dele, sem que ele se transforme em alegoria de uma geração. Sozinho em um país estrangeiro, Fernando está representado em uma das alegorias que o romance articula a partir de animais. Em dado momento, a narradora descreve os hábitos dos coiotes, que tanto podem ser solitários, como podem se organizar em matilhas com o macho, a fêmea e seus filhotes, mas ainda podendo trazer os filhotes de outros machos ou fêmeas. Ela menciona, ainda, o fato de os imigrantes mexicanos que atravessam a fronteira a pé serem chamados de coiotes. Há nessa descrição uma relação próxima do modo como a narradora se articula com esse homem. Seus laços de parentesco consanguíneo estão atados a outro homem. No entanto, ela passa a se reconhecer, pela intimidade partilhada, com Fernando, com quem sua mãe já estabelecera uma aliança que, em algum momento, se rompeu. Esse momento coincide com a decisão de Fernando em não partilhar os segredos do Araguaia. O círculo se completa quando ele os revela a Vanja. Coiotes, pai e filha de casamentos desarranjados, Fernando e Vanja se fazem família em bases imprevistas : sem parentesco direto, sem identidade geracional, sem se ater a um laço nacional: são família construída pelo afeto. Essa parece ser também a proposta de Luiz Biajoni em Elvis & Madona. O romance, escrito a partir do roteiro do longa-metragem homônimo de Marcelo Laffitte, constrói uma pulp-fiction policial sobre um casal formado por uma Elvis, a menina apresentada como lésbica ao início da história, e Madona, a travesti, que, a princípio, também não se interessava por mulheres. A tensão sexual que surge entre as personagens, permeada pelo embaralhamento dos papéis sexuais exercidos por cada uma delas é apresentada como o ponto de conflito central da história. A partir dessa atração, mediada pelo travestismo de ambas, surge um breve relacionamento que culmina com a gravidez de Elvis. O que a princípio era uma experimentação, se transforma, na narrativa, em destino. A maternidade/paternidade é para ambas 83 Iberic@l - Numéro 2 as personagens uma espécie de redenção, dado o quadro decadente em que ambas são apresentadas no início do romance e o modo como se redescobrem seres humanos melhores após a descoberta da gravidez. A cena heroica em que Elvis salva Madona e o próprio filho de uma emboscada é exemplar do modo como a maternidade é apresentada dentro do clichê do destino/instinto, transformando a menina descrita como fisicamente frágil em uma espécie de super-heroína que supera seus limites para salvar a cria. Embora culmine em um modelo familiar tradicional, a família construída em Elvis & Madona surge a partir de afinidades que passam ao largo dos contratos familiares já conhecidos. É interessante notar que, a despeito do conservadorismo calcado na redenção pela maternidade que o romance adota, há de início a apresentação de um arranjo familiar atípico para essas personagens marginais – travestis que sofrem o peso do preconceito em relação não só à orientação sexual, mas a um exercício mais amplo e ostensivo de sua identidade sexual. Esse arranjo familiar está baseado em outros tipos de afinidades que definem aqueles com que as personagens dividem seus espaços domésticos, sua privacidade e seus segredos. Assim, são os vínculos do afeto que constituem a família de personagens que há muito já foram rejeitados pela família nuclear, como o romance didaticamente expõe ao narrar os conflitos de Elvis com a mãe e o pai. Narrado em parte como uma crônica de costumes, o texto investe nos desdobramentos do encontro sexual entre a travesti e a lésbica, que, sob esses rótulos, soa insólito, mas que, de modo inclusive engajado, destaca pouco a pouco a fragilidade de tais representações. No entanto, apenas essa irreverência, reforçada pelo forte tom cômico do texto, parece exibir uma fascinação com a escolha das personagens e o embaralhamento de suas identidades sexuais, pois acaba por se sustentar na ideia de que o tal casal representa, por si só, um abalo. Essa expectativa esconde uma série de preconceitos que acabam por culminar com a redenção dessas personagens no momento em que se encaixam no modelo de familiar nuclear já conhecido. Por outro lado, a identidade sexuais dos personagens é mantida no sentido de que não há a descrição de uma transformação de suas identidades gays em heterossexuais. Embora o casal seja, a rigor, um casal heterossexual (o que lhes garante a possibilidade de gerar descendência de parentesco consanguíneo), ao propor sua presença como o núcleo de uma nova família, espera-se, de fato, uma ruptura com o conteúdo das reproduções sociais que são intrínsecas às funções familiares, especialmente as parentais : a geração seguinte, necessariamente, será marcada por uma nova experiência de filiação. A família vai bem? Os modos de representar a família e o papel que essa representação ocupa nas narrativas tem se transformado : por um lado, o modelo pós-colonial não parece mais interessar aos autores contemporâneos, embora alguns vestígios de tal representação ainda possam se encontrar em textos como Galileia; por outro lado, há um forte investimento em outros modos de narrar a família, seja na representação de uma família montada a partir de personagens fora dos padrões de sexualidade esperados para « pais de família », como em Elvis & Madona, seja no desnudamento dos sentimentos encobertos pelo peso das representações já prontas dos afetos, como em Antonio e O lugar escuro. Os romances ocupam polos opostos de uma mesma reta : Antonio e O lugar escuro reafirmam o lugar da família como espaço do segredo e da privacidade, estabelecendo, no jogo narrativo, estratégias para desvelar o que deveria, por princípio, estar silenciado para quem é estranho ao universo familiar narrado. Em outro polo está Elvis & Madona com seu arranjo familiar meio iconoclasta, meio conservador. Nos três casos, há uma retomada do núcleo familiar : a reconciliação com a mãe em O lugar escuro, a reunião em torno do 84 Como vai a família? cadáver da mãe em Antonio e o casamento e a iminência do nascimento do filho em Elvis & Madona; apenas Galileia encaminha a discussão para uma dissolução da família e reafirmação dos indivíduos. Situando-se fora da reta em que se encontram essas representações está a proposta de um arranjo doméstico que podemos até mesmo resistir em chamar de família, embora seja a sua possibilidade a partir de uma experiência como a de Vanja, de Azul corvo. Há, nesses casos, uma retomada do tópico da família unida por laços de afeto, mas em bases completamente distintas, e com objetivos políticos completamente diferentes daqueles da literatura colonial ou das narrativas da psicologia e da sociologia do século XX. Após passar pelas fases denúncia, seja dos arranjos político-econômicos que nortearam a formação das famílias, seja dos rancores que se superpõem a certa hipocrisia familiar, narrativas como a de Adriana Lisboa propõem uma família possível calcada na constituição de comunidades mínimas, domésticas, atadas pelo afeto que emerge das experiências compartilhadas. 85 Iberic@l - Numéro 2 Referências bibliográficas Anderson, Benedict, Comunidades imaginadas, São Paulo, Companhia das Letras, 2008. Ariès, Philippe, História social da família e da criança, Trad. Dora Flaskman, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. Biajoni, Luiz, Elvis & Madona, Rio de Janeiro, Língua Geral, 2010. Bracher, Beatriz, Antonio, São Paulo, 34, 2007. Brito, Ronaldo Correia, Galileia, São Paulo, Alfaguara, 2008. Candido, Antonio, « De cortiço a cortiço », in O discurso e a cidade, Antonio Candido, São Paulo, Ouro sobre azul, 2004. Dalcastagnè, Regina, « A personagem do romance brasileiro contemporâneo : 1990-2004 », Estudos de literatura brasileira contemporânea, Brasília, 2006, n. 26, p. 13-71. Lisboa, Adriana, Azul corvo, Rio de Janeiro, Rocco, 2010 Prost, Antoine, « A família e o indivíduo », in História da vida privada, vol. 5, Philippe Ariès, Georges Duby (org.), São Paulo, Companhia de Bolso, 2009. Seixas, Heloisa, O lugar escuro, São Paulo, Objetiva, 2007. Sommer, Doris, Ficções de fundação, Belo Horizonte, UFMG, 2004. 86 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 José Leonardo Tonus Resumo: O presente trabalho busca debater a importância dos relatos de filiação no contexto brasileiro da redemocratização política. Tratar-se-á, aqui, de entender as relações que se operam, nestes textos, entre memória e amnésia histórica, entre tradição e inovação romanesca, entre exumação e impossibilidade de dizer as origens. Se os relatos de filiação nas narrativas de ou sobre imigração prolongam as formas clássicas do romance familiar, do romance das origens e do romance genealógico, eles parecem já carregar consigo as marcas de modernidade órfã e bastarda. Palavras-chave: Literatura brasileira contemporânea, heranças, genealogias, órfãos, bastardos. Résumé : Cet article vise à débattre de l’importance des récits sur la filiation dans le contexte brésilien du retour à la démocratie. Dans ces textes, il s’agira de comprendre les relations existantes entre mémoire et amnésie historique, entre tradition et innovation romanesque, entre volonté et incapacité de parler de ses origines. Si les récits sur la filiation prolongent, dans les romans de ou sur l’immigration, les formes classiques du roman familial, du roman des origines et du roman généalogique, ils semblent déjà porter, en eux, les marques d’une modernité orpheline et bâtarde. Mots-clefs : Littérature brésilienne contemporaine, héritages, généalogies, orphelins, bâtards. Ao analisar a produção romanesca francesa da década de 1980, o crítico Laurent Demanze constata um retorno a formas narrativas clássicas centradas no questionamento da experiência do eu, o que, segundo ele, atestaria um nítido “refluxo da modernidade” e da “aventura formal e formalista do romance contemporâneo1”. Se este fenômeno, por si próprio, parece-nos pouco relevante, sua amplitude, para além das fronteiras linguístico-culturais francófonas, é significativa. Um movimento semelhante pode ser observado na produção literária brasileira pós-ditatorial que, face à crise econômica, política e ideológica da década de 1980, passa a interrogar a inscrição do sujeito nacional no conjunto do patrimônio cultural e no devir transcultural da Nação de maneira mais comportada e menos ruidosa. Segundo o crítico brasileiro Silviano Santiago, a perda dos vínculos e da dependência ideológico-partidários nos espaços públicos teria sido determinante na emergência de uma nova postura crítica a partir do final dos anos 1970. Esta nova postura teria obrigado os intelectuais brasileiros a abandonarem seu velho estatuto de salvadores carismáticos da pátria em prol de um trabalho silencioso de mediadores junto a grupos sociais até então silenciados2. Conclusões semelhantes a esta são sublinhadas pela crítica Maria Zilda Cury que, em sua análise sobre o romance brasileiro 1. Demanze, Laurent, Encres Orphelines, Paris, José Corti, 2008, p. 11. 2. Santiago, Silviano, “Democratização no Brasil – 1979/1981 (Cultura versus Arte)”, in Declínio da arte /Ascensão da cultura, Antelo, Raul et al., Florianópolis, ABRALIC/Letras Contemporâneas, 1998, p. 11-23. 87 Iberic@l - Numéro 2 contemporâneo, pós-ditatorial, distingue a presença de dois eixos temático-estilísticos3. Um primeiro eixo tenderia a encenar a violência urbana e os aspectos perversos da globalização mediante cenas rápidas ou sketches capazes de romper com formas enunciativas consagradas, deslocando técnicas e gêneros narrativos. Tais textos instituiriam um novo olhar vertiginoso sobre o espaço urbano que ganham, nas narrativas, uma feição performática. Um segundo eixo compreenderia, segundo a crítica, textos centrados na recuperação da memória coletiva e individual, elaborada, sobretudo, a partir da recusa da mediação de narradores onipotentes e de estratégias discursivas comportadas. Ora, se a discussão em torno do local, do nacional ou da precariedade social e histórica do país aponta para o surgimento, ao longo da década de 1980, de novas formas discursivas, como entender a permanência e o retorno, durante este período, de modalidades narrativas clássicas que, tradicionalmente, continuam a se pronunciar pelo e no lugar do outro? Como compreender o sucesso, na década de 1980, dos chamados romances históricos, dos romances de fundação e dos relatos de ou sobre a imigração? Não estaríamos aqui face a um paradoxo, sobretudo, se levarmos em conta a importância que tais romances conferem às questões dos procedimentos sucessoriais? O presente trabalho busca discutir e questionar a importância da temática da filiação na ficção brasileira pós-ditatorial publicada durante período da redemocratização do país e, em particular, dos chamados relatos de ou sobre a imigração. A partir do estudo dos romances A república dos sonhos, de Nélida Piñon4, Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum5 e As aves de Cassandra, de Per Johns6, tratar-se-á de entender as relações que se operam, nestes textos, entre memória e amnésia histórica, tradição e inovação romanesca, exumação e impossibilidade de reelaboração das origens. Se os três romances aqui selecionados apresentam como eixo temático central a questão da herança e a ruptura dos laços de filiação após o desaparecimento real, simbólico, parcial ou completo de seus elementos transmissores, eles prolongam as formas clássicas do romance familiar, do romance das origens e do romance genealógico. Nesse sentido, eles parecem já carregar consigo as marcas e os vestígios de uma modernidade órfã, parricida e bastarda. Orfandades Relato de um certo oriente evoca o périplo de uma narradora (sem nome) de volta à sua cidade natal após um longo período de ausência. Ao visitar Manaus, a narradora busca rever os parentes e tentar, a partir da história de seus antepassados, recompor suas origens. No decorrer do romance, o leitor descobre que sua mãe a abandonou e que esta foi recolhida, juntamente com seu irmão, por Emilie, matriarca da família de imigrantes libaneses instalados na cidade manauara. No entanto, nenhuma informação é fornecida ao leitor quanto à relação entre as duas famílias e ao grau de parentesco que as une. Em A república dos sonhos, a escritora Nélida Piñon relata a história de quatro gerações de uma família de imigrantes galegos instalados no Brasil desde 1913. Elaborado a partir da multiplicação de pontos de vista, o romance encena, para além das vicissitudes da história do país ao longo do século XX, o processo formador da neta do casal de imigrantes (Breta) em busca de suas origens. Como em Relato de um certo oriente, a descendente (narradora da história familiar) é marcada por um estado de 3. Cury, Maria Zilda, “Novas geografias narrativas”, in Letras de hoje, PUCRS, Porto Alegre, n° 150, Dezembro de 2007, p. 7-17. 4. Piñon, Nélida, A república dos sonhos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984. 5. Hatoum, Milton, Relato de um certo oriente, São Paulo, Companhia das Letras, 1989. 6. Johns, Per, As aves de Cassandra, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1990. 88 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 orfandade, decorrente, em seu caso, do abandono do pai após o seu nascimento e da morte da mãe num desastre de automóvel. Como no texto hatoumiano, a busca das origens e o processo formador manifestam-se aqui pela recuperação de um patrimônio cultural coletivo. A narradora assume, ao longo do romance, o papel de legatária e guardiã universal das memórias dos avós expatriados. Publicado em 1989, o romance Aves de Cassandra, de Per Johns conjuga, à temática da imigração, uma reflexão profunda sobre as consequências da ruptura dos processos de transmissão cultural, mediante, mais uma vez, o motivo da orfandade. Contrariamente aos dois outros romances aqui analisados, o estado de orfandade que vive o narrador-protagonista de Aves de Cassandra não decorre do desaparecimento real dos elementos paterno e/ou materno. Antes, ele é fruto de um relacionamento transgeracional conflituoso, que se intensifica com a crise identitária engendrada pela morte dos pais. A crise identitária que atravessa o narrador posiciona-o numa situação limiar que, no romance, coincide com o início do processo de reconstituição mnemônica e de reelaboração das origens. Este mesmo posicionamento observa-se nos narradores dos romances de Nélida Piñon e de Milton Hatoum, em que a orfandade real define-se de maneira ambivalente. Nestes três romances, ela expressa-se em função tanto do vazio provocado pela ausência e pela perda dos elementos transmissores da herança cultural (os pais), como da dependência obsessiva em relação a esta ausência. Em outras palavras, enquanto capacidade de lembrança e possibilidade de espera, a orfandade exibe, nestes romances, um movimento pendular de repulsa e desejo, de distanciamento e aproximação, que a dinâmica empírica, próxima da investigação policial, e o gesto hermenêutico empreendidos pelos narradores vêm corroborar. Ambos os procedimentos visam tornar inteligível aquilo que já parece desgastado ou degradado pela ação devastadora do tempo. O trabalho empreendido pela narradora de Relato de um certo oriente aponta para essa dupla perspectiva, e os objetos trazidos em seu alforje durante a viagem a Manaus são significativos nesse sentido. O pequeno álbum de fotografias obtidas na casa de Emilie sugere, à maneira dos biografemas barthesianos, fragmentos da história familiar e individual a serem revelados. O gravador, as fitas cassetes e o caderno de anotações que ela carrega consigo, constituem instrumentos destinados à investigação empírica para “dissecar” e revelar um passado nebuloso situado em épocas e lugares distantes7. Após a morte e o enterro da avó adotiva, a narradora coleta dados, anota informações e questiona parentes e amigos próximos. Ela vasculha suas histórias pessoais a fim de penetrar no espaço íntimo de seus arquivos pessoais : as cartas em árabe da irmã Valérie Boulau destinadas a Emilie, descobertas e lidas pelo tio Hakim; as relíquias da avó adotiva conservadas pela amiga Hindié Conceição; a troca epistolarfotográfica entre Hakim e sua mãe; os diários nos quais Dorner, o fotógrafo alemão, conservou o relato da viagem do avô ao Brasil. Do mesmo modo, em A república dos sonhos, Breta investiga a história passada e presente de seus familiares. Ela interroga seus parentes sobre a Espanha e a vinda ao Brasil. Ela os questiona sobre sua atuação na história do país. Finalmente, ela busca reconstituir o destino trágico da mãe falecida e do pai desaparecido. Para obter suas informações, Breta perscruta, à maneira da narradora de Relato de um certo oriente, o conjunto dos arquivos familiares (medalhas, diplomas, comendas, livros, fotografias, diários, cartas) e tenta, assim, em vão, decifrar os enigmas da história familiar passada, presente e futura. Tal procedimento impõe ao romance um movimento pendular cujo vaivém temporal confere ao texto uma dinâmica elíptica e repetitiva, à imagem das retenções e protensões bergsonianas. Mas os indícios de que se compõem os arquivos vasculhados já não lhe permitem estabelecer o vínculo com os objetos identificados. Adulterados pela força do tempo, habitados por hesitações e equívocos ou, 7. Hatoum, Milton, Relato de um certo oriente, op. cit., p. 165-166. 89 Iberic@l - Numéro 2 simplesmente, marcados pelo esquecimento e pela ruptura dos procedimentos de sucessão, os arquivos pessoais calaram-se, silenciando verdades suscetíveis de serem desvendadas, como demonstra a cena da consulta do álbum de família. Breta busca nas imagens observadas indícios que possam revelar a identidade de seus ascendentes. Ela as examina minuciosamente, estuda a composição das cenas, a qualidade do material utilizado, o foco e os modos de exposição das fotografias. Nas imagens, ela procura indícios que lhe parecem, no entanto, cada vez mais enigmáticos. Perante a opacidade e o silêncio dos arquivos familiares, sua investigação (empírica) fracassa. Sem dúvida, a fotografia na parede envelhecera, apesar da moldura dourada. Unicamente os seus figurantes não envelheceram um dia a mais além do instante em que a máquina os captou, com a intenção de fixá-los no tempo. A superfície, de cor ligeiramente sépia, parecia oscilar como se houvesse, atrás de cada personagem, uma realidade contrária àquela visível a todos. Enquanto eu a olhava, também ela ia questionando o meu direito de atribuir-lhe verdades que seus participantes desconheciam8. Esvaziados de sua função de conservação e confrontados ao desaparecimento de seus elementos transmissores e/ou reveladores de seu significado, os arquivos familiares surgem nos romances de Nélida Piñon, Milton Hatoum e Per Johns como espaços mortos repletos de hieróglifos e enigmas nunca elucidados. Ao analisar a presença do regionalismo nos dois primeiros romances de Milton Hatoum, a crítica Tânia Pellegrini observava de que maneira estes textos compartilhavam uma dinâmica narrativa similar. Para a crítica, os dois romances executam “um mergulho vertical nos meandros da memória”, a partir de dois eixos lógicos (o anúncio e o segredo) que, ao longo dos textos, alternam-se e complementam-se sem nunca permitirem o estabelecimento de um “sentido único e definitivo9”. Essa mesma dinâmica narrativa é reconhecível nos romances República dos sonhos e Aves de Cassandra, cujos enigmas derrogam constantemente a ordem lógico-temporal das ações. O mistério que paira sobre o périplo das personagens opera frequentes deslocamentos na macroestrutura dos romances inviabilizando a resolução das tensões acumuladas ao longo das histórias e, até mesmo, o projeto hermenêutico que subjaz às narrativas. As configurações temporais e espaciais, os jogos de focalização, a caracterização das personagens e a própria lógica narrativa confrontam-se aos desvios que se acumulam ao longo dos textos. Tais impasses efetivam o caráter aporético do projeto de reelaboração das origens que nem o apelo às filiações imaginárias é capaz de suprir. Genealogias No intuito de recompor sua história pessoal, o narrador de Aves de Cassandra, recenseia, ao longo de seu périplo formador, o conjunto dos membros de que se compõe sua família. À maneira das grandes linhagens bíblicas do Antigo Testamento ou das dinastias reais, ele contabiliza o número de seus ascendentes e descendentes, fornece informações acerca do estatuto social e profissional de cada um deles, indica nomes, sobrenomes, datas e locais de nascimento e de falecimento. Mas suas histórias permanecem silenciosas e, face à ausência de provas tangíveis que possam assegurar a sua veracidade, ele 8. Piñon, Nélida, A República dos sonhos, op. cit., p. 208. 9. Pellegrini, Tânia, “Milton Hatoum e o regionalismo revisitado”, in Luso-Brazilian Review, Wisconsin, vol.41, n° 1, 2004, p. 123. 90 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 passa a inventá-las : Diante do impassível (ou será esfíngico?) minhas memórias emudecem. E saem à procura do que não há (mas há, num mistério que se adivinha), transitando à revelia dos modelos, das linhas de força, dos rios principais. (...) Atenho, pois, com minhas memórias, à alma ou negativo da história visível, que frequentemente desmente os fatos. O que nunca aconteceu (ou foi inventado, ou sonhado, ou apenas pressentido), às vezes aconteceu mais do que aquilo que aconteceu de verdade10. Para o sujeito narrador, o imaginário não se apresenta como uma simples negação ou compensação do real. Ele o concebe, antes, como um espaço limiar, a partir do qual, ele interroga os agentes determinantes na constituição de sua identidade. A cooptação do imaginário instaura um jogo especular entre realidade e imaginação, que acarreta, por sua vez, a atenuação das fronteiras rígidas que separam os regimes de ficcionalidade e de veracidade das dinâmicas biográfica e autobiográfica, que vêm caracterizar a estrutura genérica do romance. No entanto, a cooptação do imaginário não se limita no texto à simples fabulação de histórias relativas à vida dos antepassados do narrador. Seu projeto inclui também o estabelecimento de filiações imaginárias com personalidades ilustres da história universal, autores de renome ou, ainda, com as personagens provenientes do seu gabinete de leitura. Tudo se passa como se o narrador buscasse, perante o vazio provocado por sua orfandade simbólica, um repertório de modelos e posturas a serem seguidos ou rejeitados. Seu gesto explica a multiplicação, ao longo do romance, de citações, alusões e referências a obras consagradas da literatura ocidental e, em particular, àquelas oriundas do universo infantojuvenil. Um lugar de destaque é conferido ao destino amaldiçoado dos marinheiros do Bounty, que o narrador lê e relê incansavelmente, a ponto de integrá-lo em seu relato autobiográfico. Aos infortúnios de William Bligh e de Fletcher Chirstian correspondem, em Aves de Cassandra, o percurso malfadado da voz autoral e o do seu pai, criando, assim, um efeito de sobreimpressão entre experiência pessoal, história familiar e memória intertextual. Que ecos ficaram desses livros ou pedaços de livros, these fragments i have shored against my ruins, na construção da personalidade? E que personalidade se construiu a partir deles, se é que se pode falar em personalidade a partir de livros ou imaginações; mais certo será dizer que Pê Jota procurou suprir-se nos livros do que lhe faltava na vida; mas talvez não lhe faltasse nada. Ao contrário, com o que lia ou inventava, viveu. E pode-se dizer que viveu intensamente, a ponto de nem reconhecer direito em sua vivência o que era real e o que era meramente livresco ou sonhado11. Se, como afirma o crítico Moholy-Nagy, a técnica de sobreimpressão pode transfigurar as banalidades em brilhantes iluminações e as singularidades em complexidades significantes12, em Aves de Cassandra, ela é reveladora da frágil identidade do sujeito enunciador. A técnica de sobreimpressão acentua as associações e analogias entre texto e contexto, entre périplo pessoal e memória intertextual. O efeito de superposição instaura relações de contiguidade entre o percurso do narrador-personagem e a trajetória de Robinson Crusoé, nomeadamente no que diz respeito à sua capacidade de transgressão face à autoridade parental. Como Robinson, PJ, alter ego do narrador, busca romper os laços com sua orfandade para instalar-se, finalmente, na situação de bastardo13. 10. Johns, Per, As Aves de Cassandra, op. cit., p. 4 -5. 11. Ibid., p. 122. 12. Moholy-Nagy, László, Peinture, photographie, film et autres écrits sur la photographie, Paris, Jacqueline Chambon, 1993. 13. Sobre esta questão, ver o estudo de Marthe Robert sobre os romances de Defoe e de Cervantes. Robert, Marthe, Roman des origines et origines du roman, Paris, Grasset, 1972. 91 Iberic@l - Numéro 2 Heranças ilegítimas As questões relativas à transmissão, à conservação e, sobretudo, à degradação do patrimônio cultural coletivo ocupam em A república dos sonhos um papel fulcral. No romance, o tema degradação do legado cultural coincide com a imigração do protagonista para a América, uma vez que, ao chegar ao Brasil, Madruga, esquece-se da promessa feita a sua avó, de preservar a qualquer custo o legado cultural que lhe fora transmitido. Levado pelo desejo de enriquecimento pessoal, devorado pela culpabilidade e dividido entre tradição e modernidade, ele, encarna desde o início de sua trajetória, o imigrante traidor, ao qual Nélida Piñon confere uma dimensão faustiana. Diversos segmentos textuais do romance sugerem uma analogia com a série hipertextual da temática faustiana : a inadequação de Madruga ao universo tradicional galego – do qual ele acaba se afastando sem conseguir desligar-se completamente; o recurso aos poderes encantatórios da feiticeira Aquilina, que desvenda a Madruga os mistérios da América e, pela magia, assinala o estabelecimento do pacto demoníaco; a consecução do pacto sob a forma de compromissos entre Madruga e os agentes do poder local político e econômico; o amor de Madruga por Eulália, que o salva da danação eterna; seu apetite sexual excessivo e a negação do objeto feminino; o impulso destruidor e renovador da personagem, que a aproxima das figuras de Ulisses, Cain e Prometeu. Em A república dos sonhos, Nélida Piñon propõe-nos uma transposição narrativa da temática faustiana através da redução e da transformação genérica de alguns de seus elementos constitutivos. O romance mantém a substância narrativa da temática faustiana sem, no entanto, inscrever-se de maneira restrita na tradição do mito literário. Em outros termos, sem ser necessariamente um sujeito faustiano, Madruga apresenta uma alma faustiana que o confronta ao fracasso da transmissão de um legado cultural, recusado ou adulterado por seus herdeiros naturais. Antonia perpetua, assim, o desejo de enriquecimento incontrolável do pai. Ela utiliza todos os subterfúgios para assegurar seu direito sobre a sucessão patrimonial, excluindo até a sua própria sobrinha (Breta) do inventário e da partilha testamental. Do mesmo modo, Miguel, o primogênito, reproduz o donjuanismo paterno, que, adulterado, manifesta-se no filho sob a forma de uma compulsiva necessidade de sedução e um constante fracasso nos envolvimentos emocionais. Bento, quanto a ele, encarna o “defensor do progresso da Nação” e segue à risca os preceitos dos seus ancestrais goetheano e splengeriano. Homem voltado para o futuro, Bento, perpetua o pragmatismo imigrante, herdado de Madruga, mas agora no seu aspecto mais excessivo. Para Bento, o bem-estar da estrutura estatal e o progresso do país justificam a manutenção regime militar no Brasil, inclusive a supressão dos direitos dos cidadãos. – O Brasil precisa é de Itaipu, das usinas nucleares, Carajás, Jari. Para isto, dispensamos tantas idas e vindas ao passado, que nunca foi uma lição de aplicação certeira. Quem é que consulta o passado quando decide o futuro? (...) A história fica bem nos livros, na prateleira. É uma coisa de especialista. Serve para entreter a sanha intepretativa das correntes marxistas. Para efeito de um grande projeto nacional, dispensamos sortilégios verbais dos políticos e dos artistas, que se excusam de enfrentar a realidade dos débitos. Fomos nós, empresários, que contribuímos para que o Brasil se tornasse a oitava potência econômica do mundo. E isto apesar da dívida externa e dos custos sociais. Acaso se constrói uma? Querem saber de uma coisa, fomos nós que planejamos este último advento econômico do país. O que era o Brasil antes da Revolução de 64?14. Ora, a recusa do legado cultural não se limita, em A república dos sonhos, ao relacionamento 14. Piñon, Nélida, A república dos sonhos, op. cit., p. 639. 92 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 conflituoso com o pai. Ela manifesta-se, igualmente, em relação à figura materna, que, no texto, desempenha o papel de guardiã da memória familiar, como demonstra o motivo das “caixas de memória” confeccionadas por Eulália e oferecidas a seus filhos. Aliás, Eulália dispunha de cinco dessas caixas, todas distintas entre si. Cada qual correspondendo a um filho, e a que só ele tinha acesso. Sem que Madruga jamais a questionasse sobre o que havia dentro. Um material que no futuro permitiria aos filhos contarem suas histórias por meio de fatos ali armazenados15. Nélida Piñon multiplica, em seu texto, os objetos de memória (relíquias, testamentos, fotografias etc.) mas desprovidos, como nos romances de Hatoum e de Per Johns, de sua capacidade e função testamentárias. Minutos antes de morrer, Eulália entrega as caixas aos seus herdeiros, que, com exceção da Breta, desfazem-se delas ou negam-se a abri-las. A recusa por parte dos filhos e a aceitação pela neta sugerem a ruptura nos processos sucessoriais diretos. Ela implica também a emergência de uma nova lógica transmissora, centrada agora na figura do herdeiro indireto e ilegítimo (órfão ou bastardo) que nega as heranças por simples inércia. Sse, nos três romances analisados, há “passações” de um patrimônio cultural, estas intervêm somente após um longo périplo formador, que culmina na conversão do sujeito-narrador pela e à escrita16. Através da escrita e da reescrita da história individual e coletiva dos antepassados, os herdeiros ilegítimos reservam-se, aqui, o direito de abolir, de substituir e, sobretudo, de reinventar novas alianças, novos laços e novos modelos sucessorias. Nos relatos de filiação publicados na França e no Brasil, durante os anos 1980, a memória e seus elementos correlatos deixam de ter um aspecto linear e passam a ser analisados em função de sua deterioração, de sua fragmentação e de seu esquecimento. Tais textos expõem, quer seja pela negatividade das heranças ou pelas heranças negativas, a impossibilidade de exumação e de conservação de uma memória individual e coletiva em ruínas. Mais do que o desejo de construção, o que está em jogo nesses romances é o constato de uma fratura corroborada pelos desvios geográficos, temporais e identitários que os próprios textos ficcionalizam. A identidade incerta e frágil do sujeito contemporâneo se erige aqui por um jogo especular compensatório e um movimento hermenêutico incompletos, através do quais ele tenta cavar o seu rastro identitário. Estas questões ganham destaque particular no contexto literário brasileiro do período da redemocratização. Os chamados romances de ou sobre a imigração elegem a figura do bastardo como chave interpretativa dos procedimentos sucessoriais de conservação, transmissão e reavaliação do patrimônio cultural coletivo. Ora, se a condição da bastardia pode ser definida como um impulso libertário e insolente em relação às redes de transmissão, como explicar, nesses romances, a neutralização de sua dinâmica transgressiva? Como entender o silenciamento dessas figuras literárias perante a perpetuação dos dispositivos excludentes determinantes das relações da alteridade no país? Como esclarecer sua cegueira em relação às transformações socioeconômicas decorrentes da redemocratização do país? Se, como sugere Laurent Demanze, uma parte da produção romanesca francesa pós-1980 aponta para certo “refluxo da modernidade”, no contexto brasileiro, ela se traduz por um discurso conciliador, que, 15. Ibid., p. 183. 16. Segundo o filósofo Pierre Hadot : « Sous toutes ses formes, la conversion philosophique est arrachement et rupture par rapport au quotidien, au familier, à l’attitude faussement naturelle du sens commun ; elle est retour à l’originel et à l’originaire, à l’authentique, à l’intériorité, à l’essentiel ; elle est recommencement absolu, nouveau point de départ qui transmue le passé et l’avenir… (…) Sous quelque aspect qu’elle se présente, la conversion philosophique est accès à la liberté intérieure, à une nouvelle perception du monde, à l’existence authentique ». Hadot, Pierre, Exercices spirituels et philosophie antique, Paris, Albin Michel, 2002, p. 233-234. 93 Iberic@l - Numéro 2 à maneira do processo de anistia, implantado durante o período da redemocratização, tende a anular os contrapontos diferenciadores e a privar o sujeito social de uma crise salutar na investigação e na reapropriação lúcida de seu passado individual e coletivo17. 17. Ricoeur, Paul, La mémoire, l’ histoire, l’oubli, Paris, Le Seuil, 2000, p. 589. 94 O relato da [des]afiliação e o romance brasileiro da década de 1980 Referências bibliográficas Bergson, Henri, L’ évolution créatrice, Paris, PUF, 1969. Demanze, Laurent, Encres Orphelines, Paris, José Corti, 2008. Cury, Maria Zilda, “Novas geografias narrativas”, in Letras de hoje, PUCRS, Porto Alegre, n° 150, Dezembro de 2007, p. 7-17. Hadot, Pierre, Exercices spirituels et philosophie antique, Paris, Albin Michel, 2002. Hatoum, Milton. Relato de um certo oriente, São Paulo, Companhia das Letras, 1989. Johns, Per, As aves de Cassandra, Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1990. Masson, Jean-Yves (dir.), Faust ou la mélancolie su savoir, Paris, Editions Desjonquères, 2003. Moholy-Nagy, László, Peinture, photographie, film et autres écrits sur la photographie, Paris, Jacqueline Chambon, 1993. Pellegrini, Tânia, “Milton Hatoum e o regionalismo revisitado”, in Luso-Brazilian Review, Wisconsin, vol.41, n° 1, 2004, p. 121-138. Piñon, Nélida, A república dos sonhos, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1984. Ricoeur, Paul, La mémoire, l’ histoire, l’oubli, Paris, Le Seuil, 2000. Ribeaupierre, Claire de, Le roman généalogique – Claude Simon et Georges Perec, Bruxelles, Editions La part de l’œil, 2002. Robert, Marthe, Roman des origines et origines du roman, Paris, Grasset, 1972. Santiago, Silviano, “Democratização no Brasil – 1979/1981 (Cultura versus Arte)”, in Declínio da arte/ Ascensão da cultura. ANTELO, Raul et al., Florianópolis, ABRALIC/Letras Contemporâneas, 1998. p. 11-23. 95 Iberic@l - Numéro 2 96 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX Maria Isabel Edom Pire Resumo: A partir da noção de acervo com a qual nomeio os romances brasileiros que contam com a imigração como topos - quer de forma central quer de forma lateral -, investigo comparativamente os recursos empregados pelos escritores Charles Kiefer, Salim Miguel e Lya Luft na representação dos embates identitários característicos da relação com o outro. Sobre o imigrante alemão cuja associação mais imediata entre o senso comum e a literatura é aquela relacionada ao trabalho e ao progresso, tratarse-á de investigar nos romances Valsa para Bruno Stein, Jornada com Rupert e A asa esquerda do anjo a permanência desses paradigmas e a relação com outros discursos que constituem a massa discursiva sobre a imigração. Palavras-chave: imigração, acervo, choques identitários. Résumé : C’est à partir de la notion de répertoire, dont nous nous me servons pour qualifier les romans qui ont pour thème principal (ou secondaire) l’immigration, que nous proposons d’analyser, comparativement, la manière dont les écrivains Charles Kiefer, Salim Miguel et Lya Luft mettent en scène les chocs identitaires caractéristiques du rapport à l’autre. L’étude des romans Valsa para Bruno Stein, Jornada com Rupert et A asa esquerda do anjo nous conduira à nous interroger sur le maintien de certains paradigmes représentationnels concernant l’immigrant allemand (travail, progrès etc), ainsi que sur les rapports avec l’ensemble des discours consacrés à ce sujet. Mots-clefs : Immigration, répertoire, chocs identitaires. Os romances brasileiros da segunda metade do século XX que tratam mais especificamente da imigração ou que destacam de alguma forma a figura do imigrante constituem hoje um “acervo” cuja leitura amplia a reflexão sobre o deslocamento de um contingente de pessoas que, premidas por circunstâncias econômicas desfavoráveis na Europa, viaja para o continente americano em busca de novas oportunidades. A imigração de se ocupam esses romances tem marcos temporais determinados; motivos centralizadores (expulsores, receptores); e legislação que assegura, reduz ou coíbe os direitos das pessoas que viajam; mas, como todo movimento social, transborda suas circunscrições, fazendo escapar seu objeto, tornando imprecisa a sua apreensão1. Na literatura brasileira, a partir das décadas de 1970 e 1980, personagens imigrantes figuram com maior densidade psicológica, recebem maior espaço nas narrativas, exercem o protagonismo, no momento em que a segunda e a terceira geração de filhos desses imigrantes relata, em língua portuguesa, 1. Menciona-se aqui o período entre os anos de 1870 e 1930, embora se reconheça um movimento migratório desde o início do século XIX, amparado inclusive por leis de controle imigratório. À imigração em massa a partir dos anos 70 do século XIX corresponde um fluxo de mais de 30 milhões de pessoas. Sobre o assunto: Oliveira, Lucia Lippi, O Brasil dos imigrantes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 2002, p. 11; Fausto, Boris, “Imigração: cortes e continuidades”, in História da vida privada no Brasil , Schwarcz, Lília (org.), São Paulo, Companhia das Letras, 1998, vol. 4, p. 16-61. 97 Iberic@l - Numéro 2 sua história e de seus ascendentes. São autores que falam de uma perspectiva, no mínimo dupla, em função da língua materna e da língua por meio da qual se expressam. Cabe a pergunta sobre como esses romances abordam esse movimento, como relacionam seus enredos com tantos outros textos que constituem a massa discursiva sobre a imigração (o normativo, o histórico, o político). Romances como A república dos sonhos (1984) de Nélida Piñon; O quatrilho (1985), de José Clemente Pozenato; Relato de um certo Oriente (1989) de Milton Hatoum e Nur na escuridão (1999) de Salim Miguel, tomados aqui como exemplos, mostram histórias de famílias espanholas, italianas e libanesas respectivamente que se transladaram para o Brasil entre o final do século XIX e o início do século XX. No caso do romance que aborda o imigrante alemão, podemos incluir as obras O guarda-roupa alemão (1970) de Lausimar Laus; A Ferro e fogo: Tempo de solidão (1973) e Tempo de guerra (1975) de Josué Guimarães; A asa esquerda do anjo (1981) de Lya Luft; Valsa para Bruno Stein (1986) e A face do abismo (1988) de Charles Kiefer; A valsa da Medusa (1989) de Valesca de Assis; Videiras de cristal (1990) de Luiz Antônio de Assis Brasil e Jornada com Rupert (2008) de Salim Miguel2. Com foco em histórias familiares, a produção romanesca de escritores descendentes de alemães ou dos que se propõem a narrar essas pequenas sagas tende a uma uniformização da imagem da Alemanha. Aquilo que seria diverso pela variada origem das famílias dos escritores e dos personagens acaba por ser unificado em referências comuns, como a presença da música erudita, da obra de Goethe, das velhas canções populares. Fala-se de Alemanha como se não houvesse diferenças lingüísticas e fronteiras regionais. As obras, entretanto, resguardam a temática imigratória por meio de um diálogo constantemente estabelecido com o texto histórico. Assim, aparecem inicialmente temas importantes sobre o imigrante alemão, tais como o desalento dos colonos no Brasil Imperial, conforme problematiza a obra de Josué Guimarães, ou o episódio dos “muckers”, revolta religiosa que contou com a participação dessas pessoas, insatisfeitos com sua situação penosa no sul do país, tema da obra de Luiz Antônio Assis Brasil, ambas citadas acima. São textos paradigmáticos que lidam com os tropeços dos tempos da colonização do sul do país. Cabe lembrar que desde o Império as leis de imigração variam, conforme os interesses políticos, econômicos e também estratégico-militares. No início do século XIX, a legislação previa o povoamento e a colonização da região, dos lugares de fronteira, dos vazios que precisavam de proteção contra as constantes ameaças dos vizinhos do rio do Prata. Esse conjunto de leis incentiva a imigração e permite aos estrangeiros, por exemplo, a propriedade de terras no Brasil, o que mais tarde seria muito criticado por intelectuais brasileiros de exacerbado espírito nacionalista. O que esses dois romances põem à mostra é à custa de quanta frustração essas famílias tiveram de lutar – a ferro e fogo, como expressa Josué Guimarães – para sobreviverem em terra estrangeira. São narrativas também que procuram cobrir longo período, ainda imbuídas de um senso totalizador. Contar aqui significa buscar as origens mais remotas dessa população, apreender os sons de seus dialetos e de seus instrumentos de trabalho e luta. Estas são duas questões que dizem respeito à colonização. Outros temas decorrentes da imigração alemã, em especial para a região sul do país, são abordados nas obras Valsa para Bruno Stein (1975), de Charles Kiefer; A asa esquerda do anjo (1985), de Lya Luft; e Jornada com Rupert (2008), de Salim 2. Assis, Valesca de, A valsa da Medusa, São Cruz do Sul, Movimento/EDUNISC, 2002; Brasil, Luiz Antônio de Assis, Videiras de cristal, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1997; Guimarães, Josué. A ferro e fogo I: Tempo de Solidão, Porto Alegre, L&PM, 2006 e A ferro e fogo I: Tempo de Guerra, Porto Alegre, L&PM, 2008; Hatoum, Milton, Relato de um certo Oriente, São Paulo, Companhia das Letras, 1989; Kiefer, Charles, A face do abismo, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1994; Laus, Lausimar, O guarda-roupa alemão, Florianópolis, Ed. da UFSC, 2007; Piñon, Nélida. Vozes do deserto, Rio de Janeiro, Record, 2005; Pozenato, José Clemente, O quatrilho, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1985. 98 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX Miguel; aqui lidos em comparação3. Isolamento familiar Valsa para Bruno Stein é obra que trata lateralmente da questão da imigração, centrada que está no idílio entre um sogro e uma nora. Ocorre que a história se passa no sul do país em um ambiente rural habitado predominantemente por famílias alemãs, resultado da imigração. O oleiro Bruno Stein reúne em torno de si o comando da família e da composição laboral a quem dirige sob a inspiração dos preceitos bíblicos de um lado e sob a mira de Fausto (livro que herdou do pai, escrito em alemão gótico) do outro. O fluxo de recordações da infância do Stein, destacado na obra, aumenta à medida que ele envelhece. Em sua memória reaparecem a casa “de enxaimel e pedra de granito”, a figura magra da mãe e os sons do violino do pai, músico frustrado e humilde professor primário. A essas recordações, contrapõe-se o presente sensual que vive com a nora, e modernizador, que vislumbra com as esperanças da neta, personagem que projeta uma vida nova na cidade onde pretende cortar o círculo do regime da casa, da religião do avô (calvinista) e da pequena cidade. As marcas identitárias e as afirmações das diferenças do imigrante alemão e em relação a ele, aparecem acirradas em diálogos dos personagens nos quais são empregadas expressões pejorativas, marcando um choque em que as etnias recebem valorações negativas. “Alemão de bosta! – Negro sujo!”, xingam-se duas personagens em uma mesa de bar. Há um reforço nessa cadeia linguística que sobrevive pela sua repetição. Excesso e a repetição são a regra producente da estereotipia, ensina Homi Bhabha4. O enfrentamento em que se situam os personagens é, pois, citacional e se realiza no discurso. Outro questão importante para a qual o romance aponta é a da perseguição polílica durante a II Grande Guerra. Bruno foi preso na ocasião. A questão do fechamento da família em relação à língua ensejou a restrição ao livre emprego da língua alemã, resultando em um ato violento e arbitrário. Os anos da Segunda Grande Guerra tinham sido os mais difíceis, não só pela crise econômica, o racionamento e a expectativa, mas, sobretudo, pela perseguição política. Recordava-se com rancor um episódio daquela época. Um desafeto, que sabia que falavam alemão na intimidade, aproximou-se da residência acompanhado de um sargento getulista, e puseramse ambos a ouvir a conversação noturna da família. Precavido, Bruno abstinha-se de falar na língua de seus ancestrais mas Olga, porque tinha pouco contato com a língua portuguesa, e porque se recusava a crer que a lei estúpida pudesse vir a ser cumprida, incorria no erro de falá-la. No mesmo instante a casa foi invadida, o sargento de arma em punho gritando que estavam todos presos. Bruno, estarrecido ante o arbítrio, não teve alternativa a não ser convencê-los de que bastava que ele, o chefe da casa, os acompanhasse à delegacia de Paud`Arco. Pernoitou numa cela imunda, um cubículo transformado em prisão. O caso valeulhe meses de desgostos e entraves na indústria. Dias de agonia, em que remoeu a cólera e chegou ao cúmulo de pensar em adquirir uma arma para proteger a família. Optou, enfim, e com maior acerto, por cães amestrados, para impedir que covardes se aproximasse da casa. A turbulência da guerra amainou, veio o desenvolvimento e o desafogo financeiro, a produção cresceu vertiginosamente, a raiva sumiu sob a euforia do progresso, a lei foi revogada, mas o hábito de ter animais ferozes ficou. Agora eles rondavam a casa, farejando estranhos e 3. Kiefer, Charles, Valsa para Bruno Stein, Rio de Janeiro, Record, 2006; Luft, Lya, A asa esquerda do anjo, Rio de Janeiro, Record, 2010; Miguel, Salim, Jornada com Rupert, Rio de Janeiro, Record, 2008. 4. Bhabha, Homi, O local da cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001, p. 106. 99 Iberic@l - Numéro 2 espantavam frequentes ladrões de galinha5. A perseguição alcança o núcleo rural. O romance toca, assim, em um tema caro ao problema dos imigrantes. A questão do “perigo alemão6” retorna com o governo Vargas. Este tema foi debatido entre os intelectuais em função da não-assimilação de núcleos de colonos no início do século. Silvio Romero, por exemplo, crítico exacerbado da colonização alemã, requeria a distribuição dos imigrantes por todo o país, para evitar que o grupo propusesse sua própria independência e para que, afinal, a tese do embranquecimento se efetivasse. As leis, desde o Império, moldam a recepção aos imigrantes. Primeiro, uma política incentivadora promove a vinda dos colonos, anunciando, inclusive, o oferecimento de terras. Mais tarde essa legislação de cessão de terras é modificada em função da abolição da escravatura, momento em que ingressa no país um número muito grande de imigrantes e as colônias passam a não ser bem vistas, justamente pelo isolamento e pelo perigo “político” que representam. Com as campanhas nacionalistas e a presença de adeptos do regime implantado por Adolf Hitler, a perseguição ao grupo se intensificou, com medidas como a proibição da formação de núcleos, do ensino da língua a menores e da circulação de jornais e revistas em língua estrangeira. É sob a perspectiva do insulamento que o romancista gaúcho enfoca esta família de descendência alemã. Permanecendo na pequena cidade, vivendo de seu próprio sustento, em comunicação com seus compatriotas, anuncia-se o fechamento à integração. A situação oscila também no período da II Grande Guerra, em função da rejeição à figura do imigrante, momento em que a família foi obrigada a silenciar a própria língua. Dessa forma, o livro também mostra essa figura moldada pelo regime exterior, ou seja, pela legislação, pelas formas de exceção, pela recepção e pela rejeição7. Quebrar o isolamento coube à geração mais nova, à personagem neta do oleiro, a qual rejeita a ideia de permanecer no interior e se muda para a capital do estado, rompendo, afinal, com uma linhagem estabelecida a partir dos contornos da insulação. Exílio particular No romance A asa esquerda do anjo, de Lya Luft, as referências à cultura alemã fazem parte do universo fechado e rígido com o qual a avó da narradora governa a casa e a família. O fechamento do grupo, manifesto também pela tentativa de manter a língua alemã viva entre eles, leva à inadaptação na personagem Gisela que expressa o sentimento de estar no lugar errado, de ser alguém deslocado, de não pertencer nem a uma pátria nem a outra. Na citação que segue, aparecem a vinda da família, o enraizamento, o isolamento e os conflitos, sobretudo na relação da criança com os colegas de escola. Como pano de fundo aparecem os efeitos da legislação brasileira no período da II Grande Guerra. - Alemão batata come queijo com barata! – de repente cinco, sete meninos e meninas berravam a mesma coisa no pátio da escola. Entre mim e seus rostos retorcidos de raiva erguia-se o muro do exílio. Que mal lhes fizera, eu que vivia desejando – Me amem, me aceitem? 5. Kiefer, Charles, Valsa para Bruno Stein, op. cit., p. 16-18. 6. Ver sobre o tema Vogt, Olgario Paulo, “O alemanismo e o perigo alemão na literatura brasileira da primeira metade do século XX”, in Signo, Santa Cruz do Sul, vol. 32 n° 53, dezembro, 2007, p. 225-258. 7. No cinema, o documentário Sem palavras, de Kátia Klock, de 2009, aborda o a situação dos imigrantes alemães durante a II Guerra no Brasil, frente às campanhas nacionalistas do Governo de Getúlio Vargas. A cineasta entrevistou muitos descendentes de alemães, a maioria crianças á época da guerra, revelando as situações de medo, rejeição, entre outros sentimentos experimentados então. 100 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX Numa cidade cujos habitantes eram na maioria descendentes de alemães, o grupo dos “brasileiros”, como os chamávamos, era pequeno entre as louras e rechonchudas crianças de pinturas flamengas. Nossa família era muito conhecida; minha avó, famosa e antipatizada por causa dos ares de grande dama. Os brasileiros não a suportavam. Ninguém convenceria Frau Wolf de que não fazia sentido exigir que se falasse unicamente alemão com ela, que viera menina para o Brasil e aqui tivera filhos e netos. Esses detalhes não lhe pareciam importantes. Nas lojas só consentia em ser atendida por balconistas que falassem o seu idioma. Talvez por isso eu era objeto especial das implicâncias de outras meninas que, à semelhança de minha mãe, se chamavam Maria da Glória, Maria de Lourdes. “Nomes para criadas”, dizia minha avó.(...) - Mas eu nem conheço a Alemanha – respondi, já em prantos. – Tenho nojo de lá, não quero ir para a Alemanha, nunca! Confusa por sentir que nem renegando coisas sagradas para Frau Wolf eu conquistaria o afeto das outras crianças, procurei ferir também: - E vocês, que têm sangue de negro? E saí correndo, cega de lágrimas e roída de pena de mim e das outras, pois nos magoávamos e não sabíamos por quê. Nesse dia chegando em casa peguei no quarto alguns dos meus livros de história em alemão, com suas princesas louras, fadas boas, a Rainha da Neve. Num acesso de fúria rasguei as páginas, sapateei sobre elas, chorei e gritei até que minha mãe veio correndo me acalmar.(...) Estávamos em guerra naquele tempo: não eram histórias de livros, mas assunto das conversas dos adultos, das brigas das crianças na escola. Rumores na cidade, notícias em primeira página de jornal. Meu pai ouvia rádio na sala: uma voz frenética berrava em alemão. Ele sacudia a cabeça preocupado. Ando assustada nesses meses: sei que há guerra, sei que na terra da minha avó há gente morrendo, parentes nossos também, dizem que o Brasil vai entrar em guerra. Sinto o mal-estar na família: Por que Otto Wolf se casara com uma brasileira? Não pronunciam a acusação pois todos o respeitam, mas está no ar, na maneira como meu pai segura a mão da mulher enquanto ouvem rádio e aquela sinistra voz discursa. Não devemos mais falar alemão, alguém ameaça, uma das empregadas diz que vão nos pôr na prisão. Minha avó afirma que é tudo bobagem e continua usando o seu idioma. Meu pai me tranquiliza: “Somos bons brasileiros”, diz. Também acho que somos, meu verdadeiro nome é Gisela. Gisela Moreira Wolf, no seu exílio particular e na sua guerra secreta8. Quem narra agora é uma personagem feminina que avalia seu passado e todas as limitações e imposições do ambiente familiar. É desse impasse que nasce a revolta. É esse olhar que mira a matriarca alemã com ódio e admiração. É a partir da casa dessa avó que ela percebe as contingências resultantes do processo imigratório e as peculiaridades do mundo feminino. De um lado, o romance revolve questões íntimas da vida da menina; de outro, toca em temas caros aos imigrantes, e, em particular, aos imigrantes alemães. A menina desajeitada, sempre se sentindo comparada e, por conseguinte, inferiorizada em relação à prima mais bonita e elegante, experimentará fora de casa outros embates identitários. No território de disputas que é a escola, ela viverá a cisão entre os grupos de alemães e brasileiros, tal como a vê disseminada pela cidade, tal como as pessoas fazem aumentá-la na rua, marcando as diferenças entre sua avó e as outras mulheres. Mas o mal-estar começa em casa, com a mãe. Ela se pergunta por que o pai se casara com uma 8. Luft, Lya, A asa esquerda do anjo, op. cit., p. 19-22 101 Iberic@l - Numéro 2 brasileira. É uma pergunta que ronda a casa. A família vela à rejeição à nacionalidade de sua mãe. A brasileira Maria da Graça Moreira, mãe de Gisela, não ocupa um lugar definido na casa. Ninguém da família, aliás, possui um lugar previsivelmente seguro na ordem espacial – da casa à cidade; e na ordem social – na família, na escola, na rua. Aparentemente a personagem da avó centraliza o poder, encarnando a nacionalidade alemã e tentando preservá-la, fato que vai se mostrando aos poucos impossível, não sem a dor, sobretudo a dor do exílio de Gisela. Diante da ameaça da proibição de falar alemão e dos constantes chamamentos identitários a que precisa responder, a narradora opta por um exílio particular e por uma guerra secreta: “meu nome é Gisela Moreira Wolf”, sentencia, aparentemente conciliando os dois mundos. Jornada solitária Em Jornada com Rupert, a família de Von Hartroieg, chegada por volta de 1870, em Santa Catarina, enfrentou os ataques indígenas, construiu um casarão de pedras e tijolos, começando a trabalhar inicialmente como agricultores e mais tarde em uma fábrica de tecidos. A construção da obra apoia-se em elementos históricos da cidade de Blumenau – a chegada dos 17 pioneiros, a luta para trazer novos imigrantes, as reuniões nas quais evocavam a velha Alemanha das lendas, das Walquírias e chamavam por histórias que talvez estivessem sendo reinventadas aqui e que fossem diversas da Alemanha de onde eles saíram. Os Buddenbrooks, de Thomas Mann, comparece na epígrafe e como intertexto valioso para o argumento central. A Lübeck do autor também é a cidade natal da personagem Günther. Vale destacar a outra epígrafe do escritor húngaro e também imigrante que se estabeleceu no Vale do Itajaí, Alexander Lenard. Elas se completam e ampliam os sentidos do livro no que se refere ao tema da imigração e da família, considerando a obra e a vida dos autores. Rupert é o que contraria aquela ordem imposta em função do trabalho, negando-se a seguir os passos do pai. A personagem retruca a história contada por ele acerca do progresso da cidade, quer falar, por exemplo, do massacre dos índios quando da chegada dos colonizadores. Sua voz, entretanto, fica aplacada pela força das palavras parentais, sempre reafirmando uma identidade alemã: “Achas que as histórias estão todas erradas? Meus avós vieram primeiro para São Pedro de Alcântara, a fim de colonizar, povoar este país de índios e negros, trazendo a nossa civilização, a maior da Europa9”, reafirma a mãe. Rupert será o contraponto para um dos discursos que esteve presente no projeto da elite nacional eurocêntrica e que ecoa ainda pelas palavras familiares. Há uma referência literária importante ao romance Canaã (1902) de Graça Aranha. E por intermédio dessa referência novamente retorna-se ao debate da imigração e da adesão ao nazismo. Retoma o romance Canaã e se interessa pelo debate travado naquele rincão do Espírito Santo entre dois imigrantes alemães que lhe parecem tão distantes e tão próximos, pois bem poderiam ser as acaloradas discussões entre Günther e Herr Hans, Herr Hans mantendo-se fiel ao que chama de “raça pura”, tendo apoiado a escalada de Hitler, esperando encontrá-lo um dia em Blumenau; e Günther retrucando numa voz firme ser aquilo uma sandice10. Estão postos no trecho, por intermédio da lembrança de Rupert, dois membros da mesma comunidade atualizando a discussão do livro de Graça Aranha datado do início do século, cujo conteúdo polarizava as opiniões entre eles. O trecho sintetiza o que virá explicitado algumas páginas 9. Miguel, Salim, Jornada com Rupert, op. cit., p. 96. 10. Ibid.., p. 90 102 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX adiante sobre a chegada desses personagens ao Brasil, suas vinculações com o integralismo e a adesão ou não ao nazismo. Na sequência da citação acima, Rupert segue a leitura, procurando vivê-lo como um imigrante alemão, enfatiza o narrador que declara que os dois personagens lhe parecem tão distantes e tão próximos. As discussões entre Günther e Herr Hans atualizam as conversas de Milkau e de Lentz. Herr Hans fiel à “raça pura”, tal como o personagem Lentz. Esse mesmo processo a personagem empregará no último capítulo quando na viagem de trem que o levará para o Rio de Janeiro imagina-se como o seu tio-avô num navio aproximando-se do porto. Se o movimento da personagem é de ruptura com a tradição familiar, são visíveis também esses momentos de oscilação em que se identifica com a figura do imigrante. Na obra, “o que é ser alemão ou brasileiro” é um ponto sempre em pauta, como se lê a seguir: O que eu quis dizer é que muitos de vocês continuam se considerando “alemães” até a última das últimas gerações. Se a gente diz brasileiro, se zangam, e se dizem filhos de alemães. Se a gente diz alemães vocês gritam minha mães nasceu aqui e meu pai também. Não é preciso nascer num país para ser filho dele. Eu acho que poderia nascer em qualquer canto do globo, mas desde que ouvisse falar no Brasil e para aqui aportasse, me sentiria brasileira, logo, bem logo11. Aqui a discussão gira em torno de nacionalismos exacerbados, próprios do momento político em que se passa a ação do romance. No capítulo “Bar”, Rupert lembra: Como não brigar? Era de sangue quente, nervos à flor da pele, e os outros vinham provocá-lo. Também porque o tratavam de ‘galego’. Por que galego? Se tudo fazia para ser tão brasileiro ou mais que os outros, pois contrariando o pai havia ingressado, quase às escondidas, numa escola que ensinava português, enquanto os irmãos frequentavam a alemão12. Novamente o olhar incisivo do outro marca aquilo que ele é – galego – em contraposição à identidade supostamente homogênea daquele que acusa. Na restrição definidora do que o outro é a própria definição identitária se apresenta: “somos brasileiros”, logo “não somos alemães”, “não somos estrangeiros”13. As personagens movem-se entre identidades baseadas numa concepção de herança14, o que determina a força dos conflitos. Para Rupert, o afastamento permite a solução para o conflito. A viagem para o Rio de Janeiro marcará a ruptura com o interior, com as tradições familiares, com os embates que não consegue resolver naquele lugar. Para finalizar Na leitura realizada até aqui, os romances não destoam do acervo com o qual se perfilham. A imagem associada ao trabalho pertence também às outras etnias. Ressoam nesses romances a ideia 11. Ibid., p. 110-111. 12. Ibid., p. 37-38. 13. Silva, Tomaz Tadeu da (dir.), Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos culturais. Tradução do organizador, Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 2008. 14. José Luís Jobim destaca que as exclusões e inclusões “feitas em nome da identidade nacional” são embasadas em questões importantes como as concepções de nacionalismo como pertença e como herança. Na última delas, entende-se que já ao nascer em determinado território, pertencer à determinada raça e falar determinada língua, o indivíduo “adquire o espírito ou a alma do povo a que pertence”. Jobim, José Luís, “Representações da identidade nacional e outras identidades”, in Gragoatá, Niterói, n. 20, 2006, p. 185-197. 103 Iberic@l - Numéro 2 geral da contribuição do imigrante para a construção das cidades e, por extensão, da nação. Esse ideário pertence a um discurso de fundação próprio das primeiras gerações, mesmo que não sejam as de colonizadores. O tópico do trabalho não pertence apenas à literatura, ele compõe com o texto histórico, com o complexo de leis imigratórias, com o ideário, afinal, sobre a imigração. O imigrante é acima de tudo uma força produtiva e essa é a sua condição de sobrevivência e de permanência social, nos ensina Abdelmalek Sayad15. A literatura confirma essa condição. A solidez das casas dos protagonistas; o valor dedicado ao trabalho aparente no discurso dos personagens mais velhos; a idéia de uma missão civilizatória no enfrentamento entre pioneiros e nativos – narrada de pai para filho –; a superioridade germânica, sobretudo em relação aos negros, evidenciada em muitos diálogos; indicam que os romances lidam com conteúdos que circulam pelo domínio histórico e político sobre a imigração. É dessa forma que o imigrante foi definido ao sair da Europa, assim foi fotografado e pintado nas telas. É sobre o trabalho que versam suas canções populares. É a sua superioridade física e moral que fará avançar o país, informam as teorias raciais. Da mesma forma, o cruzamento de discursos se esforça por consolidar essa imagem. No três romances destacados aparece a mesma estrutura do modelo familiar, os mesmos embates identitários, com ênfase em questões como o germanismo, as dificuldades de adaptação, a potencialização da figura do imigrante como trabalhador e a ambigüidade da situação frente às questões da guerra. Fora do lugar, expressando ou não um ideário que alimentava o belicismo, fazendo parte ou não de organizações suspeitas aos moldes da polícia política, os personagens enfrentaram todos a rejeição e o ódio que cabia aos nazistas, como bem mostram a prisão do personagem Bruno Stein, as inquietações da personagem Gisela e os debates entre os personagens de Salim Miguel. Mas, se há a presença central das famílias, é de dentro delas que surge o desconforto, o deslocamento cultural mais agudo, os embates identitários que se manifestarão no espaço público. É de um lugar duplo que esses descendentes vivem os conflitos, jogados que são nesse espaço que aponta para eles uma definição e exige uma identidade fixa, o que eles estão longe de possuir. As reflexões do velho Bruno, o mal-estar da jovem Gisela e a partida de Rupert dizem sobre outros pertencimentos ou mesmo sobre a instabilidade social e cultural em que se movimentam, apesar da casa sólida, do trabalho, dos mitos fundadores e de todo aparato de refundação da nação, com o qual seus ancestrais aqui se instalaram a ferro e fogo. Uma das contribuições do romance escrito a partir dos anos 1970 parece ser mesmo o de evidenciar o desajuste, o mal-estar que brota de dentro, próprio do insulamento. Se contribuíram para isso as políticas mal arranjadas da imigração, as barreiras da língua, a forte nucleação dos colonos no sul do país; o romance desse período faz notar a dificuldade de conciliação entre pátrias no coração dos mais jovens, propondo a partida e o rompimento, como uma possibilidade para eles. A narrativa desse período, por um lado, alcança, como se viu logo no início deste texto, nacionalidades diversas e nisso elas divergem de um sentido totalizante que homogeneizasse a nacionalidade brasileira. Por outro lado, enfoca na segunda metade do século XX uma história da literatura que imprime marcas fundadoras desses grupos como formadores da nação, compondo com o senso comum e com outros discursos um compósito que reforça o projeto político. As narrativas formam, assim, um ato, não propriamente inaugural, mas de inventário da viagem do século XIX para o século XX, mostrando a figura desse deslocamento, que não poucos sentidos imprimiu à cultura brasileira. 15. Sayad, Abdelmalek, A imigração ou os paradoxos da alteridade, Trad. Cristina Murachco, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998. 104 O imigrante alemão no romance brasileiro da segunda metade do século XX Referências bibliográficas Bhabha, Homi, O local da cultura, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001. Fausto, Boris, “Imigração: cortes e continuidades”, in História da vida privada no Brasil, in SCHWARCZ, Lília (org.), São Paulo, Companhia das Letras, 1998, v. 4, p. 16-61. Kiefer, Charles, Valsa para Bruno Stein, Rio de Janeiro, Record, 2006. Jobim, José Luís, “Representações da identidade nacional e outras identidades”, in Gragoatá, Niterói, n°. 20, 2006, p. 185-197. Luft, Lya, A asa esquerda do anjo, Rio de Janeiro, Record, 2010. Miguel, Salim, Jornada com Rupert, Rio de Janeiro, Record, 2008. Oliveira, Lucia Lippi, O Brasil dos imigrantes, Rio de janeiro, Jorge Zahar Ed., 2002. Sayad, Abdelmalek, A imigração ou os paradoxos da alteridade. Trad. Cristina Murachco. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1998. Silva, Tomaz Tadeu da (dir.), Identidade e diferença – a perspectiva dos Estudos culturais. Tradução do organizador, Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes, 2008. Vogt, Olgario Paulo. “O alemanismo e o perigo alemão na literatura brasileira da primeira metade do século XX”, in Signo, Santa Cruz do Sul, vol. 32 n° 53, 2007, p. 225-258. 105 Iberic@l - Numéro 2 106 Articles (Varia) - II Articles (Varia) 107 Iberic@l - Numéro 2 108 Genette, l’autre de Borges Genette, l’autre de Borges Julien Roger Resumen: El objeto de este artículo consiste en analizar la influencia de Borges en la obra de Genette. Tanto en sus escritos autobiográficos (Bardadrac, Codicille y Apostille) como ensayísticos (principalmente Figures III y Palimpsestes), Genette confiesa su deuda para con Borges. Pero, más allá de las declaraciones de Genette, veremos cómo su obra podría ser una reescritura lateral de la de Borges, y, en particular, una auto-reescritura. Genette resultaría, en resumidas cuentas, el otro de Borges. Palabras clave: Jorge Luis Borges, Gérard Genette, reescritura, auto-reescritura. Abstract: The purpose of this article is to study the influence of Borges’ works on Genette’s. In his autobiographical writings (Barbadrac, Codicille and Apostille) as well as in his essays (mainly Figures III and Palimpsestes), Genette acknowledges his debt towards Borges. Nevertheless, beyond Genette’s statements, we shall try to see how his works could be a lateral rewriting of those of Borges, an autorewriting in particular. Genette, in fact, could be Borges’ other self. Keywords: Gérard Genette, Jorge Luis Borges, rewriting, auto-rewriting. Así, todo descubrimiento implica una repetición y es estrictamente un redescubrimiento. (Ese prefijo modesto dicta toda la ley de la razón borgeana: no se trata tanto de ver como de rever, de pensar como de repensar, de escribir como de reescribir, de leer como de releer, de hacer como de rehacer)1. La productivité de l’œuvre de Borges et de sa figure d’auteur dans la critique littéraire française est incontestable. Blanchot, tout d’abord, signala dans Le livre à venir (« L’infini littéraire : L’aleph »), que « le livre est en principe le monde pour lui, et le monde est un livre2 ». De même, la première page de Les mots et les choses, dans laquelle Foucault reconnaît que « Ce livre a son lieu de naissance dans un texte de Borges, [qui cite] ‘une certaine encyclopédie chinoise’3 », l’Emporio celestial de conocimientos benévolos, dans « El idioma analítico de John Wilkins », dans Otras inquisiciones. Compagnon, plus tard, qui avoue dans La seconde main ou le travail de la citation : 1. Helft, Nicolás, et Pauls, Alan, El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 80. 2. Blanchot, Maurice, Le Livre à venir, Paris, Gallimard, 1986, p. 131. 3. Foucault, Michel, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 2001, p. 7. 109 Iberic@l - Numéro 2 En vérité, ce sont peut-être — faut-il l’avouer — les perversions de la citation, celles entre autres explorées par Borges, qui m’ont non seulement incité à chercher une structure de la citation « normale », mais qui ont encore établi cette structure, en révélant des cas qui, sur un mot caricatural, la mettaient en œuvre4. Différence et répétition, également, dont l’introduction fait allusion à « Pierre Ménard, auteur du Quichotte », où « la répétition la plus exacte, la plus stricte, a pour corrélat le maximum de différence5 ». Sans prétention à l’exhaustivité, Pierre Bayard, dans Le plagiat par anticipation, de nette inspiration borgésienne, ou plutôt ménardienne, signalait : « Borges, comme on le sait, envisageait même le cas d’un auteur, Pierre Ménard, qui aurait écrit exactement le même livre que Cervantès sans s’en rendre compte et ne se sentirait pas pour autant, à juste titre, responsable de plagiat6 ». En dernier lieu, l’instance appelée « l’éditeur » dans Une vie de Pierre Ménard, de Michel Lafon, relate l’anecdote suivante : On rapporte que, lors de son séminaire sur « la préparation du roman », Roland Barthes, interrogé par l’un de ses disciples sur son absence totale d’intérêt pour l’œuvre de Borges, et sur les liens éventuels de cette incuriosité spectaculaire avec celle de Borges pour Proust, se contenta d’un lapidaire « Ne me parlez pas de Ménard », qui plongea les présents dans la perplexité7. Nous pourrions admettre que cette anecdote soit apocryphe. Mais, étant donné l’intérêt de ce mystérieux disciple pour Borges, nous suggérons que ce disciple pourrait être Gérard Genette : c’est en tous cas l’hypothèse de cet article. Son objet est de montrer de quelle manière l’œuvre de Borges se trouve au centre névralgique de celle de Genette : non seulement en termes affectifs, mais aussi théoriques, poéticiens, et surtout, en termes de pratique d’écriture, voire de réécriture. L’admiration que ressent Genette pour Borges va au-delà de la simple inspiration ou du simple aveu de sources littéraires. Quelques exemples, pour commencer, le prouvent clairement. Dans Fiction et diction, Genette qualifie Borges de « prix Nobel d’honneur8 » ; et dans Apostille, il dit à propos de l’historien Paul Veyne : « Quoique professeur au Collègue de France, il n’est ni notre Michelet ni notre Braudel : il est notre Borges9. » Et le récit de la première rencontre, littéraire, entre Genette et Borges est marqué du sceau de l’émotion, comme le relate Genette dans Figures IV : On ne peut dénier, au moins à Valéry, le rôle de refondateur moderne de la poétique, ni à Borges une vision panoptique de la Bibliothèque universelle, vision à quoi je dois peutêtre encore l’essentiel de ma conception de la littérature, et un peu au-delà. J’ai toujours le souvenir de cette matinée du printemps 1959 où, « découverte » somme toute tardive, j’achetai dans une librairie du Quartier latin Fictions et Enquêtes, et commençai aussitôt de les lire pour ainsi dire ensemble, en oubliant de déjeuner, avec un « transport » analogue, toutes choses égales d’ailleurs, à celui de Malebranche découvrant le Traité de l’ homme de Descartes10. 4. Compagnon, Antoine, La seconde main ou le travail de la citation, Paris, Seuil, 1979, p. 364. 5. Deleuze, Gilles, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, p. 5. 6. Bayard, Pierre, Le plagiat par anticipation, Paris, Minuit, 2009, p. 35-36. 7. Lafon, Michel, Une vie de Pierre Ménard, Paris, Gallimard, 2008, Blanche, p. 18. 8. Genette, Gérard, Fiction et diction, Paris, Seuil, 1991, Poétique, p. 85. 9. Id., Apostille, Paris, Seuil, 2012, Fiction & Cie., p. 72. 10. Id., Figures IV, Paris, Seuil, 1999, Poétique, p. 9-10. 110 Genette, l’autre de Borges Avant de passer à la « conception de la littérature », nous allons nous pencher sur l’énigmatique « au-delà » dont parle Genette. En effet, de la même manière que Borges a inventé ses précurseurs, Genette s’est inventé un père littéraire en la personne de Borges, en narrant ou en fabriquant des autobiographèmes qui sont des réécritures d’autobiographèmes de Borges. Le premier d’entre eux est la relation de Genette avec la bibliothèque de ses parents11, qui rappelle clairement celle de Borges12 . Le deuxième est la passion d’enfance très borgésienne de Genette pour les encyclopédies13. En outre, dans l’entrée « Milonga » de Bardadrac, Genette évoque ses rencontres avec Borges et termine avec cet épisode : Je le vis s’avancer, au bras de María Kodama, rue Florida, fragile Homère en costume sable, très droit sur une canne au bras de son Antigone (je sais), dans la scintillation de la nuit portègne. Double silhouette de grâce et d’élégance, saluée par le murmure d’une foule respectueuse […]. Mais il n’était, ce soir-là, vraiment pas question d’aborder cette apparition, aussi impalpable qu’une image d’hologramme, plus inaccessible que les fantômes virtuels de L’Invention de Morel14. Genette se situe ainsi dans la même position que le narrateur du roman de Bioy vis-à-vis de Faustine, l’héroïne du roman. Les liens qui l’unissent à Borges sont donc des liens de prime abord affectifs. Réécritures poéticiennes Sur le plan théorique, un des premiers textes de Genette sur Borges, « L’utopie littéraire », dans Figures I, est fondateur de par ce qu’il annonce et délimite, puisqu’il contient en germe toute l’œuvre théorique de Genette. Autrement dit, « L’utopie littéraire » occupe dans l’œuvre de Genette la même place que « Tlön, Uqbar, Orbis Tertius » et « Pierre Ménard, auteur du Quichotte » dans l’œuvre de Borges, puisque Genette commente abondamment ces deux textes qui formeront la substance de ses livres à venir15. « Pierre Ménard, auteur du Quichotte », est un texte central dans l’œuvre de Genette (il appelle le nîmois dans Palimpsestes « notre ami, et confrère16 »), au sens où c’est ce texte qu’il cite le plus et qu’il mobilise le plus dans ses textes théoriques, en particulier dans Palimpsestes, par exemple au sujet de ce que Genette appelle le pseudo résumé ou la métatextualité fictive : Cette pratique d’hypertextualité fictive est, il faut le noter, symétrique et inverse de la performance attribuée par Borges à son héros Pierre Ménard. Ecrivant de son propre fonds un Quichotte rigoureusement littéral, Ménard allégorise la lecture considérée comme, ou déguisée en écriture. Attribuant à d’autres l’invention de ses contes, Borges présente au contraire son écriture comme une lecture, déguise en lecture son écriture. Ces deux conduites, faut-il le dire, sont complémentaires, elles s’unissent en une métaphore des relations, complexes et ambiguës, de l’écriture et de la lecture : relations qui sont bien évidemment […] l’âme même 11. Id., Bardadrac, Paris, Seuil, 2006, Fiction & Cie., 2006, p. 38-42. 12. Borges, Jorge Luis, Autobiografía (1899-1970), Buenos Aires, El Ateneo, 1999, p. 24-25; Helft, Nicolás, et Pauls, Alan, El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados, op. cit, p. 87-94. 13. Genette, Gérard, Bardadrac, op. cit., p. 38-42. 14. Ibid., p. 283-284. 15. Genette, Gérard, Figures I, [1966], Paris, Seuil, 1976, Points Essais, p. 131. 16. Id., Palimpsestes, Paris, Seuil, 1982, Poétique, p. 452. 111 Iberic@l - Numéro 2 de l’activité hypertextuelle17. Nous pouvons même suggérer que le titre de Palimpsestes viendrait de cette phrase de « Pierre Ménard, auteur du Quichotte » : « He reflexionado que es lícito ver en el Quijote ‘final’ una especie de palimpsesto, en el que deben traslucirse los astros – tenues pero no indescifrables – de la ‘previa’ escritura de nuestro amigo18 ». « Pierre Ménard, auteur du Quichotte » est la pierre angulaire de Palimpsestes, une source inépuisable pour illustrer les différentes catégories d’opérations hypertextuelles. Citons entres autres la possibilité envisagée par Genette selon laquelle le Quichotte de Ménard serait la réécriture archaïsante de celui d’Unamuno19. Ou l’exercice textuel très stimulant proposé par Genette, à propos des imitations de « La Parure » de Maupassant par Reboux et Muller : A titre de contre-épreuve et pour rester dans les paris stupides, j’imagine un bel exercice pour quelque Pierre Ménard désœuvré et docile : (1) oublier le texte de La Parure ; (2) s’imprégner, sur le reste de son œuvre, du style de Maupassant ; (3) ainsi armé, et à partir des quatre transcriptions forgées par Reboux et Muller, reconstituer l’original20. De manière parallèle, nous pouvons dire que Borges a accompli les rêves de Genette, ou que Genette a accompli les rêves de Borges, comme c’est le cas avec Seuils (Borges est le premier auteur cité dans cet essai). Souvenons-nous de la première phrase de « Prólogo de prólogos », de Prólogos con un prólogo de prólogos : « El prólogo, cuando son propicios los astros, no es una forma subalterna del brindis; es una especie lateral de la crítica 21 ». Seuils s’annonce donc comme une glose dilatée de cette phrase, comme l’analyse le même Genette en la citant avec ironie et en terminant par écrire : « ces deux fonctions, de valorisation et de commentaire critique, ne sont nullement incompatibles, et même (…) la seconde peut être plus efficace que la première parce qu’indirecte, le commentaire mettant à jour des significations ‘profondes’, et par là même gratifiantes22 ». Un autre exemple que Genette est bien le double poéticien de Borges se situe dans ses analyses sur la métalepse, dans Figures III et Métalepses, en se servant de la même citation de « Magias parciales del Quijote ». Dans Figures III, cela donne : […] frontière mouvante mais sacrée entre deux mondes : celui où l’on raconte, celui que l’on raconte. D’où l’inquiétude si justement désignée par Borges : « De telles inventions suggèrent que si les personnages d’une fiction peuvent être lecteurs ou spectateurs, nous, leurs lecteurs ou spectateurs, pouvons être des personnages fictifs »23. Et à la fin de Métalepses : La leçon que proposent tous ces labyrinthes narratifs […] a été obliquement tirée voici déjà quelques décennies par un de leurs plus subtils architectes, et l’on ne peut ici que la réciter une fois de plus : « Pourquoi sommes-nous inquiets que la carte soit incluse dans la carte et les mille et une nuits dans le livre des Mille et Une Nuits ? Que don Quichotte soit lecteur 17. Ibid., p. 296. 18. Borges, Jorge Luis, Obras completas, tome 1, Barcelone, Emecé, 1996, p. 450. 19. Genette, Gérard, Palimpsestes, op. cit., p. 425. 20. Ibid., p. 133. 21. Borges, Jorge Luis, Obras completas, tome 4, op. cit., p. 13-14. 22. Genette, Gérard, Seuils, Paris, Seuil, 1987, Poétique, p. 248. 23. Id., Figures III, Paris, Seuil, 1972, Poétique, p. 245. 112 Genette, l’autre de Borges du Quichotte et Hamlet spectateur d’Hamlet ? Je crois en avoir trouvé la cause : de telles inversions suggèrent que si les personnages d’une fiction peuvent être lecteurs ou spectateurs, nous, leurs lecteurs ou leurs spectateurs, pouvons être des personnages fictifs »24. Le plus remarquable est que, entre Figures III, de 1972, et Métalepse, de 2004, Genette se sert de la même citation. De plus, Métalepse est la réécriture (plus précisément : une continuation amplifiée) de quelques pages de Figures III. Et en se réécrivant lui-même, Genette réécrit Borges, en citant la même phrase. D’où notre conclusion : Borges ne figure pas seulement aux origines du projet théorique de Genette, comme nous venons de l’analyser, mais il se trouve au centre même de sa pratique d’écriture, ou plutôt, comme nous allons le voir, de sa pratique de réécriture. Genette, après être parti de l’œuvre de Borges pour échafauder son armature théorique, s’est mué peu à peu en un double de Pierre Ménard : un réécrivain. Réécritures ludiques Après avoir étudié les différentes possibilités de réécritures hypertextuelles, Genette est passé de la théorie à la pratique, en se réécrivant lui-même (de manière systématique) et en réécrivant d’autres auteurs, sur le mode ludique. L’exemple le plus significatif d’autoréécriture massive dans l’œuvre de Genette est, sans aucun doute, la relation qui unit Nouveau discours du récit et la dernière partie de Figures III, Discours du récit. L’hypertexte est, clairement, selon le vocabulaire de Palimpsestes, une « suite autographe25 ». Dans la même logique, le premier chapitre de Figures IV, « Du texte à l’œuvre », est un exercice d’autoréécriture massive ou, comme le signale Genette, un « exercice d’autodiction préposthume26 ». Cependant, les exemples les plus précis et pertinents d’autoréécriture sont des réécritures de séquences, de phrases, ou même d’autocitations. Ils se trouvent dans Bardadrac, Codicille (voire Apostille), comme l’annonce la première entrée de Codicille : « Again », entrée qui est également une réécriture du chapitre « Play it again, Sam », de Palimpsestes27. Prenons le cas de l’entrée « Discrétion », de Codicille, en la comparant avec l’item « Postérité », de Bardadrac. L’hypotexte dit : La vraie guigne, c’est de mourir le même jour qu’un autre dont la disparition plus notable éclipse la vôtre : voyez Cocteau sous Piaf ou Prokofiev sous Staline. J’aimerais citer d’autres exemples, mais je m’avise que le cas ne s’applique qu’aux défunts déjà un peu connus : mourir en même temps qu’un illustre est à la portée de tout anonyme, et ne suffit pas à vous conférer une gloire silencieuse : ce sera tout juste un point de repère pour vos héritiers28. Et, en ce qui concerne l’hypertexte : La plus sûre façon de jouir d’une mort discrète est de mourir le même jour qu’un autre, plus célèbre, dont la disparition éclipse la vôtre : voyez Cocteau (sous Piaf), Prokofief (sous 24. Id., Métalepse, Paris, Seuil, 2004, Poétique, p. 131-132. 25. Id., Palimpsestes, op. cit., p. 182. 26. Id., Figures IV, op. cit., p. 7. 27. Id., Palimpsestes, op. cit., p. 175-177. 28. Id., Bardadrac, op. cit., p. 348. 113 Iberic@l - Numéro 2 Staline), Reggiani (sous Distel). “Jouir” est peut-être une hyperbole : la jouissance est furtive. J’aimerais citer d’autres exemples, mais je m’aperçois que le principe ne s’applique qu’aux défunts déjà un peu (quoique moins) célèbres. Mourir en même temps qu’un illustre est à la portée de tout anonyme, et ne suffit pas à conférer à celui-ci une gloire silencieuse : ce sera tout juste un point de repère pour ses héritiers. Tout de même, je commence à chercher, parmi mes contemporains, qui pourrait bien faire un peu d’ombre à mon absence de sépulture. Pour les coïncidences de naissance, je manque d’exemples, mais Borges, toujours serviable, m’en fournit un, qui se plaint en ces termes : “Moi, par exemple, je suis né le même jour que Jorge Luis Borges.” Ce qui tombe à la fois bien et mal29. Au même moment où Genette se réécrit par une autocitation, il cite Borges, c’est-à-dire qu’il avoue sa dette envers lui : la manière de se réécrire se fait sous l’invocation de l’auteur de « Pierre Ménard, auteur du Quichotte ». De telle sorte que nous ne pouvons dire qui Genette réécrit, s’il se réécrit luimême ou s’il se réécrit en réécrivant Borges. L’exemple que nous venons de prendre concerne seulement deux, ou plutôt trois textes : celui de Borges, et ceux de Genette. Cependant, dans l’œuvre de ce dernier existent plusieurs exemples qui montrent de quelle manière il a porté la pratique de réécriture vers des limites expérimentales. Un des exemples les plus significatifs est celui de Flaubert. Genette a réécrit dans « Silences de Flaubert », de Figures I, une des conclusions de Borges dans « Vindicación de Bouvard et Pécuchet », dans Discusión. Borges écrit : « Las negligencias o desdenes o libertades del último Flaubert han desconcertado a los críticos; yo creo ver en ellas un símbolo. El hombre que con Madame Bovary forjó la novela realista fue también el primero en romperla 30 ». Après avoir étudié comment Flaubert, en particulier dans les silences de Madame Bovary, « s’absorbe (et avec lui, son roman), dans l’accessoire31 », Genette conclut, en glosant Borges : De Bovary à Pécuchet, Flaubert n’a cessé d’écrire des romans tout en refusant — sans le savoir, mais de tout son être — les exigences du discours romanesque. C’est ce refus qui nous importe, et la trace involontaire, presque imperceptible, d’ennui, d’indifférence, d’inattention, d’oubli, qu’il laisse sur une œuvre apparemment tendue vers une inutile perfection, et qui nous reste admirablement imparfaite, et comme absente d’elle-même32. Si, effectivement, la glose est une forme de réécriture théorisante, Genette va se réécrire dans son œuvre postérieure, à partir de ce texte, cette réécriture, centrale. En d’autres termes, Genette va passer de la théorie à la pratique, de la poétique à la création, en se réécrivant et, surtout, en réécrivant Flaubert glosé par Borges. Les deux derniers chapitres de Figures IV, « Trois traitements de texte » et « Capriccio » proposent divers exercices de réécriture. « Trois traitements de texte » propose trois « productions pseudogénétiques », à partir de Chateaubriand, Flaubert et Proust33. La réécriture amplifiée d’un paragraphe de Flaubert occupe, dans Figures IV, plus de deux pages, de telle manière que l’exercice opéré par Genette pourrait être considéré comme un exemple du processus d’écriture – ou plutôt : d’un des brouillons – de Ménard. Et, soit dit en passant, cet exercice pousse à son terme de manière extrême les exigences du discours romanesque traditionnel, en faisant du texte 29. Id., Codicille, Paris, Seuil, 2009, Fiction & Cie, p. 90-91. 30. Borges, Jorge Luis, Obras completas, tome 1, op. cit., p. 262. 31. Genette, Gérard, Figures I, op. cit., p. 241. 32. Ibid., p. 243. 33. Id., Figures IV, op. cit., p. 347-348. 114 Genette, l’autre de Borges une concrétion presque illisible puisque une phrase de Flaubert comporte au moins cinq variantes dans le texte de Genette. On peut parler ici d’exercices littéraires dignes de l’Oulipo. La productivité de l’œuvre de Flaubert dans celle de Genette, sous l’autorité de son maître Ménard, est remarquable dans son avant-dernier livre, Codicille, à l’entrée « Charles ». On peut y lire une page forgée par Genette, qui, en partant du postulat que Charles aurait pu avoir, lui aussi, une maîtresse, relate cette aventure amoureuse, avec une ironie très flaubertienne, borgésienne, et, de fait, genettienne, en particulier dans les métaphores : Le cœur plein des félicités de la matinée, l’esprit tranquille, la chair contente, il s’en allait ruminant son bonheur, comme ceux qui mâchent encore, après dîner, le goût des truffes qu’ils digèrent. Quoique médecin, il ne savait pas que, sur les terrasses des maisons, la pluie fait des lacs quand les gouttières sont bouchées, et il fût ainsi demeuré en sa sécurité, lorsqu’il découvrit subitement, un jeudi de septembre, que la Geffosses était enceinte de quatre mois. Il prononça alors un grand mot, le seul qu’il ait jamais dit : « C’est la faute à Walter Scott ! »34. Valéry, après Flaubert, a lui aussi été réécrit par Borges-Ménard-Genette, en particulier Le cimetière marin. Dans Palimpsestes, Genette donne un exemple possible de la transmétrisation de Ménard, en ajoutant deux pieds aux quatre premiers de chaque vers pour donner un alexandrin classique : Ce vaste toit tranquille où marchent des colombes Entre les sveltes pins palpite, entre les tombes, Voyez, Midi le juste y compose de feux La mer, la mer, la mer, toujours recommencée ! O pleine récompense après une pensée Qu’un immense regard sur le calme des dieux 35 ! Autrement dit, Genette compose (au sens où Ménard « no quería componer otro Quijote – lo cual es fácil – sino el Quijote36 ») et produit une partie de l’œuvre visible de Ménard. De plus, dans Codicille, à l’entrée « Cimetière », Genette signale : « on peut aussi supposer (on l’a fait) que c’est en réalité Valéry qui a réduit en décasyllabes le célèbre poème de son confrère nîmois37 » – cette hypothèse fut envisagée par Michel Lafon dans Une vie de Pierre Ménard. Mais Genette ajoute qu’en fait Valéry avait opéré une transmétrisation d’un texte (archivé avec les brouillons d’« Un cœur simple ») trouvé par un mystérieux ami de Genette à la Bibliothèque Nationale de Paris. Valéry a ajouté deux pieds à chaque vers de cet énigmatique hypotexte qui était une version en octosyllabes. La première strophe de ce prétendu texte premier est la suivante : Ce toit où marchent des colombes Entre les pins, entre les tombes, Midi y compose de feux La mer toujours recommencée Récompense d’une pensée Qu’un regard au calme des dieux38 ! 34. Id., Codicille, op. cit., p. 56. 35. Id., Palimpsestes, op. cit., p. 254. Les pieds ajoutés figurent en italique. 36. Borges, Jorge Luis, Obras completas, op. cit., tome 1, p. 446. 37. Genette, Gérard, Codicille, op. cit., p. 60. 38. Ibid., p. 61. 115 Iberic@l - Numéro 2 Outre la dimension ludique de telles opérations hypertextuelles, le quatrième vers (« La mer, la mer, toujours recommencée »), pourrait être une métaphore des relations qui unissent les différentes versions du texte, celle du mystérieux ami apocryphe de Genette, celle de Ménard et celle de Valéry : le texte, le texte, toujours recommencé... En définitive, Genette a fait la même chose que Barthes (ou qu’avait commencé à faire Barthes), en passant de la théorie à la pratique, et de la poétique à l’écriture/réécriture. Ce credo littéraire, Genette l’a ainsi exprimé à la fin de Nouveau discours du récit : « Les critiques n’ont fait jusqu’ici qu’interpréter la littérature, il s’agit maintenant de la transformer. Ce n’est certes pas l’affaire des seuls poéticiens, leur part est sans doute infime, mais que vaudrait la théorie, si elle ne servait aussi à inventer la pratique39 ? » Interrogation qui se retrouve citée dans « Transfocalisations », de Codicille, dans la continuation évidente de Palimpsestes, dans laquelle se propose Genette, au rebours de Pierre Bayard, d’améliorer les œuvres ratées. Il conclut ainsi : Je ne sais plus qui a écrit : « Les critiques n’ont fait jusqu’ici qu’interpréter la littérature, il s’agit maintenant de la transformer : que vaudrait la théorie, si elle ne servait aussi à inventer la pratique ? » Pas grand-chose, à ce que je vois : on propose, on propose, et pendant ce temps les œuvres ratées, et même les autres, font leur petit bonhomme de chemin40. L’influence de Borges sur Genette ne se limite donc pas du tout à une réécriture essayiste de ses fictions : Genette ne cesse de se réécrire, comme Ménard et Borges et même parfois, comme nous l’avons vu avec Flaubert et Valéry, il explore des possibilités de réécriture proposées par le même Borges – voire au-delà. La relation de Genette à Borges n’est donc pas seulement affective, théorique ou poéticienne, elle est aussi créative – ou plutôt : ré-créative. Cet article a fait l’objet d’une première publication : « Genette, el otro de Borges », in Borges – Francia, Magdalena Cámpora et Javier Roberto González (dir.), Buenos Aires, Selectus, 2011, p. 109-118. Celle-ci est une version traduite et remaniée. 39. Id., Nouveau discours du récit, Paris, Seuil, 1983, Poétique, p. 109. 40. Id., Codicille, op. cit., p. 299. 116 Genette, l’autre de Borges Bibliographie Bayard, Pierre, Comment améliorer les œuvres ratées ?, Paris, Minuit, 2000. ---, Le plagiat par anticipation, Paris, Minuit, 2009. Bioy Casares, Adolfo, La invención de Morel, Madrid, Cátedra, 2003. Blanchot, Maurice, Le Livre à venir, Paris, Gallimard, 1986. Borges, Jorge Luis, Obras completas, Barcelone, Emecé, 1996. ---, Autobiografía (1899-1970), Buenos Aires, El Ateneo, 1999. Compagnon, Antoine, La seconde main ou le travail de la citation, Paris, Seuil, 1979. Deleuze, Gilles, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968. Foucault, Michel, Les Mots et les choses, Paris, Gallimard, 2001. Helft, Nicolás, et Pauls, Alan, El factor Borges. Nueve ensayos ilustrados, Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 2000. Genette, Gérard, « La littérature selon Borges », in Jorge Luis Borges [1964], Dominique de Roux et Jean de Milleret, (dir.), Paris, Éditions de l’Herne, 1999, p. 323-327. ---, Figures I, [1966], Paris, Seuil, 1976, Points Essais. ---, Figures II, [1969], Paris, Seuil, 1979, Points Essais. ---, Figures III, Paris, Seuil, 1972, Poétique. ---, Palimpsestes, Paris, Seuil, 1982, Poétique. ---, Nouveau discours du récit, Paris, Seuil, 1983, Poétique. ---, Seuils, Paris, Seuil, 1987, Poétique. ---, Fiction et diction, Paris, Seuil, 1991, Poétique. ---, Figures IV, Paris, Seuil, 1999, Poétique. ---, Métalepse, Paris, Seuil, 2004, Poétique. ---, Bardadrac, Paris, Seuil, 2006, Fiction & Cie. ---, Codicille, Paris, Seuil, 2009, Fiction & Cie. ---, Apostille, Paris, Seuil, 2012, Fiction & Cie. Lafon, Michel, Borges ou la réécriture, Paris, Seuil, 1990, Poétique. ---, Une vie de Pierre Ménard, Paris, Gallimard, 2008, Blanche. 117 Iberic@l - Numéro 2 118 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès (Barcelone) Corinne Cristini Résumé : Notre corpus composé de photographies d’enfants provenant du musée Frederic Marès de Barcelone s’inscrit dans une période qui va des origines de la photographie (essentiellement des années 1840) jusqu’aux années 1880. L’intérêt, dans cette étude, est double : il s’agit d’une part de considérer les différentes techniques inhérentes à l’histoire de la photographie (daguerréotype, ferrotype, ambrotype, portrait « carte de visite »…) et leur évolution et d’autre part, de tenter de dégager une typologie sur le thème de l’enfant : l’enfant dans les portraits de famille, puis au sein d’un groupe d’enfants, enfin, les portraits individuels. Nous verrons comment la photographie, dans la seconde moitié du XIXème siècle, s’inscrit dans le prolongement de la peinture et se donne à voir surtout comme une mise en scène théâtrale. Mots-clés : Musée, Frederic Marès, photographies, enfants, XIXème siècle. Resumen : Nuestro corpus consta de fotografías de niños procedentes del museo Frederic Marès de Barcelona y se inscribe en un periodo que va de los orígenes de la fotografía (esencialmente de los años 1840) hasta los años 1880. En este estudio, el interés es doble : primero tomaremos en cuenta las distintas técnicas propias de la historia de la fotografía (daguerrotipo, ferrotipo, ambrotipo, « tarjeta de visita »…) y luego, intentaremos destacar una tipología sobre el tema del niño : el niño en los retratos de familia, en los grupos infantiles y por fin, el retrato individual. Veremos cómo la fotografía, en la segunda mitad del siglo XIX, se inscribe en la continuidad de la pintura y se da a ver sobre todo como una puesta en escena teatral. Palabras claves : Museo, Frederic Marès, fotografías, niños, siglo XIX. L’intérêt porté à la photographie en Espagne est récent par rapport à la France ou à l’Angleterre. Il faut attendre la fin du XIXème et même le début du XXème pour voir naître, en Espagne, les prémisses d’une société photographique. Dans les années 1873-1874 sont jetées à Barcelone les bases de la société héliographique qui s’établit définitivement en 1876, constituée par le photographe Heribert Mariezcurrena, l’architecte Josef Thomas y Bigas, le dessinateur Joan Serras y Pausas et l’ingénieur Miguel Joarizti y Lasarte. Cette fondation symbolise une volonté commune d’améliorer les techniques photographiques et en particulier, les procédés photomécaniques de reproduction de l’image. En 1879, la société héliographique se dissout et c’est en 1899 qu’est créée la Sociedad fotográfica de Madrid qui deviendra en 1907 La Real Sociedad fotográfica. Les deux premiers daguerréotypes espagnols datant de 1839 n’ont pas été conservés : celui de Barcelone du 10 novembre 1839 a été tiré au sort (lors d’une tombola) et celui de Madrid du 18 novembre a été totalement détruit en 1978 à la suite de détériorations successives dues en particulier à des ruptures de canalisation, et plus tard, à l’utilisation de vapeurs d’iode pour tenter de récupérer l’image. C’est à partir des années 1980 que chercheurs, conservateurs, professeurs et scientifiques ont commencé à s’intéresser véritablement à la photographie. Rappelons qu’en 1985, une nouvelle loi sur 119 Iberic@l - Numéro 2 le patrimoine historique voit le jour : il s’agit de la loi 16 du 25 juin 1985 qui met en avant le rôle des archives photographiques, intégrant par là même la photographie au patrimoine historique espagnol. Parmi les œuvres de référence sur la photographie qui voient le jour dans les années 80, mentionnons les histoires de la photographie de Marie-Loup Sougez, de Fontanella Lee, de Publio López Mondejar, ou encore de Bernardo Riego1. En 1989 paraît le guide-inventaire des fonds photographiques de la Bibliothèque Nationale de Madrid, 150 años de fotografía en la Biblioteca Nacional : guía-inventario de los fondos fotográficos de la Biblioteca Nacional2 . Le patrimoine photographique qui a été préservé jusqu’à nos jours est en grande partie l’œuvre de collectionneurs comme, par exemple, le peintre madrilène Manuel Castellano (1826-1880) ou encore, au XXème siècle, Frederic Marès (1893-1991). Les photographies d’enfants qui constituent notre corpus proviennent de cette collection. Avant de nous intéresser tout particulièrement à ces portraits, il convient de présenter brièvement le collectionneur Frederic Marès ainsi que sa collection de photos qui, comme l’a souligné Ricard Marco3, est d’une grande richesse pour l’étude de la photographie espagnole et la connaissance de la société catalane de la seconde moitié du XIXème. Frederic Marès, sculpteur et collectionneur, a été directeur de l’École des Arts appliqués et des Métiers artistiques de Barcelone et directeur de l’École supérieure des Beaux-Arts de 1947 à 1964. À la fin des années 20, il réalise pour la ville de Barcelone la sculpture Niña encima de un pez (« Petite fille sur un poisson ») ; en 1928, il crée la célèbre Allégorie de Barcelone, sculpture en bronze située sur la place de Catalogne. Son art est très apprécié par les pouvoirs publics et par la bourgeoisie. Après la guerre civile, l’œuvre de Marès est surtout celle d’un restaurateur de monuments : à partir de 1944, il restaure les tombes royales du Monastère de Poblet. Signalons qu’une partie de sa production est constituée par des œuvres de caractère religieux. Le musée Marès, légué par la suite à la ville de Barcelone, voit le jour en 1946, mais il est inauguré officiellement le 25 novembre 1948. Ses sculptures s’inspirent du style moderniste. Cette passion pour les collections, Frederic Marès l’évoque dans des ouvrages tels que Mémoires de la vie d’un collectionneur de 1967 ou encore Le Monde fascinant des collections et des antiquités de 1977. En 1986, il reçoit la médaille d’or de la Generalitat de Barcelone. Le musée Marès comprend deux grands espaces : d’une part celui consacré à une importante collection de sculptures et d’autre part, celui regroupant des objets divers relatifs à la société catalane de la seconde moitié du XIXème (jeux de société, jouets, éventails, vêtements et accessoires de la mode féminine) et conçu à la manière d’un « cabinet de curiosités » que Frederic Marès baptise « musée sentimental ». C’est dans cet espace qu’est exposée, au deuxième étage, la collection de photographies, symbole d’une riche mémoire personnelle et collective de Barcelone. Elle comprend un ensemble de 4500 photos (qu’il s’agisse de plaques ou de photos sur papier, de négatifs et de positifs ou d’albums) ainsi que des appareils de prise de vue4. On y relève une centaine de daguerréotypes, 20 ambrotypes, 7 ferrotypes, 31 albums, des œuvres avec leur cadre d’origine, plus de 700 photos au format « carte de visite », des photos coloriées et près de 1500 plaques stéréoscopiques. Le genre du portrait photographique s’impose dans un ensemble qui compte également des 1. Sougez, Marie-Loup, Historia de la fotografía, Madrid, Cátedra, 1981 (1ra ed). fontanella lee, La historia de la fotografía en España desde sus orígenes hasta 1900, Madrid, El Viso, 1981. lÓpez mondÉjar Publio, Historia de la fotografía en España, Barcelona : Lunwerg, 1989. riego bernardo, La introducción de la fotografía en España : un reto científico y cultural, Girona, CCG ediciones, 2000. 2. Kurtz F., Gerardo, Ortega Isabel, 150 años de fotografía en la Biblioteca Nacional : guía-inventario de los fondos fotográficos de la Biblioteca Nacional, Ministerio de cultura, Dirección general del Libro y Bibliotecas, 1989. 3. Marco, Ricard, « La fotografía en Cataluña : Balance de los últimos 25 años. A propósito de la exposición Retrato del pasado », Quaderns del Museu Frederic Marès, Barcelona, Ajuntament de Barcelona, n°8, 2003, p. 261. 4. Voir à ce propos l’article de maynés tolosa pau, « La conservación de fotografías del Museu Frederic Marès », Quaderns del Museu Frederic, op. cit, p. 281. 120 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès photographies urbaines et des photos correspondant à l’Exposition Universelle de Barcelone de 1888 : il s’agit essentiellement de portraits de la bourgeoisie de la seconde moitié du XIXème siècle, même si la collection comprend également quelques portraits des classes plus modestes. Rappelons que le développement des techniques photographiques en Catalogne a partie liée avec l’essor industriel et la richesse de la région. Comme on l’a souvent souligné –les travaux de Gisèle Freund l’illustrent5 – l’essor de la photographie correspond à l’avènement de la bourgeoisie dans la société. Moins onéreuse qu’un portrait peint, elle se présente comme un nouveau support qui reflète l’individualisme et le culte du sujet. Le photographe reconstruit dans son atelier un décor artificiel en accord avec l’individu photographié. Ce dernier pose, accompagné des accessoires qui sont les signes de sa fonction dans la société, de son milieu. A partir des années 1850-1860, on assiste à une démocratisation du portrait photographique, notamment avec l’apparition du format « carte de visite » (également dénommé « portrait-carte ») breveté par André Adolphe Eugène Disdéri en 1854. Il s’agit de petites photos (10 x 6 cm environ) montées sur du carton au format de la carte de visite. Dans cette galerie de portraits familiaux et individuels, l’enfant occupe une place de plus en plus importante, ce qui révèle une évolution de son statut et de son rôle social, tout particulièrement dans les milieux bourgeois. Cet intérêt nouveau porté aux enfants et qui est perceptible dans les études de psychanalyse, se manifeste par l’émergence et l’essor de l’industrie du jouet. Notre corpus qui s’inscrit dans une période allant des origines de la photographie (essentiellement des années 1840) jusqu’aux années 1880 présente un double intérêt : il nous permet d’une part de considérer les différentes techniques inhérentes à l’histoire de la photographie et leur évolution et d’autre part, de dégager une typologie sur le thème de l’enfant. Nous avons retenu, tout d’abord, le portrait du groupe familial, c’est-à-dire la représentation de l’enfant au sein de la famille, puis les portraits de groupes d’enfants –que ces enfants soient issus ou non d’une même famille– et enfin, le portrait individuel, l’enfant sujet d’un portrait qui n’est plus uniquement l’apanage des « grands de ce monde6 ». Deux autres catégories de portraits d’enfants se distinguent dans ce corpus : elles traduisent les comportements et les pratiques que le médium a suscités dès son émergence. Il s’agit de photos post-mortem et de photos d’esprit. Par ailleurs, nous nous sommes interrogée sur la présence ou l’absence de décor et sur l’insertion d’objets symboliques étroitement liés à l’univers de l’enfance. En prenant appui sur les travaux de l’un des grands spécialistes de la photographie en Espagne, Bernardo Riego, qui a mis l’accent sur le rôle du photographe et de son atelier perçu comme un microcosme social7, nous nous intéresserons à la mise en scène inhérente aux portraits étudiés, ainsi qu’à l’image stéréotypée de la société de l’époque. Nombreux sont les portraits de la collection exécutés par des photographes anonymes ; plusieurs raisons peuvent expliquer l’anonymat du photographe : lors de l’émergence du nouveau médium dans la société, certains peintres vont se reconvertir dans la pratique photographique, ou pratiquer tout à la fois peinture et photographie, mais sans signaler ces changements, conservant ainsi la dénomination ambiguë de « peintre et portraitiste » ou encore celle de « peintre au daguerréotype 8 ». Rappelons que la photographie est perçue, à ses débuts, comme purement utilitaire, une simple reproduction du réel, « l’humble servante des arts », ce qui explique que l’appellation de « photographe » soit dépréciée. Par ailleurs, comme le fait remarquer Fontanella Lee, certaines photographies ont pu être prises par des amateurs ou encore par des photographes ambulants, et non dans l’atelier d’un professionnel. Il convient 5. Freund, Gisèle, Photographie et société, Paris, Seuil, 1974. 6. Garat, Anne-Marie, Photos de familles, Paris, Seuil, 1994, p. 26 « Longtemps, il n’y a pas l’image de soi, mais l’icône. De Dieu, des princes, des grands du monde ». 7. Voir à ce propos riego bernardo, La construcción social de la realidad a través de la fotografía y el grabado informativo en la España del siglo XIX, Santander, Servicio de publicaciones de la universidad de Cantabria, 2001. 8. Sagne, Jean, L’atelier du photographe (1840-1940), Paris, Presses de la Renaissance, 1994, p. 40 : « Des almanachs de province, comme L’Annuaire de Haute-Vienne, choisirent une autre appellation : Peintre au daguerréotype ». 121 Iberic@l - Numéro 2 de rappeler, à ce propos, que dans les années 1860, le studio du photographe est désormais véritablement intégré au paysage urbain espagnol. Bernardo Riego souligne à ce propos que, lors du recensement de 1857, la profession de photographe n’était pas encore répertoriée, alors qu’en 1862, l’Annuaire Martí (El Anuario Martí) fait état de la présence de dix-sept photographes exerçant dans la capitale espagnole, ce qui témoigne de cette pratique désormais reconnue9. Ricard Marco note un phénomène semblable pour la ville de Barcelone : « En el almanaque El indicador de España y de sus posesiones de Ultramar de 1867, aparece el nombre de una treintena de profesionales […]. En una guía publicada en 1882 constan 30 fotógrafos agremiados. […] en 1884, en otra guía de Barcelona, consta que en la ciudad hay 22 maestros, 70 oficiales y 15 aprendices10 ». On assiste à une diminution progressive du nombre de photographes itinérants et à l’ancrage des photographes dans le cadre urbain. Les portraits de famille Dans la collection Frederic Marès, considérons, tout d’abord, les portraits de famille, et tout particulièrement ceux correspondant aux premiers supports photographiques tels que les ambrotypes et les ferrotypes qui sont, comme le daguerréotype, des positifs directs. Le premier portrait étudié Portrait de famille (Fig.1, Retrat de família) est un ambrotype, c’est-à-dire une plaque de verre au collodion qui a été sous-exposée volontairement, un négatif blanchi par des traitements chimiques et qui, une fois placé sur un support sombre, apparaît en positif11. Face au daguerréotype réservé à une élite sociale, l’ambrotype, moins coûteux, correspond aux classes plus modestes. L’étude du support permet de dater et de situer l’image dans un contexte social ; la technique de l’ambrotype12 correspond aux années 18501860. Sa popularité est due également à la brièveté du temps de pose par rapport au daguerréotype. En ce qui concerne ce premier portrait étudié, on est frappé tout d’abord par la disproportion entre les dimensions du cadre et le petit format du médaillon ovale. Peut-être l’importance accordée au cadre, probablement un héritage de la peinture, reflète-t-elle le culte voué à la famille à l’époque ? C’est une famille semblant appartenir à une classe sociale modeste, ce que révèlent les éléments du « studium », notamment l’attitude des personnes photographiées ainsi que la sobriété de leurs vêtements (le tablier à carreaux de l’une des deux sœurs sur la gauche du daguerréotype, la blouse et le béret du jeune garçon au centre, ainsi que l’absence de parure ou de bijoux). Comme nous le soulignerons dans l’ensemble de notre corpus, c’est culturellement que nous recevons les images étudiées. Notre approche est donc celle que Roland Barthes désigne dans La Chambre claire par le terme de « studium » : c’est par le studium que je m’intéresse à beaucoup de photographies, soit que je les reçoive comme des témoignages politiques, soit que je les goûte comme de bons tableaux historiques : car c’est culturellement (cette connotation est présente dans le studium) que je participe aux figures, aux gestes, aux décors13. À travers les attitudes et l’expression du regard, on décèle l’appréhension et la crainte de ceux qui 9. Riego, Bernardo, La construcción social de la realidad..., op. cit., p. 315-316. 10. Marco, Ricard, « Los retratistas del siglo XIX en Barcelona. Nuevos datos para la historia de la fotografía », Quaderns del Museu Frederic Marès, op. cit., p. 327. 11. Voir à ce propos l’ouvrage de bajac, Quentin, L’ image révélée. L’ invention de la photographie, Paris, Découvertes Gallimard, Réunion des Musées Nationaux, 2001, p. 150 et celui de dehan Thierry, senechal sandrine, Guide de la photographie ancienne, Paris, Eyrolles, 2004, p. 107. 12. Ce procédé photographique inventé par James Ambrose Cutting en 1854 fut nommé « l’impérissable ». 13. Barthes, Roland, La Chambre claire. Note sur la photographie, Paris, Cahiers du Cinéma/Gallimard/Seuil, 1980, p. 48. 122 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès ont été portraiturés dans les premiers temps de l’invention du médium. Comme le rappelle Nadar dans Quand j’ étais photographe à propos de « Balzac et le daguerréotype » : « selon Balzac, chaque corps dans la nature se trouve composé de séries de spectres, en couches superposées à l’infini, foliacées en pellicules infinitésimales […] chaque opération daguerrienne venait donc surprendre, détacher et retenait une des couches du corps objecté14 ». Fig.1 Photographe anonyme. Retrat de família. Ambrotype. 250 x 210 mm. MFM. S-6506 Museu Frederic Marès (Barcelone) Photo numérique de R. Blanco ©DR Il est intéressant aussi de voir comment, paradoxalement, la photographie, considérée comme un mode de captation direct et fidèle du « réel », rivale des arts de la graphè, s’inscrit, à ses débuts, dans le prolongement de la peinture, peut-être pour répondre à l’horizon d’attente de l’époque et pour « légitimer » ce nouveau médium. En ce qui concerne l’ambrotype et le ferrotype colorié que nous allons étudier (fig. 2), les parents sont assis, les enfants debout. Dans la composition des portraits de famille, on relève la place privilégiée du garçon au centre de l’image, reflet des codes sociaux qui détachent du groupe l’héritier, le descendant. L’attitude des sujets, la position des mains, les bras qui enlacent, traduisent les liens familiaux, même s’ils répondent là encore aux conventions de la mise en scène photographique. Le geste de la mère qui se retrouve sur les deux portraits de famille n’est pas fortuit : sur le ferrotype colorié (voir fig. 2), la mère, à gauche de l’image, tient fermement la main de la plus jeune des sœurs comme si elle souhaitait rassurer l’enfant et peut-être aussi la maîtriser durant le temps de pose. Il serait intéressant de rapprocher ces deux documents iconographiques du daguerréotype de Charles Evans Petite fille à la poupée tenant la main de sa mère (de 1854-1856) où le geste affectueux et réconfortant de la mère est mis en relief par la présence de la main maternelle qui est restée gravée sur 14. Nadar, Quand j’ étais photographe, Paris, Le Seuil, L’école des lettres, 1994, p. 15. 123 Iberic@l - Numéro 2 la pellicule15. Rappelons que le ferrotype, également moins onéreux que le daguerréotype, se présente comme « une image positive, systématiquement inversée » et « obtenue en exposant dans une chambre noire une fine plaque de fer (…) recouverte d’un vernis noir ou brun au collodion16 ». La technique du ferrotype, souvent pratiquée par les photographes forains, perdure jusqu’au début du XXème siècle. La famille photographiée ici nous donne l’impression d’avoir revêtu sa tenue du dimanche pour venir poser à la ville : le père et le fils, en costume, portent le nœud papillon, les filles habillées de façon identique posent dans une attitude symétrique et ferment la composition de part et d’autre des parents. Fig. 2 Photographe anonyme. Retrat de família Ferrotype colorié (vers 1860-1870) 310 x 360 mm MFM. S-6484 Museu Frederic Marès. Photo numérique de R. Blanco. ©DR Peut-être pourrait-on appliquer à ce ferrotype les commentaires de Roland Barthes sur une photographie de James Van der Zee datant de 1926, à savoir : « Je m’intéresse avec sympathie, en bon sujet culturel à ce que dit la photo, car elle parle (c’est une « bonne » photo) : elle dit la respectabilité, le familialisme, le conformisme, l’endimanchement17 […]». Dans ces photographies de famille, le père et la mère apparaissent le plus souvent comme des archétypes, des modèles sociaux pour les enfants, ce que dévoilent les attitudes, les vêtements ou les coiffures semblables des enfants et des parents. Par ailleurs, les corps souvent rigides des enfants révèlent leur inquiétude face à l’objectif et les difficultés ou la lassitude occasionnées par la pose photographique. Sur le ferrotype étudié précédemment, l’attitude des deux sœurs en témoigne, et notamment celle de la plus jeune, à gauche de l’image, qui semble ne plus supporter la pose. Ce document nous montre aussi à quel point, dans la seconde moitié du XIXème, ces premières plaques photographiques sont héritières de la peinture, non seulement dans le respect des codes sociaux, l’art de la composition, mais également dans la retouche de l’image et l’ajout de la couleur. Quelques éléments viennent ébaucher un décor, même si celui-ci est encore très sobre : sur la partie gauche du ferrotype, la présence du rideau évoque la part de mise en scène inhérente à l’image et nous rappelle 15. Johnson, William S., Rice Mark, Williams Carla, Histoire de la Photographie de 1839 à nos jours, George Eastman House, Rochester, NY, Cologne, Taschen, 2000, p. 63. 16. Dehan, Thierry, Senechal, Sandrine, Guide de la photographie ancienne, op.cit., p. 108. Le ferrotype est « un positif direct (…) sur plaque de fer, introduit par Adolphe Alexandre Martin en 1853 ». 17. Barthes, Roland, La Chambre claire, op. cit., p. 73. 124 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès combien la pose, dans l’atelier du photographe, a partie liée avec le théâtre. On observe au sol des tapis décorés de motifs floraux. Quant à l’ajout de la couleur – qui est une technique courante dans la seconde moitié du XIXème siècle– ne correspond-il pas aussi à un souci d’être au plus près du « réel » ? Les portraits de groupes Si l’on considère, à présent, les portraits de groupes d’enfants, que ces derniers appartiennent ou non à la même famille, on s’intéressera au daguerréotype Portrait de trois jeunes filles (Fig. 3 Retrat de tres noies) réalisé, là encore, par un photographe anonyme, entre 1840 et 1860. Rappelons que le daguerréotype, mis au point par Louis Jacques Mandé Daguerre et reconnu officiellement en 1839, est « une plaque de cuivre argentée passée dans la vapeur d’iode puis développée après exposition et fixée au sel marin18 ». Le daguerréotype, appelé aussi « l’image miroir », est très coûteux à ses débuts et non reproductible. C’est une image fragile qui se présente sous verre, protégée par un écrin comme c’est le cas ici. Les photographes utilisaient le plus souvent un quart de plaque (108 x 81 mm) ou un sixième de la plaque (80 x 70 mm) et non la plaque entière. Dans l’exemple étudié, il s’agit d’une demi-plaque (151 x 120 mm). L’étude de ce portrait qui apparaît également sous le titre Portrait de trois soeurs (Retrat de tres germanes) dans les Cahiers du Musée Frederic Marès Quaderns del Museu Frederic Marès19 (Retrat del passat, n°8) suggère la pluralité de lectures et d’interprétations hypothétiques que suscite l’image. Fontanella Lee, historien de la photographie, s’est interrogé sur ce daguerréotype de la collection Marès et sur le type de liens qui unissent les trois jeunes filles. Il fait remarquer qu’elles ne sont pas vêtues de robes aussi somptueuses que d’autre sujets photographiés, ce qui signifierait, selon lui, que la photographie n’a peut-être pas été prise dans un atelier où il était assez courant que le photographe prête bijoux, robes et parure20. Toutefois, on observe qu’elles portent des bagues et des boucles d’oreilles et que celle située à droite de l’image tient un chapelet qu’elle semble égrener. Qu’elle ait été prise ou non dans un atelier, et malgré l’absence de décor, la composition en est soignée : les filles plus âgées sont assises sur une chaise, alors que la plus jeune est debout, dans une position centrale, ce qui crée une ligne oblique à partir de l’aînée. On remarquera la position symétrique des bras des jeunes filles, notamment des filles assises qui, par leurs coudes, ferment la composition. La petite, au centre, pose sa main sur celle de la plus âgée dans un geste affectueux. S’agit-il là encore d’un artifice de la composition, ou peut-on déceler un lien étroit, familial entre la petite et la grande, un rôle protecteur de celle qui semble ici se substituer à la mère ? Le groupe homogène formé par les deux filles –ou les deux sœurs habillées de robes de même style et de même coloris– semble isoler la troisième qui se distingue, à droite, par sa tenue (robe sombre et plus décolletée) et par une certaine corpulence. Fontanella Lee a mis l’accent sur la spontanéité du regard qui crée une rupture avec la position conventionnelle et assez rigide des sujets photographiés21 ; on est sensible aux regards divergents des trois filles : le regard fuyant de la plus jeune qui ouvre sur un hors champ contraste avec celui des deux autres qui semblent fixer l’objectif photographique avec assurance. 18. Dehan, Thierry, Senechal, Sandrine, op.cit., p. 108. 19. Quaderns del Museu Frederic Marès, op. cit., p. 100. 20. Fontanella, Lee, « La colección de daguerrotipos del Museu Frederic Marès », Quaderns del Museu Frederic Marès, op. cit., p. 292-293. 21. Ibid., p. 293 « El implícito encuadre y la simetría clásicos, que el fotógrafo consigue mediante la cuidadosa colocación de estos seis brazos, son indicio de que el fotógrafo era plenamente consciente de su oficio de artista. Quizá lo único que lo desmienta, pero que tampoco disminuye el valor de este daguerrotipo, sean las miradas casi directas de las tres ». 125 Iberic@l - Numéro 2 Fig. 3 Photographe anonyme. Las tres noies. Daguerréotype (entre 1840 et 1860) 151 x 120 mm. Museu Frederic Marès. MFM S-6347 Photographie numérique de R. Blanco. ©DR Par ailleurs, dans l’ensemble du corpus retenu, on pourra se demander dans quelle mesure l’âge des sujets photographiés explique le comportement différent des enfants face à l’opérateur photographe. Une autre photographie représentant là encore un groupe d’enfants Grup d’ infants retient notre attention [MFM. S-6305, p. 17]. Il ne s’agit plus d’un daguerréotype, mais d’une photographie sur papier albuminé au format « carte de visite » extraite d’un album, ce qui signifie une évolution dans la prise de vue et le développement de l’image. L’enseigne à laquelle appartient ce portrait « carte de visite » est prestigieuse ; rappelons avec Ricard Marco que le studio dénommé « Napoleón » (en réalité Antonio et son fils Emilio Fernández), qui était situé à Barcelone, Rambla de Santa Mónica, numéro 19, et pouvait être confondu avec un autre atelier portant le même nom, était l’un des plus réputés à l’époque, à Barcelone22 . Dans ce portrait de quatre jeunes enfants, on est sensible au soin qui préside à l’harmonie de la composition et au rendu luxueux de l’image, ce qui révèle la qualité de l’établissement où la haute bourgeoisie et des personnalités de l’époque venaient se faire portraiturer. Les enfants, trois filles et un garçon vêtus de blanc, posent avec grâce autour d’un objet/décor : une chaise à porteurs ouvragée, richement ornée de motifs floraux. La beauté de cet objet central et la richesse des motifs font écho aux tenues recherchées des enfants, notamment aux nœuds blancs des deux filles assises à l’intérieur de la chaise à porteurs. Si l’aînée du groupe et la cadette posent au centre de la chaise, rappelant là encore le rôle protecteur de la plus grande, le garçon et la troisième fille s’appuient de part et d’autre de cet objet central dans une attitude qui se veut plus décontractée et plus naturelle. Le regard amusé du garçon et le sourire de la fillette introduisent la modernité au sein de l’image. La recherche de spontanéité dans les gestes et dans les regards retient l’attention du spectateur. Cette photo à la date très imprécise, qui a été prise (d’après le catalogue de l’exposition) entre 1860 et 1890, semble donc rendre compte d’une évolution dans la quête du photographe : si autrefois, il était tributaire des temps de pose, à présent, il est à la recherche de l’effet de spontanéité et de naturel. À ce propos, on pourrait se demander à partir de quel moment le sourire commence à être institué en photographie comme façon d’être qui deviendra plus tard un stéréotype dans la prise de vue photographique. 22. Marco, Ricard, « Los retratistas del siglo XIX en Barcelona », art. cit., p. 329. À propos de la confusion entre les deux studios portant le même nom de Napoleón, voir solà i parera, Àngels, « Fotografía y sociedad en Barcelona, 1839-1888 », Quaderns del Museu Frederic Marès, op. cit., p. 307. 126 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès Portraits individuels Dans la collection de photographies du Musée Marès, l’enfant n’est pas seulement intégré aux portraits familiaux ou aux portraits de groupes, il fait l’objet des portraits individuels qui voient le jour avec les daguerréotypes, puis se développent dans les années 1860-1870 avec l’essor des albums de photos. Intéressons-nous, tout d’abord, au daguerréotype colorié d’un petit enfant Retrat de nen (fig. 4) réalisé vers 1845-1855 par un autre établissement très renommé de l’époque, connu sous le nom de Mr. Napoleón (initialement, en 1853, Fernando María Fernando, puis, après 1872, Fernando et Anaïs Napoleón23) et installé à proximité de l’autre studio nommé également Napoleón et que l’on a mentionné précédemment (Antonio Fernández, dit Napoleón). Fig. 4 Mr. Napoleón, Retrat de nen. Daguerréotype colorié (vers 1840-1845) 205 x 194 mm MFM. S-6505 Museu Frederic Marès. Photo numérique de R. Blanco. ©DR Un très jeune enfant que l’on a dû asseoir sur un tabouret pose, entouré d’un décor totalement artificiel que l’on a composé a posteriori, après la prise de vue. Rappelons que les studios les plus prestigieux comme celui-ci employaient des peintres spécialisés dans l’art de la retouche, un phénomène qui va perdurer et se développer pleinement à l’ère de la « carte de visite » et de la photographie sur papier albuminé. Dans son ouvrage L’ image révélée. L’ invention de la photographie, Quentin Bajac explique tout particulièrement en quoi consiste cette pratique : Pour satisfaire aux exigences du client, force est de gommer quelques défauts, de pratiquer la retouche. Celle-ci peut être de deux ordres : « technique » visant à masquer les imperfections du négatif, à l’encre de chine, ou « artistique », souvent sur l’épreuve et visant, à l’aide de crayons, pinceaux, encre de chine, aquarelle ou pastel, à modifier profondément cette dernière, le plus souvent à la rendre plus picturale. Les retouches vont parfois jusqu’à la peinture complète de l’épreuve ou à l’ajout de rehauts de couleurs dans certaines parties de l’image24. 23. Marco, Ricard, « Los retratistas del siglo XIX en Barcelona », art. cit., p. 326. 24. Bajac, Quentin, L’ image révélée. L’ invention de la photographie, op. cit., p. 63. 127 Iberic@l - Numéro 2 Sur ce daguerréotype luxueux, le vêtement du petit enfant ainsi que les éléments du décor –la nappe sur le guéridon, le vase avec ses fleurs et le rideau– ont été entièrement peints, ce qui nous invite à revoir cette conception de la photographie au XIXème qui considérait le nouveau médium comme un simple enregistrement du réel. On observe combien, dès ses origines, il a partie liée avec l’art de la mise en scène et se présente comme un héritage de la peinture dont il continue à s’inspirer. Fontanella Lee fait remarquer, à ce propos, qu’il n’était pas rare que l’on rajoute sur la plaque du daguerréotype les bijoux, les parures et les ornements des sujets portraiturés : « No se prestan en el gabinete fotográfico como tales objetos para que la persona se las ponga, sino que son diseñados por el retocador, quien « reviste » a la mujer de alhajas, diseñándoselas en el acto de presentación y venta del daguerrotipo acabado25 ». Avec l’évolution des techniques photographiques, il est intéressant de noter la naissance d’un genre de photos tel que les photos commémoratives d’un acte solennel –un baptême, une communion– qui deviendront par la suite un rituel, un passage obligé dont témoignent les albums. L’une des photos du musée Marès, un portrait « carte de visite » du célèbre photographe Joan Martí représentant une jeune fille en habit de communiante Nena vestida de primera comunió (fig. 5) offre un exemple de ce type de photographie relevant d’un rituel religieux et social. Avec A. Esplugas et Pau Audouard, Joan Martí fait partie des photographes catalans les plus prolifiques de la seconde moitié du XIXème siècle. Outre la réalisation de portraits, il se consacre à des photographies documentaires comme celles de la Révolution libérale de 1868 menée par le général Prim ou encore à la publication d’albums comme Bellezas de Barcelona de 1874, Bellezas de Montserrat de 1875 ou encore, en 1877, l’album Bellezas de Gerona et celui de l’exposition industrielle. Entre 1864 et 1872, il ouvre plusieurs studios à Barcelone26 . La fillette, de trois quarts, pose agenouillée sur un priedieu face à un autel, dans son habit de communiante avec gants, couronne et voile. Non seulement tous les éléments du culte ont été réunis (missel, chapelet, croix du Christ, statuette d’une vierge…), mais l’atmosphère du lieu aussi a été recréée dans le studio : la semi obscurité de l’église à peine éclairée par les vitraux invite à la prière et au recueillement. Dans cette pénombre rayonne la tache blanche du sujet central, synonyme de la candeur et de la pureté de l’enfance et qui fait écho au blanc de la statuette. L’écrivain costumbrista Antonio Flores évoque avec ironie dans son article de 1863 intitulé « Retratos en tarjeta » ce type de photographie prisé à l’époque, où le sujet adoptait une attitude pieuse dans le studio du photographe, accompagné de tous les accessoires du culte27. 25. Fontanella, Lee, « La colección de daguerrotipos del Museu Frederic Marès », art.cit., p. 294. 26. Marco, Ricard, « Los retratistas del siglo XIX en Barcelona », art.cit., p. 327-328. 27. Flores, Antonio, « Retratos en tarjeta », La América, 12 de febrero de 1863, Año VIII, n°3, p. 13-14. 128 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès Fig. 5. Joan Martí (entre 1860 et 1890) Nena vestida de primera comunió. Photographie sur papier albuminé au format « carte de visite ». Album MFM. S-6309, p. 24. Photo numérique de R. Blanco ©DR Il convient, à présent, de s’interroger sur ce nouvel espace propre à l’enfance qui, à partir des années 1860 et avec l’essor des portraits « cartes de visite », est recréé dans l’atelier du photographe. Ce qui confère une certaine unité à ce corpus, c’est la présence d’un jouet central tel que le cheval en bois qui se décline en cheval à bascule, cheval à roulettes, cheval tricycle auxquels peuvent se substituer d’autres représentations d’équidés, ce qui apparaît sur cette carte de visite de la collection Marès où une petite fille pose en amazone sur un âne, cravache à la main et dans une tenue de cavalière (fig.6). On a pris soin de reconstituer dans l’atelier du photographe un décor qui évoque un extérieur (des tapis imitant la paille, des branchages posés au sol sur la gauche de l’image, à l’arrière plan, un paysage assez flou avec plaines et collines) pour rendre la scène plus vraisemblable. Ce qui surprend, néanmoins, sur l’image et qui constituerait peut-être le « punctum » de cette photographie au sens où l’entend Roland Barthes28, c’est le décalage humoristique entre l’attitude apparemment très hautaine de la fillette et la présence d’un âne au lieu d’un cheval. 28. Barthes, Roland, op. cit., p. 48-49 « Le second élément vient casser (ou scander) le studium. Cette fois, ce n’est pas moi qui vais le chercher (comme j’investis de ma conscience souveraine le champ du studium), c’est lui qui part de la scène, comme une flèche, et vient me percer. Un mot existe en latin pour désigner cette blessure, cette piqûre, cette marque faite par un instrument pointu […]. Ce second élément qui vient déranger le studium, je l’appellerai donc punctum ; car punctum, c’est aussi : piqûre, petit trou, petite tache, petite coupure […] ». 129 Iberic@l - Numéro 2 Fig. 6. Photographe anonyme (1860-1880) Nena a cavall d’un ase. Photographie sur papier albuminé Album MFM. S-6310, p. 15. Photo numérique de R. Blanco ©DR Lorsqu’on se penche sur les nombreux portraits d’enfants au format « carte de visite » du musée, on constate que les garçons posent le plus souvent sur les chevaux de bois –comme c’était déjà le cas en peinture– ou bien encore sur des vélocipèdes ; les filles, quant à elles, pourront être photographiées dans un décor bucolique, à côté d’une chèvre, d’un mouton, ou d’une biche, autant d’éléments chargés de symboliser la douceur du sujet féminin face à la virilité masculine. Toutefois, on relève une évolution dans le portrait photographique par rapport au portrait peint dans la mesure où l’on commence à voir aussi des fillettes posant sur les chevaux de bois (ou à côté d’eux). La résurgence du même type de photographies dans la France ou l’Allemagne de la seconde moitié du XIXème nous montre à quel point ce type d’image est devenu un stéréotype. Le cheval de bois qui trône au centre des portraits d’enfants se voit doté de plusieurs fonctions et acquiert une dimension symbolique. S’il est le signe d’un milieu social aisé, il connote à présent l’univers de l’enfance au sein même de l’image. Peut-être permet-il aussi de distraire les enfants pendant le temps de pose comme le faisaient également les animaux de compagnie, et donc d’aider les enfants à être plus naturels face à l’objectif ? Enfin, il joue un rôle proprement utilitaire dans la mesure où il se substitue à la chaise ou au guéridon et maintient le sujet pendant la prise de vue photographique. L’étude d’un portrait de la collection donnant à voir un petit garçon posant, de trois quarts, sur son cheval de bois Nen a cavall nous en offre un exemple (fig. 7). Ce qui retient notre attention sur cette photographie coloriée du studio Moliné et Albareda et datant de 1875, c’est le rendu artificiel de l’image. Répondant à l’horizon d’attente de l’époque, le portrait photographique s’apparente là encore au portrait peint. Par ailleurs, si l’on en croit l’annonce publicitaire qui figurait dans le Diario de Barcelona en 1856, cet établissement se consacrait tout particulièrement aux portraits d’enfants : « Retratos en fotografía, daguerrotipo en relieve por el estereoscopo con estuches, copias, vistas (…) retratos de niños de todas edades29 ». Ricard Marco rappelle que le photographe Manuel Moliné Muns, qui s’associe avec le photographe Rafael Albareda à partir de 1856, était aussi dessinateur caricaturiste et 29. Marco Ricard, art. cit., p. 336. 130 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès peintre, ce qui explique l’importance accordée à la retouche picturale dans ce studio barcelonais. Moliné et Albareda sont connus, entre autres, pour leurs portraits de la reine Isabelle II et pour leurs reportages photographiques30. Fig. 7 Moliné i Albareda. Nen a cavall (Vers 1875) Albumine coloriée. Album MFM. S-6314, p. 20. Photo numérique de R. Blanco ©DR L’importance de ces portraits-cartes de visite extraits d’albums de familles nous amène à réfléchir sur la prégnance dans la société de ce nouvel objet de mémoire individuel et collectif. Ellen Mass qui a consacré une étude aux photos de famille nous rappelle que l’âge doré des albums se situe entre la fin des années 1850 et le début du XXème siècle. Tel un écrin, l’album de photos se présente comme un objet tout aussi précieux que ce qu’il renferme. Anne Marie-Garat l’a bien perçu, qui fait remarquer dans son ouvrage Photos de familles que « la consultation de l’album est une cérémonie31 » et que « sa nature est la même que celle du journal intime, de l’autobiographie32 ». Enfin, signalons dans la collection Marès, la présence des daguerréotypes post-mortem d’enfants qui témoigne des pratiques de l’époque et du rapport étroit et familier à la mort. Certains studios comme le célèbre atelier Napoleón, ou encore celui de Moliné et Albareda, indiquaient sur les affiches publicitaires de leurs établissements qu’ils se proposaient de portraiturer les défunts à domicile33. S’il est une autre photographie de la collection qui a retenu notre attention, c’est celle représentant l’image fantomatique d’un enfant qui apparaît derrière le portrait d’un homme, Retrat d’ home amb « fantasma o esperit » [MFM. S-6303, p. 18]. Dès ses origines, la photographie s’entoure d’un certain mystère ou d’une « aura » : on pensait qu’elle pouvait capter l’essence des êtres, les phénomènes surnaturels ; elle se situait dans le prolongement des appareils d’optique tels que la fantasmagorie. 30. Ibid., p. 326. 31. Garat, Anne-Marie, Photos de famille, op. cit., p. 22. 32. Ibid., p. 28. 33. Voir Fontanella, Lee, « La colección de daguerrotipos del Museu Frederic Marès », art.cit., p. 291. 131 Iberic@l - Numéro 2 Les photographies du musée Marès, et notamment les portraits d’enfants sur lesquels nous nous sommes penchée, présentent un intérêt aussi bien sur le plan des techniques et de l’histoire de la photographie que sur le plan sociologique et historique. De son vivant, Frederic Marès avait déjà eu l’idée très moderne, propre à un historien de la photographie, d’exposer le verso des photographies, ce qui permettait de révéler les enseignes des photographes ou encore des remarques et des notices biographiques provenant des personnes photographiées ou de leurs proches. Cette étude nous a permis également de mettre l’accent sur la théâtralisation de la pose dans le studio du photographe avant l’apparition et le développement de la photographie instantanée symbolisée par l’invention du Kodak en 1888 par Georges Eastman. Les portraits d’enfants de notre corpus s’inscrivent dans cet espace que Jean Sagne a défini comme l’espace de la mise en scène par excellence, « le lieu où se fabriquent les doubles, les identités ». Néanmoins, malgré cet artifice dans la composition, les couleurs, et parfois les vêtements et les parures des personnes photographiées, notre rencontre avec les portraits du XIXème siècle est poignante ; l’émotion que nous ressentons ne vient-elle pas de l’essence particulière de la photographie, de sa valeur indicielle ? « Il faut que la lumière ait frappé de ses photons des matières, des corps réels, qu’ils aient été renvoyés par eux vers l’objectif, vers la zone sensible de la chambre noire où est tendue la pellicule qui en gardera la trace, le souvenir chimique34 ». 34. Garat, Anne-Marie, op. cit., p. 41. 132 Étude de photos d’enfants de la collection Frederic Marès Bibliographie Bajac, Quentin, L’ image révélée. L’ invention de la photographie, Paris, Découvertes Gallimard, Réunion des Musées Nationaux, 2001. Barthes, Roland, La Chambre claire. Note sur la photographie, Paris, Cahiers du Cinéma/Gallimard/ Seuil, 1980. Dehan, Thierry, Senechal, Sandrine, Guide de la photographie ancienne, Paris, Eyrolles, 2004. Flores, Antonio, « Retratos en tarjeta », La América, 12 de febrero de 1863, Año VIII, n°3, p. 13-14. Fontanella, Lee, La historia de la fotografía en España desde sus orígenes hasta 1900, Madrid, El Viso, 1981. ---, « La colección de daguerrotipos del Museu Frederic Marès », Quaderns del Museu Frederic Marès, Barcelona, Ajuntament de Barcelona, n°8, 2003, p. 289-297. Freund, Gisèle, Photographie et société, Paris, Seuil, 1974. Garat, Anne-Marie, Photos de familles, Paris, Seuil, 1994. Johnson, William S., Rice Mark, Williams Carla, Histoire de la Photographie de 1839 à nos jours, George Eastman House, Rochester, NY, Cologne, Taschen, 2000. Kurtz F., Gerardo, Ortega, Isabel, 150 años de fotografía en la Biblioteca Nacional: guía-inventario de los fondos fotográficos de la Biblioteca Nacional, Ministerio de cultura, Dirección general del Libro y Bibliotecas, 1989. L ópez Mondéjar, Publio, Historia de la fotografía en España, Barcelona, Lunwerg, 1989. Marco, Ricard, « La fotografía en Cataluña: Balance de los últimos 25 años. A propósito de la exposición Retrato del pasado », Quaderns del Museu Frederic Marès, Barcelona, Ajuntament de Barcelona, n°8, 2003, p. 255-271. ---, « Los retratistas del siglo XIX en Barcelona », Quaderns del Museu Frederic Marès, Barcelona, Ajuntament de Barcelona, n°8, 2003, p. 324-338. Maynés Tolosa, Pau, « La conservación de fotografías del Museu Frederic Marès », Quaderns del Museu Frederic Marès, p. 281-288. Nadar, Quand j’ étais photographe, Paris, Le Seuil, L’école des lettres, 1994. Riego, Bernardo, La introducción de la fotografía en España: un reto científico y cultural, Girona, CCG ediciones, 2000. ---, La construcción social de la realidad a través de la fotografía y el grabado informativo en la España del siglo XIX, Santander, Servicio de publicaciones de la universidad de Cantabria, 2001. Sagne, Jean, L’atelier du photographe (1840-1940), Paris, Presses de la Renaissance, 1994 Sougez, Marie- Loup, Historia de la fotografía, Madrid, Cátedra, 1981 (1ra ed). 133 Iberic@l - Numéro 2 134 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 : la recomposition symbolique de l’empire hispanique dans l’Espagne post-impériale 1 David Marcilhacy Résumé : Sous la Restauration des Bourbons, l’Espagne entame un processus de redécouverte de ses anciennes colonies américaines. Outre le cycle de commémorations initié en 1892 afin de célébrer les grandes pages de la découverte et de la colonisation, la campagne hispano-américaniste se manifeste également par l’inscription dans le territoire péninsulaire de lieux à même de symboliser l’héritage commun et l’union fraternelle des nations hispanophones. Reflet de l’intérêt que la dictature du général Primo de Rivera porte pour l’américanisme, l’Exposition Ibéro-Américaine organisée avec faste à Séville en 1929-1930 a pour ambition de donner à voir au monde la communauté des pays hispanophones réunis autour de l’Espagne. L’espace de l’exposition sévillane se veut, tant par son architecture et ses motifs ornementaux que par les dispositifs symboliques mis en place, l’expression du statut impérial renouvelé de l’Espagne, par-delà ses récents déboires coloniaux. L’analyse de la mise en scène commémorative de l’Exposition de Séville constitue ainsi une grille de lecture de premier ordre pour comprendre le lien identitaire complexe qui relie l’Espagne à ses anciennes colonies émancipées et les enjeux politiques et culturels qui sous-tendent l’investissement de l’américanisme par les élites espagnolistes. Mots clés : Hispano-américanisme, Nationalisme, Dictature de Primo de Rivera, Expositions universelles et coloniales, Lieux de mémoire, Histoire coloniale Resumen: Bajo la Restauración borbónica, España inició un proceso de redescubrimiento de sus antiguas colonias americanas. Dicha campaña hispanoamericanista no sólo se manifestó por el ciclo de conmemoraciones que fue lanzado en 1892 para celebrar los hitos de la historia del descubrimiento y colonización. También supuso inaugurar en el territorio peninsular una serie de lugares susceptibles de simbolizar la herencia común y la unión fraternal de las naciones hispanohablantes. Reflejo del interés por el americanismo que pronto manifestó la dictadura del general Primo de Rivera, la fastuosa Exposición Ibero-Americana organizada en Sevilla en 1929-1930 ambicionaba ofrecer al mundo la imagen de la comunidad panhispánica reunida en torno a España. Gracias a su arquitectura, los motivos ornamentales y los dispositivos simbólicos convocados, el espacio de la exposición sevillana pretendía expresar el renovado estatus imperial de España, a pesar de sus recientes reveses coloniales. Analizar la escenificación conmemorativa de la exposición de Sevilla constituye pues una parrilla interpretativa de primer orden para entender el vínculo identitario que unía a España con sus ex colonias emancipadas. También permite descifrar las implicaciones políticas y culturales de la campaña americanista entonces desarrollada por las élites españolistas. Palabras claves: Hispanoamericanismo, Nacionalismo, Dictadura de Primo de Rivera, Exposiciones universales y coloniales, Lugares de memoria, Historia colonial 1. Cet article a été présenté dans le cadre du colloque international « Les symboles de la nation » (Paris, 9-10 juin 2011), coordonné par Maitane Ostolaza (Université Paris-Sorbonne), Santiago de Pablo (Universidad del País Vasco) et Enric Porqueres (EHESS). 135 Iberic@l - Numéro 2 Le xixe siècle marque une période d’effervescence nationaliste en Espagne, alors même que ce pays confirme son retrait relatif sur la scène internationale et européenne. L’indépendance de ses territoires d’outre-mer, dans l’Amérique continentale puis aux Antilles et aux Philippines, réduit drastiquement le cadre territorial dans lequel l’État monarchique s’impose comme puissance politique et la souveraineté espagnole s’exerce. Pourtant, le reflux de l’Amérique hispanophone dans les structures politiques ibériques ne signifie pas son effacement de l’imaginaire espagnol. Par l’émigration et les liens tissés au niveau social et intellectuel, on assiste même, dès les dernières décennies du siècle, à un retour de l’Amérique dans les préoccupations péninsulaires. À côté des tentatives visant à revigorer les relations transatlantiques, ce nouvel intérêt s’exprime aussi par le besoin de commémorer l’empire révolu. Après le précédent que constitue la célébration du ive Centenaire de la Découverte en 1892, l’Espagne entame un mouvement de réappropriation de son passé colonial2 . Ce processus coïncide avec la crise post-impériale, marquée par la défaite emblématique de 1898, au terme de laquelle l’Espagne perd ses principales possessions d’outre-mer. Au cours des trois décennies suivantes, l’Espagne éprouve le besoin de réaffirmer son statut international : d’un côté, elle compense la perte de l’Amérique par une ambition méditerranéenne qui l’amène à imposer son protectorat au nord du Maroc ; d’un autre, les intellectuels régénérationnistes s’interrogent sur la trajectoire historique et la vocation (passée et présente) de leur pays. C’est ainsi que se forge le mythe de la fondation de l’État espagnol à travers une modernité occidentale et un impérialisme spécifique3. Par le biais des centenaires consacrés à Vasco Núñez de Balboa (1914), Ferdinand Magellan (1919) et Juan Sebastián Elcano (1921), l’Espagne ne se forge pas seulement un passé illustre, mais réaffirme sa vocation universelle, elle qui a « inventé » des océans et prouvé la sphéricité de la terre en effectuant le tour du globe. Pour les courants américanistes qui sont à l’origine de ces différentes commémorations, et dont les préoccupations trouvent parfois écho auprès du pouvoir, il importe avant tout de placer l’histoire espagnole sous le signe de l’épopée et de l’universalité, et de construire l’image d’une Espagne renaissante. Au niveau gouvernemental, c’est probablement la dictature de Miguel Primo de Rivera qui reprend le plus fidèlement à son compte cette position. Venu au pouvoir afin de revitaliser le pays et de mettre un terme à la déliquescence de la représentation politique, le dictateur est décidé, avec Alphonse XIII, à restaurer le prestige de l’Espagne sur la scène internationale. Pour ce faire, il prétend affirmer son double statut de puissance coloniale en Afrique et de puissance tutélaire en Amérique. Aborder la récupération de la mémoire de l’empire colonial dans l’imaginaire espagnol suppose de s’interroger sur son inscription dans le territoire de la Péninsule. Conscients des enjeux relatifs à l’espace public, les élites locales et provinciales espagnoles, mais aussi l’État central, mettent en effet en place des dispositifs symboliques chargés d’enraciner l’idée nationale dans l’imaginaire populaire. Ces dispositifs spatiaux peuvent être matériels, à travers les monuments ou statues, aussi bien qu’immatériels, notamment par le biais de la nomenclature4. Ainsi, envisager la mémoire du passé impérial implique d’analyser la façon dont il a été inséré dans l’espace public. À cet égard, l’Exposition Ibéro-Américaine, qui fut organisée à Séville en 1929 et 1930, constitue un objet de premier ordre pour aborder cette question. La présente étude prétend ainsi interpréter cette exposition comme un terrain symbolique, dont les dispositifs et motifs créent un système sémantique qui révèle la place de l’Amérique récemment émancipée dans une Espagne n’ayant pas renoncé à sa vocation impériale. 2. Harrisson, Joseph et Hoyle, Alan (dir.), Spain’s 1898 crisis. Regenerationism, modernism, postcolonialism, Manchester, Manchester University Press, 2000, p. 105 et ss. 3. Gristwood, Alan, « Commemorating Empire in twentieth-century Seville », in Driver, Felix et Gilbert, David (dir.), Imperial Cities: Landscape, Display and Identity, Manchester, Manchester University Press, 2003, p. 155-173. 4. Nora, Pierre, « Entre Mémoire et Histoire. La problématique des lieux », in Nora, Pierre (dir.), Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1997 [1984-1992], t. 1, p. 23-43. 136 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 « Sanctuaires hispaniques » et tourisme culturel : l’investissement nationaliste du territoire espagnol Pour comprendre les enjeux politiques, diplomatiques mais aussi économiques de cet événement, il faut resituer l’exposition de Séville dans un mouvement plus large qui se dessine à l’époque. Celui-ci consiste à retrouver dans la géographie espagnole l’empreinte d’un prétendu caractère national avec lequel certains intellectuels cherchent à renouer. Cette redécouverte du territoire péninsulaire amène certains libéraux réformistes et une partie de la droite espagnole à explorer les traces du passé américain qui demeurent en Espagne, sorte de survivances d’une grandeur impériale révolue. L’inventaire de ces sites disséminés en Andalousie, en Estrémadure ou ailleurs, conduit à élaborer une géographie imaginaire dont les jalons sont alors baptisés « sanctuaires hispaniques », ou encore « Santuarios de la Raza5 ». Alors qu’émergent l’excursionnisme et le tourisme culturel en Espagne6, l’idée est aussi de faire connaître un réseau de sites érigés en « sanctuaires » séculiers susceptibles d’accueillir les visiteurs d’Espagne et du monde hispanique, transformés en pèlerins en quête de leurs racines historiques7. En 1911, le président du Conseil José Canalejas crée le Commissariat royal au Tourisme, censé promouvoir les voyages d’ordre culturel en Espagne8. Cela dit, l’efficacité de cette agence aura à pâtir du désintérêt de son président pour les enjeux commerciaux, ainsi que de l’assassinat du dirigeant libéral, en novembre 1912. L’institution sera reprise en main en 1928 quand, en prévision des deux grandes expositions internationales que l’Espagne va célébrer l’année suivante, à Barcelone et à Séville, le Directoire la remplace par le Patronato Nacional de Turismo (fig. 1)9. Progressivement, la politique de promotion du tourisme à laquelle s’associent nombre de notables provinciaux, et d’une façon décisive le régime dictatorial, sert à une réappropriation symbolique du territoire espagnol et de sa diversité culturelle, au profit d’une lecture univoque de l’histoire nationale et du dessein qu’on lui prête. Dans la reconnaissance de ce qui a valeur exemplaire ou touristique, est à l’œuvre un processus nationaliste manifeste. Tous ces sites, ruines et reliques tirés du passé fonctionnent comme des espaces nationalisés, des symboles nationaux, voire supranationaux si l’on intègre leur dimension panhispanique. Trujillo, Huelva, Cadix ou Séville, mais aussi des lieux de culte comme la cathédrale du Pilar, les monastères de Guadalupe et de la Rábida ou l’oratoire de San Felipe Neri, tous ces lieux font l’objet d’une sanctuarisation nationale et d’un investissement américaniste. Faute de projection atlantique fortement ancrée dans l’histoire moderne, la Catalogne est relativement absente de ces lieux de mémoire placés sous le sceau de l’épopée américaine. En revanche, par les relations qu’elle a par le passé entretenues avec l’Amérique, l’Andalousie constitue le berceau par excellence de cet imaginaire. Redécouverte au xixe siècle dans le cadre du folklorisme (costumbrismo) et érigée depuis 5. L’expression de « Santuarios de la Raza » apparaît dans le numéro spécial consacré au tourisme qui fut publié en 1913 par la revue madrilène Cultura Hispano-Americana sous le titre Pro Patria, dans lequel une rubrique porte le nom de « Los santuarios históricos de la Raza » (p. 25-48). 6. Robin, Claire Nicole, « Le tourisme », in Carlos Serrano et Serge Salaün (éd.), Temps de crise et « années folles ». Les années 20 en Espagne (1917-1930). Essai d’ histoire culturelle, Paris, Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 2002, p. 151154. 7. L’essai publié en 1913 par l’essayiste argentin Manuel Gálvez, El solar de la raza (Madrid, Editorial Saturnino Calleja S.A., 1920 [1913]), a un impact très fort en Espagne et marque toute une génération d’intellectuels espagnols, leur dévoilant la spiritualité que renferme la terre ibérique et la valeur que celle-ci représente pour l’œuvre de reconquête culturelle de l’Amérique. 8. Décret royal du 19 juin 1911, adopté dans la foulée du IVe congrès international du tourisme célébré à Lisbonne. 9. Décret royal du 25 avril 1928. 137 Iberic@l - Numéro 2 lors en paradigme de « l’âme espagnole10 », cette région est naturellement le cadre de référence de cette introspection en quête des marques de l’espagnolité qui ont été transmises outre-Atlantique. Figure 1. Affiche touristique publiée par le Patronato Nacional de Turismo11 À un moment où, à la faveur des premiers vols transatlantiques, semble alors revivre le mythe d’une reconquête – certes spirituelle – de l’Amérique émancipée, l’organisation de l’exposition ibéroaméricaine fait de Séville le symbole d’une Espagne impériale ressuscitée. Cet événement permet de réunir autour de la mère patrie la majorité des républiques latino-américaines – assemblée que d’aucuns interprètent comme les filles reconnaissantes regroupées autour de leur « génitrice ». C’est aussi l’occasion de mettre en scène dans l’espace urbain sévillan la mémoire du passé impérial, et de consacrer dans la pierre la vision surannée d’une Amérique espagnole réunie pour rendre un hommage filial à la matrice de la Raza hispánica. La capitale andalouse désignée comme la « Mecque des Américains » Les contemporains présentent la ville du Bétis comme une mémoire vivante de l’empire espagnol. Fondée selon la légende par Hercule lui-même, elle est censée abriter dans ses murs tout l’héritage de la colonisation américaine. Tandis que l’Andalousie est conçue comme le berceau presque exclusif de l’histoire coloniale américaine12, nombre d’intellectuels voient en Séville le cœur de l’espace impérial jadis 10. On songera aux lieux communs produits sur l’Andalousie à travers, notamment, les récits de voyageurs européens ou espagnols et une certaine littérature romantique : parmi eux, le mythe de Carmen est certainement le plus emblématique de l’« espagnolade » (la España de castañuelas) qui est alors construite. Sur ce point, voir en particulier « El nacimiento de Carmen », in Serrano, Carlos, El nacimiento de Carmen. Símbolos, mitos y nación, Madrid, Taurus, 1999, p. 21-54. 11. Exposición general española (1929), Archivo General de la Administración, Educación y Ciencia, fonds 001.003, liasse n°31/1026. 12. Voir par exemple Mario Méndez Bejarano, « Sevilla y América », in Revista de las Españas, Madrid, n°1, juin 1926, p. 27. 138 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 constitué. Tous soulignent le rôle politique, économique et religieux qu’elle a joué pendant les siècles de la colonisation. Comme le résume José Laguillo, directeur du principal journal local El Liberal, Séville rassemble tous les titres historiques qui témoignent de ce rôle13 : elle a abrité le Conseil des Indes, qui déterminait l’orientation de toute la politique coloniale ; siège de la Casa de Contratación, elle a obtenu le monopole du commerce avec les Indes, avant que Cadix n’hérite de ce privilège ; c’est là, enfin, que la Bibliothèque colombine fut fondée par Hernando Colón puis léguée à la cathédrale. Ce prestigieux passé constitue un héritage que reflètent de nombreux monuments que la vieille ville conserve encore : la Casa Lonja, la Casa de Contratación, le Palais royal, la cathédrale, la Tour de l’Or… À côté de ses monuments historiques, son fleuve, le Guadalquivir, garde aussi l’empreinte de ce passé. Mario Méndez Bejarano souligne ainsi que Magellan partit de là explorer l’Atlantique sud et que Hernán Cortés s’éteignit dans ce port, après avoir conquis pour l’Espagne l’empire mexicain14. S’inspirant d’une estampe réalisée par le peintre Daniel Vázquez Díaz (fig. 2), l’intellectuel péruvien Felipe Sassone voit dans le quartier de Triana, sur les rives du Guadalquivir, le berceau du projet impérial de conquête et de colonisation du Nouveau Monde15. Figure 2. Dessin du port de Triana à Séville (signé Daniel Vázquez Díaz)16 Un autre atout permet à la capitale andalouse d’exercer encore son attrait sur l’Amérique indépendante : c’est là que sont conservées les célèbres archives des Indes (Archivo General de Indias). Par leur intérêt scientifique et leur importance symbolique, ces archives focalisent l’attention de nombreux intellectuels, historiens et hommes politiques espagnols, qui voient en elles la mémoire vivante de l’empire. Dans l’esprit des élites espagnoles, l’importance symbolique et le pouvoir d’attraction qu’exercent ces 13. Laguillo, José, Memoria. La Exposición Ibero-Americana. Contribución a un futuro estudio del certamen, Sevilla, 1929, reproduit dans Braojos Garrido, Alfonso, « La exposición iberoamericana en el sentir de un periodista sevillano: José Laguillo », in Boletín de la Real Academia de la Historia, Madrid, n°184 (3), 1987, p. 507-519. 14. Méndez Bejarano, Mario, « Sevilla y América », in Revista de las Españas, Madrid, n°1, juin 1926, p. 29. 15. Sassone, Felipe, « Estampas ibéricas. La cuna de los descubridores y conquistadores del Nuevo Mundo », in ABC, Madrid, 13-X-1929, p. 7. 16. Vázquez Díaz, Daniel, « La cuna de los conquistadores », ABC, Madrid, 13-X-1929, p. 7 139 Iberic@l - Numéro 2 collections sont tels que le directeur de la Biblioteca Nacional, Francisco Rodríguez Marín, va jusqu’à surnommer ces fonds d’archives la « Mecque des Américains17 ». Entre les années 1910 et 1930, les gouvernements et régimes successifs expriment eux aussi la volonté de faire de Séville la capitale de l’hispano-américanisme, contre une Cadix trop connotée par le réformisme libéral. La ville accueille ainsi plusieurs assemblées à teneur américaniste, en particulier les trois congrès d’histoire et géographie hispano-américaines ou les deux congrès nationaux du commerce espagnol de l’outre-mer, tous organisés entre 1914 et 1930. Au cours des années 1920, Séville fait aussi l’objet d’un fort investissement symbolique, en particulier de la part de la dictature de Miguel Primo de Rivera. Promue capitale historique de l’Amérique, elle est le théâtre d’un grand nombre d’hommages américanistes et de manifestations patriotiques mises en scène par le pouvoir. Parmi elles, citons les cérémonies commémoratives de la Fiesta de la Raza qui y sont organisées annuellement à partir de l’officialisation du 12 octobre comme fête nationale, en 1918 : fait rare, l’infant don Carlos honore par trois fois Séville de sa présence, les 12 octobre 1922, 1924 et 1926. Les visites répétées des plus hautes autorités civiles et militaires de l’État, notamment des membres de la famille royale, traduisent l’engagement actif de la dictature et de la monarchie pour investir Séville d’une dimension proprement nationale. Élaborée dans le cadre du post-régénérationnisme cher au Directoire, cette politique vise à dynamiser l’économie de la ville, tout en lui reconnaissant une vocation internationale historique, ancrée dans le passé colonial. L’exposition ibéro-américaine de 1929 consacre cette dimension. L’Exposition Générale espagnole, un projet régénérationniste repris en main par la dictature de Miguel Primo de Rivera Conçu à la suite de la crise de 1898, le projet de célébrer en Espagne une grande exposition internationale se précise en 1910, quand le gouvernement de José Canalejas retient la candidature de la capitale andalouse, face à celles de Bilbao et de Madrid18. Entre décembre 1900 et mai 1929, date à laquelle l’exposition est finalement inaugurée19, la gestation du projet est lente et difficile, l’ouverture étant maintes fois reportée20. Le déclenchement de la Grande Guerre, en 1914, les graves problèmes de financement que rencontre la municipalité, les démissions en série au sein du comité organisateur, les nombreuses crises politiques entre les notables locaux et le pouvoir central, tout contribue à ralentir le projet. A ces péripéties, il faut ajouter l’agitation sociale qui touche de plein fouet Séville, en particulier dans les années 1918-1920, qualifiées de « Trienio Bolchevique », mais aussi les problèmes diplomatiques qui ne manquent pas de surgir, notamment avec le Portugal21. Pour remédier à ces difficultés à 17. José Marchena Colombo utilise une image analogue (« Jerusalén de la raza ») pour qualifier le monastère de la Rábida, à Palos. Voir: Marchena Colombo, José, « La Rábida », et Rodríguez Marín, Francisco « El Archivo General de Indias », in Pro Patria (numéro extraordinaire de la revue Cultura Hispano-Americana consacré au tourisme), Madrid, Establecimiento Tipográfico de El Liberal, 1913, p. 34 et 59. 18. L’historique de la gestation de l’exposition apparaît dans Lazúrtegui, José de, Memoria del Centro de la Unión IberoAmericana en Vizcaya, Bilbao, Centro de la Unión Ibero-Americana en Vizcaya, 1930, p. 386-391. 19. La cérémonie d’ouverture a lieu sur la place d’Espagne, en présence du roi, de toutes les autorités et d’un public de quelque 100.000 personnes. Toute la presse nationale se fait amplement l’écho de cette cérémonie. Voir, par exemple, « Inauguración de la Exposición iberoamericana de Sevilla », in Revista de las Españas, Madrid, n°33, mai 1929, p. 157-163. 20. Braojos Garrido, Alfonso, « La Exposición Iberoamericana de 1929. Sus orígenes: utopía y realidad en la Sevilla del siglo XX », in Actas de las VI Jornadas de Andalucía y América, Ed. Escuela de Estudios Hispano-Americanos, Sevilla, 1987, p. 10-41. 21. Le Portugal tarde à officialiser sa participation à l’exposition, ce qu’il ne fait qu’en 1926. En 1922, l’exposition hispanoaméricaine est rebaptisée « Exposition Ibéro-américaine » afin d’obtenir la participation des autorités portugaises. Le Brésil quant à lui annonce sa participation en 1925. 140 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 répétition, Miguel Primo de Rivera nomme en décembre 1925 un homme de confiance au poste de Commissaire royal de l’exposition : José Cruz Conde, alors gouverneur civil de Séville. La reprise en main gouvernementale, qui ne se fait pas sans tensions puisqu’elle contribue à déposséder la municipalité de l’organisation, permet néanmoins d’achever les préparatifs et d’inaugurer l’exposition de Séville le 9 mai 1929. La déclinaison sévillane fait partie d’une exposition générale espagnole qui comprend deux volets : l’exposition ibéro-américaine de Séville et l’exposition internationale de Barcelone (fig. 3). Dans l’organisation de l’événement, les deux capitales andalouse et catalane entrent donc en concurrence, chacune se voulant la vitrine du dynamisme de leur région et l’expression d’un idéal pour l’Espagne. L’exposition sévillane se concentre sur l’art, la culture et l’héritage historique22 ; celle de Barcelone, consacrée au progrès matériel, porte sur le commerce, l’industrie et les techniques dans une perspective plus utilitariste. Figure 3. Affiche annonçant l’Exposition Générale espagnole de Séville et de Barcelone23 Les grandes expositions sont alors à la mode. En dehors de celles qui affichent une vocation universelle, d’autres visent à célébrer les liens entre une métropole et ses colonies : la Grande-Bretagne a déjà organisé en 1924 sa propre exposition impériale – la British Empire Exhibition de Londres –, tandis que Paris s’apprête à recevoir, en 1931, une grande exposition coloniale24. Pourtant, on note dans le cas de Séville une forme d’asynchronie par rapport aux autres exhibitions coloniales, réalisées elles dans 22. « Conceptos y características de la Exposición Ibero-Americana de Sevilla », in La Nación, Buenos Aires, reproduit par Lazúrtegui, José de, Memoria del Centro..., op. cit., p. 404-408. 23. Voir Exposición general española (1929), Archivo General de la Administración, Educación y Ciencia, fonds 001.003, liasse n°31/1026. 24. Lisbonne fera de même en 1934: Exposição Colonial Portuguesa, préparée depuis 1931 par l’Estado Novo. 141 Iberic@l - Numéro 2 le cadre d’empires au faîte de leur puissance : en l’occurrence, l’Espagne, si elle demeure présente en Afrique, a bel et bien perdu les dernières perles de son empire d’outre-mer. Face à ce reflux, les autorités espagnoles veulent accueillir un événement mondial prouvant que l’héritage colonial espagnol est lui aussi synonyme de progrès. Signe de cette ambition, l’Espagne invite toutes ses anciennes possessions devenues indépendantes, mais aussi les États-Unis. Avec le Portugal, quatorze nations latino-américaines s’associent à l’exposition, parmi lesquelles onze construisent leur propre pavillon25. On se concentrera ici26 sur la mise en scène commémorative de l’espace urbain sévillan et sur les enjeux de cette scénographie, dont les traces sont d’ailleurs encore bien visibles dans la Séville actuelle. Selon ses concepteurs, l’exposition a pour ambition de faire de Séville un véritable « sanctuaire de la Raza hispana », susceptible d’attirer les visiteurs du monde hispanophone en leur présentant une image rassemblée et idéalisée de leur communauté. Le projet vise aussi à offrir une vitrine internationale de l’Espagne et des nations auxquelles elle considère avoir donné jour. Sa fonction est ainsi de commémorer l’empire par delà sa disparition politique, tout en présentant l’Espagne – l’ancienne métropole – sous les traits du progrès et de la modernité27. Par les dispositifs symboliques mis en œuvre, l’espace urbain sévillan remodelé pour l’exposition de 1929 participe de la construction d’une identité nationale et d’une communauté « raciale » imaginaires. On concevra donc ces lieux comme des espaces culturellement chargés ou, selon la terminologie de Kay Anderson et Fay Gale, comme des « champs constitutifs d’une inscription identitaire28 ». La configuration de l’espace urbain consacré à l’Exposition Ibéro-Américaine, un processus de réappropriation sélective de la mémoire impériale À travers la reconfiguration de l’espace urbain consacré à l’exposition, un processus de réappropriation sélective de la mémoire impériale est opéré à Séville29. Toute exposition consiste dans son principe en une mise en scène : en l’occurrence, il s’agit de représenter l’Ancien et le Nouveau Mondes dans le contexte post-impérial. En 1929, la représentation archétypique de la relation hispanoaméricaine repose sur la communion des filles émancipées américaines autour de la mère patrie ibérique. Un schéma que l’on retrouve dans l’affiche officielle de l’exposition, dessinée par le peintre sévillan Gustavo Bacarisas (fig. 4) : une matrone figurant l’Hispanie apparaît au centre de la place d’Espagne, entourée d’allégories féminines des républiques avec leurs drapeaux respectifs30. La disposition spatiale de 25. Graciani García, Amparo, La participacion internacional y colonial en la Exposicion Iberoamericana de Sevilla 1929, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2011. 26. L’exposition de Séville a déjà fait l’objet de plusieurs études qui en retracent l’historique, les réalisations architecturales, les modalités commémoratives ainsi que les résultats. Outre l’ouvrage de Rodríguez Bernal, Eduardo, Historia de la Exposición Ibero-Americana de Sevilla de 1929, Sevilla. Ayuntamiento de Sevilla, 1994, on citera Lemus López, Encarnación, La exposición ibero-americana: la Dictadura de Primo de Rivera (1923-1929), Sevilla, Universidad de Sevilla, 1986, Braojos Garrido, Alfonso, Alfonso Alfonso XIII y la Exposición Iberoamericana de Sevilla de 1929, Sevilla, Universidad de Sevilla, 1992, et Assassin, Sylvie, Séville. L’exposition ibéro-américaine. 1929-1930, Paris, Norma, 1992. 27. C’est bien ce que reflètent les deux parties (consacrées l’une à l’Espagne, l’autre au Portugal et à l’Amérique latine) du catalogue que publie la Unión Ibero Americana afin de le distribuer aux invités de l’exposition : Unión Ibero-Americana, Libro de Oro Ibero-americano. Catálogo oficial y monumental de la exposición de Sevilla, Santander, Unión Ibero-Americana/ Aldus, 1930. 28. Anderson, Kale et Gale, Fay (dir.), Inventing Places : Studies in Cultural Geography, Melbourne, Longman-Cheshire, 1992, p. 3. 29. Voir Gristwood, Alan, « Commemorating Empire in twentieth-century Seville », art.cit., p. 155 et ss. 30. La stratégie de communication mise en œuvre pour l’exposition de Séville à travers l’iconographie et les moyens graphiques est étudiée dans une récente thèse inédite : Martín Emparán, Ainhoa, El diseño gráfico en la exposición ibero americana de Sevilla. 1929, Thèse doctorale, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Málaga, 2008, 2nde partie p. 237-730. 142 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 l’exposition confirme ce schéma familial. Au-dessus de l’entrée principale sont gravés, tels une inscription propitiatoire, les deux premiers vers du poème « Salutación del optimista » du poète nicaraguayen Rubén Darío : « Ínclitas razas ubérrimas, sangre de Hispania fecunda, / espíritus fraternos, luminosas almas, ¡salve! ». L’enceinte est ainsi placée sous l’égide d’un emblème continental, de la langue espagnole et de la célébration de la fraternité raciale. Figure 4. Affiche de l’Exposition Ibéro-américaine (signée Gustavo Bacarisas)31 Tout l’espace de l’exposition est organisé autour du passé colonial et constellé de références historiques (fig. 5). Passée la porte d’entrée, l’enceinte s’ouvre sur l’avenue Isabelle la Catholique qui mène tout droit à la place d’Espagne. Le périmètre comprend deux grandes sections séparées par l’« Avenue de la Race » et le parc d’attractions : au nord, les places d’Espagne et d’Amérique et le parc María Luisa ; au sud, la place des Régions, encore nommée place des Conquistadors. Un petit train surnommé Liliput permet aux visiteurs de circuler dans l’enceinte. Là encore, les clins d’œil historiques abondent : les trois locomotives portent les noms de Pinta, Niña et Santa María, en souvenir des fameuses caravelles. L’une des gares édifiées a été baptisée Estación de América, comme pour renforcer le symbole constitué par le train de la découverte. La nomenclature des allées, places et avenues traduit, elle aussi, la valorisation du passé impérial entreprise à travers l’espace : outre les noms commémorant la Reconquête (Covadonga, Don Pelayo, Isabelle la Catholique), plusieurs artères rendent hommage à l’histoire de la découverte et de la colonisation de l’Amérique : Núñez de Balboa, Sebastián Elcano, Hernán Cortés, Almagro, Pizarro, Pinzón, Magellan et Gómara. 31. Voir Exposición general española (1929), Archivo General de la Administración, Educación y Ciencia, fonds 001.003, liasse n°31/1026. 143 Iberic@l - Numéro 2 Figure 5. Le plan de l’Exposition Ibéro-américaine de 192932 La dominante historiciste de l’ensemble émane aussi des choix architecturaux. L’exposition est projetée dans le but d’édifier une « Nouvelle Séville » et contribue à en moderniser les infrastructures, preuve en est le nouveau quartier d’Heliopolis sur les rives du Guadalquivir, destiné à héberger les visiteurs. Pourtant, la centaine de pavillons officiels et privés et les monuments construits pour l’exposition obéissent par leur style à un net historicisme architectural, choix qui traduit une forme de nostalgie pour les splendeurs du passé impérial. Aníbal González, architecte en chef de l’exposition depuis 1911, est un théoricien sévillan du régionalisme influencé par le traditionalisme de l’historien de l’art Vicente Lampérez. Le projet qu’il conçoit en 1912 pour l’exposition consiste en un prolongement du parc María Luisa qui doit réunir les pavillons provinciaux et ceux des républiques invitées, à travers des petites places ou rotondes décorées par des monuments commémoratifs. L’agencement et la configuration de ces différents espaces illustrent la lecture complexe du passé impérial et de la réalité post-coloniale faite de part et d’autre de l’Atlantique. La place d’Espagne, signée Aníbal González, est très certainement le monument le plus emblématique de l’exposition. Construite entre 1914 et 1928, elle consiste en un grand hémicycle de 170 mètres de diamètre, flanqué de deux tours de 80 mètres de hauteur, répliques de la Giralda. Quatre ponts consacrés aux royaumes de Castille, d’Aragon, de Navarre et de León relient la place centrale au corps du monument et symbolisent l’unité politique de l’Espagne. La base du monument est constituée par des bancs et quarante-huit céramiques portant les noms de toutes les provinces espagnoles. Parmi les scènes représentées, dominent les épisodes historiques liés à la Reconquête, à la Découverte et à la guerre d’Indépendance. Comme l’a relevé Anthony Gristwood, la place ainsi décorée constitue une vision panoptique de l’histoire et du territoire espagnols. Sur un plan symbolique, elle figure la constitution de l’unité espagnole sous l’égide des Rois Catholiques et de l’expansion impériale. À une époque où le modèle national défendu par l’État et par les élites espagnolistes est gravement remis en cause par de puissantes forces centrifuges à caractère régional, social ou idéologique, on comprend l’importance du symbole représenté par cette place d’Espagne mettant en scène l’harmonieuse et séculaire communion de l’espace national. L’industriel biscayen Julio de Lazúrtegui voit également dans cette courbe monumentale le 32. Voir Exposición general española (1929), Archivo General de la Administración, Educación y Ciencia, fonds 001.003, liasse n°31/1026. 144 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 symbole d’une éternelle étreinte devant réunir à jamais le continent américain et l’Espagne, qualifiée de « Mère et Éducatrice de Peuples33 ». Son lyrisme est sans doute inspiré par la fonction dévolue au bâtiment dominant la place. Celui-ci accueille dans l’un de ses bras une grande exposition historique sur la colonisation espagnole en Amérique. Les différents thèmes qui la composent34 reflètent la volonté déclarée des organisateurs de faire de l’exposition ibéro-américaine une œuvre de révision historique réhabilitant l’histoire coloniale espagnole. C’est du reste la même tonalité apologétique qui domine les débats du troisième congrès d’histoire et géographie hispano-américaines, organisé avec d’autres congrès à Séville, en mai 1930, dans le cadre de l’exposition35. De l’autre côté du parc María Luisa se trouve la place de l’Amérique, à laquelle on accède par les avenues Hernán Cortés, Almagro, Pizarro et Magellan, comme s’il fallait suivre la trace des conquistadors pour s’y rendre. Ce projet, achevé par Aníbal González en 1919, comprend des jardins et trois monuments d’architecture nettement historiciste : le palais des Arts antiques (de style mudéjar), le palais des Beaux-Arts (de style plateresque) et le Pavillon royal (de style gothique). Il est très significatif de consacrer à la « Place de l’Amérique » les styles espagnols les plus castizos et non des styles américains, comme on aurait pu s’y attendre : ce choix traduit bien l’une des principales orientations de l’exposition, où l’Amérique est surtout appréhendée à travers le prisme de la colonisation et de l’empreinte laissée par l’Espagne, et non dans sa spécificité contemporaine. Les jardins qui composent le centre de la place sont plantés de seize statues de Victoires ailées se dressant sur des colonnes (fig. 6). Leur présence symbolise tout autant les gloires passées de la conquête américaine que l’image d’un continent riche héritier de la civilisation hispanique. En quittant le secteur nord, on accède en empruntant l’avenue de la Raza à l’esplanade des régions, rebaptisée « Glorieta de los Conquistadores36 ». Sa conception est plus tardive et remonte à 1925. Elle ne prend un caractère résolument historique qu’en 1927, lorsque le journal sévillan El Liberal propose que les plus illustres figures de la conquête et de la colonisation américaines soient ciselées dans la pierre et installées dans l’enceinte de l’exposition en hommage aux glorieux ancêtres37. Conçue par Aníbal González, la place est bordée par seize pavillons dévolus aux régions espagnoles et par trois autres bâtiments accueillant les deux galeries commerciales et le pavillon du tourisme. Au centre, sont disposées les sept statues consacrées aux découvreurs et conquistadors, toutes financées par souscription publique auprès d’institutions ou de notables : hormis celles représentant les explorateurs Elcano et Núñez de Balboa, c’est un conquistador, Hernán Cortés, et quatre « grands hommes » liés à la Découverte qui sont ainsi statufiés : Rodrigo de Triana, Martín Alonso Pinzón, Christophe Colomb et Isabelle la Catholique. La tonalité générale de l’ensemble est clairement apologétique. Dans la lignée d’une historiographie alors dominée par de forts courants révisionnistes – tendance marquée par les nombreuses rééditions espagnoles du livre de Charles Fletcher Lummis The Spanish Pionneers (1893) –, le choix de ces figures s’inscrit dans un mouvement global de défense de l’œuvre espagnole en Amérique par l’exaltation des découvreurs et des conquistadors. L’exposition ibéro-américaine, qui attire des visiteurs en provenance du monde entier et tout particulièrement de l’Amérique latine, constitue le cadre idéal pour redorer le blason espagnol et délivrer une version de l’histoire coloniale espagnole purgée des accusations répandues par la « légende noire ». C’est bien là la fonction dévolue à la statue du Découvreur, dont l’expression du 33. Lazúrtegui, José de, Memoria del Centro..., op. cit., p. 388. 34. Les thèmes sont les suivants : la découverte ; la colonisation ; les progrès de la culture ; les principes du commerce libre ; la Mère Patrie et les nations américaines ; l’imprimerie ; l’évangélisation. 35. « El III Congreso Internacional de Historia y Geografía Hispano-Americanas, celebrado en Mayo de 1930 », in Lazúrtegui, Julio de, Memoria del Centro..., op. cit., p. 426-432. 36. Id., p. 167. 37. « El ilustre escultor Coullaut Valera en Sevilla. Una iniciativa de “El Liberal” en marcha. La estatua del descubridor de América en la Exposición », in El Liberal, Sevilla, 13-XI-1928, p. 1. 145 Iberic@l - Numéro 2 visage révèle un caractère énergique, ferme et résolu, éloigné des représentations traditionnelles issues des courants romantiques (fig. 7). La bannière royale de la Castille que le marin génois brandit complète ce tableau composé à la gloire de l’Espagne découvreuse. Figure 6. Victoire ailée située sur la place de l’Amérique38 Figure 7. Statue de Christophe Colomb située sur la place des Conquistadors39 Ce premier ensemble consacré aux figures du passé est complété par un monument allégorique censé représenter la perpétuation de cette tradition : au milieu de la place se dresse la fontaine de la Raza, ou fontaine des Conquistadors. Réalisée en 1928 par José Granados de la Vega, elle se compose d’une statue de l’Hispanie de quatre mètres de hauteur, encadrée par deux autres allégories symbolisant le fleuve Guadalquivir et un fleuve américain avec leurs attributs respectifs40. Le socle central représente la proue d’un bateau, en référence à l’épopée américaine, et donne sur un bassin. Enfin, deux figures de proue situées sur les socles latéraux constituent les jets d’eau. La composition du monument reproduit en quelque sorte le schéma d’une famille « raciale » réunie autour de la figure féminine de l’Hispanie, représentation maternelle de l’Espagne. Comme sur la fontaine de la langue castillane édifiée sur la partie 38. Statue réalisée par Manuel Delgado Brackembury, reproduite dans Blázquez Sánchez, Fausto, La escultura sevillana en la época de la Exposición Ibero-Americana de 1929. 1900-1930, Ávila, Diario de Ávila, 1989, p. 199. 39. Ibid. 40. La statue baptisée « Río americano » est une figure masculine allongée sur le sol avec, à ses pieds, un crocodile et une représentation stylisée de l’eau en mouvement. 146 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 postérieure du monument à Cervantès de Madrid, la Raza est symbolisée par un fluide – métaphore du flux de civilisation – qui émane de la langue espagnole ou d’une Hispanie plus abstraite. Érigée sur son promontoire, l’Espagne occupe la place centrale et paraît diriger les destins de la Raza hispana tout entière. Ainsi configurée, l’esplanade des régions espagnoles est organisée autour de l’épopée coloniale américaine, comme pour symboliser le rôle que l’entreprise impériale a rempli dans la formation d’un projet national commun à l’Espagne. Ultime simplification sémantique, ce lieu prend dans les usages le nom de place des Conquistadors, alors que le groupe sculptural qui le compose intègre un seul conquistador, Hernán Cortés. Sa statue, financée par le Círculo Cultural del Ejército y la Armada, incarne à elle seule l’Espagne guerrière et conquérante que ses faits d’arme ont unifiée, depuis Pélage jusqu’à la reine Isabelle et depuis l’Estrémadure natale de Cortés jusqu’aux confins du Mexique. La représentation de l’espace d’outre-mer à Séville et ses implications identitaires L’exposition n’est cependant pas seulement célébrée sur le mode du passé colonial. Son agencement spatial introduit une autre dimension non moins importante : la confrontation de cultures différentes reliées par l’histoire et dont Séville représente le trait d’union. D’un côté, celle de l’Espagne historique et de ses traditions régionales et, de l’autre, celles des jeunes républiques qui furent ses colonies. Les choix faits pour l’exposition illustrent les tensions qui existent entre la définition de l’« espagnolité » et les problématiques de la pureté ou du métissage que pose la représentation des anciennes colonies d’Amérique et des nouvelles de l’Afrique. Dans un contexte marqué par l’essor des nationalismes basque, catalan, galicien et même andalou, mais aussi par la résurgence outre-Atlantique des théories indigénistes, l’architecture de l’exposition sévillane doit articuler les différents styles nationaux tout en intégrant l’héritage mauresque ainsi que, dans certains pavillons américains, les racines précolombiennes. À l’interconnexion entre espaces régionaux, nationaux et internationaux, les monuments illustrent ces conflits d’identité. La configuration du Pueblo Español, réalisé au même moment pour l’exposition de Barcelone, traduit la vision folklorique que les autorités attribuent à la diversité culturelle péninsulaire. À Séville, la lecture que chaque nation ou région entend faire de son passé détermine des choix esthétiques : les bâtiments espagnols régionaux et nationaux tendent à exprimer le génie de la mère patrie, tandis que ceux édifiés par les républiques illustrent la manière dont elles ont assimilé et transformé l’héritage commun en accord avec le caractère de leurs peuples respectifs. Si l’on considère l’exposition comme un « espace épistémologique » où l’exotisme est inséré dans la 41 ville , on envisagera donc pour finir la représentation de l’espace d’outre-mer : est-elle une reproduction anachronique de l’ordre colonial ou reflète-t-elle la réalité post-impériale ? À travers leurs pavillons respectifs, les quatorze nations latino-américaines participantes42 procèdent à une autoreprésentation qui oscille entre l’indigénisme (valorisant l’héritage précolombien) et l’hispanisme (centré sur le passé colonial), mais qui, le plus souvent, privilégie une combinaison hybride des deux traditions. C’est là une manière de manifester la continuité entre les deux influences. Toutes les nations hispaniques se retrouvent pour rendre hommage d’une façon ou d’une autre à la mère patrie espagnole, mais à travers les influences architecturales privilégiées, elles expriment 41. Sur la question de la représentation de l’exotisme et du débat entre pureté et hybridité, voir les perspectives avancées par Gristwood, Alan, « Commemorating Empire in twentieth-century Seville », art. cit., p. 162-165. 42. En raison de la Guerre du Chaco, deux républiques latino-américaines, le Paraguay et la Bolivie, déclinent l’invitation à construire un pavillon permanent. Par ailleurs, cinq d’entre elles, le Panama, le Nicaragua, le Honduras, le Salvador et le Costa Rica, se contentent de monter des stands dans les Galeries Commerciales étrangères. 147 Iberic@l - Numéro 2 selon des modes fort différents la place de cet héritage dans leur propre culture nationale. Ainsi, le pavillon argentin réalisé par le directeur général des Beaux-Arts Martín Segundo Noel se veut le reflet d’une Argentine revendiquant avec orgueil son ascendance hispanique (fig. 8). Reproduction d’une riche demeure seigneuriale de style baroque, il constitue une « sorte d’hommage cordial » destiné à prouver à l’Espagne l’affection de la république, si l’on en juge par les déclarations de l’envoyé spécial du gouvernement argentin, l’écrivain hispanophile Enrique Larreta43: « ¿Cómo no había de figurar [la República Argentina] en esta grandiosa romería de las naciones de América; y tan luego en Sevilla, (...) en la más Americana, en la más Indiana de vuestras Ciudades? ». Celui-ci n’ajoute-t-il pas, à l’attention du roi Alphonse XIII et du général Primo de Rivera qui assistent à la cérémonie, que l’Argentine a été la première des républiques latines à officialiser sa participation à l’exposition (ce qu’elle fait par décret du 25 juin 1925), s’associant de la sorte au « pèlerinage grandiose des nations américaines ». Figure 8. Façade du pavillon de l’Argentine donnant sur le Guadalquivir44 Face à cette ardente profession de foi hispaniste dans une république revendiquant haut et fort ses racines européennes, le monument érigé par le Mexique reflète une toute autre interprétation du nationalisme architectural à l’œuvre dans ces édifications (fig. 9). Polyèdre étoilé fortement inspiré de la civilisation maya-toltèque du Yucatán, le pavillon dessiné par Manuel Amábilis se présente comme une synthèse de l’art national, reflétant aussi fidèlement que possible le génie de la « race mexicaine » légué par les ancêtres précolombiens. D’après l’architecte, la philosophie qui a guidé son travail en fait un exemple d’architecture indigéniste qui célèbre les racines autochtones, que l’auteur baptise « el Espíritu Mexicano », et qui sont censées refléter l’esprit de la nation tout entière45. Défendant le principe d’une continuité de l’art mexicain depuis les origines toltèques, mayas et aztèques jusqu’à l’époque coloniale et la dictature de Juárez – où elles ont subsisté de façon silencieuse, prétend-il –, Amábilis souligne la récupération d’une authentique identité populaire qu’a permise la Révolution. Directement inspiré des « arts archaïques », comme on les appelle alors, le pavillon mexicain intègre des formes géométriques et des motifs emblématiques du Mexique aztèque, comme le grand serpent Quetzalcóatl qui apparaît sur 43. Reproduit dans Lazúrtegui, José de, Memoria del Centro..., op. cit., p. 391-397. 44. Tiré de Assassin, Sylvie, Séville. L’Exposition ibéro-américaine. 1929-1930, Paris, Norma, 1992, p. 156. 45. Amábilis, Manuel, El pabellón de México en la Exposición Ibero-Americana de Sevilla, México, Talleres gráficos de La Nación, 1929, p. 23. 148 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 une frise au dessus de l’entrée principale, accompagné de la légende constituant le slogan de l’université nationale de Mexico : « Por Mi Raza Hablará El Espíritu ». Figure 9. Façade principale du pavillon du Mexique 46 Pourtant, l’intention du monument n’est pas anti-espagnole. Preuve en est l’épigraphe gravé au dessus d’une porte intérieure située à l’entrée du pavillon : « Madre España: Porque en mis campos encendiste el sol de tu cultura y en mi alma la lámpara devocional de tu espíritu, ahora mis campos y mi corazón han florecido ». Le bâtiment intègre dans ses salles de multiples motifs décoratifs qui rendent hommage à l’Espagne de la colonie : nombre de linteaux opposent deux effigies, l’une consacrée à un personnage indien, l’autre à une figure européenne, y compris lorsqu’il s’agit de soldats du xvie siècle. Il semble donc que le monument ambitionne plutôt la conjonction, certes largement favorable au premier élément, d’une fierté proprement nationale et d’une certaine dévotion hispanique. En définitive, on dira que l’édifice mexicain entend, avant tout, faire œuvre nationaliste en combinant les éléments autochtones, quelques discrètes références à la présence espagnole et les sujets directement inspirés de l’œuvre sociale et populaire revendiquée par la Révolution. Hispano-américanisme et imaginaires nationaux, forces et limites des espaces et dispositifs symboliques La question des représentations identitaires complexes que manifestent les choix architecturaux et ornementaux intervenant dans la construction des pavillons constitue un des intérêts majeurs de la Séville de l’exposition. Elle reflète les multiples intrications qu’implique la célébration conjointe d’un événement international qui revendique ouvertement sa dimension familiale panhispanique, mais qui se veut aussi une vitrine de l’Espagne contemporaine. Fortement marquée par l’empreinte centralisatrice, 46. Id., p. 164. 149 Iberic@l - Numéro 2 autoritaire et conservatrice de la dictature, elle peine à donner l’image d’un pays moderne réunissant harmonieusement les différents peuples qui le composent. Par sa dimension internationale, l’exposition reflète aussi le jeu d’identités emboîtées héritées de la période coloniale et qui, un siècle après les premières émancipations, peut prendre des formes différentes selon l’évolution sociale, culturelle et politique des pays concernés. Entre revendication d’un héritage pur – qu’il soit d’ailleurs précolombien ou hispanique – et recherche d’une solution de compromis dans l’avènement d’un hypothétique « art national », les pavillons latino-américains reflètent la relation complexe que les anciennes colonies entretiennent avec l’ex-puissance impériale. Considérée tantôt comme la mère patrie et tantôt comme une marâtre, l’Espagne des années vingt peine à trouver dans le cadre de l’exposition une expression sereine du dialogue culturel hispano-américain. La configuration même de l’enceinte, avec ses multiples références historiques renvoyant aux « épopées » des siècles glorieux du passé national – la Reconquête péninsulaire et la Conquête américaine –, est le signe d’une Espagne nostalgique bercée par le rêve impérial et par les chimères d’une construction nationale sans nuance. La fermeture de l’exposition, qui intervient dans un contexte de morosité internationale et de grave crise politique intérieure, laisse d’ailleurs la place à une certaine insatisfaction. Dans un contexte de dépression économique et de fragilisation du régime monarchique, marquée par la fronde militaire de 1929 et par la démission du général Primo de Rivera le 29 janvier 1930, les quelque deux millions de visiteurs que l’exposition de Séville comptabilise lorsqu’elle ferme ses portes, le 21 juin, ne sont guère motif à réjouissances. L’événement laisse une dette monumentale à la ville de Séville ainsi que son flot de polémiques, qui n’ont pas tari jusqu’à une époque récente. Il reste que l’exposition, préparée avec ténacité pendant près de vingt ans, a fait de la capitale andalouse une authentique « pièce de musée de l’espagnolité » et une mémoire vivante de l’empire. Jadis consacrée sanctuaire national et sanctuaire de la Raza, Séville représente depuis lors la survivance de l’Espagne atlantique, statut récemment confirmé par l’organisation dans ses murs de l’exposition universelle de 1992. 150 L’Exposition Ibéro-Américaine de Séville de 1929 Bibliographie Amábilis, Manuel, El pabellón de México en la Exposición Ibero-Americana de Sevilla, México, Talleres gráficos de La Nación, 1929. Anderson, Kale et Gale, Fay (dir.), Inventing Places : Studies in Cultural Geography, Melbourne, Longman-Cheshire, 1992. Assassin, Sylvie, Séville. L’exposition ibéro-américaine. 1929-1930, Paris, Norma, 1992. Blázquez Sánchez, Fausto, La escultura sevillana en la época de la Exposición Ibero-Americana de 1929. 1900-1930, Ávila, Diario de Ávila, 1989. Braojos Garrido, Alfonso, Alfonso XIII y la Exposición Iberoamericana de Sevilla de 1929, Sevilla, Universidad de Sevilla, 1992. ---, « La exposición iberoamericana en el sentir de un periodista sevillano: José Laguillo », in Boletín de la Real Academia de la Historia, Madrid, n°184 (3), 1987, p. 507-519. ---, « La Exposición Iberoamericana de 1929. Sus orígenes: utopía y realidad en la Sevilla del siglo XX », in Actas de las VI Jornadas de Andalucía y América, Ed. Escuela de Estudios HispanoAmericanos, Sevilla, 1987, p. 10-41. Gálvez, Manuel, El solar de la raza, Madrid, Editorial Saturnino Calleja S.A., 1920 [1913]. Graciani García, Amparo, La participacion internacional y colonial en la Exposicion Iberoamericana de Sevilla 1929, Sevilla, Universidad de Sevilla, 2011. Gristwood, Anthony, « Commemorating Empire in twentieth-century Seville », in Felix Driver et David Gilbert (dir.), Imperial Cities: Landscape, Display and Identity, Manchester, Manchester University Press, 2003, p. 155-173. Harrisson, Joseph et Hoyle, Alan (dir.), Spain’s 1898 crisis. Regenerationism, modernism, postcolonialism, Manchester, Manchester University Press, 2000. Lazúrtegui, José de, Memoria del Centro de la Unión Ibero-Americana en Vizcaya, Bilbao, Centro de la Unión Ibero-Americana en Vizcaya, 1930. Lemus López, Encarnación, La exposición ibero-americana: la Dictadura de Primo de Rivera (19231929), Sevilla, Universidad de Sevilla, 1986. Martín Emparán, Ainhoa, El diseño gráfico en la exposición ibero americana de Sevilla. 1929, Thèse doctorale, Servicio de Publicaciones de la Universidad de Málaga, 2008. Nora, Pierre (dir.), Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1997 [1984-1992], 3 vols. Robin, Claire Nicole, « Le tourisme », in Carlos Serrano et Serge Salaün (éd.), Temps de crise et « années folles ». Les années 20 en Espagne (1917-1930). Essai d’ histoire culturelle, Paris, Presses de l’Université de Paris-Sorbonne, 2002, p. 151-154. Rodríguez Bernal, Eduardo, Historia de la Exposición Ibero-Americana de Sevilla de 1929, Sevilla. Ayuntamiento de Sevilla, 1994. Serrano, Carlos, El nacimiento de Carmen. Símbolos, mitos y nación, Madrid, Taurus, 1999. Unión Ibero-Americana, Libro de Oro Ibero-americano. Catálogo oficial y monumental de la exposición de Sevilla [1930]. 151 Iberic@l - Numéro 2 152 Documents - III Documents 153 Iberic@l - Numéro 2 154 Ariadna Pujol Ariadna Pujol : teoría y práctica del documental 19-20 enero 2012 Colegio de España Encuentro en el marco del seminario interuniversitario sobre Artes Visuales. Véronique Pugibet Sesión organizada por Françoise Heitz (CIRLEP, université Reims), Nancy Berthier (AV, CRIMIC, Paris-Sorbonne) y Monica Guell (SEC, CRIMIC, Paris-Sorbonne), junto con el Centro de Estudios Catalanes de Paris-Sorbonne y el Colegio de España. Conversación con la directora, Ariadna Pujol después de ser presentada y luego de la proyección de Aguaviva (19 de enero 2012), Colegio de España. Ariadna Pujol: En este trabajo me interesaba mostrar emociones que fueran reveladoras y que recogieran de una buena forma el abanico de emociones que estaban atravesando las dos comunidades: la comunidad de los locales y los inmigrantes. En este caso el reto fue un trabajo de campo muy largo, fue un trabajo previo de año y medio. Antes de empezar a rodar iba viajando al pueblo cada mes para impactarme un poco de la atmosfera del lugar, del pueblo e ir conociendo a los personajes potenciales y a partir de ahí establecer una relación con ellos, un vínculo personal para que después fuera más factible el hecho de poder aterrizar ahí con un equipo de filmación, que era reducido. Pero claro evidentemente puede ser un poco aparatoso, la cámara, el equipo de sonido, etc. SALA: ¿Cuántas horas rodaste para llegar a esta muy bella obra? AP: Pues bastante, de material bruto teníamos 120 horas. Fue un rodaje de un año fragmentado a través de unas semanas y días y entonces la verdad es que había bastante material. S: Pero ¿de qué demonios vive la gente de este pueblo? Ahora perdona ¿físicamente dónde queda? ¿ Entre Tarragona y…? AP: Está a 20 kilómetros de Calanda y a 40 de Alcañiz. S: Más bien en Teruel. AP: Sí, es Teruel. Esta es una buena pregunta porque es una zona con un nivel económico bastante deprimida y hay poco trabajo. Hay bastantes granjas de cerdos, de ganadería y tal. Agricultura poca, pero están los famosos melocotones de Calanda pues en toda la zona a nivel agrícola pues eso estira un poco a partir de ahí; luego bueno pues el sector servicios, tema bares, pequeños restaurantes y tal. Pero realmente es una zona… es complicado encontrar trabajo. Muchos inmigrantes trabajaban, digamos los maridos de estas mujeres que se quedan en casa, de camioneros y no sé qué había, diferentes tipos de trabajos bastante precarios pero bueno S: ¿Cerdos y melocotones?, ¡Yo no los vi¡ Vi ovejas y cerezas, y conejos también. AP: Sí, exacto. Bueno había una granja de conejos pero estaba en un estado bastante precario también y al cabo de unos meses de grabar ahí la cerraron. Entonces hay muy poco trabajo realmente en esta zona. S: No muestras mucho cómo se organizó esta inmigración porque se entiende más o menos que la gente fue contratada por el Ayuntamiento, un Plan del pueblo. AP: Más que contratada, lo que realizó el alcalde del pueblo fue una llamada. Las familias que 155 Iberic@l - Numéro 2 estuviesen dispuestas a instalarse ahí. Esta llamada implicaba facilidades a nivel de alojamiento, en realidad ahí la vivienda es baratísima (puedes tener una casa entera por 200 € al mes) y en principio facilitaba también trabajo para el cabeza de familia. Es un plan de repoblación que fue muy polémico en su momento cuando lo lanzó el alcalde. Cuando decidí abordar el tema, llegamos incluso a grabar una única entrevista, que fue con el alcalde precisamente. Y era una entrevista bastante suculenta porque era un personaje bastante controvertido y polémico, pero al final valoramos que no valía la pena dar voz, alimentar más los entresijos de todo este plan de repoblación, sino que lo que valía la pena era dar voz precisamente a la comunidad que de alguna manera se vio directamente implicada en un plan de repoblación que ni tampoco se sometió a ninguna votación, sino que simplemente los vecinos se encontraron con esta situación de una especie de convivencia forzada con unos individuos que les eran absolutamente ajenos a nivel identidario. Entonces ahí efectivamente la película no entra en cómo se trabó este plan de repoblación, sus entresijos y todo. Françoise Heitz: Quizá también porque los medios de comunicación precisamente ya lo habían desarrollado. AP: Sí efectivamente. FH: Tú hiciste otra cosa. AP: Sí en efecto, de hecho cuando comencé el trabajo de campo, ya habían pasado muchos periodistas por el pueblo, la gente estaba muy cansada de la cobertura mediática. Entonces de alguna forma esta saturación hizo que al principio me fuera un poco difícil atravesar el primer muro. Después tuve que ganar la confianza de la gente de ahí y al principio cuando iba sola los primeros meses, me decían “la periodista” y les respondía “no, yo no soy periodista”. Entonces intentaba explicar que mi trabajo iba por otra dirección. Pero fue a raíz del vínculo personal que establecí con ellos, lo que realmente facilitó después el poder entrar en la intimidad de sus vidas y poder acceder a momentos que eran significativos a la hora de gozar de alguna forma, estos personajes que no dejan de ser pinceladas, en lo que es el documental. Y meterle mucho más la vertiente emocional como si pudiera digerir esta convivencia por parte de los dos grupos. Porque cuando abordé el documental al principio, pensaba que haría un documental de reflexión sobre la convivencia humana en un entorno que sé que de todas formas va a fomentar una especie de microcosmos de la sociedad. Pero realmente a medida que fui avanzando en mi trabajo de campo, en el rodaje me di cuenta de que la película iba por otro lado. En realidad era el retrato de dos comunidades que no llegaban realmente a interaccionar, sino que compartían un espacio común pero no había realmente un entramado; máximo era a nivel a lo mejor de la generación joven, los pequeños pues sí que van a la escuela que de alguna forma se convierte en un espacio no políticamente correcto. Cuando la profesora dice “no, pero nosotros sí queremos que vengáis”. Entonces hay todas estas consignas que en realidad después, el propio material en otra secuencia se ve que es mucho más complejo que eso ¿no? Y me interesaba mucho retratar las contradicciones que se generaban dentro de cada uno de los grupos. Como me parece, en la comunidad receptora hay ciertas ganas de revitalizar el pueblo, ver el pueblo vivo con niños en la calle etc., pero a veces temía perder la identidad y a la vez entre los emigrantes veía ganas de adelante, de un futuro mejor, pero a la vez con un miedo a perder su propia identidad también. Entonces me interesó mucho trabajar a este nivel y esbozar a los personajes de manera que fueran los espectadores que sacaran sus conclusiones. Creo que el propio trabajo de campo ya me sumergió de alguna manera en esas propias contradicciones. Hay personajes que en un momento determinado te despertaban una gran empatía. Y de repente yo los iba viendo diferentes también a la vez a la hora de hacer el trabajo. Por ejemplo uno de los personajes protagonistas es Graciela, una señora argentina que lleva el restaurante, es un personaje que te despierta, creo, bastante compasión cuando la ves en una cabina de teléfono comentando pues acerca de la muerte de su tía. Después te das cuenta de que es un personaje bastante complejo te va despertando, por lo que me han comentado personas que 156 Ariadna Pujol han visto la película, sensaciones contradictorias también y esto me gusta: poder dibujar el personaje, intentarlo hacer desde esta complejidad. S: ¿Qué ha sido de esa gente? AP: Yo he seguido en contacto con ellos. Bueno rodamos entre 2003 y 2005. Y desde entonces un par de veces al año he ido al pueblo y he seguido en contacto telefónico con la mayoría de ellos. Entonces los del restaurante “El Quesito argentino” se marcharon, se fueron a otro pueblo, y estuvieron llevando un camping allí. Finalmente se separaron y ahora están viviendo unos también en el camping y el señor está trabajando de cocinero también por ahí. Respecto a la otra familia, la mujer que tenía cinco niños y el marido que llega, pues finalmente se separaron y ahora ha salido a vivir a otro lugar. O sea que ahora también de alguna forma ha habido una dispersión. Entonces estos personajes tal y como de alguna forma se apunta en la película, no han terminado de poder enraizar porque realmente el entramado a nivel de infraestructuras laborales, sociales no lo acaba de permitir. S: ¿Los rumanos se quedaron? AP: Los rumanos sí, algunos de ellos sí y otros se han ido, pero es una comunidad que de alguna forma se ha mantenido más en el pueblo. A pesar de ser una comunidad extremadamente hermética, por eso en toda la película ha acabado quedando fuera de campo porque a pesar de que teníamos material con ellos no logramos poder penetrar de la misma forma que con los latinoamericanos. Esta es una pregunta también que a veces surge. ¿Por qué los rumanos están unas veces fuera de campo? Es que realmente era así. La comunidad rumana era extremadamente hermética, muy prudente también a la hora de posicionarse, de significarse frente a la cámara a pesar de que ahí en el trabajo de campo, invertí muchísima energía en intentar lograr un vínculo que me permitiera después trabajar al mismo nivel que con las otras familias y no pudo ser precisamente por este hermetismo, esta prudencia a la hora de mostrarse frente a la cámara. S: ¿Pero hablaban español? Porque si no hablaban el mismo idioma… AP: Sí claro, las pocas veces que estuve en casa de rumanos evidentemente el idioma era un obstáculo para mí para poder calibrar el grado de confianza que me tenían y la apertura. Pero ellos, a la hora de comunicarse con la comunidad aprendieron castellano muy rápido, de hecho con una facilidad increíble. El 20 de enero 2012: sesión animada por Françoise Heitz, con la presencia de Ariadna Pujol y Brice Castanon1 FH: Como no todos vieron la película creo que sería útil recordar muy brevemente el argumento de la película a partir del cartelito que viene al principio de la película. “Aguaviva” es el título de esta película, también es el nombre de este pueblo aragonés de la provincia de Teruel. Y dice, Aguaviva se está despoblando, para evitarlo el alcalde hizo un llamamiento a familias de emigrantes dispuestas a instalarse en el pueblo y entonces la historia sigue a familias de rumanos y de argentinos pero más a los argentinos que se instalaron en el pueblo. Y es este el argumento de la película. Quizás como primera pregunta podrías hablarnos del tiempo porque parece muy importante. Incluso te preguntaron que por qué no mostraste la génesis de la obra o sea el alcalde, cómo hizo esta petición etc. Y tú en realidad no tienes el punto de vista de los periodistas que habían hablado mucho del tema y los medios de comunicación también. Tú vienes después y tienes otro punto de vista y te tomas mucho tiempo, todo el tiempo necesario para rodar, ¿puedes quizás recordar las fechas y desarrollar un poco cómo es esa 1. Castanon, Brice : “Aguaviva Le Renouveau du documentaire en Espagne et nouveau réalisme catalan : le Master en Documentation de Création de l’Université Pompeu Fabra (Barcelone)”, tésis de doctorado bajo la dirección de Emmanuel Le vagueresse: Etudes ibériques - cinéma: Université Reims Champagne-Ardenne: Reims: 2011.www.theses. fr/2011REIML004. 157 Iberic@l - Numéro 2 dimensión que cobra para ti la importancia del tiempo en el documental? AP: El proyecto lo abordo en un momento en el que la urgencia periodística ya había pasado. Hay una serie de periodistas que peregrinan por el pueblo preguntando y buscando lo que sería la chispa de la noticia, lo que la situación, esta convivencia puedan dar. Entonces cuando llego en el pueblo hay una cierta reticencia a comunicarse conmigo considerándome como si fuera una periodista más. Entonces en este sentido invierto un tiempo que en este caso fue bastante largo estuve un año y medio prácticamente yendo al pueblo una vez al mes, permaneciendo ahí algunos días, conviviendo y empezando a conocer a las personas que podrían convertirse en los personajes del documental. En este sentido efectivamente la inversión en tiempo no apresurado sino en paciencia dio sus frutos cuando empezamos el rodaje con el equipo técnico. Para mí es muy importante sentir que mi tiempo no tiene más valor que el de las personas que estoy disponiéndome a filmar. Y en este caso creo, las personas del pueblo apreciaron esta falta de urgencia y a partir de ahí se empieza a dar una manera de trabar este vínculo casi diría que a nivel personal con las personas que me dispongo a filmar en un futuro. FH: Además es muy palpable esta dimensión del tiempo porque se ve el cambio de las estaciones, la evolución de la situación de los personajes. AP: Sí, en este sentido cuando me planteé el formato de la película comprendí que la evolución de los personajes era importante. O sea era importante disponerme a hacer más que una fotografía que podría haber sido el caso: hacer una inversión de un mes entero en el pueblo o sea una simple fotografía de lo que estaba ocurriendo en el pueblo en este simple momento a nivel de convivencia entre las dos comunidades. Yo durante el trabajo de campo percibí que no, que más que una fotografía del pueblo me interesaba plasmar una evolución aunque fuera pequeña. En efecto me hubiera gustado todavía poder capturar más cambios a nivel vital de los personajes porque aunque parezca ahí que no pasa nada están pasando muchas cosas. Y entonces en esta evolución fue cuando me planteé la posibilidad de organizar el rodaje de manera intermitente a lo largo de un año para poder incorporar de alguna forma también el paisaje como un reflejo de los estados de ánimo que podían llegar a atravesar los personajes. Me parecía que podía ser un buen reflejo. Inicialmente me planteé incluso que la naturaleza como espejo podía llegar a tener mucho más espacio en la película pero después el trabajo con los personajes cobró una dimensión que hizo que a la hora de editar el material, de alguna forma las estaciones acaban siendo pasos de tiempo más simbólicos que trabajados de una manera más profunda. A lo mejor como podía haber pasado en una pieza anterior en la que había organizado un cortometraje que se llama Tiurana. Era un retrato de un pueblo que desaparecía por la construcción de un pantano, un retrato de los últimos meses antes de la desaparición de todo el entorno. Entonces ahí la naturaleza cobró una dimensión todavía más simbólica que en Aguaviva donde me di cuenta a la hora de visionar el material, el retrato de los personajes estaba cobrando una fuerza que merecía… FH: El momento en que las viejecitas están cosechando las cerezas, es un momento de luz y de mucho sol. En cambio momentos mucho más melancólicos con la lluvia o los primeros planos de los árboles, de las hojas ya amarillas o al contrario la neblina como al principio que nos sume en cierto ambiente. AP: Algunas veces el material está enfocado a capturar la naturaleza en si y acompaña los estados de ánimo. También me interesó en algún momento apreciar un cierto contrapunto. Es decir la secuencia de las cerezas más bien bucólica, de las abuelas, justo después el plano posterior a esta secuencia es un plano en que hay una pintada anónima, “ni argentinos, ni rumanos”. Entonces me interesaba trabajar con este tipo de contrastes. Es decir sí el ámbito rural tan idealizado por parte de los neo urbanistas tiene una complicidad enorme y entonces a partir de ahí era abrir estas grietas que se van abriendo y entonces el espacio natural a veces ofrecía esta posibilidad. Y en el montaje intentamos jugar con esto. FH: Antes de pasar la palabra, una pregunta que atañe a las cosas generales para los que vieron la 158 Ariadna Pujol película anoche y para los que no la conocen todavía, explicar que no toda la película pasa en un solo lugar. Se llama Aguaviva pero en realidad hay dos pueblos. ¿Lo puedes explicar? AP: ¡Claro que sí! Cuando inicié la investigación me empecé a relacionar con un personaje que estaba afincado en Aguaviva que es donde se había llevado a cabo el plan de repoblación. Y entonces ocurrió que a los seis meses de empezar el trabajo de campo había un personaje que me interesaba mucho pero que de alguna forma se me resistía mucho. Es Jacki, la madre de Ángela, la abuela de los cinco niños. Era una persona extremadamente introvertida, la presencia de la cámara la violentaba muchísimo. Pero era un personaje que a mí me tenía fascinada porque precisamente ofrecía un contrapunto digamos simétrico respecto al otro personaje argentino que es Graciela, que es la señora que regenta el restaurante, que era todo lo opuesto. Graciela era expansiva, histriónica, excesiva, era capaz de verbalizar todo lo que los demás inmigrantes seguramente no se atrevían a verbalizar ante la cámara. En cambio Jacki era toda contención y me parece que era otra manera de estar también, de estar en presencia en el pueblo, de intentar integrarse o no en la comunidad. Entonces pasó que este personaje cuando ya llevaba unos cuantos meses simplemente tomándome tés con ella, ya ni prácticamente ni la filmaba con la camarita que llevaba. Simplemente a veces la grababa, la voz, solo para familiarizarla con “hay un dispositivo”, hay algo entre tú y yo pero no pasa nada. Y entonces este personaje me comunica que por razones de trabajo ha decidido que se va de Aguaviva y se va al pueblo de al lado, a La Cerollera, otro pueblito mucho más pequeño. Entonces se plantea el dilema de decir: ¿qué hago? este personaje me interesa pero si pasa a compartir otro espacio por lo tanto pasa a formar parte de otra pequeña comunidad con todos los matices y las diferencias que hay respecto a Aguaviva porque ahí por increíble que parezca cada pueblo aunque esté a diez kilómetros o a quince o a cinco es un mundo. Y entonces ahí se me plantea un poco el dilema ¿sigo al personaje o no? Y lo hablé incluso con personas que estaban involucradas en el proceso del documental y decidí que sí, que tiraba adelante y que me la jugaba y que iba a seguir a ese personaje. Con lo cual cuando abordamos el rodaje empezamos a rodar en los dos pueblos, era un poco esquizofrénico el planteamiento también por lo que conllevaba. No era solo el retrato de ella y también la hija, los nietos etc., toda su historia, sino también cómo ella se relacionaba con la comunidad. FH: Existe una simetría entre el bar y la piscina donde están Jacki, Ángela y los cinco niños y por otro lado el restaurante con Graciela que está en Aguaviva. AP: Efectivamente esto a nivel narrativo en ese momento la verdad, me planteó un reto. Me despertó cierto miedo pero me lancé. El documental un poco es eso, es estar abierto a explorar lo que en este momento la realidad te está ofreciendo. Narrativamente puedes intentar trabar esto en la medida de lo posible pero hay que estar receptivo. En este caso estoy contenta con la decisión porque parece que de alguna forma es una historia que aporta matices que la historia de Graciela en el contexto no aporta. Y así vino el tema de los dos pueblos y en el montaje tuve la complexidad de construir una especie de pueblo imaginario bajo el nombre genérico de Aguaviva porque en realidad para mí Aguaviva es más un estado de ánimo que una localización física, era una reflexión sobre lo que estaba aconteciendo a nivel sociológico y a nivel emocional de esa convivencia medio forzada, es un plan de repoblación que en su momento fue muy polémico. El alcalde no sometió a votación la iniciativa que acababa de decidir que llevaría a cabo de manera que los vecinos se encontraron con una situación con la cual se tuvieron que espabilar un poco a la hora de abordarlo y digerir a estos individuos que aterrizaban de entornos y de mundos completamente diferentes. Brice Castanon: Seguimos con la parte del trabajo de campo preparativo ya que también comentaste con varias personas el plantearte si seguir o no el personaje de Jacki. Quizás podrías comentar un poco por qué al final de la película agradeces a Ricardo Íscar, a José Luis Guerín, a Sebastián Martínez, a Marta Andreu. Tal vez podrías explicar un poco el contexto dentro del cual pudiste desarrollar la película. 159 Iberic@l - Numéro 2 AP: Efectivamente el trabajo de campo lo desarrollé mientras estaba cursando el máster de documental de creación de la Pompeu Fabra y muy concretamente mientras estaba cursando las clases teóricas. De manera que los primeros seis meses había seguido seminarios de diferentes profesores que son profesionales del sector desde realizadores hasta montadores, productores, perfiles de todo tipo y que ofrecen clase con lo cual en ese periodo evidentemente la recherche, el trabajo de campo, la investigación estuvieron impregnados de todas estas miradas que para mí eran referentes. Además en su momento yo había estudiado comunicación audiovisual con lo cual ya había tenido contacto con un profesor que me marcó de una manera clarísima que es Ricardo Íscar. Y entonces tuve la oportunidad a través del máster de asistir al seminario que impartía José Luis Guerín. Era un seminario de historia del cine documental y en ese momento él acababa de estrenar su película En construcción con lo cual estamos hablando de un momento muy determinado y un momento clave en la historia del cine documental en España y recuerdo que en ese momento me impactó mucho. Me impactaron mucho de alguna forma las pautas, las reflexiones a nivel de mirada cinematográfica y de trabajo con el territorio de lo real de José Luis Guerín en ese momento concreto de trabajo de campo. Recuerdo haber contrastado algunas reflexiones con él pero estaba todavía en una fase muy embrionaria el proyecto. No sabía muy bien todavía por donde tiraría y en ese sentido fue una fase como de impregnarme de herramientas que obviamente después cuando ya me dispuse a trabajar con el equipo desgrané sobre el terreno. FH: Creo que el problema de los documentales es muy distinto del terreno de la ficción y en particular plantea un problema ético que no todos los directores resuelven de la misma manera por supuesto. Entonces están obligados a veces a hacer una reconstrucción a base de pequeñas trampas. Todos conocemos trampas que hizo así Guerín en En Construcción y también en Innisfree por ejemplo y que tenemos presentes. Y tú tienes la concepción de no forzar las cosas y mejor esperar que se hagan, que vengan por si solas para captar el momento oportuno cuando aparecen estas cosas. Pero claro supongo que hay momentos en que también tuviste que recurrir a ciertas trampas. AP: Cuando hablas de trampas, ¿qué quieres decir? FH: Por ejemplo, me pregunté al final de la película cuando una de las abuelas dice “eso será el Nodo”. ¡Hace reír muchísimo claro por el desfase temporal que hay! Y me pregunté si a esas alturas ella no estaba enterada de que ya no existía el Nodo o si salía de manera natural. AP: Sí esto es natural. Y nos dejó a todos como … uf!! Fue impactante. Además es interesante como con una pequeña frase te puedes dar cuenta realmente del background de las personas en ese momento que han envejecido en el pueblo. El grado de aislamiento al que están sometidas y esto por contraste respecto a los inmigrantes que acababan de aterrizar. Era muy interesante en este sentido. Yo la frase del Nodo me conecta con la secuencia cuando las abuelas están mirando la boda real. La emoción, los comentarios etc., el ritual con el que ellas están presenciando esta escena dice muchas cosas. Entonces en este sentido cuando te planteas un retrato coral, estas pequeñas pinceladas pueden llegar a ser muy reveladoras y además también te ayudan precisamente a nutrir una mirada sintética. Porque evidentemente cuando estás abordando un tema tan complejo y tan rico en matices, lo que necesitas es poder contar muchas cosas pero de la forma más sintética posible para que después sea el espectador el que las procese como decida procesarlas. FH: Voy a modificar mi palabra, en lugar de trampa, podemos decir truco ¿verdad? Estoy pensando en algo que le dijiste a Brice en una la entrevista que le diste2 y entonces explicabas de qué forma lo hacías cuando las abuelas jugaban a las cartas, tenían tendencia a mirar hacia la cámara y entonces, ¿cómo hacías para que fuera una cosa natural? AP: La pregunta que has lanzado tiene mira. Parte de la narrativa documental radica precisamente en la pregunta que has formulado. Guerín dice que la realidad no se deja capturar por las buenas. Y esto 2. Publicada en su tésis, ver nota 1. 160 Ariadna Pujol es cierto, esto es así. O sea te puedes plantear hacer un documental con una mirada lo más observacional posible, de hecho cuando yo realicé Tiurana fue desde esta consigna, de observación máxima. En efecto en esa pieza no hay nada que estuviera provocado, tan solo hay un momento de puesta en situación. Y yo en ese momento, recién salida de la universidad con las directrices del cine de Ricardo Íscar que lleva mucho en esta dirección, pensaba que sería capaz de abordar las piezas posteriores desde esta mirada observacional que identificaba con la mirada transparente en que no había trampa. Después cuando realicé algunos cortos más, ahí me di cuenta de que en el momento en que hay construcción de Ariadna Pujol personajes efectivamente Guerín tiene razón. Hay que recurrir a ciertas herramientas que te permitan hacer aflorar detalles que a lo mejor has observado durante el trabajo de campo pero que no fácilmente pueden llegar a aflorar con una cámara adelante, un equipo técnico etc. Entonces en este sentido sí creo que es donde hay que valorar y plantear dónde te quieres situar respecto a estas herramientas, qué uso les quieres dar y con qué intensidad. Así procuro en la medida de lo posible adoptar una mirada observacional y tengo que confesar que es cuando disfruto más; o sea cuando de repente simplemente pasan cosas y no he tenido que orquestar absolutamente nada, sino que de repente eres testigo de algo que te está transmitiendo autenticidad. Y no solo es una verdad cinematográfica, sino que de repente hay 161 Iberic@l - Numéro 2 una conexión con la verdad total. BC: Como el plano de las golondrinas AP: Lo que pasa es que cuando estás filmando la naturaleza es más fácil que cuando estás relacionándote con un personaje. Entonces cuando la observación pura y dura, con tiempo por delante no es suficiente porque es verdad que a veces no es suficiente es cuando te planteas qué dispositivos quieres emplear. En el caso de Aguaviva, fruto del trabajo de campo que había realizado es verdad que pudimos llevar a cabo ciertas secuencias de una determinada manera. Por ejemplo está la secuencia de las mujeres que están jugando a cartas; yo por ejemplo había jugado a cartas varias veces con ellas porque era la manera de conocerlas y de entender cómo funcionaban. Entonces nos presentamos ahí a filmar, un domingo por la tarde preguntándonos cómo plantar la cámara, la pantalla, cómo entra la cámara, el sonido etc. Disponemos incluso más o menos a las abuelas para que por cámara las podamos ver y no se tapen las unas a las otras. Que son de estas cosas que antes de ver determinada situación no te planteas pero en esto caso sí fue así. Entonces ¿qué ocurría si yo avanzaba la partida de cartas y en ese momento sentía que podía sacar un tema? Porque sí importa narrativamente cómo, esta es también un poco la gran fragilidad del documental y ahí también radica la adrenalina que genera, capturar la realidad y a la vez vas siempre con un minuto por detrás y ver cómo puedes construirla para que después narrativamente tenga sentido. En este momento ya habíamos estado varios meses filmando y había la posibilidad de que Felisa se fuera a la residencia. Entonces a mí el tema me interesaba mucho que aflorara, pero claro si este tema lo sacaba, digamos le preguntaba a Felisa: “¿al final vas a ir a la residencia?”, automáticamente las abuelas nos miraban a nosotros para responderme a mí que estaba al otro lado, fuera de su campo de visión. Por lo tanto mi interferencia evidentemente generaba una reacción fuera de campo que esto nos sacaba absolutamente del contexto observacional con todas las comillas del mundo con el que estábamos trabajando. Entonces lo que hicimos fue sentar al ayudante de dirección Jordi Call con las abuelas pero fuera de plano y entonces era él quien lanzaba las preguntas y le contestaban y quedaba integrado. Entonces sí fue un truco que se nos ocurrió. BC: Una estrategia. AP: Una estrategia sí. Se ve muy bonito si en un momento de la conversación le preguntas esto pero yo no tenía ni idea de cómo reaccionaría la persona. Evidentemente a través del trabajo de campo vas situando y vas conociendo a los personajes y puedes llegar a intuir lo que puede aflorar en base a una pregunta determinada. Para mí no hay nunca nada escrito, la realidad no se puede domesticar así como así. BC: Pero eso es casi un trabajo de guionista en el sentido de que conoces a los personajes, ya sabes cuáles son las características de cada uno y juntando a estas distintas personas ya sabes lo que puede surgir como lo que hizo Guerín. AP: Es un trabajo de guión efectivamente, es un guión intuitivo y con resultados imprevisibles. Donde recuerdo haber puesto mucha energía era en intentar ver hacia dónde más o menos podían evolucionar las historias y cómo poder integrar esto narrativamente en la película. Pero claro la realidad iba aconteciendo y nosotros éramos testimonio de ello, pero frente a determinadas secuencias el personaje evidentemente no era consciente de que ahora te estaba ofreciendo un clímax en su historia. En el momento en que tú tienes un clímax entonces te estás preocupando en cómo voy a resolver el desenlace de este personaje, que lo necesitas narrativamente. Entonces lo que sí fue un trabajo bonito, y creo que es común a muchos documentalistas que trabajan esta narrativa con personajes, es que al principio cuando empiezas el rodaje, estás completamente abierto y expectante a todo lo que pueda pasar. A medida que va avanzando, narrativamente ya se va viendo por dónde van los tiros, con lo cual las necesidades a nivel narrativo se van haciendo mucho más claras y vas viendo donde tienes los huecos a nivel narrativo. Ahí es tu trabajo de ver cómo resolver o cómo generar determinadas cosas en situación para que esto pueda 162 Ariadna Pujol acontecer y puedas realmente narrar de una forma completa las historias que tienes entre manos. S: ¿Lo filmaste en directo? AP: Sí en directo. En realidad coincidió, fue casualidad como muchas cosas que pasan en el documental. Estábamos rodando, que era mayo 2004 y nos dimos cuenta al cabo de dos o tres días de estar ahí en el pueblo, que era el 22 de mayo, que era la boda real entonces te das cuenta de que esto podría ser una situación potencial como decía, reveladora de cómo viven la gente del pueblo la boda real. Entonces nos planteamos la posibilidad de grabar en el bar del pueblo a ver qué pasaba. Pero como había más de un bar en el pueblo y este otro bar lo regentaban otros inmigrantes, pensamos que no era una buena idea filmar ahí. Y fue a raíz de este “no”, y creo que en todos los procesos internos de documentales está lleno de “nos” que después pasan a ser “sís”, cuando nos planteamos “las abuelas a lo mejor sí se van a encontrar, van a quedar para ver la boda”. Nos dijeron sí, sí. Felisa nos dijo voy a hablar con Agustina y entonces propuse “y ¿si viene Adelaida y Aurora y a ver qué pasa?” “Ah sí, sí, quedaremos en casa viendo juntas la boda”. Y a raíz de esto empezamos a calibrar cómo poder plantear esta secuencia y quedó muy claro que todo el tema de la boda estuviera fuera de campo y la propia secuencia en rodaje está planteada para luego ser montada de esta manera. Si no, el plano de la tele fragmentado ni lo hubiéramos rodado. Y nos lanzamos de esta manera. Entonces había una especie de armario empotrado detrás de la tele que no se ve, que es donde nos pusimos nosotros, la cámara, el micro. FH: Agustina y Felisa son dos personajes absolutamente entrañables. Me parece que los personajes femeninos aparecen de una manera mucho más profunda que los personajes masculinos. Como personajes masculinos aparece el sacerdote, que es buena persona pero muy torpe, tiene una torpeza natural incluso en el modo de cantar. Luego el padre de los niños que parece un poco perdido, se ve que tiene una relación cercana con la mayor porque todavía se acuerda, con los más chiquitos ha perdido el contacto y el hijo de Felisa que es médico y tiene interés. Es muy bonita también la secuencia en que está mirando las viejas fotos. AP: Es cierto no es la primera vez que me lo comentan que los personajes femeninos están retratados con mucha más profundidad. Y es cierto y es debido al trabajo de campo que realicé. Las que estaban realmente en el pueblo, en sus casas con las que pude entablar una relación personal fue con las mujeres. Porque los hombres estaban trabajando fuera todo el día. Entonces ahí el retrato y la manera de esbozar estos personajes son mucho más esquemáticos, porque la relación en profundidad que pude mantener fue con las mujeres. FH: Quizás sea un pudor por parte de los hombres. Esta imagen al final de la película es preciosa, la caricia que les hace un abuelo en la cabeza de uno de los niños argentinos. AP: Sí, es el único gesto conciliador, es un gesto de mínima esperanza que te da la película que más bien te lleva a un estado de ánimo de ir calibrando la dureza de ese espacio. Además el paisaje en esta zona de Teruel es bastante árido, agreste. Entonces inmediatamente decíamos la gente es como el paisaje. También te hace constatar que era bastante difícil trazar esta convivencia. Curiosamente este plano de la caricia es un plano que yo descubrí cuando estaba visionando el material. Se dio esta secuencia muy casual. Es muy interesante el documental. Cuando me estoy planteando el proyecto en el que estoy ahora lo tengo muy en cuenta: a veces tienes grandes expectativas sobre secuencias que a lo mejor tienes la sensación que van a aportar mucho. Entonces le dedicas mucha energía en ver cómo se podrían resolver etc. Y hay otras secuencias que a lo mejor estás filmando digamos de manera espontánea. Para mí esa última secuencia de la película es una secuencia de transición. Teníamos muy poco material en el que hubiera en un mismo espacio la generación que acababa de llegar y la generación de toda la vida que representa este hombre mayor. Entonces cuando en ese momento que era la hora del patio en la escuela, casualmente este señor Aurelio estaba apoyado en la pared de la iglesia y en ese momento pensé que sería una secuencia de transición sin más. Después al visionar vi que había este plano, entonces a 163 Iberic@l - Numéro 2 partir de ahí cobró otra dimensión. El trabajo en documental siempre es así, está vivo hasta el último momento hasta que vas por bueno en el último montaje, hay un work in progress permanente. Durante el rodaje hay esta sensación de fragilidad también en el sentido que no estás segura de tener película hasta que realmente has terminado el rodaje, estás siempre como en la cuerda floja. Y esto hace que estás siempre en un estado como de alerta, todo es válido, todo podría servir a la hora de filmar, pero también a medida que voy haciendo proyectos me doy cuenta que para mí es muy importante contentar la energía y en este momento sentir lo que va a ser importante y lo que no. A veces es tan importante lo que filmas como lo que no filmas. Cuando estás con un equipo aunque muy reducido de cuatro o cinco personas cada situación que abordas y cada situación que intentas capturar con la cámara conllevan un desgaste importante porque estás en un estado de máxima concentración y máxima tensión, con lo cual si tú concentras esta energía en momentos muy puntuales de la jornada de rodaje esto hace que sea más fácil que después este material te sirva. Si por el contrario, vas con la idea de intentar abarcar el máximo posible por si acaso, cuando caes en esta tentación, el nivel de intensidad de conexión baja. Yo por suerte en general procuro trabajar con planos de rodaje que sean bastante sensatos. Y aun así siempre hay en un momento del rodaje en que por miedo: “rodemos esto”. Y recuerdo una noche en que subimos con el operador de cámara y era como la una de la madrugada, una escena que se estaba generando entre Graciela y su hija, ya estábamos todos muy cansados y en ese momento es como decir a lo mejor de ahí sale algo. Y cuando estás tan al límite, difícilmente sale algo. Entonces ahí sí que juega mucho el confiar, el intentar tener claro hacia donde quiero ir y evidentemente estar atento pero no con la ansiedad de intentar abarcar. BC: Empleas la palabra “personaje” para hablar de Graciela y los demás. Y este personaje lo construyes durante el montaje, analizando lo que has grabado pero también lo vas construyendo durante la preparación, escribiendo un guión. Por ejemplo para el personaje de Felisa vamos descubriendo a una persona casi traumatizada por la guerra civil, algunos planos de la fiesta lo subrayan, así lo vamos descubriendo a lo largo de la película. Cuando estabas grabando esto por ejemplo, ¿estabas esperando la reacción de Felisa respecto de su miedo a los fuegos artificiales? AP: En el caso de la construcción de personajes, más que hablar de guión realmente lo que desarrollé fue una propuesta, un dossier en el que había esbozado la estructura narrativa, un tratamiento formal, una ficción de los personajes que preveía iba a filmar; algunos de ellos que estaban en el dossier y que luego ya no estuvieron, algunos ecuatorianos. Yo prefiero no hablar de guión porque no había una previsión dramática de lo que iba a ocurrir. Lo que sí es que cuando te estás planteando el rodaje, vas viendo un poco lo que te va ofreciendo cada personaje intuyendo lo que le puede llegar a acontecer y a partir de ahí sobre todo ver cómo ir integrándolo narrativamente, cómo presentar al personaje, cómo construirlo, cuando hay un clímax detectarlo y después cómo poder de nuevo cerrar. Entonces es un trabajo de oficio pero también de mucha intuición y en este sentido vas trabajando de forma compasada con lo que te va ofreciendo el personaje. En este sentido como fue muy largo el trabajo de campo así como el rodaje, lo que escribí en un momento determinado es lo que ocurrió por ejemplo con Graciela, el personaje que regenta el restaurante; es que esta persona llegó a tener mucha conciencia del personaje. Entonces claro teníamos muchísimo más material pero estaba totalmente fuera. Es muy difícil trabajar con esto. En este sentido el terreno del documental te sitúa en un estatus difícil, o sea no hay vuelta atrás. Cuando el personaje ha hecho el clic y se crea personaje es lo peor que puede pasar. Es como cuando un personaje se te cierra antes de abrirse o se te cierra de nuevo. Entonces hay un equilibrio y ahí entra también el tema del compromiso ético con los personajes, de mantener un equilibrio, de intentar no abusar, en el momento en que el personaje se sienta abusado, ¡es muy probable que también abuse de ti! De la misma forma que se puede sentir utilizado, también te utiliza. Entonces ahí fue un poco complicado resolver esto y fue un aprendizaje para mí. 164 Ariadna Pujol FH: ¿Y con los niños? ¿Su naturalidad, su actuación? AP: En este caso fue relativamente fácil porque también su presencia, su implicación eran menos compromiso. Un adulto elabora, tiene una imagen de sí mismo y calibra aunque sea inconscientemente la imagen que quiere proyectar ante la cámara. Un niño no se plantea esto por suerte. Es otro reto trabajar con niños pero no este. FH: Tengo una pregunta. Antes del fragmento de la boda real, la maestra y los niños pequeños, que es completamente simétrica de la otra escena en que se ve a los alumnos un poco mayores y con el maestro. Me choca mucho la diferencia. Como pedagoga encuentro la actitud de la maestra “políticamente correcta” como dijiste anoche pero positiva. Está tratando de influir confianza a los niños, de ganarse su confianza y también valorarlos a ellos mismos. En cambio yo no entiendo lo que pretende hacer el maestro con el análisis del poema para que Mariela hable de su intimidad. ¿Cómo lo ves y qué te parece que le añade a la película el maestro? AP: No es la primera vez que me comentan esto. Fue una secuencia en la que no hubo ninguna complicidad con el maestro mientras que en otras secuencias sí. Por ejemplo Felisa con su hijo, la secuencia en la que le propone la posibilidad de ir a vivir a una residencia. De hecho él se ofreció, dijo “voy a plantear esto a mi madre”, evidentemente que sí aceptamos. En el caso del maestro simplemente yo necesitaba aquello que estábamos comentando antes: construir el personaje de Mariela. Porque intuía que frente a la llegada del padre como ella era la que había tomado más consciencia de lo que suponía el irse a Argentina, necesitábamos construir ese personaje para que después en todo caso, el futuro reencuentro del padre que todavía no habíamos filmado tuviera más peso y narrativamente como espectador te sintieras más conectado con la niña. Decidimos filmar en la escuela de La Cerollera con un profesor que yo apenas conocía cuando sí había estado en contacto permanente con la profesora de Aguaviva, era muy buena profesora. Entonces nos dejó grabar varias veces en el aula. Aquí fue el único rodaje en la escuela de La Cerollera con este profesor que no conocíamos. Tampoco di ninguna indicación en concreto, él intuyo, a lo mejor narrativamente necesitábamos algo que aportara o que ayudara a aflorar algo. Entonces sí que le pregunté qué clase iba a dar, porque en las escuelas rurales dan varias materias y conviven diferentes edades. Me dijo literatura y dije bien, vamos bien, ¡seguramente esto es mejor que matemáticas! Esto nos puede dar a lo mejor un poco más de vida. Pero no hubo más que eso, máximo me dijo “voy a hacer un comentario de un poema de Bécquer”. Y a partir de ahí él lanzó la dinámica de la clase. Y lo que me han comentado es que tiene un punto como sexista, como plantea él a Mariela el “¿qué sacrificarías tú?”. Es una posición muy determinada a la que se enfrenta Mariela en este sentido. Entonces cuando la vi y la monté, la analicé más desde el punto de vista narrativo, y solo después y por los comentarios resulta que es más densa esta pequeña secuencia. S: En el aula de la maestra aparece un cartel en francés “Vacances en Roumanie”, ¿estaba? AP: Sí, estaba. S: Podrías hablar de tus condiciones de producción que relevan de la universidad ¿no? ¿Y después? Porque aparece como un lujo poder trabajar así durante año y medio. AP: En el caso de Aguaviva la gestación, la producción fue muy particular porque era un proyecto que se desarrolló en el marco del máster del documental de creación a nivel teórico, a nivel de preparación. Después fue seleccionado como proyecto para convertirse en largometraje, esto hizo que por convenio con la universidad había un presupuesto destinado de Canal +, RTVE también entró, así como TV3. A nivel de producción eran unas condiciones ideales y prácticamente irrepetibles. También debo decir que si las condiciones fueron un lujo para lo que es un documental, yo como realizadora y trabajadora, en toda la fase del trabajo de investigación nunca cobré nada. Este es el problema, los documentales requieren un largo trabajo de campo y esto es lo que les da una profundidad que no tendrían al aparecer simplemente con la cámara. Curiosamente esta parte, la recherche no está contemplada en los presupuestos de las 165 Iberic@l - Numéro 2 maisons de production. Es considerado como un lujo. No se contempla, con lo cual lo tiene que asumir el propio creador. Es complicado y es difícil. S: ¿Y después? AP: ¡Después viene un poco el desierto! Yo después de Aguaviva, como estuve prácticamente cuatro años con el proyecto, quedé muy seca creativamente, noté que necesitaba parar. Tengo un compromiso conmigo misma de que la creación tiene que nacer de una necesidad. Si no sientes una necesidad imperiosa de crear, de transmitir, mejor para, espera y llénate, alimenta tu mirada para después en todo caso poder volcarla de nuevo. En este sentido estuve consciente de que me encontraba en esta fase y me la respeté ante un poco el desconcierto de algunos compañeros de profesión que decían “¿Y ahora qué?, ¿Cuál es el próximo proyecto?” Y esto a veces es duro respetarse ese tiempo para uno porque puedes empezar a trabajar en otra cosa que no tiene nada que ver con los documentales pero que también me ha alimentado mucho la mirada porque me ha permitido viajar. Al cabo de dos, tres años hubo De gauche à droite : B. Castanon, E. Le Vagueresse, N. Berthier, A. Pujol, F. Heitz un tema que me interesó desarrollar y empecé a desarrollarlo por mi cuenta, ya consciente de que la “recherche” no me la iba a pagar nadie. Había algunas subvenciones a desarrollo de unos proyectos pero entonces entras al engranaje de que haya una productora comprometida etc. Entonces lo desarrollé en la intimidad hasta que vi que aquello estaba cobrando una dimensión que requería mucho más tiempo y energía por mi parte y no me lo podía compaginar con el trabajo en el que estoy todavía ahora y por eso este proyecto lo he apartado hasta cuando tenga tiempo para abordarlo. Lo que sí surgió hace un año fue la posibilidad de hacer una pieza, pero por las características que tenía, tenía que ser hecha en plan kamikaze digamos sin productora, sin presupuesto ni nada; simplemente en plan espartano total y me lancé. Ahí sí que sentí una necesidad imperiosa de crearlo y de crearlo en ese momento. Entonces 166 Ariadna Pujol es una pieza en la que estoy ahora en fase de edición, la rodamos en septiembre y es un documental rodado en un centro de meditación en Cataluña en las afueras de Barcelona, en Montseny. Hace un par de años tuve la suerte de hacer un retiro de meditación en ese centro que me cambió por dentro absolutamente, mi estructura mental y tuvo un impacto tan profundo que me quedé con las ganas de retratar esta atmósfera. Y al cabo de unos meses junto con un operador de cámara que también es meditador presentamos el proyecto al Centro de meditación y contra todo pronóstico nos lo aceptaron, pero con unas condiciones muy determinadas. ¡No hay productora pero siempre hay restricciones! En este caso las condiciones fueron tres: una que nunca percibamos beneficio económico con esta pieza; dos, y a nivel creativo os puedo asegurar que me tiene un poco inquieta, cuando hayamos editado la pieza tenemos que mostrarla a la Fundación y si hay algún plano o alguna secuencia que ellos juzgan no tanto a nivel creativo finalmente sino alguna grabación que atenta según ellos contra del código de disciplina del Centro de meditación, que es bastante estricto. Al final quedamos con muchas dudas y decidimos lanzarnos a hacerlo igualmente con la consciencia de que este documental a lo mejor nunca iba a ver la luz porque depende de cómo se desarrolle este consenso con ellos. De hecho firmamos una especie de contrato muy similar a los que se firman con las productoras y agregamos una clausula “nos reservamos la libertad de guardar la pieza en un cajón”, es decir de no estar obligados a difundir la película con la que no nos sentimos cómodos porque nosotros a nivel narrativo hemos grabado algo que vemos que es esencial para que la pieza tenga sentido. Ellos aceptaron y nos lanzamos a filmar el documental. La tercera condición fue más un placer que otra cosa. Es que durante el rodaje, mientras estuviéramos en el Centro de meditación donde los estudiantes realizan un retiro en el que se pasan los diez días, doce horas al día meditando, aprendiendo la técnica de meditación, que nosotros nos comprometíamos a meditar con los estudiantes a tres horas diarias y en este sentido la verdad es que fue un regalo, porque fue un rodaje increíble. La práctica de la meditación durante el rodaje lo cambió todo. Creativamente fue espectacular, es decir toda la carga de ego, de tensión que se genera en los rodajes, de expectativas, de gustar porque esto es inevitable aunque te digas a ti misma no, estoy más allá de esto… no, está en ti como creadora, la futura relación con el público, cómo el material va a interaccionar con el público. Toda esta carga de tensión, de exigencia, de ¿estoy transgrediendo o no?, de ¿estoy siendo auténtico o no? Todo esto, las tres horas de meditación me limpiaban. Todo estaba ahí, afloraba de vez en cuando, pero prácticamente te quedabas en un estado de canal de la creación desde la intuición, desde la conexión de ese momento, del presente con los personajes. Fue en ese sentido una experiencia impactante. Y te dabas cuenta de que simplemente el hecho de confiar, conectarte y dejarte ir, hacía que todo fluyera. Y era un rodaje arriesgado, porque de hecho lo comenté con Ricardo Íscar precisamente antes de empezar el rodaje y le dije, “mira voy a abordar este reto, estas son las condiciones del rodaje” y me dijo “estás loca”. Le expliqué un poco más las características de la filmación y es que nosotros no estábamos filmando en realidad a los estudiantes porque evidentemente están en un proceso de introspección máxima y si ven una cámara es un elemento de distracción. Los que filmamos fueron los voluntarios que están haciendo la comida y limpiando el espacio para que los estudiantes puedan hacer el retiro. Porque en realidad lo bonito es que esto es una Fundación internacional y todos los centros funcionan de la misma manera o sea todo se hace por voluntario entonces no hay precio por los retiros y no hay nadie que cobre por estar trabajando ahí. Tiene esta particularidad mágica. Entonces nosotros estuvimos rodando en la cocina básicamente y también en el entorno de estos voluntarios que también eran meditadores y meditaban junto con los estudiantes. Y cuando abordamos el rodaje, no teníamos ni idea de quienes serían los personajes porque como todo funciona por voluntariado, la gente simplemente se apunta. Cada mes hay dos cursos, o sea va muy seguido de forma que no sabes nunca quién va a estar haciéndolo de voluntario. Entonces Ricardo me dice: “Estás loca. O sea tu estás diez días filmando a unos personajes que no conoces absolutamente de nada, es la antítesis de Aguaviva”. Pero sí es cierto que en agosto yo había 167 Iberic@l - Numéro 2 hecho de voluntaria para comprender lo que era ser voluntaria; era esencial y de hecho fue muy útil. Por suerte nos dieron una cabañita para gente que medita por su cuenta, yo dormía ahí pero el resto del día estaba con los voluntarios. Pero es que había muchos retos, era muy kamikaze. Dentro del código de disciplina del Centro de meditación uno de los preceptos es intentar hablar solo lo imprescindible. Entonces cuando en agosto estuvimos haciendo de voluntarios porque con uno de los compañeros decidimos ir de voluntarios juntos, el grupo de gente que nos tocó, porque esto va mucho por dinámica de grupo como en todos lados, era extremadamente silencioso, hablaba bajito, con una cara de… ¡Uy! ¡Y al cabo de un mes abordamos el rodaje! Y nos abandonamos un poco a… eso, confiar. Nos tocaron unos personajes absolutamente cinematográficos, de todas partes del mundo porque además como esto es internacional había un japonés, una francesa, una sevillana, un serbio, una conjunción de gente súper comunicativa. Ahí iba el reto de cómo iba a pasar. Entonces, aconteció a nivel narrativo todo lo que en principio es necesario dramáticamente para que a nivel de mínimos narrativos, la pieza se aguante, con un clímax, que haya en un momento un conflicto, personajes etc. Ahora en esta fase, la primera puerta que vamos a picar es la de TV3, televisión catalana. Pero también debo admitir que llevamos editando meses y a lo mejor se lo lleva el viento y así vamos trabajando sin expectativas… FH: ¿El DVD de Aguaviva se va a editar? AP: En realidad Aguaviva está comercializado ya; a través de Cameo se puede adquirir. S: ¿Tienes que hacer algún trabajo para sobrevivir? AP: Ahora sí, pero la idea es que cuando termine este proyecto, deje el trabajo en el que estoy ahora y me lance de nuevo hacia la trinchera. S: Volviendo al tema de la migración y respecto de Flores de otro mundo, que es anterior a tu película, y me imagino que la habrías visto. ¿Cómo te planteaste la temática respecto de lo que ibas a hacer? Porque ahí sí vemos al alcalde, todos están esperando el acontecimiento, se enfrentan los hombres con las mujeres; luego en el bar que es el lugar de encuentro de los hombres la que atiende mira duramente a las extranjeras. O sea también tenemos esta rivalidad muy fuerte, tienes la fiesta y el baile. ¿Influyó un poco? AP: Sí la vi y la tengo presente. La vi porque además sentí que había conexiones con lo que estaba abordando. Y es curioso porque una de las líneas argumentales con las que trabajé y no forman parte del documental, es toda la parte de los rumanos que al final permanecen fuera de campo. Porque fue imposible lograr con ellos el grado de profundidad y de transparencia que estábamos logrando con las familias latinoamericanas pero una historia en que estuvimos poniendo un montón de energía durante el rodaje era justamente una pareja mixta entre y una rumana y un chico joven de Aguaviva. Se iban a casar, al final no se casaron. Hicimos el seguimiento de los dos, rodamos material, él trabajando en el campo y ella en una fábrica de cables. Pero costaba mucho lograr un material que realmente transmitiera una apertura a nivel emocional. Estuvimos hasta el final trabajando ahí sobre esta dirección pero no, finalmente fue imposible. Viendo el material no estaban al mismo nivel y se descartó. Por lo tanto el referente de Flores de otro mundo de alguna forma sí estaba contenido en esta historia que después no se editó, quedó fuera del material. De las ciento veinte horas que grabamos, unas cuantas estaban destinadas a construir esta historia de la rumana con este chico. FH: ¿Nunca te planteaste meterte en el mundo de la ficción? AP: La verdad es que no. El territorio del documental me resulta apasionante precisamente por esta fragilidad. A mí me resulta estimulante a nivel creativo. Me inspira mucho el documental porque uno de los cineastas que más me ha apasionado es Eric Rohmer. El explica que tiene espíritu de productor en el sentido de que él nunca se plantearía determinadas secuencias que requerirían un presupuesto enorme. Entonces a mí me pasa un poco esto. Tengo esta consciencia de que con pocos recursos, puedes explicar lo máximo. Me interesa, me apasiona mucho, la cotidianeidad, lo que contiene por eso seguramente me 168 Ariadna Pujol atrapa este territorio. Aunque en los últimos años se está trabajando mucho el híbrido entre documental y ficción. S: En realidad, hay una continuación como en la ficción, le dedicas muchas horas al montaje. Creo que al final, el montaje destruye la autenticidad. AP: No, es que la realidad objetiva como tal…no existe. No tengo ninguna vocación de objetividad cuando me planteo hacer un documental. Solo en un reportaje periodístico a lo mejor intentaría velar por una ecuanimidad. A nivel documental intento mantenerme en una distancia justa, en un compromiso con mi propia mirada, con lo que yo he sido testigo, lo que he presenciado. Pero claro es mi verdad, no aspiro a retratar la verdad objetiva. FH: Acerca del montaje tengo presente un momento que me gusta muchísimo. Al padre la primera cosa que se le ocurre preguntar a su hijo, cuando vuelve, es si no tiene una pelota porque le parece un escándalo que no haya pelota en la casa, ¡como buen argentino! Y enseguida empalmas con lo siguiente que es el ovillo de lana de la pobre Felisa que al final está en la residencia y ¡además en francés ovillo se dice pelote! También a nivel lingüístico se hace la asociación de un modo emocionante a todos los niveles. Me gustó muchísimo. S: ¿No hablan en catalán? AP: Es que en Teruel es la franja, es Mataraña. Hay algunos pueblos de la zona donde no se habla catalán. Algunos sí y otros que no. S: Lo de la llegada del padre en coche, ¿eso es real? AP: Sí, de hecho es la única secuencia que está resuelta con cámara al hombro porque era toma única. La madre y el padre no tenían una buena relación. Entonces en este momento me acuerdo que nos planteamos bueno es toma única, entonces la jefa de producción dijo sobre todo no os olvidéis de Ángela, la madre, en este encuentro. Y de ahí fue que hay un plano que, creo, lo dice todo del estado de ánimo de esta mujer en este momento, de su grado de escepticismo respecto al futuro que le espera. S: ¿Y en aquel momento no influyó la presencia de la cámara? AP: No porque los niños están bastante sueltos, espontáneos. No tuve la sensación de que se sintieran especialmente coartados, se dejaron llevar por la propia situación que para los niños era bastante desbordante. Pero era interesante poder apuntar esto, esta breve mirada de Ángela. S: Además la presencia de la cámara en los primeros momentos la notas pero luego se te olvida. No es precisamente como los telediarios en que vienes para un momento preciso y tienes la presencia de la cámara y estás muy consciente durante todo el proceso pero cuando está la cámara como sucede con un elemento de grabación, llega un momento en que se te olvida. Y en eso el tiempo ayuda. AP: Es verdad. BC: A propósito del sonido, en tu última pieza estuviste haciendo el sonido ¿no? ¿Cuál sería entonces la diferencia entre trabajar con un equipo de cuatro o cinco personas y grabar tú misma el sonido? ¿Qué es lo que cambia dentro de la relación con las personas? AP: Pues es mucha la diferencia a nivel de dispositivo. En el caso de Aguaviva, respecto a otras piezas que había realizado y que simplemente éramos dos, tres personas, ya noté un impacto, una carga. Lo que estás ganando en calidad de imagen, de sonido, lo pierdes en intimidad de la relación con el otro cuando lo estás filmando. En el caso de Aguaviva se suplió esta falta de intimidad por el largo trabajo de campo y por ser un tiempo largo escalonado con lo cual el hecho de ir volviendo al pueblo con todo el equipo hizo que las propias personas del equipo ya entablaran sus propios vínculos con los personajes. Entonces en el caso de este último documental es curioso, porque haciendo la postproducción de Aguaviva, entablé amistad con Sánchez Cutía que es un técnico de postproducción y que hace todo tipo de producciones. Entonces entro en contacto con él, le mando un correo electrónico con un par de fotos: “¡Mira he llevado el sonido de este documental con los auriculares, la percha!” Y me contestó “¡Ostras 169 Iberic@l - Numéro 2 cómo te has de ver por falta de presupuesto! ¡Animo, adelante, tranquila!”. Y yo le contesté “¡no te equivoques!”, es cierto que no teníamos ni un duro, pero también fue una apuesta a nivel de realización. El hecho de estar en el Centro de meditación solo dos personas y no tres en el sentido de que no había nadie que estuviera simplemente observando y dirigiendo sino que estábamos todos en el mismo barco, todos nos levantábamos a las cinco de la mañana, todos estaban ahí con las ollas contra reloj. Y nosotros estábamos con la cámara, con los cables además yo como novata, un circo, un verdadero espectáculo. Entonces en este sentido el documental es muy interesante por plantearte cómo te quieres posicionar frente a las personas que te dispones a filmar. Porque de alguna forma es una declaración de principios. En ese sentido funcionó muy bien la comunicación, la cocina era muy pequeña y aun así tuvieron una paciencia increíble, iban esquivando los cables con tal de no caer, esquivarme a mí misma. A nivel creativo el hecho de ser yo la que llevaba el sonido y los cascos, hace que te conectes con una serie de información sensorial que cuando no estás llevando ni la cámara ni el micro no tienes, esta conexión. Es más intelectual, es más mental de ir viendo el tipo de plano, estar conectado con lo que quieres contar, de cómo lo quieres contar. En cambio yo lo que noté es que esto se me bajaba un poco, me manejaba más con la intuición y además es que tenía acceso a texturas y a vibraciones emocionales de los personajes que de otra forma no hubiera tenido. La posibilidad de realizar el documental a la vez que estaba haciendo el sonido, porque la persona con la que estaba trabajando no era realizador sino que era operador fue gracias a un dispositivo que era un palo que me lo clavaba en la cadera y sujetaba la percha. Claro yo llevaba la mesa de sonido y la percha a la vez con lo cual de no haber tenido el palo este, no hubiera tenido una mano libre para poder realizar; porque lo que hacíamos era que nos íbamos mirando o sea cuando apuntaba hacia un lado ya estaba claro que de entre las dos o tres conversaciones del lugar, intuía que a lo mejor era ésa la que podía ser útil apuntar. Pero no solo eso, sino el valor de los planos como indicar “abre, cierra o así...”. Fue apasionante, una experiencia muy rica. En ese sentido creo que el material transmite mucha frescura que también era un poco la idea, romper un poco con eso de que la meditación está fuera de la cotidianeidad, absolutamente trascendente para iluminados… no, no la meditación es algo que está muy en la tierra. Ha sido una buena experiencia que no descarto repetir. S: Estoy pensando en Guerín que le da también tanta importancia al sonido como a la imagen, ¿qué relación has tenido con el sonido en Aguaviva respecto de esta última película? AP: Pues sí, pienso que es muy importante rescatar y darle al sonido el lugar que le pertenece. En efecto a nivel narrativo una imagen maravillosa de una atmósfera de mucha profundidad está bien, pero si no se entiende lo que dicen los personajes, o no hay una textura de voz que sea comprensible incluso todo el nivel creativo, el universo de matices a los que puedes entrar mediante ondas sonoras… Entonces yo también reivindico mucho el hecho de cuidar el sonido. No me plantearía hacer un documental sin un técnico o sin hacerlo yo misma. Y eso a pesar de todo lo que ha evolucionado, se ha simplificado el dispositivo de cámaras en los últimos años, hay cámaras más pequeñas y es que ahora se está rodando en cámara directamente de fotos, pero claro el dispositivo de audio no se ha simplificado tanto, sigue siendo muy aparatoso. Pero pienso que es una inversión que vale muchísimo la pena y a nivel expresivo te da un juego tremendo, el sonido directo es riquísimo. Y al respecto, Brice Castanon en su tesis entrevista a Amanda Villavieja, que es una persona que ha hecho el sonido de la mayoría de las películas de documentales largometrajes que se han hecho los últimos años. Se formó como sonidista desde cero haciendo el sonido de En construcción como estudiante. Entonces ella explica que es todavía muy aparatoso el dispositivo pero que a la vez, a nivel conceptual está ya de alguna forma trazando un pacto entre las personas a las que estás filmando y tú como observador o como cineasta o como equipo. O sea estamos aquí con todo nuestro equipo aparatoso y creo que esto genera también un pacto interesante. De alguna forma esta persona acepta que tú estés ahí capturando esta realidad y me parece bueno a nivel de la consciencia de los personajes que están del otro lado. 170 Ariadna Pujol S: ¿Hubo una proyección en el pueblo? AP: Sí y fluyó bien la verdad. Se proyectó tanto en La Cerollera como en Aguaviva. Y estaba un poco expectante de ver la acogida en cada lugar. Y fue algo desconcertante porque curiosamente en Aguaviva lo único que me dijeron “claro pero las calles que salen no son las más bonitas! En La Cerollera sale más bonito y tal!” Mientras que yo temía mucho más por La Cerollera porque pensé “realmente el título de la película es Aguaviva con lo cual quedan ocultos con el nombre del pueblo de al lado”; peor condena imposible ¿no? Y en cambio los de La Cerollera son los que están más satisfechos y contentos. Y hasta hace poco tenían el poster de la película Aguaviva en el bar. Bueno puedo decir que fue una acogida fluida. Para mí el visto bueno clave fue previo a esto, cuando ya tenía el montaje definitivo, antes de darlo por bueno, viajé al pueblo para mostrarlo a los personajes que estaban más expuestos, a Graciela, a Jaqui y tal. Para mí era muy importante, yo veía que estos personajes se habían expuesto mucho, no estaba segura al cien por cien de que se sintieran cómodos con esto. Cuando fui, los de la productora me dijeron bueno “¿pero qué vas a decir, qué vas a hacer si te dicen que no?” Entonces no tuve una respuesta y dije no lo sé, pero tengo que hacerlo. Se lo mostré y me dijeron “sí me reconozco, era yo en esa época”. Esto me dejó tranquila. S: ¿El restaurante era de ellos? AP: Lo alquilaron, era un local donde antes había habido un restaurante y lo habían cerrado, llevaba varios años cerrado. Y entonces lo alquilaron e intentaron levantar el negocio. FH: Justamente al principio de la película me gusta la secuencia en la que los argentinos que llegan al restaurante se quedan fuera de campo, se oyen las voces y hay este contraste que mencionabas entre la pobreza del lugar abandonado, los candados, el estado de la cocina y luego pasas de manera totalmente contrastiva a las preguntas ingenuas de Graciela, “¿Cuándo es la primavera aquí, en diciembre?” AP: De hecho este material se rodó en 2003, es decir dos años antes del rodaje oficial porque la particularidad del territorio del documental es now or never. Tú puedes haber arrancado y desarrollado un dossier maravilloso, impecable; para las instituciones estará a punto de obtener subvenciones o no, pero la realidad va avanzando. Entonces cuando ya tienes un tema, y unos posibles personajes o un espacio acotado en el que sabes que vas a querer trabajar. Hay que estar muy atento y ahí es donde hay que tener una buena capacidad de reacción de decir aunque no sea con los medios ideales. Este material está grabado con una cámara que es la uVCam no es la cámara grande DETACAM digital con la que trabajamos después y el sonido también es mucho más precario por eso está subtitulado porque no se entiende del todo. Está grabado con unas herramientas mucho más simples, pero era clave para poder después jugar con este contraste porque ese espacio lo abandonamos al cabo de un mes, al poco de comenzar a trabajar en él; de hecho tengo una filmación de cuando lo están limpiando, todos están ahí afuera. Y trabajamos a partir de elipsis que me parece mucho más interesante con la perspectiva de la primavera y saltar a la situación posterior. Pero si para el documental es bueno efectivamente tener paciencia, también te exige una capacidad de reacción muy grande: estar atento a la urgencia que a veces se presenta. Existen determinadas situaciones que hay que grabar como sea y en la condiciones que sean. BC: ¿Viste otros documentales sobre Aguaviva? AP: Creo que vi y es curioso, a pesar de que habían pasado bastantes periodistas y la moda de la noticia un poco había pasado, mientras estábamos haciendo el documental me enteré de que había un realizador belga que en este momento también estaba trabajando sobre el mismo tema, el mismo pueblo y que de alguna forma los rodajes coincidían prácticamente en el tiempo a pesar de que lo estructuró diferente, hizo una fotografía. Estuvo una semana, un mes no sé pero la idea de evolución no estaba, era nada más un retrato. Y entonces incluso coincidimos en el espacio ahí, fue un poco extraño. Mi sensación es que a él no le gustaba mucho que coincidiéramos y confieso que a mí tampoco. ¡Intentaba disimular y ser muy amable…! 171 Iberic@l - Numéro 2 S: Son muy diferentes, el suyo es mucho más político. AP: Sí, creo entró más en el tema del plan de repoblación. S: Se titula igual Aguaviva. Fue coproducción de Arte. Ver los dos es interesante. El tuyo a nivel humano es mucho más fino, más trabajado, intuitivo. El otro es más político. Para una mirada curiosa sobre el tema de la emigración, encuentro que es necesario que se explique bien lo demás pero tú dijiste que no podías incluirlo porque no era tu dirección. Es tu elección de artista y directora. Pero para una curiosidad sociológica es necesario también saber lo que estaba detrás. AP: Sí, en aquel momento cuando decidí abordar el tema de la migración rural, escogí la provocada; me interesaba mucho intentar universalizar al máximo. Entonces todos los entresijos en que se vio envuelto el plan de repoblación, su polémica daban efectivamente para otra película. De hecho llegamos a entrevistar al alcalde como les dije, o sea algo exploramos. Pero realmente vi ante las dos opciones, tenía claro que era ésa seguramente la que podía explicar mejor. 172 Comptes rendus - IV Comptes rendus 173 Iberic@l - Numéro 2 174 Retóricas del mIedo. Imágenes de la Guerra Civil española Berthier, Nancy et Sánchez-Biosca, Vicente (sous la direction de), Retóricas del miedo. Imágenes de la Guerra Civil española Nadia Tahir Référence : Madrid, Casa Velázquez, 2012, 289 p. Dans leur introduction, Nancy Berthier et Vicente Sánchez Biosca établissent que, tout en se centrant sur la Guerre civile espagnole, l’ouvrage qu’ils codirigent est avant tout un travail permettant une interprétation plus générale du « rôle de la peur dans la vie politique » d’un pays. Il s’agit de s’intéresser à travers des images telles que des peintures, des photographies, des films de fiction ou documentaires, ou encore des publications journalistiques, à son utilisation éventuelle dans des « stratégies de luttes de pouvoir […] et d’instrumentalisation politique avec des résultats violents ». Puisque la Guerre civile espagnole a eu lieu pendant l’entre-deux guerres et qu’elle est, comme le signale plusieurs articles présents dans l’ouvrage, l’avant-propos d’un des conflits les plus violents du XXème siècle, l’ensemble des articles ici présentés contribue à la compréhension des conflits de manière générale. Afin de couvrir un contexte historique ample, les travaux sont présentés autour de six axes qui suivent un ordre chronologique. Le premier axe regroupe les travaux de l’historien Eduardo González Calleja et du politologue Enzo Traverso. Leurs travaux constituent une forme d’introduction à l’ensemble de cet ouvrage. Ils s’intéressent d’une part à la diffusion de la peur dans la société espagnole au XIXème et au XXème siècle, et d’autre part, à cette même diffusion mais en Europe après la Première Guerre mondiale. Ils permettent par ailleurs d’introduire l’importance des études sur les images dans le cadre de travaux sur les conflits contemporains. Cette première partie est suivie de trois axes qui reviennent sur des images, au sens large du terme, produites pendant la Guerre civile. Dans le deuxième axe, les travaux de Xosé M. Núñez Seixas et de Marta Núñez Díaz-Balart se centrent plus spécifiquement sur l’imaginaire qui se construit autour de la figure de « l’autre ». L’objectif est de montrer que la peur n’existe pas dans son propre camp mais dans celui de l’ennemi. Elle est alors utilisée pour humilier l’ennemi. Ainsi, Núñez Seixas revient sur la représentation de l’ennemi dans les deux camps, apparaissant dans des revues populaires sous les traits d’un étranger : le soldat de l’autre camp est alors allemand, russe, arabe. Dans ce sens, l’article de Mirta Núnez Díaz-Balart complète le précédent. En analysant des journaux républicains, elle montre l’importance des mots associés aux images dans le combat qui est mené contre la peur sur le champ de bataille. Il s’agit de maintenir le moral des troupes, mais aussi de manière plus générale celui de leurs familles et de la population. Cette dernière est d’ailleurs au centre des articles qui constituent le troisième axe du dossier. Le travail de Pierre Sorlin s’attèle à la tâche difficile d’analyser quelles sont les représentations de la peur dans le quotidien de la population dépeinte dans les « noticieros ». L’auteur justifie ce choix par l’impossibilité de trouver des informations dans la propagande officielle. Ainsi, il nous permet de voir que toutes les formes de productions picturales n’ont pas été contrôlées par les deux camps et que le « noticiero » évoque, souvent involontairement, d’autres angoisses que la peur de la guerre, telles que la faim ou la peur de la vie après la guerre dans une Espagne en ruines. Ces peurs quotidiennes, loin du champ de bataille, sont aussi présentes dans l’article de Vicente Sánchez-Biosca qui analyse plus spécifiquement 175 Iberic@l - Numéro 2 le film Rojo y negro de Carlos Arévalo. On retrouve ces mêmes peurs surtout dans les films de Rafael Rodríguez Tranche et de Santiago de Pablo. Ces deux auteurs s’intéressent à des cas particuliers : d’un côté, Madrid, symbole des villes bombardées, de l’autre, le Pays Basque et la singularité du rôle joué par le PNV. Dans les deux cas, l’objectif des autorités est d’obtenir le soutien de pays étrangers. Pour ce faire, l’utilisation de la représentation d’une figure emblématique est essentielle : il s’agit de celle des enfants–victimes de la guerre. Cette représentation permet la transition avec les articles du quatrième axe qui s’intéressent aux productions iconographiques de la Guerre civile à l’étranger et plus particulièrement en U.R.S.S et aux États-Unis. Daniel Kowalsky et Francie Cate-Arries reviennent, notamment à travers le cinéma soviétique et le travail de l’artiste nord-américaine Ione Robinson, sur un aspect présent dans l’ensemble de l’ouvrage : le point de rupture que constitue la Guerre civile espagnole. Elle devient le symbole de ce dont est capable l’ennemi, de la lutte dans laquelle s’engagent de nombreux artistes et écrivains et des conséquences d’une violence qui va bientôt sortir des frontières espagnoles pour atteindre toute l’Europe. Dans le cinquième axe, Giulana Di Febo et Ángel Llorente Hernández reviennent sur la période d’immédiate après-guerre et sur l’élaboration, à travers les images, d’un discours qui a longtemps perduré et perdure encore parfois en Espagne: celui sur les « vainqueurs » et les « vaincus ». Que ce soit grâce à l’analyse de célébrations dans la ville de Salamanque ou à l’étude de la propagande franquiste dans des peintures ou des illustrations, les deux travaux montrent de quelle manière les « vainqueurs » s’installent en terrain conquis. Comme le précise Llorente Hernández, la peur n’a plus à être représentée puisqu’elle est déjà bien installée. Enfin, le sixième axe clôt cet ensemble avec le point de vue rétrospectif et la construction mémorielle de la Guerre civile à partir des années 1970. Comme le spécifie Nancy Berthier dans son article sur Carlos Saura, le manque, voire l’absence, de la « peur intime » dans les productions d’époque ne permet sa représentation que de façon rétrospective. Ainsi, plusieurs articles soulignent justement la persistance d’une peur, et même de plusieurs peurs. On relèvera le travail de Jacques Terrasa, avec l’exemple du documentaire Nosaltres els vençuts. Testimonis de la Guerra Civil i la posguerra a Mallorca (1936/1948) dans lequel des « vaincus » acceptent de parler soixante ou soixante-dix ans après les faits, bien qu’ils sentent qu’ils ne peuvent pas encore tout dire. Véronique Pugibet s’intéresse quant à elle aux images de la Guerre civile espagnole présentes dans les ouvrages scolaires français d’enseignement de l’espagnol. En effet, le manque de rigueur dans l’utilisation des images peut apparaître selon elle comme le reflet d’une peur de la guerre qui n’est pas forcément liée au cas espagnol. Enfin, le travail d’Antonio Monegal autour de l’absence de musée de la Guerre civile en Espagne est également à mentionner. Il revient là aussi sur un aspect présent dans de nombreux articles, mais qui, selon lui est flagrant dans le cas qu’il décrit: la peur d’ériger un musée souligne le sentiment de honte ressentie par le fait que la guerre ait été une Guerre civile. Qu’ils soient le fait d’historiens, de politologues ou de spécialistes des études sur les images, les articles de l’ouvrage constituent un instantané de la période étudiée. Malgré des supports différents, ils apparaissent tous comme des représentations d’un événement marquant de l’histoire de l’Espagne, de celle de l’Europe et plus largement du XXème siècle. Dans le cas des représentations contemporaines, on peut imaginer qu’elles ont interagi à l’époque de leur diffusion. Il est, a priori, plus difficile que des représentations produites à des époques différentes, parfois dans des espaces géographiques très distancés, puissent le faire. Néanmoins, cette compilation d’articles permet des sauts dans le temps et dans l’espace. En effet, l’un des éléments les plus remarquables est sans aucun doute la capacité des articles à dialoguer entre eux pour mieux « cartographier la peur », pour reprendre une expression de Nancy Berthier. 176 Ritos de guerra y de victoria en la España franquista. Di Febo, Giulana, Ritos de guerra y de victoria en la España franquista. Nancy Berthier Références: Valencia, PUV, 2012 177 Iberic@l - Numéro 2 Edité pour la première fois en 2002, Ritos de guerra y de victoria en la España franquista de l’historienne italienne Giuliana Di Febo s’attachait à l’étude de la fonction des rites pendant la guerre civile et le franquisme et mettait en évidence la manière dont religion et politique s’interpénétrèrent pour fonder une idéologie sui generis, le national-catholicisme, qui fut le fondement du régime pendant plus de trois décennies. À partir d’analyses précises, l’auteur avait alors offert une approche pionnière et décisive dans la compréhension du franquisme, dont elle avait déjà offert un éclairant exemple en 1988 avec La santa de la Raza : Teresa de Ávila: un culto barroco en la España franquista, 1937-1962 (Ed. Icaria), un brillant opuscule depuis lors épuisé, qui éclairait la façon dont le franquisme avait récupéré le culte de Sainte Thérèse d’Avila. La réédition actuelle de Ritos de guerra y de victoria en la España franquista, dix ans après la première édition, reprend et enrichit cette dernière, en intégrant les apports de l’historiographie récente du franquisme et du « débat historiographique sur la relation entre rituels et systèmes politiques » (p. 13). L’introduction qui contextualise l’ouvrage, en formule efficacement les enjeux et la problématique : « El anacrónico universo mítico-religioso originado por la ‘guerra-cruzada’ genera una macrorrepresentación de un nacionalcatolicismo fundado en la asimilación de la identidad nacional con el catolicismo conservador y tradicional, y al mismo tiempo la propia consagración de Franco como jefe providencial » (p. 14). L’auteur insiste sur l’originalité à ce titre de l’idéologie du franquisme qui ne se présente pas comme une « religion politique », à la différence d’autres régimes dictatoriaux. À partir de ce cadre d’analyse, l’étude se divise en deux grandes parties : « Les rites de la guerre » et « Les rites de la victoire ». La première partie est naturellement la plus développée (94 pages) puisqu’il s’agit de démontrer que la guerre civile est le terreau qui secrète le national-catholicisme, à partir de la mise en place des premiers rites dont les principaux mécanismes seront reconduits ultérieurement. Giuliana Di Febo choisit, dans ce volet, de s’attacher à cinq grands aspects des rites de guerre, ordonnés en chapitres monographiques : la Croisade, la Vierge du Pilar, l’apôtre Saint Jacques, le Sacré Coeur et la figure de Sainte Thérèse d’Avila. L’assimilation de la cause nationale à la Croisade, très tôt au cours de la guerre, est à ce titre fondatrice car elle s’impose d’emblée comme un élément de cohésion et de mobilisation : le terme apparaît dans une circulaire pour la première fois très peu de temps après le soulèvement, dès le 31 août 1936, sous la plume de l’archevêque de Saint Jacques de Compostelle, avant d’être officialisé dans la lettre pastorale de l’évêque de Salamanque, Monseigneur Pla y Deniel, le 30 septembre de la même année. À partir de là, au fur à mesure des victoires de l’armée franquiste, se met en place un processus de légitimation du « Nouvel État » qui, au-delà de l’usage de la répression, s’emploie à organiser « la celebración de solemnes ceremonias litúrgicas y el relanzamiento de viejos cultos y otros más recientes » (p. 29). C’est dès cette époque que, selon l’auteur, se prépare l’hégémonie du nationalcatholicisme qui détermine un nouveau mode de relation « entre lo sagrado y lo político, reflejo de la interacción entre régimen e Iglesia » (p. 31). Les quatre chapitres consacrés aux formes rituelles que revêtent le culte à la Vierge du Pilar, à Saint Jacques de Compostelle, au Sacré Coeur et à Sainte Thérèse, déclinent ensuite les principaux pôles autour desquels s’articulent les nouvelles liturgies du régime. Pour chacun d’entre eux, l’auteur met en évidence son lien au passé historico-religieux du pays et aux traditions, qui permet d’en comprendre la réactivation et l’efficacité symbolique dans le nouveau système de propagande. Elle décrit par ailleurs les principales modalités de fonctionnement de ces rituels, qui jouent tous sur un rapport au surnaturel dont la fonction, au final, est de démontrer le bien fondé de l’idée d’élection divine de Franco et, partant, de ses objectifs militaires : « la familiaridad de Franco con lo sobrenatural se impone en el imaginario colectivo gracias también al restablecimiento de devociones ‘barrocas’, entre ellas el antiguo culto de las reliquias que, en el caso de las denominadas ‘insignes’, refuerzan su poder carismático » (p. 89). Il s’agira 178 Ritos de guerra y de victoria en la España franquista. là de l’une des grandes différences entre Franco et les dictateurs qui l’ont précédé du point de vue de son fonctionnement charismatique. La deuxième partie de l’ouvrage, « Los ritos de la victoria » (47 pages), se situe dans le prolongement de la première, à la fois d’un point de vue chronologique (situation après 1939), mais aussi selon une perspective théorique dans la mesure où il s’agit d’étudier la manière dont l’édifice idéologique élaboré en temps de guerre, sans changer substantiellement de nature, va devoir être ajusté dans la nouvelle dynamique, à la fin du conflit armé. La victoire d’avril 1939 s’impose comme un événement clef, qui à la fois couronne un processus et en ouvre un nouveau : « La ‘Victoria’ se convierte en una cesura entre pasado y presente, en paradigma divisorio que indica un nuevo orden, una nueva manera de vivir que se sobrepone a la época precedente reorientando el mismo sentido del tiempo » (p. 98). Le premier chapitre de la deuxième partie met en évidence la manière dont les célébrations de la victoire, qui s’imposeront dès lors dans le cadre d’un calendrier commémoratif inchangé jusque dans les années soixante, visent à la fois à la « consécration » de Franco et à la « redefinición de una identidad nacional fundada en la visibilidad de la penetración del elemento confesional » (p. 117), au sein de laquelle, dans l’immédiate après-guerre, se fondent tous les soutiens idéologiques du régime, y compris les phalangistes. L’auteur met en évidence le caractère inamovible des rituels, fondés sur la répétition, et leur anachronisme dans une société qui, à partir des années soixante, commence à évoluer. Cet anachronisme éclate lors du centenaire thérésien de 1962, qui est étudié dans le deuxième chapitre, à l’occasion duquel est déployé tout un appareil de propagande dans une atmosphère d’intense mobilisation. Pendant une année entière (entre août 1962 et août 1963), la célèbre relique de Sainte Thérèse, conservée à Alba de Tormes depuis sa mort (« brazo incorrupto ») parcourt le pays afin d’en réactiver le culte. Les célébrations accompagnant cette pérégrination obéissent à des règles ritualisées, jusqu’au retour triomphal à Alba de Tormes, qui « se convierte en el espacio donde se realiza, para el imaginario colectivo, la fusión de las instituciones con lo sagrado » (p. 143). Ce déploiement de moyens qui configure une sorte d’apothéose sera cependant aussi un point de non retour. Le dernier chapitre, intitulé « Epílogo. El nacionalcatolicismo como desviación del catolicismo », montre en effet que l’édifice se lézarde à partir du Concile Vatican II ouvert en octobre 1962 par Jean XXIII et qui allait oeuvrer à une profonde réforme de l’Église. L’auteur montre qu’à partir des années soixante, la réforme conciliaire modifie substantiellement les relations entre l’Église et le régime et devient un « detonante y estímulo de las tensiones ya presentes en muchos sectores del catolicismo español » (p. 145). Di Febo recense certains aspects de la rénovation qui s’opère au sein de l’Église espagnole, dont la nomination, en 1969, du cardinal Vicente Enrique y Tarancón, constitue l’un des signes les plus notables. C’est lui qui, d’une certaine manière, selon l’auteur, tournera la page du national-catholicisme avec son homélie du 27 novembre 1975 à l’occasion de la messe d’intronisation de Juan Carlos I comme Roi d’Espagne, par un appel à « la necesaria reconciliación entre todos los españoles ». Cet ouvrage bref (157 pages de textes, assorties d’annexes) parvient de manière à la fois concise et précise, à partir d’un choix d’études de cas paradigmatiques, à faire pénétrer le lecteur dans la logique d’un régime dont la longévité est certainement en partie liée à la manière dont il a su très tôt tirer parti de traditions et de rites profondément ancrés dans les secteurs les plus conservateurs du pays qui lui ont permis –entre autres- de survivre sans peine à la défaite des régimes totalitaires à la fin de la deuxième guerre mondiale dans la mouvance desquels il se situait. Dix années après la première édition, Ritos de guerra y de victoria en la España franquista, s’impose désormais comme un classique. Le lecteur se plaît à imaginer une troisième édition qui intègrerait l’iconographie de ces rites de guerre et de victoire. 179 contemporaine Iberic@l est une revue interdisciplinaire sur les mondes ibériques et ibéro-américains contemporains rattachée au CRIMIC, équipe d’accueil EA 2561 de l’université Paris-Sorbonne, à comité de lecture international. Elle a pour vocation de diffuser les articles des chercheurs, doctorants et post-doctorants, français et étrangers, dont l’objet d’étude porte sur la péninsule ibérique et l’Amérique latine des XIX-XXIe siècles. Chaque numéro est composé d’un dossier monographique, autour d’un thème fédérateur, d’une série d’études et de documents et d’une rubrique de comptes rendus. I.S.S.N. 2260-2534 l@cirebI Espaço onde se constroem e se validam representações do mundo social, a literatura brasileira contemporânea constitui um terreno privilegiado de reprodução e perpetuação de estereótipos e preconceitos, por vezes, camuflados no pretenso realismo das obras. Cientes disso, diferentes grupos identitários têm reivindicado, cada vez mais, lugar e voz nos espaços de enunciação de discursos, acentuando a chamada crise na representação literária. No momento em que se agudiza a consciência de que o criador é socialmente situado, e de que tudo o que ele(a) produz traz as marcas dessa circunstância, a legitimidade de suas representações tornou-se passível de questionamento. Instalada a dúvida, abriram-se na contemporaneidade ranhuras em um sistema em geral uníssono e refratário à presença de grupos sociais diferenciados, sejam eles constituídos por autores(as) ou por suas personagens. Essas vozes, que se encontram nas margens do campo literário e cuja legitimidade é permanentemente posta em questão, tensionam, com a sua presença, nosso entendimento do que é (ou deve ser) o literário. Os textos aqui apresentados abarcam alguns dos problemas considerados relevantes no interior do conjunto literário brasileiro contemporâneo, especialmente no que diz respeito à presença, ao silenciamento e às formas de representação destes grupos sociais diferenciados. Neste sentido, eles marcam uma continuidade dos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília e pelo Grupo de Estudos Lusófonos do CRIMIC da Université de ParisSorbonne acerca das relações e imbricações entre o fazer literário e o mundo social. 2102 enmotuA – 2 orémuN La littérature brésilienne