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Análise de material
audiovisual
Filme de mim mesmo: a
multidimensionalidade do artista
no filme Eu Não Estou Lá
Marcus Antonio Schifino Wittmann
Graduado em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Contato: [email protected].
Resumo
Neste artigo analisaremos o filme Eu Não Estou Lá, uma “falsa-biografia” de Bob
Dylan, do diretor Todd Haynes. Afastamos-nos das análises da Escola de Frankfurt
sobre o cinema como carro-chefe da Indústria Cultural, procurando em um contexto
mais amplo as redes de interconexão da película. Assim, não apenas o filme em si é
analisado, mas também seu contexto de produção e recepção. Através desse panorama
poderíamos visualizar e entender o que nos parece ser o âmago do filme: o artista e sua
multidimensionalidade.
Palavras-chave
Eu Não Estou Lá; Todd Haynes; Indústria Cultural; Análise fílmica.
Abstract
In this article we will analyze the movie I’m Not There, a “false bio-pic” of Bob
Dylan, from director Todd Haynes. Moving away from the analysis of the School of
Frankfurt about cinema as the flagship of the Culture Industry, we look to the nets
of interconnection of the movie in a broader context. Thus, not only the film itself
is analyzed, but also its context of production and reception. Through this scenario
we could see and understand what seems to be the core of the film: the artist and its
multidimensionality.
Keywords
I’m Not There; Todd Haynes; Culture Industry; Movie Analysis.
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 2, n. 4, 2014, p. 101-108.
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Filme de mim mesmo: a multidimensionalidade do artista no filme Eu Não Estou Lá
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1. Chegando ao desconhecido pela desordem de todos os sentidos
Failing to fetch me at first keep encouraged,
Missing me one place search another,
I stop somewhere waiting for you.
(Walt Whitman, Song of Myself)
O corpo morto deitado sobre a mesa. Os
óculos escuros ainda escondendo seus olhos. O preto
cabelo encaracolado e a face magra formam uma
figura familiar. A necropsia começa com um corte na
altura do coração. Ali ele está, enfim imóvel, enfim
aberto. Mas, a voz do narrador confessa: “Até mesmo
o fantasma era mais de uma pessoa”. É com essa cena
que o diretor Todd Haynes nos introduz os personagens
que representam, pelo menos subentendidamente, a
figura de Bob Dylan no filme “Eu Não Estou Lá”
(I’m Not There, 2007): o Poeta, o Profeta, o Marginal, o
Simulado, o Astro da Eletricidade.
Após essa sequência inicial as diferentes
histórias dos personagens são desenroladas: vemos
o garoto negro que se autointitula Woody Guthrie
(interpretado por Marcus Carl Franklin) viajando de
trem pelo interior dos Estados Unidos enquanto canta
músicas Folk; a saga do jovem Jack Rollins (Christian
Bale), de “voz de uma geração” dos anos 1960, para
a carreira como pastor evangélico na década de 1980;
a história de amor e separação entre o ator Robbie
(Heath Ledger) e sua mulher Claire (Charlotte
Gainsbourg); o interrogatório do poeta que deixou
de escrever, Arthur Rimbaud (Ben Wishaw); a turnê
na Inglaterra do músico da contracultura, Jude Quinn
(Cate Blanchett); e o exílio de Billy the Kid (Richard
Gere) na cidade de Riddle. Todas essas vidas podem
ser relacionadas com a história de Bob Dylan em
algum período da sua trajetória.
Porém, como o próprio Haynes afirma nos
comentários do filme, não se trata aqui sobre a vida
de Bob Dylan, nem sobre suas canções, nem sobre
sua importância política e cultural. “Só os mortos
podem renascer”, diz o diretor, e são nessas ações
que reside o foco do longa-metragem, “renascer
continuamente”, completa Haynes. Este breve ensaio
pretende analisar o filme “Eu Não Estou Lá” através
de algumas perspectivas da Escola de Frankfurt
e discutir o que nos parece ser o cerne do filme: a
multidimensionalidade da figura do artista.
Aqui queremos nos afastar da análise de
Adorno e de Horkheimer sobre o cinema, os quais
atestam que este seria o carro chefe da Indústria
Cultural. Para os autores, o cinema é usado para
alienar o espectador e atrofiar sua imaginação e
espontaneidade (ADORNO, HORKHEIMER,
2002, p. 10). Assim, a passagem da rua para o
cinema não conduziria ao sonho, à subjetividade e ao
pensamento sobre aquilo que se vê. Todavia, sabese que principalmente Adorno escreveu suas críticas
durante o exílio nos Estados Unidos, período em que
esteve muito exposto ao cinema industrial americano,
generalizando assim para o cinema tudo aquilo que
está vendo e discutindo no cinema hollywoodiano
(SILVA, 1999, p. 118). Dentro desse panorama
americano os filmes seriam os propulsores de um dos
axiomas essenciais e historicamente consolidados na
indústria de Hollywood: dar ao público o que ele quer
ver (NOGUEIRA, 1998, p. 4). E, como nos adverte
Marcuse, as vontades e necessidades do indivíduo são
padronizadas pela Indústria Cultural (MARCUSE,
1973, p. 27). A manipulação e doutrinação desses
sentimentos levam à mecanização e objetificação dos
indivíduos e a um estado de unidimensionalidade, o
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qual abrange também a sociedade como um todo.
Assim, nada de novo e crítico ao status quo seria
produzido enquanto as “loucuras pessoais” forem
coagidas.
Mas, para adentrarmos mais no âmago
dessa produção cinematográfica, devemos procurar
pistas em outras esferas nas quais o longa-metragem
transita. Segundo Marc Ferro, as imagens sonoras em
forma de filme podem destruir aquilo de organizado
na sociedade por homens de estado e pensadores. A
câmera revelaria o funcionamento real das coisas e
da sociedade, diria mais sobre cada uma do que elas
gostariam de mostrar (FERRO, 1973, 113). Devido a
isso, Ferro trata dos filmes como uma contra-análise
da sociedade, muito diferente da proposta de Adorno.
Para revelar tais significados deve-se analisar os filmes
como um produto, uma imagem-objeto, na qual os
significados não são apenas cinematográficos. Assim
sendo, os questionamentos do pesquisador devem
ir além da história, do cenário, do roteiro. Deve-se
procurar as relações do filme com aquilo que não é o
filme: o autor, a produção, o público, a crítica. Deste
modo, poderia se compreender a realidade figurada
pelo filme (op. cit., p. 114).
É importante salientar que não descartamos a
Indústria Cultural da análise de “Eu Não Estou Lá”.
Ela ainda está presente no que tange o filme como
objeto de lucro e uma forma de transformar a história
de uma pessoa, e ela mesma, em uma mercadoria.
Porém o longa-metragem também possui seus pontos
de resistência. No próximo subtítulo analisaremos os
diferentes atores e seus pontos de vista que rondam o
filme “Eu Não Estou Lá”.
2. “Tudo que eu posso fazer é ser eu
mesmo, quem quer que seja”
Do I contradict myself ?
Very well then I contradict myself,
(I am large, I contain multitudes.)
(Walt Whitman, Song of Myself)
O filme começa e acaba com o mesmo tipo
de ponto de vista: a câmera como primeira pessoa.
Porém, o que muda é o sujeito que olha. Na primeira
cena estamos nos olhos de um músico chamado para
o palco de um show, na última, somos apenas mais um
no meio do público, atravessando uma multidão para
chegar na frente do palco. É através dessas diferentes
perspectivas conjuntas que podemos ter um melhor
entendimento do filme “Eu Não Estou Lá”.
Vendo pela perspectiva do mercado
cinematográfico, o filme faz parte de um período no
qual a produção de longas-metragens sobre músicos
norte americanos estava em alta. Podemos citar como
exemplo os filmes “Ray”, de 2004 sobre a vida de Ray
Charles, e “Johnny e June”, de 2005 sobre Johnny
Cash, ambos retratando de forma bem pragmática a
trajetória desses ícones da música norte americana.
“Eu Não Estou Lá”, de 2007, entra dentro desse
fluxo de produções. Porém, a iniciativa não partiu
apenas da indústria hollywoodiana, mas também do
empresário de Bob Dylan na época, Jeff Rosen. Foi
ele quem orquestrou o revival mercadológico, mas não
artístico, de Dylan a partir dos anos 1990: primeiro
com o lançamento dos Bootlegs Series1, álbuns com
músicas inéditas, versões de estúdio e ao vivo, depois
com a produção do documentário dirigido por Martin
Scorsese “No Direction Home” e do lançamento do
livro autobiográfico de Dylan “Crônicas – Volume
Um”2, ambos em 2004 (HOBERMAN, 2007, s.p.).
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Foi Rosen também que guiou Todd Haynes para
que a ideia de fazer um filme sobre Dylan (o que
Haynes já arquitetava desde 2000) fosse aceita pelo
músico. Segundo os comentários do diretor no
filme, o empresário pediu para que ele escrevesse
em uma página um resumo dos seis personagens
que representariam Dylan no filme, porém sem citar
termos como “a voz de uma geração”, alcunha pela
qual Bob Dylan ficou conhecido, e nem o próprio
nome do músico.
Vendo por este lado “Eu Não Estou Lá”
talvez pudesse ser considerado o ápice desse processo
empresarial e dos filmes biográficos sobre músicos
norte-americanos, por tratar do mais conhecido e
importante artista estadunidense. Porém, em parte
nenhuma dessas coisas se consolidou como tal. O
filme não foi um sucesso de bilheteria (a renda dos
cinemas nos EUA pagou metade do orçamento do
filme), embora tenha sido a primeira vez que a figura
de Dylan foi retratada no cinema para o grande
público. A recepção do filme pode ser analisada
através de alguns sites sobre cinema que apresentam
notas dadas por críticos e pelos usuários cadastrados.
Escolhemos três sites com certo renome no que tange
críticas cinematográficas: IMDB (Internet Movie
Data Base), Rotten Tomatoes e Metacritic. Para efeito
de comparação selecionamos também as notas dadas
para os filmes “Ray” (2004) e “Johnny e June” (2005),
por se tratarem de filmes com uma temática parecida
e por terem sido produzidos em um período próximo
um do outro. No IMDB a nota geral para o filme “Eu
Não Estou Lá” foi 7,03, enquanto “Ray” recebeu 7,84
e “Johnny e June”, 7,95. No site Rotten Tomatoes as
notas são separadas entre a dos críticos do site e a dos
usuários. As avaliações foram respectivamente assim
dadas: “Ray” 81%/87%6; “Johnny e June” 82%/90%7
e “Eu Não Estou Lá” 77%/70%8. No Metacritic
as notas também são separadas desse modo. As
avaliações foram: “Ray” 73/8,29, “Johnny e June”
72/7,910 e “Eu Não Estou Lá” 73/6,611.
Como vemos, essas avaliações mostram que
o grau de aceitação, tanto de críticos profissionais
quanto de um público em geral, de “Eu Não Estou
Lá” foi menor do que dos outros filmes que tratam
sobre músicos norte-americanos. Isso talvez se dê
pelo fato de que o filme de Todd Haynes não supra as
expectativas do que se espera ver de praxe nos filmes
biográficos: aqui não há uma ordem cronológica
dos fatos contados. Os fatos em si são muito mais
metáforas e bricolagens de fatos reais acontecidos
na trajetória de Bob Dylan, mitos sobre a sua vida
e representações imagéticas de suas músicas, além
de que não há um personagem principal, mas sim 6
atores interpretando diferentes facetas do artista, e
nenhum deles porta o nome de “Bob Dylan”. Para
nos aprofundarmos nesse campo, adotaremos outro
ponto de vista: o do diretor.
Para entendermos a figura de Todd Haynes
devemos olhar para a sua trajetória. Ele possui um
Bacharelado em Semiótica pela Brown University
em 1985 e começou a estabelecer sua carreira
cinematográfica logo após isso, principalmente
através do movimento “New Queer Cinema”. Este
movimento experimental e independente do final dos
anos 1980 e início dos anos 1990 procurava destruir
noções fixas sobre gênero, sexualidade e identidade
(DARBY, 2013, p. 334). Através desse tipo de discussão,
a linguagem cinematográfica também deveria ser
posta em pauta como fator de desconstrução. Talvez
o exemplo maior desse processo seja mostrado no
primeiro filme de Haynes: “Superstar: the Karen
Carpenter Story”, o qual nunca foi lançado por
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problemas autorias com a trilha sonora. O filme, o
qual conta a história da banda The Carpenters, é uma
animação em stop-motion com bonecas Barbie como
protagonistas, mesclado com cenas de programas
de TV dos anos 1960 e 1970, documentários sobre
anorexia e cenas reais da libertação dos campos de
extermínio nazistas (op. cit.,335).
3. “Eu aceito o caos, eu não tenho certeza
se ele me aceita”
O caso de “Eu Não Estou Lá” não é tão
extremo, mas continua brincando com diferentes
perspectivas e com desconstruções de certos
paradigmas. Paradigmas esses que afetaram também a
relação com o mercado e com o público. Parece-nos
que isso se deve ao fato de que o filme trata muito
mais com referências e metáforas do que com fatos
que podem ser colocados em uma ordem lógica e que
tenha um sentido único. Nada é concluído no final
dos 135 minutos de duração, não pode se dizer que
aprendemos algo sobre a vida de Bob Dylan após
vermos o filme, a lógica narrativa é muito mais circular
e emaranhada do que cronológica, ou seja, após a
experiência de ver este filme se sai pensando sobre
aquilo que se viu, tentando juntar as peças, tentando
entender o que ele nos traz e nos diz. É a subjetividade
de cada um que é ativada e posta em movimento,
assim a relação do filme com a audiência se baseia
no seu próprio conhecimento (op. cit., p. 338). Talvez
o melhor comentário sobre o filme tenha vindo de
Bob Dylan quando perguntado sua opinião sobre a
película: “Você acha que o diretor estava preocupado
se as pessoas iam entender ou não? Eu não acho que
ele se importava nem um pouco. Eu apenas acho que
ele queria fazer um bom filme”12. No próximo item
vamos nos aprofundar na narrativa da película.
“É como se você tivesse ontem, hoje e amanhã
todos no mesmo quarto. Não há como prever o que
pode acontecer”, diz Billy the Kid (interpretado
por Richard Gere) enquanto dedilha o velho violão
empoeirado que encontrou escondido no vagão do
trem que o leva para longe. Esta é uma das últimas
cenas do filme “Eu Não Estou Lá”, mas serve
também como introdução e linha mestra da película.
A frase explica um pouco da lógica da narrativa do
longa-metragem: uma mistura de tempos, cada um
com suas possibilidades e versões. A impossibilidade
de previsão não nos impede de procurar as próprias
interpretações e ligações entre os tempos, tramas
e personagens do filme. Muito pelo contrário. Esta
cena também se conecta com o início do filme, o
qual começa com o personagem de Woody Guthrie
entrando em um vagão de trem empunhando o mesmo
violão, com a frase “this machine kills fascists”, que
You will hardly know who I am or what I mean,
But I shall be good health to you nevertheless,
And filter and fibre your blood.
(Walt Whitman, Song of Myself)
Billy the Kid encontra no final. Esses personagens
são, respectivamente, o mais jovem e o mais velho do
filme, e ambos vêm da cidade de Riddle (“enigma” em
inglês, um nome bem significativo dentro do contexto
do filme). Porém, não se sabe, e nem se precisa saber,
com qual deles o filme, caso contado de maneira
cronológica, começaria.
Essa quebra com o tempo é só um dos
artifícios do filme de Todd Haynes. Por exemplo,
geralmente se separa os filmes pelo seu gênero: ação,
aventura, drama, documentário, comédia, etc. O que já
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define certo público e expectativas, mas é também um
estímulo à diferenciação e não à unidimensionalidade,
pois isso gera segmentos de consumidores específicos,
os quais, através da crítica e da recepção, contribuem
para a reformulação destes gêneros (NOGUEIRA,
1998, p. 4). Contudo, esse método de separação
entre gêneros não pode ser usado para a película de
Todd Haynes. O diretor se refere ao seu filme como
uma falsa-biografia, por quebrar com um modelo
pré-estabelecido, e este longa-metragem também já
foi chamado de um “poema-ensaio” sobre os mitos
e histórias que cercam a carreira e a música de Bob
Dylan (GROSS, s.d., s.p.).
A narrativa do filme perpassa vários
segmentos que se entrelaçam, filmados, cada um
deles, com técnicas, formatos e através de narrativas
diferentes. O filme transita de um documentário para
um drama, de uma “nouvelle vague” para um clipe de
música, de uma fábula idílica para um interrogatório.
Tudo aqui é plural e nada é estático. O filme e – por
que não? – o diretor, é mais de um, o personagem
“principal” é mais de um e o roteiro (montado com
fatos reais e inventados, com citações diretas de livros,
de entrevistas, de poemas, de músicas e até de outros
filmes), pode ser considerado mais de um.
Esse tipo de abordagem em filmes sobre
músicos norte-americanos não é nova no trabalho de
Todd Haynes. Em seu filme “Velvet Goldmine”, que
trata do Glam Rock e da figura de David Bowie, o ponto
de vista já era instável, devido ao uso de diferentes
formas de mídia, como documentário, vídeo amador
e clipe de música. Assim, reconhecem-se certos
fragmentos de fatos, memórias e testemunhos, porém
a identidade tanto do filme quanto dos personagens é
fragmentada, não se sabendo o que é verdade no que
é visto e falado (DARBY, 2013, p. 337). Logo, Bob
Dylan, um artista que representa uma metamorfose
constante, seja no corpo, na voz, na música, ou em sua
própria trajetória de vida, é o signo ideal para este tipo
de cinema e narrativa. Sendo assim Haynes constrói
um filme onde o tempo histórico, biográfico, mítico
e até a temporalidade do discurso poético contamina,
realça e transforma um ao outro (GROSS, s.d., s.p.).
Para Gross esse padrão circular de imagens e tempos
mostraria a necessidade do artista popular norteamericano de se desentrelaçar das forças culturais
que procuram coagir, distorcer e possuir ele (op.
cit., s.d., s.p.). Porém, ressaltamos que não se trata
aqui da relação do filme com a vida de Bob Dylan.
Esta produção cinematográfica se utiliza apenas de
aspectos referentes a Bob Dylan para construir algo
novo, diferente. Ou seja, como o personagem de
Arthur Rimbaud diz no início de “Eu Não Estou Lá”
sobre as canções, entendemos o filme como “algo que
caminha por si mesmo”, cabendo a nós interpretá-lo e
procurar significados.
É nessa autonomia de caminhar para onde
quiser que, nos parece, reside o âmago do filme.
Não apenas no que tange a “história” de Bob Dylan
contada pelo filme, como um artista instável, em
constante metamorfose e transformações, mas na
trajetória do próprio espectador enquanto vê e
pensa o filme. Através da subjetividade do diretor,
as subjetividades dos espectadores são convidadas a
construir as interligações do filme conjuntamente. O
filme é um caos de possibilidades de interpretações e
significados. Nada é estático, nada é palpável. Darby
afirma que “Eu Não Estou Lá” é um ótimo exemplo
para a schizo-análise de Deleuze e Guattari, pois o
inconsciente para eles seria um “caos ilimitado de
possibilidades” (DARBY, 2013, p. 331). Ou seja, algo
que esta sempre em movimento, em um impulso em
Alabastro: revista eletrônica dos alunos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo, ano 2, v. 2, n. 4, 2014, p. 101-108.
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direção a novas produções, exatamente o que o filme
proporciona para o espectador.
7
Disponível em: <http://www.rottentomatoes.com/m/walk_
the_line/> (Acesso: 4 jun. 2014).
Assim, a autoria do filme como meio de
narração de uma história é estendida ao público, ao
espectador, fazendo, assim, com que ele também
vire o narrador do que se desenrola à sua frente.
Se a narrativa do filme é um emaranhado sobre as
diferentes facetas, histórias, mitos, personalidades
e criações do artista, “Eu Não Estou Lá” também
confunde a própria figura do artista entre o que é visto
e o que é interpretado. O artista que emerge de tudo
isso não é apenas cada um dos seis personagens, nem
apenas a junção de todos eles, é também o próprio
diretor e o espectador. Ou seja, o cinema aqui feito
não é a ação de imagens emitidas no cérebro de quem
visualiza para serem interpretadas como metáforas,
mas a mutualidade de geração e criação tanto do
cérebro quanto da tela (op. cit., p. 334). Todo esse
fluxo e processo caótico mostra que, parafraseando
os poetas Rimbaud e Walt Whitman, o “Eu” não é
apenas um outro, o “Eu” contém multidões.
8
Disponível em: <http://www.rottentomatoes.com/m/
im_not_there_suppositions_on_a_film_concerning_dylan/>
(Acesso: 4 jun. 2014).
9
Disponível em: <http://www.metacritic.com/movie/ray>
(Acesso: 4 jun. 2014).
Notas:
1
Até agora foram lançados nove álbuns desta coleção.
2
Este seria a primeira parte de uma trilogia escrita pelo próprio
Dylan sobre sua vida. Até agora o segundo volume não foi
lançado.
3
Disponível em: <http://www.imdb.com/title/
tt0368794/?ref_=nv_sr_1> (Acesso 4 jun. 2014)
4
Disponível em: <http://www.imdb.com/title/
tt0350258/?ref_=fn_al_tt_1> (Acesso 4 jun. 2014)
5
Disponível em: <http://www.imdb.com/title/
tt0368794/?ref_=nv_sr_1> (Acesso: 4 jun. 2014).
6
Disponível em: <http://www.rottentomatoes.com/m/ray/>
(Acesso: 4 jun. 2014).
10
Disponível em: <http://www.metacritic.com/movie/walkthe-line> (Acesso: 4 jun. 2014).
11
Disponível em: <http://www.metacritic.com/movie/im-notthere> (Acesso: 4 jun. 2014).
12
Disponível em: <http://www.rollingstone.com/music/news/
bob-dylan-unleashed-a-wild-ride-on-his-new-lp-and-strikingback-at-critics-20120927?page=6> (Acesso: 06 jun. 2014).
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