- Diálogos Literários

Transcrição

- Diálogos Literários
Literatura
norte-americana
do século XX: a
Geração Beat,
seus precursores
e seguidores
LITERATURA NORTE-AMERICANA DO SÉCULO XX: A
GERAÇÃO BEAT, SEUS PRECURSORES E SEGUIDORES∗
Se as portas da percepção se desvelassem, cada
coisa apareceria ao homem como é, infinita. Pois
o homem se enclausurou a tal ponto que apenas
consegue enxergar através das estreitas frestas de
sua gruta (William Blake).
A ORIGEM DA EXPRESSÃO “GERAÇÃO BEAT”.
PRINCIPAIS REPRESENTANTES: Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William
Burroughs, Lawrence Ferlinghetti, Neal Cassady, Gregory Corso, Carl Solomon.
(Jack Kerouac e Allen Ginsberg)
∗
Material preparado pelo professor Willian André para fins de discussão em encontro do Grupo
de Pesquisa em Diálogos Literários.
Av. Comendador Norberto Marcondes, 733
Campo Mourão - Paraná - Brasil - CEP 87.303-100 - Fone (44)3518-1880
www.fecilcam.br - www.dialogosliterarios.wordpress.com [email protected]
(No sentido horário: Imagem 1 – Gregory Corso, Allen Ginsberg e William Burroughs; Imagem
2 – Lawrence Ferlinghetti; Imagem 3 – Allen Ginsberg e William Burroughs; Imagem 4 –
William Burroughs)
UMA ANEDOTA QUE RESUME TUDO:
O ENCONTRO DE ALLEN GINSBERG COM
COM CARL SOLOMON
CARACTERIZAÇÃO DA GERAÇÃO BEAT
A “SEGUNDA VANGUARDA”: Representou o novo e foi inovadora naquele
contexto, do mesmo modo como futurismo e dadaísmo representaram o novo,
de diferentes modos, em outro momento. Se recuperou o ímpeto inovador do
primeiro ciclo vanguardista, adicionou-lhe – assim como outros movimentos da
época – novas tomadas de posição, não só estéticas, mas políticas. Representou
a busca de alternativas que ultrapassassem a polaridade típica da Guerra Fria,
entre stalinismo e macarthismo, ortodoxia soviética e reacionarismo burguês
(WILLER, 2009, p. 16).
AS INFLUÊNCIAS: surrealistas certamente leram muito; assimilaram e
prosseguiram uma tradição romântica e uma herança simbolista – mas a
expressão surrealista tem mesmo, como ponto de partida, as prosas poéticas de
Rimbaud e Os cantos de Maldoror, de Leautréamont. Na beat, as influências
2
mais importantes cobrem um arco que vai de Dostoiévski a Ezra Pound, de
Whitman e dos transcendentalistas norte-americanos a Louis-Ferdinand Céline,
de García Lorca a Gertrude Stein, de William Blake a Thomas Wolfe (WILLER,
2009, p. 24).
A AMIZADE: Foi um movimento literário: quanto a isso, Ginsberg foi claro.
Mas referiu-se, na mesma frase, a um grupo de amigos. E disse que esses
amigos trabalharam juntos. Amizade: aí está algo diferenciador ou definidor da
beat (WILLER, 2009, p. 16-17). / Desafetos dificilmente integram o mesmo
movimento. Adesão a um programa literário ou artístico nunca é impessoal.
Mas na beat a amizade foi transcendental, no sentido romântico do termo.
Ginsberg, em especial, a sacralizou. Ao mesmo tempo, a sexualizou. E a
confundiu com cumplicidade, não só no sentido mais metafórico, mas em um
sentido até jurídico (WILLER, 2009, p. 17).
A LIBERAÇÃO SEXUAL: E fizeram sexo juntos. O limite entre amizade e
outras intimidades era fluido. E não só nas relações entre eles, como aquelas
envolvendo Ginsberg, Kerouac, Cassady e as mulheres de Cassady, mas em
sessões coletivas. O relato, por Daiane di Prima, de um verdadeiro
empilhamento de corpos, dela, de Kerouac, Ginsberg e Orlovsky, já em 1958, é
confirmado por outras fontes. Ginsberg transando com Burroughs, no início
daquela década, ou levando Corso imediatamente para a cama, ao conhecê-lo
(WILLER, 2009, p. 19).
O ENTRELAÇAMENTO BIOGRÁFICO: Personagens de si mesmos, foram
pratos cheios para biógrafos – só o que existe de estudos biográficos sobre
Kerouac preenche uma longa prateleira de estante. Liberdade de expressão foi
indissociável do teste dos limites da liberdade individual e das tentativas de
projetá-la como utopia política. Por isso, inauguraram uma nova relação entre
arte e vida, literatura e sociedade (WILLER, 2009, p. 26).
MISTICISMO; INTERESSE POR
(relação com o uso de drogas).
BUDISMO
E
GNOSTICISMO
NOMADISMO.
A CRIAÇÃO COLETIVA: escritas conjuntas, textos-colagens, tematizações,
citações (intertextualidade promíscua), editorações, prefácios, dedicatórias,
correspondências.
A ESTREITA RELAÇÃO COM A MÚSICA: A beat se formou com o jazz bop
e se expressou através do rock – e de música pop, balada country, blues, rap e
criações de vanguarda, experimentais. Percorreu um trajeto de Lester Young,
Dizzie Gillespie, Charlie Parker, Thelonius Monk e Linnie Tristano, passando
por Bob Dylan (com quem Ginsberg se apresentou e fez parcerias), Ray Charles
(que homenageou Kerouac em “Hit the Road, Jack”), Janis Joplin (“Mercedes
Benz”, letra de Michael McClure), e The Grateful Dead (que homenageou Neal
Cassady), até The Clash (que recebeu Ginsberg em shows), Laurie Anderson
(com quem Burroughs contracenou), Philip Glass (que compôs uma ópera sobre
temas de Ginsberg) e The Band (que se apresentou com Ferlinghetti em um
concerto filmado por Scorsese). Poesia e música sempre caminharam juntas.
3
Mas em nenhum movimento literário da modernidade, ou desde o romantismo,
a ligação foi tão íntima. A beat foi sonora. Tem discografia, e não só bibliografia
(WILLER, 2009, p. 13).
A HETERODOXIA EXTERNA (diversidade e respeito a ideologias
diferentes): Burroughs, protestante branco; Kerouac, índio norte-americano e
bretão; Corso, católico italiano; eu, radical judeu; Orlovsky, russo branco; Gary
Snyder, escocês-alemão; Lawrence Ferlinghetti, italiano, continental, educado
na Sorbonne; Philip Lamantia, autêntico surrealista italiano; Michael McClure,
escocês do meio-oeste norte-americano; Bob Kaufman, afro-americano
surrealista; LeRoi Jones, poderoso negro, entre outros (GINSBERG apud
WILLER, 2009, p. 20-21). / Talvez essa diversidade se relacione com
características da própria sociedade norte-americana. A beat contou com negros
e descendentes de imigrantes porque lá havia muitos negros e descendentes de
imigrantes. Mas reunir desde o filho de um morador de rua, Neal Cassady, até o
descendente de uma elite econômica, William Burroughs, e do autodidata
Gregory Corso, que conheceu literatura na cadeia, até Lawrence Ferlinghetti,
doutorado na Sorbonne, a diferencia de movimentos europeus – e de outros
lugares: nossos modernistas de 1922 têm perfis bem próximos uns dos outros.
Pela primeira vez, as rebeliões artísticas antiburguesas não foram encabeçadas
exclusivamente por burgueses ou aristocratas (WILLER, 2009, p. 21).
A HETERODOXIA INTERNA: Folheando seus [de Ginsberg] Collected
Poems, deparamo-nos, na seqüência, com o registro de uma visão sob efeito de
metedrina em Hollywood, poemas bem engajados, panfletários, como
“Pentagon Exorcism” (Exorcismo do Pentágono) e uma elegia a Che Guevara,
um mantra a propósito dos flats de Cleveland – Om Om Om As Ra Wa Buda
Dakini Yea,/ Benzo Wani Yea Benzo bero/ Tsani Yea Hüm Hüm Hüm/ Phat
Phat Phat Svaha! – e, entre as comovidas elegias a Neal Cassady, um irônico
poemeto sobre beijar a bunda, “Kiss Ass”, e outro, “Please Master” (Por favor,
Senhor), com duas páginas sobre como é ser sodomizado. A oscilação entre
pólos, do mantra ao sexo explícito, do sagrado ao profano, do espiritual ao
material, é típica da beat e especialmente característica de Ginsberg. Faz parte
de sua religiosidade transgressiva (WILLER, 2009, p. 25).
O “FIM” DA CENSURA: Howl and other poems (Ginsberg, 1956); Naked
lunch (Burroughs, 1966).
QUADRO DE CARACTERÍSTICAS
TRANSGRESSÃO
SUBVERSÃO
MARGINALIDADE
HETERODOXIA
NEGAÇÃO DO AMERICAN WAY OF LIFE
4
O TRAÇADO DE UMA CONSTELAÇÃO
Knut Hansum: escritor norueguês que viveu entre a segunda metade do
século XIX e primeira metade do século XX. Não possui qualquer relação direta
com os escritores da Geração Beat, e sequer aparece entre suas leituras (Charles
Bukowski o referencia como um de seus autores favoritos). Todavia, apresenta
no romance Fome (Sult, 1890), o protótipo (próximo, em certa medida, do
dandy baudelaireano) do “vagabundo”, “errante”, “outsider”.
John Steinbeck: escritor norte-americano. Apesar de mais conhecido por As
vinhas da ira (The grapes of wrath, 1939), romance de cunho notadamente
social, possui pelo menos duas obras – Boêmios errantes (Tortilla Flat, 1935) e
A rua das ilusões perdidas (Cannery Row, 1945) – cujos personagens
enquadram-se no modelo de outsider que será explorado pela literatura beat.
Henry Miller: escritor norte-americano. Seu romance Trópico de Câncer
(Tropic of Cancer, 1934), que aqui destacamos, também contribui – apesar de
apresentar uma narrativa que de desenrola na Europa (com personagens norteamericanos) – para o traçado da constelação de personagens e motivos
outsiders aqui esboçado. Após o lançamento, o romance foi proibido nos
Estados Unidos, voltando a ser publicado apenas em 1961.
John Fante: escritor norte-americano de origem italiana. Apresenta, no
romance Pergunte ao pó (Ask the dust, 1939), o clássico personagem Arturo
Bandini, que também compõe o modelo do outsider.
Raymond Carver: escritor norte-americano. Talvez o mais destoante dentre
os autores aqui relacionados, Carver apresenta personagens que,
aparentemente, não se enquadram no grupo dos marginais – remetendo muito
mais ao estilo de vida padrão da classe burguesa. Em praticamente todos os seus
contos – como naqueles encontrados no volume Iniciantes (Beginners, 2009),
todavia, os personagens são submetidos a um doloroso processo de implosão
(de valores e sentimentos) que merece destaque nas reflexões aqui propostas.
Charles Bukowski: escritor norte-americano. Apesar de nunca ter se
associado o grupo dos beats, a correlação por parte de seus leitores é quase
sempre imediata. Os personagens apresentados nos muitos livros do autor (com
destaque para Henry Chinaski, seu alter-ego) constituem, talvez, o melhor
exemplo do modelo outsider aqui delineado.
Poesia Marginal Brasileira: é reconhecido o débito dos autores (entre os
quais destacamos, aqui, Paulo Leminski, Chacal e Cacaso) que configuram o
quadro daquela que ficou conhecida como a “poesia marginal” brasileira para
com o movimento da contra-cultura norte-americana, das décadas de 60 e 70,
que, por sua vez, encontra suas raízes na revolução provocada pela Geração
Beat.
Roberto Piva: apesar de não ser diretamente relacionado ao grupo dos poetas
marginais, Roberto Piva é aquele cuja poesia talvez mais se aproxime das
5
propostas beat. Em um livro como Paranóia (1963), por exemplo, são evidentes
as aproximações com a poética de Allen Ginsberg.
Pedro Juan Gutiérrez: escritor cubano contemporâneo. Os contos que
compõem o volume Trilogia suja de Havana (Trilogía sucia de La Habana,
1998), por exemplo, possuem um teor muito próximo da literatura de Bukowski.
Mário Bortolotto: escritor brasileiro contemporâneo, que se dedica
principalmente à dramaturgia. São constantes, nas obras de Bortolotto, as
referências explícitas aos autores que pertenceram à Geração Beat. Além disso,
seus textos transpiram o mesmo teor de marginalidade e transgressão que
orientam nossas reflexões. Algumas peças de destaque: “Diário das crianças do
velho quarteirão” (1994), “E éramos todos Thunderbirds” (2001), “Homens,
santos e desertores” (2002).
Efraim Medina Reyes: escritor colombiano contemporâneo. Autor do
romance Era uma vez o amor mas tive que matá-lo (Érase una vez el amor
pero tuve que matarlo, 2003), que faz referências constantes a Bukowski e
apresenta várias características que o tornam próximo da literatura beat.
UMA LEITURA DO CONTO “TANTA ÁGUA TÃO PERTO DE
CASA”, DE RAYMOND CARVER
•
•
•
a destruição do American way of life;
as AÇÕES GROTESCAS dos bons sujeitos burgueses, trabalhadores, pais
de família;
a implosão do casamento.
Na primeira noite no rio, antes mesmo de poderem montar acampamento, Mel
Dorn achou a garota boiando no rio, de cara para baixo, nua, agarrada em uns
galhos perto da margem. Chamou os outros e todos vieram olhar. Conversaram
sobre o que deviam fazer. Um deles (...) achou que deviam voltar para o carro na
mesma hora. Os outros ficaram remexendo a areia com os sapatos e disseram
que preferiam ficar. Alegaram que estavam cansados, que já era muito tarde, e
que a garota “não ia mesmo para lugar nenhum”. No final, todos resolveram
ficar. Foram em frente, armaram acampamento, fizeram a fogueira e tomaram
seu uísque. Beberam um bocado de uísque e, quando a lua subiu, falaram a
respeito da garota. Alguém achou que aquilo podia acabar criando problema
para eles, se ela boiasse rio abaixo no meio da noite. Pegaram lanternas e foram
tropeçando rio abaixo. O vento estava forte, soprava um vento frio e as ondas do
rio batiam com força na margem arenosa. Um deles (...) entrou na água,
segurou a garota pelos dedos e puxou-a, ainda de bruços, para mais perto da
margem, na água rasa, depois pegou um pedaço de cordão de náilon, amarrou-o
em volta do seu pulso e depois prendeu o cordão nas raízes de umas árvores,
enquanto o facho das lanternas dos outros homens passava por cima do corpo
6
da garota. Depois, voltaram para o acampamento e beberam mais uísque
(CARVER, 2009, p. 168-169).
Duas coisas estão certas: 1) as pessoas já não se importam mais com o que
acontece com os outros, e 2) nada mais faz alguma diferença de verdade. Vejam
só o que aconteceu. E mesmo assim, nada vai mudar entre mim e o Stuart.
Mudar de verdade, quero dizer. Vamos ficar mais velhos, nós dois, já dá pra ver
na cara d agente, no espelho do banheiro, por exemplo, nas manhãs em que
usamos o banheiro ao mesmo tempo. E certas coisas à nossa volta vão mudar,
ficar mais fáceis ou mais difíceis, uma coisa aqui, outra ali, mas nada jamais
será diferente de verdade. (...) Tomamos nossas decisões, nossas vidas foram
postas em movimento e vão seguir adiante, até a hora em que vão parar. Mas, se
isso for mesmo verdade, e daí? Quer dizer, a gente acredita nisso, e mantém isso
escondido, até que um dia acontece uma coisa que devia mudar tudo, só que aí a
gente vê que, no final das contas, nada vai mudar. E daí? Enquanto isso, as
pessoas em volta da gente continuam a falar e a agir como se a gente fosse a
mesma pessoa do dia anterior, ou da noite anterior, ou de cinco minutos antes,
mas na verdade a gente está passando por uma crise, o coração sente que sofreu
um estrago... (CARVER, 2009, p. 176-177).
E então sou levantada e depois jogada no chão. Fico sentada no chão, olhando
para cima, na direção dele, meu pescoço dói e minha saia está acima do joelho.
Ele se curva e diz, Vá para o inferno, então, está ouvindo, piranha? Tomara que
a sua boceta apodreça antes que eu chegue a tocar nela de novo. Ele soluça
novamente e me dou conta de que ele não pode ajudar, não pode nem ajudar a
si mesmo (CARVER, 2009, p. 190).
CHARLES BUKOWSKI: UM CAPÍTULO À PARTE
“O ruim é que você lê
os grandes autores
mas só Bukowski lhe
diz alguma coisa”
(E. M. Reyes)
•
•
•
a personificação por
excelência do
outsider;
uma literatura
extremamente
niilista;
a poética do
isolamento.
7
O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do
navio
Contexto: coletânea de anotações mantidas por Bukowski, em forma de diário,
do final de 1991 ao início de 1993 (o autor falece em maio de 1994).
Entrada de 13/09/91 – 17:28: uma reflexão niilista sobre o escrever e sobre
a velhice.
Tem noites em que esta sala é o único lugar onde quero estar. Ainda assim, me
levanto e sou uma casca vazia (BUKOWSKI, 2010, p. 17).
Ficar velho é muito estranho. A coisa principal é que você tem que ficar
constantemente dizendo a si mesmo estou velho, estou velho. Você se vê no
espelho quando desce no elevador, mas não olha diretamente para o espelho, dá
uma olhada de lado, um sorriso amarelo. Você não está tão mal, você parece
algo como uma vela empoeirada. Azar, fodam-se os deuses, foda-se o jogo. Você
já deveria estar morto há 35 anos. Isto é uma cena a mais, mais uma olhada no
show de horror. Quanto mais velho o escritor fica, melhor ele deve escrever, ele
já viu mais coisas, já agüentou mais, já perdeu mais, está mais perto da morte.
Esta última é a maior vantagem. E há sempre a nova página, a página em
branco, 8 e ½ por 11 polegadas. O jogo continua. Daí você sempre lembra de
uma ou duas coisas que os outros disseram. Jeffers: “Zangue-se com o sol”.
Maravilhoso demais. Ou Sartre: “O inferno são os outros”. Direto no alvo.
Nunca estou sozinho. A melhor coisa é ficar sozinho, mas nem tanto assim
(BUKOWSKI, 2010, p. 18).
Quanto a escrever, hoje escrevo basicamente da mesma forma que fazia há 50
anos, talvez um pouco melhor, mas não muito. Por que tenho que chegar aos 51
para poder pagar o aluguel com os meus livros? Quero dizer, se estou certo e
escrevo igual, por que demorou tanto? Tive que esperar que o mundo me
entendesse? E, se ele me entende, como estou agora? Mal, é isso. Mas não acho
que não fiquei burro por acaso. Será que um cara burro se dá conta que é? Mas
estou longe de estar satisfeito. Há alguma coisa em mim que não consigo
controlar. Nunca dirijo meu carro por cima de uma ponte sem pensar em
suicídio. Quero dizer, não fico pensando nisso. Mas passa pela minha cabeça:
SUICÍDIO. Como uma luz que pisca. No escuro. Alguma coisa que faz você
continuar. Saca? De outra forma, seria apenas loucura. E não é engraçado,
colega. E cada vez que escrevo um bom poema, é mais uma muleta que me faz
seguir em frente. Não sei quanto às outras pessoas, mas quando me abaixo para
colocar os sapatos de manhã, penso, Deus Todo-Poderoso, o que mais agora? A
vida me fode, não nos damos bem. Tenho que comê-la pelas beiradas, não tudo
de uma vez só. É como engolir baldes de merda. Não me surpreende que os
hospícios e as cadeias estejam cheios e que as ruas estejam cheias. Gosto de
olhar os meus gatos. Eles me acalmam. Eles me fazem sentir bem. Mas não me
coloque em uma sala cheia de humanos. Nunca faça isso comigo (BUKOWSKI,
2010, p. 20-21).
8
Você não consegue escrever uma história de amor
•
uma metanarrativa paradoxalmente amarga e bem-humorada.
– Não consigo escrever – disse Carl. – Acabou-se.
Então ele se levantou e foi até o banheiro, fechou a porta e deu uma cagada. Carl
cagava quatro ou cinco vezes por dia. Não havia mais nada a fazer. Ele tomava
cinco ou seis banhos por dia. Não havia mais nada a fazer. Ficava bêbado pela
mesma razão (BUKOWSKI, 2011, p. 93).
– É... – disse Margie – eu sei. Você precisa do seu isolamento. Você precisa ficar
sozinho. Exceto quando quer trepar, ou exceto quando nos separamos, então
você me liga. Diz que precisa de mim. Diz que está morrendo por causa de uma
ressaca. Você enfraquece rápido.
– Enfraqueço rápido.
– E fica tão inerte quando estou por perto, nunca se excita. Vocês escritores são
tão... preciosos... não suportam pessoas. A humanidade fede, certo?
– Certo. (BUKOWSKI, 2011, p. 94).
Animal crackers in my soup
Uma releitura moderna do mito de Adão e Eva: a impossibilidade de se
conquistar o paraíso.
•
o típico marginal errante:
Tinha saído de uma longa bebedeira, durante a qual perdi um emprego mixa, o
meu quarto e (talvez) a cabeça. Depois de passar a noite dormindo num beco,
vomitei no sol, esperei cinco minutos e aí então acabei com o resto da garrafa de
vinho que achei no bolso do paletó. Comecei a andar pela cidade, assim, ao léu.
Enquanto caminhava, me veio a sensação de que estava percebendo, em parte, o
sentido das coisas. Claro que não estava. Mas ficar lá parado, no beco, não
resolvia nada (BUKOWSKI, 2007, p. 243).
•
“zoofilia”: a harmonia do princípio dos tempos narrada no Gênesis (um
pedaço do mundo que não foi maculado pela sujeira do homem):
O tigre rodeava a mesa em círculos lentos. De repente começou a andar cada vez
mais depressa, sacudindo o rabo. Carol soltou um gemido abafado. A essa
altura, o tigre já estava parado diante das pernas dela. Ergueu o corpo e pousou
as duas patas de cada lado da cabeça de Carol. O membro cresceu, gigantesco.
Cutucou a buceta, procurando a entrada. Carol pegou com as mãos, tentando
orientá-lo. Os dois se contorceram à beira de uma agonia insuportável e ardente
(BUKOWSKI, 2007, p. 249).
•
“cenas de sexo explícito”: sacralização e pureza – a celebração da vida:
Fiquei parado e ela se debatendo. Apertei os dedos dos pés na ponta do sofá,
calcando com força, completamente imóvel. E aí forcei o pau a latejar três vezes,
sem mexer com o corpo. Ela reagiu com contrações. Repetimos aquilo e quando
9
vi que não dava mais pra agüentar, tirei quase todo pra fora e enfiei outra vez –
com tesão e cuidado – tornando a vibrar ali dentro e de repente parando,
enquanto Carol se revirava toda: parecia um peixe preso no anzol. Fizemos isso
várias vezes. Depois, com desvairado abandono, comecei a meter e tirar,
sentindo o pau aumentar de tamanho e volume, os dois atingindo culminâncias
juntos, numa simbiose perfeita, ultrapassando tudo, a história, nós mesmos, o
nosso egoísmo, além de toda compaixão e análise, de tudo, em suma, com a
alegria secreta de estarmos celebrando a Vida (BUKOWSKI, 2007, p. 253).
•
a utopia da salvação:
O mundo está cansado. O fim não deve tardar. As pessoas embruteceram,
ficaram irresponsáveis – uma gente de pedra. Cansaram delas mesmas. Vivem
rezando para que a morte venha, e são preces que serão atendidas. Eu... eu
estou... bom... eu ando meio que preparando uma nova criatura pra povoar o
que sobrar da Terra. Tenho a impressão de que noutros lugares também tem
mais gente preparando essa nova criatura. Talvez até sejam muitos. Essas
criaturas vão se encontrar, procriar e sobreviver, entendeu? Mas devem ser uma
síntese do que todas as criaturas, homem inclusive, possuem de melhor, pra
sobreviver dentro da pequena partícula de vida que vai permanecer...
(BUKOWSKI, 2007, p. 251).
•
o embrutecimento do homem:
Levei dois dias pra enterrar todos. Carol colocou marchas fúnebres no tocadiscos, cavei as sepulturas, coloquei os cadáveres nas covas e cobri com terra. A
tristeza era insuportável. Carol marcou os túmulos e nós dois tomamos vinho,
sem dizer nada (BUKOWSKI, 2007, p. 256).
•
a hecatombe – impossibilidade de salvação:
Disse o meu nome à enfermeira. Ela entrou na sala envidraçada e localizou o
nosso filho. Ao levantar a criança no ar, a enfermeira sorriu. Um sorriso incrível,
de perdão. Nem podia ser de outro modo. Olhei para a criança – impossível,
clinicamente impossível: era um tigre, um urso, uma cobra e um ser humano.
Um alce, um coiote, um lince e um ser humano. Não chorava. Os olhos se
fixaram em mim e me reconheceram. E eu também reconheci. Uma coisa
insuportável, o Homem e o Super-homem, Super-homem e Superfera.
Completamente impossível e olhava pra mim, o Pai, um dos pais, um dos
muitos e muitos pais... e os raios de sol se cravaram no hospital, que começou a
estremecer de cima a baixo, as crianças rugindo de medo, as luzes se acendendo
e apagando; um clarão roxo relampejou na repartição de vidro na minha frente.
As enfermeiras gritavam. Três luminárias fluorescentes se desprenderam dos
suportes e desabaram sobre os berços. A enfermeira ficou ali parada, em pé,
segurando meu filho e sorrindo, enquanto a primeira bomba de hidrogênio caía
sobre a cidade de São Francisco (BUKOWSKI, 2007, p. 258).
10
REFERÊNCIAS
BORTOLOTTO, Mário. Para os inocentes que ficaram em casa. In: ________.
Para os inocentes que ficaram em casa. Independente, 1997, p. 25-26.
________. E éramos todos Thunderbirds. In: ________. Doze peças de
Mário Bortolotto. Londrina: Atrito Art Editorial, 2003, p. 9-36.
BUKOWSKI, Charles. Aviso. In: ________. Essa loucura roubada que não
desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém. Edição bilíngue. Tradução:
Fernando Koproski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 71.
________. Animal crackers in my soup. In: ________. Fabulário geral do
delírio cotidiano: ereções, ejaculações e exibicionismos – parte II. Tradução:
Milton Persson. 2 ed. Porto Alegre: L&PM, 2007, p. 243-258.
________. O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do
navio. Tradução: Betina Gertum Becker. Ilustrações: Robert Crumb. Porto
Alegre: L&PM, 2010, p. 17-21.
________. Você não consegue escrever uma história de amor. In: ________.
Ao sul de lugar nenhum: histórias da vida subterrânea. Tradução: Pedro
Gonzaga. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 93-97.
CARVER, Raymond. Tanta água tão perto de casa. In: ________. Iniciantes.
Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 166191.
FERLINGUETTI, Lawrence. Um parque de diversões da cabeça. Edição
bilíngue. Tradução: Eduardo Bueno e Leonardo Fróes. 2 ed. Porto Alegre:
L&PM, 2007.
GINSBERG, Allen. Uivo. In: ________. Uivo e outros poemas. Tradução:
Claudio Willer. 11 ed. Porto Alegre: L&PM, 2010.
GUTIÉRREZ, Pedro Juan. Na boca do lobo. Tradução: Marcos Losnak. In:
Revista Coyote, n. 5. Londrina: Outono, 2003, p. 29.
________. Eu, revirador de merda. In: ________. Trilogia suja de Havana.
Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 96100.
KEROUAC, Jack. On the road. Tradução, introdução e posfácio: Eduardo
Bueno. Porto Alegre: L&PM, 2009.
MILLER, Henry. Trópico de câncer. Tradução: Beatriz Horta. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2006.
PIVA, Roberto. Paranóia em Astrakan. In: ________. Um estrangeiro na
legião - obras reunidas, volume 1 (organização: Alcir Pécora). São Paulo: Globo,
2005, p. 37.
REYES, Efraim Medina. Era uma vez o amor mas tive que matá-lo. Tradução:
Maria Alzira Brum Lemos. São Paulo: Planeta, 2006.
WILLER, Claudio. Geração Beat. Porto Alegre: L&PM, 2009.
11
ANEXOS
UIVO (ALLEN GINSBERG) – um fragmento...
Para Carl Solomon
I
Eu vi os expoentes da minha geração destruídos por
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado na
maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram
fumando sentados na sobrenatural escuridão dos
miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando
sobre os tetos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e
viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos
telhados das casas de cômodos,
que passaram por universidades com olhos frios e
radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de
Blake entre os estudiosos da guerra,
que foram expulsos das universidades por serem loucos &
publicarem odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura
descascada em roupa de baixo queimando seu
dinheiro em cestos de papel, escutando o Terror
através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por
Laredo com um cinturão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal pintados ou beberam
terebintina em Paradise Alley, morreram ou
flagelaram seus torsos noite após noite
com sonhos, com drogas, com pesadelos na vigília,
álcool e caralhos e intermináveis orgias,
incomparáveis ruas cegas sem saída de nuvem trêmula e
clarão na mente pulando nos postes dos pólos de
Canadá & Paterson, iluminando completamente o mundo
imóvel do Tempo intermediário
(GINSBERG, 2010, p. 25-26)
ON THE ROAD (JACK KEROUAC) – um fragmento...
Começou então o louco redemoinho de tudo o que ainda
estava por vir; e ele misturaria todos meus amigos e
o pouco que restava da minha família numa gigantesca
nuvem de poeira pairando sobre a Noite Americana.
Carlo falava a Dean sobre Old Bull Lee, Elmer Hassel
e Jane: Lee no Texas plantando maconha, Hassel na
ilha de Riker, Jane vagando pela Times Square em
plena viagem de benzedrina, com sua bebezinha nos
braços e acabando em Bellevue. E Dean falou para
Carlo sobre desconhecidos do Oeste como Tommy Snark,
o craque manco das mesas de bilhar, viciado no
baralho e veado abençoado. Falou também sobre Roy
Johnson, Big Ed Dunkel, seus amigos de infância, seus
companheiros de rua, suas inumeráveis garotas e
orgias e fotos pornográficas, seus heróis, heroínas,
aventuras. Eles varavam as ruas juntos absorvendo
tudo com aquele jeito que tinham no começo, e que
mais
tarde
se
tornaria
muito
mais
melancólico,
perceptivo e vazio. Mas nessa época eles dançavam
pelas ruas como piões frenéticos e eu me arrastava na
mesma direção como tenho feito toda minha vida,
sempre rastejando atrás de pessoas que me interessam,
porque, para mim, pessoas mesmo são os loucos, os que
estão loucos para viver, loucos para falar, loucos
para serem salvos, que querem tudo ao mesmo tempo
agora, aqueles que nunca bocejam e jamais falam
chavões, mas queimam, queimam, queimam como fabulosos
fogos de artifício explodindo como constelações em
cujo centro fervilhante – pop! – pode-se ver um
brilho azul e intenso até que todos “aaaaaaah!”. Como
é mesmo que eles chamavam esses garotos na Alemanha
de Goethe? Desejando ardorosamente aprender como
escrever tão bem quanto Carlo, Dean, como é fácil
imaginar,
começou
a
envolvê-lo
com
aquela
alma
insinuante e amorosa que só mesmo um verdadeiro
vagabundo poderia ter.
(KEROUAC, 2009, p. 24-25)
UM
PARQUE
DE
DIVERSÕE
DA
DIVERS ES
FERLINGHETTI) – um fragmento...
CABEÇA
CABE A
(LAWRENCE
3
O olhar do poeta olhando obsceno
vê a superfície do mundo
redondo com seus tetos de porre
e passarinhos de madeira em varais
seus machos de argila e fêmeas
de peitos em botão e pernas quentes
em camas de desmontar
e seu mistério carregado nas árvores
seus parques dominicais de estátuas mudas
sua América
rica de localidades fantasmas e ilhas de formalidades
vazias
e a paisagem surrealista composta de
campinas sonhadoras
subúrbios – supermercados
cemitérios de aquecimento a vapor
cinerama feriados
e catedrais protestantes
um mundo à prova de beijo com assentos de privada de
plástico tampax e táxis
caubóis drogstorizados e virgens las vegas
índios renegados madames cinemalucas
senadores irromanos conformistas conscienciosos.
e todos os outros fragmentos fatais podados
do sonho do imigrante feito real demais
e extraviado
no meio dos banhistas ao sol
(FERLINGHETTI, 2007, p. 23)
AVISO (CHARLES BUKOWSKI)
os cisnes se afogam em águas sujas,
retirem os avisos,
testem os venenos,
isolem a vaca
do touro,
a peônia do sol,
tirem os beijos de alfazema de minha noite,
botem as sinfonias nas ruas
como mendigos,
afiem as garras,
açoitem as costas dos santos,
atordoem sapos e ratos para o gato,
queimem os quadros encantados,
mijem no amanhecer,
meu amor
está morto.
(BUKOWSKI, 2005, p. 71)
PARANÓIA
PARAN IA EM ASTRAKAN (ROBERTO PIVA)
Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo
seus olhos com lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos
paquidermes que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros
para os telhados estéreis e incendeiam
internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos
furiosos puxam a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e
a noite caminha no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o
Outono de sua última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada
no horizonte branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela
fotografia de peixe escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas
hemorróidas das beatas
onde as cartas reclamam drinks de emergência para
lindos tornozelos arranhados
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um
punhado de fracas penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários
desordenados da imaginação
(PIVA, 2005, p. 37)
EU, REVIRADOR DE MERDA (PEDRO JUAN GUTIÉRREZ)
GUTI RREZ) –
um fragmento...
O velho me fez perder o fio do conto do
Regelio. Escrevi há vários anos. Rogelio tinha
acabado de morrer e imaginei muitas coisas da vida
dele. Não é um bom conto. A realidade é muito
melhor. Nua e crua. Tal como está na rua. Você a
pega com as duas mãos e, se tiver força, ergue do
chão e a deixa cair na página em branco. Pronto. É
fácil. Sem retoques. Às vezes a realidade é tão
dura que as pessoas não acreditam. Lêem o conto e
dizem: “Não, não, Pedro Juan, tem coisas aqui que
não funcionam. Você forçou a mão inventando.” Mas
não. Nada é inventado. Só tive força para pegar
toda a maçaroca de realidade e deixá-la cair de
supetão em cima da página em branco.
Pois é. Depois fiquei sabendo que quando era
bem criança Rogelio teve que identificar a mãe no
necrotério. Um amante a cortara em seis pedaços.
Rogelio tinha oito anos. A partir daí se fodeu
todo. Mudava de personalidade vinte vezes por dia:
passava de um pranto sentimentalóide à violência
mais odiosa. De um cara inútil e molenga a um
super-homem forte e solucionador de problemas. Era
um sujeito cheio de contradições e sem nenhuma
resistência. Tão carente de amor e tão covarde e
dependente
que
suportou
angustiado
todos
os
amantes da sua mulher. Um atrás do outro. Sempre
havia algum. Aos quarenta e seis anos não resistiu
mais e morreu de um infarto fulminante. Agora,
quatro anos depois, a mulher virou um esqueleto
calamitoso com uma doença grave nos ossos. O filho
caçula passa a metade do tempo preso e a outra
metade,
louco
e
desesperado.
A
filha
é
uma
prostituta
de
pouco
sucesso
nos
hotéis
estrangeiros. Os três obcecados com a idéia de
emigrar. Acham que a solução dos seus problemas
está nos Estados Unidos. Passam uma fome horrível,
vivem sem dinheiro e nunca se lembram de que
Rogelio existiu.
Então preciso reescrever o conto. Agora vai
ser muito mais forte. Sem mentira nenhuma. Só mudo
os nomes. Este é meu ofício: revirador de merda.
Ninguém gosta disso. Não tampam o nariz quando
passa o caminhão de lixo? Não escondem as latas de
lixo nos fundos? Não ignoram os varredores nas
ruas, os coveiros, os limpadores de fossas? Não
ficam enojados quando escutam a palavra carniça?
Por isso também não sorriem para mim e olham para o
outro lado quando me vêem. Sou um revirador de
merda. E não é que esteja procurando alguma coisa
no meio da merda. Geralmente não encontro nada. Não
posso dizer: “Ah, vejam, encontrei um brilhante na
merda, ou encontrei uma boa idéia na merda, ou
encontrei um negócio bonito.” Não é bem assim. Não
procuro nada e não encontro nada. Portanto, não
posso demonstrar que sou um sujeito pragmático e
socialmente útil. Só faço como as crianças: cagam e
depois brincam com a própria merda, cheiram, comem
e se divertem, até que chega a mãe para tirá-las da
merda, dar um bainho, passar perfume e explicar
que não podem mais fazer aquilo.
Mais
nada.
Não
me
interessa
o
que
é
decorativo, nem o que é belo, nem o que é doce, nem
o que é delicioso. É por isso que sempre duvidei de
uma escultora que foi minha mulher por algum
tempo. Suas esculturas tinham paz demais para
serem boas. A arte só serve para alguma coisa se
for irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e
desespero.
Só
uma
arte
irritada,
indecente,
violenta, grosseira pode nos mostrar a outra face
do mundo, aquela que nunca vemos ou nuca queremos
ver para não causar incômodos à nossa consciência.
É isso. Nada de paz e tranqüilidade. Quem
atinge o repouso em equilíbrio está perto demais de
Deus para ser artista.
(GUTIÉRREZ, 2008, p. 98-100)
NA BOCA DO LOBO (PEDRO JUAN GUTIÉRREZ)
GUTI RREZ)
Alguns de meus melhores amigos
os mais honrados e honestos
suicidaram-se
Não seguraram a barra
Algumas de minhas mulheres
as mais doces e suaves
tornaram-se azedas e corrosivas
Estou na boca do lobo
e não sei o que fazer
tento apenas ganhar o tempo
Pode ser instinto de preservação
O fantasma de Kaváfis
A influência da lua
Escuto cantos gregorianos
no crepúsculo
com um charuto
e uma garrafa de rum nas mãos
olho para o mar
O nojo e a merda se dissolvem
na luz dourada
E minha mulher
que limpa a casa
alheia a tudo
me diz “não beba sozinho
me traz uma dose
com mel e limão”
(GUTIÉRREZ, 2003, p. 29)
E ÉRAMOS
RAMOS TODOS THUNDERBIRDS (MÁRIO
(M RIO BORTOLOTTO) um fragmento...
E éramos todos invencíveis. Com nossas coleções
de figurinhas. O tênis Kichute. As balas Apache e os
desenhos do Zé Buscapé. Éramos orgulhosos de nossas
cicatrizes. Da Nádia Lippi. Da Rose di Primo. Do pai
bebum. De nossas bravatas adolescentes. Do Rivelino,
do Clodoaldo e do Tostão. A gente queria era bandido
na seleção. A gente queria o Troféu Abacaxi. A gente
queria Rita Cadilac na televisão. A gente queria
panqueca no café da manhã e vinho Sangue de Boi.
Boquete da Lurdinha no Fusquinha. Nosso ideal de vida
era
um
salão
de
sinuca.
Ninguém
queria
ser
publicitário. Ninguém queria lavar pratos em Nova
York. Ninguém queria comer sashimi nem tomar santo
daime. A gente queria era ver a Linda Blair dar um
180 na responsa. Cult pra gente era Jane Russel,
malandro.
Éramos
punheteiros.
Jamais
onanistas.
Éramos
consumidores
de
penicilina.
Amantes
de
estrias.
Nossos troféus eram bandagens amarelas. A gente ia
tirar a Penélope das garras do Tião Gavião.
Éramos iconoclastas. A gente queria pôr no rabo
dos Gurus, das socialites e dos corredores de fórmula
1. Era um tempo em que o mundo se dividia em fodões e
cuzões.
A gente não usava boca de sino. Não dançava em
discotecas e nossos heróis não morriam de overdose. A
gente morria da dor de existir.
Éramos todos Mirisolas. Éramos todos Beavis &
Butt Head. Éramos amargos, ressentidos e cheios de
raiva. Éramos cínicos e orgulhosos. Éramos de um
tempo em que todo mundo queria ser centroavante.
Estamos velhos e nostálgicos. Estamos chapados e
nocauteados.
Detonados
no
sofá
encarquilhado.
O
babaca de branco já contou até 10. Então foda-se.
Isso a gente ainda pode falar. Baixinho, mas pode.
Foda-se.
Mas ainda vamos chutar alguns traseiros.
Éramos o caralho!
(BORTOLOTTO, 2003, p. 11)
PARA
OS
INOCENTES
BORTOLOTTO)
QUE
FICARAM
EM
CASA
(MÁRIO
(M RIO
Anjos empapuçados de frutas proibidas
invadem os bares
quebrando garrafas de cerveja
e proclamando sobre mesas amarelas
VAMOS CORRER O RISCO
NAS BANHEIRAS DOS QUARTOS DE HOTEL
Linda repórter de cabelos curtos
abastece sua lata de lixo
com contos eróticos
de desprezível autor marginal
e as manchetes insistem que tudo está bem
enquanto um inacreditável
simpático
garçom nos espreita com borbulhantes taças de
champanhe
o velho empresário precisa saber
que os anjos freqüentam a seção de classificados
dormem até mais tarde
e estão insatisfeitos
e querem a cabeça dos patrocinadores.
Eles irão invadir os gabinetes
vomitando
vinho & jazz & lágrimas
nos porta-retratos
vai ser o dia do Armagedon
o dia dos ponteiros petrificados
e todos os caras achando que fazem parte do espetáculo
sendo banhados pelos holofotes
eles não sabem que não há nada nesse mundo que lhes garanta
um lugar de destaque
nos camarins
a valsa vienense sendo tocada na hora do fim
um samurai fazendo as vezes do carrasco
borrifando groselha e cegando vagalumes
UM GAROTO TRISTE SALTOU DO
TERCEIRO ANDAR
DE UM EDIFÍCIO EM CHAMAS
Agora os anjos foram expulsos do bar
e estão escrevendo os nomes de suas namoradas nos muros
com sangue
e o garoto triste é só um monte de cinzas
numa latinha de coca-cola
pagou pelas iluminações que não viu
pelo papel branco na máquina de escrever
pelo anjo com copo na mão às três da madrugada
por ter insistido com os tais discos voadores
por ter arrastado sua carcaça pessimista
pelo mais negro dos infernos
por ter sido sublime
em um mundo ridículo
por ter sido amoral
morreu cético
e os anjos contam fábulas a respeito do garoto triste
e o velho empresário vai entregá-los ao carrasco por subversão
e então resolvo confessar
que sou eu
que me armo com meus caninos sobressalentes
e só saio depois das dez
eu sou o precursor
o cara que leva o pergaminho
& uma flauta doce
no bolso do sobretudo
Sou
eu
que ando
matando
os morcegos.
(BORTOLOTTO, 1997, p. 25-26)
TRÓPICO
DE
TR PICO
fragmento...
CÂNCER
C NCER
(HENRY
MILLER)
–
um
Em outros tempos, eu achava que ser humano era o
objetivo mais alto que um homem podia ter, mas
vejo agora que isso se destinava a destruir-me.
Hoje, orgulho-me em dizer que sou inumano, que não
pertenço a homens e governos, que não tenho nada a
ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver com
a maquinaria rangente da humanidade, eu pertenço à
Terra! Digo isso deitado em meu travesseiro e
sinto os chifres nascendo na minha testa. Posso
ver ao meu redor todos aqueles meus antepassados
doidos dançando em volta da cama, consolando-me,
estimulando-me, chicoteando-me com suas línguas de
serpente, arreganhando os dentes e olhando-me de
lado com suas caveiras. Sou inumano! Digo isso com
um riso possesso e alucinado e continuarei a dizer
mesmo que chovam crocodilos. Por trás de minhas
palavras estão todas aquelas caveiras arreganhandose há muito tempo; outras, como se tivessem uma
contração; e por fim, as que exibem uma careta com
um
riso
malicioso,
cujo
antegozo
e
cujas
conseqüências continuam sempre. Vejo, mais claro do
que tudo, minha própria caveira arreganhada, vejo o
esqueleto dançando ao vento, serpentes saindo da
língua apodrecida e as páginas inchadas de êxtase,
enlameadas de excremento. Junto minha lama, meu
excremento, minha loucura, meu êxtase ao grande
circuito que flui pelas galerias subterrâneas da
carne. Todo esse vômito de bêbado, não solicitado,
indesejado, continuará saindo sem parar das mentes
daqueles que virão no inesgotável vaso que contém a
história da raça. Ao lado da espécie humana, há
outra raça, a dos inumanos, a raça de artistas que,
espicaçados por impulsos desconhecidos, tomam a
massa sem vida da humanidade e, com a febre da
agitação que a impregnam, transformam essa massa
úmida em pão e o pão em vinho e o vinho em canção.
Do composto morto e da escória inerte criam uma
que
contagia.
Vejo essa
outra raça
de
canção
indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo
de cabeça para baixo, os pés sempre pisando em
sangue e lágrimas, as mãos sempre vazias, sempre se
estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus
fora do alcance: matando tudo o que podem para
acalmar o monstro que lhe rói as entranhas. Vejo
que, quando eles arrancam os cabelos no esforço de
compreender e capturar aquele eterno inatingível,
quando berram como bestas enlouquecidas, rasgam e
ferem, vejo que isso está certo, que não há outro
caminho. Um homem que pertence a essa raça precisa
ficar em pé no lugar alto, com palavras desconexas
na boca, e arrancar as próprias entranhas. É certo
e justo, porque ele precisa! E tudo quanto estiver
aquém desse espetáculo assustador, tudo que causar
menos sobressalto, menos terror, o que for menos
louco, menos inebriante, menos contagiante, não é
arte. O resto é falsificação. O resto é humano. O
resto pertence à vida e à ausência de vida.
(MILLER, 2006, p. 234-235)
ERA UMA VEZ O AMOR MAS TIVE
TIV E QUE
MEDINA REYES) – um fragmento...
MATÁMAT -LO
(EFRAIM
A gente se mete a escrever porque não foi capaz de
bater num motorista que nos afrontou na rua, porque não
quebrou pratos num restaurante, porque não enfrentou um
policial louco que xingou sua namorada, porque não disse à
mãe o muito que a amava e detestava, porque não cuspiu num
professor que dizia que a Terra é redonda, porque deixou
que pegassem seu lugar na fila do cinema, porque não tem
ofício nem benefício, porque pensa que é uma forma fácil
de fazer fama e dinheiro, porque paspalhos como García
Márquez e Mutis fazem isso, a gente também pode fazer,
porque não é bom em matemática, porque não quer ser médico
nem advogado, porque está irado, porque odeia as pessoas e
quer insultá-las.
A gente se mete a escrever porque uma garota linda
lhe disse que gostava de escritores, porque precisa de um
álibi para não trabalhar, porque isso o faz sentir-se
superior, porque leu uns romances de caubóis e quer entrar
na concorrência, porque é um caubói sem Oeste, porque
escriturários como Vargas Llosa o fazem, porque não tem
voz, porque não tem ritmo, porque está farto de bater
punheta, porque quer trepar com uma mulher mas não sabe
como, porque pensa que tem alguma coisa a dizer, porque
descobre que as garotas bonitas dizem que os escritores
são ternos mas saem com mafiosos, porque não o deixam dar
um amasso na ganhadora do concurso nacional de beleza,
porque é magro e não tem remédio, porque tem medo de
morrer sem ter metido numa garota linda, porque se um
puxa-saco hipócrita como Vargas Llosa escreve qualquer um
pode fazê-lo, porque sabe que o cinema é tempo perdido,
porque tem inveja dos micos que aparecem na tela e ganham
milhões, porque na falta de melhores oportunidades quer
ser como Bukowski.
A gente se mete a escrever porque não sabe lutar boxe
nem tem colhões para isso, porque tem os dentes tortos e
não pode sorrir como gostaria, porque para os impotentes
de todo tipo não há outro caminho, porque todos os feios
escrevem ou assassinam e a gente não é capaz de matar nem
uma mosca, porque escrever dá importância, porque para
chamarem alguém de escritor não é preciso escrever bem mas
para chamarem de filho-da-puta não importa se sua mãe é
uma santa, porque tem medo de ficar à deriva sem fazer
nada, porque não pode beber toda noite, porque ama a Deus
mas odeia as sociedades sem fins lucrativos, porque não
tem namorada, porque não há emoções mas insultos, porque
na sua casa não tem televisão e o rádio quebrou, porque a
mulher do vizinho é gostosa, porque tem medo de ficar
careca e por isso evita os espelhos. A gente se mete a
escrever porque não se atreve a assaltar um supermercado,
porque ama uma mulher e ela é a namorada do garoto esperto
da rua, porque não há revistas pornográficas suficientes,
porque quer fazer alguma coisa além de cagar e se
masturbar, porque não é o garoto esperto da rua nem o
garoto forte nem o engraçado, porque é o garoto nada,
porque não vale um tostão furado, porque apanha lá fora,
porque sua mãe grita o tempo todo, porque não há ilusões
nem luz no fim do túnel, porque sua mente voa baixo e
nunca será outro Cioran, porque não tem coragem para
saltar, porque não quer a esposa feia que merece, porque
tem medo de morrer sem ter comido um belo cuzinho, porque
não tem pai, amigos nem fortuna, porque não tem o jeito de
cuspir do Clint Eastwood, porque se paralisa entre uma e
outra intenção, porque era uma vez o amor mas tive que
matá-lo.
O bom é que escrever não serve para nada daquilo que
a gente quer. Escrever é um limite, uma dor, um defeito a
mais. O bom é que depois de escrever a gente se sente
péssimo. Nada mudou, tudo continua no seu lugar (menos
você, maldito cabelo), Pelé não voltou para o campo. O
ruim é que você escreve e o Pambelé cai na lona espancado
por um gringo, um maldito gringo que esteve preso por
bater na mãe. O ruim é que Pambelé não é a mãe do gringo e
– por mais que você escreva – continua caído. O bom é que
você escreve e continua sonhando com a mulher do vizinho,
sonha que a agarra pelas orelhas e crava-lhe a rola. O
ruim é que escrever não cura seus desejos assassinos, que
assaltar um supermercado continua sendo o seu objetivo
impossível.
O
ruim
é
que
ainda
deseja
um
amor
inesquecível. O bom é que escrever é outra forma de cagar
e se masturbar. O ruim é que você lê os grandes autores
mas só Bukowski lhe diz alguma coisa. O ruim é que um dia
a garota bonita toma conhecimento que você escreve e não
lhe deixa que lhe meta fundo, até o outro lado da morte. O
ruim é que escrever serve para tudo aquilo que você não
quer.
(REYES, 2006, p. 71-73)