Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte V

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Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte V
PREDICÁVEIS
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PRÉ-LÓGICO
proposição, ou seja, em seu significado não existencial (v. SER).
2. Chama-se de P. uma definição que não é impredicativa, no sentido que Poincaré deu a este termo (v.
IMPREDICATIVA, DEFINIÇÃO); portanto, chama-se de P. também a teoria que exclui por princípio as definições
impredicativas ou o cálculo proposicional baseado nessa exclusão (cf. p. ex., CHURCH, Intr. to Mathemati-cal Logic, §
58) (v. ANTINOMIA).
PREDICÁVEIS (gr. Kon:r|Yopoúu.eva; lat. Praedicabilia; in. Predicablesi; fr. Prédicables; ai. Prãdicabilien; it.
Prèdicabili). Os universais, porquanto aptos por natureza a ser predicados de muitas coisas. Porfírio foi o primeiro a
enumerar os cinco universais simples ou primitivos, que são gênero, espécie, diferença, próprio e acidente Usaq., 1).
Aristóteles enumerou como elementos de cada proposição ou problema quatro elementos, que são definição, próprio,
gênero e acidente (Top., I, 4, 101 b 24), mas esta enumeração, ao incluir a definição (que é composta de gênero e de
espécie), não leva em consideração a simplicidade dos elementos. A enumeração de Porfírio tornou-se clássica e
passou a fazer parte integrante da lógica tradicional.
Não teve seguidores, porém, a proposta kantiana de chamar de P. os conceitos do intelecto derivados das categorias,
que seriam os conceitos de força, ação, paixão (deriváveis da categoria da reciprocidade), surgir, perecer, mudar
(deriváveis das categorias da modalidade), etc. iCrít. R. Pura, § 10).
A noção desse termo desapareceu da lógica contemporânea (v. os verbetes particulares).
PREENSÃO (in. Prehension). Termo com que Whitehead (Process andReality, 1929) designou a percepção,
porquanto nela o sujeito apreende ou "apropria-se" de uma "entidade real", uma coisa ou um evento. Na realidade, o
próprio nome de percepção já tem esta conotação (v. PERCEPÇÃO).
PREESTABELECIDA, HARMONIA. V. PREFORMAÇÃO.
PREEXISTÊNCIA. V. METEMPSICOSE.
PREFORMAÇÃO (in. Preformation; fr. Pré-formation; ai. Prãformation-, it. Preformazio-né). Com o nome de
teoria da P. (ou pre-formismo) foi designada no séc. XVIII a teoria sobre a formação dos organismos, segundo a qual
seus órgãos já estão preformados no ovo. Malpighi, em 1637, propusera essa teoria, reconhecendo que os órgãos não
se acham preformados no ovo assim como serão no embrião ou no adulto, mas em forma de filamentos ou estames, cada um dos
quais é a potência de um órgão {La formazione dei pollo nelVuovo, 1637). Essa teoria foi aceita no séc. XVIII por
muitos biólogos, como Haller, Spallanzani e Bonnet, que se chamavam "ovistas", para distingui-los dos
"animaculistas", que no fim do séc. XVII afirmavam que o espermatozóide é um homúnculo que contém todas as
partes do feto humano. A doutrina da P. era aceita por Leibniz, para quem "Deus formou previamente as coisas de tal
maneira que os novos organismos não passam de conseqüência mecânica de um organismo precedente" (Théod.,
pref.). Segundo Kant, uma vez admitido o princípio teológico para a produção dos seres organizados, só há duas
hipóteses para explicar a causa de sua forma final: a do ocasionalismo, segundo a qual Deus intervém diretamente em
cada nova formação orgânica, ou a da harmonia preesta-belecida, segundo a qual um ser orgânico produz o seu
semelhante. Por sua vez, esta última pode ser ou teoria da P, — se a geração for considerada como simples
desenvolvimento de uma forma preexistente — ou teoria da epigenesia — se a geração for considerada como
produção. Kant não escondia sua simpatia pela teoria da epigenesia, porquanto parecia reduzir muito mais que a outra
a ação das causas sobrenaturais e prestar-se mais a provas empíricas (Crít. do Juízo, § 81). A moderna teoria da
evolução eliminou o próprio fundamento da oposição entre teoria da P. e teoria da epigenesia (v. EPIGENESIA;
EVOLUÇÃO).
PREFORMACIONISMO ou PREFORMIS-MO. V. PREFORMAÇÃO.
PREGUIÇA DA RAZÃO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA.
PRÉ-LÓGICO (fr. Prélogiqué). Adjetivo introduzido por L. Lévy-Bruhl para caracterizar a mentalidade dos povos
primitivos, considerada indiferente ao princípio de contradição e fundada na participação (v.) (Lesfonctions mentales dans les sociétés inférieures, 1910, pp. 78 ss.). Depois, Lévy-Bruhl abandonou esse conceito: "Não há
mentalidade primitiva que se distinga da outra por dois caracteres que lhes são próprios (místico e P.). Existe
mentalidade mística mais acentuada e mais facilmente observável entre os primitivos do que em nossas sociedades,
mas que está presente em todo o espírito humano" (Les carnets, 1949, VI; trad. it., p. 161).
PREMISSA
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PRESSUPOSTO
PREMISSA (gr. 7tpÓTamç; lat. Praemissa; in. Premise, fr. Premisse, ai. Prãmísse, it. Pre-messd). Toda proposição
da qual se infere outra proposição.
PREMOÇÃO (lat. Praemotio, in. Premotion, fr. Premotion; it. Premozionè). Termo empregado pelos teólogos do
séc. XVII para indicar a determinação física, por parte de Deus, da vontade humana: determinação física que não
eliminaria a liberdade do homem. Malebranche discutiu essa noção em Refléctions sur Ia P. physique (1705).
PRENOÇÃO (in. Prenotion; fr. Prenotion; ai. Vorbegriff, it. Premozionè). Termo introduzido por Durkheim para
indicar os conceitos pré-científicos fundados na generalização imperfeita ou apressada, que F. Bacon chamava de
antecipações ou ídolos {Régles de Ia méthode sociologique, p. 23) (v. ANTECIPAÇÃO). PREOCUPAÇÃO. V.
CUIDADO; CURA. PRÉ-PERCEPÇÃO (in. Preperception-, fr. Preperception; ai. Práperzeption; it. Preperce-zionè).
Assim foi às vezes chamada a função seletiva que a atenção intelectual exerce sobre a percepção sensível (cf., p. ex.,
James, Princ. ofPsychol, I, pp. 438-45).
PRESCIÊNCIA. V. TEODICÉIA. PRESENÇA (in. Presence, fr. Présence, ai. Anwesenheit; it. Presenzd). Este termo
é empregado em dois significados principais: 1Q existência de um objeto em certo lugar, pelo que se diz, p. ex.,
"estava presente à reunião de ontem à tarde"; 2e existência do objeto numa relação cognitiva imediata; assim, diz-se
que um objeto está presente quando é visto ou é dado a qualquer forma de intuição ou de conhecimento imediato.
No âmbito do primeiro significado, e com objetivos teológicos (para descrever a presença de Deus ou dos anjos nas
coisas ou a presença do corpo de Cristo no pão do sacramento do altar), os escolásticos distinguiam duas formas de
P.: a chamada circunscriptiva, em que uma coisa está inteira em todo o espaço que ocupa, com parte em cada parte do
espaço, e a definitiva, em que uma coisa está inteira na totalidade do seu espaço e inteira também em cada uma das
partes dessa totalidade. A primeira P. é um modo de ser quantitativo; a segunda exclui qualquer quantidade (cf., p.
ex., S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I. q. 52, a. 2; OCKHAM, Quodi, VII, q. 19).
Heidegger chamou de P. ou simples P. ( Vor-handenheif) o modo de ser das coisas, que é
diferente do modo de ser do homem, que é a existência iSein und Zeit, § 9). Sartre, por sua vez, falou de "P. do parasi no ser", ou seja, da consciência, no sentido de que tal presença implicaria que "o para-si é testemunha de si em P.
do ser como não sendo o ser": o que significaria que a P. no ser é "P. do para-si em não sendo" (L'être et le néant, pp.
166-67).
PRESENTAÇÃO (in. Presentation; fr. Presentation; ai. Prãsentation; it. Presentazioné). Conhecimento imediato
ou direto: percepção ou intuição. Esse termo foi introduzido por Spencer, que fazia a distinção entre conhecimento
presentativo (que se tem quando "o conteúdo de uma proposição é a relação entre dois termos, ambos diretamente
presentes, como quando machuco o dedo e estou simultaneamente ciente da dor e da sua localização") e o
conhecimento representativo, que é a lembrança ou a imaginação do outro conhecimento (Princ. of Psychology, §
423). Esse termo foi aceito por muitos psicólogos no séc. XIX, mas hoje está em desuso.
PRESENTACIONISMO (in. Presentatio-nism; fr. Présentationisme, it. Presentazionis-mó). Foi assim que
Hamilton chamou seu "realismo natural", doutrina segundo a qual a percepção é uma relação imediata com o objeto
existente iDissertations on Reid, p. 825).
PRESENTE. V. INSTANTE; AGORA; TEMPO.
PRESSUPOSTO (in. Presupposition; fr. Presupposition; ai. Voraussetzung; it. Presuppos-tó). 1. Premissa não
declarada de um raciocínio, utilizada no decorrer de um raciocínio, mas que não foi previamente enunciada, não
havendo, pois, um compromisso definitivo em relação a ela. Diferentemente da premissa, do postulado, da hipótese,
etc, o P. é introduzido sub-repticiamente no decorrer de um raciocínio, limitando ou dirigindo-o de maneira
dissimulada ou oculta. Pode ser também definido como regra sub-reptícia de inferência. Portanto, o princípio da
eliminação dos P. é fundamental para todos os campos da investigação no mundo moderno. A expressão "eliminação
dos P." (ai. Voraussetzungslo-sigkeii) parece ter sido cunhada apenas por Fr. Strauss (Leben Jesu, 1836, p. IX), mas a
exigência que ela encerra está na origem da ciência moderna (que com Galileu procurou livrar-se dos P. metafísicos)
e da filosofia moderna (que com Bacon e Descartes afirmou a exigência de uma investigação radical, fundada apenas
em premissas declara-
PRESUNÇÃO
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PREVISÃO
das). A eliminação dos P. também tem o fim de evitar que, em certo campo de investigações, atuem crenças
pertencentes a campos diferentes que limitem a investigação de modo não controlável. Husserl fez uso mais restrito e
técnico do princípio da eliminação dos P., lançando mão dele para delimitar a esfera fenomenológica (Logiscbe
Untersuchun-gen, II, Intr., § 7).
2. O mesmo que premissa, postulado ou hipótese. Este segundo significado pode levar a confusões.
PRESUNÇÃO (lat. Praesumptio; in. Pre-sumption; fr. Présomption; ai. Prüsumption; it. Presunzioné) .1. Juízo
antecipado e provisório, que se considera válido até prova em contrário. P. ex., "P. de culpa" é um juízo de
culpabilidade que se mantém até que seja aduzida uma prova em contrário; têm significado análogo as expressões "P.
de verdade" ou "P. favorável" ou "P. contrária" a uma proposição qualquer.
2. Confiança excessiva em suas próprias possibilidades; e neste sentido chama-se de presunçoso quem alimenta tal
confiança.
PRETERIÇÃO (in. Preterition; fr. Prêtéri-tion; it. Preterizioné). Conceito utilizado pela teologia calvinista para
atenuar a doutrina da dupla predestinação: os réprobos são assim porque Deus "os preteriu" em sua escolha (cf.
Calvin, Institutions de Ia religion chrétienne, III, cap. 24)_.
PREVISÃO (gr. JtpÓTVOXJiç; in. Prediction; fr. Prévision; ai. Voraussage, it. Previsioné). Um dos objetivos
fundamentais da explicação científica, ou a própria explicação. Na ciência antiga, a importância da P. foi acentuada
apenas em medicina (HIPÓCRATES, Prognostikon, I). Galileu expunha esse conceito afirmando que "chegar ao
conhecimento de um único efeito para suas causas abre-nos o intelecto ao entendimento e à certeza de outros efeitos,
sem necessidade de recorrer à experiência" (Discor-si intorno a due nuove scienze, Opere, ed. Utet, II, p. 799). A P.
foi utilizada por Hume em sua crítica da causalidade: "Por sermos levados pelo costume a transferir o passado para o
futuro, em todas as nossas inferências, sempre que o passado se manifesta regular e uniforme, esperamos o
acontecimento com a máxima certeza e não damos ocasião a suposições contrárias" ilnq. Cone. Underst., VI). Comte
pôs esse conceito em primeiro plano com sua fórmula "Ciência, portanto P.; P., portanto ação" (Cours dephil. pos.,
1830, I, p. 51). Heltz expressou-o nas palavras de abertura da Introdução a Prinzipien derMechanik(1894): "O problema mais imediato e,
certamente, o mais importante que nosso conhecimento da natureza permite resolver é a previsão dos acontecimentos
futuros, de tal modo que possamos organizar nossas atividades presentes de acordo com tais previsões". Para Peirce, a
P. é a base da verdade prática da hipótese científica: "Na indução não é o fato previsto que, em alguma medida,
determina a verdade da hipótese ou a torna provável, mas sim o fato de ele ter sido previsto com sucesso e de ser uma
amostra aleatória de todas as P. que podem basear-se na hipótese e que constituem a verdade prática dela" (Coll.
Pap., 6.527).
No neoempirismo contemporâneo, alguns filósofos tendem a reduzir a P. à explicação; outros, a reduzir a explicação
à previsão. No primeiro sentido, Carnap expressa-se dizendo que "a natureza de uma P., no que diz respeito à
confirmação ou à comprovação, é a mesma de um enunciado sobre um evento presente não diretamente observado
por nós, como p. ex. sobre um processo em curso no interior de uma máquina ou um acontecimento político na China
("Testability and Meaning", em Readings in the Phil. of Science, 1953, p. 87). No segundo sentido, Quine declara
acreditar que o esquema conceituai da ciência é, em última análise, um instrumento para prever a experiência futura à
luz da experiência passada (From a Logical Point of View, II, 6). A identidade entre lógica da P. e lógica da
explicação foi asseverada por Feigl (em Readings, cit., p. 417-18), enquanto Hempel defendeu a tese da identidade
estrutural (ou da simetria) entre explicação e P., no sentido de que "toda explicação adequada é potencialmente uma
P., e, inversamente, toda P. adequada é potencialmente uma explicação" (Aspects of Scientific Explanation, 1965, p.
367). Popper, depois de afirmar que todas as ciências teóricas, inclusive as sociais, são ciências de P., ressaltou a
distinção entre a P. científica e a profecia histórica, porque esta última carece do caráter condicional da primeira: "As
P. comuns da ciência são condicionais. Asseveram que certas mudanças (p. ex., da temperatura da água numa
chaleira) serão acompanhadas por certas transformações (p. ex., a ebulição da água)" {Conjectures and Refutations,
1965, p. 339).
Reichenbach usou o termo pós-visibilidade (post-dictability) para indicar a possibilidade
PRIMADO
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PRIMITIVO
de determinar "os dados passados em termos de observações dadas" {Philosophic Founda-tions of Quantum
Mechanics, 1944, p. 13). O termo pós-visão ou retrovisão (postidiction or retrodictiori) foi empregado para indicar o
inverso lógico de uma P., ou seja, a inferência que procede de um acontecimento presente para trás, em direção a uma
condição inicial já conhecida (HANSON, The Concept of the Po-sition, 1963, p. 193). V. EXPLICAÇÃO.
PRIMADO (in. Primacy, fr. Primauté, ai. Pritnat; it. Primató). Importância primária de uma coisa ou o que
condiciona uma coisa em relação às outras. Kant diz: "Por P. entre duas ou mais coisas ligadas pela razão, entendo a
superioridade de uma delas por ser o primeiro motivo que determina a ligação com todas as outras". Mais
precisamente, "P. da razão prática" significa a prevalência do interesse prático sobre o teórico, no sentido de a razão
admitir, por ser prática, proposições que não poderia admitir no uso teórico e que não constituem uma de suas
extensões cognoscitivas: os postulados da razão prática (Crít. R. Prática, II, cap. 2, seç. 3). A palavra P. foi usada no
campo político para indicar a função predominante que certo elemento (povo, nação, classe, grupo social, etc.) tem ou
deve ter na totalidade à qual pertence. Gioberti falou neste sentido do P. moral e civil dos italianos(1843). Nesta
extensão, o termo adquire significados ainda mais vagos e arbitrários que no primeiro significado. PRIMALIDADE
(lat. Primalitas; ai. Prima-litãt; it. Primalitã). Princípio constitutivo do ser, segundo Campanella. Há três P.: poder
(potentiá), saber isapientià) e amor {amor), que em Deus são infinitas e nas coisas são limitadas pelos seus contrários
— impotência, insipiência e ódio —, que constituem o não ser (Metaphisica, 1638, VI, Proem). Esse termo tem o
mesmo valor de princípio (v.).
PRIMÁRIAS e SECUNDARIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE.
PRIMÁRIO (lat. Primarius; in. Primary, fr. Primaire, ai. Primar, it. Primário). 1. O que é primeiro ou mais
importante num campo qualquer, ou o que é primeiro no sentido de condicionar o que vem depois, sem ser
condicionado por ele. Este era um dos sentidos — o fundamental — que Aristóteles atribuía à palavra "primeira"
(Met., V, 11, 1019 a 2), sendo o mais freqüentemente relacionado com o uso do termo. "Qualidades P.", p. ex., são as
qualidades que não podem faltar nos corpos e que
condicionam as "qualidades secundárias". "Escola P." é aquela que todos devem freqüentar e que prepara aos outros
tipos de escola. "Atenção P." foi o nome dado por alguns psicólogos à atenção primitiva, originária, etc. Diz-se
"importância P." para dizer importância fundamental ou condicionante.
2. O mesmo que primitivo (v.).
PRIMEIRO MOTOR. V. DEUS, PROVAS DE.
PRIMEIRO MÓVEL. V. MÓVEL, PRIMEIRO.
PRIMrnVISMO (in. Primitivism, fr. Primi-tivisme, it. Primitivismó). 1. Atitude ou mentalidade dos povos
primitivos, especialmente no aspecto de conformação do indivíduo aos valores do ambiente. É neste sentido que esse
termo é usado, p. ex., por Scheler {Sympathie, cap. III; trad. fr., p. 362, n. 2).
2. Crença de que a forma mais perfeita de vida humana é a que existiu no primeiro período da humanidade (mito da
idade do ouro), ou a que se observa nos povos primitivos, considerados mais jovens (mito do "bom selvagem").
Quanto a este significado de P., v. Lovejoy e Boas, Primitivism and Related Ideas in Anti-quity, 1935; Boas, Essays
on Primitivism and Related Ideas in the Middle Ages, 1948).
PRIMITIVO (in. Primitive, fr. Primitif, ai. Primitiv, it. Primitivo). 1. O mesmo que originário (v.), nos dois sentidos
deste termo: a) o que pertence à fase inicial de um desenvolvimento ou de uma história, e neste sentido dizemos "a
nebulosa P.", "a humanidade P.", etc; b) o que funciona como condição, princípio ou premissa, e por isso determina
outras coisas, não sendo, porém, determinado por elas; neste sentido, dizemos "proposições P.", "função P.".
Chamam-se "símbolos P." os introduzidos diretamente, sem ajuda de outros símbolos.
2. O que é simples, no sentido de constituir a forma mais elementar que certo objeto pode assumir; neste sentido falase em "homens P." ou simplesmente "os P.". Durkheim utilizou esse significado para definir os P., juntamente com o
significado estudado em {a) (Les formes élementaires de Ia vie religieuse, 1937, p. 1). Mas Lévy-Bruhl escreveu:
"Com este termo impróprio, mas de uso quase indispensável, pretendemos designar simplesmente os membros das
sociedades mais simples que conhecemos" (Les fonctions mentales dans le sociétes inférieures, 1910, p. 2). No
mesmo sentido, emprega-se hoje a palavra primário (v.).
No que diz respeito às interpretações do mundo P., podem ser agrupadas em duas cias-
PRIMORDIAL
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PRINCÍPIO
ses: d) as que consideram o mundo P. como pré-lógico, pré-empírico e místico, portanto de constituição
completamente diferente da sociedade civilizada; esta foi a interpretação defendida especialmente por Lévy-Bruhl (do
qual além da obra citada, v.: La mentalitéprimitive, 1922; L'âmeprimitive, 1927; Uexpérience mys-tique et le
symboles chez les primitifs; 1938), mas corrigida por ele mesmo, no sentido de matizar ou atenuar a diferença entre a
mentalidade P. e a não P., que é mais de grau que de qualidade {Les carnets, 1949); b) as que admitem nas
comunidades P. a posse de abundante patrimônio de conhecimentos fundados na experiência e na razão, considerando
que o homem P. tende a recorrer à magia ou ao misticismo só quando os conhecimentos que possui não o ajudam
mais. Esta é a interpretação defendida principalmente por Bronislaw Mali-nowski (Magic, Science and Religion,
1925) e hoje adotada por quase todos os sociólogos.
PRIMORDIAL (in. Primordial; fr. Primordial; it. Primordialé). O mesmo que originário (v.).
PRINCÍPIO (gr. àpjcí; lat. Principium; in. Principie, fr. Príncipe; ai. Prinzip, Grundsatz; it. Principio). Ponto de
partida e fundamento de um processo qualquer. Os dois significados, "ponto de partida" e "fundamento" ou "causa",
estão estreitamente ligados na noção desse termo, que foi introduzido em filosofia por Ana-ximandro (Simplício, Fís.,
24,13); a ele recorria Platão com freqüência no sentido de causa do movimento (Fed., 245 c) ou de fundamento da
demonstração (Teet., 155 d); Aristóteles foi o primeiro a enumerar completamente seus significados. Tais
significados são os seguintes: le ponto de partida de um movimento, p. ex., de uma linha ou de um caminho; 2- o
melhor ponto de partida, como p. ex. o que facilita aprender uma coisa; 3 e ponto de partida efetivo de uma produção,
como p. ex. a quilha de um navio ou os alicerces de uma casa; 4 S causa externa de um processo ou de um movimento,
como p. ex. um insulto que provoca uma briga; 5 e o que, com a sua decisão, determina movimentos ou mudanças,
como p. ex. o governo ou as magistraturas de uma cidade; 6 a aquilo de que parte um processo de conhecimento, como
p. ex. as premissas de uma demonstração. Aristóteles acrescenta a esta lista: "'Causa' também tem os mesmos
significados, pois todas as causas são princípios. O que todos os significados têm em comum é que, em todos,
P. é ponto de partida do ser, do devir ou do conhecer" {Mel, V, 1, 1012 b 32-1013 a 19).
Esses reparos de Aristóteles contêm quase tudo o que a tradição filosófica posterior disse a respeito dos princípios.
Talvez caiba distinguir outro significado: como ponto de partida e causa, o P. às vezes é assumido como o elemento
constitutivo das coisas ou dos conhecimentos. Este, provavelmente, era um dos sentidos da palavra entre os présocráticos, às vezes utilizado pelo próprio Aristóteles (Met., I, 3, 983 b 11; III, 3, 998 b 30, etc). Neste sentido,
Lucrécio chamava os átomos de P. (De rer. nat., II, 292, 573, etc), e os estóicos distinguiam elementos e P., pelo fato
de que os P. não são gerados e são incorruptíveis (DIÓG. L., VII, 1, 134).
No séc XVIII, ao definir o P. como "o que contém em si a razão de alguma outra coisa", Wolff (Ont., § 886)
observava que esse significado estava de acordo com a noção de Aristóteles e que os escolásticos não se haviam
afastado dela (Ont., § 879). Baumgarten, a quem a terminologia moderna tanto deve, repetia a definição de Wolff
(Met., § 307). Kant, por um lado, restringia o uso do termo ao campo do conhecimento, entendendo por P. "toda
proposição geral, mesmo extraída da experiência por indução, que possa servir de premissa maior num silogismo",
mas por outro lado introduzia a noção de "P. absoluto" ou "P. em si", vale dizer, conhecimentos sintéticos originários
e puramente racionais, que ele julgava insubsis-tentes, mas aos quais a razão recorreria no seu uso dialético (Crít. R.
Pura, Dialética, II, A).
Na filosofia moderna e contemporânea a noção de P. tende a perder importância. Com efeito, inclui a noção de um
ponto de partida privilegiado, não de modo relativo (em relação a certos objetivos), mas absoluto, em si. Um ponto de
partida desse gênero hoje dificilmente poderia ser admitido pelas ciências. Poincaré observava com razão que um P.
não passa de lei empírica que se considere cômodo subtrair ao controle da experiência por meio de convenções
oportunas: portanto, um P. não é verdadeiro nem falso, mas apenas cômodo (La valeur de Ia science, 1905, p. 239).
Em matemática e lógica, nas quais há oportunidades dessa natureza, esse termo está em desuso para indicar as
premissas de um discurso, e foi substituído por axioma ou postulado. Nestes campos, é freqüente dar-se o nome de P.
a teo-remas particulares, cuja importância para o
PRINCÍPIO ATIVO
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PROBABILIDADE
desenvolvimento ulterior de um sistema simbólico se queira ressaltar. Peirce chamara de P. guia (Leading Principie)
o P. que "se deve supor verdadeiro para sustentar a validade lógica de um argumento qualquer" (Coll. Pap., 3,168; cf.
DEWEY, Logic, I; trad. it., p. 46).
PRINCÍPIO ATIVO (gr. xò rcoioüv). Foi esse o nome que os estóicos deram à Razão, à Causa ou Deus que dá
forma à matéria (que é o P. passivo), produzindo nela os seres individuais (DIÓG. L., VII, 134); identificaram esse
princípio com o Fogo, no sentido de calor ou de espírito animador (Lbid., VII, 156; CÍCERO, De nat. deor., II, 24).
PRINCÍPIO DE AÇÃO MÍNIMA; DE CAUSALIDADE; DE CONTRADIÇÃO; DE IDENTIDADE; DOS
INDISCERNÍVEIS; DE IN-DIVIDUAÇÃO; DE RAZÃO SUFICIENTE; DO TERCEIRO EXCLUÍDO; etc.V.
termos relativos.
PRIORIDADE (in. Priority, fr. Priorité, ai. Prioritàt; it. Prioritã). 1. Precedência no tempo. 2. Caráter do que é
primário (v.). PRIVAÇÃO (gr. OTéptiaiÇ; lat. Privatio; in. Privation-, fr. Privation; ai. Privation-, it. Priva-zioné).
Falta daquilo que, j>or qualquer razão, poderia ou deveria ser. E este o sentido da definição de Wolff: "Ausência de
uma realidade que podia ser ou à qual não repugna ser" (Ont., § 273). Aristóteles incluíra entre os significados desse
termo (todos redutíveis ao que acabamos de enunciar) também a falta de um atributo que não pertence naturalmente à
coisa, como quando se diz que uma planta não tem olhos {Met., V, 22, 1022 b 22). Mas essa generalização excessiva
torna o conceito quase que inútil. O próprio Wolff fazia a distinção entre entidades privativas, que consistem na falta
(como cegueira, morte, trevas, etc.) e em seus nomes relativos, de entidades positivas e seus nomes (Ont., § 273-274);
essa distinção foi reproduzida por John Stuart Mill, que observava a respeito: "Os nomes denominados privativos
indicam duas coisas: ausência de certos atributos e presença de outros, a partir dos quais se poderia esperar
naturalmente a presença dos primeiros" (Logic, I, 2, § 6). Estas distinções conservaram-se na lógica tradicional do
séc. XIX (cf., p. ex., SIGWART, Logik., 1889, I, § 22).
PROBABILIDADE (gr. xò EÍKÓÇ; lat. Pro-babilitas; in. Probability, fr. Probabilité; ai. Warhscheinlichkeü; it.
Probabilita). Grau ou a medida da possibilidade de um evento ou de
uma classe de eventos. Nesse sentido, P. sempre supõe uma alternativa, e é a escolha ou preferência por uma das
alternativas possíveis. Se dissermos, p. ex., "amanhã provavelmente choverá", estaremos excluindo como menos
provável a alternativa "amanhã não choverá"; se dissermos "a P. de uma moeda dar coroa é de metade", o significado
dessa afirmação decorre do confronto com a outra alternativa possível, de ela dar cara. Podemos exprimir esse caráter
da P. dizendo que ela é sempre função de dois argumentos. Outro caráter geral da P. (seja qual for a interpretação) é
que do ponto de vista quantitativo ela é expressa com um número real cujos valores vão de 0 a 1.
O problema a que a noção de P. dá origem é o do significado, ou seja, do próprio conceito de probabilidade. O
cálculo de P., p. ex., não dá origem a problemas enquanto não é interpretado: os matemáticos estão de acordo sobre
todas as coisas que podem ser expressas por símbolos matemáticos, porém seu desacordo começa quando se trata de
interpretar tais símbolos. Carnap (The Two ConceptsofProbability, 1945, agora em Readings in the Pbilosophy of
Science, 1953, pp. 441 ss.) e Russell (Human Knowledge, 1948, V, 2) falaram da existência de dois conceitos
diferentes e irredutíveis de P.; o primeiro chamou, respectivamente, de P. indutiva (ou grau de confirmação) e P.
estatística (ou freqüência relativa); o segundo falou em grau de credibilidade e P. matemática. Foram propostos
outros nomes para esses dois tipos de P. Kneale deu o nome de aceitabilidade 3.0 primeiro tipo e de acaso (chance)
ao segundo (Probability and Induction, 1949, p. 22); Braithwaite denominou o primeiro de razoabi-lidadee o
segundo de P. (ScientificExplanation, 1953, p. 120).
Os dois conceitos defrontaram-se nos últimos quarenta anos, procurando cada qual eliminar o outro, o que é
tipicamente representado nas posições de Von Moisés e de Jeffreys. O primeiro rejeita, por ser subjetivo, o conceito
de P. indutiva, considerando sem sentido utilizar o termo P. fora do conceito estatístico (Probability, Statistics and
Truth, 1928, ed. 1939, lect. I, III). O segundo acha que a chamada definição objetiva de P. é inutilizável e que nem os
estatísticos a empregam, porque "todos usam a noção de grau de crença razoável, em geral sem notarem que a estão
usando" (Theory of Probability, 1939, p. 300). Visto que as observações de Carnap e de Russell tornam
PROBABILIDADE
794
PROBABILIDADE
essa polêmica sem significado, mas ao mesmo tempo confirmam a existência de dois conceitos diferentes de P.,
pode-se, com base em tais conceitos, fazer um apanhado das doutrinas relativas. Para se evitarem qualificações
polêmicas (e inexatas), como "subjetivo", "objetivo", etc, pode-se simplesmente considerar como característica
distintiva dos dois conceitos de P. a função desempenhada por cada um deles e falar, conseqüentemente, de l s P.
singular, 2- P. coletiva.
\° Para caracterizar o primeiro conceito de P. pode-se dizer que ele tem em vista o grau de possibilidade de um evento
único e que, portanto, seus argumentos são eventos, fatos ou estados de coisas ou circunstâncias, sendo a
probabilidade expressa por proposições do tipo "Amanhã provavelmente choverá". O antecedente histórico remoto
dessa noção é o conceito neo-acadêmico de representação persuasiva (v.), cujos graus eram enumerados por Carnéades, que os determinava por provas ou por indícios negativos ou positivos (v. PERSUASIVO).
Os criadores do cálculo de P. tinham em mente esse conceito de probabilidade. Ber-nouilli deu a seu tratado, primeira
obra importante sobre o assunto, o nome de Ars con-jectandi (1713). A grande obra de Laplace, intitulada Théorie
analytique des probabilités (1812), inspirava-se no mesmo conceito; em sua introdução, Laplace afirmava que "a P.
dos eventos serve para determinar o temor ou a esperança das pessoas interessadas na existência deles" (Essai
philosophique sur lesprobabilités, 1,4), e toda a sua obra não trata de estatística, mas dos métodos para estabelecer a
aceitabilidade das hipóteses. Desse ponto de vista, a P. era definida como "a relação entre os números de casos
favoráveis e o de todos os casos possíveis". O princípio fundamental para avaliar as P. era o chamado princípio de
indiferença ou de eqüiprobabilidade, segundo o qual, na falta de qualquer outra informação, assume-se que os vários
casos são igualmente possíveis; desse modo, p. ex., quando se lança um dado, admite-se que cada uma de suas faces
tem idênticas P. de aparecer, uma vez que cada face tem a mesma P. de 1/6 (.Op. cit., I, 3).
Embora esta teoria tenha sido acerbamente criticada, foi retomada em 1921 pelo economista inglês John Maynard
Keynes, em seu Tratado sobre a P., e mais tarde exposta por F. P. Ramsey {The Foundations of Mathematics, 1931)
e por H. Jeffreys {Jheory of Probability,
1939). Todos esses escritores definem a P. como um "grau de crença racional" e admitem a validade do princípio de
indiferença, mas, como notou o próprio Carnap, o caráter subjetivo dessa definição é apenas aparente, pois o que eles
procuraram determinar são os possíveis graus de confirmação de determinada hipótese. De fato, os graus de crença
só poderiam ser estabelecidos por métodos psicológicos, ao passo que, na realidade, os métodos propostos por esses
autores nada têm de psicológicos; são lógicos e referem-se à disponibilidade e à natureza das provas que podem
confirmar uma hipótese. Com base nesse conceito objetivo de P. singular, Carnap criou um sistema de lógica
quantitativa indutiva, com fundamento no conceito de confirmação èm suas três formas: positiva, comparativa e
quantitativa (Logical Foundations of Probability, 1950). O conceito positivo de confirmação é a relação entre dois
enunciados h (hipóteses) e p (prova), que pode ser expressa por enunciados da seguinte forma: "h é confirmado por
p"; "h é apoiado porp"; "pé uma prova (positiva) para h"; "pé uma prova que consubstancia (ou corrobora) a
assunção de h". O conceito comparativo (topológicó) de confirmação geralmente é expresso em enunciados que têm
a forma "h é mais fortemente confirmado (apoiado, consubstanciado ou corroborado, etc.) por p do que ti porp".
Finalmente o conceito quantitativo (ou métrico) de confirmação (conceito de grau de confirmação) pode ser
determinado nos vários campos por métodos análogos aos utilizados para introduzir o conceito de temperatura, com
o fim de explicar os de "mais quente" ou "menos quente" ou o de quociente intelectual, para determinar os graus
comparativos de inteligência. Carnap também defendeu o princípio de indiferença (mesmo considerando-o como
forma limitada), aplicando-o às distribuições estatísticas, e não às distribuições individuais. A teoria de Carnap foi
amplamente discutida e aceita. Foram propostas outras determinações do conceito de grau de confirmação (cf. p. ex.,
HELMER e OPPENHEIM, "A Syntactical Definition of Probability and Degree of Confimnation" em Journal ofSymbolic
Logic, 1945, p. 25-60).
O conceito de P. singular, ou seja, de grau de confirmação, é o único a que se faz geralmente referência nos
acontecimentos da vida e que é assumido, explícita ou implicitamente, como orientador dos comportamentos indivi-
PROBABILIDADE
795
PROBABILIDADE
duais. É preciso observar que, entre os indícios ou provas que podem ser assumidos como confirmação de uma
hipótese qualquer, como fundamento de um juízo de P., nada impede que se inclua a consideração das freqüências
estatísticas às quais se reduz o segundo conceito de P. Às vezes, porém, a P. estatística faz parte de determinação da
P. singular com sinal invertido; p. ex., para quem aposta na loteria, a freqüência com que certo número foi sorteado
nos últimos tempos é um indício de P. negativa: para ele, são bons os números menos sorteados durante um período
mais ou menos longo.
2- O segundo conceito fundamental é de P. coletiva ou estatística, cujo objeto nunca são eventos ou fatos individuais,
mas classes, espécies ou qualidades de eventos, podendo, portanto, ser expressos apenas por funçõespropo-sicionais
(v.), e não por proposições. Seu antecedente histórico mais distante é o conceito aristotélico do verossímil (v.):
"Provável é aquilo que sabidamente acontece ou não na maioria das vezes, que é ou não na maioria das vezes"
(An.pr., II, 27, 70 a 3; Ret., I, II, 1357 a 34). Mas a formulação rigorosa desse conceito só foi feita recentemente por
Fischer {Philo-sophical Transactions ofthe Royal Society, série A. 1922), por Von Moisés {Probability, Statistics and
Truth, 1928), por Popper (Logik der Fors-chung, 1934) e por Reichenbach ( Wahrschein-lichkeitslebre, 1935; Tbeory
of Probability, 1948).
Como ilustração dessa noção de P., podemos escolher a elaboração de Von Moisés, com o conceito da freqüêncialimite. Se para n observações o evento examinado ocorre m vezes, o quociente m/né a freqüência relativa da classe de
eventos em questão: relativa ao número n de observações. Mas se quisermos falar simplesmente em freqüência, sem
limitar a extensão das observações, podemos supor que, à medida que o numerador e o denominador vão ficando
maiores, a função m/n tende para um valor-limite, podendo-se considerar esse valor-limite como medida da
freqüência, ou seja, como medida da P. no sentido proposto. Assim, p. ex., se lançando uma moeda 1.000 vezes
tivermos freqüência 550 para cara, se em 2.000 vezes tivermos freqüência 490, em 3.000 freqüência 505, em 4.000,
freqüência 497, em 10.000, freqüência 5.003, e assim por diante, visto que o valor-limite dessas séries é 0.5,
assumiremos esse valor-limite como valor da
P. do acontecimento em questão. Mas esse acontecimento nunca é singular, portanto a P. assim calculada não servirá
para prever o resultado do próximo lance da moeda e permitir, p. ex., que um jogador escolha a sua aposta. A P. dessa
espécie vale para classes de eventos, e não para eventos singulares. Não se pode falar, p. ex., da P. de um indivíduo
qualquer morrer no ano em curso, mesmo quando conhecemos o limite de freqüência da mortalidade no grupo ao
qual ele pertence (cf. também de VON MOISÉS, Kleines Lehrbuch des Positivismus, % 14). Reinchenbach afirmou a
propósito: "A asserçâo que concerne à P. de um caso individual tem significado fictício, construído através da
transferência de significado do caso geral para o particular. A adoção dos significados fictícios não é justificável por
motivos cognitivos, mas porque é útil aos objetivos da ação considerar tais asserçòes dotadas de significado" (Theory
of Probability, p. 377). A outra característica fundamental da teoria é a eliminação do princípio de indiferença, ou
seja, da P. apriori. A teoria estatística da P. de fato nada pode dizer a respeito da P. de uma classe de eventos se antes
não tiver determinado as freqüências desse evento; portanto, qualquer grau de P. só pode ser determinado a
posteriori, ou seja, depois de efetuada a determinação das freqüências (REICHENBACH, Op. cit., § 70, pp. 359 ss.).
A teoria coletiva ou estatística da P. foi amplamente aceita na filosofia contemporânea (vejam-se, além das obras
citadas, J. O. Wis-DOM, Foundations of Inference in Natural Science, 1952, e BRAITHWAITE, Scientific Expla-nation,
1953). Outra determinação dessa doutrina foi feita por Popper, principalmente com vistas à sua utilização na teoria
quântica. Como dissemos, a P. estatística não se refere a eventos singulares, mas a classes ou seqüências de eventos.
Popper propõe considerar como decisivas as condições sob as quais a seqüência é produzida, vale dizer, considerar
que as freqüências dependem das condições experimentais e portanto constituem uma qualidade dis-posicionalda
ordenação experimental. Popper diz: "Qualquer ordenação experimental é capaz de produzir uma seqüência de
freqüências que dependem dessa particular ordenação, se repetirmos a experiência mais vezes. Estas freqüências
virtuais podem ser denominadas probabilidades. Mas, visto que as P. dependem da ordenação experimental, elas
podem ser
PROBABÜISMO
796
PROBLEMA
consideradas propriedades dessa ordenação. Caracterizam a disposição ou propensão da ordenação experimental a
dar origem a certas freqüências características, quando o experimento é repetido várias vezes" ("The Propensity
Interpretation of the Calculus of Probability and the Quantum Theory", em Observation and Interpretation, A
Symposium ofPhilosophers and Physicists, ed. por Kõrner, 1957, p. 67). A vantagem dessa interpretação seria
considerar fundamental "a P. do resultado de um experimento único em relação com suas condições, e não a
freqüência dos resultados numa série de experimentos" (Ibid., p. 68). Popper faz analogia entre esse conceito e o de
campo (v.), observando que nesse caso uma P. pode ser considerada um "vetor no espaço das possibilidades" (Ibid).
Essa interpretação tende, obviamente, a diminuir a distância entre os dois conceitos fundamentais de probabilidade.
PROBABILISMO (in. Probabilism; fr. Pro-babilisme, ai. Probabilismus, it. Probabilismó). 1. Ceticismo da Nova
Academia que, mesmo negando a existência de um critério de verdade, considerava critério suficiente para dirigir a
conduta da vida aquilo que Arcesilau chamava de plausível {SEXTO E., Adv. math., VII, 158) e Carnéades, de provável
(Ibid., VII, 166; Pirr. hyp., I, 33, 226).
2. Doutrina à qual freqüentemente recorria a casuística dos jesuítas do séc. XVII, segundo o qual, para não pecar, nos
casos de regra da moral duvidosa, basta ater-se a uma opinião provável, considerando-se provável a opinião
defendida por algum teólogo. Leibniz observava a respeito: "O defeito dos moralistas laxistas foi, em grande parte,
terem uma noção demasiadamente limitada e insuficiente do provável, que eles identificaram com o opinável de
Aristóteles", enquanto o provável é, segundo Leibniz, um conceito muito mais amplo (Nouv. ess., IV, 2, 14). O P.
teve, especialmente no séc. XVII, inúmeras variantes, entre as quais podemos lembrar: o probabiliorismo, segundo o
qual, nos casos de aplicação duvidosa de uma regra moral, não se deve adotar uma opinião provável qualquer, mas a
mais provável, e o tutiorismo, segundo o qual é preciso seguir a opinião que se conforma com a lei. Trata-se de
doutrinas ou disputas que não têm significado fora da casuística jesuíta do séc. XVII (cf. A. SCHMITT, Zur Geschichte des Probabilismus, 1904).
3. Corrente da ciência contemporânea, que atribui caráter de probabilidade a grande número de conhecimentos ou a
todos eles (v. CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO).
PROBLEMA (gr. 7tpópA.T|LUX; lat. Problema; in. Problem; fr. Problème, ai. Problem; it. Problema). Em geral,
qualquer situação que inclua a possibilidade de uma alternativa. O P. não tem necessariamente caráter subjetivo, não
é redutível à dúvida, embora, em certo sentido, a dúvida também seja um problema. Trata-se mais do caráter de uma
situação que não tem um significado único ou que inclui alternativas de qualquer espécie. P. é a declaração de uma
situação desse gênero.
A noção de P. foi elaborada pela matemática antiga, que a distinguiu da noção de teorema (v.). Por problema
entendeu-se uma proposição que parte de certas condições conhecidas para buscar alguma coisa desconhecida.
Alguns geômetras (provavelmente os da escola platônica) acreditavam que sua ciência era constituída essencialmente
por problemas; outros, por teoremas (PROCLO, Com. ao I de Euclides, 11, 7-81, 22, Friedlein). Aristóteles definia o P.
como um procedimento dialético que tende à escolha ou à recusa, ou também à verdade e ao conhecimento" (Top., I,
II, 104 b), no qual as palavras "escolha" ou "recusa" significam as alternativas que se apresentam aos problemas de
ordem prática, enquanto "verdade" e "conhecimento" designam as alternativas teóricas. Aristóteles exemplifica sua
definição dizendo que pertence à primeira espécie o P. de saber se o prazer é um bem ou não; à segunda espécie, o P.
de saber se o mundo é eterno (Ibid., 104 b 8). Visto que, onde existem P. também existem silogismos contrários, os
P., segundo Aristóteles, só podem nascer quando não há discurso concludente: em outros termos, o P. pertence ao
domínio da dialética, isto é, dos discursos prováveis, e não ao da ciência. Seja como for, para Aristóteles o P.
conserva o caráter de indeterminação que lhe é dado pela alternativa. No uso matemático do termo, porém, esse
caráter foi-se atenuando. A lógica medieval desprezara a análise e a definição dessa noção, e quando ela volta a atrair
a atenção dos lógicos, no séc. XVII, o significado que eles lhe atribuem é extraído da matemática. Assim, Jungius diz
que "o P. ou a proposição problemática é uma proposição principal enunciando que alguma coisa pode ser feita,
mostrada ou achada" (Lógica hamburgensis,
PROBLEMA
797
PROBLEMÁTICO
1638, IV, 11, 7). Leibniz notava que "por P. os matemáticos entendem as questões que deixam em branco uma parte
da proposição" (Nouv. ess., IV, II, 7). E foi recorrendo ao uso matemático que Wolff definiu: o P. como "uma
proposição prática demonstrativa", entendendo por "prática" a proposição "com a qual se afirma que alguma coisa
pode ou deve ser feita" e excluindo explicitamente o significado aristoté-lico do termo (Log., §§ 266, 276). Não muito
diferente é a definição de Kant: "P. são proposições demonstráveis que exigem provas ou expressam uma ação cujo
modo de execução não é imediatamente certo" (Logik, § 38).
Também no pensamento moderno a noção de P. foi e continua sendo das mais negligenciadas. Embora falem o tempo
todo em P. e achem que é sua função solucionar certo número deles, especialmente dos definidos como "máximos",
os filósofos não se preocuparam muito em analisar a noção correspondente. Na maioria das vezes o P. foi
considerado como condição ou situação subjetiva e confundido com a dúvida. O próprio Mach o definia neste
sentido, como "a discordância dos pensamentos entre si" (Erkenntniss undlrrtum, cap. XV; trad. fr., pp. 252-53). Só
recentemente foi reconhecido o caráter de indeterminação objetiva, que define o P.: isto aconteceu na Lógica(1959)
de Dewey, para quem o P. é a "propriedade lógica primária". O P. é a situação que constitui o ponto de partida de
qualquer indagação, ou seja, a situação indeterminada. "A situação indeterminada torna-se problemática no próprio
processo de sujeição à indagação. Decorre de causas reais, como acontece, p. ex., no desequilíbrio orgânico da fome.
Nada há de intelectual ou cognitivo na existência de situações desse gênero, a não ser que elas são a condição
necessária para operações ou indagações cognitivas. O primeiro resultado do fato de promover a indagação é que a
situação é reconhecida como problemática (Logic, cap. VI, trad. it., p. l6l). A enunciação do P. permite a antecipação
de uma solução possível, que é a idéia-, a idéia exige o desenvolvimento das relações inerentes ao seu significado,
que é o raciocínio. Finalmente, a solução real é a determinação da situação inicial, em que se chega a uma situação
unificada em suas relações e distinções constitutivas. Análise análoga a esta, em sua estrutura fundamental, foi feita
por G. Boas, que define o P. como "a consciência de um desvio da norma" (The Inquiring Mind,
1959, p. 56). Contudo, à análise de Dewey cabe acrescentar uma determinação fundamental: o reconhecimento do
fato de que um P. não é eliminado ou destruído pela sua solução. Um "P. resolvido" não é um P. que não se
apresentará mais como tal, mas é um P. que continuará a se apresentar com probabilidade de solução. A descoberta de
um medicamento que cure uma doença é a solução de um P., mas nem por isso o P. está eliminado, pois a doença
continuará a ocorrer; portanto, o que a solução permite é, em certos limites, resolver o P. todas as vezes que ele se
apresente. Com base neste caráter do P., fala-se da problematicidadedos campos em que se apresenta o P. Neste
sentido, o P. é diferente não só da dúvida (que, uma vez resolvida, está eliminada e é substituída pela crença), mas
também da pergunta, que, uma vez respondida, perde o significado.
PROBLEMÁTICA (ai. Problematik). Reunião ordenada ou sistemática de problemas.
PROBLEMATICIDADE. Caráter de um campo de indagação em que os problemas não são eliminados pela sua
solução. P. ex., "P. da experiência" é o caráter em virtude do qual, na experiência, os chamados problemas resolvidos
são apenas possibilidades de soluções previamente apresentadas para os problemas que vão surgindo, e que têm
algumas garantias de sucesso. Esse termo é empregado freqüentemente na filosofia contemporânea, sem
esclarecimentos explícitos.
PROBLEMATICISMO. Termo difundido na Itália por Ugo Spirito, para designar a doutrina da "vida como busca":
Vida condenada a procurar a verdade sem encontrá-la, oscilando então entre o dogmatismo e o cepticismo (La vita
come ricerca, 1937).
PROBLEMÁTICO (in. Problematic; fr. Pro-blématique, ai. Problematish; it. Problemático). 1. O que representa
um problema ou diz respeito a um problema.
2. O que não implica contradições nem garantia de verdade, de tal modo que pode ser afirmado ou negado
arbitrariamente. Este é o significado que Kant atribui ao termo: "A proposição P. é a que exprime só uma
possibilidade lógica (não objetiva), ou seja, a livre escolha de assumir tal proposição como válida" (Crít. R. Pura, §
9). "Chamo de P. um conceito que não contém contradições e que, como limitação de conceitos dados, liga-se a
outros conhecimentos, mas cuja verdade objetiva não pode
PROCESSÃO
798
PROGRESSO
ser conhecida de modo algum" (Ibid., Anal. dos Princ, cap. III).
PROCESSÃO (gr. TtpóoSoç; lat. Processio, in. Procession; ai. Procession; it. Processioné). O que procede de
Deus, segundo os Neopla-tônicos: essa procedência dá origem a realidades de classe inferior, que se assemelham
àquelas das quais provêm. "Toda P. realiza-se por meio de semelhança das coisas segundas com relação às
primeiras", diz Proclo Unst. Theoi, 29; cf. PLOTINO, Enn., IV, 2, 1, 44; V, 2, 2; SCOTUS ERIGENA, De áivis. nat., III,
17, 19, 25). A teologia cristã empregou a mesma noção para determinar a relação entre as pessoas divinas. S. Tomás
de Aquino distinguia a processio ad extra, na qual a ação tende para algo de externo, e a processio ad intra, na qual a
ação tende para algo de interno, como acontece na P. que vai do intelecto ao objeto do entendimento, que continua
dentro do próprio intelecto. Neste segundo sentido, segundo S. Tomás de Aquino deve-se entender que a P. de
pessoas divinas é de Deus pai (S. Th., I, q. 27, a. 1).
PROCESSO (lat. Processas; in. Process; fr. Processus; ai. Process, it. Processo). 1. Procedimento, maneira de
operar ou de agir. P. ex., "o P. de composição e de resolução", para indicar o método que consiste em ir das causas ao
efeito, ou do efeito às causas (cf., p. ex., S. TOMÁS de Aquino, S. Th., III, q. 14, a. 5); "P. ao infinito", que é ir de uma
causa a outra, infinitamente (Ibid., I, q. 46, a. 2).
2. Devir ou desenvolvimento, p. ex., "o P. histórico". É nesse sentido que Whitehead emprega o termo para designar
a formação do mundo (Process and Reality, 1929).
3. Concatenaçâo qualquer de eventos, como p. ex. o "P. digestivo" ou "o P. químico".
PRODUÇÃO (gr. 7toíecn.Ç; lat. Productio, in. Production; fr. Production; ai. Production; it. Produzioné). Pôr
como ser alguma coisa que poderia não ser. Platão definia como arte produtiva "qualquer possibilidade que se torne
causa de geração de coisas que antes não existiam" (Sof., 265 b), e Aristóteles via na P. a função da arte,
distinguindo-a da ação e do saber: "Toda arte concerne à geração e procura os instrumentos técnicos e teóricos para
produzir uma coisa que poderia ser e não ser e cujo princípio reside em quem a produz, e não no objeto produzido"
(Et. nic, VI, 4, 1140 a 10). Deste ponto de vista, a P. distingue-se da ação, que é a operação cujo fim está em si
mesma; diferença na qual S. Tomás de Aquino insistiu
(v. AÇÃO). O platonismo, porém, diminuíra essa diferença. Plotino afirmou que, para a natureza, "ser o que é significa
produzir; ela é contemplação e objeto de contemplação porque é razão; e como é contemplação e objeto de
contemplação e de razão, produz. A P. é contemplação" (Enn., III, 8, 3). Estas considerações foram freqüentemente
repetidas do ponto de vista idealista, o que não impede que a melhor definição do termo em questão continue sendo a
aristotélica.
PRODUTO LÓGICO. É a figura (a b) resultante de multiplicação lógica (v.).
G. P.
PROERESE. V. ESCOLHA.
PROFUNDO (in. Profound, Deep, fr. Pro-fond; ai. Tiefi it. Profondó). O que possui significado oculto e
inexprimível. Esse termo adquiriu significado técnico na filosofia e na psicologia contemporânea para indicar aquilo
que fica fora ca formulação explícita dos problemas, constituindo uma esfera que pode ser "sentida" ou "intuída" de
alguma maneira, portanto interpretada ou expressa metaforicamente; indica também aquilo que, em algum campo de
indagação, foge ao alcance de seus procedimentos, mas manifesta sua presença de modo obscuro. Já Husserl opunhase à noção de P. em filosofia: "A ciência propriamente dita, em tudo o que abrange a sua doutrina autêntica, não
conhece sentido profundo. Cada momento de uma ciência perfeita é um todo de elementos de pensamentos, cada um
deles compreendido imediatamente, portanto sem sentido P." (Phil. ais strenge Wissenschaft, 1910, no fim, trad. it.,
p. 81). Hoje, a noção de P. prevalece principalmente em certas correntes psicológicas e antropológicas, como a
psicanálise, o intuicionismo, o existen-cialismo, mas, apesar da riqueza de análises a que deu origem, já começa a
suscitar reações críticas salutares. "As psicologias abissais" — escreveu Y. Belaval — "e as filosofias que nelas se
inspiram não criaram novos fenômenos: supuseram processos e intenções ocultas, propuseram novas idéias sobre o
homem, mas essas hipóteses ou idéias sempre deixam de ser formuladas na língua dos conhecimentos progressivos
em que cada palavra designa univocamente um fenômeno determinado, e cada regra de sintaxe uma operação técnica
precisa" (Les conduites d'échec, 1953, p. 274).
PROGRESSO (in. Progress; fr. Progrès; ai. Fortschrift; it. Progresso). Esse termo designa duas coisas: Ia uma série
qualquer de eventos
PROGRESSO
799
PROGRESSO
que se desenvolvam em sentido desejável; 2a a crença de que os acontecimentos históricos desenvolvem-se no sentido
mais desejável, realizando um aperfeiçoamento crescente. No primeiro sentido, fala-se, p. ex., do "P. da química" ou
do "P. da técnica"; no segundo sentido, dizemos simplesmente "o P.". Neste segundo sentido, a palavra designa não
só um balanço da história passada, mas também uma profecia para o futuro.
O primeiro sentido restrito do termo não dá origem a problemas e acha-se em toda parte. Os antigos também o
possuíram, em particular os estóicos, que o empregaram para indicar o avanço do homem no caminho da sabedoria e
da filosofia (J. STOBEO, Ecl., II, 6, 146: o termo é rcpoKomí).
O segundo sentido do termo não foi conhecido na Antigüidade clássica e na Idade Média. A concepção geral que os
antigos tiveram da história foi a de decadência, a partir de uma perfeição primitiva (idade do ouro), ou de ciclo de
eventos, que se repete identicamente sem limites (v. HISTÓRIA). Costuma-se atribuir a primeira enunciação da noção
de P. a Francis Bacon, que assim a expôs num famoso trecho do Novum Organum (1620): "Por antigüidade deveria
entender-se a velhice do mundo, que deve ser atribuída aos nossos tempos e não à juventude do mundo, aos antigos.
Do mesmo modo como de um homem idoso podemos esperar um conhecimento muito maior das coisas humanas e
um juízo mais maduro que o de um jovem, graças à experiência e ao grande número de coisas que viu, ouviu e
pensou, também da nossa era (se ela tivesse consciência de suas forças e quisesse experimentar e compreender) seria
justo esperarmos muito mais coisas que dos tempos antigos, pois esta é a maiorida-de do mundo, em que ele está
enriquecido por inúmeras experimentações e observações" (Nov. Org., I, 84). Bacon conclui com a expressão de Aulo
Gélio (ou melhor, que Aulo Gélio atribuía a um antigo poeta): veritasfilia temporis(Noct. Att., XII, 11). Alguns anos
antes, conceitos semelhantes a estes haviam sido expostos por Giordano Bruno em Cena delle Ceneri (1584). No séc.
XVII a noção de progresso dá os primeiros passos, principalmente por meio da disputa sobre os antigos e os
modernos (v. ANTIGOS), enquanto no séc. XVIII, com Voltaire, Turgot e Condorcet, prevaleceria na concepção da
história. Mas foi só no séc. XIX que esse conceito se afirmou totalmente, tornando-se, já
nas primeiras décadas, a bandeira do Romantismo e assumindo o caráter de necessidade. O conceito de necessidade
do plano progressista da história era expresso por Fichte da maneira mais enérgica: "Qualquer coisa que realmente
exista, existe por absoluta necessidade; e existe necessariamente na forma exata em que existe". Essa necessidade é
racionalidade pura: "Nada é como é porque Deus o queira arbitrariamente, mas porque Deus não pode manifestar-se
de outro modo. (...) Compreender com inteligência clara o universal, o absoluto, o eterno e o imutável, que é o guia
da espécie humana, é tarefa dos filósofos. Fixar de fato a esfera cambiante e mutável dos fenômenos, através dos
quais prossegue a marcha segura da espécie humana, é tarefa do historiador, cujas descobertas são só casualmente
lembradas pelo filósofo" (Grundzüge des gegenwàr-tigen Zeitalters, 1806, 9). Idêntica concepção era defendida pelo
positivismo, que, com Augusto Comte, exalta o P. como idéia diretiva da ciência e da sociologia, considerando-o
como "o desenvolvimento da ordem" e esten-dendo-o também à vida inorgânica e animal {Politiquepositive, 1851, I,
pp. 64 ss.). On the Origin of Species (1859), de Darwin, atribuía base positiva ou científica ao mito do P., aduzindo
provas favoráveis ao transformismo biológico interpretado em sentido otimista ou progressista. A obra de Spencer
(First Principies, 1862) utilizava a noção de P. para dar da realidade uma interpretação metafísica que pretendia ser
positiva ou científica.
Estas são apenas as etapas mais marcantes da afirmação de um conceito que dominou todas as manifestações da
cultura ocidental do séc. XIX e ainda continua sendo pano de fundo de muitas concepções filosóficas e científicas. As
principais implicações dessa noção são as seguintes: Ia o curso dos eventos (naturais e históricos) constitui uma série
unilinear; 2a cada termo desta série é necessário no sentido de não poder ser diferente do que é; 3 a cada termo da série
realiza um incremento de valor sobre o precedente; 4a qualquer regressão é aparente e constitui a condição de um P.
maior. As vezes, como na filosofia de Hegel, limitam-se as condições de validade da 3a proposição por se admitir que
a história constitui um círculo no qual as fases mais elevadas, já realizadas, constituem as condições para as mais
baixas, de tal modo que estas possuem a mesma racionalidade ou perfeição do todo (cf. HEGEL, Wissens-
PROJEÇÃO
800
PROPEDÊUTICA
chaft der Logik, I, I, I, cap. II, nota I, "O progresso infinito"; CROCE, Lastoria comepensiero e come azione, 1938, p.
25). Mas nenhuma dessas quatro teses encontra apoio nas regras da metodologia historiográfica que permitem
delimitar, hoje, o campo da "história"; nenhuma delas é compatível com tais regras; portanto, a idéia de P. não
pertence ao domínio da historiografia científica. Por outro lado, na cultura contemporânea a crença no P. foi muito
abalada pela experiência das duas guerras mundiais e pela mudança que elas produziram no campo da filosofia,
pondo por terra a tendência romântica que a tinha como pedra angular. Portanto, no estágio atual dos estudos, essa
idéia só pode ser considerada válida como esperança ou empenho moral para o futuro, e não como princípio diretivo
da interpretação historiográfica. Sobre o período áureo da crença no P., cf. J. B. BURY, Theldea ofProgress, 1932 (v.
HISTÓRIA).
PROJEÇÃO (in. Projection; fr. Projection; ai. Projektion; it. Proiezioné). Com este termo era freqüente designar,
na psicologia do séc. XK, a referência da sensação ao objeto, graças à qual o objeto é localizado no espaço circundante, embora a sensação só ocorra no órgão do sentido. Quem mais contribuiu para o êxito desse termo foi
Helmholtz (Pbysiologische Optik, 1867, p. 602). Hoje está em desuso, visto que o problema já não subsiste nos
mesmos termos, em vista do novo conceito de percepção (v.).
Hoje, chamam-se projetivas as técnicas de averiguação psicológica que consistem em apresentar um material
(especialmente figuras) de significação ambígua, que pode ser interpretado segundo tendências, necessidades ou
repressões, e cuja interpretação pode revelar o estado de quem o interpreta. O mais conhecido destes artifícios
projetivos foi criado em 1921 pelo suíço Rorschach (cf. H. H. ANDERSON, e G. L. ANDERSON, AnIntroduction
toProjective Techniques, 1951).
Na psicanálise, o conceito de P. é usado para descrever o processo mediante o qual um indivíduo atribui a outro as
atitudes ou os sentimentos de que sente vergonha ou que ache difícil ou penoso reconhecer em si mesmo (cf. J. R.
SMITHIES, "Analysis of Projection" em British Journal of Philosophy of Science, 1954, p. 120).
PROJETO (in. Plan; fr. Projet; ai. Projekt, Entwurf it. Progettó). Em geral, a antecipação de possibilidades: qualquer previsão, pre-dição, predisposição, plano, ordenação, pre-determinação, etc, bem
como o modo de ser ou de agir próprio de quem recorre a possibilidades. Neste sentido, na filosofia existencialista, o
P. é a maneira de ser constitutiva do homem ou, como diz Heidegger (que introduziu a noção), sua "constituição
ontológica existencial" (Sein und Zeit, § 31). Heidegger insistiu também na tese de que todo projetar-se, por antecipar
possibilidades de fato, incide sempre no fato e não vai além: de tal modo que a máxima do homem que se projeta é
"Sê o que és" (.Ihid.). Em outro trecho Heidegger disse que o P. do mundo, em que consiste a existência humana, é
antecipadamente dominado pela facticidade, que ele procura transcender, mas acaba reduzindo-se e nivelando-se com
a facticidade (Vom Wesen des Grandes, 1929, 3; trad. it., pp. 67 ss.). Sartre substancialmente repetiu esses conceitos
de Heidegger, mas ressaltou a gratuidade perfeita dos "P. do mundo", em que consiste a existência. Chamou de
"fundamental" ou "inicial" o P. constitutivo da existência humana no mundo e considerou-o contínua e
arbitrariamente modificável: "A angústia que, ao ser revelada, manifesta-nos à consciência a nossa liberdade, é
testemunho da perpétua possibilidade de modificar nosso P. inicial" iUêtre et le néant, 1943, p. 542).
Apesar de característica da filosofia existencialista, a noção de P. passou a fazer parte da terminologia filosófica e
científica contemporânea. Mostrou ser útil para expressar aspectos importantes das situações humanas tanto das mais
gerais, analisadas pela filosofia, como das específicas, que constituem o objeto das ciências antropológicas:
psicologia, sociologia, etc. V. ESTRUTURA e MODELO.
PROLEGÔMENOS (in. Prolegomena; fr. Prolégomènes; ai. Prolegomena; it. Prolegome-ní). Estudo preliminar,
introdutivo e simplificado. Esse termo aparece no título de algumas obras de filosofia, como a de Kant, P. a toda
metafísica futura (1783).
PROLEPSE. V. ANTECIPAÇÃO.
PROPEDÊUTICA (gr. 7ipo7iouôeía; in. Propaedeutics; fr. Propédeutique, ai. Propá-deutik, it. Propedêutica).
Ensino preparatório. Foi assim que Platão chamou o ensino das ciências especiais (aritmética, geometria, astronomia
e música), relativamente à dialética ÇRep., VII, 536 d). Ainda hoje se dá esse nome à
PROPENSÃO
801
PROPOSIÇÃO
parte introdutiva de uma ciência ou de um curso que sirva de preparação a outro curso.
PROPENSÃO (lat. Propensio; in. Propen-sity; fr. Propension; ai. Neigung, it. Propensio-né). Tendência, no
significado mais geral. Hu-me usava esse termo para definir o costume: "Sempre que a repetição de um ato ou de uma
ação particular produz P. para repetir esse ato ou ação sem a coação por raciocínio ou por processo intelectual,
dizemos que essa P. é o efeito do costume" {Inq. Cone. Underst., V., 1).
PROPORÇÃO. V. ANALOGIA
PROPOSIÇÃO (gr. rcpóraotç; lat. Propositio, in. Proposition; fr. Proposition; ai. Satz; it. Proposizionè). Enunciado
declarativo ou aquilo que é declarado, expresso ou designado por tal enunciado. Os dois usos do termo foram
nitidamente distinguidos por Carnap {Intr. to Semantics, 1941, § 37), mas ainda são freqüentemente confundidos,
conquanto a distinção tenha sido amplamente aceita na lógica contemporânea (cf. CHURCH, Intr. to Mathema-tical
Logic, § 04; W. KNEALE e M. KNEALE, The Development of Logic, pp. 49 ss.). Os dois usos são determinados por dois
conceitos diferentes de P., mais precisamente os seguintes: 1) P. como expressão verbal de uma operação mental,
freqüentemente chamada de juízo. 2) P. como entidade objetiva ou valor de verdade de um enunciado.
1. A doutrina de que a P. é expressão verbal de uma operação mental foi formulada pela primeira vez por Aristóteles,
para quem o conjunto (<Tuu,7tXoKf|) dos termos (nome e verbo) do discurso declarativo (A.Ó70Ç à7to<pavTtKóç)
corresponde a um pensamento(vór|LL(x) inerente necessariamente ao ser verdadeiro ou falso; portanto, "o verdadeiro
e o falso" versam sobre a composição e sobre a divisão (oúvGeoiç KOCÍ ôtaípeotç) {De interpr., 1, 16 a 9 ss.). O
discurso declarativo é, assim, expressão de um pensamento que procede compondo e dividindo: a composição dá
origem à afirmação; a divisão, à negação ijbid., 6,17 a 23). Nos Analíticos (na teoria do silogismo), Aristóteles
chamou o discurso declarativo de "prótasis"(cujo equivalente latino é "propositio"), ou seja, "premissa de raciocínio",
definindo-a como "o discurso que afirma ou que nega alguma coisa de alguma coisa" {An. pr. I, 1, 24 b 16), ou como
"a asserção de um dos membros da contradição" {Ibid. II, 12, 77 a 37). Desse ponto de vista, a P. difere do problema
(v.) apenas na forma, visto que, enquanto o problema consiste em perguntar (p. ex., o homem é um animal bípede terrestre ou não?), a P. consiste na asserção (p. ex., o homem é um animal
bípede terrestre) ou na asserção contraditória {Top., I, 4101 b 28). Porém, em qualquer caso, a verdade ou a falsidade
de uma P. depende do fato de a composição ou divisão dos termos nos quais consiste corresponder ou não àquela que
o intelecto encontra nas coisas existentes. Aristóteles diz.- "Não és branco porque acreditemos que és branco, mas,
por seres branco, dizemos a verdade ao afirmarmos isso. Se algumas coisas estão sempre unidas e não podem ser
divididas, e outras estão sempre divididas e não podem estar unidas, se outras coisas ainda podem ser compostas ou
divididas, o 'ser' consistirá em ser combinado ou ser dividido, e o 'não ser' consistirá em ser dividido ou em ser várias
coisas" {Met., IX, 10, 1051 a 34). Ao combinar seus termos, a P. expressa a ação com-binante ou dissociante do
intelecto que se segue à combinação e à dissociação das coisas existentes.
Essa doutrina conservou-se substancialmente inalterada na tradição, antiga, exceção feita aos estóicos (e pela corrente
aí iniciada), que introduziram a noção de enunciado (v.). A tradição medieval e boa parte da lógica moderna
conservou-a. S. Tomás de Aquino dizia que a verdade e a falsidade estão no intelecto, porquanto este procede
compondo e dividindo: "de fato, em toda P. uma forma significada pelo predicado aplica-se a alguma coisa
significada pelo sujeito ou se distancia dessa coisa" {S. Th., I, q. 16, a. 2). Na linha da lógica terminista, Ockham
admitia uma "P. mental", que identificava com ato do intelecto {liberperiermenias proemiurrí), ainda que para ele a
verdade da P. dependesse da suppositio (v. abaixo, 2). A partir de Descartes o termo "P." é substituído pelo termo
"juízo", porque a atenção da lógica filosófica estará cada vez mais concentrada na operação intelectual que encontra
expressão na P. (v. Juízo, 4).
Mas até mesmo Russell reduz a P. a atitude mental, embora a distinguindo do enunciado. Na verdade, considera-a
como "crença" ou "atitude proposicional", e afirma que as P. devem ser definidas como eventos psicológicos (ou
fisiológicos) de certa espécie: imagens complexas, expectativas, etc. Segundo Russell, isso é evidenciado pelo fato de
que as P. podem ser falsas {An Lnquiry into Meaning and Truth,
PROPOSIÇÃO
802
PROPOSIÇÃO
cap. XIII, A; ed. Pelican Books, p. 172; Cf. Human Knowledge, pp. 449-50) (v. Juízo, 3).
2. A doutrina segundo a qual a P. constitui o designado do enunciado assume formas diferentes, segundo a natureza
atribuída ao designado. Às vezes, este é entendido como "P. em si" ou "entidade" de algum tipo; outras vezes, como
objeto, situação objetiva, estado de coisas ou caráter. Em todos os casos, essa interpretação de P. não faz referência a
atos ou a operações mentais.
Os estóicos, que introduziram a noção de enunciado (v.), consideram que este expressa uma condição ou um estado
de coisas. Assim, afirmavam que "quem diz 'É dia' mostra que acha que é dia. Ora, se realmente for dia, o enunciado
que está diante de nós será verdadeiro; se não for dia, será falso " (Dióg. L., VII, 65). Deste ponto de vista, o fato de
ser dia é o significado ou o valor de verdade do enunciado "É dia". A lógica terminista medieval designou o
significado denotativo dos termos da P. com o conceito da suposição (v.), segundo o qual uma P. é verdadeira se os
termos dos quais resulta correspondem ao objeto existente (cf. OCKHAM, Summa log., II, 2). Nas Laws of Thought
(1854) Boole distinguia as P. primárias, que expressam uma relação com a coisa, e as P. secundárias, que expressam
uma relação entre proposições (Cap. IV, § 1). Mas Bolzano opusera à P. verbal a P. em si{Satz un Sich), que é válida
independentemente do fato de ser ou não ser expressa ou pensada, e constitui o elemento da matemática pura (
Wissens-chaftslehre, 1837, § 19). Retomando a polêmica de Husserl contra o psicologismo, Meinong distinguia em
todo "juízo" (termo para ele equivalente a P.) o objetivo{Objektiv), que é o conteúdo interno do juízo, e o objeto
(Õbjeki), que é a entidade externa à qual o juízo se refere ( Über Annahmen, 1902, p. 52). Para todos os efeitos, essa
distinção eqüivale àquela que Frege estabelecera entre sentido e significado {Über Sinn undBedeutung, 1892) (v.
SIGNIFICADO). A propósito da P., Frege dissera que, enquanto o sentido {Sinn) da P. é um "pensamento" — não
entendido subjetivamente, mas como "conteúdo objetivo que pode constituir a posse comum de muitos" —, o
significado {Bedeutung) da P. é o seu "valor de verdade", isto é, "a circunstância de ser verdadeira ou falsa". Deste
modo, a P. pode ser considerada como um nome próprio, e o verdadeiro ou falso é o objeto da P. Mas como todas as
P. verdadeiras terão o mesmo
significado (o verdadeiro), assim como todas as projeções falsas (o falso), segue-se que uma P. não pode reduzir-se
apenas ao seu significado, nem apenas ao seu sentido (que seria um pensamento puro), mas deve resultar do conjunto
de ambos {Über Sinn und Bedeutung, § 5, em Phil. Writings of G. F., ed. Geach and Black, pp. 63 ss.). Nas P.
indiretas ou oblíquas, nas quais há verbos como "dizer", "ouvir", "pensar", "acreditar", "concluir" e semelhantes
(como p. ex. em "Copérnico acreditava que as trajetórias dos planetas eram circulares"), a P. secundária introduzida
por que vale apenas como o nome de um pensamento, podendo por isso ser variada sem comprometer o valor da
verdade da P. inteira {Ibid, § 6; em Geach, pp. 66 ss.).
Em torno desse conceito de Frege giram as discussões da lógica contemporânea a respeito da natureza da P. Das duas
dimensões da P. admitidas por Frege, Wittgenstein procurou eliminar o sentido {Sinrí), como "pensamento" ou
"conteúdo objetivo", e usar essa mesma palavra para designar aquilo que Frege entendia por significado {Bedeutung),
empregando esta última apenas como denotaçâo dos nomes e dos signos. "A P." — disse ele — "é uma figuração
{Bild, picturé) da realidade: de fato, tomo conhecimento da situação por ela representada tão logo compreendo a P. E
compreendo a P., sem que o seu sentido me seja explicado" {Tractatus, 4.021). Desse ponto de vista, "a forma
universal da P. é: as coisas estão assim e assim" {Ibid., 4. 5). Por essa razão, compreender uma P. significa
simplesmente saber "como estão as coisas, no caso de ela ser verdadeira" {Ibid., 4.024), não sendo, pois, necessário
recorrer a um pensamento ou a qualquer conteúdo objetivo. Portanto, para Wittgenstein, o "sentido" de que falava
Frege é inútil, porque o sentido da P. é o seu próprio significado, e "a P. mostra seu sentido" {Ibid., 4.022). Por outro
lado, Wittgenstein afirma que "a P. possui um sentido independente dos fatos" (4.061) e que "as P. 'p e 'nãop' têm
sentido oposto, embora nelas se expresse uma única e mesma realidade" (4.0621), o que, na terminologia de Frege,
implicaria um sentido que não depende do significado.
Opondo-se a Wittgenstein, alguns lógicos contemporâneos tendem a reduzir o significado ao sentido, empregando o
termo "significado" {Meaning) para indicar aquilo que Frege chamava de sentido. Assim, Ayer definiu a P.
PROPOSIÇÃO ATRIBinWA
803
PRÓPRIO
como a "classe dos enunciados que têm o mesmo significado (significance) intencional para qualquer um que o
entenda" (.Language Truth and Logic, [1936], 1948, p. 88). Neste mesmo sentido, Quine considerou as P. como "os
significados dos enunciados" (From a Logi-cal Point of View, VI, 2; p. 109; Word and Object, 1960, § 42). Mais
próximos da posição de Frege estão Carnap e Church. Carnap distinguiu a extensão de um enunciado, que é seu valor
de verdade, de sua intensão, que é a P. que ele expressa. No sentido de Carnap, todavia, a P. é uma entidade tão
objetiva quanto a "propriedade", embora apenas de natureza lógica. Segundo Carnap, pode-se falar de P. também a
propósito de enunciados falsos, porque as P. são entidades complexas, compostas por outras entidades; e ainda que se
admita que os componentes últimos de uma P. devem ser "exemplificados" (isto é, devem ser verdadeiros), nem por
isso a P., em seu conjunto, deverá sê-lo {Meaning andNecessity, § 6; pp. 26-30). Church, que aceitou a terminologia
de Frege, usa o termo "P." como equivalente ao termo "sentido", de Frege, e afirma dever-se a uma decisão de algum
modo arbitrária o fato de recusarmos o nome de P. aos sentidos dos enunciados (das linguagens naturais), porquanto
expressam um sentido, mas não têm valor de verdade {Jntr. to Mathematical Logic, % 04, op. 27). Por outro lado,
Bergmann utilizou o termo de Brentano e de Husserl, "intenção", para reinterpretar o "significado" de Frege. A
intenção é o objeto dos atos intencionais, e a P. é o "caráter" correspondente à intenção. "No paradigma", disse ele, "a
intenção é um fato expresso em 'isto é verde'. Chamo de caráter correspondente 'a P. isto é verde' e uso P. como um
nome geral para essa espécie de caráter" {Logic and Reality, 1964, p. 32).
As discussões havidas entre os lógicos a respeito da P., bem como a respeito de suas equi-valências ou sinonímias,
além de outros problemas relativos, continuam centrados na distinção entre sentido e significado, ou suas distinções
correspondentes.
PROPOSIÇÃO ATRIBUTIVA; ATÔMICA; COMPARATIVA; DECLARATTVA; DESCRITIVA;
SECUNDARIA. V. esses adjetivos.
PROPOSIÇÃO FUNCIONAL (in. Functio-nal proposition; fr. Proposition fonctionelle, ai. Funktionellsatz; it.
Proposizione funzionalé). Dá-se esse nome às P. moleculares (ou seja, P.
complexas, compostas de P. simples através dos conectivos lógicos 'não', 'ou', 'e', 'implica'), cuja verdade (ou
falsidade) seja unicamente função da verdade ou falsidade das P. componentes. A questão de existirem ou não P.
moleculares não funcionais foi amplamente discutida na Lógica contemporânea, contra a tese extensional, defendida
principalmente por Wittgenstein, segundo a qual todas as P. moleculares são funções-verdade das componentes;
Russell e outros defenderam a possibilidade de P. compostas que não sejam funções, como p. ex., "A crê em p" (onde
'A' é um nome de pessoa e 'p é uma P.).
PROPOSICIONAL CALCULO, FUNÇÃO. V. CÁLCULO; FUNÇÃO PROPOSICIONAL.
PROPRIEDADE (in. Property, fr. Propriété, ai. Eigenschaft; it. Proprietã). 1. Determinação ou característica
própria de um objeto em um dos sentidos do termo próprio (v.).
2. Qualquer qualidade, atributo, determinação que sirva para caracterizar um objeto ou para distingui-lo dos outros.
PROPRIEDADE COMUTATIVA, DISTRIBUTIVA. V. COMUTATIVO, DlSTRIBUTIVO.
PROPRINCIPIA. Termo usado por Cam-panella para indicar os dois princípios que entram na constituição das
coisas finitas, isto é, o Ser e o Não-ser (Met., II, 2, 2) (v. PRIMALIDADE).
PRÓPRIO (gr. 'íSiov; lat. Proprium; in. Proper, fr. Propre, ai. Eigen; it. Próprio). 1. Uma determinação que
pertence a toda uma classe de objetos, pertencendo sempre e somente a essa classe, mesmo que não faça parte de sua
definição. Este é o sentido fundamental do termo, da maneira como foi esclarecido por Aristóteles {Top., I, 5, 102 a
18) e passou a fazer parte da tradição lógica (cf. Arnauld, Log., I, 7; Jungius, Lógica hamburgensis, I, I, 33). Neste
sentido, o P., apesar de não fazer parte da essência substancial de uma coisa, está estritamente conexo a essa essência
ou deriva dela de algum modo. O exemplo aduzido por Aristóteles é o do aprendizado da gramática: esta
determinação é P. do homem, no sentido de que quem é capaz de aprender gramática é homem, e é homem quem é
capaz de aprender gramática: as duas determinações "homem" e "capaz de aprender gramática" são reciprocáveis.
Neste sentido, o P. é uma determinação privilegiada que está entre a essência e as determinações acidentais.
2. No entanto, mesmo Aristóteles chama de próprias também as determinações acidentais
PROSSILOGISMO
804
PROTÓTESE
ao fazer a distinção entre P. por si, "que é estabelecido com relação a todos os objetos e separa o objeto em questão de
qualquer outro (como no caso de ser P. do homem ser um animal mortal que pode receber o saber)" e o P. em relação
a outra coisa, "que distingue o objeto apenas de algum objeto dado e não de qualquer outro objeto" (Top., V, 1, 128 b
34). O "P. por si" é o P. no sentido estrito, ou seja, a determinação sempre que pertence a todo o objeto dado, e
somente a ele, enquanto o P. "em relação a outra coisa" foi distinguido por Porfírio (com base nas mesmas
considerações de Aristóteles) em outras três determinações: Ia aquilo que pertence a uma única espécie, mas não a
todos os indivíduos da espécie (neste sentido ser filósofo é P. do homem); 2- aquilo que pertence a todos os
indivíduos de uma espécie, mas não a uma única espécie (ser bípede é P. do homem); 3 a aquilo que pertence a todos
os indivíduos de uma única espécie, mas nem sempre (neste sentido, encanecer é P. do homem). Porfírio enumerava
como quarto significado o mais restrito Gsag., 12, 12 ss.). Os quatro significados de Porfírio foram habitualmente
reproduzidos pela lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 2, 13), mas a partir da Lógica de Arnauld
(I, 7), mesmo mencionando-se as quatro distinções de Porfírio, preferiu-se limitar o conceito de P. ao mais restrito.
Na realidade, em seu significado lato, o conceito de P. pode incluir qualquer determinação, atribuída a qualquer título
a um objeto, perdendo, assim, característica ou utilidade específica. Seja como for, a noção está estritamente ligada à
da lógica aristotélica e à sua estreita vinculação com a teoria da substância, sendo por isso abandonada pela lógica
contemporânea.
PROSSILOGISMO. V. POLISSILOGISMO.
PRÓTASE. V. PROPOSIÇÃO.
PROTENSIVIDADE (in. Protensity, ai. Pro-tention; it. Protensionè). Duração de consciência. Termo introduzido
por Kant, que observava-. "A felicidade é a satisfação de todas as nossas propensões, tanto extensivas em sua
multiplicidade quanto intensivas (em relação ao grau) e protensivas (em relação à duração)" {Cru. R. Pura, Doutr. do
Método, cap. II, seç. II). Husserl chamou de P. "a pré-lembrança reprodutiva em sentido próprio", ou seja, o estado de
expectativa que prepara a reprodução da lembrança (Jdeen, I, § 77).
PROTOCOLO (in. Protocol; fr. Protocol; ai. Protokoll; it. Protocolo). Termo introduzido pelo Círculo de Viena
para indicar o registro do dado imediato ou experiência direta (sensação, percepção, emoção, pensamento, etc). As
"proposições protocolares" são as que contêm unicamente P. e por isso fazem referência direta aos dados imediatos;
por serem instrumento da verificação empírica, não precisam de verificação porque sua verdade é garantida pelo P.
que contêm, graças ao qual correspondem imediatamente ao dado empírico (cf. R. Carnap, em Erkenntnis, II, 1931,
pp. 437 ss.). A noção de P. está ligada à fase do neopositivismo que, para declarar significativa uma proposição,
exigia a verificação direta da proposição mediante protocolos. Mas mesmo Carnap, a partir da obra Testability and
Meaning (1936), limitava essa exigência afirmando que, para serem significativos, os enunciados devem ser confirmáveis, ou seja, devem conter apenas "predicados-coisa observáveis". Estes predi-cados-coisa não são mais P., isto
é, dados da experiência imediata, mas nomes de qualidades elementares (p. ex., "vermelho"). Para uma crítica do
conceito de P., no âmbito do positivismo lógico, cf. K. Popper, Logik der Fors-chung, 1934, trad. in., 1958 (v.
EXPERIÊNCIA).
PROTOFILOSOFIA (in. Protophilosophy, fr. Protophilosophie, ai. Protophilosophie, it. Proto-filosofià).Termo
empregado principalmente pelos sociólogos para indicar a filosofia dos povos primitivos, expressa na forma do mito
(v.).
PROTOLOGIA (in. Protology, fr. Protologie, ai. Protologie, it. Protologid). Termo empregado por alguns
escritores italianos do início do séc. XIX, especialmente por Ermenegildo Pini (/>., 3 vols., 1803), para designar
aquilo que Fichte denominava doutrina da ciência ou ciência das ciências. Esse termo foi adotado por Vincenzo
Gioberti na sua última obra, publicada postumamente CP., 1857). Gioberti define a P. como "a ciência do ente
inteligível, intuída através do pensamento imanente"; essa ciência é a base de qualquer outra, sendo também anterior
à ontologia. O uso desse termo parou em Gioberti.
PROTON PSEUDOS (gr. xtpwTOV V|/eüSoç). Falsidade da premissa maior, que determina a falsidade do
silogismo (Aristóteles, An. pr., II, 18, 66 a 16).
PROTÓTESE (in. Protothesis; fr. Protothèse, ai. Protothèse, it. Prototesi). Termo empregado por W. Ostwald para
indicar as hipóteses sus-
PROTÓTIPO
805
PROVA
cetíveis de verificação experimental no estado atual da ciência, que por isso se distinguem das que não o são (Die
Energie und ihre Wand-lungen, 1888, § 68). Na realidade, nenhuma hipótese é, como tal, diretamente verificável (v.
HIPÓTESE; TEORIA).
PROTÓTIPO (gr. 7ipraTÓTU7ioç;; lat. Prototy-pus-, in. Prototype, fr. Prototype, ai. Prototyp-, it. Protótipo).
Modelo originário. O mesmo que arquétipo (v.).
PROTRÉPTICO (gr. jtpoxpEJTUKÓç). Exortação à filosofia (cf. PLATÃO, Eutid., 278 c; CRISIPO, Stoicurom
fragmenta, III, 189). Essa palavra foi empregada como título de livro por Aristóteles, Epicuro, Cleante e outros.
PROVA (gr. tetcuiípiov; lat. Probatia, in. Proof,h. Preuve, ai. Beweis; it. Prova). Procedimento apto a estabelecer
um saber, isto é, um conhecimento válido. Constitui P. todo procedimento desse gênero, qualquer que seja sua
natureza: mostrar uma coisa ou um fato, exibir um documento, dar testemunho, efetuar uma indução são P. tanto
quanto as demonstrações da matemática e da lógica. Portanto, esse termo é mais extenso que demonstração (v.): as
demonstrações são P., mas nem todas as P. são demonstrações.
O conceito foi estabelecido no sentido restrito por Aristóteles, que, ao dizer "Dizem que P. é o que produz saber", fez
a distinção entre prova e indício, que proporciona apenas conhecimento provável (An. pr., II, 27, 70 b 2). Em
Retórica acrescentou: "Quando se acha que o que foi dito não pode ser refutado, acredita-se ter apresentado uma P.,
porquanto a P. é sempre demonstrada e perfeita"; o próprio silogismo é uma P. necessária nesse sentido (Ret., I, 2,
1357 b 5). O mesmo conceito de procedimento que estabelece ou descobre um conhecimento foi expresso pelos
estóicos na definição do sinal indicativo, como "enunciado que, procedendo com conexões corretas, descobre o que
se segue" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 104), ou de raciocínio demonstrativo, que, "por meio de premissas
estabelecidas, descobre por dedução uma conclusão patente" (Jbid., II, 135) Os entendimentos aos quais se faz alusão
nessas definições são P. por serem "aptos a descobrir", ou seja, por produzirem (e justificarem) conhecimentos. No
séc. XVII, Locke reproduzia a seu modo (com o pressuposto cartesiano da superioridade da intuição) este conceito de
P.: "As idéias intermediárias que servem para demonstrar a concordância entre duas outras
idéias são chamadas de P.; quando por esse meio é clara e evidentemente percebida a concordância ou a discordância,
dá-se-lhe o nome de demonstração, pois então a coisa é mostrada ao intelecto, e o espírito é levado a ver que ela é
assim" (Ensaio, IV, 2, 3). Mas a doutrina de Locke marca uma guinada importante ha história do conceito de P.
porque admite, pela primeira vez, a possibilidade de P. prováveis. "A probabilidade" — dizia Locke — "não passa de
aparência da concordância ou discordância entre duas idéias mediante a intervenção de P., cuja ligação não é
constante nem imutável, ou, pelo menos, não é percebido como tal, mas é ou parece ser na maioria das vezes, sendo
suficiente para induzir o espírito a julgar que a proposição é verdadeira ou falsa, e não o contrário" (Jbid., IV, 15,1).
Wolff, por sua vez, mesmo identificando a P. com o silogismo, distingue-a da demonstração, pois ela seria um
silogismo "que utiliza apenas premissas que são definições, experiências indubitáveis e axiomas" (Log., § 498). Mas
foram principalmente Hume e Kant que estabeleceram as distinções fundamentais nesse campo. Hume propôs
distinguir todos os argumentos em demonstrações, P. e probabilidades, entendendo por P. "os argumentos extraídos
da experiência, que não admitem dúvida e objeções" (Jnq. Cone. Underst., IV, nota); nessa distinção, as
demonstrações se limitariam ao domínio das puras conexões de idéias. Kant, por sua vez, distinguiu quatro espécies
de P.: Ia a P. lógica rigorosa, que vai do geral ao particular e é a demonstração propriamente dita; 2 a o raciocínio por
analogia; 3a a opinião verossímil; 4a a hipótese, que é o recurso a um princípio explicativo simplesmente possível
(Crít. do Juízo, § 90). Afirmou que as P. demonstrativas ou apodíticas acham-se apenas no domínio da matemática,
visto que esta procede mediante a construção de conceitos, e que os princípios empíricos de P. não podem produzir
nenhuma P. apodítica (Crtt. R. Pura, Doutrina do Método, cap. I, seç. II). Esta era substancialmente uma aceitação do
ponto de vista de Hume. Dewey também aceitou esse ponto de vista, observando que há, "por um lado, a
demonstração racional, que é questão de rigorosa conseqüencialidade no discurso, e, por outro, a demonstração
puramente ostensiva "(Logic, cap. XII; trad. it., p. 327). É freqüente a distinção entre demonstração, "P. lógica" "P.
dedutiva", "P. necessária" e a P. em geral (cf. p. ex., W. HAMILTON, Lectures on Logic, 1866, II, p. 38; G.
PROVA
806
PRÓXIMO
BERGMANN, Philosophy of Science, 1957, p. 4), mas, enquanto a análise dos procedimentos de P. usados pelas
ciências individualmente (e portanto da noção de P. em geral) recebeu pouca atenção dos filósofos metodológicos e
não fez progressos, a noção de P. lógica foi repetidamente elaborada por matemáticos e lógicos. Os princípios da
"teoria da P." foram estabelecidos por D. Hilbert da maneira seguinte: "Uma P. é uma figura que deve ser apresentada
como tal; consiste em conseqüências inferidas segundo o esquema:
S S-+T
T
em que cada uma das premissas (fórmulas S e S—>7)é um axioma (posto diretamente como tal), ou coincide com a
fórmula final Tde um raciocínio anteriormente agregado à P., ou seja, consiste na assunção dessa fórmula final. Dizse que uma fórmula é suscetível de P. se ela é axioma (isto é, assumida como axioma por posicionamento) ou é a
fórmula final de outra P. ("Die Logischen Grundlagen der Mathe-matik", em Mathematisch Annalen, 1923, p. 152).
Em outros termos, uma P. lógica é um procedimento que consiste na manipulação de fórmulas: manipulação que, por
sua vez, é um conjunto de fórmulas. Church diz: "Uma seqüência finita de uma ou mais fórmulas bem formadas será
uma P. se cada uma das fórmulas bem formadas da seqüência for um axioma ou for inferida imediatamente das
fórmulas precedentes da seqüência, por meio de uma das regras de inferência" (Intr. to Mathematical Logic, 1956, §
07). Wittgenstein já dissera a respeito: "A P. em lógica é apenas um expediente mecânico para reconhecer mais
facilmente a tautologia quando complicada" CTrac-tatus, 6, 1262).
A teoria matemática da P. consiste substancialmente em reduzi-la à P. da não-contradição. Ora, um teorema
estabelecido por K. Gõdel em 1931 afirma que, com a ajuda de uma parte da matemática, só se pode provar a nãocontradição de uma parte mais restrita da própria matemática, mas não se pode provar a não-contradição do conjunto
da matemática ou de uma parte mais extensa dela. Pode-se, p. ex., demonstrar a não-contradição da teoria dos
números inteiros partindo da teoria dos números reais, mas não reciprocamente (cf. CARNAP,
Logical Syntax of Language, 1937, §§ 35-36; QUINE, Mathematical Logic, 1940, cap. 7). O teorema de Gõdel, como
observa Quine, leva à maturidade um novo ramo da teoria matemática, conhecido como metamatemática ou "teoria
da P.", cujo objeto é a própria teoria matemática (Methods of Logic, § 41). Esse teorema estabelece, porém, que uma
P. de coerência é sempre relativa, pois seu resultado vale apenas na medida em que se admite a coerência do sistema
com base no qual ela é efetuada (cf. QUINE, From a Logical Point ofView, pp. 99 ss.). Cf., também, E. Nagel e J. R.
Newmann, GôdeVs Proof 1958 (v. MATEMÁTICA).
PROVÁVEL (in. Probable, fr. Probable, ai. Wahrscheinlich; it. Probabilé). 1. Evento ou proposição com grau
comparativo suficiente de confirmação ou de credibilidade (v. PROBABILIDADE, 1).
2. Classe ou seqüência de eventos dotada de certo grau de freqüência relativa (v. PROBABILIDADE, 2).
3. Aquilo que é considerado verdadeiro pela maioria ou pelos competentes. Este é o conceito de endoxon, em que
Aristóteles baseou a dialética (v.); tem pouco ou nada a ver com as duas noções precedentes.
PROVIDÊNCIA (gr. 7tpóvoia; lat. Providen-tia; in. Providence, fr. Providence, ai. Vorse-hung; it. Provvidenza).
Governo divino do mundo, geralmente distinguido de destino, pois é considerado como existente em Deus, ao passo
que o destino é esse governo visto através das coisas do mundo (v. DESTINO). A noção de providência faz parte
integrante do conceito de Deus como criador da ordem do mundo ou como sendo Ele mesmo esta ordem (v. DEUS).
Para os problemas conexos ao conceito de P.,
V. MAL; TEODICÉIA.
PROVIDENCIALISMO (in. Providentialism, it. Provvidenzialismó). 1. Confiança na ação da providência.
2. Doutrina que vê na história uma ordem ou um plano providencial, (v. HISTÓRIA).
PRÓXIMO (gr.tòv 7tA.T|críov; lat. Proximus; in. Neighbour, fr. Prochain; ai. Nãchste, it. Pros-simo). Na
interpretação do Evangelho de Lucas (X, 29-37) da máxima bíblica "Ama ao P. como a ti mesmo" {Levítico, XIX,
18), P. é o outro homem em geral, independentemente de quaisquer laços de raça, de amizade ou parentesco, na
medida em que ele é misericordioso para nós ou nós para com ele. Isso significa que a misericórdia deve ser praticada
em relação
PRUDÊNCIA
807
PSICANÁLISE
a qualquer homem que esteja conosco, não se restringindo a um círculo determinado de pessoas.
PRUDÊNCIA (lat. Prudentia; in. Prudence, fr. Prudence, ai. Klugheit; it. Prudenza). V. SABEDORIA.
PSEUDOCONCEITO. P., "ficções conceituais" ou "conceitos finitos" foram os nomes dados por Croce
às noções geralmente denominadas conceitos, em contraposição ao "conceito puro" ou "conceito
autêntico" com que ele designou a Razão Universal em sua forma cognitiva. Os P. serviriam para
conservar e classificar os conhecimentos adquiridos {Lógica, 1920, cap. II).
PSEUDOPROPOSIÇÕES (in. Pseudostate-ment; ai. Pseudosãtzen; it. Pseudoproposi-zioni). Termo
empregado por Carnap para indicar "expressões erroneamente consideradas proposições, mas que não
possuem conteúdo cognitivo, embora possam ter componentes de significado não cognitivo, por exemplo
emotivo" {Meaning and Necessíty, § 5). Segundo Carnap, muitas proposições da metafísica clássica são
P. nesse sentido (cf. Erkenntnis, II, 193DPSICANÁLISE (in. Psychoanalysis; fr. Psy-chanalyse, ai. Psychioanalyse, it. Psicanalisi). A designação
P. compreende: 1Q um método de tratamento de certas doenças mentais; 2-uma doutrina psicológica; 3S
uma doutrina metafísica; e, mais freqüentemente, certa mescla desordenada dessas três coisas. Os
fundamentos da P. foram resumidos por seu fundador, Sigmund Freud, na introdução de uma de suas
principais obras, da seguinte maneira: Ia os processos psíquicos são em si mesmos inconscientes, e os
processos conscientes são apenas atos isolados, frações da vida psíquica total; 2-os processos psíquicos
inconscientes são em boa parte dominados por tendências que podem ser qualificadas de "sexuais" no
sentido restrito ou lato do termo, Este último pressuposto na realidade é a característica fundamental da
P., que consiste essencialmente na tentativa de explicar a vida do homem (não só a pessoal ou individual,
mas também a pública ou social) recorrendo a uma única força, que é o instinto sexual ou libido (v.) no
sentido técnico deste termo {Einführung in díe Psycho-analyse, 1917, intr.). Do conflito entre os impulsos
sexuais do inconsciente e as superestru-turas morais e sociais constituídas por proibições e censuras
acumuladas e consolidadas pela
infância, nascem os fenômenos a seguir descritos: d) Sonhos: expressões deformadas e simbólicas dos
desejos reprimidos (cf. Die Traumdeutung, 1900). b) Atos falhos, ou lapsos: distrações falsamente
atribuídas ao acaso, chegando às brincadeiras e ao humorismo (cf. Zur Psychopathologie des
Alltagslebens, 1901; Der Witz und seine Bedeutung Zum Unbewussten, 1905). c) Doenças mentais: que
podem ser tratadas levando o paciente a identificar os conflitos dos quais elas emergem, através da
conversação. A esse respeito, o sintoma de uma doença deve ser considerado como "sinal e substituição
de uma satisfação instintiva que ficou latente, resultado de um processo de recalque" {Hemmung,
Symptom und Angst, 1926, cap. 2; trad. it, p. 29). Um dos fenômenos característicos do tratamento
psicanalítico é a transferenciados sentimentos do doente (positivos ou negativos, de amor ou de ódio)
para a pessoa do médico {Einführung, cit., cap. 27; trad. fr., pp. 461 ss.). d) Sublimaçâa transferência do
impulso sexual para outros objetos, o que ensejaria os fenômenos chamados espirituais: arte, religião, etc.
é) Complexos, sistemas ou mecanismos associativos, relativamente constantes em todas as pessoas, aos
quais devem ser atribuídas as principais perturbações mentais. A noção de complexo e o seu termo foram
introduzidos por um discípulo de Freud, C. G. JUNG (Wandlungen und Symbole der Libido, 1912), mas já
em Interpretação dos sonhos Freud esboçara todos os fatos fundamentais do chamado "complexo de
Édipo", em virtude do qual o menino inclui no amor pela mãe certo ciúme ou aversão pelo pai.
Em 1923, na obra EgoeldiDasIch und das Es), Freud expôs uma teoria psicológica que foi amplamente
aceita pela psicologia de sua época. Dividia o espirito em três partes: Ego, que é organização e
consciência, e por isso está em contato com a realidade e procura submetê-la a seus fins; Superego, aquilo
a que geralmente se dá o nome de consciência moral e que é o conjunto das proibições insuladas ao
homem em seus primeiros anos de vida, acompanhando-o depois, mesmo que de forma inconsciente; e Id,
que é constituído pelos impulsos múltiplos da libido, sempre voltada para o prazer. Esta doutrina, que foi
revisada pelo próprio Freud mais tarde (cf. Hemmung, Symptom und Angst, 1926), revelou-se bastante
útil tanto para a des-
PSICANÁLISE
808
PSICÓIDE
crição e a interpretação das doenças mentais quanto para a teoria da personalidade.
Freud e seus seguidores não apresentaram nem apresentam seus conceitos como hipóteses ou instrumentos de
explicação, mas como realidades absolutas, de natureza metafísica. Pode-se chamar de própria metafísica — e até de
mitologia — a teoria formulada por Freud numa de suas últimas obras, Das Unbehagen in der Kultur (1930, trad. in.,
com o título de Civilisation and its Discontents, 1943), em que considera a história da humanidade como a luta entre
dois instintos, o da vida (Eros) e o da morte (Tanatos): "É nessa luta que consiste essencialmente a vida, e por isso o
desenvolvimento da civilização pode ser descrito como a luta da espécie humana pela existência. Trata-se de uma
batalha de titãs, que nossas babás tentam compor com suas ladainhas sobre céu" {Civilisation and its Discontents,
1943, p. 102). Essa doutrina outra coisa não é senão a expressão — não muito atualizada — do dualismo maniqueísta.
A importância da P. consiste, em primeiro lugar, em dar destaque à função do fator sexual em todas as manifestações
da vida humana. Pela primeira vez, esse fator deixou de ser uma zona de ignorância obrigatória para a ciência e para a
filosofia e pôde ser estudado em seus reais modos de ação. Em segundo lugar, a P. forneceu um conjunto de conceitos
que, conquanto não muito compatíveis entre si, prestam-se a ser utilizados por vários ramos da psicologia
contemporânea, principalmente se isentos do dogmatismo com que alguns seguidores de Freud os trataram. Este
segundo aspecto positivo tem, porém, uma contrapartida negativa: a P. dá a muitos diletantes a oportunidade de
apresentar explicações aparentemente plausíveis e fáceis dos fenômenos humanos mais díspares, confundindo
também, às vezes, essa explicação com uma justificação moral ou metafísica. Em terceiro lugar, a P. teve o mérito de
propiciar um instrumento de tratamento que continua sendo eficaz, apesar de perdidas muitas das ilusões otimistas
inicialmente suscitadas.
Entre as muitas tendências interpretativas que modificaram em maior ou menor grau as doutrinas fundamentais da P.,
é possível lembrar duas, a de Jung e a de Adler. Jung concebeu o instinto fundamental do homem não como de
natureza sexual, mas como uma energia originária e criativa que se identifica com o conceito genérico de divindade e
constitui o
inconsciente coletivo, que é a base comum da natureza humana (Psicologia do incosciente, 19425). Adler, ao
contrário, identificou o instinto fundamental do homem com a vontade de potenciade que falava Nietzsche, ou seja,
como um espírito de agressão e de luta em conflito com outro instinto, o sentimento de comunidade humana, que liga
o indivíduo a todos os outros. A interação dessas duas forças determinaria o caráter de cada homem e suas
manifestações patológicas (Conhecimento do homem, 1927).
PSICANÁLISE EXISTENCIAL (fr. Psycha-nalyse existenciellé). Sartre deu este nome à análise filosóficoexistencial, porquanto ela procura determinar a "escolha originária" que está na base de todo "projeto humano de
vida". O princípio dessa psicanálise é que "o homem é uma totalidade, e não uma coleção", e o seu objetivo é
"decifrar os comportamentos empíricos do homem". Além disso, seu ponto de partida é a experiência e seu método é
o comparativo (L'être et le néant, 1943, p. 656). A P.
f existencial distingue-se da de Freud, que Sartre
f chama de "empírica", porque procura determij nar a escolha originária, não os "complexos"
j
Qbid., p. 657).
|
PSICODÉLICO (in. Psychedelic). Adjetivo que deveria significar "o que manifesta a psique", cunhado para
qualificar as experiências produzidas pelo uso do ácido lisér-gico (LSD) ou de outras drogas, consideradas revelações
de uma realidade mais profunda que a manifestada na experiência comum e que seria de natureza divina ou
representaria a própria divindade imanente no mundo (cf. W. BRADEN, The Private Sea, Londres,
\
1967).
PSICOFÍSICA. V. PSICOLOGIA, ti).
PSICOGÊNESE (in. Psychogenesis, fr. Psy-chogénèse, ai. Psychogenese, it. Psicogenesi). Desenvolvimento dos
processos mentais, ou o estudo desse desenvolvimento.
PSICOGNOSE (in. Psychognosy). Termo empregado por Peirce para indicar o conjunto
|
das ciências psíquicas (Coll. Pap., 1.242).
PSICOGRAFIA (in. Psychograph; fr. Psy-chographie, ai. Psychographie-, it. Psicografid). Descrição dos processos
ou das características psíquicas de um indivíduo.
PSICÓIDE (in. Phychoid; fr. Psychoid; ai. Psychõide, it. Psicoidê). Nome dado pelo biólogo vitalista H. Driesch à
força psíquica que
PSICOLOGIA
809
PSICOLOGIA
preside à formação e ao desenvolvimento dos organismos (v. VITALISMO).
PSICOLOGIA (in. Psychology, fr. Psycho-logie, ai. Psychologie, it. Psicologia). Disciplina que tem por objeto a
alma, a consciência ou os eventos característicos da vida animal e humana, nas várias formas de caracterização de tais
eventos com o fim de determinar sua natureza específica. As vezes, tais eventos são considerados como puramente
"mentais", ou seja, como "fatos de consciência"; outras vezes, como eventos objetivos ou objetivamente observáveis,
ou seja, como movimentos, comportamentos, etc, mas em todo caso a exigência a que essas definições correspondem
é a de delimitar o domínio da indagação psicológica ao campo restrito dos fenômenos característicos dos organismos
animais, em especial do homem. Do ponto de vista da formulação conceituai (que interessa à filosofia) podemos
distinguir as seis correntes fundamentais seguintes: d) P. racional; h) P. psicofísica; c) beha-viorismo; ã) gestaltismo;
é) P. do profundo;/) P. funcional.
a) A P. racional ou filosófica foi fundada por Aristóteles, o primeiro a coligir em seu livro De Anima as opiniões que
seus predeces-sores haviam expresso a respeito desse assunto. Essa P. tem por objeto "a natureza, a substância, e as
determinações acidentais de alma", entendendo-se pôr alma "o princípio dos seres vivos" (De an., I, 1, 402 a 6). O
pressuposto fundamental dessa P. está explícito nas seguintes notas: nos eventos estudados, pressupõe um princípio
único e simples, uma substância necessária, da qual seja possível de-duziras determinações que esses eventos
possuem constantemente ou na maioria das vezes. Neste sentido, a P. é uma ciência dedutiva da alma, cujos
fenômenos particulares só são considerados como confirmações ocasionais dos teoremas que a constituem. Com
muita razão, no séc. XVIII, Wolff dava a essa P. o título de "racional", porquanto ela trata de "derivar a priori, do
único conceito de alma humana, todas as coisas observadas a posteriori como de sua competência" (Log., Disc, prel.,
§ 112). Mas foi mérito de Wolff acrescentar a tal P. uma outra, "empírica", definida como "a ciência que, através da
experiência, estabelece os princípios capazes de esclarecer o que acontece na alma humana" (Ihid., § 111;
Psychologia empírica, 1732, § 1). Neste sentido, a P. racional continua sendo uma corrente das filosofias que
se inspiram na metafísica tradicional, mas deixou de ter eficácia sobre o desenvolvimento científico da psicologia.
è)AP. psicofísica ou, mais simplesmente, a psicofísica constituiu a primeira corrente empírica, experimental ou
científica da psicologia. Wolff já lhe prescrevera um método indutivo ou experimental, característico de todas as
ciências empíricas; no início do séc. XK, Maine de Biran prescrevia seu campo de ação: a consciência (Essai sur les
fondements de Ia psychologie, 1812). No entanto, ainda não existiam todas as condições para a fase científica da
psicologia. Faltavam duas, estreitamente inter-relacionadas: em primeiro lugar, o reconhecimento da estreita relação
entre os eventos psíquicos e os físicos, através da ação do sistema nervoso; em segundo lugar, a introdução de alguma
técnica de medição. A concretização dessas duas condições levou a P. a constituir-se como psicofísica. Isto aconteceu
graças a Helmholtz, Weber, e Fechner: o primeiro conseguiu medir, em 1850, a velocidade do impulso nervoso,
enquanto o segundo enunciava a denominada "lei" da relação entre o estímulo e a sensação (segundo a qual o
aumento do estímulo necessário para ser percebido como tal é proporcional à intensidade do estímulo originário), e o
último estabelecia a "lei psicofísica fundamental", representada pela fórmula matemática que expressa a lei de Weber.
Em 1860 Fechner publicava os Elementos de psicofísica, que a definiam como "a ciência exata das relações
funcionais ou relações de dependência entre o espírito e o corpo". Esse foi o programa da P. científica nessa primeira
fase de sua organização: programa no qual logo encontraram lugar os resultados das análises do empirismo inglês,
desde Locke até Spencer. Este último, em Princípios de P. (1855), também definira como psicofísica a tarefa da P.,
afirmando que "a P. distingue-se das ciências em que se apoia [anatomia e fisiolo-gia] porque cada uma de suas
proposições leva em conta tanto o fenômeno interno conexo quanto o fenômeno externo conexo, ao qual se refere."
(Principies of Psychology, 3a ed., 1881, p. 132). Do empirismo inglês, a P. extraiu duas características fundamentais,
que a acompanharam nessa primeira fase, de constituição: o atomismo(y.) e o associacio-nismo (v.). Desse modo,
suas estruturas teóricas fundamentais podem ser resumidas da seguinte maneira;
PSICOLOGIA
810
PSICOLOGIA
PAP. tem por objeto os "fenômenos internos" ou "fatos da consciência", e seu principal instrumento de indagação é a
introspecção ou reflexão. Graças a esse aspecto, a corrente em exame foi muitas vezes chamada de P. subjetiva ou
reflexiva, ou — mais raramente — "crítica".
2Q Os fatos de consciência ou fenômenos internos são estudados pela P. em sua conexão funcional com os fenômenos
externos (fisiológicos ou físicos). Graças a esse aspecto, que é o mais característico da fase em questão, tal P. foi
chamada de psicofísica ou também/2's/o/ó-gica (por Wundt). Com este aspecto tem relação a hipótese que sustentou
nesta fase o trabalho experimental da P.: o paralelismopsi-coftsico (v.).
3e Tendência a resolver o fato de consciência por elementos últimos (sensações, emoções elementares, reflexos ou
instintos elementares) e explicar os fenômenos mais complexos com a combinação de tais elementos (atomismo,
associacionismo).
4a O caráter científico da P. é constituído pelo recurso aos procedimentos de indução, de experimentação e de cálculo
matemático, que estabelece o caráter descritivo reivindicado pela P., analogamente ao que fazem as outras disciplinas
empíricas.
c) A P. da forma ou gestaltismo concentra seus ataques no 3a princípio fundamental da P. psicofísica, o atomismo e o
associacionismo. Consiste em assumir como ponto de partida o princípio simetricamente oposto ao da P. associativa:
o fato fundamental da consciência não é o elemento, mas a forma total, visto que esta nunca é redutível à soma ou à
combinação de elementos. Seus fundadores foram Weltheimer, Kõhler e Koffka; mesmo mantendo inalterado o 2princípio fundamental da psicofísica, deixou de falar em fatos e fenômenos de consciência para considerar formas,
configurações ou campos, em sua estrutura total. O gestaltismo tratou principalmente da percepção, a respeito da qual
acumulou um número enorme de traballlos experimentais (v. PERCEPÇÃO, 3, a).
d) AP. objetiva ou behaviorismo concentra seus ataques noP princípio fundamental da P. psicofísica, negando que o
instrumento fundamental da P. seja a introspecção ou a reflexão e que os fatos de consciência ou fenômenos internos
sejam objeto dessa ciência; afirma que, ao contrário, os objetos da P. são as reações dos organismos aos estímulos, entenden-do-se por reações movimentos ou fenômenos objetivamente
observáveis, relacionados com os eventos do ambiente, que funcionam como estímulos. Em 1907, o fisiologista russo
Bech-terev publicava uma P. objetiva (depois traduzida para inglês e francês), que defendia justamente essa tese,
mais tarde difundida e defendida pelos estudos de Pavlov sobre os reflexos condicionados (y. AÇÃO REFLEXA).
Portanto, pode-se dizer que aí tem início o behaviorismo. Esse nome, porém, só lhe foi atribuído alguns anos mais
tarde, pelo americano J. B. Watson, em um artigo de 1913 e depois num livro intitulado Comportamento, introdução
à P. comparativa (Behavior, An In-troduction to Comparative Psychology, 1914). Nessa primeira fase, o
behaviorismo assumia caráter de necessitarismo rigoroso; a reação do animal era considerada efeito causai necessário
do estímulo, por isso infalivelmente previsível a partir dele. O abandono desse necessitarismo e o reconhecimento do
caráter simplesmente estatístico ou probabilístico das constantes verificáveis nas reações de resposta dos organismos
aos estímulos constitui a fase mais moderna do behaviorismo (v. BEHAVIORISMO).
é) As denominadas P. abissais ou P. do profundo concentram seus ataques no 4S princípio fundamental da P.
científica clássica, considerando a P. como ciência de interpretação, e não de descrição. Com efeito, para a
psicanálise, que é a maior e a mais coerente expressão das P. abissais, o ponto de partida da interpretação não está nos
fatos, como faz a descrição, mas nos sintomas, e a noção de sintoma é fundamental em psicanálise (v. INCONSCIENTE).
Na interpretação dos sintomas a psicanálise segue uma única regra básica: reduzir o sintoma a símbolo ou expressão
deformada de uma necessidade ou de um conflito de natureza vagamente sexual, atinente à libido (v. LIBI-DO;
PSICANÁLISE; SEXUALIDADE). São variantes da psicanálise a denominada P. individual de Alfred Adler, que insiste
particularmente no caráter finalista dos problemas psíquicos (Praxis und Theorie der Individualpsychologie, 1924), e
a P. analítica de C. G. Jung, que na realidade é muito pouco analítica (no sentido próprio do termo), pois não faz
senão atribuir caráter simbólico a muitos sintomas que para Freud tinham significado direto {Coll. Pap. onAnalyticalPsychology, 1916). (V. INCONSCIENTE; PROFUNDO.)
PSICOLÓGICO
811
PSICOLOGISMO
f) Para a P. funcional ou funcionalismo, o objeto da P. é constituído pelas funções ou operações do
organismo vivo, consideradas como unidades mínimas indivisíveis. O funcionalismo inicia-se com uma
obra de Dewey, Conceito do arco reflexo em P. (1896), na qual se afirmava categoricamente que o arco
reflexo não pode ser dividido em estímulo e resposta, mas deve ser considerado como uma unidade da
qual apenas o estímulo e a resposta auferem significado. Para indicar a unidade da função, o próprio
Dewey empregou depois a palavra transação (v.), que servia para ressaltar a impossibilidade de
considerar os elementos de uma função qualquer como entidades autônomas e independentes da relação
de que participam (cf. Knowing and the Known, 1949, em colaboração com A. F. Bentley). A corrente
fun-cionalista abandona os pressupostos Ia, 2Q e 3Q da P. tradicional. Abandona o ls porque o objeto que se
propõe estudar não é um fato de consciência, e sim uma função, ou seja, uma operação em virtude da qual
o organismo entra em relação com o ambiente. Abandona o 2 S princípio fundamental porque o método de
que este se vale não é introspectivo, mas objetivo ou comportamentista: as funções devem ser estudadas
mediante procedimentos de observação objetiva. Finalmente, o funcionalismo tem em comum com o
gestaltismo o abandono do 3a princípio fundamental. Mas a principal novidade do funcionalismo é o probabilismo, que consiste em negar não só aos procedimentos da ciência, mas também a todas as funções
cognitivas humanas (inclusive a percepção imediata), o caráter de certeza infalível, e em atribuir a todas
essas funções a possibilidade de atingirem uma validade apenas provável. Por este probalilismo, o
funcionalismo constitui a inserção da P. no campo das idéias fundamentais da ciência contemporânea (cf.
BRUNSWIK, Psychology in Terms of Objects, 1936, CANTRIL, AMES, HASTORF, ITTELSON, "Psychology
and Scientific Research, em Science, vol. 110, 1949; CANTRIL, The "Why" of Man's Experience, 1950;
trad. it., As motivações da experiência, 1958; v. também as obras citadas na bibliografia deste último
livro).
PSICOLÓGICO (in. Psychological; fr. Psy-chologique; ai. Psychologisch; it. Psicológico). 1. O que
concerne à psicologia; nesta acepção, esse termo tem tantos significados quantas são as correntes
conceituais da psicologia.
2. O que se refere à consciência do indivíduo, ou seja, às atitudes ou às valorações individuais. Nesse
sentido, dizemos, p. ex., que se trata de uma "questão puramente P." quando diante de uma questão cuja
base não pode ser encontrada nos fatos ou no âmbito de determinado universo de discurso (p. ex.,
científico, lógico, etc).
PSICOLOGISMO (in. Psychologism; fr. Psychologisme, ai. Psychologismus, it. Psicolo-gismó). 1. Este
termo tem origem no séc. XIX; designa em primeiro lugar qualquer filosofia que assuma como
fundamento os dados da consciência, como reflexão do homem sobre si mesmo. Foi assim que G. F. Fries
(1773-1844) e F. E. Beneke (1798-1854) entenderam O P., em oposição ao idealismo hegeliano. Ambos
assumiram explicitamente como método e tarefa da filosofia a auto-observação ou consciência. Desse
ponto de vista, a psicologia,
I como descrição da experiência interna, torna! se a única
filosofia possível (cf. FRIES, Neue
, oder anthropologische Kritik der Vernunft, 1828; Beneke, Die
Philosophie in ihrem Ver-haltnis zur Erfahrung, zur Speculation und Zum Leben, 1833). Mais genérica e
polemicamente, V. Gioberti entendia por P. o procedimento filosófico que vai do homem a Deus,
contraposto àquele que vai de Deus ao homem. Este último é o ontologismo (v). O P. é
j
considerado por Gioberti como a caracterís: tica da filosofia moderna, de Descartes em diante
{Jntr. alio studio delia filosofia, 1840. II, p. 175).
I
2. No seu uso polêmico, o termo é constan{
temente empregado para designar a confusão
j
entre a gênese psicológica do conhecimento e
j
sua validade; ou a tendência a julgar justificada
;j
a validade de um conhecimento, quando na
j
verdade só se explicou seu acontecimento na
1
consciência. Neste sentido, foi Kant o primeiro
1
a esclarecer o conceito de P. (apesar de não ter
I
usado esse nome); foi quem iniciou a polêmica
I
contra ele, fazendo a distinção a propósito dos
I
conceitos apriori, entre a quaestiofactide sua "derivação fisiológica", isto é, do seu acontecimento na
mente ou na consciência do homem, e a quaestio júris, que consiste em perguntar o fundamento de sua
validade, exigindo como resposta a dedução (v. DEDUÇÃO TRANSCENDENTAL) (Crít. R. Pura, § 12). Essa
distinção, sempre presente na obra de Kant, significa a descoberta da dimensão lógico-objetiva do
conhecimento; irredutibilidade dessa dimensão à
JZ£%è*r-. -*
PSICOLOGISMO
812
PSICOTERAPIA
consciência ou às condições subjetivas do conhecer foi defendida por muitas escolas kan-tianas: pela
escola de Baden (Windelband, Rickert), pela de Marburgo (Cohen, Natorp) e pela fenomenologia
(Husserl), que, na filosofia dos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX, combateram
constantemente o psicologismo. Herman Lotze, em Lógica (1874), insistiu sistematicamente no ponto de
vista antipsicológico, fazendo a distinção entre ato psíquico de pensar, que existe só como determinado
evento temporal, e o conteúdo do pensamento, que tem outro modo de ser, o da validade. Na lógica
matemática, Frege impusera o mesmo ponto de vista: "Que não se tome como definição matemática a
simples descrição do modo como se forma em nós certa imagem, nem como demonstração de um teorema
o rol de condições físicas ou psíquicas que em nós devem ser satisfeitas para que possamos compreender
seu enunciado. Que não se confunda a verdade de uma proposição com o fato de ela ser pensada! É
preciso lembrar bem: que uma proposição não deixa de ser verdadeira quando não a penso, assim como o
sol não deixa de existir quando fecho os olhos" {Die Grundla-gen derArithmetik, 1884, Intr.; trad. it.,
em^4ní-mética e lógica, p. 23). Essas considerações eram repetidas quase literalmente por Husserl
(Logische Untersuchungen, 1900, I, §§ 17 ss.), que mais tarde reforçava: "se dissermos que um número é
uma formação psíquica, incidiremos num absurdo, chocar-nos-emos contra o sentido intrínseco do
discurso aritmético, que está acima de todas as teorias e em todos os momentos e claramente
contemplável em sua plena validade" Çldeen, 1,1913, § 22), prevenindo contra a tendência a
"psicologizar o eidé-tico", a identificar as essências com a consciência que se tem delas em cada caso
ilbid., § 61). A corrente antipsicológica, nesse sentido, hoje é a base de filosofias aparentemente díspares,
como p. ex. do existencialismo, na forma observada na obra de Heidegger, que é a análise das situações
humanas em sua essência, e não em sua ocorrência psíquica (cf. Sein und Zeit, § 7); o mesmo se pode
dizer do empirismo lógico, cujo principal representante, R. Carnap, travou polêmicas constantes contra o
P. (cf. Der Logische Aufbau der Welt, 1928, §§ 151 ss.; "Empiricism, Semantics, and Ontology", 1950,
em Readings in Phil. of Science, 1953, p. 514). A polêmica contra o P. é, aliás, freqüente
no empirismo lógico (cf. p. ex., A. Pap, Ele-ments of Analytic Philosophy, 1949, p. 406).
PSICOMETRIA (in. Psychometry, fr. Psy-chométrie, ai. Psychometrie, it. Psicometrid). Medida da
freqüência, da intensidade ou da duração dos eventos psíquicos. Esse termo (psycheometria), bem como a
exigência de se aplicarem medidas a fatos psíquicos, foram propostas de Wolff (Psychol. empírica, § 522,
6l6). O termo foi muito empregado pela psicofí-sica, que às vezes se identificou com a psico-metria.
Atualmente está em desuso.
PSICOPATIA (in. Psychopaty, fr. Psychopathie, ai. Psychopathie, it. Psicopatid). Distúrbio ou doença
mental, ou as formas menos graves dessas doenças. Neste último sentido, a P. seria diferente da psicose
(v.).
PSICOSE (in. Psychosis; fr. Psychose; ai. Psychose, it. Psicosi). No significado atualmente um uso,
doença mental grave que implica perda ou distúrbio dos processos mentais. Psico-neurose ou
simplesmente neurose, doença ou distúrbio mental menos grave. Em geral, entende-se por P. o
enfraquecimento ou o desaparecimento da relação verificável com as coisas ou com cs outros; essa
relação é constituída pela personalidade (v.), e sua alteração, portanto, comporta o desequilíbrio da
personalidade. Por relação verificávelpode-se entender a relação passível de confirmação, ou a que não
seja desmentida por critérios comumente considerados válidos, ou a que, de qualquer modo, não
equivalha à negação de qualquer relação possível.
PSICOSSOMÁTICO (in. Psychosomatic; fr. Psychosomatique, ai. Psychosomatik, it. Psico-somatico).
Que concerne à influência das atitudes mentais (modo de pensar e de sentir de uma pessoa) sobre os
processos orgânicos. Chama-se psicossomático o ramo da medicina que estuda tais influências (compare
F. Ale-xander, Psychosomatic Medicine, 1949).
PSICOTÉCNICA (in. Psychotechnic- fr. Psychotechnique, ai. Psychotechnik; it. Psicotécnica).
Aplicação da psicologia aos problemas do trabalho e da produção: engenharia psicológica.
PSICOTERAPIA (in. Psychotherapy, fr. Psy-chothérapie, ai. Psychotherapie, it. Psicotera-pid).
Solução dos conflitos individuais ou de grupo, ou o tratamento de estados mentais patológicos por meio
de aconselhamento, esclarecimentos ou sugestões verbais, sem recorrer a meios materiais. A psicanálise é
a
PSIQUE
813
PURO
forma mais conhecida e difundida de psicote-rapia. Uma forma mais recente é a denominada "P. não diretiva",
segundo a qual o método de tratamento consiste em procurar encontrar, através uma conversação amigável com o
paciente, a imagem que ele faz de si mesmo e de seus objetivos na vida, ajudando-o a livrar-se dos conflitos (cf. C. R.
ROGERS, Counseling and Psychotherapy, 1937) (v. PSICANÁLISE).
PSIQUE (in. Psyche, fr. Psyché, ai. Psyche, it. Psichè). Alma ou Consciência. Ver esses dois termos.
PSITACISMO (in. Psittacism; fr. Psittacisme, ai. Psittazismus; it. Psittacismó). Uso das palavras sem referência aos
objetos, como fazem os papagaios. Leibniz dizia: "Raciocina-se muitas vezes com as palavras, quase sem ter o objeto
no espírito" (...); neste caso, "nossos pensamentos e nossos raciocínios, contrários ao sentimento, são uma espécie de
P." (Nouv. ess., II, 21, 35). Sobre a linguagem oratória considerada como uma espécie de P., cf. C. K. Ogden-I. A.
Richards, The Meaning of Meaning, 10a ed., 1952, p. 218.
PUBLICIDADE (in. Publicity, fr. Publicité, ai. Óffentlichkeít;it. Pubblicitã).SegundoKant, é o critério para
reconhecer imediatamente a legitimidade de uma pretensão jurídica. Kant chama de fórmula transcendental do
direito público o seguinte princípio: "São injustas todas as ações relativas ao direito de outros homens cuja máxima
não seja suscetível de P." {Zum ewigen Freiden, apêndice II).
PÚBLICO (in. Public; fr. Publique, ai. Of-fentlicb; it. Pubblicó). Esse adjetivo foi usado em sentido filosófico
(especialmente por escritores anglo-saxões) para designar os conhecimentos ou os dados ou elementos de
conhecimento disponíveis a qualquer pessoa em condições apropriadas e não pertencentes à esfera pessoal e não
verificável da consciência. Neste sentido, é P. o que Kant denominava objetivo (v.): aquilo de que todos podem
participar igualmente, podendo portanto também ser expresso ou comunicado pela linguagem (cf. B. RUSSELL,
Human Knowledge, II, 1; trad. it., p. 81).
PUNIÇÃO. V. PENA. PURIFICAÇÃO. V. CATARSE. PURISMO (in. Purism; fr. Purisme, ai. Pu-rismus; it.
Purismo). 1. Em sentido moral: "espécie de pedantismo relativo à observação do dever considerado no sentido mais
lato"
(KANT, Met. der Sitten, Doutrina da virtude, I, § 7).
2. Em sentido lingüístico: espécie de pedantismo relativo à pretensão de conservar a forma clássica e original de uma
língua.
3. Em sentido metafísico: espécie de pedantismo relativo à separação excessivamente rigorosa de uma faculdade
humana da outra. A palavra foi usada nesse sentido por G. C. Ha-mann, como título de uma obra {Metacrítica doP.
da razão, 1788, póstumo), na qual repreendia Kant por essa espécie de pedantismo com respeito à razão.
PURO (in. Purê, fr. Pur, ai. Rein; it. Puro). O que não está misturado com coisas de outra natureza, ou, com mais
exatidão, o que é constituído de modo rigorosamente conforme à própria definição. Esta segunda definição explica o
enorme uso que os filósofos fazem desse adjetivo, porquanto, depois de definirem um objeto, muitas vezes se acham
na obrigação de distinguir as condições em que o objeto se apresenta rigorosamente em conformidade com sua
definição, das condições em que dela se afasta em alguma medida: nas primeiras condições, o objeto é chamado de P.
Anaxágoras dizia que o intelecto é P. porque só ele, "entre todos os entes, é simples e sem mistura" (ARISTÓTELES, De
an., 405 a 16). Platão falava em prazer "P.", sem mistura de dor CR/., 51 a, 52 c). Descartes falava da matemática
"P." (Méd., VI); Leibniz, da "P." razão (Op., ed. Erdmann, pp. 229-230, etc), assim como Wolff {Psychol. empírica,
% 495). O primeiro motor de Aristóteles foi chamado de "Ato P." por ser atividade perfeita, desprovida de potência,
mas essa expressão não é aristotélica (cir. Met., XII, 6, 1071 b 22; 8, 1074 a 36).
2. Kant chamou de P., ou "absolutamente P.", o conhecimento "no qual, em geral, não se misture nenhuma
experiência ou sensação, sendo por isso possível completamente a priori" (Crit. R. Pura, Intr., § VII). Neste sentido,
razão P. "é a que contém os princípios para conhecer algo absolutamente a priori". Ciência da razão P. é uma crítica,
e não uma doutrina, porquanto não pode proporcionar um sistema acabado da razão P., mas pode apenas ter função
negativa, "servindo para purificar, e não para ampliar, a nossa razão, libertando-a dos erros" (Ibid.). Neste sentido, o
oposto de P. é empírico. Esse adjetivo foi usado no mesmo sentido por Fichte, que disse ser P. o Eu absoluto (ou a
sua atividade), por ser diferente do eu
PURPÚREA, DLIACE, AMABIMUS
814
PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS
empiricamente condicionado e porque sua atividade prescinde completamente da experiência
(Wissenschaftslehre, 1794, III, § 5, II). Este uso foi constante no idealismo de inspiração romântica.
Gentile chamou o pensamento pensante de ato P. por ser independente de condições ou de conteúdo
empírico (.Teoria generale dello spirito come attopuro, 1920).
3. Na linguagem comum, chama-se P. uma ciência ou uma disciplina tratada teoricamente, sem
consideração de suas possíveis aplicações; neste caso, P. é o contrário de aplicado. Hamilton já anotava a
impropriedade desse uso (Lectures on Logic, I, 1866, p. 62).
PURPÚREA, ILIACE, AMABIMUS, EDEN-TULI. Termos mnemônicos da lógica tradicional para
exprimir a equivalência das quatro proposições modais, cada uma representada por uma sílaba na seguinte
ordem: possível, contingente, impossível, necessário. A vogai
que se acha em cada uma das sílabas (A ou E ou /ou Ü) indica se o modo deve ser afirmado ou negado e
se a proposição deve ser afirmada ou negada. A significa a afirmação do modo e a afirmação da
proposição; E, a afirmação do modo e a negação da proposição; /, a negação do modo e a afirmação da
proposição; U, a negação do modo e a negação da proposição. Desta maneira, todas as quatro proposições
indicadas pela mesma palavra são eqüipolentes, de tal forma que, se uma é verdadeira, as outras também
são verdadeiras (ARNAULD, Log., II, 8). P ex., se p for uma proposição qualquer, para a palavra Purpúrea
temos:
Possível = U = Não é possível que não p Contingente = U = Não é contingente que nãop
Impossível = E = É impossível que não p Necessário = A = É necessário que p. Analogamente para as
outras palavras.
Q
QUACRISMO (in. Quakerism; fr. Quake-ristne, it. Quaccherismó). A mais radical e liberal das correntes religiosas
da Reforma. O movimento foi iniciado em 1649 na Inglaterra por George Fox, e o verdadeiro nome dos quacres foi
"Sociedade dos Amigos" (Friends Society). O nome quacre foi cunhado pelo juiz Bennet porque durante um longo
interrogatório de George Fox este lhe disse que "tremia ante as palavras do Senhor". Entre as maiores personalidades
religiosas que aderiram a esse movimento estava W. Penn, que, no período das perseguições, emigrou para a América
e fundou a colônia de Pennsyl-vania, e Robert Barkley, teórico do movimento. O Q. caracteriza-se: le pela resoluta
aversão a qualquer forma de culto externo, de rito, de pregação, etc; 2 Q pelo reconhecimento de que o único guia do
homem é a luz interior, proveniente de Deus; 3 Q pelo caráter ativo e otimista que semelhante fé interior adquire nos
quacres, que consideram o próprio pecado original como uma corrupção natural superável; 4 fi pela condenação da
violência, portanto pela aversão à guerra. Em Cartas sobre os ingleses (1734), Voltaire exaltava a justeza e a validade
da religiosidade dos quacres (Cartas, IV) (cf. ELFRIDA VIPONT, The Story of Quakerism, 1652-1952, Londres, 1954).
QUADRADO DOS OPOSTOS. Indicado, segundo o uso escolástico, por A, E, I, e O, respectivamente, a
proposição universal afirmativa ("todo homem corre"), a universal negativa ("nenhum homem corre"), a particular
afirmativa ("algum homem corre") e a particular negativa ("algum homem não corre") e dispondo-as em Q. deste
modo: obtemos suas relações
A
contrárias
E
I
subcontrárias
O
lógicas fundamentais. A e E são contrárias. ambas podem ser falsas, mas não podem ser ambas verdadeiras; A e O, E
e I são contraditórias: não podem ser ambas verdadeiras nem ambas falsas; I e O sào subcontrárias: podem ser ambas
verdadeiras, mas não ambas falsas; A e I, E e O são subalternas, no sentido de que A se subalterna (implica) a I, E se
subalterna (implica) a O (mas não vice-versa). A origem deste célebre artifício didático, certamente medieval, é
obscura. Foi atribuída erroneamente por Prantl ao platônico bizantino M. Pselo, e por isso o Q. é também chamado de
"Q. de Pselo"; no entanto, está presente em documentação mais antiga, Introductiones in logicam, de Guilherme de
Thyreswood (segunda metade do séc. XII), embora não faltem exemplos de paradigmas e esquemas deste gênero em
textos anteriores.
QUADRÍVIO. V. CULTURA, ARTE.
QUAESTIO. Método escolástico de tratar um argumento a partir do séc. XII. O primeiro exemplo desse método está
em Sic et Non de Abelardo, que é uma coletânea de opiniões
QUALIDADE
816
QUALIDADE
(sententiaé) de Padres da Igreja, dispostas por problemas, de tal maneira que as várias sentenças aparecem como
respostas positivas ou negativas do problema proposto (daí o título sim e não). Na sua forma madura, o Q. é
constituído pelas seguintes partes: Ia enunciado (ex.: Utrum deum esse sit perse notum); 2- relação das razões
favoráveis à tese que será rejeitada pelo autor (Ad primum sic proceditur Videtur quod deumesse sit per se notum); 3a
relação das razões favoráveis à tese oposta (Sed contra;...); 4a enunciação da solução escolhida pelo autor
(Conclusio); 5- ilustração dessa solução; 6a refu-tação das teses aduzidas pela solução rejeitada, na ordem em que
foram aduzidas {Adprimum ergo dicendum... Ad secundum...). A ordem em que as questões eram tratadas era
fornecida por algum texto ao qual toda a coletânea servia de comentaria algum livro da Bíblia, alguma obra de
Boécio ou de Aristóteles ou, mais freqüentemente, as Sentenças de Pedro Lom-bardo. Quaestiones quodlibetales ou
mais simplesmente Quodlibeta eram as coletâneas de questões que os aspirantes ao título em teologia deviam discutir
duas vezes por ano (antes do Natal e antes da Páscoa) sobre qualquer tema, de quolibet. As quaestiones disputatae, ao
contrário, eram resultado das diputationes ordinariae que os professores de teologia sustentavam durante seus cursos
sobre os mais importantes problemas filosóficos e teológicos (cf. sobre esses assuntos, MARTIN GRABMANN,
DieGeschichtederscholastischenMethode, 1911, nova ed., 1956).
QUALIDADE (gr. 7toiÓTr|ç; lat. Qualitas; in. Quality, fr. Qualité, ai. Qualitát, it. Qualitã). Qualquer determinação
de um objeto. Como determinação qualquer, a Q. distingue-se da propriedade (v.), que, em seu significado
específico, indica a Q. que caracteriza ou individualiza o próprio objeto, sendo portanto própria dele. A noção de Q. é
extensíssima e dificilmente pode ser reduzida a um conceito unitário. Podemos dizer que ela compreende uma família
de conceitos que têm em comum a função puramente formal de servir de resposta à pergunta qual? Aristóteles
distinguiu quatro membros dessa família, sendo esta ainda a melhor exposição já feita sobre o conceito de qualidade.
1. Em primeiro lugar, entendem-se por Q. os hábitos e as disposições, que se distinguem porque o hábito é mais
estável e duradouro que a disposição. São hábitos a temperança, a
ciência e, em geral, as virtudes; são disposições a saúde, a doença, o calor, o frio, etc. (Cat., 8, 8 b 25; cf. Met., V, 14,
1020 a 8-12). A filosofia contemporânea às vezes também recorre a hábitos disposicionais (cf., p. ex., C. L.
STEVENSON, EthicsandLanguage, III, § 4,1950, 5a ed., p. 46 ss.), mas o precedente aristotélico geralmente é ignorado.
2. Uma segunda espécie de Q. consiste na capacidade ou incapacidade natural; neste sentido fala-se em lutadores,
corredores, sãos, doentes, etc. (Cat., 8, 9 a 14). Esta é a Q. que os escolásticos chamaram de ativa (cf., p. ex., S.
TOMÁS, S. Th., III, q. 49, a. 2).
3. O terceiro gênero de Q. é constituído pelas afeições e suas conseqüências: estas são as Q. sensíveis propriamente
ditas (cores, sons, sabores, etc). (Cat., 8, 9 a 27; cf. Met., V, 14, 1020 a 8). Os escolásticos chamaram essas espécies
de Q. passivas (cf. S. TOMÁS, loc. cit.).
4. A quarta espécie de Q. é constituída pelas formas ou determinações geométricas, como p. ex. pela figura
(quadrado, círculo, etc.) ou pela forma (retilínea, curvilínea) (Cat., 8, 10 a 10).
Na história ulterior da filosofia pouco ou nada foi acrescentado a essas determinações e distinções feitas por
Aristóteles sobre a qualidade. Querendo-se eliminar delas o que é devido à sua mais estreita conexão com a
metafísica aristotélica, pode-se obter maior simplificação, e reduzir a três os quatro grupos acima, caracte-rizando-os
da seguinte maneira:
a) determinações disposicionais, que compreendem disposições, hábitos, costumes, capacidades, faculdades,
virtudes, tendências, ou qualquer outro nome que se queira dar às determinações constituídas por possibilidades do
objeto;
b) determinações sensíveis, simples ou complexas, que são fornecidas por instrumentos orgânicos: cores, sons,
sabores, etc;
c) determinações mensuráveis, que se submetem a métodos objetivos de medida: número, extensão, figura,
movimento, etc.
Com esta modificação, a divisão aristotélica corresponde exatamente à de Locke; com efeito, as Q. (a) são as que
Locke incluiu na terceira espécie de Q.: "aquelas que todos concordam em considerar apenas como meras
capacidades que os corpos têm de produzir certos efeitos, embora se trate de Q. tão reais no objeto quanto as que,
para adequar-me ao modo comum
QUALIDADE
817
QUALQUER
de falar, chamei de Q., mesmo distinguindo-as das outras pelo nome de Q. secundárias" {Ensaio, II, 8, 10). Por outro
lado, as Q. (b) e (c) correspondem às que Locke chamava, respectivamente, de qualidades primárias e secundárias (v.
mais adiante). Assim retificada, a distinção entre as várias espécies de Q. abrange todo o campo das discussões e dos
problemas a que deu origem na tradição filosófica.
d) À noção de determinação disposicional faz referência não só a noção de Q. oculta, mas também a de força, que a
suplantou nos pri-mórdios da ciência moderna. Newton dizia: "Os aristotélicos não deram o nome de Q. oculta a
qualidades manifestas, mas a Q. que eles supuseram além dos corpos, como causas desconhecidas de efeitos
manifestos; estas seriam as causas da gravidade, da atração magnética e elétrica ou das fermentações, se
supuséssemos tratar-se de forças ou ações derivadas de Q. que desconhecêssemos ou que fossem impossíveis de
descobrir ou manifestar. Tais Q. ocultas impedem o progresso da filosofia natural, e por isso foram abandonadas
nestes últimos anos" {Optics, 1740, III, 31). Com o mesmo espírito, Wolff definia como oculta a Q. "desprovida de
razão suficiente", e acrescentava: "Q. oculta é, p. ex., a gravidade se for concebida como força primitiva ou como
força que Deus infundiu à matéria, para a qual não se possa dar apriori nenhuma razão natural. Tal é também a força
motriz, se for considerada uma força primitiva que Deus infundiu à matéria no momento da criação. Certamente
Aristóteles e seus seguidores, que admitiram as Q. ocultas, usaram esse termo com o mesmo significado" {Cosm., §
189). O reparo de Wolff é mais claro que o de Newton: uma força será uma Q. oculta se dela não se der razão
suficiente natural, mas não o será se for dada tal razão. Mas disso resulta também que tanto a noção de Q. oculta
quanto a de força são integráveis na noção de Q. como disposição.
O mesmo significado de Q. está presente no conceito de qualificação. "Qualificar-se para" ou "ser qualificado para"
significa ter a capacidade ou a competência, ou seja, a qualidade disposicional para realizar dada tarefa ou alcançar
determinado objetivo. Às vezes, porém, o termo "qualificado" significa somente "limitado" ou "caracterizado por
dadas condições", como acontece na linguagem jurídica.
b, c) As Q. nos sentidos B e C são as Q. tradicionalmente distinguidas como primárias e secundárias. Os termos
"primário" e "secundário" remontam a Boyle, mas a distinção é bastante antiga e remonta a Demócrito {Fr. 5, Diels). Depois de muitos
séculos foi retomada por Galileu (cf. Opere, ed. nac, VI, p. 347, ss.), por Hobbes {Decorp., 25, 3), por Descartes
{Princ. phil., I, 57; Méd., VI) e por Locke {Ensaio, II, 3, 9), que a difundiu na filosofia européia. A base da distinção
é a possibilidade de quantificação que as Q. no sentido c têm em relação às do sentido b. por esta possibilidade,
fogem às valorações individuais, mostrando-se independentes do sujeito e plenamente "objetivas" ou "reais". Em
seguida a distinção foi combatida (p. ex., por Berkeley), principalmente com o fim de mostrar que nem mesmo as Q.
primárias são objetivas, e que todas são igualmente subjetivas, ou seja, consistem em "idéias" {Principies ofHuman
Knowledge, I, § 87). Segundo Husserl, o significado da distinção seria o seguinte: "A coisa experimentada fornece o
simples hoc, um x vazio que se torna portador das determinações matemáticas e das fórmulas inerentes, e que não
existe no espaço perceptivo, mas num espaço objetivo do qual o primeiro é apenas indício, ou seja, numa variedade
euclideana tridimensional de que só é possível fazer uma representação simbólica" {Ideen, 1, § 40). Neste sentido, as
Q. objetivas delineariam a natureza de um objeto transcendente à percepção sensível, ao qual esta acenaria como a
algo distante.
QUALIDADE DAS PROPOSIÇÕES (lat. Qualitas propositionum-, in. Quality of pro-positions; fr. Qualité des
propositions; ai. Qualitãt des Urteils; it. Qualità delle propo-sizioni). Foi provavelmente o neoplatônico Apuleio,
contemporâneo de Galeno, o primeiro a usar as palavras Q. e quantidade para indicar, respectivamente, a distinção
das proposições em afirmativas e negativas e em universal e particular {De int., p. 266; cf. PRANTL, Geschichte
derLogik, I, p. 581). Kant acrescentou aos dois juízos tradicionais de Q. o juízo infinito. (V. INFINITO, JUÍZO)
QUALIFICAÇÃO. V. QUALIDADE.
QUALQUER (gr. nãç, lat. Omnis; in. Any; fr. Chaque; ai. feder, it. Ogni). Na lógica contemporânea, "Q" é um
operador de campo, cujo símbolo mais usado é "{x)", p. ex. em fórmulas como "O)" . "f{x)", que se lê "para qualquer
x, f{x) é verdadeiro". Isso corresponde a um produto lógico (ou conjunção lógica) operado no campo de validade de
{x), ou seja, à conjunção "f{á) e f{b) e f{c) e...". Sempre que f{x) for
QUÂNTICA, FÍSICA
818
QUANTIDADE
predicado, ela eqüivale à fórmula habitual Q. xéf", ou então "todos os x são/" da lógica tradicional. Aristóteles
utilizara "Q." na proposição universal afirmativa "Qualquer A é B", o que foi adotado pela lógica medieval. Neste
uso, a função de "Q." não se distingue da de "todo/todos". No entanto, a lógica terminista medieval distinguiu dois
significados de "todos": o significado coletivo, quando se diz, p. ex., "Todos os Apóstolos são 12", donde não se
segue que "Estes Apóstolos são 12", e o significado distributivo, quando se diz, p. ex., "Todos os homens desejam
naturalmente saber", donde se segue que "Qualquer homem deseja naturalmente saber". Neste último caso, "Q."
indica uma disposição da. coisa que pode funcionar como sujeito ou predicado (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12.0406).
Na lógica moderna, a distinção entre Q. e todo foi feita por Frege (Grundgesetz der Arithmetik, 1893, I, § 17) e por
Russell. Segundo este último, tal distinção consiste no fato de que uma asserção que contenha uma variável x(p. ex.,
"JC= x") pode ser válida para todos os exemplos ou para um exemplo qualquer, sem decidir a qual exemplo se faz
referência. Neste segundo caso, utiliza-se o operador qualquer. Assim, nas demonstrações de Euclides, toma-se como
base de raciocínio um triângulo qualquer ABC sem determinar que espécie de triângulo é. Neste caso, o triângulo
ABC vale como variável real: ele é um triângulo qualquer, ainda que continue o mesmo durante toda a demonstração.
O operador todos, ao contrário, tem como base variáveis aparentes, que, seja qual for a determinação dada, não
mudam o valor da função. Russell considera que a distinção entre todos e Q. é necessária ao raciocínio dedutivo
(Matbematical Logic as Based on the Theory of Types, 1908, em Logic and Knowledge, p. 64 ss.; cf. Principies of
Mathematics, § 60-61; Principia mathematicd).
QUÂNTICA, FÍSICA. V. COMPLEMENTARIDADE; CONDIÇÃO; DETERMINISMO; FÍSICA; INDETERMINADA.
QUANTIDADE (gr. rcorjóv; lat. Quantitas; in. Quantity, fr. Quantité, ai. Quantitãt; it. Quantitã). Em geral, a
possibilidade da medida. Foi esse o conceito emitido por Platão e Aristóteles. Platão afirmou que a Q. está entre o
ilimitado e a unidade, e que só ela é o objeto do saber; p. ex., conhece realmente os sons quem não admite que eles
sejam infinitos nem procura reduzi-los a um único som, mas conhece a Q. deles, ou seja, seu número (Fil., 17a, 18 b). Aristóteles, por sua vez, definiu a Q. como o que é divisível
em partes determinadas ou determinaveis. Uma Q. numerável é uma pluralidade divisível em partes descontínuas.
Uma Q. mensurável é uma grandeza divisível em partes contínuas, em uma, duas ou três dimensões. Uma pluralidade
completa é um número; um comprimento completo é uma linha; uma extensão completa é um plano; uma
profundidade completa é um corpo (Met., V, 13, 1027 a 7).
Essas determinações de Aristóteles foram repetidas na escolástica e passaram a fazer parte das noções geralmente
aceitas no início da Idade Moderna. Pareceu indubitável que a matemática pudesse ser definida como "a ciência da
Q." até que a evolução dessa ciência mostrasse que essa definição era restrita e imprópria (v. MATEMÁTICA). Foi
justamente pensando na matemática que no séc. XVIII Wolff definiu a Q. como "aquilo em virtude do que as coisas
semelhantes, ressalvada a sua semelhança, podem diferir intrinsecamente" (Cosm., § 348), definição que poderia ser
facilmente invertida dizendo-se que Q. é aquilo em virtude do que as coisas dessemelhantes, ressalvada a sua dessemelhança, podem ser semelhantes. Mas com esta forma, que corresponderia mais aos conceitos matemáticos
modernos, não se estaria definindo a Q., e sim a grandezaCv.). De fato, em matemática o termo Q. tornou-se
sinônimo de grandeza, que é específico de certo campo de indagação e que depende da escolha oportuna de unidades
de medida. Portanto, a Q. como categoria ou conceito generalíssimo não pertence mais às ciências, e no máximo
pode-se dizer que constitui o caráter generalíssimo comum aos objetos díspares das ciências positivas, que é a
possibilidade de serem medidos.
A tendência geral do pensamento científico a reduzir qualidade a Q. foi interpretada de maneira singular por Hegel,
que falou em "linha nodal das relações de medida". A mudança gradual da Q. levaria, em certo ponto (ponto ou "linha
nodal"), à mudança da qualidade, e a mudança gradual desta nova qualidade levaria a outro ponto nodal, e assim por
diante. Hegel observava que, do lado qualitativo, a passagem para uma nova qualidade "é um salto: as duas
qualidades são postas de modo completamente extrínseco uma à outra", e que por isso a gra-dualidade da mudança
quantitativa não permi-
QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES
819
QUEDA
te compreender o devir (Wissenschaft der Logik, I, seç. 3a, cap. 2; trad. it., I, pp. 446-47). Com isso ele negava que a
passagem da Q. à qualidade ou vice-versa servisse para alguma coisa. Isso, porém, não impediu que Engels
considerasse "a conversão Q. em qualidade" como lei fundamental da dialética e visse em Hegel o descobridor dessa
lei (Dialektik der Natur, trad. it., pp. 57 ss.). (V. DIALÉTICA; NODAL; LINHA; SALTO).
QUANTIDADE DAS PROPOSIÇÕES. Foi o neoplatônico Apuleio (v. QUALIDADE DAS PROPORÇÕES) o primeiro a
chamar de Q. a divisão das proposições em universais e particulares, individuais e indefinidas (ARISTÓTELES, De int.,
7; An. pr., I, 1). Kant reduziu a três as classes dos juízos segundo a Q., mais precisamente proposições universais,
particulares e individuais (Crít. R. Pura, 9). Hamilton também falou da Q. dos conceitos, distinguindo a Q. intensiva,
que é a intenção ou compreensão, e a Q. extensiva, que é a extensão ou denotação (Lectures on Logic, I, pp. 140 ss.).
QUANTIFICAÇÃO (in. Quantification; fr. Quantification; ai. Quantifikation; it. Quan-tificazioné). Em Lógica,
designa-se por "Q." a operação mediante a qual, com o uso de símbolos chamados quantificadores, se determina o
âmbito ou a extensão de um termo da proposição. Na Lógica de Aristóteles e em toda a Lógica clássica derivada,
conhecia-se apenas a Q. do sujeito da proposição: em Aristóteles, mediante os operadores "todo" e "em parte" ("[o
predicado] B pertence a todo [o sujeito] A"; "B pertence em parte a A"); na Lógica medieval ou moderna, por meio
dos operadores "omnis"e "aliquis" ("omnisA estB"; "aliquisA atf B"). A proposição quantificada com 'todo" era
chamada de universal; a quantificada com "em parte" ("algum") era chamada de particular; a não quantificada era
chamada de indefinida. No séc. XIX a exigência de submeter a silogística tradicional a alguma espécie de cálculo
matemático induziu alguns lógicos ingleses (Ben-tham, 1827; Hamilton, 1833) a quantificar também o predicado,
interpretando, p. ex., a proposição universal afirmativa "todos os A são B" como "todos os A são alguns B". Deste
modo, porém, a proposição era interpretada unilateralmente como uma relação de inclusão ou exclusão, parcial ou
total, entre classes. A Lógica contemporânea retomou essa concepção, mas integrou-a. Nela, porém, os
quantificadores, que agora são o quantificador universal
[na notação de Russell, "(x)" = "todos") e o quantificador existencial [cs., "(3x)" = "existe pelo menos um x que..."],
de novo referem-se apenas aos argumentos ou variáveis de uma função proposicional, transformando estas em
variáveis aparentes e as funções em proposições propriamente ditas (universais ou particulares): p. ex., "x é mortal" é
uma função "(x). 'x é mortal'" (= "todos os x são mortais"), é uma proposição universal.
G. P.
QUANTIFICAÇÃO DO PREDICADO (in. Quantification ofpredicaté). Opondo-se à lógica tradicional, Hamilton
defendeu o princípio da Q. do predicado, afirmando: ls o predicado é tão extensivo quanto o sujeito; 2a a linguagem
comum quantifica sempre que ocorre o predicado: diretamente, por meio do uso de quantificadores (p. ex., "Pedro,
João, Tiago, etc, são todos apóstolos"), ou indiretamente, através da limitação e da exceção, como quando se diz "A
virtude é a única nobreza", ou então "Sobre a terra não há nada de grande a não ser o homem" (Lectures on Logic, II,
pp. 257 ss.).
QUANTIFICADOR. V. OPERADOR.
QUANTCFRENIA (in. Quantophrenia; fr. Quantophrénie, it. Quantofreniã). Foi assim que P. Sorokin chamou a
"mania de quantificar a qualquer custo" no campo das ciências psicológicas e sociais (Fads and Faibles in Modem
Sociology andRelatedSciences, 1956, caps. VII-VIII).
QUATERNIO TERMINORUM. Expressão usada para indicar o tipo mais comum de falácia lógica, constituída
pela duplicidade de significado de um dos termos empregados no raciocínio, como no exemplo tirado de Sêneca:
"Mus (o rato) é uma sílaba; o rato rói o queijo; portanto a sílaba rói o queijo" (Ep., 48) (v. EQUIVOCAÇÃO).
QUEDA (gr. êiotTCXTiÇ; lat. Casus, in. Fali; fr. Chute, ai. Fali; it. Cadutã). O mito da Q., segundo o qual a alma
humana teria decaído de um estado original de perfeição, no qual contemplava a verdade de frente, na bem-aventurança, é exposto em Fedro (248a ss.) de Platão e repetido por Plotino (Enn., VI, 9, 9), por outros neoplatônicos,
petos gnósticos(y.) e pelos padres da Igreja Oriental. Orígenes explicou a formação do mundo sensível a partir da
queda de substâncias intelectuais que habitavam o mundo inteligível: Q. devida à sua preguiça e à aversão ao esforço
exigido pela prática do bem. Deus estabelecera que o bem
QUIDIDADE
820
QUODLEBETA
dependeria exclusivamente da vontade dessas substâncias intelectuais e deu-lhes liberdade. Sua Q. (e assim a
formação do mundo sensível) depende exclusivamente do mau uso dessas liberdades (Deprinc, II, o, 2; Fr. 23 A). Os
gnósticos, ao contrário, negaram essa liberdade. No mundo moderno, a teoria da Q. foi retomada por Renouvier
{Nova tnonadologia, 1899). O homem, saído das mãos de Deus como criatura livre, ao usar a liberdade provocou sua
queda e, ao mesmo tempo, a ruína do mundo harmonioso criado por Deus. Poderá erguer-se através da própria
liberdade e da sucessão de provas dolorosas que o reeducarão, devolvendo-o à harmonia original do universo (v.
APOCATÁSTASE).
QUIDIDADE (lat. Quidditas; in. Quiddi-ty fr. Quiddité, ai. Quidditàt; it. Quidditã). Termo introduzido pelas
traduções latinas feitas no séc. XII (do árabe) a partir das obras de Aristóteles; corresponde à expressão aristoté-lica
xó xi nv eivou (quod quid erat esse). Esse termo significa essência necessária (substancial) ou substância (v.
ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA).
QUIETISMO (in. Quietism; fr. Quiétisme, ai. Quietismus, it. Quietismó). Crença de que o estado de graça ou de
união com Deus pode ser obtido pondo-se a vontade pessoal nas mãos de Deus, sem qualquer rito ou prática religiosa.
O Q. foi adotado por muitas correntes religiosas, mas esse termo foi cunhado com referência à forma por ele
assumida no catolicismo por obra de Miguel Molinos (1627-1696), cujas teses foram condenadas pelo papa Inocêncio
XI em 1687.
QUIETIVO (in Quietive; fr. Quiétif, ai. Quietiv, it. Quietivó). Foi assim que Schopen-hauer chamou o conhecimento
filosófico, por analogia e antítese com motivo, porquanto ele leva à negação da vontade de viver, ao as-cetismo: essa
negação "ocorre depois que o conhecimento total do ser tornou-se Q. do querer" (Die Welt, I, § 68). Q., neste sentido,
também é a arte como contemplação desinteressada das idéias platônicas (Ibid., 1, § 70).
QUILIASMO (in. Chíliasm- fr. Chiliasme, ai. Chiliasmus, it. Chiliasmó). Q. ou milenarismo
é o nome que se dá hoje à crença no advento de uma renovação radical do gênero humano e na instauração de úm
estado definitivo de perfeição. O Apocalipse de S. João é o principal documento de crenças semelhantes, que foram
muito freqüentes nos primeiros séculos do cristianismo, voltando a apresentar-se também na Idade Média.
Gioacchino da Fiore (séc. XII) preconizou o iminente advento de uma terceira era da história humana, a do Espírito
Santo (Concórdia Novi et Veteris Testamenti, IV, 35). Kant falou de um Q. filosófico "que aspira a um estado de paz
perpétua, fundada na união das nações, como república mundial (Reli-gion, I, 3).
QUINQUE VOCÊS. São os cinco conceitos generalíssimos, ou cinco tipos de predicado universal (por isso
chamados também de "pre-dicáveis") da Lógica clássica: gênero, espécie, diferença, próprio e acidente. O cerne da
sua distinção e da problemática relativa está nos Tópicos de Aristóteles, mas o estudo formal e explícito delas como
categorias fundamentais da lógica acha-se em Isagoge de Porfírio. Foi sobretudo graças à versão e aos comentários de
Boécio sobre esta obra que elas passaram para a Lógica medieval.
QUINTESSÊNCIA, (lat. Quinta essentia; in. Quintessence, fr. Quintessence, ai. Quintessenz; it. Quinta essenzà). 1.
O éter, isto é, a substância que, segundo Aristóteles, compõe os céus, que é diferente dos quatro elementos que
compõem os corpos sublunares (V. ÉTER).
2. Extrato corpóreo de uma coisa, obtido pela sua análise alquímica mediante a separação do elemento dominante dos
outros elementos que estão misturados nela. Segundo Paracelso, na Q. estão os arcanos, que são as forças ativas de
um mineral, de uma pedra preciosa, de uma planta; são utilizados pela medicina na feitura de medicamentos (De
misteriis naturalibus, I, 4). Neste sentido, emprega-se também o termo para indicar o princípio ativo de uma coisa ou
a sua parte mais pura.
QUODLIBETA. V. QUAESTIO.
I
R
RAÇA. V. RACISMO.
RACIOCÍNIO (gr. Koyia\ióc,; lat. Ratiocina-. tio, in. Reasoning; fr. Raisonnement; ai. Ver-nunftschluss; it.
Ragionamentó). Qualquer procedimento de inferência ou prova; portanto, qualquer argumento, conclusão, inferência,
indução, dedução, analogia, etc. Stuart Mill dizia: "Inferir uma proposição de uma ou mais proposições precedentes, e
crer ou pretender que se creia nela como conclusão de qualquer outra coisa significa raciocinar, no mais amplo
sentido do termo" {Logic, II, I, 1). John Stuart Mill excluía do âmbito do R. somente "os casos nos quais a progressão
de uma verdade para outra é apenas aparente, porque o conseqüente é mera repetição do antecedente" (Ibid., II, 1, 3);
além disso, identificava raciocínio e inferência. Mas essa restrição desapareceu do uso corrente do termo, que hoje
compreende também as inferências tautoló-gicas, consideradas próprias da matemática e da lógica (cf. P. F.
STRAWSON, Intr. to Logical Tbeory, 1952, p. 12 ss.). Portanto, a ilustração dos significados do termo pode ser achada
nos verbetes que constituem a extensão do termo em questão, e especialmente nos seguintes: DEDUÇÃO, INDUÇÃO,
PROVA, DEMOSTRAÇÃO, INFERÊNCIA, SILOGISMO, ARGUMENTO, ANALOGIA. Contudo, a classificação fundamental dos
R. divide-os em dedutivos e indutivos Essa distinção, já estabelecida por Aristóteles (An. pr., II, 23, 68 b 13), costuma
ser utilizada ainda hoje, às vezes com nomes um pouco diferentes. Peirce, p. ex., falava em R. explicativos analíticos
ou dedutivos, por um lado, e de R. explicativos, sintéticos, ou indutivos, por outro (Chance, Love and Logic, I, 4, 3;
trad. it., p. 67), que são justamente os nomes mais empregados para designar as duas espécies fundamentais do
raciocínio.
RACIOCÍNIO APAGÓGICO. V. APAGÓGICO.
RACIOCÍNIO POR ANALOGIA. V. ANALO GIA.
RACIONAL (gr. ÀoytKóç; lat. Rationalis, Rationabilis; in. Rational; fr. Rationnel, Rai-sonnable, ai. Vernünftig; it.
Razionale, Ragione-volé). 1. Aquilo que constitui a razão ou diz respeito à razão, em qualquer dos significados deste
termo (v.).
2. Quem tem a possibilidade do uso da razão; nesse sentido diz-se que o homem é um animal racional. S. Agostinho
afirma que os sábios "chamaram de racionável (rationabilis) quem faz ou pode fazer uso da razão, e de racional
(rationalis) aquilo que é feito ou dito pela razão"; portanto, acha que é preciso chamar de racionais os discursos ou os
banhos, e de racionáveis aqueles que os praticam (De ordine, XI, 31). Mas essa distinção não é facilmente defensável
porque os antigos chamaram também o homem de racional(cf., p. ex., QUINTILIANO, Inst., V, 10, 56). Por outro lado.
chamamos hoje de racionável também aquilo que se conforma à razão.
3. Que tem por objeto a razão, sua forma e seus procedimentos. Neste sentido, Sêneca (Ep., 89, 17) e Quintiliano
(Inst., XII, 2, 10) chamaram a lógica de "filosofia R.", o que foi imitado por Wolff (Log., 1728) e por outros.
RACIONALISMO (in. Rationalism; fr. Ra-tionalisme, ai. Rationalismus; it. Razionalis-mó). Em geral, a atitude de
quem confia nos procedimentos da razão para a determinação de crenças ou de técnicas em determinado campo. Esse
termo foi usado a partir do séc. XVII para designar tal atitude no campo religioso: "Há uma nova seita difundida entre
eles [presbiterianos e independentes], que é a dos racionalistas: o que a razão lhes dita, eles consi-
RACIONAUSMO
822
RACISMO
deram bom no Estado e na Igreja, até que achem algo melhor" (CLARENDON, State Papers, II, p. XL, na data de 14-X1946). Nesse sentido Baumgarten dizia: "R. é o erro de quem elimina da religião todas as coisas que estão acima da
própria razão" (Ethica philosophica, 1765, § 52).
Kant foi o primeiro a adotar esse termo como símbolo de sua doutrina, estendendo-o do campo religioso para os
outros campos de investigação. Deu o nome de R. à sua filosofia transcendental (no texto de 1804 sobre os "Avanços
da Metafísica", Werke, V, 3, p. 101), ao passo que chamava de noologistas ou dogmáticos os filósofos que a
historiografia alemã do séc. XIX chamou depois de racionalistas: de um lado Platão e de outro os seguidores de
Wolff {Crít. R. Pura, Doutr. do Método, cap. IV). No terreno da moral, defendia "o R. do juízo, que da natureza
sensível toma apenas o que a Razão Pura pode pensar por si, ou seja, a conformidade com a lei", opondo-se por isso
ao misticismo e ao empirismo da razão prática {Crít. R. Prática, I, cap. II, Da tipologia do juízo puro prático). No
campo estético, falava analogamente de um "R. do princípio do gosto" {Crít. dojuízo, § 58). Finalmente, caracterizava
como R. seu ponto de vista em matéria religiosa: "O racionalista, em virtude desse mesmo título, deve manter-se nos
limites da capacidade humana. Portanto, nunca usará o tom contundente do naturalista nem contestará a possibilidade
nem a necessidade de uma revelação. (...) Porquanto sobre tais assuntos nenhum homem pode decidir o que quer que
seja pela razão" (Religion, IV, seç. I; trad. it., Durante, p. 169).
Por outro lado, Hegel foi o primeiro a caracterizar como R. a corrente que vai de Descartes a Spinoza e Leibniz,
opondo-o ao empirismo de origem lockiana. Por R. ele entendeu a "metafísica do intelecto", que é a "tendência à
substância, em virtude da qual se afirma, contra o dualismo, uma única unidade, um único pensamento, da mesma
maneira como os antigos afirmavam o ser" {Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, III, pp. 329 ss.; trad. it., III, 2,
pp. 68 ss.). A contraposição entre racionalismo é empirismo fixou-se depois nos esquemas tradicionais da história da
filosofia, por mais que o próprio Hegel notasse seu caráter aproximati-vo. Quanto ao "R. religioso", Hegel afirmava
que ele é "o oposto da filosofia" porque coloca "o vazio no lugar do céu" e porque sua forma é um raciocinar sem
liberdade, e não um entender conceitualmente" (Jbid., I, p. 113; trad. it., I, p. 95). Com base nessas observações históricas, pode-se dizer que o
termo em foco compreende os seguintes significados:
le O R. religioso designa algumas correntes protestantes, ou um ponto de vista semelhante ao de Kant.
2a O R. filosófico designa propriamente a doutrina de Kant (que adotou esse termo), ou então a corrente metafísica da
filosofia moderna, de Descartes a Kant.
3a Em sua significação genérica, pode ser usado para indicar qualquer orientação filosófica que recorra à razão. Mas,
nessa acepção tão vasta, esse termo pode indicar as filosofias mais díspares e carece de qualquer capacidade de
individualização.
RACIONALIZAÇÃO (in. Rationalization; fr. Rationalisation; ai. Rationalisíerung, it. Ra-zionalizzazioné). 1. Esse
foi o nome às vezes dado ao processo de constituição das ciências da natureza em disciplinas teóricas, com adoção
dos procedimentos da matemática; supunha-se que esse processo se realizaria perfeitamente na mecânica racional (cf.
HUSSERL, Ideen, I, § 9). O ideal da R. foi atualmente substituído pelo da axiomatização (v. AXIOMÂTICA).
2. Termo freqüentemente empregado por psicólogos e sociólogos para indicar a tendência a procurar argumentos e
justificações para crenças cuja força não está nesses processos racionais, mas em emoções, interesses, instintos,
preconceitos, hábitos, etc.
RACISMO (in. Racialism; fr. Racisme, ai. Rassismus-, it. Razzismó). Doutrina segundo a qual todas as
manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também segundo essa
doutrina existe uma raça superior ("ariana" ou "nórdica") que se destina a dirigir o gênero humano. O fundador dessa
doutrina foi o francês Gobineau, em seu Essai sur 1'inégalité des races humaines (1853-55), que visava a defender a
aristocracia contra a democracia. No início do séc. XX, um inglês naturalizado alemão, Hous-ton Stewart
Chamberlain, difundiu o mito do arianismo na Alemanha {Die Grundlagen des XIX Jahrhunderts, 1899),
identificando a raça superior com a alemã. Como o anti-semitismo era antigo na Alemanha, a doutrina do
determinismo racial e da raça superior encontrou fácil difusão, traduzindo-se no apoio dado ao preconceito contra os
judeus e à crença de que existe uma conspiração judaica para do-
RACISMO
823
RADICALISMO
minar o mundo; assim, o capitalismo, o marxismo e, em geral, as manifestações culturais e políticas que enfraquecem
a ordem nacional são fenômenos judaicos. Depois da Primeira Guerra Mundial, os alemães viram no R. um mito
consolador, uma fuga da depressão da derrota; Hitler transformou-o no carro-chefe de sua política, e a doutrina foi
elaborada por Alfred Rosenberg, em Mito do século XX (1930). Rosenberg afirma um rigoroso determinismo racial:
qualquer manifestação cultural de um povo depende de sua raça. A ciência, a moral, a religião e os valores que a
cultura descobre e defende dependem da raça e são expressões da força vital da raça. Portanto, a verdade é verdade
apenas para determinada raça. A raça superior é a ariana que, provindo do Norte, difundiu-se na Antigüidade para o
Egito, a índia, a Pérsia, a Grécia e Roma, dando origem às civilizações antigas, que decaíram porque os arianos se
misturaram com raças inferiores. Todas as ciências, artes e instituições fundamentais da vida humana foram criadas
por essa raça. Em oposição a ela, está a anti-raça parasitária judaica, que criou os venenos da raça, que são a
democracia, o marxismo, o capitalismo, o inte-lectualismo artístico e até mesmo os ideais de amor, humildade e
igualdade difundidos pelo cristianismo, que representa uma corrupção ro-mano-judaica dos ensinamentos do ariano
Jesus. Em seu conjunto, essa doutrina foi apresentada explicitamente pelo nazismo como um mito, criado, difundido e
mantido pela força vital da raça. Isso não significa que não se procurou racionalizá-la, atribuindo base científica ao
conceito de raça, que era seu fundamento. Na realidade, porém, o próprio uso que o R. faz da noção de raça revela, do
ponto de vista científico e filosófico, a inconsistência da doutrina. Hoje, o conceito de raça é considerado
unanimemente pelos antropólogos como um recurso útil à classificação e capaz de fornecer o esquema zoológico no
qual podem ser situados os vários grupos do gênero humano. Essa palavra, portanto, deve ser reservada
exclusivamente aos grupos humanos dotados de características físicas diferentes, que podem ser transmitidas por
hereditariedade. Tais características são principalmente: a cor da pele, a altura, a conformação da cabeça e do rosto, a
cor e a qualidade dos cabelos, a cor e a forma dos olhos, o formato do nariz e a compleição física. Convencionou-se
distinguir três grandes raças, que são a branca, a amarela e a negra, ou
seja, a caucasiana, a mongólica e a negróide. Portanto, os grupos nacionais, religiosos, geográficos, lingüísticos e
culturais não podem ser chamados de "raças" por nenhum motivo; não constituem raças os italianos, os alemães, os
ingleses, assim como não constituíram os latinos ou os gregos, etc. Não existe nenhuma raça "ariana" ou "nórdica",
assim como não há qualquer prova de que a raça ou as diferenças raciais exerçam algum tipo de influência nas
manifestações culturais ou nas possibilidades de desenvolvimento da cultura em geral. Tampouco existem provas de
que os grupos em que pode ser dividido o gênero humano diferem em sua capacidade inata de desenvolvimento
intelectual ou emocional. Ao contrário, os estudos históricos e sociológicos tendem a fortalecer a idéia de que as
diferenças genéticas são fatores insignificantes na determinação de diferenças sociais e culturais entre grupos
humanos diferentes. Foram inúmeras as transformações sociais ocorridas sem relação com mudanças raciais.
Tampouco está provado que as misturas raciais produzam resultados biológicos prejudiciais. É muito provável que
não haja "raça pura" e que nunca tenha havido, até onde se possa averiguar no passado. Os resultados sociais das
misturas raciais, sejam eles bons ou maus, podem ser atribuídos a fatores sociais.
Em 1951, junto à UNESCO, em Paris, uma comissão composta por cinco geneticistas e seis antropólogos, de países
diferentes, elaborou uma declaração sobre as raças, que consiste na exposição dos princípios acima mencionados
(sobre eles, cf. RUTH BENEDICT, Race, Science and Politics, 1940; e RALPH LINTON, The Science ofMan in the World
Crisis, 7âed., 1952). Na realidade, esteja onde estiver e seja qual for a sua justificativa, o R. é da alçada da psiquiatria,
que Veblen chamava de aplicada, ou seja, à arte de explorar para fins pessoais um preconceito preexistente. Trata-se
neste caso de um preconceito extremamente pernicioso porque contradiz e impede o encaminhamento moral da
humanidade para a integração universalista e porque transforma os valores humanos (a começar pela verdade) em
fatos arbitrários que, por expressarem a força vital da raça, não têm substância própria e podem ser livremente
manipulados com fins violentos ou abjetos.
RADICALISMO (in. Radicalism; fr. Radica-lisme, ai. Radikalismus; it. Radicalismo). 1. Positivismo social que se
desenvolveu na Inglater-
RAIZ
824
RAZÃO
ra entre o fim do séc. XVIII e a primeira metade do séc. XIX; seus expoentes foram Jeremias Bentham (1748-1832),
James Mill (1773-1836) e John Stuart Mill (1806-1873). Esta corrente valeu-se do positivismo filosófico, do
utilitarismo moral e das doutrinas econômicas de Malthus e Ricardo para defender reformas "radicais" na organização
do Estado e no sistema de distribuição das riquezas (v. LIBERALISMO).
2. Mais genericamente, esse termo é hoje usado para designar qualquer tendência filosófica ou política que proponha
a renovação radical dos sistemas vigentes, representada pela transformação dos princípios nos quais se apoiem os
sistemas de crenças ou as instituições tradicionais.
RAIZ (gr. píÇcoLUX; in. Root; fr. Racine, al. Wurzel, it. Radicé). Termo com que, na linguagem filosófica, se
designa freqüentemente um princípio primeiro ou um elemento último. Empédodes chamou de R. os quatro
elementos (água, ar, terra e fogo) que compõem as coisas (Fr. 6, Diels); a partir daí, os filósofos utilizaram
freqüentemente esse termo para indicar elementos ou princípios. Schopenhauer, p. ex., deu a uma de suas dissertações
o título de Sobre a raiz quádrupla do princípio de razão suficiente (1813), razão por que o adjetivo radical passou a
indicar o que diz respeito a um princípio ou constitui um princípio. Kant deu o nome de "mal radical" à tendência do
homem para o mal, inerente à sua estrutura moral (cf. Religion, cap. I). Hoje, chama-se de radical a análise que
remonte aos princípios ou às primeiras origens. Husserl, p. ex., insistia na radicalidade da filosofia como ciência dos
verdadeiros princípios e das primeiras origens: "A ciência do que é radical deve ser radical também em seu método e
sob todos os aspectos" (Phil. alsstrenge Wissenschaft, 1911; trad. it., p. 83).
RAMIFICADA, TEORIA DOS TIPOS. V. ANTINOMIA.
RAZÃO (gr. AÓ"yoç; lat. Ratio, in. Reason; fr. Raison; al. Vernunft; it. Ragioné). Esse termo tem os seguintes
significados fundamentais:
l9 Referencial de orientação do homem em todos os campos em que seja possível a indagação ou a investigação.
Nesse sentido, dizemos que a R. é uma "faculdade" própria do homem, que o distingue dos animais.
2° Fundamento ou R. de ser. Visto que a R. de ser de uma coisa é sua essência necessária ou substância expressa na
definição, assume-se às vezes por "R." a própria substância ou a sua
definição. Este é um significado freqüente na filosofia aristotélica ou nas correntes nela inspiradas. Quanto a isso, v.
ESSÊNCIA; FUNDAMENTO; FORMA; SUBSTÂNCIA.
3S Argumento ou prova. Nesse sentido dizemos: "Ele expôs suas R." ou "É preciso ouvir as R. do adversário". A esse
significado refere-se também a expressão "Ter R.", que significa ter argumentos ou provas suficientes, portanto, estar
com a verdade. Quanto a esse significado
V. ARGUMENTO; PROVA.
4S Relação, no sentido matemático. Nesse sentido fala-se também em "R. direta" ou "R. inversa" (em inglês o termo
empregado nesse caso é ratió). Quanto a esse significado, v. RELAÇÃO.
No significado de referencial da conduta humana no mundo, a R. pode ser entendida em dois significados
subordinados: A) como faculdade orientadora geral; E) como procedimento específico de conhecimento.
A) Este é o sentido fundamental, do qual a palavra extraiu a potência de significado que a transformou, há séculos, no
emblema da livre investigação. A R. é a força que liberta dos preconceitos, do mito, das opiniões enraizadas mas
falsas e das aparências, permitindo estabelecer um critério universal ou comum para a conduta do homem em todos
os campos. Por outro lado, como orientador tipicamente humano, a R. é a força que possibilita a libertação dos
apetites que o homem tem em comum com os animais, submetendo-os a controle e mantendo-os na justa medida.
Esta é a dupla função atribuída à R. desde os primórdios da filosofia ocidental. A polêmica de Heráclito e Parmênides
contra as opiniões da maioria, ou seja, contra as crenças discordantes e ilusórias aceitas pela maioria, foi assestada em
nome da R., que deve ser o único critério orientador de todos os homens. Heráclito diz: "É preciso seguir o que é
universal, comum a todos; e só a R. é universal. No entanto, a maioria vive como se cada um tivesse uma mente
particular" (Fr. 2, Diels). E Parmênides: "Afasta o pensamento dessa via de investigação e não permitas que te levem
para ela o costume de guiar-se por um olho que não vê, por um ouvido que ressoa, pela palavra: em lugar disso, julga
com a R." (Fr. 1, 33-37, Diels). Platão e Aristóteles, por outro lado, opõem a R. à sensibilidade, que é fonte das
crenças comuns (PLATÃO, Fedro, 83a; ARISTÓTELES, Met., 1,1, 980 b 26), e aos apetites que o homem tem em comum
com os animais
RAZÃO
825
RAZÃO
V3.
"A
(PLATÃO, Tim., 70a; ARISTÓTELES, Et. nic, I, 13, 1102 b, 15). Em ambos os casos, R. tem, ao mesmo tempo, função
negativa e positiva: negativa em relação às crenças infundadas e aos apetites animais; positiva no sentido de dirigir as
atividades humanas de maneira uniforrnej tante. Mas foi principalmente com o^£stóic( que prevaleceu a doutrina da
R. como único guia dos homens. Para eles, havia uma espécie de divisão simétrica entre os animais e os homens: os
animais são guiados pelo instinto, que os leva a conservar-se e a procurar o que (J ^^ ^ vantaJoso; aos homens foi dado o
guia mais *< ^(ü perfeito, que é a R.; desse modo, para eles, vi-
<
«í
^
»
*
\
j ^ver segundo a natureza significa viver segundo \ >a R. (DióG. L., VII, 1, 15-86). Esses conceitos |! ^constituíram
um dos eixos da cultura clássica. Cícero dizia: "A R., única diferença que nos distingue do bruto, por meio da qual
podemos conjecturar, argumentar, rebater, discutir, levar a termo e concluir, certamente é comum a todos; diferente
em termos de preparação, mas igual quanto a ser faculdade de aprender" (De leg., I, 10, 30). Sêneca exaltava a R. por
sua imutabilidade e universalidade.-. "A R. é imutável e firme no seu juízo porque não é escrava, mas senhora, dos
sentidos. A R. é igual à R. assim como o justo ao justo; portanto também a virtude é igual à virtude porque a virtude
outra coisa não é senão a reta R." (Ep., 66). Deste ponto de vista também a metafísica estóica da R., para a qual ela é
— como diz o próprio Sêneca (Ibid) — "uma parte do espírito divino infundida no corpo do homem", não nega sua
autonomia, mas, ao contrário, exalta-a e confirma-a. Certamente foi nesses conceitos que S. Agostinho se inspirou ao
fazer o elogio da R., que constitui os últimos capítulos de De ordine. "A R. é o movimento da mente que pode
distinguir e correlacionar tudo o que se aprende" (De ord., II, 11, 30). É a força criadora do mundo humano: inventou
a linguagem, a escrita, o cálculo, as artes, as ciências; é o que de imortal existe no homem (Ibid., II, 19, 50). O
entusiasmo de S. Agostinho pela razão se explica facilmente: para ele, a vida é busca, e a R. é o princípio que institui
e dirige a busca, tornando-a fecunda.
No entanto, o neoplatonismo já subordinara a R. ao intelecto, considerando-o superior à razão porque dotado do
caráter intuitivo ou imediato que o transforma na visão direta da verdade. Segundo Plotino, a R. emana do intelecto,
"que está presente em todas as coisas
que são" (Enn., III, 2, 2). Em outros termos, ela é a função formadora e plasmadora do intelecto; para dispor todas as
coisas do mundo (boas e más) em sua ordem apropriada, ela deve adaptar-se à matéria (Ibid., III, 2, 11-12). Nesse
sentido, a R. é a técnica da criação e do governo do mundo, pois graças a ela os seres criados não se destroem entre si,
mas concordam e combinam-se da melhor maneira. Piojtiria,diz: "Graças à R., cada ser age ou sofre ações segundo
necessidades, e não ao acaso e desordenadamente" (Ibid., II, 3, 16). Esse conceito de superioridade do intelecto foi
herdado pela escolástica medieval. R. e intelecto são identificados no significado geral de princípio orientador (cf., p.
ex., S. TOMÁS DE AQUINO, S. Th., I, q. 29, a. 3, ad. 4Q; q. 79, a. 8). Mas em seguida a razão é subordinada ao intelecto
por seu caráter discursivo, que parece inferior ao caráter intuitivo daquele (v. adiante). Mais tarde, o próprio Bacon
considerava a R. como uma atividade especial do intelecto (ao lado da memória e da fantasia), mais precisamente a
função cuja tarefa é dividir e compor as noções abstratas "segundo a lei da natureza e a evidência das próprias coisas"
(De augm. scient., II, 1). Assim, é só com Descartes que a R. volta a ser o guia fundamental do homem.
Identificando razão e bom senso, Descartes restabelece o conceito clássico de R., e com base nele formula o problema
novo do méto-dgJ"A capacidade de bem julgar e de distinguii o verdadeiro do falso, que recebe o nome de senso ou
R., é por natureza igual em todos os homens; portanto, a disparidade de nossas opi niões não provém do fato de que
umas são mais racionais que as outras, mas apenas de conduzirmos nossos pensamentos por cami nhos diferentes,
sem levar as coisas em con sideração. Não basta ter o espírito são; o prinj ipal é aplicá-lo bem'T(I)iscours. 1). Estas
palavras famosas rejntroduziram no_ mundo moderno o conceito antigo (e especialmente _estóicoJ_de R. como guia
de todo o gênero humano. Assim, S_pjnoza surpreendia-se ao ver que às vezes queriam "submeter a R., máximo dom
de Deus e luz realmente divina, às palavras", não se considerando crime "falar indig-namente desse verdadeiro
testemunho do Verbo de Deus, que é a R., declarando-a corrupta, cega e impura" (Tract. theologico-politicus, cap.
15). Leibniz, por sua vez, insistia na velha tese de que a R! pertence ao homem e somente ao homem (Nouv. ess., IV,
17, 2), e Locke atri-
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buía à R. uma determinação fundamental, que^1* a filosofia só concede àqueles que advertiram
constitui a única inovação autêntica do concei- <5-, ^ a exigência interior de compreender" CF//. Í/O
to moderno em relação ao clássico: "a R. é <SL vtf <//r., Pref.; trad. it. Messineo, p. 17). Isso signiinstrumento do conhecimento provável, e nãov \|fica que a razão não guia, mas chega postfacíum
apenas do conhecimento estabelecido". Locke,^$la compreender a realidade, a justificá-la
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dizia: "Assim como a razão percebe a correia ção necessária e indubitável entre as idéias ou provas, em
cada grau de qualquer demonstração que produza conhecimento, de maneira análoga também percebe a
correlação provável entre as idéias ou provas em qualquer grau de uma demonstração à qual julgue ser
devido o assentimento" {Ensaio, IV, 17, 2). Com essa determinação, a R. era qualificada segundo a
função que lhe era atribuída pelo iluminismo sete-centista: princípio de crítica radical da tradição e de
renovação igualmente radical do homem. Kant tentava realizar plenamente o ideal ilu-minista da R. Por
um lado, identificava-a com a própria liberdade de crítica ("Sobre a liberdade de crítica repousa a
existência da R., que não tem autoridade ditatorial, mas cuja sentença nunca deixa de ser o acordo dos
cidadãos livres, cada um dos quais deve poder formular sem obstáculos as suas dúvidas e até seu veto") e
por outro pretendia levar a R. diante de seu tribunal e instaura a "crítica da R. pura", que "não se imiscui
nas controvérsias imediatamente referentes aos objetos, mas é instituída para determinar e julgar os
direitos da R. em geral" {Crít. R. Pura, Teoria transcendental do método, cap. I, seç. II). Está de acordo
com o conceito iluminista de R. a definição de Whitehead: "a função da razão é promover a arte da vida",
no sentido de que a R. teria a tarefa de agir sobre o ambiente para promover formas de vida mais
satisfatórias e perfeitas {TheFunction ofReason, 1929, cap. I; trad. it. Cafaro, pp. 6 ss.). Enquanto isso,
aquilo que à primeira vista parece ser a maior garantia da eficácia da R. — crer que ela habita a realidade
e a domina, de tal modo que não há realidade não racional, nem racionalidade não real — na verdade
constitui o abandono da função diretiva da R. Hegel, que afirmou com mais rigor esse ponto de vista,
também negou a função diretiva da R.: "O que está entre a R. como espírito autocons-ciente e a R. como
realidade presente, o que diferencia aquela desta e não permite que se encontre satisfação nesta, é o
estorvo de alguma abstração que se não libertou e não se transformou em conceito. Reconhecer a R. no
presente e, assim, fruí-lo é o reconhecimento racional que reconcilia com a realidade, o que
É) Oreconhecimento da R. como guia cõns" tante, uniforme e (às vezes) infalível de todos os homens, em
todos os campos da atividade destes, é acompanhado na maioria das vezes pela determinação de um
procedimento espet cífico no qual se reconhece a atuação própria da razão. As determinações já
concebidas sobre a técnica específica da R. podem ser resumidas nos seguintes conceitos fundamentais:
d) disoirso; b) autoconsciência; c) auto-revelação; d) tautologia.
NíraRÍcà
a) O procedimento ((liscursivo^é a técnica mais freqüentemente consicTerãcla própria da razão. A ele
PJatão recorre para marcar a diferença entre a opinião verdadeira e a ciência: as opiniões podem dirigir a
ação tão bem quanto a ciência, mas tendem a fugir para todos os lados, como as estátuas de Dédalo,
enquanto não "são amarradas por um raciocínio causai" {Men., 98 a). Esse atamento ou essa conexão é a
técnica discursiva. Técnica discursiva é todo o procedimento silogístico de Aristóteles, à parte a
determinação dos princípios, que são intuídos pelo intelecto; discursivas são a silogística necessitante e a
dialética {An. post., I, 33, 89 b 7; Et. nic, VI, 11, 1143 b 1). No mesmo sentido, os estóicos definiam a R.
como "um sistema de premissas e conclusões" (DIÓG. L., VII, 1, 45). A função freqüentemente atribuída à
razão
'Tdístin^r,ronjejaHonar .rnmparar e>tr [v. OS
trechos de Cícero e"S. AgostirthtrcTtados em A]) não passa de expressão do mesmo procedimento. S.
Tomás de Aquino dizia: "Os homens chegam a conhecer a verdade inteligível procedendo de uma coisa à
outra; por isso são chamados de racionais. É evidente que raciocinar está para entender assim como
mover-se está para ficar parado, ou adquirir para ter: destas coisas, a primeira é própria do imperfeito; a
segunda, do perfeito" {S. Th., I, q. 79, a. 8). No começo da Idade Moderna Descartes moldava-se no
mesmo procedimento para determinar suas regras do método: "Os longos encadea-mentos de razões,
todas simples e fáceis, de que os geômetras costumam lançar mão para chegar às suas demonstrações
mais difíceis, deram-me a oportunidade de imaginar que todas as coisas que podem chegar ao
conhecimento dos homens correlacionam-se da
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VI
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RAZÃO
mesma maneira" (Discours, II). A Lógica de Port-Royal expressava de maneira diferente os mesmos
conceitos (ARNAULD, Log., III, 1) em que também Locke baseava sua doutrina da razão: "Na R. podemos
considerar estes quatro graus: o primeiro e mais elevado consiste em achar e descobrir as/verdades; o
segundo, em dispô-las de maneira regular e metódica, siste-matizando-as numa ordem clara e justa, de tal
modo que sejam percebidas com evidência e facilidade sua força e suas interconexões; o terceiro, em
perceber tais conexões; o quarto, em tirar uma justa conclusão" (.Ensaio, IV, 17, 3). A distinção que
Spinoza estabelecia entre o segundo gênero de conhecimento, que ele chamava de R., e o terceiro, que
chamava de ciência intuitiva, é a distinção tradicional entre o procedimento discursivo e o intelecto
intuitivo (Et., II, 40, schol. 2). E Leibniz só fazia encontrar a expressão mais simples para o mesmo
conceito de R. ao afirmar que a R. é "a concate-nação das verdades" (Op., ed. Erdmann, p. 479, 393).
Wolff dava o nome de "juízo discursivo" à operação da R., na medida em que consiste na correlação das
proposições (Log., §§ 50-51).
O conceito de R. como discurso entra em crise com Kant, que, ao mesmo tempo em que atribui caráter
discursivo a toda a atividade cognoscitiva humana, considerando que apenas Deus possui o conhecimento
intuitivo (v. DISCURSIVO), distingue nitidamente a R. do intelecto, apesar do caráter discursivo comum
aos dois. A R. é a faculdade^'que produz os_concei-_ tos por si"; portanto, pode ser chamadadej^rculáade dos princípios. Mas os conceitos que a R. produz não têm base na experiência; por isso, são
simplesmente fictícios. "Se o intelecto pode ser uma faculdade da unificação dos fenômenos por meio de
regras, a R. é a faculdade de unificar as regras do intelecto por meio de princípios. Por isso, ela nunca visa
imediatamente à experiência ou a um objeto qualquer, mas ao intelecto, para, por meio de conceitos,
imprimir aos múltiplos conhecimentos deste uma unidade apriori; essa unidade, que pode ser chamada de
racional, é de espécie totalmente diferente da outra que pode ser produzida pelo intelecto" (Crít. R. Pura,
Dialética transcendental, Intr. II, a). Assim como o intelecto, a R. procede discursivamente, mas considera
que os procedimentos discursivos do intelecto se realizem em idéias de totalidade e unidade (alma,
mundo, Deus), que são perfeitas, umas não podem ser confrontadas com a
i^ i - • experiência, portanto puramente fictícias e apenas fonte de raciocínios dialéticos, ou seja, sofísticos
(v. IDÉIA; ANTINOMIAS). O resultado dessa distinção kantiana é que só é válido o procedimento do
intelecto cujos conceitos derivam imediatamente da experiência, e que o procedimento discursivo
racional, com suas pretensões totalitárias, só dá origem a noções fictícias. Portanto, depois de Kant fica
difícil manter a definição da razão como técnica discursiva. ~> *<-- A* Ç_ %<-•-■ -7/.-V> K* O conceito da R. como discurso permite a, ■ consideração formal do procedimento racional: possibilita
uma lógica, que é na realidade a lógica tradicional na forma elaborada pelos filósofos desde Aristóteles
até o fim do séc. XIX. Entendida neste sentido, a lógica é ao mesmo tempo descritiva e normativa:
descritiva em relação aos procedimentos próprios da R., normativa no sentido de que essa mesma
descrição vale como regra para o uso correto da razão. Nesse sentido, a lógica tradicional era definida
com exatidão como "arte de raciocinar".
____------------------—-—
U) O conceito da R. como(^toconsciêncía) '£, remonta a Fichte. Caracteriza-se pela identifi- -f cação entre
1
R. e realiHade^ejrrf-sgnpõé o ron-
■;
ceito d£R. como discursa Como discurso, a R.
^ eãecrüçap; como dedução, tem um único princí;;
pio, que é o Eu. Do Eu deriva, com necessi"^ dade infalível, todo o sistema do saber, que é
-í ao
mesmo tempo o sistema da realidade. "Fonte de toda a realidade é o Eu. Somente com o Eu e pelo Eu é
dado o conceito de realidade. Mas o Eu é porque se põe e põe-se porque é. Portanto, pôr-se e ser são uma
só e mesma coisa" (Wissenschaftslehre, 1794, § 4, C; trad. it., p. 92). As equações em qjLie essa
doutrinasse^ baseia são as seguintes£R. = saber dedutivo;; ( sábêr"Sêdutivo = realidade^ realidade + saber
= autoconsciênçia. Schelling expressava essas Tnesmas equações ao afirmar: "A natureza alcança seu fim
mais elevado, que é tornar-se inteiramente objeto de si mesma, com a última e mais elevada reflexão, que
nada mais é que o homem ou, de modo mais geral, aquilo que chamamos de razão. Temos assim, pela
primeira vez, o retorno completo da natureza a si mesma, estando evidente que a natureza é originariamente idêntica àquilo que em nós se revela como princípio inteligente e consciente (System des
transzendentalen Idealis-mus, 1800, Intr., § 1; trad. it., p. 9). E Hegel expressava o mesmo conceito da
seguinte
RAZÃO
828
RAZÃO
maneira: "A autoconsciência, ou seja, a certeza de que suas determinações são tão objetivas —determinação da
essência das coisas—quanto seus próprios pensamentos, é a R.; esta, por ser tal identidade, é não só a substância
absoluta, mas também a verdade como saber" (Ene, § 439). Em outras palavras, para Hegel a R. é a identidade da
autoconsciência como pensamento com suas manifestações ou determinações, que são as coisas ou os
acontecimentos; é a identidade de pensamento e realidade. De forma epigráfica, esse conceito era expresso por Hegel
da seguinte maneira: "a R. é a certeza da consciência de ser realidade: assim o idealismo expressa o conceito de R."
(Phãnomen. des Geistes, I, V, I; trad. it., p. 209). É óbvio que, desse ponto de vista, a R. não é discursiva no sentido
de concatenar expressões lingüísticas e inferir uma da outra por meio de regras determinadas ou determináveis, mas é
a inferência (pretendida) das determinações do pensamento e da realidade, umas das outras, num processo único cuja
perfeita "necessidade" é afirmada. Este ponto de vista impossibilita a consideração formal das técnicas racionais, que
está ligada à concepção d) de R. Como autoconsciência, a R. nunca é formal: é sempre idêntica à realidade. Hegel
diz: "O intelecto determina e firma as determinações. A R. é negativa e dialética porque em nada resolve as
determinações do intelecto. Ela é positiva porque gera o universal e nele compreende o particular" (Wissenschaft der
Logik, Pref. da Ia ed.; trad. it., p. 5). Por "compreender o particular" entende-se que compreende as coisas ou as
determinações reais, que, em última análise, nada mais são que suas manifestações particulares. A negação da lógica
formal é parte integrante desse ponto de vista; por isso, retorna sempre que ele aparece. Basta lembrar que Croce
rejeitava a lógica formal baseada no mesmo pressuposto hegeliano de identidade entre R. e realidade, expresso na
forma de identidade entre filosofia e história: "A riqueza da realidade, dos fatos, da experiência, de que pareceria
carecer o conceito puro, portanto a filosofia, em virtude da declarada distância em relação às ciências empíricas, é-l
lhe devolvida e reconhecida; e não mais na forma diminuta e imprópria do empirismo, mas sim de modo total e
integral. Isso se realiza pela conjunção, que é unidade, de filosofia e história" .ilógica, 1920o p. 392).
c) O conceito de R. como auto-revêlãçãõ õíT evidência foi estabelecido por Husserl. Para
ele, a R. é o manifestar-se fenomenológico dos objetos (que podem ser coisas ou essências), seja esse manifestar-se
dotado de caráter necessário ou apodítico, seja de caráter assertório. Husserl diz: "A visão por assim dizer assertória
de uma individualidade, como p. ex. o perceber uma coisa ou uma facilidade individual, distingue-se em seu caráter
racional da visão apodítica da compreensão de uma essência ou de uma relação de essências" (Ideen, I, § 137). O
termo mais abrangente, o conceito que com-preede tanto a visão assertória, que é dada de fato, mas pode ser
diferente, quanto a visão apodítica, que é necessária, é a consciência racional, que Husserl chama também, em geral,
de evidência (Ibid., 137). Desse ponto de vista, o caráter fundamental da racionalidade é a validade do
posicionamento: se o objeto é verdadeiramente posto, o ato é válido, e a posição tem caráter racional (Ibid., § 139).
Mas aquilo que do ponto de vista do ato noético é a posição do objeto, do ponto de vista objetivo é a evidenciaçâo do
objeto, seu dar-se ou seu revelar-se (Ibid., § 139). E como, em qualquer esfera do ser, o modo de auto-revelar-se dos
objetos é diferente, todo tipo de realidade traz consigo "uma nova doutrina concreta da R." (Ibid., § 152). Esse
conceito de R. como autorevelação ou auto-evidência é aceito integralmente por Heidegger: "Apenas porque a função
do logos é fazer ver algo, fazer perceber o ente, logos pode significar R." (Sein undZeit, § 7, B). Esse mesmo conceito
é apresentado de forma mais mítica por Jaspers: "A R. não é de fato uma verdadeira nascente originária, mas, por ser
conexão de tudo, é semelhante a uma nascente originária na qual vêm à luz todas as nascentes" (Vernunft
undExistenz, 1935, II, 5; trad. it., p. 50). A direção para a qual a R. se move é a infinita clareza, e aquilo que nela
tenta aclarar-se é a existência: "a existência alcança a clareza somente por meio da R.: a R. só tem conteúdo em
virtude da existência" (Ibid., II, 6; p. 53). E óbvio que, mesmo deste ponto de vista, é impossível a consideração
formal do procedimento racional. A R. nunca é formal porque é sempre preenchida pelo conteúdo que nela se
manifesta evidente ou se esclarece.
d) O conceito de R. como tautologia tem origem em Hume, que foi o primeiro a fazer a distinção nítida entre
"relações de idéias" e "coisas de fato". "À primeira classe pertencem ciências como a geometria, a álgebra e a
aritmética; em suma, toda proposição intuitiva ou
RAZÃO
829
RAZÃO
demonstrativamente certa [no sentido lockia-no]. (...) As proposições dessa classe podem ser descobertas com uma
pura operação do pensamento, e não dependem de coisas que existem em algum lugar do universo" (Inq. Cone.
Underst., IV, 1). Na verdade, Hume não afirmou explicitamente o caráter tautológico ou (para usar um termo
kantiano) analítico das proposições que expressam simples relações das idéias entre si, mas de algum modo o
pressupôs quando insistiu no fato de que as proposições que expressam coisas de fato não são logicamente deriváveis
uma da outra. Todavia, para formar a concepção de R. em foco interveio também outro componente conceptual,
exposto pela primeira vez por Hobbes: a redução da R. a cálculo das proposições verbais. Hobbes disse: "A R. nada
mais é que o cálculo — a adição e a subtração — das conseqüências dos nomes gerais usados para caracterizar e
significar nossos pensamentos: para caracterizá-los quando calculamos para nós mesmos, para significá-los quando
demonstramos ou comprovamos nossos cálculos para os outros homens" (Leviath., I, 5). Esta idéia de Hobbes
concretizou-se apenas a partir de meados do séc. XIX, com a fundação da lógica matemática por parte de G. Boole
(Laws ofThought, 1854), que foi o primeiro a mostrar a impossibilidade de reduzir o raciocínio matemático às formas
de raciocínio descritas por Aristóteles, dando início a uma lógica estreitamente ligada aos métodos de cálculo. O
sucesso ulterior dessa lógica, principalmente graças a Frege e a Russell (v. LÓGICA), constitui um antecedente
histórico indispensável do conceito de R. em exame. Que tal procedimento tivesse caráter tão lógico só ficou claro
mais tarde, no Círculo de Viena, com a obra de Wittgenstein (1922). O fundamento dessa obra é a redução da R. à
linguagem. Wittgenstein afirmava que "as proposições da lógica são tautologias" ( Tractatus, 6.1), que "nada dizem
(são as proposições analíticas)" {Ibid., 6.11), e que "são sempre falsas as teorias que mostram uma proposição da
lógica provida de conteúdo" (Ibid., 6.111). E acrescentava: "A característica especial das proposições lógicas é que,
só pelo símbolo, pode-se reconhecer que são verdadeiras, e este fato encerra em si toda a filosofia da lógica.
Analogamente, um dos fatos mais importantes é que a verdade ou falsidade das proposições não lógicas não pode ser
reconhecida somente a partir da proposição" (Tractatus, 6.113).
Assim, o procedimento racional julgado característico das disciplinas às quais Hume atribuía por objeto apenas as
relações de idéias (lógica e matemática) foi reduzido à tautologia. Wittgenstein diz que as proposições da lógica,
assim como as da matemática (Ibid., 6.21), nada dizem. No entanto, isso não quer dizer que são inúteis, pois revelam
a identidade de significado existente sob formas proposicionais diferentes e podem, portanto, ser usadas para a
transformação de uma proposição numa outra que tenha o mesmo significado, mas forma diferente. Contudo,
nenhuma das proposições da lógica e da matemática fornece qualquer informação acerca do mundo. A redução da R.
a procedimento tautológico tem, pois, os seguintes resultados: 1 Q são racionais, no sentido próprio do termo, somente
os procedimentos formais da lógica e da matemática (como parte ou todo da lógica); portanto, racionalidade e logicidade coincidem; 2Q racionalidade e logicidade nada têm a ver com realidade. Portanto, esse conceito da R. constitui
a inversão simétrica do conceito tí), que, ao contrário, identificou racionalidade e realidade, e opôs ambas as
concepções à formalidade lógica pura, declarada sem valor (cf. sobre a concepção em exame, R. VON MISES, Kleines
Lehrbuch des Positivismus, 1939, § 10; trad. it., pp. 164 ss.; J. R. WEINBERG, An Examination of Logical Positivism,
1950), cap. II; trad. it., pp. 86 ss.).
As quatro alternativas típicas que a teoria da R. seguiu até hoje são claramente insuficientes em face da tarefa que se
atribui à R. de guiar o homem em todos os campos. A primeira delas esgotou-se historicamente, e o abandono da
lógica em que era expressa é um sinal desse esgotamento. As alternativas (b) e (c) impossibilitam a determinação de
procedimentos rigorosos; a (b) põe em risco a própria função diretiva da razão. A alternativa (d) possibilita o
desenvolvimento de uma disciplina autônoma, que é a moderna lógica matemática, mas é restrita demais para
expressar as tarefas da R. em todos os campos. É certamente possível empregar em todos os campos as técnicas
lógico-matemáti-cas construídas com base na noção de R. como tautologia, mas nem todos os procedimentos que
podem ser definidos como racionais podem ser reduzidos a tais técnicas. Em geral, comportamento racional é o que
permite dominar uma situação, enfrentar suas mudanças e corrigir os eventuais erros do próprio procedimento.
Portanto, a racionalidade de um proce-
RAZÃO DE ESTADO
830
REAIS CIÊNCIAS
dimento só pode ser determinada em relação à situação específica que ele permite enfrentar. E a consideração da R.
remete desde logo (como queria Husserl) à consideração das esferas ou dos campos específicos, unicamente em
relação aos quais se pode decidir sobre a racionalidade de um procedimento. Deste último ponto de vista, a teoria da
R. hoje não pode ser dada por uma metafísica da R., mas por investigações metodológicas e críticas que, do exame de
procedimentos autônomos de que o homem dispõe em cada campo de pesquisa, remontem às condições gerais em
que esses procedimentos podem ser projetados.
RAZÃO DE ESTADO. João Botero, que introduziu essa expressão como título de um livro seu {Delia ragion di
stato, 1589), usou-a para designar "a resenha dos meios aptos a fundar, conservar e ampliar um Estado", que é "o
domínio firme sobre os povos". Mas na realidade essa expressão passou a indicar o princípio do maquiavelismo
vulgar, e isso graças ao próprio Botero, que, mesmo se opondo a Maquiavel, admitia o princípio de que os fins
justificam os meios em política (v. MAQUIAVELISMO).
RAZÃO PREGUIÇOSA (gr. àpTÒç AÓ70Ç; lat. Ignava ratia, ai. Faule Vernunft, it. Ragionpigrd). Raciocínio ou
argumento que leva à inércia. Já Platão chamava de preguiçoso o argumento sofista de que é inútil indagar por que
não se pode indagar aquilo que se sabe (uma vez que se sabe) nem aquilo que não se sabe, uma vez que não se sabe o
que indagar (Men., 86 b). Mas com o nome de R. preguiçosa chegou até nós especialmente um argumento de
provável origem megárica, exposto pelo estóico Crisipo (PLUTARCO, Moralia, II, p. 574 e; cf. Stoicorum fragmenta,
II, p. 277), que Cícero assim relatou: "Se for teu destino curar-te dessa doença, vais curar-te recorrendo ou não a um
médico. Assim também, se for teu destino não te curares dessa doença, não vais curar-te recorrendo ou não ao
médico. Ora, teu destino é uma dessas duas coisas; portanto, de nada te adianta recorrer ao médico" (De fato, 12, 28).
Leibniz fez alusão a esse velho argumento megárico ou estóico (Teod., I, 55). Mais genericamente, Kant chama de R.
preguiçosa "todo princípio que leve a considerar como absolutamente cumprida a investigação, de tal modo que a R.
se tranqüiliza, ao dar por cumprida sua tarefa" (Crít. R. Pura, Dialética, Apêndice à Dialética transcendental: do
objetivo final, etc). É neste
sentido mais geral que essa expressão costuma ser usada até nossos dias.
RAZÃO PURA, V. PURO.
RAZÃO SUFICIENTE. V. FUNDAMENTO.
RAZOÁVEL (lat. Rationabilis ou Rationalis; in. Reasonable, fr. Raisonable, ai. Vernunftig; it. Ragionevolé). Aquilo
que está em conformidade com a razão ou com as regras que ela prescreve em determinado campo de pesquisa ou em
geral. Neste sentido, Locke falava da "racionabilidade do cristianismo". Fala-se também de "certeza R." para designar
a certeza que pode ser deduzida das regras do domínio a que se faz alusão, mas não é absoluta. Dewey diz: "A
racionabilidade é questão de relação entre os meios e os fins. (...) É R. buscar e escolher os meios que, com toda a
probabilidade, produzirão os efeitos desejados" (Logic, I; trad. it., pp. 41-42).
Como correlativo de racionabilidade, o termo R. implica uma conotação limitativa que, em primeiro lugar, exclui a
infalibilidade da razão e, em segundo, inclui a consideração dos limites e das circunstâncias em que a razão vem a
agir. Portanto, "ser R." significa, na língua comum, dar-se conta das circunstâncias e das limitações que elas
comportam, renunciando-se a atitudes absolutas, sejam elas teóricas ou práticas.
RAZÕES SEMINAIS (gr. ÀÓYOtcnrepLLfxUKOÍ; lat. Rationes seminales). Partes da razão divina que dão origem
às coisas. Segundo os estóicos, assim como todo ser vivo é produzido por uma semente, todas as coisas são
produzidas por uma partícula da razão divina, que por isso é uma semente racional. Essa noção ressalta a
predeterminação daquilo que é gerado (AÉCIO, Plac, 1.7, 33; cf. J. STOBEO, Ecl, I, 17, 3); foi retomada pelos
neoplatônicos (cf. PLOTINO, Enn., II, 3, 16) e por S. Agostinho (De diversis quaes-tionibus, 83, q. 46).
REAÇÃO (in. Reaction; fr. Reaction-, ai. Reaction-, it. Reazioné). 1. Ação igual e de sentido contrário a determinada
ação. É neste sentido que a física newtoniana utiliza essa palavra.
2. Em psicologia: qualquer resposta a um estímulo. Tempo de reação: intervalo entre estímulo e resposta.
3. Em política: movimento que tende a anular ou a neutralizar os efeitos de uma revolução ou de uma mudança
qualquer, ou mesmo impossibilitar a ocorrência de mudanças.
REAIS CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
REAL
831
REALIDADE
REAL (lat. Realis, in. Real; fr. Réel; ai. Real; it. Realé). 1. Que se refere à coisa. P. ex., "definição R." é a definição
da coisa e não do seu nome.
2. Aquilo que existe de fato ou atualmente. Corresponde aos vários sentidos do termo realidade (v.).
3. Herbart chamou de Reais os seres efetivamente existentes, "cuja natureza simples e própria desconhecemos, mas
sobre cujas condições interiores e exteriores é possível adquirir uma soma de conhecimentos que podem aumentar
infinitamente". Tais entes são irrela-tivos entre si e por isso qualquer das suas relações deve ser considerada uma
constatação acidental (züfallige Ansichi) que não qualifica e não modifica sua natureza (Einleitung in die Philosophie,
1813, §§ 152 ss.).
REALIDADE (in. Reality, fr. Réalité, ai. Realitüt, Wirklichkeit; it. Realtã). 1. Em seu significado próprio e
específico, esse termo indica o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana ou independentemente dela.
A palavra realitas foi cunhada no fim da es-colástica, mais precisamente por Duns Scot. Este a usou sobretudo para
definir a individualidade, que consistiria na "última realidade do ente", que determina e contrai a natureza comum ad
esse hanc retn, à coisa singular (Op. Ox, II, d. 3, q. 5, n. 1). Duns e seus discípulos preferiram chamar essa realitas de
haecceitas. Mais tarde, esse termo passaria a designar o esse in re da escolástica, p. ex. no sentido com que S.
Anselmo pretendia passar, através da prova ontológica, do esse in intellectu ("Ente superior a tudo") ao seu esse in
reiProsl. 2), ou então no sentido com que os escolásticos falavam do universal in re, "incorporado nas coisas". Assim,
o oposto de R. é idealidade, que indica o modo de ser daquilo que está na mente e não pode ser ou ainda não foi
incorporado ou atualizado nas coisas. A referência a coisas também evidente está em expressões como "definição
real", para indicar a definição da coisa, e não do nome, e "direitos reais", para indicar os direitos pertinentes às coisas,
e não às pessoas.
O problema suscitado diretamente pela noção de R. é o da existência das coisas ou do "mundo exterior". Esse
problema nasceu com Descartes, ou seja, com o princípio cartesiano de que o objeto do conhecimento humano é
somente a idéia. Desse ponto de vista, torna-se imediatamente duvidosa a existência da realidade a que a idéia parece aludir, mas sem provas, assim como uma pintura não prova a R. da coisa representada. Para
justificar a R. das coisas, Descartes recorreu à veridicidade de Deus: em sua perfeição, Deus não pode enganar-nos,
não pode permitir que haja em nós idéias que nada representem (Méd., IV). Mas Descartes chegou à existência de
Deus não só reelabo-rando a prova ontológica como também admitindo o princípio de que "na causa eficiente e total
deve haver pelo menos tanta R. quanto no efeito", princípio com base no qual a idéia de Deus, que é a idéia da
máxima perfeição, deve ter como causa um ser que tenha tanta "R." quanto aquela que a idéia representa: Deus (Ibid.,
III). A evolução ulterior do problema levou à negação da realidade. O empirismo inglês, com Berkeley e Hume,
reduzia a R. das coisas ao ser percebido, negando-a, pois, como modo de ser autônomo. Por outro lado, com Leibniz,
o racionalismo resolvia as coisas em elementos ou átomos (mônadas) de natureza espiritual, negando, também desse
modo, o caráter específico de sua R. (v. IMATERIAUSMO). Kant de algum modo reafirmou a R. das coisas, mantendo
na palavra R. {Realitüt) a significação específica de R. das coisas ou, como ele mesmo diz, "coisalidade" (Sacbheii)
(Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. I), contrapondo-lhe a "idealidade" do espaço e do tempo, que são formas da intuição,
e não das coisas (Ibid., § 3). Mas, para ele, o problema diz respeito à existência (Daseiri) mesma das coisas. É o que
ele examina em "Refutação do Idealismo". A solução então proposta é que "a consciência de minha própria existência
é ao mesmo tempo consciência da existência de outras coisas fora de mim". A prova dessa asserção é que a
consciência do tempo, isto é, da mudança, não seria possível sem a consciência de algo permanente; e esse algo
permanente, não podendo ser dado pela própria consciência do tempo, pode ser dado apenas pela coisa exterior à
consciência. Seja válida ou não essa demonstração, está claro que, por um lado, Kant julgava válido o primado da
consciência estabelecido por Descartes, para quem a R. das coisas é um problema que exige demonstração, e, por
outro, tendia a destruir essa formulação, relacionando a consciência da existência com a existência das coisas (V.
CONSCIÊNCIA). Ele nem sequer se propunha o problema do modo de ser específico das coisas, do tipo de existência
que lhes é próprio. Contudo, esse problema está intima-
REALIDADE
832
REALIDADE
mente ligado ao da "existência" das coisas, e só uma resposta a ele (seja ela qual for) pode dar significado à sua
solução positiva. Isto porque, se as coisas existem, surge imediatamente a pergunta: qual é o sentido de sua
existência? Portanto, deve-se considerar que o problema da R. é composto por esses dois problemas inseparáveis: o
da existência e o do modo de ser específico das coisas. O idealismo pós-kantiano deteve-se mais no segundo que no
primeiro desses problemas. Segundo Fichte, a R. consiste em geral na atividade do Eu, que "põe o objeto limitandose" e transporta para o objeto uma parte de sua atividade. "A fonte da realidade (Realitái) é o Eu" — diz Fichte.
"Apenas pelo Eu e com o Eu é dado o conceito da realidade. Mas o Eu é porque se põe, e se põe porque é. Portanto,
pôr-se e ser são uma e mesma coisa. Mas o conceito de pôr-se e o de atividade em geral são, por sua vez, uma só e
mesma coisa. Portanto, toda R. é ativa e toda coisa ativa é R." (Wissenschaftslehre, § 4, E). Essa idéia de R. como
atividade passou a fazer parte da bagagem do Romantismo e influenciou o desenvolvimento posterior do problema.
"Atividade é R. propriamente dita" — dizia Novalis (Fragmente, 190). Schopenhauer afirmava categoricamente "que
a essência dos objetos intuíveis é a sua ação-, que é na ação que consiste a R. do objeto, e que a pretensão de uma
existência do objeto fora da representação do sujeito e mesmo de uma essência da coisa real diferente da sua ação não
tem sentido; ao contrário, é uma contradição" (Die Welt, I, § 5). Como se vê, na origem da redução de R. a atividade
está um sentido idealista. Todavia, ela serviu para abrir uma nova alternativa de solução para o problema: a R. não
seria simples objeto de conhecimento, mas um modo de ser que se revela melhor para outras formas de experiência.
A noção de atividade, tão apreciada pelo Romantismo, representa o primeiro modelo dessa solução. Por outro lado, o
sensacio-nismo de Condillac mostrara que a idéia de R. derivava do sentido do tato; mas o sentido era entendido por
Condillac de maneira ativa e dinâmica, como guiado e sustentado pela necessidade e por desejos (Traité des
sensations, 1754,1, 3, 1; I, 7, 3; II, 5, 5). Mais tarde, Destut de Tracy relacionara a idéia de R. com a experiência da
resistência que as coisas opõem ao movimento (Idéologie, 1801, cap. 8). Na filosofia contemporânea, Dilthey
defendeu idéia análoga (Contribuição à solução do problema da
origem da nossa crença na realidade do mundo exterior, em Gesammelte Schriften, 1890, V, 1, pp. 90 ss.). A
resistência definiria o modo de ser da R., isto é, das coisas; correspondentemente, a experiência dessa R. seria mais
volitiva e prática que cognitiva. Scheler aceitou esta interpretação da R. (Die Wis-sensformen und die Gesellschaft,
pp. 455 ss.). Tese substancialmente análoga foi apresentada por Santayana no livro Ceticismo e fé animal (1923), no
qual ele mostrava que a crença na realidade é devida a experiências puramente animais (fome, luta, etc.) e só é
justificável com base em tais experiências. O mesmo Santayana expusera essa noção de R. em Essays in Criticai
Realism (1920), obra publicada por sete filósofos americanos (v. REALISMO).
Na filosofia mais recente o problema da R. praticamente deixou de ser problema da "existência" das coisas para
tornar-se cada vez mais problema do modo de ser específico das coisas. Suas formulações são feitas segundo a
alternativa aberta pelas doutrinas que reconhecem o caráter não simplesmente cognitivo da experiência da realidade.
Heidegger negou explicitamente o primado da consciência, do qual nascia o problema da existência das coisas. "Crer
na realidade do 'mundo exterior' (com ou sem direito), demonstrar essa realidade (suficientemente ou não), pressupor
essa realidade (explicitamente ou não), tudo isso são tentativas que pressupõem antes de mais nada o sujeito sem
mundo, vale dizer, não consciente de seu mundo, que deve, portanto, começar por fundar a segurança de seu mundo"
(Sein und Zeit, § 43, a). O problema da existência do mundo exterior ou das coisas desaparece por si mesmo uma vez
que se elimine o pressuposto falaz do "sujeito sem mundo", ou seja, pressuposto de que o homem não é já e sempre
sobretudo um ser no mundo. Restabelecido este caráter fundamental do modo de ser do homem, que por isso é um
"ser-aí" (em que aí indica sua relação com o mundo), o problema da R. torna-se o problema do modo como as coisas
do mundo se apresentam ao homem ou estão em relação com ele. Segundo Heidegger, esse modo de ser é a "simples
presença", uma vez que a existência é o modo de ser reservado ao ser-aí, ao homem. "Se a expressão R. significa ser
do ente (res) simplesmente presente no mundo (e de fato nada mais deve ser pensado dela) na análise desse modo de
ser segue-se
REALIDADE
833
REALIDADE
que o ente intramundano só é concebível ontologicamente se for esclarecido o fenômeno da intramundanidade. Mas
este se baseia no fenômeno do mundo, que, por sua vez, enquanto momento essencial da estrutura do ser-no-mundo,
pertence à constituição fundamental do ser-aí. O ser-no-mundo, novamente, é ontologicamente articulado na
totalidade do ser do ser-aí, que se caracteriza como Cuidado {Cura)" {Ibid., § 43, b). Precisamente porque o ser do
ser-aí (a existência humana) é Cuidado, os entes de que essa existência se ocupa, que são diferentes dela — as coisas
(cujo modo de ser é a R.) — caracterizam-se pela instrumenta-lidade. "O modo de ser desse ente é a instrumentalidade, que, no entanto, não deve ser vista como tendências de interpretação. (...) A instrumentalidade é
determinação ontológico-categorial do ente como é em si" {Ibid., § 15). De tal modo, Heidegger destacou o caráter
instrumental das coisas, em virtude do qual elas podem valer como meios para o homem. Mas Heidegger julga que
esse caráter não pertence às coisas na medida de sua relação com o homem, mas constitui seu ser "em si", sua
essência. À parte essa pretensão, a análise de Heidegger pode ser considerada uma caracterização do modo de ser das
coisas ou da "R.", entendida em seu significado próprio e específico. Por outro lado, essa mesma análise mostrou o
caráter arbitrário do "problema da R.", no modo como foi entendido a partir de Descartes, como problema de uma R.
"exterior" à consciência. Mostrou que tal problema surge de um pressuposto filosófico infundado, representado pela
tese do "sujeito sem mundo" ou, em outras palavras, de uma existência do homem que não consiste na relação com o
mundo.
É significativo observar que quase simultaneamente a essas análises de Heidegger o problema da R. exterior era
considerado um "pseudoproblema" de um ponto de vista totalmente diferente, do Círculo de Viena. Carnap
{Scheinsprobleme in derPhilosophie, dasFremd-psychische und der Idealismus-streit, 1928) e Schlick {Positivismus
und Realismus, reed. em Gesammelte Aufsãtze, 1938) rejeitavam tanto a tese da irrealidade do mundo exterior quanto
da sua R. tachando-as de pseudo-afirmações, porquanto nenhuma das duas se prestava a verificações experimentais.
Mas o Círculo de Viena não apresentou qualquer solução do segundo aspecto — o mais legítimo — do problema
da R.: o modo de ser das coisas. A esse respeito, limitou-se (como fazem seus seguidores até hoje) a repropor a velha
tese de Mach {Analyse der Empfindungen, 1900), segundo a qual as coisas são compostas pelos mesmos elementos
últimos que compõem o eu (as sensações), e estes elementos últimos são neutros em si, ou seja, nem subjetivos, nem
objetivos. Esta tese obviamente não dá conta do caráter específico da R. das coisas, não explica por que um conjunto
de tais elementos neutros assume, em cada caso diferente, as características de uma "coisa" ou de um "eu".
Além do significado cujas interpretações estudamos até aqui, a palavra R. também costuma ser usada nos outros
significados abaixo, que devem ser considerados secundários porque são designados com mais propriedade por outros
termos do vocabulário filosófico.
2. Em oposição a aparência, ilusãoe outros semelhantes, R. significa às vezes o ser em qualquer dos seus
significados existenciais. Assim p. ex., na obra de Bradiey, Appearance and Reality (1893), a oposição anunciada
pelo título é entre o aparecer e o ser, uma vez que ele não é limitado à realidade no seu sentido específico, vale dizer,
ao modo de ser das coisas. Dewey empregou a palavra no mesmo sentido, mas com uma conotação crítica- "Na sua
fórmula mais breve, a R. torna-se existência, qual gostaríamos que fosse depois que analisamos seus defeitos e
decidimos quais devem ser eliminados; a 'R.' é aquilo que seria a existência se nossas preferências racionalmente
justificadas estivessem tão completamente estabelecidas na natureza que esgotassem e definissem seu ser por inteiro,
tornando, pois, desnecessárias a luta e a busca. O que é eliminado (uma vez que a perturbação, a luta, o conflito e o
erro ainda existem empiricamente, algo é eliminado), sendo excluído por definição da R. plena, é atribuído a um grau
ou a uma ordem do ser que se afirma ser metafisica-mente inferior; essa ordem recebe varias designações: aparência,
ilusão, espírito mortal ou puramente empírico, em contraposição ao que é, real e verdadeiramente" {Experience and
Nature, cap. II, p. 54).
3. Em oposição a possibilidade, potencialidade e às vezes também a necessidade, essa palavra significa atualidade,
efetividade ou aquilo que se atualizou ou efetivou e possui existência de fato. O termo alemão Wirklichkeit, diferente
de Realitüt, tem esse sentido específico, em-
REALIDADE PRESUNTTVA
834
REALISMO
bora os filósofos nem "sempre se atenham estritamente a essa distinção. Nesse sentido, a palavra designa
uma das categorias da lógica de Hegel. "A R. é a unidade imediata, que se produziu, da essência e da
existência, ou do interno e do externo" {Ene, § 142): com isso, Hegel pretende dizer que a R. é a essência
que se atualizou como existência, ou o interno que se manifestou efetivamente no externo. Quem insistiu
na distinção entre Wirklichkeit e Realitàtíoi Lotze (Mikrokosmos, III, p. 535). N. Hartmann, por sua vez,
utilizou a distinção, descobrindo na efetividade (Wirklichkeit) o sentido primário do ser (Móglichkeit und
Wirklichkeit, 1938) (v. SER).
REALIDADE PRESUNTIVA (ai. Prasump-tive Wirklichkeif). Foi assim que Husserl chamou a R. das coisas
em relação à "R. absoluta", necessária, da consciência (Ideen, I, § 46).
REALISMO (lat. Realismus, in. Realism; fr. Réalisme, ai. Realismus, it. Realismo).Estapalavra começou
a ser usada em fins do séc. XV, designando a corrente mais antiga da Esco-lástica, em oposição à
chamada corrente "moderna" dos nominalistas ou terministas. O primeiro a usá-la foi provavelmente
Silvestro Mazolino de Prieria, em Compendium dialec-ticae, de 1496 (cf. PRANTL, Geschichte derLogik,
IV, p. 292). O R. afirmava a realidade dos universais (gêneros e espécies), entendendo contudo de
maneiras diferentes essa mesma realidade (v. UNIVERSAL).
No sentido mais geral e moderno, esse termo foi retomado por Kant na primeira edição de Crítica da
Razão Pura, para indicar, por um lado, a doutrina (oposta à que ele defendia) segundo a qual o espaço e o
tempo são independentes de nossa sensibilidade, que é o R. transcendental, e por outro lado uma doutrina
sua, que admite a realidade exterior das coisas e que é o R. empírico. Kant dizia: "O idealista
transcendental é um realista empírico que atribui à matéria, como fenômeno, uma realidade que não
precisa ser deduzida, mas é imediatamente percebida" (Crít. R. Pura, Ia ed., Dialética transcendental,
Crítica do quarto paralogismo da psicologia transcendental). Com Kant, esse termo entrou em filosofia,
designando doutrinas de interesse atual, e não simplesmente histórico. Fichte afirmava que "a doutrina da
ciência é realista" porque "mostra que é absolutamente impossível explicar a consciência das naturezas
finitas se não se admitir a existência de uma força independente delas,
oposta a elas, da qual elas dependem em sua existência empírica" (Wissenschaftslehre, 1794, § V, II; trad.
it., 231). Schelling falava de um idealismo realista (Real-idealismus) ou de um R. idealista (Idealrealismus) (Werke, I, X, p. 107) no mesmo sentido que Fichte. A partir de então, o R. foi qualificado e
definido das maneiras mais diferentes, e quase sempre as doutrinas que o adotaram como insígnia
qualificaram também como realistas as doutrinas do passado que coincidiam com seu ponto de vista.
Assim, p. ex., Platão foi considerado realista porque admitia a realidade das idéias (seja qual for a
significação disto), mas também foi definido como idealista porque tratava de idéias. Semelhantes
análises (e as controvérsias que provocam) não passam de perda de tempo. Menos inútil talvez seja
esclarecer o significado das formas mais conhecidas que o R. assumiu na filosofia moderna. Nesse caso,
além das já citadas, podem ser lembradas as seguintes:
d) O R. empírico de Kant assumiu vários nomes, permanecendo substancialmente o mesmo:
independência da existência das coisas em relação ao ato de conhecer. W. Hamilton chamou esse ponto
de vista de R. natural ou pre-sentacionismo, considerando-o típico da escola escocesa, da qual derivava
sua filosofia (v. PRESENTACIONISMO). O famoso artigo de G. E. Moore, publicado em Mindde 1903,
"Refuta-ção do idealismo", inspira-se num ponto de vista análogo: defende a independência do objeto
conhecido em relação ao ato psíquico com que é conhecido. Essa independência era chamada de tese do
R. ingênuo (ai. Naiven Realismus) por G. Schuppe (Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1910, pp.
1-2). O. Külpe dava a esse mesmo ponto de vista o nome de R. científico (Die Realisierung, II, 1920, p.
148), enquanto J. Maritain, que defendeu a mesma forma de realismo porque, segundo ele, correspondia
mais à tradição to-mista, chamou-o de R. crítico (Distinguerpour unir, 1932, p. 149). Finalmente, o
mesmo tipo de R. é chamado de materialismo pelos defensores do materialismo dialético: é o que faz, p.
ex., Lenin (Materialismo e empiriocriticismo, 1909, trad. it., p. 75). Essa mesma forma de R., sem
adjetivos ou com adjetivos vários, é freqüente na filosofia contemporânea; pode ser facilmente encontrada
no existencialismo, no instrumentalismo, no empirismo lógico e em todas as correntes filosóficas que
adotam o pensamento científico como ponto de partida.
RECEPTIVIDADE
835
RECIPROCIDADE
b) R. transfigurado (Transfigurared Rea-lisrri) de H. Spencer: "O R. com que estamos comprometidos sustenta
simplesmente que a existência objetiva é separada e independente da existência subjetiva. Mas não afirma que cada
um dos modos da existência objetiva seja na realidade aquilo que parece ser, nem que as conexões entre os modos
sejam objetivamente aquilo que parecem ser. Por isso, esse R. distingue-se claramente do R. cru; para marcar a
distinção podemos chamá-lo propriamente de R. transfigurado" (Principies ofPsychology,§472).
c) O novo R. defendido em volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (E. B. HOLT, W. T. MARWIN, W.
P. MONTAGUE, R. B. PERRY, W. B. PITKIN, E. G. SPAULDING, The New Realism, 1912) baseia-se no princípio segundo
o qual a relação cognoscitiva não modifica os seres entre os quais se estabelece; portanto, o fato de os seres
conhecidos parecerem estar apenas em relação conosco não implica que seu ser se esgote nessa relação. Segundo o
novo R., também são seres objetivos os conceitos abstratos utilizados pela ciência; o próprio erro é um fato objetivo
devido a uma distorção fisiológica. Ponto de vista análogo, também baseado nas correntes da fenomenologia e do
logicismo, foi defendido por Nicolai Hartmann numa série de obras que começaram com Grundzüge einer
Metaphysik der Erkenntnis (1921). Constituem o R. de Hartmann as duas teses seguintes: Ia a relação cognitiva é
extrín-seca ao ser, que não é qualificado nem modificado por ela; 2- o ser é constituído não só por coisas, mas
também por objetos ideais ou abstratos, ou por valores.
d) O R. crítico foi defendido em um volume coletivo por um grupo de pensadores americanos (D. DRAKE, A. O.
LOVEJOY, J. B. PRATT, A. K. ROGERS, G. SANTAYANA, R. W. SELLARE, C. A. STRONG, Essays in Criticai Realism,
1920), que defendia fundamentalmente o ponto de vista de Santayana, segundo o qual o objeto imediato ao
conhecimento é uma essência (v.), ao passo que a existência nunca é apreendida imediatamente ou intuída, mas
apenas afirmada, posta ou reconhecida por exigências emocionais e práticas que Santayana chamava de fé animal
(Scepticism and Animal Faith, 1923).
RECEPTIVIDADE (in. Receptivity, fr. Récep-tivité, ai. Receptivitát; it. Recettivitã). Capacidade de sofrer uma ação
ou de registrar os efeitos da ação sofrida. Kant chamou de R. a capacidade de receber impressões, e a opôs ao caráter
ativo
do conhecimento, que se baseia na "espontaneidade dos conceitos" (Crít. R. Pura, Lógica Transcedental, Intr., I).
RECEPTOR (in. Receptor). Termo da psicologia contemporânea que designa qualquer órgão ou estrutura com que o
organismo recebe os estímulos. São R. tanto os órgãos dos sentidos (p. ex., olho, ouvido, etc.) quanto as estruturas
nervosas que recebem estímulos da pele, dos músculos, das articulações, etc. Os primeiros são chamados de
exterorreceptores, os outros, de propriorreceptores. Às vezes fala-se também de enterorreceptores para indicar os R.
situados nas vísceras.
RECIPROCAÇÃO (lat. Reciprocatio; in. Re-ciprocation-, it. Reciprocazionè). Na lógica de 1600, um modo de
refutação que consiste em usar contra o adversário o mesmo argumento por ele utilizado; com isso, demonstra-se que
o argumento é vicioso (cf. JUNGIUS, Lógica ham-burgensis, 1638, VI, 16, 20).
RECIPROCIDADE (in. Reciprocity, fr. Re-ciprocítê, ai. Wechseltvirkung; it. Reciprocitã d'azioné). É o princípio da
conexão universal das coisas no mundo, em virtude do qual elas constituem uma comunidade, um todo organizado.
Portanto, a ação recíproca nada tem a ver com o princípio de ação e reação enunciado por Newton. Kant faz da ação
recíproca um princípio puro do intelecto, e vê nele a terceira analogia da experiência (v.), expressa com as seguintes
palavras: "Todas as substâncias, quando podem ser percebidas no espaço como simultâneas, estão entre si numa ação
recíproca universal". Assim como a sucessão temporal tem fundamento na conexão causai, também a simultaneidade
temporal tem fundamento na R. de ação entre as substâncias. Kant diz: "Sem comunidade, cada percepção (dos
fenômenos no espaço) se separaria das outras, e a cadeia das representações empíricas, isto é, a experiência, deveria
recomeçar do início a cada novo objeto, sem que a precedente pudesse ligar-se a ele ou estar em relação temporal
com ele." CCrít. R. Pura, Anal. dos princ, III, 3). O sentido da conexão recíproca é esclarecido em seguida por Kant
da seguinte maneira (loc. cii): "A palavra Gemeinscbaft [= comunidade] tem duplo significado: pode significar tanto
communio quanto comercium. Aqui a empregamos no segundo sentido, como comunidade dinâmica, sem a qual nem
a comunidade espacial (communio spatiz) poderia ser conhecida empiricamente." Não admira que o Romantis-
RECIPROCO
836
REDUÇÃO
mo tenha valorizado ao máximo essa noção, de caráter tão nitidamente metafísico e espiritua-. lista. Schelling afirma
(System des transzenden-talen Idealismus, p. 228) que "a relação de causalidade não pode ser construída sem a ação
recíproca", enquanto Hegel (Ene, §§ 154 ss.) vê na passagem da causalidade à ação recíproca a passagem da
necessidade ao desven-damento da necessidade, ou seja, à liberdade. O que tudo isso significa é expresso com toda a
clareza por Lotze, em Microcosmo (III2, p. 482): "A ação recíproca das substâncias finitas no mundo só poderá ser
entendida se elas forem partes de uma Substância infinita que as abranja todas em si mesma." Essa noção é freqüente
nas concepções espiritualistas do mundo, não passando de transcrição, em termos mais modernos, da simpatia
universal (v. SIMPATIA) que as concepções mágicas (v. MAGIA) admitiam entre as coisas do mundo. Portanto, não é de
surpreender que Schopenhauer afirmasse que "a ação recíproca não existe", porquanto "ela pressuporia que o efeito é
a causa da sua causa, e que aquilo que segue é, ao mesmo tempo, o que precede" (Über die vierfache Wurzel des
Satzes vom zureichenden Grunde, 1813, § 20).
RECÍPROCO (in. Reciprocai; Converse, fr. Reciproque, ai. Reziprok, it. Reciproco). Em lógica, chama-se de
recíproca a proposição obtida pela conversão da proposição dada, isto é, pela troca entre sujeito e predicado. O termo
latino tradicional para tal proposição é conversa, e foi empregado por Boécio (De syllogismo categórico, P. L., 64,
col. 804; cf. HAMILTON, Lectures on Logic, II, p. 259). Por "inversa"entende-se comumente a negativa de uma
proposição (v. CONVERSÃO).
RECONCILIAÇÃO. V. SÍNTESE
RECONHECIMENTO (in. Recognition; ack-nowledgment; fr. Reconnaissance, ai. Anerkn-nung; it.
Riconoscimentó). 1. Em geral, conhecer algo por aquilo que é. Neste sentido diz-se, p. ex., "Reconheci-o como
ladrão", ou "Reconheço a justiça dessa observação".
2. Um dos aspectos constitutivos da memória, porquanto os objetos lhe são dados como já conhecidos (v. MEMÓRIA).
RECORDAÇÃO. V. MEMÓRIA.
RECORRÊNCIA (in. Recurrence, fr. Récur-rence, ai. Recurrenz; it. Ricorrenzd). 1. Aquilo que volta a acontecer ou
se repete a intervalos regulares ou irregulares. Neste sentido, chama-se de recorrente um acontecimento que se repete mais ou menos do mesmo modo, a intervalos.
2. Designa-se também com este termo o raciocínio reflexivo ou auto-reflexivo que dá origem às antinomias lógicas
(v. ANTINOMIAS).
3. Em matemática a expressão "raciocínio por R." designa o princípio da indução matemática (v. INDUÇÃO
MATEMÁTICA).
RECUSA, GRANDE (in. Great refusal; fr. Grand refus, it. Gran rifiutó). É a recusa da realidade em favor da
imaginação e das possibilidades que ela desvenda em arte. Essa expressão foi empregada com esse sentido por André
Breton no primeiro manifesto dos surrealistas (1924) (Les manifestes du surréa-lisme, 1946). Foi adotada por H.
Marcuse para indicar "o protesto contra a repressão supérflua, a luta pela forma definitiva de liberdade: viver sem
angústia" (Eros and Civilization, 1954, cap. VII). V. UTOPIA.
REDENÇÃO (in. Salvation; fr. Salut; ai. Heil; it. Salvezzd). Libertação de um mal mortal que ameace o corpo ou a
alma do homem. A R. pode ser entendida: l9 como libertação de um mal específico que pese sobre o homem no
mundo; este é o sentido com que o termo é entendido mesmo fora da religião; 2- como libertação do mundo,
entendido como um mal em sua totalidade; portanto, é o rompimento definitivo da cadeia de nascimentos (budismo),
ou libertação de sofrimentos, dores ou punições. Neste sentido, o termo tem significado especificamente religioso (v.
RELIGIÃO).
REDUÇÃO (in. Reduction-, fr. Reduction; ai. Reduktion-, it. Riduzioné). 1. Transformação de um enunciado em
outro eqüipolente mais simples ou mais preciso, ou capaz de revelar a verdade ou a falsidade do enunciado originário.
Fala-se também de "R. da ciência aos termos da experiência imediata" (QUINE, From a Logical Point ofView, II, 5) ou
de R. das extensões às intenções, das classes às propriedades (CARNAP, Meaning and Necessity, §§ 23, 33).
2. Explicação que consiste em considerar que certas ordens de fenômenos estão sujeitas a leis mais bem estabelecidas
ou mais precisas que uma outra ordem de fenômenos; p. ex., a que consiste em considerar que os fenômenos
orgânicos estão submetidos às leis dos fenômenos físicos, enquanto estes últimos estão sujeitos às leis dos fenômenos
mecânicos. (Sobre este tipo de explicação, cf. E. NAGEL, "The Meaning of the Reduction in the Natural Sciences",
1949, em Science and Civilization, ed. R. T. Staufer, 1949, pp. 99-138.)
REDUPUCAÇÃO
837
REFLEXÃO
3- Por R. fenomenológica Husserl entendeu a epoché fenomenológica, que é a neutralização da atitude natural, ou pôr
o mundo entre parênteses (Ideen, 1, §§ 56 ss.). Às vezes, mais particularmente, ele entendeu por R. o momento
positivo da epoché, que é o da reflexão interna sobre o ato, em busca de captar o ato em sua intencionalidade (cf.
especialmente Krisis, 1954, p. 247).
4. Quanto a R. aos princípios, v. RETORNO, 2.
REDUPUCAÇÃO (gr èavaSín^comç; lat. Reduplicatio, fr. Réduplication; it. Reduplicazio-nè). Com este termo, que
significa predicação repetida, eram indicadas em lógica algumas palavras usadas para relacionar o predicado com o
sujeito: como, enquanto, na qualidade de, etc. P. ex.: "o homem, enquanto animal, é mortal". As proposições em que
ocorre a R. chamam-se reduplicativas (ARISTÓTELES, An.pr., I 38 49 a 26; DUNS SCOT, In An.pr., I, 35 em Obras, I, p.
327 a; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, II, 11, 22).
REDUTIBILIDADE, AXIOMA DE. V. ANTINOMIAS.
REFERÊNCIA (in. Reference, fr. Référence, ai. Bericht; it. Riferimentó). 1. Em geral, o ato de pôr um objeto
qualquer em qualquer relação com outro objeto. Neste sentido, esse termo tem um significado bastante amplo: um
mesmo objeto (p. ex., um comportamento) pode referir-se ao seu autor, aos seus efeitos, ao seus fins, às suas
intenções, às suas condições, etc. O sentido específico da R., ou seja, a relação que ela estabelece, é esclarecido ou
sugerido em cada caso pelo contexto.
2. Mais particularmente, chama-se de R. o ato que estabelece uma relação entre o símbolo e o seu objeto, ou seja, o
ato de interpretação (v.). Foram sobretudo Ogden e Richards que difundiram o uso do termo nesse sentido.
Identificaram a R. com o pensamento, e ambos com aquilo que chamaram de significado cognitivo (The Meaning
ofMeaning, 10a ed., 1952, pp. 9 ss.). No âmbito deste significado, os mesmos autores chamaram de referendo
(referend) o veículo ou o instrumento de um ato de R., e de referente (refereni) o objeto a que o ato de R. visa.
REFERENTE. V. REFERÊNCIA.
REFLEXA, AÇÃO. V. AÇÃO REFLEXA.
REFLEXÃO (in. Reflection; fr. Réflexion; ai. Réflexion; it. Riflessioné). Em geral, o ato ou o processo por meio do
qual o homem considera suas próprias ações. Este conceito foi determinado de três maneiras, a saber: Ia como conhecimento que o intelecto tem de si mesmo; 2-como consciência; 3a como abstração.
Ia Mesmo não empregando o termo R., Aristóteles admite o fato óbvio de que o intelecto "pode pensar-se" (De an.,
III, 429, b 9). Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o termo "R.". S. Tomás de Aquino diz: "Ao refletir
sobre si mesmo, o intelecto entende, conforme essa R., tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual
entende" (5. Th., I, q. 85, a. 2). Desse modo, atribui à R. uma função específica porque o intelecto, cujo objeto é o
universal, só pode entender o particular refletindo sobre si mesmo e considerando aquilo de que abstrai o universal
(Ibid., I, q. 86, a. 1). Os escolásticos, porém, não consideravam a R. como fonte autônoma de conhecimento. Isso só
acontece com Locke.
2a Com Locke inicia-se o conceito da R. como consciência. Segundo Locke, a segunda das duas fontes principais (a
primeira é a sensação) de onde o intelecto aufere suas idéias é a R., entendida como "percepção das ações exercidas
por nossa alma sobre as idéias que recebeu dos sentidos: tornando-se o objeto das R. da alma, essas ações produzem
na inteligência uma outra espécie de idéias, que os objetos exteriores não poderiam ter fornecido; tais são as idéias
daquilo que se chama perceber, pensar, duvidar, crer, raciocinar, conhecer, querer, etc." (Ensaio, II, 1, 4). Além
disso, Locke também chama a R. de sentido interno, nada mais sendo, então, que consciência, nome com que foi
freqüentemente chamada pelos filósofos ingleses posteriores. A definição de Vauve-nargues, "R. é o poder de dobrarse sobre as idéias, de examiná-las, de modificá-las ou de combiná-las de maneiras diferentes: ela é o grande princípio
do raciocínio, do juízo, etc." (Intr. ã Ia connaissance de Vesprit humain, 1746, I, 2), bem como a de Leibniz, "a R.
nada mais é que a atenção àquilo que está em nós, enquanto os sentidos não nos dão inteiramente o que já temos em
nós" (Nouv. ess., Avant-propos), têm o mesmo significado: a R. é consciência. Era exatamente com este termo que
Kant a definia: "A R. (reflexio) não visa aos objetos em si para chegar aos conceitos deles; é o estado de espírito em
que começamos a dispor-nos a descobrir as condições subjetivas que nos permitem chegar aos conceitos. Ela é a
consciência da relação entre as representações dadas e as várias fontes de conhecimento" (Crít. R. Pura, Anal. dos
Princ, Anfibolia dos
REFLEXÃO
838
REFLEXIVO/REFLEXIONANTE
conceitos da reflexão). Além disso, Kant distin-guia a R. lógica, que é o simples confronto das representações entre
si, da R. transcendental, dirigida para os objetos, que contém "a razão da possibilidade da comparação objetiva das
representações entre si. O objeto da R. transcendental, portanto, são os conceitos de identi-dade-diversidade, de
concordância-posição, de interior-exterior, de matéria-forma, que representam o fundamento de qualquer possível
confronto entre as representações" (Ibid.). O caráter ativo e criativo da R., que traz à luz a verdadeira natureza daquilo
que se investiga, e portanto produz tal natureza de algum modo, foi um dos pontos fundamentais da filosofia de
Hegel: "Uma vez que, na R., se obtém a verdadeira natureza, e esse pensamento é minha atividade, essa verdadeira
natureza é do mesmo modo produto do meu espírito, isto é, do meu espírito como Sujeito pensante, de mim na minha
simples universalidade, como Eu que é por si mesmo, da minha liberdade" (Ene, § 23). Maine de Biran também
atribuiu à R. uma função metafísica: "Chamo de R. a faculdade que o espírito tem de perceber, num grupo de
sensações ou numa combinação de fenômenos, as relações comuns de todos os elementos com uma unidade
fundamental: p. ex.: de vários modos ou qualidades com a unidade de resistência, de vários efeitos diferentes com
uma mesma causa, de modificações variáveis com o mesmo eu ou sujeito, etc." (Fondements de Ia psychologie, ed.
Naville, II, p. 225). Não é muito diferente o significado que Husserl lhe atribui quando afirma: "Toda cogitatiopode
tornar-se objeto da chamada percepção interna e depois objeto de uma avaliação reflexa, de aprovação ou
desaprovação, etc." (Ideen, I, § 68). Neste sentido, a R. é aquilo que Husserl chama de percepção imanente, que
constitui unidade imediata com o percebido, sendo a própria consciência (Jbid., § 68). Husserl distinguiu também a
R. natural, que se realiza na vida comum, da R. fenomenológica ou transcendental, feita através da epoché (v.)
universal quanto à existência ou à não-existência do mundo (Cart. Med., § 15).
33 O terceiro conceito de R. considera-a como abstração, mais precisamente como abstração falseadora; esse conceito
pertence ao idealismo romântico. Começou com Fichte, que viu na R. o ato com que o eu se considera limitado pelo
objeto: "O Eu tem em si a lei de refletir sobre si mesmo como algo que preenche o infinito. Mas não pode refletir sobre si mesmo e, em geral, sobre nada, se aquilo sobre que reflete não é
limitado. Portanto, o cumprimento desta lei é condicionado e depende do objeto" (Wissenschaftslehre, 1794, § 8).
Como esclarecia Schelling, neste sentido a R. é uma abstração, porque leva a separar o objeto do Eu do próprio Eu,
enquanto, na realidade, o objeto não passa de produto do Eu. "Essa separação entre ato e produto, no uso ordinário da
linguagem, chama-se abstração. Portanto, como primeira condição da R. tem-se a abstração" (System des
transzendentalen Idealismus, III, época III, I; trad. it., p. 179). Quanto a Hegel, ao mesmo tempo em que exaltava
(como se viu) a R. como atividade que não só traz à tona, mas também produz a natureza racional das coisas que
investiga, considerava falseador o intelecto reflexivo. "Por intelecto reflexionante ou reflexivo deve-se entender, em
geral, o intelecto abstrator, portanto separativo, que persiste em suas separações. Fazendo face à razão, esse intelecto
comporta-se como o intelecto humano comum, ou senso comum, e impõe sua visão de que a verdade repousa na
realidade sensível; de que os pensamentos são apenas pensamentos (no sentido de que a percepção sensível lhes dá
substância e realidade) e de que a razão, que permanece em si e por si, nada produz além de sonhos"
(WissenschaftderLogik, Intr.; trad. it., I, p. 27). Em outros termos, a R. caracteriza-se pela separação entre conceito e
realidade, o que é uma falsa abstração; ao mesmo tempo, a razão caracteriza-se pela identidade entre conceito e
realidade. Assim, para Hegel, a filosofia da R. é a do senso comum, cujo ápice está na filosofia de Kant, que afirma a
incognoscibi-lidade da coisa em si.
Na filosofia contemporânea, esse termo é usado principalmente no 2a significado, sendo, portanto, sinônimo de
consciência (nos sentidos 1 e 2 do verbete respectivo), introspecção, sentido interior, observação interior.
REFLEXIBILIDADE (in. Reflectivity, fr. Re-flexivité, ai. Reflectivitat; it. Riflessivita). Caráter da relação não
aliorrelativa, ou seja, tal que um termo possa ter consigo mesmo. P. ex., a relação não maiorqueé reflexiva (v.
RELAÇÀO).
REFLEXIVA, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B).
REFLEXIVO/REFLEXIONANTE E DETERMINANTE (in. Reflecting and determinant; fr. Réflechissant et
determinant; ai. Reflectierend
REFORMA
839
REFUTAÇÃO
und Bestimmend; it. Riflettente e determinante). Juízo determinante e juízo R. são, segundo Kant, os dois
modos de ação da faculdade do juízo (v. JUDICATIVA, FACULDADE). Em geral, ainda segundo Kant, o
juízo é "a faculdade de pensar o particular como conteúdo do geral". Dado o geral (regra, princípio, lei), o
juízo que realiza a subsunção do particular é chamado de determinante. Se, ao contrário, é dado o
particular, o juízo que encontra nele o geral é chamado de R. {Crít. do Juízo, Intr., § IV). "Juízo
determinante" significa juízo que determina ou constitui o objeto: é o que, segundo Kant, faz o juízo
intelectual (considerado na Crít. R. Pura), que forma o objeto empírico unificando o material da
experiência segundo as categorias. Juízo R. significa juízo que já encontra o objeto constituído, devendo,
pois, limitar-se a refletir sobre ele para encontrar o modo de subordiná-lo a uma unidade ou lei
simplesmente subjetiva; como fazem, por um lado, o juízo de gosto (que julga os objetos segundo o
critério de belo) e, por outro, o juízo teleológico, que julga os objetos segundo o critério do fim.
REFORMA (in. Reformation; fr. Reforma-tion; ai. Reformation; it. Riformd). Renovação religiosa
ocorrida na Europa durante o séc. XVI, como retorno às origens do cristianismo. Preparada pelo
humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536), a R. foi iniciada pelo monge agos-tiniano Martinho Lutero
(1483-1546), que, em 1517, afixou nas portas da catedral de Wittenberg noventa e cinco teses contra a
venda das indulgências. Em sua orientação global, a R. protestante apresenta-se como uma das vias de
realização do retorno aos princípios, lema do Renascimento (v.). No domínio religioso, o retorno aos
princípios levava a negar o valor da tradição, portanto da Igreja, que se julgava sua depositária e
intérprete. No texto Contra Henrique VIIIda Inglaterra (1522), Lutero contrapunha à tradição eclesiástica
e a todos os rituais e interpretações por ela acumulados durante séculos o retorno direto à palavra de Jesus
Cristo, concretizada no Evangelho. Segundo Lutero, o ensinamento fundamental do Evangelho é a
justificação por meio da fé, que implica dois corolários fundamentais. 1Q Um deles é a negação do valor
das obras como técnicas religiosas (ritos, sacrifícios, cerimônias), com a redução dos sacramentos aos
mencionados na Bíblia (batismo, penitência e eucaristia), mas sem qualquer supervisão sacerdotal, sendo
eles considerados expressão da relação direta do homem com Deus. Ao culto sacerdotal, Lutero opôs o exercício dos deveres civis, como único
"serviço divino" com valor religioso. 2e O outro é a negação da liberdade humana e o reconhecimento da
predestinação por parte de Deus. A fé é o sinal seguro dessa predestinação, portanto indício de salvação
{De libertate christiana, 1520). Foi este aspecto que deu origem à polêmica entre Erasmo e Lutero: à
Diatribe de libero arbítrio (1524) de Erasmo, Lutero respondeu com De servo arbítrio (1525), em que
insistia no caráter imperscrutável da escolha divina (cf. PREDESTINAÇÃO).
Das outras duas figuras principais da R. protestante, Ulrich Zwinglio (1484-153D e João Calvino (15091564), o primeiro foi bem além de Lutero na negação das formas religiosas tradicionais, atribuindo ao
próprio sacramento da eucaristia valor meramente simbólico e negando a obediência passiva à autoridade
política; o segundo considerou o retorno aos princípios especialmente como retorno à religiosidade do
Antigo Testamento. Em Instituição da religião cristã (publicada em latim em 1536 e em francês em 1541
[essa tradução é o primeiro texto literário da prosa francesa]), Calvino propôs-se efetivamente a mostrar a
unidade do Antigo e do Novo Testamentos, extraindo daquele o princípio de que o bom sucesso nas
atividades da vida é prova evidente do favorecimento de Deus, sinal de sua predileção. Foi esse princípio
que transformou o calvinismo em ética inspiradora da burguesia capitalista emergente, com seu espírito
ativo e agressivo, marcado pelo desprezo por sentimentos e orientado para o bom êxito dos negócios.
REFUTAÇÃO (gr. eteyicoç; lat. Confutato-, in. Confutation; fr. Refutation; ai. Wider-legung; it.
Confutazioné). Método adotado por Sócrates, que consiste em evidenciar a contradição à qual leva a
asserçâo do interlocutor, permitindo, pois, isentar o próprio interlocutor da presunção de saber. Platão
sempre considerou esse procedimento como a propedêutica indispensável da investigação científica {Ap.,
21 a ss.; Men., 84 a-c; Sof, 230 b ss.). Aristóteles definiu a R. como a "demonstração do contraditório"
{El. sof, I, 165 a 2), isto é, como o silogismo que a tem como conclusão (que é assim "refutada"). Para
Aristóteles, as R. {elencos) sofísticas não são verdadeiras R.; suas duas classes (as que utilizam o modo
de exprimir-se
REGIÃO
840
REGULA FIDEI
e as que prescindem dele) são não demonstrações negativas, mas artifícios ou truques verbais cuja finalidade é reduzir
o adversário ao silêncio e de levar a melhor.
REGIÃO (ai. Regiori). 1. Termo empregado por Husserl para indicar "a unidade superior e completa de gênero, à
qual pertence um concreto", ou seja, "a totalidade ideal de todos os indivíduos possíveis de uma essência concreta"
(Ideen, I, § 16). P. ex., "todo objeto empírico concreto insere-se, com sua essência material, num gênero material
superior, numa R. de objetos empíricos" (lbid., § 9)- A natureza é uma região desse tipo (lbid., § 10).
Correspondentemente, Husserl fala de uma "ontologia regional", referente às estruturas de determinada região.
2. O gestaltismo empregou esse conceito com sentido diferente, ligado à noção topo-lógica correspondente (v.
TOPOLOGIA). K. Lewin entende por R.: 1Q tudo aquilo em que um objeto do espaço de vida (p. ex., uma pessoa) tem
lugar ou move-se; 2S tudo aquilo em que se possam distinguir várias posições ou partes ao mesmo tempo, ou que seja
parte de um todo mais amplo. Com base nessa definição, a própria pessoa é uma R. no espaço de vida, e também o
espaço de vida, como um todo, é uma R. (Principies of Topological Psychology, 1936, p. 93).
REGIME (lat. Regimen). Em geral, orientação ou direção; em particular, orientação ou direção do Estado, o governo.
REGRA (lat. Regula-, in. Rule-, fr. Règle, ai. Regei; it. Regola). Chama-se de R. qualquer proposição de natureza
prescritiva. Esse termo é generalíssimo e compreende as noções mais limitadas de norma, máxima e lei. Neste
sentido, Wolff definiu a regra como "uma proposição que enuncia uma determinação em conformidade com a razão"
(Ont., § 475). Kant, analogamente, afirmava.- "Chama-se de regra a representação de uma condição geral à qual certa
multiplicidade pode ser submetida; quando deve ser submetida, chama-se lei") (Crít. R. Pura, 1- ed., Dedução dos
conceitos puros do intelecto, 4). Esse significado generalíssimo continua caracterizando a R. (v. LEI; MÁXIMA;
NORMA).
REGRESSÃO (in. Regression; fr. Regression; ai. Regression; it. Regressioné). Em geral, movimento inverso ou
retorno. Freqüentemente com conotação pejorativa de regresso como movimento oposto ao progresso. Às vezes, foi
chamado de regressivo o método analítico, e de progressivo o método sintético (cf. HAMILTON, Lectures on Logic, II, p.
7). (V. ANÁLISE.)
REGRESSO (it. Ricorsó). Com esse termo, Viço designou o retorno da história sobre seus próprios passos, que se
verifica quando os remédios que a Providência dispõe contra a corrupção dos estados se esgotam ou não agem
eficazmente. O R. consiste em voltar ao estado de selvageria, em retornar aos rigores da vida primitiva, que dispersa e
extermina os homens, até que o pequeno número de homens remanescentes e a abundância das coisas necessárias à
vida possibilitem o renascimento da civilização, novamente com base na religião e na justiça (Ciência nova, 1744,
Conclusão).
REGULADOR (in. Regulative, fr. Régulatif; ai. Regulativ, it. Regolativo). Kant chamou de R. o uso das idéias da
razão pura como regras simples do trabalho intelectual, em oposição ao seu uso constitutivo, em virtude do qual elas
são consideradas constitutivas do objeto da atividade intelectual. "Afirmo que as idéias transcendentais nunca são de
uso constitutivo, tal que por meio delas possam ser dados os conceitos de certos objetos, e que se forem assim
entendidas serão simplesmente conceitos sofísticos (dialéticos). Ao contrário, têm um uso R. excelente e
indispensável, que consiste em dirigir o intelecto para certo objetivo, em vista do qual as linhas diretivas de todas as
suas regras convergem como para um ponto; este, embora nada mais seja que uma idéia (Jocus imaginarius), ou um
ponto do qual, na realidade, não partem os conceitos do intelecto porque ele está fora dos limites da experiência
possível, ainda assim serve para conferir a tais conceitos a maior unidade com a maior extensão possível" (Crít. R.
Pura, Apêndice à dialética, Do uso regulador, etc). (V. IDÉIAS.)
REGULA FIDEI. 1. Com esta expressão designa-se em teologia a regra que determina o objeto da fé, o conteúdo
autêntico da revelação. Na filosofia patrística e escolástica, foi adotado como regra desse tipo o "Símbolo dos
Apóstolos" (Symbolum Apostolorum), que compreendia, além do conteúdo da Bíblia, também o conjunto da tradição
eclesiástica (decisões conciliares e papais, opiniões dos escritores aprovados pela Igreja, etc.) (cf. M. GRABMANN, Die
Geschichte der scholastischen Methode, I, pp. 76 ss.). Essa regra continuou válida para o cristianismo católico, mas o
cristianismo protestante limitou-a ao conteúdo da Bíblia. A dife-
REGULARIDADE
841
RELAÇÃO
rença entre catolicismo e protestantismo gira precisamente em torno da diferença da regula fidei (v. REFORMA).
2. Com a mesma expressão designa-se às vezes o princípio segundo o qual a fé é a regra da verdade. É assim em S.
Tomás de Aquino: "Uma vez que a fé se baseia na verdade infalível, e como é impossível demonstrar o contrário do
verdadeiro, é evidente que os argumentos aduzidos contra a fé não são demonstrações, mas argumentos refutáveis"
(S. Th., I, q. 1, a. 8).
REGULARIDADE (in. Regularity, fr. Régu-lanté, ai. Regelmássigkeit; it. Regolaritã). Em geral, conformidade com
a regra. Kant viu na R. a condição ao mesmo tempo do pensamento e da realidade: "A R. que conduz ao conceito de
um objeto é a condição indispensável (conditio sine qua nori) para perceber o objeto numa única representação e
determinar a multiplicidade em sua forma" (Crít. do Juízo, § 22, nota). Kant considera a própria natureza em geral
como "R. dos fenômenos no espaço e no tempo" (Crít. R. Pura, § 26) (v. NATUREZA).
REIFIGAÇÃO (fr. Réification; ai. Verdingli-cbung; it. Reificazioné).Termo empregado por alguns escritores
marxistas para designar o fenômeno, ressaltado porMarx, de que, na economia capitalista, o trabalho humano torna-se
simples atributo de uma coisa: "A magia consiste simplesmente em que, na forma de mercadoria, devolvem-se aos
homens, como espelho, as características sociais de seu próprio trabalho, transformadas em características objetivas
dos produtos desse trabalho, na forma de propriedades sociais naturais das coisas produzidas; portanto a mercadoria
espelha também a relação social entre produtores e trabalho global, como relação social de coisas existentes fora dos
próprios produtos. Por meio desse quidpro quo os produtos do trabalho tornam-se mercadorias, coisas sensivelmente
supra-sensíveis, isto é, sociais" (Das Kapital, I, I, § 4). O termo R. para indicar esse processo foi usado e difundido
por G. Lukács (cf. Geschichte undKlassenbewusst-sein, 1922; trad. fr., 1960, pp. 110 ss.).
REINO (lat. Regnum; in. Realm; fr. Royau-me, ai. Reich; it. Regnó). Termo introduzido na filosofia por Bacon para
indicar o domínio do homem sobre a natureza (cf. o título da primeira parte do Novum Organum. "Aforismos sobre a
interpretação da natureza e sobre o R. do homem"). Leibniz usou esse termo com sentido diferente, como domínio ou
campo de validade
de um princípio, e falou de um "R. físico da natureza" e de um "R. moral da graça" (Monad., § 87). No mesmo
sentido, Kant falou de um R. dos fins (v. FINS), de um R. da liberdade (cf. Religíon, 11, seç. II), de um R. da graça e
de um R. da natureza (Crít. R. Pura, Doutrina transe. do método, cap. 11, seç. II). Mais recentemente, Santayana
empregou esse termo com significação semelhante (Realms ofBeing, 4 vols.: The Realm of Essence, The Realm of
Matter, The Realm ofTruth, The Realm of Spirit, 1927-40).
REINO DOS FINS. V. FINS.
RELAÇÃO (gr. TO Ttpóç; lat. Ad aliquid, Re-latio-, in. Relation; fr. Relation; ai. Relation-, it. Relazioné). Modo de
ser ou de comportar-se dos objetos entre si. Esta definição não passa de esclarecimento verbal do termo, que não pode
ser definido em geral de outro modo, ou seja, fora das interpretações específicas que os filósofos lhe deram. Esta é,
aliás, a definição retificada que Aristóteles deu da R.: como aquilo "cujo ser consiste em comportar-se de certo modo
para com alguma coisa" (Cat., 7, 8 a 33), o que coincide substancialmente com a definição de Peirce: "R. é um fato
em torno de certo número de coisas" (Coll. Pap., 3-416).
Os dois problemas fundamentais oriundos do conceito de R., de cuja solução dependem as determinações do próprio
conceito, são os seguintes: ls Devem ser consideradas incluídas, no conceito de relação, as determinações substanciais
(essenciais ou qualitativas), ou tais determinações devem ser excluídas do conceito? 2- As R. constituem entidades
reais ou são apenas realidades mentais? Esses problemas, obviamente, são interdependentes, e com base nas respostas
interligadas que lhes foram dadas ao longo da história é possível distinguir três doutrinas fundamentais: A) a que
admite a objetividade e a realidade das R.; S) a que nega a realidade e a objetividade das R.; Ô a que admite a
objetividade das R., mas não sua realidade.
A) Platão certamente admitiu a objetividade das R., mas é duvidoso que admitisse sua realidade: "Creio que admites
que, de alguns dos entes, se deve dizer que são unicamente por si, enquanto, de outros, que estão sempre em relação
com outros" (Sof., 255 c-d). No entanto, os entes em R., assim como o diferente e o idêntico, não são o ser (Ibid., 255
c-d): isso também poderia significar que eles não têm existência ou realidade como tais. A doutrina de Aristóteles é
igualmente confusa neste pon-
RELAÇÃO
842
RELAÇÃO
to. Ele distinguiu três espécies de R.: Ia as quantitativas, como as expressas por dobro, metade, etc; 2a as potenciais,
que consistem numa potência ativa ou passiva, como ser causa ou causado, cortar ou ser cortado, etc; 3 a as R. que têm
termo num objeto real, como a medida com respeito ao mensurável, o conhecimento com respeito ao cognoscível, a
sensação com respeito ao sensível {Met., V, 15, 1020 b 25). A Ia espécie já parece implicar a existência de R. reais (as
da 2a e da 3a espécies); na realidade, o próprio Aristóteles diz que "algumas R. acham-se necessariamente dentro ou
em torno das coisas às quais se referem", e que "tal é o caso da simetria, da propriedade e da disposição" {Top., IV, 4,
125 a 33). No entanto, boa parte do capítulo das Categorias dedicado às R. discute o problema de saber se entre as R.
há substâncias; a conclusão, embora não categórica, é negativa: certamente não há substâncias primeiras entre as R., e
também é difícil dizer que as substâncias segundas sejam R. {Cat., 7, 8 b 15). Além disso, um dos argumentos
aduzidos por Aristóteles contra a doutrina das idéias é o fato de que ela levaria a admitir a realidade das R.: "A R. não
é sobretudo natureza ou substância; vem depois da qualidade e da quantidade e é, antes, uma determinação da
quantidade, como se disse, mas não matéria" {Met., XIV, 1, 1088 a 21). Neste caso, Aristóteles considera,
evidentemente, apenas as R. da Ia espécie, mas a sua afirmação não é condicionada por qualquer limitação. Não
admira, portanto, que depois tenham recorrido a Aristóteles tanto os que afirmavam quanto os que negavam a
realidade das R. Plotino reproduz a doutrina de Aristóteles com as mesmas confusões {Enn., VI, 1, 6). A escolástica
cristã estilizou-a na distinção entre R. de razão, R. potencial e R. real, o que corresponde exatamente às espécies
distintas por Aristóteles. Mas, por motivos teológicos, a escolástica cristã tinha interesse em admitir a realidade das
R., utilizando esse conceito para esclarecer o dogma da trindade; essa era a tese defendida por S. Tomás de Aquino
contra "os que afirmaram não ser a R. coisa de natureza, mas somente de razão", o que ele declarou falso porque "as
coisas têm uma ordem ou uma disposição natural umas com respeito às outras" (5. Th., I, q. 13, a. 7). Com base nisso,
S. Tomás de Aquino reexpôs as distinções de Aristóteles, defendendo o caráter real das R. em que consistem a
ciência e a sensibilidade, porquanto tais R. "são ordenadas para conhecer e perceber as coisas" (Ibid.). As R. de razão são somente aquelas em que ambos os termos são entes de razão; são
as R. existentes "quando a ordem ou a disposição só pode existir segundo a apreensão da razão, como no caso de se
afirmar que uma coisa é idêntica à outra" {Ibid.X
Mas afirmar a realidade das R. significa privilegiar certo tipo de R., moldando todas elas de acordo com a segunda e a
terceira espécie de Aristóteles; mais precisamente, significa considerar qualquer tipo de R. como uma potencialidade
ou disposição, ou como uma condição ou um estado dos termos relativos. No fim do séc. XIII, Duns Scot insistiu
nessa natureza da R., propondo a doutrina da R. como res-pectus, termo que pretende traduzir a palavra grega a%éaiç
(usada, por exemplo, por SIM-PLÍCIO, Ad Cat., 61 B) e significa disposição. O principal argumento aduzido por Scot
em favor de sua teoria era que, a não se admitir tal respectus, não é possível compreender a composição dos entes,
visto que, se a união de a e b não passa de a e b absolutos, o composto de ae b em nada difere de a e b separados,
logo não é um composto {Op. Ox., II, d. 1, q. 4, n. 5). Essa doutrina foi adotada por todos os escritores escotistas, mas
combatida por Ockham e pelos nominalistas e terministas do séc. XIV (ver mais adiante). No séc. XVII, Jungius
ainda recorria a tal doutrina, considerando a R. como habitudo ou respectus {Lógica hamburgensis, I, 8, 4). Em época
recente, o problema das R. foi tratado de modo semelhante ao de Duns Scot por F. H. Bradley, que mostrou que as R.
só podem ser entendidas como atributos do relativo, consistindo portanto numa qualidade ou modificação dos termos
relativos. Seja como for, a relação é incompreensível porque só faz predicar o idêntico com o diferente e o diferente
com o idêntico {Appearance and Reality, 1902, 2a ed., pp. 21 ss.). Essa doutrina, conhecida como "doutrina das R.
internas", foi combatida especialmente pelos lógicos matemáticos.
B) A segunda doutrina fundamental das R. nega sua objetividade e realidade, considerando-as acidentais ou
subjetivas. Foi proposta pela primeira vez por Avicena, que reproduzia um ponto de vista defendido pela seita maometana motakallimum, valendo-se de teses aristotélicas análogas. Avicena dizia: "Ao afirmar-se que uma R. existe,
imediatamente é preciso dizer que ela é um acidente, porque não há dúvida de que não pode ser entendida
RELAÇÃO
843
RELAÇÃO
por si, mas sempre de algo com respeito a algo" (Met., III, 10). Afirmar o caráter acidental das R.
eqüivalia, para Avicena, a negar sua realidade, uma vez que, como acidentes, as R. não são substâncias.
Quando essa doutrina foi retomada pelos filósofos nominalistas e terministas, no séc. XIV, assumiu a
forma de redução da R. a pura "entidade de razão", destituída de realidade ou fundamento fora da alma
humana. Tal é a doutrina sustentada por Henrique de Gand (Quodl, IX, q. 3; V. q. 6), por Herveus Natalis
(Quodl., I, q. 9) e por Pedro Auréolo. Este último afirmava: "A R. não tem existência nas coisas,
prescindindo de apreensão intelectivo-sensível, mas existe subjetivamente apenas na alma, porquanto nas
coisas só há fundamentos e termos: o hábito e a conexão das coisas deriva da alma cognoscitiva" (In
Sent., I, d. 30, q. 1). Este foi também o ponto de vista defendido por Ockham, que instituiu uma crítica
minuciosa da doutrina do respectus. Segundo ele, esta doutrina multiplicaria as entidades ao infinito:
"Com o movimento do meu dedo, eu encheria todo o universo, o céu e a terra de novos acidentes, pois
que, mudando a posição do dedo com respeito às outras partes do céu haveria outros tantos novos
respectus nessas partes, que são infinitas, portanto haveria infinitos novos acidentes" (Quodl, VII, q. 8; In
Sent., II, q. 2, Y). Todo corpo conteria, por motivos análogos, infinitas realidades, uma vez que todo
corpo pode ser considerado duplo com respeito à sua metade, e esta metade pode ser considerada o dobro
de sua metade, e assim por diante (Quodl, VI, q. 10; Summa log.,
I, 50). No entanto, Ockham não afirma o caráter puramente mental das R., como fizera Avicena (v.
abaixo). Essa doutrina reapareceu no âmbito do cartesianismo. Foi defendida por Locke, que considerou
as R. como idéias complexas, que consistiriam em "considerar e confrontar uma idéia com a outra"
(Ensaio, II, 12, 7), e reconheceu explicitamente o caráter subjetivo delas, embora não excluísse a alusão
às coisas. "Uma vez que os modos mistos e as R. não têm outra realidade além da que possuem no
espírito humano, para tornar real essa espécie de idéias só é preciso que elas sejam forjadas de tal maneira
que haja possibilidade de existência em conformidade com elas" (Ibid.,
II, 30, 4). Por sua vez, Leibniz afirmava que as R. têm realidade mental ou fenomênica (Nouv. ess., II,
12.7) e que, por conseguinte, "têm uma realidade dependente do espírito, tais como as
verdades, mas não do espírito dos homens, porque há uma inteligência suprema que as determina em
todos os tempos" (Ibid., II, 30, 4). Em conformidade com este mesmo conceito, Wolff definia a R. como
"aquilo que não convém à coisa de maneira absoluta, mas que só é entendida quando se refere a outra
coisa" (Log., § 856); e completava: a R. "não acrescenta nenhuma realidade ao ente" (Ibid., § 857). A
subjetividade das R., além disso, é o princípio fundamental do kantismo: "Se suprimíssemos nosso sujeito
ou mesmo apenas a natureza subjetiva dos sentidos em geral, toda a natureza. todas as R. entre os objetos
no espaço e no tempo, aliás, o espaço e o tempo mesmo desapareceriam" (Crít. R. Pura, § 8). Nesse
mesmo princípio (aduzido na maioria das vezes de maneira implícita) baseia-se boa parte da filosofia
contemporânea.
O A terceira concepção fundamental considera que as R. não são reais, mas são objetivas. Ockham, que
foi o mais resoluto crítico da realidade das R., afirmara também, a seu modo, seu caráter objetivo: "Não é
o intelecto que torna Sócrates semelhante a um outro, assim como não é o intelecto que o torna branco"
(In Sent., I, d. 30, q. 1, P); isso significa que a relação, como intenção ou conceito da alma, refere-se a
várias coisas isoladas ou é várias coisas isoladas, "assim como o povo é vários homens e nenhum homem
é povo" (Ibid.). No entanto, nestas afirmações, assim como nas de Locke e de outros que insistiam na
referência objetiva da R. (como conceito ou idéia), tal referência é entendida como referência à realidade.
A característica da doutrina moderna, nesse sentido, é que a objetividade da R. não implica sua realidade,
ou seja, reconhecer que a R. é objetiva não implica que em todos os casos ela ocorra entre coisas ou
entidades reais. Este sentido da R. está intimamente ligado ao sentido que o ser predicativo assumiu na
lógica contemporânea (v. SER). Desse ponto de vista a matemática e a lógica foram definidas como
"ciências das R." (v. LÓGICA; MATEMÁTICA). Em particular, no que diz respeito à lógica, pode-se dizer
que tanto o cálculoproposicional quanto o de classes versam exclusivamente sobre R., porquanto são R.
os conectivos (e, ou, não, se... então) de que trata o cálculo proposicional e as entidades de que trata a
álgebra das classes. Contudo, o cálculo das R. também constitui um ramo específico da lógica
contemporânea, ramo cujos avanços se devem espe-
RELAÇÃO
844
RELATIVIDADE, TEORIA DA
cialmente a E. Schrõder (Álgebra der Logik, 1895) e a Peirce (The Logic ofRelatives, 1897, Coll. Pap., 3.456-526).
Neste sentido restrito, entendem-se por R. as funções proposicionais diádicas ou poliádicas (com duas ou mais
variáveis), que são escritas na forma f(x, y) ou, mais freqüentemente, xRy. As características mais gerais da R. neste
sentido são as seguintes:
Ia Se 7? ocorre não só entre xe y, mas também entre y e x, diz-se que é simétrica. É simétrica, por exemplo, a relação
entre dois irmãos. Caso contrário, é chamada de assimétrica. As R "antes", "depois", "à esquerda" são assimétricas.
2- Se R é tal que, quando x tem R. R com y e y tem R. R com z, também x tem a R. R com z, chama-se transitiva. São
transitivas as R. "menor", "precede", "à esquerda"; é intransitiva a R. de paternidade.
3a Se R é tal que nenhum termo está em R. R consigo mesmo, a R. é chamada de aliorre-lativa. São aliorrelativas as
R. "irmão", "marido", "pai", etc.
4-Se Ré tal que, dados dois termos diferentes do campo, x e y, pode ocorrer entre x e y ou entre ye xou entre xe ye
entre y e x, a R. é chamada de coerente. É coerente a R. "maior ou menor"; não é coerente a R. "antepassado".
5a O termo x que tem R. i? com um ou mais termos (y, z...) chama-se dominante, enquanto são chamados de
dominantes inversos os termos com que o termo x tem a R. R, quais sejam, os termos y, z, etc. Na R. de
"paternidade", pai é dominante, "filhos" são dominantes inversos.
6a O campo de uma R. consiste no conjunto do dominante e dos dominantes inversos. No caso da R. de paternidade, o
campo é o conjunto pai-filhos.
7a Diz-se que uma R. implica outra se esta é válida sempre que a primeira é válida.
Essas noções elementares definem a natureza objetiva, conquanto não real, das R., na forma constantemente
empregada pela lógica e pela matemática contemporâneas. Trata-se de características que generalizam ao máximo a
noção de R., permitindo incluir nela e esclarecer com ela os conceitos mais díspares (cf. WHITEHEAD e RUSSELL,
Principia mathematica, vol. I, 1925). Para uma exposição sumária da noção das R. em função dos conceitos
fundamentais da matemática, cf. RUSSELL, Introduc-tion to Mathematical Philosophy, 1918; trad. it., 1947. Quanto
aos aspectos matemáticos, cf. W.
v. O. QUINE, Methods of Logic, 1942, especialmente o § 40.
RELAÇÃO DE COISAS. V. ESTADO DE COISAS.
RELACIONAL(in. Relational; ai. Relationnel; it. Relazionale). O que é uma relação ou diz respeito a uma relação. O
adjetivo exclui o significado relativista que pode ter o termo relativo (v.). Portanto, é preferido pelos filósofos que,
mesmo insistindo na importância da relação, não pretendem chegar a conclusões re-lativistas. Nesse sentido, N.
Hartmann distinguiu relacionalidade de relatividade: p. ex., os valores estão em relação com o homem e com seu
mundo sem perder sua absolutidade irrelativa (Ethik, 1949, p. 140). O termo rela-cionismo(relazionismo) foi usado
na Itália para indicar uma filosofia que considera a relação como fenômeno essencial do universo e do homem, mas
sem implicações relativistas (cf. E. PACI, DalVesistenzialismo ai relazionismo, 1957, p. 45 e passim).
RELATIVIDADE, TEORIA DA (in. Theory of relativity, fr. Théorie de Ia relativité; ai. Relativitátstbeorie, it.
Teoria delia relativitã). Com este termo designam-se dois corpos de doutrinas formuladas por Einstein: o primeiro
em 1905 como o nome de R. restrita e o segundo em 1913 com o nome de R. geral. A R. restrita baseia-se no
reconhecimento de que a escolha de um sistema de referências, indispensável para fazer medições, pode influenciar
os resultados dessas medições; e que, não existindo um sistema de referências privilegiado (ou "absoluto"), à
diferença do que julgara a física clássica, por um lado é preciso explicitar o sistema segundo o qual é feita a medição
e por outro lado é necessário encontrar fórmulas de conversão que tornem válidas tais medições também em outros
sistemas. A R. geral é substancialmente a extensão do princípio de R. a todos os sistemas, e não apenas aos sistemas
inerciais para os quais é válida a R. restrita; assim, é substancialmente uma teoria que recluz a gravitação a uma
deformação do contínuo quadrimen-sional do espaço-tempo (cf. A. EINSTEIN, L. INFELD, The Evolution of Physics,
1938, trad. it., 1950; quanto à bibliografia, o volume dedicado a Einstein na coleção "Living Philoso-phers" de
Schilpp, 1949).
A teoria da R. teve numerosas interpretações filosóficas. Uma delas é a relativista, que a entendeu como confirmação
do relativismo filosófico (cf., p. ex., A. ALUOTTA, Relativismo, idealismo e
REIATTVISMO
845
REIATIVISMO
teoria de Einstein, 1948). Outra é a idealista ou espiritualista, defendida especialmente por A. Eddington {The Nature
of the Phisical World, 1928; The Philosophy ofPhysical Science, 1939), mas na realidade a teoria da R. presta-se
muito menos a interpretações filosóficas do que as teorias clássicas. A relatividade de que ela fala nada tem a ver com
o relativismo: uma medida por certo é relativa, não ao homem nem ao sujeito cognoscente, mas ao sistema de
referência, podendo também ser expressa com base em outros sistemas. Tampouco se pode dizer que a teoria da R.
seja mais subjetivista ou idealista que a física clássica. A lição mais importante que a filosofia pode aprender com ela
diz respeito ao método, e pode ser inferida das seguintes palavras de Einstein: "Para o físico, um conceito só tem
valor quando é possível estabelecer se ele convém ou não. Portanto, precisamos de uma definição da simultaneidade
que forneça o método para reconhecer por meio de experiências se dois relâmpagos foram simultâneos ou não.
Enquanto essa condição não se realizar, eu, como físico (e também como não físico), estarei me iludindo se achar que
posso atribuir significado à expressão de simultaneidade" {Uberdiespazielle und die allgemeine Relativitütstheorie,
1917, § 8; trad. it., p. 18). Essas palavras expressam a exigência geral de que, para ser válida, qualquer proposição
deve poder ser confirmada ou comprovada por métodos hábeis (v. SIGNIFICADO). RELATIVISMO (in. Relativism;
fr. Relati-visme; ai. Relativismus; it. Relativismus). Doutrina que afirma a relatividade do conhecimento, no sentido
dado a esta expressão no séc. XIX, a saber: le como ação condicionante do sujeito sobre seus objetos de
conhecimento; 2e como ação condicionante recíproca dos objetos de conhecimento. Este condicionamento duplo dos
objetos de conhecimento foi primeiramente tomado como fundamento do R. por W. Hamilton, que, por um lado,
insistia no fato de que todos os objetos existentes podem ser conhecidos apenas em relação com as faculdades
humanas e em condições ditadas por essas mesmas faculdades {Lectures on Metaphysics, 1, 1870, 5a ed, p. 148), e,
por outro, na con-dicionalidade que os objetos de conhecimento exercem uns sobre os outros {Discussion on
Philosophy, 1852, p. 13). Com base nesses dois pontos (que nada tinham de original, pois podem ser facilmente
reconhecidos como as teses mais genéricas do empirismo e do criticismo), Hamilton afirmava, ao mesmo tempo, a incognoscibilidade e a existência do Absoluto, uma vez que se pode crer também naquilo que não se conhece
{Lectures, cit., II, pp. 530-531). Essas teses foram utilizadas como apologética religiosa por E. L. Mansel {Philosophy
of the Conditioned, 1866). Mas o principal responsável por sua difusão foi o positivismo, pois Spencer aceitava o
ponto de vista de Hamilton, admitindo a relatividade do conhecimento humano, a incognoscibilidade do Absoluto e
sua existência {First Principies, 1862, §§ 23 ss.).
Fora do positivismo, o R. foi aceito por algumas correntes do neocriticismo e do pragmatismo. No neocriticismo, E.
Renouvier {Essais de critique générale, 1854-64) insistiu na relatividade do fenômeno, que só subsiste em relação
com outros fenômenos e em relação com o sujeito cognoscente {Essais, I, pp. 50 ss.); G. Simmel afirmava que "o R.
pode ser afirmado da seguinte maneira, com referência aos princípios do conhecimento: os princípios constitutivos
fundamentais, que expressam definitivamente a essência das coisas, tornam-se princípios reguladores, que são apenas
pontos de vista para o progresso do conhecimento" {Philosophie des Geldes, 1900, p. 68). No âmbito do
pragmatismo, o R. era defendido por F. E. S. Schiller; desse ponto de vista, era a negação das verdades "absolutas" ou
"racionais" e o reconhecimento de que a verdade é sempre relativa ao homem, é válida porque útil a ele; por isso,
Schiller via no ditado de Protágoras "o homem é a medida de todas as coisas" a maior descoberta da filosofia {Studies
in Humanism, 1902, pp. X ss.). A sofistica antiga, o ceticismo e (em parte) o empirismo e o criticismo tornavam-se,
desse ponto de vista, manifestações de um R. que buscava precedentes e tentava criar tradição. Na realidade, porém, o
R. foi um fenômeno moderno, ligado à cultura do séc. XIX, e constituiu uma espécie de subversão da filosofia
dogmática do séc. XX. Isso pode ser notado com certa facilidade na manifestação extrema (a única autêntica) do R.,
que é a doutrina exposta por O. Spengler em seu livro A decadência do Ocidente (1918-22), em que se afirma não só
a relatividade do conhecimento, mas também de todos os valores fundamentais da vida humana nas épocas da história
consideradas como entidades orgânicas, cada uma das quais cresce, desenvolve-se e morre sem relação com a outra.
Segundo esse ponto de vista, a relatividade está não só na verdade reli-
RELATIVO
846
RELIGIÃO
giosa e filosófica, mas também na verdade moral e científica. "Cada cultura" — dizia Spengler — "tem seu próprio
critério, cuja validade começa e termina com ela. Não há moral humana universal" (Der Untergang des Abendlandes,
I, cap. I, p. 55).
Nesta forma, que é a única rigorosamente coerente, o R. afirma a relatividade dos valores somente porque considera
necessária a relação entre eles e a época histórica à qual pertencem, negando-lhes a possibilidade de serem relativos a
outros homens, a outras épocas ou a outras circunstâncias, obtendo assim uma autonomia parcial que desmentiria o R.
Esse mesmo ponto de vista é defendido com freqüência naquilo que hoje se chama de R. cultural, que parte do
reconhecimento da diversidade dos costumes e das normas vigentes em culturas diversas. Esse R. tem raízes remotas
(Heródoto, Protágoras e Discursos duplos, texto de inspiração sofista, talvez da primeira metade do séc. IV a.C), mas
hoje se apoia no reconhecimento quase universal da pluralidade e da heteroge-neidade das culturas. Em sua forma
extrema, foi defendido por Herskovits (CulturalAnthro-pology, 1955); a respeito, v. o volume coletivo Relativism and
the Study of Man, org. por SCHOECK e WIGGINS, 1961).
RELATIVO (lat. Relativus; in. Relative, fr. Relatif ai. Relativ, it. Relativo). 1. Aquilo que participa de uma relação
ou desempenha a função de termo numa relação. Neste sentido, diz-se "o fenômeno x é relativo a y como causa".
2. Termo que não tem significado, ou que não tem significado exato, a não ser em referência a outro termo. Neste
sentido "maior", "menor", "duplo", etc. são R. porque são sempre citados com referência a alguma outra coisa.
3. Aquilo que vale somente em determinadas circunstâncias ou condições e não vale fora delas. Neste sentido, diz-se
que o conhecimento é R. ou que os valores são R., e que o oposto de R. é "absoluto" ou "incondicionado".
4. O que é relação ou concerne a uma relação. Neste sentido, diz-se, p. ex., que "o conhecimento é R.", "significando
que ele consiste em estabelecer relações entre dados. Contudo, neste caso, o adjetivo relacionai (v.) é mais
apropriado.
5. Como substantivo, o termo é usado por Schrõder (Álgebra derLogik, 1895) e por Peirce (Coll. Pap., 3.456.526:
"The Logic of Relatives", 1897), sendo sinônimo de relação.
RELEVANTE (in. Relevant; fr. Relevant; ai. Be-deutend; it. Rilevantè). Chama-se de R. a um
enunciado significante, especialmente se for importante para o significado total do contexto em que se acha. Às vezes
também são chamados de R. os elementos de fato, importantes para o juízo de determinada situação.
RELIGIÃO (lat. Religia, in. Religion; fr. Religion; ai. Religion; it. Religioné). Crença na garantia sobrenatural de
salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia religiosa é sobrenatural, no sentido de
situar-se além dos limites abarcados pelos po-deres do homem, de agir ou poder agir onde tais poderes são impotentes
e de ter um modo de ação misterioso e imperscrutável. A origem sobrenatural da garantia não implica
necessariamente que ela seja oferecida por uma divindade e que, portanto, a relação com a divindade seja necessária à
R.: na realidade, existem R. ateístas, como o budismo primitivo, retomado e defendido neste seu caráter por escolas
posteriores (cf. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação do
homem com a divindade, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em
relação ao homem e ao mundo sempre foi atribuída mais à filosofia que à R.; o cumprimento dessa tarefa pode até ter
caráter anti-religioso, como aconteceu no epicurismo, que pretendeu estabelecer ao mesmo tempo a existência da
divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens, regulando com base nisso as relações da divindade e do
homem. (EPICURO, Carta a Meneceu, 123-24; FILODEMO, De pietate, p. 122; fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje,
para alguns teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de fé, e não de R., porque não depende das formas
míticas que a R. assumiu e é constitutiva da existência humana no mundo (v. FÉ; DEUS; DEUS, MORTE DE).
Em qualquer caso, a salvação de que a R. pretende ser garantia não se refere necessariamente a este ou aquele mal do
mundo: pode inclusive significar livrar-se do mundo, já que este é considerado um mal em sua totalidade, como de
fato acontece no próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém sublinhar a diferença entre a crença na
garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou conservar tal garantia. Por técnicas entendem-se todos os
atos ou práticas de culto: oração, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia
sobrenatural é a atitude religiosa fundamental, poden-
RELIGIÃO
847
RELIGIÃO
do ser simplesmente interior e pessoal (religiosidade individual); ao contrário, as técnicas destinadas a
obter e conservar essa garantia constituem o lado objetivo e público da R., seu aspecto institucional. Uma
R. natural é constituída simplesmente por essa atitude; uma R. positiva é constituída essencialmente por
essas técnicas.
O conceito de R. compreende ambos os aspectos. Etimologicamente, essa palavra significa
provavelmente "obrigação", mas, segundo Cícero, derivaria de relegere. "Aqueles que cumpriam
cuidadosamente todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados
de religiosos — de relegere —, assim como elegantes vem de elegere, diligentes de diligere e inteligentes
de intelligere, de fato, em todas essas palavras nota-se o mesmo valor de legere, que está presente em R."
{De nat. deor., II, 28, 72). Para Lactâncio {Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho {Retract., I, 13), porém, essa
palavra deriva de religare, e a propósito Lactâncio cita a expressão de Lucrécio "soltar a alma dos laços
da R." {De rer. nat., I, 930).
Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato da palavra latina e moderna. Aaxpeía
significa serviço divino; portanto, refere-se apenas ao segundo dos elementos da R. S. Agostinho {De civ.
Dei, X, 1) estabelecia a correspondência entre religio e 9pT|07ceía, mas também esta palavra se refere
exclusivamente às técnicas da R.
As diferentes definições até hoje feitas de R. podem ser classificadas com base nos dois problemas
fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da R., que na realidade é
o problema do tipo de validade da R.; II. Com base no problema da função atribuída à R., ou seja, o
caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem.
I. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na realidade em saber que tipo
de validade se pretende atribuir à R. É possível distinguir três soluções para este problema, a saber: Ia a
doutrina da origem divina da R.; 2a a doutrina da origem política; 3a a doutrina da origem humana da
religião.
Ia A doutrina da origem divina expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da R. É óbvio
que a pretensão de ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer R., já que todas elas
afirmam ter como fundamento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições com
que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto,
do ponto de vista da filosofia, o reconhecimento da origem divina ou do valor absoluto da R. concretizase na tese de que a R. é revelação. Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófica do
valor absoluto que a R. se atribui. Esse ponto de vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: "No
conceito da verdadeira R., que é aquela em que está contido o Espírito absoluto, está posto essencialmente
que ela é revelada, e revelada por Deus" {Ene, § 564). E acrescenta que "se a Deus for negada a
revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas, se é que a palavra espírito tem
sentido, significa a revelação de si" {Ibid., § 564). Não é diferente deste o conceito que Schleiermacher
tinha de R: "O universo é uma atividade ininterrupta que se nos revela a todo momento. Todas as formas
que ele produz, todos os seres aos quais dá, pela plenitude da sua vida, uma existência particular, todos os
acontecimentos que ele gera em seu seio sempre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce
sobre nós; assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa finita como expressão
do Infinito, consiste a R." {Reden über dieReligion, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar essa
mesma doutrina afirmando que a R. é a experiência do divino e que, como toda experiência, revela a
realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha da R. autêntica, ou seja, o misticismo: "Se
as semelhanças exteriores entre os místicos cristãos dependem de uma comunidade de tradições e de
ensinamentos, seu acordo profundo é sinal de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira
mais simples pela existência real do ser com o qual acreditam estar em comunicação" {Deux sources, III;
trad. it., pp. 270-71).
2a A doutrina da origem política reduz a R. a um estratagema político: portanto, anula seu valor
intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, "os
antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou
más, a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por medo da vingança dos deuses". Esse
estratagema foi necessário porque "as leis realmente dis-
RELIGIÃO
848
RELIGIÃO
suadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as cometiam às escondidas", de tal maneira que "algum
homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os malvados se sentissem amedrontados mesmo
no que fizessem, dissessem ou pensassem às escondidas" (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 54). Concepções
análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia: podem ser reconhecidas no libertinismo e em algumas
correntes do iluminismo e do marxismo.
3a A doutrina da origem humana considera a R. como formação humana, cujas raízes estão na situação do homem no
mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à R. determinada validade, mas sim em compreendê-la como
fenômeno humano e expressá-la num conceito suficientemente amplo para abranger todas as suas manifestações mais
díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O primeiro considerou a religião como uma
forma de satisfação da necessidade teorética, ou seja, de conhecimento. O segundo considerou que a R. é sugerida ao
homem pela situação em que ele se encontra no mundo, substancialmente por suas necessidades práticas. Solução do
primeiro tipo encontra-se em Epicuro, para quem a origem da R. está nas imagens oníricas e na necessidade humana
de explicar a regularidade dos movimentos celestes (LUCRÉCIO, De rer. nat., V, 1167 ss.). A R. seria mais
contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática; citando as palavras de Estácio
"Primus in orbe deosfecit timor" ( Theb., III, 66l), Hobbes afirmava que a principal causa do aparecimento da R. é o
temor que nasce da incerteza do futuro: "Por ser inegável que existem causas para todas as coisas que existem ou
existirão, é impossível, para o homem que tenta prevenir-se contra os males que teme e obter os bens que deseja,
deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal maneira que todos os homens, sobretudo os mais
previdentes, vivem num estado semelhante ao de Prometeu." É desse estado de temor, bem como da esperança de
garantir os bens de que necessita e do desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que, segundo Hobbes,
nasce a R. (Leviath., I, 12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por
Humeera História natural da religião (1757). A R. não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos
acontecimentos da vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso entre a vida e a
morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas
os bens de que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado (Natural History of Religion, II, em Essays, II,
p. 316). Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo conceito: "É natural que um povo, assustado com o
trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza,
sentindo por todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos faz bem e
mal'" {Dictionnairephilosophique, 1764, v. Religion, II).
Essa doutrina eclipsou-se no início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico de R. como revelação ou
sentimento do infinito foi compartilhado até por filósofos que negavam a validade da R. Feuerbach, p. ex.,
transformando a teologia em antropologia, afirmava: "A R. é a consciência do infinito: por isso, não é e não pode ser
outra coisa senão a consciência que o homem tem da infinidade de seu ser, e não de sua limitação" (Wesen der
Christenthum, 1841, § 1). Analogamente, Max Müller via a essência da R. na potencial capacidade humana de
"apreender o infinito" ( Vorlesungen über den Ursprung und die Ent-wicklung der Religion, 1880, p. 28). Embora,
com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem humana da R., lançava-se mão de conceitos que se prestavam
mais a exprimir sua origem divina e seu valor absoluto. Por outro lado, também no campo da investigação
sociológica, que começava a examinar as formas de R. dos povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar
a R. como contemplação, interpretando-a como concepção do mundo (ou filosofia) certamente grosseira, mas não
destituída de certa coerência. E. B. Tylor via a essência da R. primitiva no animismo (v.), que é a crença em seres
espirituais considerados presentes em todas as coisas e causadores de todos os eventos (Primitive Culture, 1871).
Nesses termos, a R. seria uma metafísica da natureza. Segundo Durkheim, porém, ela seria metafísica da sociedade;
para ele, R. é "o mito que a sociedade faz de si mesma", no sentido de que "sociedade é a realidade que as mitologias
representaram com tantas formas diferentes, mas que é a causa objetiva, universal e
RELIGIÃO
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RELIGIÃO
eterna das sensações suigenerisde que é feita a experiência religiosa" (Formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1937,
p. 597). Isso quer dizer que a R. primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade as características da sociedade
primitiva- as que essa sociedade considera essenciais para si mesma. Essas teses baseavam-se principalmente numa
interpretação do totemismo: para Durkheim, o totem é símbolo da força que sustenta o indivíduo: a própria sociedade;
nela, a mente primitiva haure todas as suas categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a R.
tem um caráter contemplativo, também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl, que
expressa essa tese identificando com o misticismo não só a R., mas a vida dos povos primitivos em sua totalidade
(L'ex-périence mystique et les symboles chez les primitifs, 1938). Para todas essas correntes filosóficas e sociológicas,
a R. é, em sua origem, um fato cognitivo: é uma tentativa de explicar o mundo ou de formar uma idéia do mundo com
base em certo número de experiências mais freqüentes na vida dos homens.
O retorno à concepção setecentista de R., segundo a qual sua origem está na situação do homem no mundo, verificase apenas nas correntes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith quem começou a insistir na
importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na R. primitiva. "A R. nos tempos primitivos
não foi um sistema de crenças com aplicações práticas; foi um corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais
todos os membros de uma sociedade se conformavam naturalmente. Os homens criam regras gerais de conduta antes
de começarem a expressar em palavras os princípios gerais; as instituições políticas são mais antigas que as teorias
políticas e, de maneira semelhante, as instituições religiosas são mais antigas que as teorias religiosas" (Lectures on
the Religion ofthe Semites, 1907, p. 16). Mais tarde, a obra de G. Frazer (The Colden Bough, 1911-14) mostrava a
estreita conexão entre R. e magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro lugar pela
preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às exigências da vida. A
diferença entre magia e R., segundo Frazer, consiste no seguinte: a primeira tende ao controle direto dos
acontecimentos naturais, ao passo que a segunda procura os meios de tornar propícios os poderes superiores que dominam a natureza. Esta foi a doutrina mais aceita por sociólogos e
filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem próximo ao de Frazer (Essai historique sur le sacrifice, 1920) e
B. Malinowski apresentava novas provas para a mesma tese. Segundo Malinowski, a R. e a magia surgem e
funcionam em situações de tensão emocional: crises da vida, tentativas malogradas, morte e iniciação nos mistérios
da tribo, amores infelizes e ódios insatisfeitos. R. e magia também têm em comum o fato de oferecerem uma saída
para tais situações por meio de crenças e práticas que se referem ao domínio do sobrenatural. Distinguem-se contudo
pelo fato de a magia utilizar técnicas limitadas e simples, enquanto a R. compreende um conjunto de técnicas; a
magia limita-se a uma classe de pessoas que faz dela profissão, ao passo que a R. é assunto de todos, e cada indivíduo
participa dela ativamente. Por fim, ambas têm funções diferentes: a da magia é suprir a deficiência ou a imperfeição
dos instrumentos naturais com instrumentos sobrenaturais, enquanto a função da religião é fortalecer certas atitudes
especiais, como a coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Magic, Science and Religion, 1925). Não
muito diferente desta, embora expressa em termos teológicos e místicos, foi a tese defendida por Rudolf Otto em seu
livro intitulado O sagrado (1917). Segundo Otto, deriva do medo o sentimento de estar em presença de um poder
superior, que se cristaliza naquilo que ele chama de tremendum ou maiestas; deriva do sentimento de desesperança,
impotência, insignificância o sentimento criatural descrito no Antigo Testamento; e das fantasias compensadoras
nasce o conceito daquilo que é completamente outro, que se mistura aos acontecimentos mais corriqueiros sem deixar
de parecer novo e estranho. Assim, os ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto, à situação do
homem no mundo. Esse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião. Segundo Freud, a R. "dá aos
homens informações acerca da fonte e da origem do universo, garante-lhes proteção e felicidade final apesar das
cambiantes vicissitudes da vida e guia seus pensamentos e suas ações com preceitos apoiados na força da autoridade"
(A New Series of Introductory Lectures on Psycho-Analysis, 1933, P- 220). Com esses fundamentos, Freud acredita
que a R. consiste na crença de um pai sobrenatural
RELIGIÃO
850
RELIGIÃO
que protege os homens dos perigos, recom-pensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação entre o
homem e a divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibid., pp. 222 ss.). Sem levar em conta o fundo
psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras mencionadas anteriormente: a R. é
entendida como corretivo, defesa ou protesto diante da situação de incerteza que o homem encontra no mundo. Este é
também o conceito que Bergson apresenta de R. estática, à qual ele opôs a R. dinâmica (o misticismo). R. estática
seria, pois, "a reação defensiva da natureza contra o poder desagregador da inteligência", no sentido de que a
inteligência mostra claramente ao homem a incerteza e os perigos da vida, bem como a inexorabilidade da morte,
enquanto a R. seria o conjunto das reações defensivas contra as representações intelectuais da condição humana no
mundo (Deux sources, 1932, cap. II, trad. it., pp. 131 ss.). Estritamente sobre a R. primitiva, tese análoga foi
defendida com base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a R. dos primitivos (Primitive Religion,
its Nature and Origin, 1937).
II. O segundo dos problemas aos quais as definições de R. já propostas pretendem dar resposta é o da função
específica da R. Esse problema pode ser entendido em dois sentidos. Em primeiro lugar, para o problema da garantia
de salvação que a R. pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções principais: Ia a R. como meio de
libertar-se do mundo; 2a a R. como verdade; 3a a R. como moralidade. Em segundo lugar, o próprio problema pode
ser entendido do ponto de vista da função exercida pela R. na sociedade ou na economia geral da vida humana (4 a).
Ia A garantia que a R. pretende oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo, que é
considerado um mal. Essa é a doutrina do budismo: "Não se deve fruir aquilo que nasce e se transforma, aquilo que se
forma e constitui, que é instável, dependente da velhice e da morte, fonte de doenças, frágil, surgido do trânsito dos
alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro estado, tranqüilo, situado além do domínio do pensamento,
estável, não nascido, não formado, sem dor, sem paixão, felicidade que põe fim às condições de miséria e destrói para
sempre os elementos da existência" (Itivuttaka, 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição da
existência chama-se nirvana. Mas, segundo o próprio budismo, o nirvana também é o estado de bem-aventurança de
quem, já nesta vida, eliminou o desejo e, portanto, o germe da futura existência. Desse ponto de vista, a salvação é
concebida pelo budismo não só como libertar-se do mundo, mas também como libertar-se dos males do mundo. Esses
dois aspectos estão presentes em muitas R., com exceção da de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de bemaventurança a ser alcançada além do mundo ou após a morte costuma ser acompanhada pela promessa de felicidade,
de paz ou de bem-estar já na vida terrena. Quando a felicidade ou a paz pode ser alcançada nesta vida só com a
superação da condição humana e da deificação, que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o
misticismo(v.). No misticismo, Bergson viu a R. dinâmica, a continuação supra-orgânica do elâ vital, o impulso para a
criação de uma sociedade nova, baseada no amor universal (Deux sources, 1932, cap. III). Na realidade, o misticismo
é apenas uma das soluções para o problema da salvação, sendo típico de uma religiosidade pessoal, contemplativa e
solitária, para a qual as atividades e as relações humanas são alheias e insignificantes.
2a A garantia infalível da verdade é pretensão implícita em qualquer R. Do ponto de vista filosófico, essa tese
apresenta-se como identidade entre R. e filosofia, com diferenças puramente formais entre elas. Essa foi, p. ex., a
teoria defendida por Hegel: "A filosofia tem o mesmo objeto da R. porque ambas têm como objeto a verdade, no
sentido superior da palavra, porquanto Deus, e somente Deus, é a verdade" (Ene, § 1). Todavia, a R. distingue-se da
filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em forma de representação e sentimento. Hegel diz:
"R. é a relação com o Absoluto na forma de sentimento, de representação, de fé; no seu centro, que tudo abarca, tudo
está apenas como algo acidental e eva-nescente" (Fil. do dir., § 270). Portanto, aquilo que a R. intui de modo
acidental, aproximativo e confuso é demonstrado com caráter de necessidade pela filosofia (Ene, § 573). Está claro,
porém, que a doutrina da identidade entre R. e filosofia também pode ser afirmada do ponto de vista da superioridade
da R. como forma ou revelação da verdade: é o que faz a filosofia da fé de Haman, Herder e Jacobi, à qual o próprio
Hegel se opõe (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Contudo é
RELIGIÃO
851
RELIGIÃO
evidente que nesse caso não é à religião que se confia a garantia da verdade, mas a um órgão, a fé, da qual
depende a validade da filosofia e da R., bem como de qualquer outro tipo de saber. Portanto, atribuir à R.
como objetivo específico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico, atribuirlhe a função de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas inferior à forma que a
verdade pode assumir em filosofia. Assim, para Gentile, a R. é "a exaltação do objeto subtraído aos
vínculos do espírito, no que consiste a idealidade, a cognoscibilidade e a racionalidade do objeto" {Teoria
gen. dello spi-rito, 1913, XIV, 7). Portanto, a essência da R. é o misticismo, que é a anulação do sujeito
no objeto, em virtude do que o ser de Deus é o não-ser do sujeito (Discorsi di religione, 1920, p. 78). A
R. encontra sua verdade apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamento. "Como pode esse
Deus ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, à qual é preciso subordinar-se, se Deus está
dentro do homem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?" (Sistema di lógica, II,
1922, IV, 8, 4). De maneira mais clara e insofismável, Croce disse que a R. é uma forma provisória e
imperfeita de filosofia, e por isso o filósofo deveria ver o religioso como "o seu irmão menor, ele mesmo
num momento anterior" (Fil. delia pratica, 1909, p. 314).
3a É crença bem antiga que a R. garante os valores morais do homem, entendendo-se por morais os
valores que regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão atribuía à R.: "A divindade que,
segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos os seres, e procede conforme sua natureza
no seu movimento circular; atrás dela vem sempre a justiça punitiva para quem despreza a lei divina"
(Leis, 715 e, 716 a).
No mundo moderno, esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: "A R., considerada do ponto
de vista subjetivo, é o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. A R. em
que preciso antes saber que alguma coisa é um mandamento divino para considerá-lo meu próprio dever é
a R. revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a R. em que devo saber que algo é um dever
antes de considerá-lo um mandamento divino, é a R. natural" (Religion, IV, seç. I). Kant observa que essa
definição de R. previ-ne várias interpretações falsas desse conceito.
Em primeiro lugar, exclui que a R. exija ciência de Deus e inclui que basta possuir a simples idéia de
Deus. Em segundo lugar, essa definição previne a "falsa idéia de que a R. é um conjunto de deveres
especiais que se referem imediatamente a Deus", e impede, portanto, que, além dos deveres humanos
ético-sociais, sejam admitidos "os serviços corteses com que poderíamos tentar compensar nossas faltas
para com os deveres da primeira espécie" (Ibid., IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, porém, o que a R.
garantiria seria o absolutismo do mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada da liberdade
humana) a efetivação do mandamento moral, isto é, a realização propriamente dita dos valores morais no
mundo. Contudo, na maior parte das vezes pede-se ou atribui-se à R. esta segunda espécie de garantia: de
que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e à sua vida espiritual não fiquem
confiados unicamente à boa vontade humana, mas encontrem na providência divina a salvaguarda
infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H. Hõffding afirmou que a R. é a "crença na
conservação dos valores" (Religionsphilosophie, 1902, p. 13): a fé religiosa seria a convicção "da solidez,
da certeza e da continuidade da relação fundamental dos valores com a realidade" (Ibid., 1902, p. 105).
Esse é precisamente o otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e
espiritualistas haurem ou pretendem haurir na R., em nome do qual instituem apologéticas religiosas mais
ou menos engajadas.
4a Não mais considerando a R. em termos de garantia sobrenatural de salvação, mas com referência às
relações inter-humanas, nas quais se insere como sistema de crenças e de instituições, é fácil evidenciar a
sua utilidade biológica e social. Não que haja acordo unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao
afirmarem a não-ingerência da divindade nas atividades humanas, os epicuristas tinham em vista eliminar
o medo que os deuses inspiravam, pois consideravam a R. como um motivo suplementar de preocupação
e medo, e não de ajuda (cf. EPI-CURO, Ep. aMenaceu, 123; Ep. a Heródoto, 77; Mass. Cap., 1). Alguns
sociólogos contemporâneos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos religiosos e as
crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal maneira que o efeito psicológico do ritual parece
ser um sentimento de insegurança e perigo (cf.
REMESISCÊNCIA
852
RENASCIMENTO
A. R. RADCLIFFE-BROWN, StructureandFunction in Primitive Society, 1952, pp. 148-49). Mas mesmo nesses casos é
possível reconhecer a função social da R., na forma de fortalecimento dos laços sociais, principalmente nas
sociedades primitivas ilbid., pp. 157 ss.). A. Loisy dizia: "Entregue à ação dos elementos, do clima, daquilo que a
terra dá ou recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das vicissitudes na luta contra semelhantes, o homem
acredita encontrar um meio de regularizar com simulacros de ação as suas possibilidades mais ou menos incertas. O
que faz não tem utilidade para o objetivo almejado, mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e,
ousando, realmente obtém mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas é o começo da
coragem moral" (Essai historique sur le sacrifice, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi desenvolvido mais tarde por
Mali-nowski {Magic, Science and Religion, ed. An-chor Books, 1925, p. 89). Como vimos, é mais ou menos isso que
Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido sobretudo para as sociedades primitivas, mas também se sabe (v.
PRIMITIVOS) que a sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre mentalidade primitiva e mentalidade
civilizada. Ultrapassados os limites de controle dos acontecimentos por meio de técnicas racionais — limites,
ademais, bastante estreitos — o homem reivindica liberdade de fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras,
a técnicas que lhe prometam salvação infalível. Obtendo ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas
técnicas é bem clara: dar esperança e coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo.
REMEMSCÊNCIA. V. ANAMNESE.
RENASCIMENTO (in. Renaissance, fr. Renaissance, ai. Renaissance, it. Rinascimento). Designa-se com este termo
o movimento literário, artístico e filosófico que começa no fim do séc. XTV e vai até o fim do séc. XVI, difundindose da Itália para os outros países da Europa. A palavra e o conceito de R. têm origem religiosa, como ficou
demonstrado pelos estudos de Hildebrand, Walser e Burdach: renascimento é o segundo nascimento, o nascimento do
homem novo ou espiritual de que falam o Evangelho de São João e as Epístolas de São Paulo. Durante toda a Idade
Média, tanto o conceito quanto a palavra designavam o retorno do homem a Deus, sua restituição à vida perdida
com a queda de Adão. A partir do séc. XV, porém, essa palavra passa a ser empregada para designar a renovação
moral, intelectual e política decorrente do retorno aos valores da civilização em que, supostamente, o homem teria
obtido suas melhores realizações: a greco-ro-mana. Assim, o R. foi forçado a ressaltar as diferenças que o
distinguiam do período medieval, em sua tentativa de vincular-se ao período clássico e de haurir diretamente dele a
inspiração para suas atividades. Contudo não faltam elementos de continuidade entre a Idade Média e o R., e muitos
dos problemas preferidos por humanistas e filósofos do R. eram os mesmos já discutidos pela Idade Média, com as
mesmas soluções. Isso explica por que a interpretação do R. sempre oscilou entre dois extremos: de um lado, a
oposição radical entre ele e a Idade Média; de outro, a continuidade intrínseca entre os dois. A primeira posição foi
defendida por Burckhardt (Die Kulturder Renaissance in Italien, 1860), sendo repetida e ampliada por Gentile e seus
discípulos. A segunda concepção inspira-se sobretudo na obra de K. Burdach ( Vom Mittelalter zu Refor-mation,
Renaissance, Humanismus, 19262) e ganhou forma extremada com G. Toffanin (História do humanismo, 1933). As
características fundamentais do R. podem ser brevemente re-capituladas da seguinte maneira:
1- Humanismo, como reconhecimento do valor do homem e crença de que a humanidade se realizou em sua forma
mais perfeita na Antigüidade clássica (v., a respeito, HUMANISMO).
2- Renovação religiosa, através da tentativa de reatar os laços com uma revelação originária, na qual se teriam
inspirado os próprios filósofos clássicos, como é o caso do platonismo (Nicolau de Cusa, Pico delia Mirandola, M.
Ficino), ou através da tentativa de restabelecer o contato com as fontes originárias do cristianismo, ignorando a
tradição medieval, como é o caso da Reforma protestante, (v. REFORMA).
3a Renovação das concepções políticas; com o reconhecimento da origem humana ou natural das sociedades e dos
Estados (Maquiavel) ou com a tentativa de voltar às formas históricas originárias ou à natureza das instituições
sociais (Jusnatufalismo, [v.]).
4- Naturalismo, como novo interesse pela investigação direta da natureza, tanto na forma do aristotelismo, das
manifestações de magia ou da metafísica da natureza (Campanella e
REPETIÇÃO
853
REPRESENTAÇÃO
Giordano Bruno) quanto na forma das primeiras conquistas da ciência moderna.
Sobre o R. cf. a Bibliografia de H. BARON, "Renaissance in Italien", em ArchivfürKultur-geschichte, 1927,1931. (Em
especial E. CASSIRER, Indivíduo e cosmo na filosofia do R., e os textos de E. Garin; em particular: Idade Média e R.,
1954).
REPETIÇÃO (in. Repetition; fr. Répétition, ai. Wiederbolung; it. Ripetizioné). 1. Termo introduzido na terminologia
existencialista por Kierkegaard. Este, para esclarecer sua significação, aproximou-o da expressão aristotélica quod
quid erat esse (v. ESSÊNCIA; SUBSTÂNCIA), que, significando literalmente aquilo que o ser era, expressa a necessidade
e a imutabilidade do ser, a sua repetição. Kierkegaard valeu-se desse conceito sobretudo para descrever a natureza da
vida ética: à diferença da vida estética, que procura evitar a R., buscando novidades a todo instante (sendo por isso
simbolizada por Don Juan), a vida ética baseia-se na continuidade, na escolha repetida que o indivíduo faz de si
mesmo e de sua tarefa, sendo, pois, simbolizada pelo matrimônio (Die Wiederbolung, 1843; cf. Diário, IV, A, 15 6).
Heidegger, por sua vez, utilizou esse conceito para caracterizar a existência autêntica, como ela se realiza na angústia.
A angústia, por libertar o homem "das possibilidades nulas e liberá-lo para as autênticas", consiste em retomar, para
o porvir, as possibilidades que já foram no passado: isso é R. (Sein undZeit, § 68 b). Desse ponto de vista, R. é
decisão autêntica: "A R. é a transmissão explícita, ou seja, o retorno às possibilidades do ser-aí que é já tendo sido. A
autêntica R. de uma possibilidade de existência que já foi, o fato de o ser-aí escolher seus heróis, baseia-se
existencialmente na decisão antecipa-dora, porque é nela que se escolhe a escolha que liberta para a sucedaneidade da
luta e para a fidelidade àquilo que deve ser repetido" (Ibid. § 74). Isso quer dizer que a decisão autêntica, em que
consiste a historicidade da existência humana, é uma R. ou, pelo menos (como Heidegger diz no mesmo trecho), uma
réplica de possibilidades passadas.
2. Na filosofia da ciência, o conceito de R. é empregado para expressar o fundamento das proposições indutivas, que
(segundo Hume) seriam a expressão da R. de casos (cf. HUME, Inq. Cone. Underst., V, 1). Desse ponto de vista, a R.
muitas vezes foi considerada a justificação das proposições universais. K. Popper criticou essa doutrina, que ele
chama "doutrina do primado
da R." (The Logic cf Scientific Discovery, 1959, pp. 420 ss.) (V. INDUÇÃO; TEORIA).
REPRESENTAÇÃO (lat. Repraesentatio, in. Re-presentation; fr. Représentation; ai. Vorstellung; it.
Rappresentazioné). Vocábulo de origem medieval que indica imagem (v.) ou idéia ([v.] no 2a sentido), ou ambas as
coisas. O uso desse termo foi sugerido aos escolásticos pelo conceito de conhecimento como "semelhança" do objeto.
"Representar algo" — dizia S. Tomás de Aquino — "significa conter a semelhança da coisa" (De ver., q. 7, a. 5). Mas
foi principalmente no fim da escolástica que esse termo passou a ser mais usado, às vezes para indicar o significado
das palavras. (Cf., p. ex., GRA-ZIANO DI ASCOLI, Perihermenias, 2.) Ockham distinguia três significados
fundamentais: "Representar tem vários sentidos. Em primeiro lugar, designa-se com este termo aquilo por meio do
qual se conhece algo; nesse sentido, o conhecimento é representativo, e representar significa ser aquilo com que se
conhece alguma coisa. Em segundo lugar, por representar entende-se conhecer alguma coisa, após cujo conhecimento
conhece-se outra coisa; nesse sentido, a imagem representa aquilo de que é imagem, no ato de lembrar. Em terceiro
lugar, por representar entende-se causar o conhecimento do mesmo modo como o objeto causa o conhecimento"
(Quodl., IV, q. 3). No primeiro caso, a R. é a idéia no sentido mais geral; no segundo, é a imagem; no terceiro, é o
próprio objeto. Esses são, na realidade, todos os possíveis significados do termo, que voltou a ter importância com a
noção cartesiana de idéia como "quadro" ou "imagem" da coisa (Méd., III) e foi difundido sobretudo por Leibniz,
para quem a mônada era uma R. do universo (Monad., § 60). Inspirado nessa doutrina, Wolff introduziu o termo
Vorstellung, para indicar a idéia cartesiana, no uso filosófico da língua alemã (Vernünftige Ge-danken von Gott, der
Welt und der Seele des Menschen, 1719, I, §§ 220, 232, etc). Deve-se a Wolff a difusão do uso desse termo nas outras
línguas européias. Kant estabeleceu seu significado generalíssimo, considerando-o gênero de todos os atos ou
manifestações cognitivas, independentemente de sua natureza de quadro ou semelhança (Crít. R. Pura, Dialética,
livro I, seç. I), e foi desse modo que o termo passou a ser usado em filosofia. Hamilton defendia o uso dessa palavra
também em inglês (Lectures on Logic, 2a ed., 1966, I, p. 126).
REPRESENTATIVO
854
RESPEITO
Mas neste sentido, os problemas inerentes à R. são os mesmos que inerem ao conhecimento em geral (v.
CONHECIMENTO) e à realidade que constitui o termo objetivo do conhecimento (v. REALIDADE), OU, em outra direção,
os concernentes à relação entre as palavras e os objetos significados (quanto a isso, v. SIGNO; SIGNIFICADO) .
REPRESENTATIVO (in. Representative, fr. Re-présentatif, ai. Vorstellend; it. Rappresentativó). 1. O sentido deste
adjetivo é mais limitado que o do substantivo correspondente, uma vez que contém referência ao caráter de
"semelhança" ou "quadro", excluído por alguns dos significados do substantivo. Assim, "idéia R." é a idéia que se
concebe como imagem ou reprodução de seu objeto. Diz-se que o conhecimento tem natureza R. quando se acha que
ele constitui imagem ou cópia do objeto.
2. Emerson chamou de homens R. aqueles que Hegel chamava de "indivíduos da história universal" ou outros
românticos chamavam de "heróis": homens que são símbolos e, ao mesmo tempo, instrumentos de realização das
aspirações de todos os homens {Representative Men, 1850).
3. No sentido político, sistemaR. é o sistema que se baseia no princípio de delegação de certos poderes políticos a
alguns cidadãos, feita por uma parte dos cidadãos.
REPUGNÂNCIA. O mesmo que incompatibilidade (v. COMPATIBILIDADE).
RES DE RE NON PRAEDICATUR. Máxima de Abelardo (citada por JOÃO DE SALISBURY, Me-talogicus, II, 17),
segundo a qual o universal não pode ser uma coisa nem uma palavra, mas somente uma expressão {sermó), uma vez
que só a expressão pode ser predicado de várias coisas (v. UNIVERSAL).
RESÍDUO FENOMENOLÓGICO (ai. Pháno-menologische Residuum). Foi esse o nome que Husserl deu ao ser da
consciência que "não é atingido em sua essência absoluta pela neutralização fenomenológica", isto é, pela epoché
{Ideen, I,§ 33).
RESÍDUOS, MÉTODO DOS (in. Method of residues-, fr. Méthodedes résidus-, ai. Rückstands-methode, it. Método
dei residui). Um dos quatro métodos da pesquisa experimental enumerados por Stuart Mill, mais precisamente o
expresso pela regra: "Uma vez subtraída de um fenômeno a parte que, através de deduções anteriores, é identificada
como efeito de determinados antecedentes, o resíduo do fenômeno é o efeito
dos antecedentes restantes" {Logic, III, 8, § 5)
(V. CONCOMITÂNCIA; CONCORDÂNCIA; DIFERENÇA).
RESÍDUOS E DERIVAÇÕES (in. Residues and derivations, fr. Résidus et dérivations-, it. Residui e derivaziont).
Com estes termos, Vilfredo Pareto designou os dois fatores das teorias não científicas correspondentes às afirmações
experimentais e às deduções lógicas das teorias científicas. Os resíduos são os instintos, os sentimentos, os interesses,
etc, que constituem os materiais das teorias não científicas; as derivações são as sistematizações lógicas ou
pseudológicas dadas a esse material {Trattato di sociologia generale, 1916, §§ 803, 750, 210, 1397). (Cf. a discussão
desta doutrina em TALCOTT PARSONS, The Structure of Social Action, 2- ed., 1949, pp. 196 ss.)
RESPEITO (gr. oriôúç; lat. Respectus-, in. Res-pect; fr. Respect; ai. Achtung; it. Rispettó). Reconhecimento da
dignidade própria ou alheia e comportamento inspirado nesse reconhecimento. Demócrito foi o primeiro a
transformar o R. em princípio da ética: "Não deves ter para com os outros homens mais R. que para contigo mesmo,
nem agir mal quando ninguém o saiba mais do que quando todos o saibam; deves ter para contigo mesmo o máximo
R. e impor à tua alma a seguinte lei: não fazer o que não deve ser feito" {Fr. 264, Diels). No discurso com que
Protágoras, no diálogo homônimo de Platão, expõe a origem da sociedade humana, diz-se que "temendo que nossa
estirpe se extinguisse, Zeus ordenou que Hermes trouxesse o R. recíproco e a justiça para o meio dos homens, a fim
de que esses fossem princípios ordenadores das cidades, criando entre os cidadãos vínculos de benevolência" {Prot.,
322 e). O R. recíproco e a justiça são, assim entendidos, os dois ingredientes fundamentais da "arte política", que é a
técnica de vida em comunidade.
Aristóteles, porém, incluiu o R. entre as emoções, excluindo-o das virtudes {Et. nic, II, 7, 1108 a 32), e o opôs ao
temor {Ibid., 10, 9, 1179 b 11). Kant também o reduziu à esfera das emoções, considerando-o, porém, como um
sentimento suigeneris, aliás como o único sentimento moral e não patológico. O sentimento de R. "é produzido
apenas pela razão. Não serve ao juízo das ações nem como fundamento da lei moral objetiva, mas simplesmente
como móbil paru transformar essa lei em máxima". O R. sempre se refere às pessoas, nunca às coisas; é próprio do
ser racional finito porque supõe a ação negativa da razão sobre a sensibi-
RESPONSABILIDADE
855
RESSENTIMENTO
lidade, portanto a própria sensibilidade. Por isso, "não se pode atribuir R. à lei a um ser supremo ou a um ser isento de
sensibilidade, para quem, portanto, esta não pode ser obstáculo à razão prática" (Crít. R. Pratica, 1,1, cap. III).
Mesmo fora da filosofia, a noção de R. foi fortemente influenciada por essas observações de Kant. Por R. entende-se
comumente o empenho em reconhecer nos outros homens, ou em si mesmo, uma dignidade que se tem o dever de
salvaguardar.
RESPONSABILIDADE (in. Responsibility, fr. Responsabilité; ai. Verantwortlichkeit; it. Responsabilitâ).
Possibilidade de prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão. R. é diferente
de imputabilidade (gr. arríct; lat. Imputatio; in. Imputability, fr. Imputabilitá; ai. Zurechenbar-keit; it. Imputabilitá),
que significa a atribuição de uma ação a um agente, considerado seu causador. Platão aludia à noção de
imputabilidade quando, a propósito da escolha que as almas fazem de seu próprio destino, afirmava: "Cada qual é a
causa de sua própria escolha, ela não pode ser imputada à divindade" (Rep., X, 617 e; cf. Tim., 42d). Wolff definia a
imputa-çâo como "o juízo em virtude do qual o agente é declarado causa livre daquilo que se segue à sua ação, ou
seja, do bem e do mal que dela decorrem para ele mesmo ou para os outros" (Philosophiapractica, I, § 527). Essa
definição era simplesmente repetida por Kant: "A impu-tação (imputatio) no significado moral é o juízo em virtude
do qual alguém é considerado como autor (causa livre) de uma ação que está submetida a leis e se chama fato" (Met.
der Sitten, I, Intr., IV). A imputabilidade assim entendida é um conceito completamente diferente do de
responsabilidade.
O termo R. e seu conceito são recentes: aparecem pela primeira vez em inglês e em francês em 1787 (em inglês,
aparecem em Federalist de Alexandre Hamilton, f. 64; cf. R. MCKEON, Revue Internationale de Philosophie, 1957, ne
1, pp. 8 ss.). O primeiro significado do termo foi político, em expressões como "governo responsável" ou "R. do
governo", indicativas do caráter do governo constitucional que age sob controle dos cidadãos e em função desse
controle. Em filosofia, o termo foi usado nas controvérsias sobre a liberdade e acabou sendo útil principalmente aos
empiristas ingleses, que quiseram mostrar a incompatibilidade do juízo moral com a liberdade e a necessidade
absolutas (cf.
HUME, Inq. Cone. Underst., VIII; STUART MILL, nota a Analysis ofthePhenomena oftheHuman MinddeJ. MILL, 1869,
II, p. 325). Na verdade, a noção de R. baseia-se na de escolha, e a noção de escolha é essencial ao conceito de
liberdade limitada (v. LIBERDADE). Está claro que, no caso da necessidade, a previsão dos efeitos não poderia influir
na ação, e que tal previsão não poderia influir na ação no caso da liberdade absoluta, que tornaria o sujeito
indiferentes previsão. Portanto, o conceito de R. inscreve-se em determinado conceito de liberdade, e mesmo na
linguagem comum chama-se alguém de "responsável" ou elogia-se seu "senso de R." quando se pretende dizer que a
pessoa em questão inclui nos motivos de seu comportamento a previsão dos possíveis efeitos dele decorrentes (cf. o
fascículo citado da Revue Internationale de Philosophie, especialmente os artigos de McKeon, Abbagnano e Weil.
Para a distinção entre imputabilidade e R., cf. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik, pp. 504 ss.) (v. INTENÇÃO).
RESPOSTA. V. AÇÃO REFLEXA. RESSENTIMENTO (in. Resentment; fr. Ressen-timent; ai. Ressentiment; it.
Risentimentó). Ódio impotente contra aquilo que não se pode ser ou não se pode ter. Essa noção foi introduzida por
Nietzsche em Genealogia da moral(.1887): "A revolta dos escravos na moral contemporânea começa quando o R. se
torna criador e gera valores: R. dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a da ação, e que portanto só
encontram compensação numa vingança imaginária" (Genealogie der Moral, I, § 10). Segundo Nietzsche, a moral
cristã é fruto do R., no sentido de ser manifestação do ódio contra os valores da casta superior aristocrática,
inacessíveis aos indivíduos inferiores. Outra manifestação do R., ainda segundo Nietzsche, é a raiva secreta dos
filósofos contra a vida, em vista do que a filosofia foi até agora "a escola da calúnia": calúnia contra o mundo real ou
sensível, que os filósofos tentaram substituir pelo mundo ideal da metafísica e da moral (Wille zur Macht, ed. 1901,
§§ 259, 287). Por sua vez, Scheler insistiu na ação do R. no campo moral, embora negando que ele possa ser aplicado
à concepção cristã, à qual Nietzsche fazia alusão. Segundo Scheler, os produtos do R. são o hu-manitarismo e o
altruísmo modernos, e não o amor cristão. O conceito de igualdade entre os homens, a afirmação do subjetivismo dos
valores e a subordinação de todos os valores à utili-
RESTRIÇÃO
856
RETÓRICA
dade são outros três produtos do R. na vida moderna, segundo a concepção de Scheler. (Über Ressentiment, 1912;
trad. fr., 1958). (Cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 2-ed., 1957, pp. 155 ss.).
RESTRIÇÃO (lat. Restriction in. Restrition, fr. Restriction; ai. Restriktion; it. Restrizioné). A partir da lógica do séc.
XIII, esse termo designa a limitação da extensão ou denotação de um termo comum, de tal modo que ele se refira a
um número menor de objetos designados (cf. Lamberto de Auxerre em PRANTL, Geschichte derLogik, III, p. 31, nQ
130). Pedro Hispano distinguiu quatro espécies de R.: a que se faz com o nome, como quando se diz "homem
branco", em que o termo homem não supõe inon supponit pro) os negros; a que se faz per participio, como quando se
diz "o homem discute correndo"; e a que se faz por implicação, como no caso "o homem, que é branco, corre"
ÇSumm. log., 11.02). O processo inverso é a ampliação ou extensão. Hamilton chamou de R. a relação de subalternação (v.).
RESTRIÇÃO MENTAL (lat. Reservatio, in. Reservation; fr. Restriction-, ai. Reservation; it. Riservd). Um dos
tópicos característicos da casuística católica do séc. XVII, bem como do probabilismo ou laxismo: a tese de que uma
mentira deliberada não compromete quem a pronuncia e não é pecado. Na IX de suas Cartas provinciais (1656),
Pascal fez uma crítica famosa a essa tese.
RETIDÃO (gr. òpOÓTnç; KocTÓpScixnç; Reti-tudo; in. Rectitude, fr. Rectitude, ai. Recht-lichkeit; it. Rettitudiné).
Critério ou medida racional das coisas, ou seja, o princípio para julgá-las. Platão diz, por exemplo, que "a R. do nome
é mostrar o que a coisa é" (Crat., 428 e), entendendo que este é o critério para julgar acerca da justeza do nome. Com
o mesmo sentido Aristóteles usa a expressão reta razão (óp0òç XÓ70Ç), identificando-a com a sabedoria Et. nic, VI,
13, 1144 b 23). Mas foram sobretudo os estóicos que deram significado técnico ao termo, ao designarem com ele "a
conveniência ou bem, que consiste em estar de acordo com a natureza" (CÍCERO, De finibus, III, 14, 45). Como o
acordo com a natureza é o critério de avaliação, a R. não é senão esse critério. Com sentido análogo, Duns Scot
chamou as proposições teológicas de rectitudines, porquanto fornecem o conhecimento do reto comportamento do
homem em face de Deus (Op. Ox., Prol., q. 4, n. 31).
Na filosofia contemporânea, Heidegger contrapôs a R. à verdade, entendida como revelação do ser. Segundo
Heidegger, foi Platão quem introduziu o conceito de verdade como R., ou seja, como critério do juízo humano,
preparando assim o terreno para o nascimento do subjetivismo moderno ("Die Zeit des Welt-bildes", em Holzwege,
1950, p. 84).
RETÓRICA (in. Rhetoric; fr. Rhétorique, ai. Rhetorik, it. Retórica). Arte de persuadir com o uso de instrumentos
lingüísticos. A R. foi a grande invenção dos sofistas, e Górgias de Leontinos foi um de seus fundadores (séc. V a.C).
O diálogo de Platão intitulado Górgias insiste no caráter fundamental da R. sofista: sua independência em relação à
disponibilidade de provas ou de argumentos que produzam conhecimento real ou convicção racional. O objetivo da
R. é "persuadir por meio de discursos os juizes nos tribunais, os conselheiros no conselho, os membros da assembléia
na assembléia e em qualquer outra reunião pública" iGórg., 452 e); portanto, o retórico é hábil "em falar contra todos
e sobre qualquer assunto, de tal modo que, para a maioria das pessoas, consegue ser mais persuasivo que qualquer
outro com respeito ao que quiser" ilbid., 457 a). Assim entendida, a R. pareceu a Platão mais próxima da arte
culinária que da medicina: mais apta a satisfazer o gosto do que a melhorar a pessoa {Ibid., 465 e). Platão opôs a ela a
R. pedagógica ou educativa, que seria "a arte de guiar a alma por meio de raciocínios, não somente nos tribunais e nas
assembléias populares, mas também nas conversações particulares" (Fedro, 26 1 a); no entanto, a R. assim entendida
identifica-se com a filosofia. Portanto, Platão não atribuiu à R. uma função específica. Isso, na verdade, foi feito por
Aristóteles, que a considerou em íntima relação com a dialética, como se fosse a contrapartida desta (Ret., I, 1, 1354
a. 1). Segundo Aristóteles, a R. é "a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios de persuasão disponíveis"
Ubid., I, 2, 1355 b 26). Enquanto qualquer outra arte só pode instruir ou persuadir em torno de seus próprios objetos,
a R. não se limita a uma esfera especial de competência, mas considera os meios de persuasão que se referem a todos
os objetos possíveis ilbid., I, 2, 1355 b 26). Portanto, a R. haure da Tópica a consideração dos elementos prováveis
(os que têm capacidade de persuadir) e fornece as regras para o uso estratégico de tais argumentos.
RETÓRICA
857
RETORNO
Esse conceito de R., estabelecido por Aristóteles, prevaleceu por muitos séculos. O humanismo ressaltou a
importância da R., na qual identificou, segundo o exemplo de Platão e Cícero, um valor substancial (cf. Testi
umanistici sulla R. de M. Nizolio, F. Patrizi, P. Ramus, org. por E. GARIN, P. ROSSI, E. VASOLI, 1953). Com P.
Ramus, a tarefa da R. volta a ser substancialmente a que já lhe fora atribuída por Aristóteles: "A técnica de persuasão,
que Ramus estuda nos textos de Cícero, essa capacidade de usar a linguagem para criar as expressões mais bem feitas
e tecnicamente elaboradas, deve contudo estar sempre unida ao exercício da filosofia, à qual está confiada a
construção essencial de todos os princípios cognitivos, com o uso da dialética. Por isso, à R., entendida no significado
mais técnico e particular, Ramus só concederá as duas funções propedêuticas da elocutio e da pro-nunciatio(...), ao
passo que, contra as opiniões de Quintiliano e de Cícero, atribuirá à dialética a tarefa de organizar a verdadeira
substância do discurso lógico" (E. VASOLI, Op. cit., pp. 117-118). Depois do florescimento do Renascimento, a sorte
da R. decaiu, chegando ao desaparecimento quase completo que a caracterizou no séc. XIX. O dogmatismo
racionalista iniciado por Descartes e adotado maciçamente no séc. XLX foi a maior causa da decadência da retórica.
Onde a razão é tudo e pode tudo, uma arte que busque seus instrumentos da persuasão obviamente está deslocada. Por
isso, não admira que, com o abandono do dogmatismo racionalista, a R. volte hoje a ser homenageada como a arte
clássica da persuasão, mas com a ressalva de que deve levar em conta uma multiplicidade de condições. O Traité de
Vargumentation de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958) começa com as seguintes palavras: "A publicação de um
tratado dedicado à argumentação e sua vincula-ção com a velha tradição da R. e da dialética gregas constituem a
ruptura com a concepção de razão e raciocínio que se iniciou com Descartes e deixou marcas na filosofia ocidental
dos três últimos séculos." Não há dúvida de que essa observação é correta. Se a razão é infalível e a investigação
humana pode ser confiada às suas regras infalíveis em qualquer campo, não há lugar para a R., que é a arte da
persuasão. Mas, se, na esfera do saber humano, a parte do incerto, do provável, do aproximativo é mais ou menos
ampla, a persuasão pode ter alguma função e sua arte pode ser cultivada.
RETORNO (gr. è7UOTpo<pií; lat. Conversia, in. Return; fr. Retour, ai. Rúckgang). 1. No neo-platonismo antigo, o
movimento graças ao qual a alma percorre de volta o processo de emanação, reintegrando-se na sua origem (bem,
causa, Deus, unidade) através da contemplação. Plotino dizia: "A purificação é necessária à união: a alma une-se ao
Bem, voltando para ele. Mas então à conversão segue-se a purificação? Exatamente: o R. acontece depois da
purificação. O R., então, é a virtude da alma? Sim, é a virtude que do R. resulta e deriva para a alma. E o que é o R.?
É a contemplação e a impressão que os objetos inteligíveis produzem na alma, do mesmo modo como a visão é
produzida pelos objetos visíveis" {Enn., I, 2, 4). Proclos generalizava o conceito de R., atribuindo-o a todas as
manifestações do ser, cada uma das quais efetuaria o R. a seu modo. "Cada ser realiza seu R. apenas em relação à
substância ou também em relação à vida e ao conhecimento, visto que, ou recebeu da Causa apenas o ser, ou recebeu
também a vida, ou recebeu também a faculdade cognitiva. Se é apenas, realiza um R. à Substância; se vive, retoma à
vida; se conhece, retorna ao Conhecimento. Com efeito, do mesmo modo como procedeu da Causa primeira, assim
retorna para ela; e as medidas do R. são determinadas pelas medidas da processão" (Jnst. theol., 39).
2. O Renascimento, ao retomar esta concepção generalizada de Proclos, considerou o R. aos princípios como a única
via de renovação radical da vida pessoal e social do homem. Pico delia Mirandola unia o antigo conceito
neoplatônico de R. aos princípios com o novo princípio de via de renovação {De ente et uno, VII, Proem.). Maquiavel
considerava a "redução aos princípios" a única via de renovação das comunidades humanas, evitando-se a decadência
e a derrocada, porquanto todos os princípios contêm em si algo de bom, de que as coisas podem retirar vitalidade e
força primitiva {Discursos, III, 1). E Campanella via o caminho da renovação religiosa no princípio que ele julgava
estar expresso no salmo XXII: Quod reminiscentur et convertentur ad Dominum universifines terrae, cujas primeiras
duas palavras ele usava como título do texto em que anunciava a renovação religiosa {Quod reminiscentur, 1615).
Outrossim, a própria Reforma protestante obedecia à exigência de voltar aos princípios, remontando diretamente à
fonte
RETRODUÇAO
858
REVOLUÇÃO
primitiva da religiosidade cristã, a Bíblia; por outro lado, a Contra-Reforma pretendeu reconduzir a Igreja
à força expansionista que ela possuía em suas origens. Outra forma do mesmo princípio é a do R. à
natureza, considerada na maioria das vezes como princípio ou origem dos seres. Nesta forma, o R. aos
princípios é uma exigência freqüente no pensamento dos séc. XVII e XVIII.
3. Eterno R. (v. CICLO DO MUNDO).
RETRODUÇAO (in. Retroductiori). Termo introduzido por Peirce para indicar o primeiro estágio da
investigação, que, assim como a indução, parte do conseqüente para o antecedente, mas é realizado de
forma espontânea, ou seja, sem método rigoroso ("Reality of God", em Values in a Universe of Chance,
pp. 368 ss.) (V. ABDUÇÃO).
RETROSPECÇÃO (in. Retrospection; fr. Ré-trospection-, it. Retrospezionè). Bergson designou com
esse termo a tendência a "relegar as realidades atuais para o passado, para um estado de possibilidade ou
virtualidade" (.Lapensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 26).
REVELAÇÃO (in. Revelation; fr. Révélation; ai. Offenbarung; it. Rivelazioné). Manifestação da
verdade ou da realidade suprema aos homens. A R. foi entendida de duas maneiras: Ia como R. histórica;
2- como R. natural.
Ia É histórica a R. que toda religião positiva adota como fundamento. Consiste na iluminação com que
foram agraciados alguns membros da comunidade, cuja tarefa teria sido encaminhar a comunidade para a
salvação. Neste sentido, a R. é um fato histórico, ao qual se atribui a origem da tradição religiosa.
2a A R. natural é a manifestação de Deus na natureza e no homem. Às vezes essa forma de R. é admitida
ao lado da outra, outras vezes é negada ou subordinada à outras. Só o conceito de R. natural tem valor
filosófico, sendo o outro especificamente religioso. Contudo a filosofia hauriu o conceito de realidade
natural e humana como manifestação de um princípio sobrenatural ou divino da própria religião, sendo
esse conceito típico das filosofias que têm caráter ou finalidade religiosa. Na Antigüidade, esse conceito
pertenceu aos neoplatônicos, para quem o mundo, como produto da emanação divina, revela, pelo menos
parcial ou imperfeitamente, a natureza divina que o produz. Desse ponto de vista, Scotus Erigena
chamava de teofania (v.) o processo de descida de Deus
ao homem e de subida do homem a Deus; também chamava de teofania toda a obra da criação, porquanto
ela manifesta a substância divina que se torna sensível nela e através dela (De divis. nat., I, 10; V, 23).
Este conceito reapareceu com freqüência na história da filosofia, mas a maior recorrência se deu na
filosofia do romantismo (v.). Fichte, p. ex., dizia: "O saber é a existência, a manifestação, a perfeita
imagem da força divina" (Grundzüge der gegen-wártigen Zeitalters, 1806, LX). Este pensamento domina
também as filosofias de Scheling e de Hegel. No entanto, cumpre observar que nelas a R. não é apenas
manifestação: é também — como dizia Fichte — existência (isto é, realização) de Deus. É essa a
característica específica assumida pelo conceito de R. no romantismo e conservada de maneira mais ou
menos decisiva nas filosofias da R. que constituem a segunda fase do romantismo e têm como lema a
defesa da tradição. As filosofias de Maine de Biran, Rosmini, Gioberti, Mazzini partem todas do princípio
de que a consciência é a revelação de Deus. A propósito, Maine de Biran nada mais fazia que exprimir
uma convicção bastante difundida ao afirmar que a R. não é apenas externa (tradição oral ou escrita), mas
é também interna ou da consciência, visto que ambas procedem diretamente de Deus (CEuvres, ed.
Naville, III, p. 96).
O conceito de R. foi adotado como fundamento da filosofia de Heidegger, mas sem o tom religioso do
séc. XIX. A R. do ser, segundo Heidegger, nunca é perfeita e exaustiva porque o ser se esconde ao
mesmo tempo em que se revela: "O ser subtrai-se a si mesmo enquanto se revela no ente. Assim, o ser,
iluminando o ente, ao mesmo tempo o desvia e o encaminha para o erro" (Holzwege, p. 310). Segundo
Heidegger, a R. do ser ocorre através da linguagem, que não é instrumento humano, mas o próprio ser em
sua R. (Brief über den Hu-manismus, p. 81). Por outro lado, a concepção da linguagem como R. hoje não
pertence apenas a Heidegger (v. LINGUAGEM), O que é mais uma prova da persistência em filosofia do
conceito teológico de revelação.
REVERSÍVEL (in. Reversible, fr. Réversible, ai. Umkehrbar, it. Reversibilé). São qualificados com este
termo os processos que não têm sentido definido (V. IRREVERSÍVEL).
REVOLUÇÃO (in. Revolution; fr. Révolution, ai. Revolution; it. Rivoluzioné). Violenta e rápida
destruição de um regime político, ou mudança
RIGORISMO
859
MTSCHIIANISMO
radical de qualquer situação cultural. Neste segundo sentido fala-se de "R. filosófica", "artística", "literária", "dos
costumes", etc, ou também de "R. copernicana". Mas está claro que, neste sentido, o uso da palavra visa somente a
ressaltar a importância da mudança ocorrida, e não tem significado preciso. O único significado preciso do termo é o
político, que teve início no séc. XVIII. R. propriamente ditas foram a inglesa, a americana, a francesa e a russa, mas
às vezes também são chamadas de R. transformações políticas que tiveram menor importância na história geral do
mundo, apesar de serem marcos fundamentais na história de determinado país.
RIGORISMO (in. Rigorism; fr. Rigorisme, ai. Rigorismus; it. Rigorismó).Na terminologia religiosa do séc. XVIII, R.
opõe-se a laxismo e designou o ponto de vista de todos aqueles que (especialmente jansenistas e padres do oratório)
hostilizavam o princípio de moral relaxada (cf. BAYLE, Dictionnaire historique et critique, v. "Rigoristes"). Segundo
Kant, foram comu-mente chamados de rigoristas os que não admitiam "nenhuma neutralidade moral {adia-phora)
nem nos atos nem nos caracteres humanos", enquanto os outros eram chamados de latitudinários{Religion, I,
Observação). O próprio Kant, porém, na mesma passagem, demonstra aceitar pessoalmente o princípio rigo-rista, de
tal modo que, não sem razão, falou-se e continua-se falando de "R. moral" com referência à doutrina moral kantiana.
RISCO (gr. KÍVÔWOÇ; in. Risk, fr. Risque, ai. Wagniss, Gefahr, it. Rischió). Em geral, o aspecto negativo da
possibilidade, o poder não ser. Essa noção é freqüente nas filosofias que reconhecem o possível, tais como nas de
Platão e dos existencialistas contemporâneos. Aristóteles considerava o R. como "o aproximar-se daquilo que é
terrível" {Ret., II, 5, 1382 a 33). Para Platão, o R. era belo e inerente à aceitação de certas hipóteses ou crenças {Fed.,
114 d). No existencialismo, o R. é considerado inerente à escolha que o eu faz de si mesmo e a toda decisão
existencial (cf. JASPERS, Phil., II, pp. 180, 403, etc). A aceitação do R. implícito nessa escolha é um dos pontos
fundamentais do existencialismo contemporâneo: "A pretensão implícita na decisão baseia-se numa indeterminação
efetiva, ou seja, na possibilidade de que as coisas se passem de maneira diferente daquilo que eu decido; mas também
se baseia no fato de eu, que decido,
assumir esse R., bem como na consideração de todas as possíveis garantias que eu possa obter (ABBAGNANO,
Introduzione aWesistenzialismo, 4a ed., 1957, I, 3).
RISO. V. CÔMICO.
RITMO (in. Rhythm- fr. Rythme, ai. Rhythmus, it. Ritmo). Alternância de fenômenos opostos no mesmo processo.
Este é o significado atribuído ao termo pelo positivismo, que o utilizou pela primeira vez de modo específico,
estendendo seu significado primitivo de movimento regularmente recorrente. Spencer falou de uma lei do R., segundo
a qual o máximo e o mínimo, a queda e a elevação, alternam-se no desenvolvimento de todos os fenômenos; essa lei
seria um dos princípios fundamentais da evolução {FirstPrincipies, II, cap. 10). Dessa mesma lei falaram Ardigó
{Op., II, p. 227; V. pp. 232, etc.) e, mais recentemente, Whitehead: "No modo do ritmo, uma série de experiências
que formam determinada sucessão de contrastes obteníveis no âmbito de um método preciso é regulada de tal
maneira que o fim de um ciclo é o estágio que antecede o início de um outro ciclo semelhante. O ciclo é tal que, ao
completar-se, produz as condições para sua simples repetição" {The Function of Reason, 1929, cap. I, trad. it., p. 25;
cf. The Aims of Education, cap. II, III).
RITO (in. Rite, fr. Rite, ai. Ritus; it. Rito). Técnica mágica ou religiosa que visa a obter sobre as forças naturais um
controle que as técnicas racionais não podem oferecer, ou a obter a manutenção ou conservação de alguma garantia
de salvação em relação a essas forças. O conceito de R. como "prática relativa às coisas sagradas" foi esclarecido por
Durkheim {Formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912, passim) (cf. T. PARSONS, The Structure of Social Action,
2a ed., 1949, pp. 420 ss., 673 ss., etc; cf. RELIGIÃO).
RITSCHLIANISMO(in. Ritschlianism, fr. Rits-chlianisme, ai. Ritschlianismus, it. Ritschilianis-mo). Corrente do
cristianismo protestante do séc. XIX, iniciada por Alberto Ritschl (1822-89), segundo a qual a religião baseia-se
exclusivamente no sentimento e na revelação interior; essa revelação se concretiza especialmente nos juízos de valor,
que são independentes dos fatos e elevam o homem para uma esfera superior à de sua limitação empírica. Ao
fortalecer a revelação do sentimento interior, a comunidade dos fiéis realiza as exigências dessa revelação; o reino de
Deus realiza-se nela (cf. K.
ROMANTISMO
860
ROMANTISMO
BARTH, Die protestantische Theologie in 19, Jahrhundert, 1947).
ROMANTISMO (in. Romanticism, fr. Roman-tisme, ai. Romanticismus-, it. Romanticismó). Designa-se com este
nome o movimento filosófico, literário e artístico que começou nos últimos anos do séc. XVIII, floresceu nos
primeiros anos do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século. O significado comum do termo
"romântico", que significa "sentimental", deriva de um dos aspectos mais evidentes desse movimento, que é a
valorização do sentimento, categoria espiritual que a Antigüidade clássica ignorara ou desprezara, cuja força o séc.
XVIII iluminista reconhecera, e que no R. adquiriu valor preponderante. Essa grande valorização do sentimento é a
principal herança recebida do movimento Sturm und Drangiv.), que constitui a tentativa de, através da experiência
mística e da fé, superar os limites da razão humana, reconhecidos pelo ilumi-nismo. Segundo os filósofos do Sturm
und Drang, Haman, Herder e Jacobi, pode-se obter com a fé o que a razão não é capaz de dar, sendo a fé entendida
como fato de sentimento ou de experiência imediata. Mas, precisamente por isso, para os seguidores do Sturm und
Drang (entre os quais estiveram Goethe e Schiller, na juventude) a razão continuava sendo o que fora para o
Iluminismo: uma força humana limitada, capaz de transformar o mundo gradualmente, mas que não é absoluta nem
onipotente, estando, pois, sempre mais ou menos em conflito com o mundo e em luta com a realidade que se destina a
transformar. Do Sturm und Drang passa-se para o R. somente quando esse conceito de razão é abandonado e começase a entender como razão uma força infinita (onipotente) que habita o mundo e o domina, constituindo sua própria
substância. O princípio da autoconsciência (v.), infinidade da consciência que é tudo e faz tudo no mundo, é
fundamental no R., e dele derivam os aspectos relevantes do movimento. Fichte foi o primeiro a identificar a razão
com o Eu infinito ou Autoconsciência Absoluta, fazendo dele a força pela qual o mundo é produzido. A infinidade,
nesse sentido, era de consciência ou de potência, e não de extensão ou duração; seu modelo encontrava-se em
conceitos da filosofia neoplatônica, especialmente em Plotino. Hegel, a propósito, opunha o falso infinito, ou mau
infinito, que é diferente do finito, isto é, da realidade ou do mundo e se opõe a ele e tenta transformá-lo
ou superá-lo, ao verdadeiro infinito, que se identifica com o finito, com o mundo, e se realiza nele e por ele. Este
infinito é um Princípio espiritual criativo: aquele que Fichte chamou de Eu, Schelling de Absoluto e Hegel de Idéia.
Mas o infinito, ou melhor, a infinidade da consciência pode ser entendida de duas maneiras. Em primeiro lugar, como
atividade racional, que se move de uma determinação para outra com necessidade rigorosa, de tal forma que qualquer
determinação pode ser deduzida da outra de modo absoluto e apriori. É este o conceito de infinidade de consciência
encontrado em Fichte, Schelling e Hegel (quanto ao segundo, apenas numa primeira fase de sua filosofia). Em
segundo lugar, a infinidade de consciência pode ser entendida como atividade livre, amorfa, privada de determinações
rigorosas, e tal que se coloca continuamente além de qualquer de suas determinações: neste sentido a infinidade de
consciência é o sentimento. O sentimento é o infinito na forma do indefinido, e foi desta forma que Schleiermacher e
a chamada escola romântica (F. Schlegel, Novaiis, Tieck e outros) reconheceram a infinidade da consciência.
De fato, o R. literário começou com a obra de Schlegel (1772-1829), que, entre 1798 e 1800, publicou em
colaboração com o irmão o periódico Athenaeum, primeiro porta-voz da escola romântica. Schlegel apontava
explicitamente Fichte como iniciador do movimento romântico, como descobridor do conceito romântico de infinito,
mas interpretava o infinito como algo exterior e superior à racionalidade, como infinidade de sentimento. O mesmo
conceito do infinito aparece no poeta e literato Ludwig Tieck e em Novaiis: este sustentava um idealismo mágico,
segundo o qual o mundo não passa de uma grande obra de poesia. A essa mesma corrente pertence o teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834), que definiu a religião como "sentimento do infinito".
Nesta interpretação do princípio de infinito baseia-se a supremacia que por vezes o R. atribui à arte. Com efeito, se o
infinito é sentimento, revela-se melhor na arte que na filosofia, porque a filosofia é racionalidade, ao passo que a arte
apresenta-se aos românticos como "expressão do sentimento". Para Schelling, que tendia a essa interpretação, a
melhor manifestação do absoluto estava na arte, o mundo era uma espécie de poema ou de obra artística cujo autor
seria o absoluto, para o homem a expe-
ROMANTISMO
861
ROMANTISMO
riência artística era o único meio eficaz de aproximar-se do absoluto, ou seja, do modo como o absoluto deu origem
ao mundo.
Quando o movimento romântico se difundiu fora da Alemanha, foi exatamente essa a sua bandeira. O R. de Madame
de Staêl e de Chateaubriand consiste sobretudo na exaltação dos valores do sentimento, e foi com essa mesma forma
que o R. encontrou expressão na Itália.
Essas duas interpretações da autoconsciên-cia muitas vezes se opuseram; Hegel, principalmente, abriu polêmica
contra a primazia do sentimento. No conjunto, porém, é sobretudo nessa oposição e nessa polêmica que consiste a
característica fundamental do R. No entanto, pertence apenas à escola do sentimento um dos aspectos mais evidentes
do R.: a ironia, que representa a impossibilidade de a consciência infinita levar a sério e considerar sólidos os seus
produtos (natureza, arte, o eu), nos quais vê apenas suas próprias manifestações provisórias.
São, porém, caracteres comuns e fundamentais de todas as manifestações do R. o otimismo, o providencialismo, o
tradicionalismo e o titanismo. Otimismo é a convicção de que a realidade é tudo aquilo que deve ser, e de que é em
todos os momentos racionalidade e perfeição. É devido a esse otimismo que o R. tende a exaltar a dor, a infelicidade
e o mal, pois a infinidade do espírito também se manifesta nesses aspectos da realidade, superando-os e conciliandoos em sua perfeição. Hegel apresenta-nos o mundo romântico na felicidade de sua perfeita pacificação racional.
Schopenhauer apresenta-o na infelicidade de suas oposições irracionais, mas ainda assim satisfeito por reconhecer-se
nesse contraste. A vontade irracional de Schopenhauer é um princípio tão otimista quanto a razão absoluta de Hegel.
Com o otimismo metafísico do R. relaciona-se seu providencialismo histórico. A história é um processo necessário,
no qual a razão infinita se manifesta ou se realiza; por isso, nela nada há de irracional ou inútil. Nesse aspecto, o R.
opõe-se radicalmente ao iluminismo. Este último contrapõe tradição e história: à força da tradição, que tende a
conservar e perpetuar preconceitos, ignorâncias, violências e fraudes, opõe a história como reconhecimento dessas
coisas tais quais são, e como esforço racional para libertar-se delas. Para o R., porém, tudo o que a tradição lega é
manifestação da Razão
Infinita: é verdade e perfeição. Portanto, o espírito iluminista é crítico e revolucionário; o espírito romântico é
exaltativo e conservador. O conceito de história como projeto providencial do mundo domina toda a filosofia do séc.
XIX; mesmo no séc. XX, a filosofia só consegue libertar-se desse conceito através de amargas experiências históricas
e culturais. É nessa concepção de história que mais se manifesta a afinidade entre idealismo e positivismo no sentido
comum de romantismo. Comte tem o mesmo conceito de história de Fichte, Schelling — mais tarde —, Croce e dos
epígonos do romantismo no séc. XX. A história como manifestação de um princípio infinito (Eu, Autoconsciência,
Razão, Espírito, Humanidade, ou qualquer outro nome que se lhe dê) é racionalidade total e perfeita, não conhecendo
imperfeição ou mal. A forma extremada desse conceito de história está em Hegel (repetido por Croce): a história não
é progresso ao infinito, visto que, se assim fosse, cada um de seus momentos seria menos perfeito que o outro; ela é
infinita perfeição de todos os seus momentos. A contraposição hegeliana entre o "verdadeiro infinito" e o "mau
infinito" não significa outra coisa. E óbvio que, num conceito da história semelhante, não há lugar para o indivíduo e
suas liberdades, pelos quais o iluminismo se batera. Há lugar apenas para os "heróis" ou "indivíduos da história
cósmica", instrumentos de que a providência histórica se vale para realizar astutamente seus fins.
Aspecto importante do providencialismo romântico é o tradicionalismo-. com efeito, a exaltação das tradições e das
instituições que a encarnam é um dos aspectos típicos do movimento romântico. A essa atitude deveu-se a
revalorização da Idade Média, que é característica do R. A Idade Média afigurara-se ao iluminismo (assim como,
antes, ao humanismo) como uma época de decadência e de barbárie, em que haviam sido perdidos os valores
humanos e racionais criados pela Antigüidade clássica. Para o R. não existem épocas de decadência ou de barbárie
porque toda a história é racionalidade e perfeição. Na Idade Média, aliás, mais do que no mundo clássico, pode-se e
deve-se ver — segundo o R. — a origem do mundo moderno: assim, o retorno à Idade Média constitui uma de suas
palavras de ordem. Em virtude dessa mesma atitude, o R. alemão começou a exaltar as tradições originárias da nação
alemã, surgindo a primeira
ROMANTISMO
862
RUPTURA
forma de nacionalismo, que se difundiria e acabaria por tornar-se uma das marcas da cultura européia do séc. XIX.
De fato, o conceito de nação é composto por elementos tradicionais (raça, língua, costumes, religião), que não podem
ser negados ou renegados sem traição, pois constituem aquilo que a nação foi desde sempre. Ao contrário, o conceito
setecentista de povo era definido pela vontade e pelos interesses comuns dos indivíduos. Tradicionalismo e
nacionalismo fincam raízes no terreno comum do providencialismo romântico.
Finalmente, um dos aspectos fundamentais e mais evidentes do R. é o titanismo. De fato, o culto e a exaltação do
infinito têm como contrapartida negativa a inaceitabilidade do finito ou a impossibilidade de satisfazer-se com ele.
Nessa inaceitabilidade (ou insatisfação) estão as raízes da atitude de rebeldia contra tudo o que parece ser ou é limite
ou regra e do desafio incessante a tudo o que, por sua finitude, parece inferior ou inadequado ao infinito. Prometeu é
adotado como símbolo desse titanismo, numa interpretação muito distante do espírito do antigo mito grego. Para este,
Prometeu era o homem que transgredira a lei do destino para possibilitar a sobrevivência do gênero humano, sofrendo
as conseqüências dessa transgressão. Para o R., porém, é o símbolo do desafio e da rebeldia ao finito: atitudes cuja
razão de ser não está naquilo a que se opõem, mas apenas no fato de que aquilo a que se opõem não é o infinito. A
atitude titânica não conduz à crítica das situações de fato e ao esforço de transformá-las, pois não julga que uma
situação de fato seja ou possa ser superior ou preferível a outra; exaure-se num protesto universal e genérico, e não
pode empenhar-se em qualquer decisão concreta.
O culto e a exaltação do infinito, o fato de não se contentar com menos que a infinidade, constituem características
marcantes do espírito romântico. Como já foi dito, o próprio positivismo se enquadra nesse espírito. Ele estende o
conceito de progresso a toda a história do mundo: na verdade, é esse o sentido de "evolução". Faz da história humana
um progresso necessário e
infalível. E faz da ciência, que é sua manifestação humana preferida, o infinito da verdade, elegendo-a como única
diretriz dos homens em todos os campos.
As características assumidas pelo R. em política, arte e costumes estão intimamente ligados aos aspectos ora
esclarecidos. Em política, o R. é defesa e exaltação das instituições humanas fundamentais, nas quais se personifica o
Princípio infinito: Estado, Igreja, com tudo o que implicam. Em arte, busca a realização do infinito através de formas
grandiosas e dramáticas, em que os conflitos são levados ao extremo para depois reconciliarem-se e pacificarem-se de
maneira igualmente extremada e definitiva. Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta entre os
amantes, sua identificação no infinito; em favor dessa unidade ou identificação sacrifica o sentido autêntico da
relação amorosa e sua possibilidade de constituir a base para uma vida em comum (v. AMOR).
ROSMINIANISMO. São designadas com este termo as principais características da filosofia de Antônio Rosmini
Serbati (1797-1855), em especial: Ia tradicionalismo, como preocupação em defender os valores tradicionais e em
justificar a tradição como produto ou manifestação de Deus; 2 a ontologismo-. tese segundo a qual o espírito humano
frui um conhecimento do ser imediato e indubitável, conquanto parcial, sendo tal conhecimento a base de todo saber
(v. ONTOLOGIA); 3a escolasticismo: concepção da filosofia como instrumento para justificar as verdades da religião.
RUPTURA (ai. Zerrissenheit). Termo introduzido pelas filosofias existencialistas. Para Jaspers, a R. do mundo se dá
quando a busca da totalidade absoluta, que tudo abarca, desemboca numa multiplicidade de perspectivas, cada uma
das quais é relativa a determinado ponto de vista e nenhuma, portanto, pode eqüivaler a um mundo {Phil., I, pp. 64
ss.). Segundo Hei-degger, a R. do mundo ocorre com a ciência e a técnica, que organizam a separação entre o homem
e a natureza (Erláuterungen zu Hólder-lin, pp. 271 ss.).
s
SABEDORIA1 (gr. 9póvr|crtç; lat. Sapientia, Prudentia; in. Wisdom, fr. Sagesse, ai. Weis-heit; it.
Saggezzà). Em geral, a disciplina racional das atividades humanas: comportamento racional em todos os
domínios ou virtude de determinar o que é bom e o que é mau para o homem. O conceito de S. refere-se
tradicionalmente à conduta racional nas atividades humanas, ou seja, à possibilidade de dirigi-las da
melhor maneira. Não é o conhecimento de coisas elevadas e sublimes, afastadas da humanidade comum,
o que é expresso por sapientia, mas o conhecimento das atividades humanas e da melhor maneira de
conduzi-las. A superioridade atribuída à prudentia ou à sapientia demonstra a interpretação fundamental
que se tem de filosofia: o predomínio da segunda é típico do conceito de filosofia como contemplação
pura; o primado concedido à prudentia expressa o conceito de filosofia como guia do homem no mundo
(v. FILOSOFIA, II).
Em Aristóteles, encontra-se uma distinção nítida entre dois tipos de sabedoria, que não se encontra em
Platão. Este chama de sofia (oo(pía) a ciência que preside à ação virtuosa (Rep., IV, 443 e; cf. 428 b), que
corresponde à prudentia. Diz que ela é "a mais elevada e, sem a menor dúvida, a mais bela, pois trata da
organização política e doméstica, à qual se dá o nome de prudência e justiça" (OBanq., 209 a). As formas
de saber que constituem fins em si mesmas são alheias à concepção filosófica de Platão. Esse saber, no
entanto, é exaltado por Aristóteles, que o considera a forma mais elevada e divina: o outro tipo de
sabedoria restringe-se a coisas meramente humanas, portanto, de menor valor. Desse ponto de vista, ela é
definida como "hábito prático e racional que diz respeito ao que é bom ou mau para o homem" (Et. nic,
VI, 5, 1140 b 4). Mas "o homem não
é o melhor ser do mundo" (Ibid., VI, 7, 1141 a 21); é um ser mutável, e a S. que lhe diz respeito é também
mutável, ao passo que a verdadeira sabedoria é sempre a mesma {Ibid., 1141 a 20 ss.). Portanto,
Aristóteles põe esse tipo de sabedoria acima de tudo, sendo seu objeto aquilo que não pode mudar nem
ser diferente do que é: o necessário.
A distinção e a oposição feitas por Aristóteles mantiveram-se através dos séculos, e o modo de entender
os dois tipos de S. (que em algumas línguas são indicadas pela mesma palavra) revela a orientação geral
de determinada filosofia: para a contemplação ou para a ação. Após Aristóteles, prevaleceu o ideal de
sabedoria prática. Epicuro dizia que a S., "de que nascem todas as virtudes, é até mais preciosa que a
filosofia" (CartasaMenec, 132). Os estóicos identificavam esse tipo de S. com virtude total, da qual todas
as outras provêm (DIÓG. L., VII, 125-26). O neoplatonismo, por sua vez, exaltava o outro tipo de
sabedoria (PLOTINO, Enn., V, 8, 4), ao passo que S. Tomás reproduzia essa distinção, chamando a S.
prática de prudentia e considerando-a "conselheira em todas as coisas referentes à vida humana, bem
como o fim precípuo da vida humana" (S. Th., II, 1, q. 57, a 4). O mundo moderno dá preferência ao ideal
prático da S., que retorna em Descartes (Princ. phil, pref.) e em Leibniz. Este último une, em sua
definição, o aspecto teórico e o prático: "a S. é o perfeito conhecimento de todos os princípios e de todas
as ciências, bem como da arte de aplicá-los" (De Ia sagesse, Op., ed. Erdmann, p. 673), mas a inclusão do
aspecto prático significa a refutação do ideal de sapientia. Ao mesmo âmbito pertence a definição de
Kant: "A S. consiste na concordância da vontade de um ser com seu objetivo final" (Met. der Sitten, II, §
45).
SABEDORIA2
864
SABEDORIA2
Hegel acentuava o caráter humano e terreno da S., ao falar de uma S. terrena(Weltweisheit), que o Renascimento teria
oposto como razão humana, à razão divina, à religião (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, pp. 92 ss.).
Schopenhauer acentua ainda mais o caráter terreno da S., entendendo por ela "a arte de levar a vida da maneira mais
agradável e feliz possível" (Aphorismen zur Lebensweisheit, Pref.).
Para os filósofos contemporâneos a palavra S., em suas duas acepções, parece solene demais para que eles se
detenham na tarefa de esclarecer seu conceito. No entanto, para eles, assim como para os antigos, a S. continua ligada
à esfera dos afazeres humanos, e pode-se dizer que é constituída pelas técnicas antigas ou novas de que o homem
dispõe para a melhor conduta de vida.
SABEDORIA2 (gr. oocpíoi; lat. Sapientia-, in. Wisdom; fr. Sagesse, ai. Weisheit; it. Sapienzd). É o conhecimento
superior das coisas excelentes. Caracteriza-se: Ia por ser o grau mais elevado de conhecimento, ou seja, o mais sólido
e completo; 2° por ter como objetivo as coisas mais elevadas e sublimes, que são as coisas divinas.
Esse, pelo menos, foi o conceito inicial para distinguir os dois tipos de S., o que ocorreu em Aristóteles. Até ele, e
mesmo em Platão, o conceito era um só e identificava-se com o de sabedoria como conduta racional da vida humana
(cf. PLATÃO, Rep. 428 b; 4-33 e). Aristóteles distinguiu e contrapôs as duas coisas: "A sofia é o mais perfeito dos
saberes. Quem o detém deve saber não só o que deriva dos princípios, mas também conhecer os princípios. Assim, a
5. pode ser chamada ao mesmo tempo de intelecto e ciência, e, encabeçando todas as ciências, será a ciência das
coisas mais excelentes" (Et. nic, VI, 7, 11 4 Ia 16). Intelecto e ciência têm aí o sentido específico definido por
Aristóteles: intelecto (voüç) como conhecimento direto dos princípios da demonstração (Ibid., VI,
6, 1141 a 7), ciência como "hábito da demonstração" ou faculdade de demonstrar (Ibid., VI. 3 1139b 31). Portanto, a
S. (oocpía) é o conhecimento mais certo e perfeito, por ser, ao mesmo tempo, conhecimento dos princípios e das
demonstrações que deles resultam. Além disso, como tal, também é a ciência das coisas mais elevadas e sublimes.
"Por natureza, há outras coisas muito mais divinas que o homem, como os astros luminosos de que se compõe o
mundo. (...) Por isso se diz que Anaxágoras, Tales e outros homens desse tipo são sábios, porque
não conhecem as coisas que lhes são úteis, mas as coisas excepcionais, maravilhosas, difíceis e divinas, porém
inúteis, visto que não indagam acerca dos bens humanos" (Ibid., VI, 7, 1041 b 1). Portanto, o objeto específico da S. é
o necessário, aquilo que não pode ser de outro modo (Ibid., 1041 b 11), ao passo que a S. tem por objetivo as
atividades humanas mutáveis e contingentes. Essa doutrina de Aristóteles constitui um dos aspectos que mais
acentuam a divergência entre ele e Platão, porquanto a filosofia de Platão tem em mira a sabedoria humana, enquanto
a de Aristóteles opõe a esta a sabedoria divina. A afirmação do primado desse tipo de S. caracteriza as filosofias de
tipo contemplativo, tanto quanto a afirmação da superioridade da sabedoria prática caracteriza as filosofias
orientadoras (v. FILOSOFIA, II).
Em vista do caráter "divino" da S. (oocpía), não admira que nas filosofias de fundo religioso da época alexandrina e
posteriores, ela tenha sido substancializada e entendida como uma espécie de intermediária entre Deus e o mundo: um
equivalente do logos (v.). Segundo Plotino, há uma S. que é substância, e nenhuma outra S. é melhor que ela: "cria
todos os seres, todos emanam dela; ela mesma é os seres que nascem com ela e com ela se identificam, de tal maneira
que S. e substância são uma única coisa''(Enn., V, 8, 4). Esta concepção já se encontrava no livro bíblico da
Sabedoria, onde se diz: "É um vapor da virtude divina e uma emanação sincera da luz de Deus onipotente. É
esplendor da luz eterna, espelho imaculado da majestade de Deus e a imagem de Sua bondade. Embora sendo una,
pode tudo, e, permanecendo em si, inova todas as coisas e transporta-se de nação a nação nas almas santas, que
constituem os amigos de Deus e os profetas" (Prov., VII, 25-27). Por outro lado, os gnósticos haviam personificado a
S., transformando-a na última emanação ou eon, que quer sair de seu estado de desejo e alcançar o conhecimento
direto do Pai (IRINEU, Adv. Haer., II, 5). Os próprios estóicos chamaram Deus, como alma do mundo, de "perfeita S."
(CÍCERO, Acad., I, 29).
A filosofia medieval, com S. Tomás, retoma o conceito aristotélico de S. Segundo ele, a S. tem em comum com todas
as ciências a capacidade de deduzir conclusões de princípios, mas também tem algo mais que as outras ciências,
"porquanto julga todas as coisas, não só quanto às conclusões, mas também quanto
SABEDORIA POÉTICA
865
SÁBIO
aos primeiros princípios; assim, é uma virtude mais perfeita que a ciência" (S. Th., III, q. 57, a. 2, ad ls).
Na filosofia moderna, esse termo conservou o significado de conhecimento perfeito, tanto por ser completo quanto
pela natureza de seu objeto.
SABEDORIA POÉTICA (it. Sapienza poética). No segundo livro de Ciência nova (1744), Viço deu esse nome à
cultura primitiva do gênero humano, que se basearia na sensibilidade, mais que na inteligência: "A S. poética, que foi
a primeira S. dos gentios, teve que começar de uma metafísica não racional e abstrata, como a dos doutos de hoje,
mas sentida e imaginada, que devia ser a daqueles primeiros homens, assim como eram eles, de nenhum raciocínio
mas de sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias". Como partes da S. poética, Viço fala de lógica poética, moral
poética, economia poética, história poética, física poética, cosmografia poética, astronomia poética, cronologia
poética e geografia poética.
SABELIANISMO (in. Sabellianism; fr. Sa-bellianisme, ai. Sabellianismus; it. Sabellianis-mo). Doutrina trinitária
sustentada por Sabélio na primeira metade do séc. II d.C: insistindo na unidade da Substância Divina, reduzia as
Pessoas Divinas a três modos ou manifestações da Substância Única. Por isso, essa doutrina foi chamada de
modalismo (v.).
SABER (in. Knowing, To knoiv, fr. Savoir, ai. Wissen-, it. Saperé). Este verbo substantivado é usado com dois
significados principais:
le Como conhecimento em geral, e neste caso designa: qualquer técnica considerada capaz de fornecer informações
sobre um objeto; um conjunto de tais técnicas; ou o conjunto mais ou menos organizado de seus resultados. W. James
aceitou a distinção estabelecida por J. Grote (Exploratiophilosophica, 1856, p. 60) entre conhecer uma coisa, uma
pessoa ou um objeto qualquer (que significa ter certa familia-ridade com esse objeto), e S. algo a respeito do objeto (o
que significa ter dele um conhecimento talvez limitado, mas exato, de natureza intelectual ou científica) {The
Meaning of Truth, 1909, pp. 11-12). Mas essa distinção difundiu-se especialmente na forma dada por Russell em
famoso artigo de 1905: "A distinção entre experiência direta iacquaintancè) e conhecimento sobre (knowledge about)
é a distinção entre as coisas que nos estão imediatamente presentes e as que nós alcançamos
apenas por meio de frases denotativas" ("On denoting", 1905, em Logic and Knowledge, 1956, p. 41). Tal distinção
constituiu um dos pontos altos da doutrina do Círculo de Viena; embora Carnap tenha reconhecido desde logo suas
dificuldades ("Testability and Meaning" in Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 48 ss.) ela continuou
sendo e ainda é o pressuposto de muitas doutrinas, inclusive a de Carnap (v. EXPERIÊNCIA).
2- Como ciência, ou seja, como conhecimento cuja verdade é de certo modo garantida (para este significado v.
CIÊNCIA).
SÁBIO (gr. acxpóç; lat. Sapiens; in. Sage, fr. Sage, ai. Weise, it. Saggio). A figura estereotipada do S. foi traçada
pela filosofia grega do período alexandrino por epicuristas, estóicos e céticos (sobretudo pelos estóicos) e entrou para
a tradição com certas características fundamentais. O caráter primordial e fundamental que as três escolas atribuem ao
S. é o de serenidade ou indiferença em relação às vicissitudes ou aos movimentos humanos, ao que dão o nome de
ataraxia, aponia ou apatia (v.). As outras características são as seguintes:
Ia Isolamento, como claro afastamento dos outros mortais, com os quais o S. nada tem em comum. Os estóicos
levaram esse afastamento ao limite extremo, admitindo duas espécies de homens, os que praticam a virtude e os que
não a praticam, dizendo que os primeiros são sábios e todos os demais, loucos. 0- STOBEO, Ecl, II, 7, 11; 65, 12).
2- Impossibilidade de progresso, quem não é S. é tolo ou louco, e não pode haver S. que seja mais S. que outro.
Cícero diz: "Quem está imerso na água, mesmo que esteja tão perto da superfície a ponto de quase emergir, não
consegue respirar tanto quanto se estivesse ainda no fundo (...): da mesma maneira, quem avançou um pouco em
direção ao hábito da virtude não está menos sujeito à infelicidade do que quem não avançou nem um pouco"
(Definibus, III, 14, 48).
3a Autarquia. Este caráter já foi exaltado por Aristóteles: "O justo ainda necessita de pessoas que possa tratar com
justiça, com as quais ser justo; o mesmo se diz do homem moderado, do corajoso e cada um dos outros homens
virtuosos. OS., ao contrário, pode contemplar sozinho, tanto mais quanto mais for S.; talvez seja melhor quando tem
colaboradores, contudo é totalmente auto-suficiente" {Et. nic, X, 7, 1177 a 30). No entanto, Aristóteles fazia alusão à
ati-
SÁBIOS, SETE
866
SAGRADO ou SACRO
vidade contemplativa, à qual se limitava o S.; as escolas pós-aristotélicas estendem o caráter de autosuficiência do S. a todas as manifestações de sua vida, não limitada necessariamente à contemplação.
4a Renúncia. Foi nesse caráter que os estéticos latinos, Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio mais insistiram.
Em vista da distinção feita por Epicteto entre as coisas que o homem pode dominar (seus estados de
espírito), e as que ele não pode (as coisas exteriores), o S. deve renunciar às coisas externas e colocar o
bem e o mal unicamente nas que estão em seu poder (Manual, 31). Isso implica a renúncia a ocupar-se
das coisas e a aceitação da máxima "suporta e abstém-te" (A. GÉLIO, Noct. Att., XVII, 19, 6).
5a Consciência. Esta característica foi acrescentada à figura do S. pelo neoplatonismo, que exaltou
principalmente a faculdade de olhar para dentro de si, extraindo tudo de si mesmo. Plotino diz: "O S.
extrai de si mesmo aquilo que manifesta aos outros: olha apenas para si: não só tende a unificar-se e a
isolar-se das coisas exteriores, mas também está voltado para si e encontra em si todas as coisas" (Enn.,
III, 8, 6; cf. I, 4, 4). Este movimento de olhar para si mesmo e encontrar tudo em si é a consciência (v.);
segundo este ponto de vista, é só no S. que a consciência se realiza e vive.
SÁBIOS, SETE (gr. Eo<piOTaí; in. Seven Sa-ges; fr. Sept Sages; ai. Sieben Weisen; it. Sette Saví). Esse
foi o nome dado a algumas personalidades da Antigüidade grega que expressaram sua sabedoria em
sentenças ou expressões brevíssimas; por esta última característica também receberam o nome de
gnômicos. Eles foram enumerados de várias maneiras pelos escritores antigos. Tales, Bias, Pítaco e Sólon
estão incluídos em todas as listas. Platão, que foi o primeiro a enumerá-los, acrescentou Cleóbulo, Míson
e Quílon (Prot., 343 a). A Tales atribui-se o ditado "Conhece-te a ti mesmo" (DIÓG. L., I, 40); a Bias
foram atribuídas as frases "A maioria é malvada" (Ibid. I, 88) e "Pelo fardo se conhece o homem"
(ARISTÓTELES, Et. nic, V, 1, 1029 b 1); a Pítaco, o ditado "Aproveita o dia de hoje" (DIÓG. L., I, 79); a
Sólon, a máxima "Leva a sério as coisas importantes" e a expressão "Não mais além" (Ibid., I, 60, 63); a
Cleóbulo, a máxima "O melhor é a medida" (Ibid., I, 93); a Míson, o ditado "Procura as palavras nas
coisas, e não as coisas nas palavras" (Ibid., I, 108); a Quílon, os ditados
"Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (Ibid, I, 70).
SACERDOTALISMO (in. Sacerdotalisni). Termo usado principalmente por escritores anglo-saxões
para designar a tendência a atribuir, em religião, a máxima importância ao aspecto eclesiástico e
sacramentai, em detrimento do aspecto interior e espiritual.
SACRIFÍCIO (in. Sacrifice, fr. Sacrifice, ai. Opfer, it. Sacrifício'). Destruição de um bem ou renúncia ao
mesmo, em honra à divindade. O S. é uma das técnicas religiosas mais difundidas. Seu objetivo é a
purificação de alguma culpa ou pecado: neste caso, é desinteressado, ou seja, não tem objetivo utilitário
imediato. Seu objetivo também pode ser a consagração, que é uma finalidade mais ou menos utilitária,
pois consiste em persuadir a divindade a dar garantias à coisa ou à pessoa que se consagra. Tanto a
purificação quanto a consagração na maioria das vezes têm caráter simbólico, no sentido de que a dádiva
sacrificada não tem apenas o valor econômico que a comunidade lhe atribui, mas também certa relação
simbólica com o objetivo (purificação ou consagração) da cerimônia sacrificai. Essas características
podem ser identificadas nas técnicas sacrificais de todas as religiões, seja qual for seu grau de
desenvolvimento ou de refinamento intelectual (cf. S. REINACH, Cultes, mytheset religions, 1905; E.
DURKHEIM, les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912; A. LOISY, Essai historique sur le sacrifice,
1920; P. RADIN, Primitive Religion, 1937).
SAGACIDADE (gr. eíxruveoía; lat. Sagacitas; in. Sagacity, fr. Sagacité, ai. Sagazitüt; it. Saga-cia).
Perspicácia na investigação. Aristóteles identificou a S. com o ato de apreender (Et. nic, VI, 10, 1143 a
17), e Kant definiu-a como "o dom natural que consiste em julgar por antecipação (judicium praeviurrí)
onde pode ser encontrada a verdade e de aproveitar as menores circunstâncias para descobri-la" (Antr, I,
§56).
SAGRADO ou SACRO (gr. iepóç; lat. Sacer, in. Sacred; fr. Sacré, ai. Heilig; it. Sacro). Objeto religioso
em geral, ou seja, tudo o que é objeto de garantia sobrenatural ou que diz respeito a ela. Como essa
garantia às vezes pode ser negativa ou proibitiva, o S. tem caráter duplo, de santo e sacrílego: S. porque
prescrito e exaltado pela garantia divina, ou porque proibido ou condenado pela mesma garantia (cf.
DURKHEIM, Les formes élémentaires de Ia vie
SALTO
867
SANSIMONISMO
religieuse, 1912). R. Otto chamou estes dois aspectos, respectivamente, de fascinante e tremendo {Das Heilige,
1917). Heidegger, interpretando uma poesia de Hõlderlin que identifica a natureza com o S., considerou o S. como
raiz do destino dos homens e dos deuses: "O S. decide inicialmente, acerca dos homens e dos deuses, quem serão,
como serão e quando serão" {Erlüuteerungen zu Hõlderlin, 1943, pp. 73-74). Heidegger afirma também que "O S.
não é S. porque divino, mas o divino é divino porque S." {Ibid., p. 58).
SALTO (lat. Saltus; in. Leap, fr. Saut; ai. Sprung; it. Salto). Termo empregado por Kier-kegaard para indicar a
"passagem qualitativa", brusca e sem mediação de uma categoria para outra ou de uma forma de vida para outra (p.
ex., da vida ética para a vida religiosa) ou, em geral, de um estado para outro (p. ex., da inocência para o pecado, do
pecado para a fé, etc). Kierkegaard opôs essa noção de S. à noção hegeliana de mediação (v.) e ilustrou-a
aproximando-a: 1Q do entimema(v); 2a da analogia e da indução; 3B da teoria hegeliana. ls Entimema é o silogismo
contraído, no qual se omite uma premissa e se passa diretamente da premissa maior à conclusão ("Todos os animais
são mortais, logo o homem é mortal") (Diário, VI A, 33). Nesse sentido, a palavra S. é encontrada em Kant com o
mesmo uso: "S. {saltus) na dedução ou na prova é a conexão de uma premissa com a conclusão, de tal maneira que a
outra premissa é negligenciada" {Logik, 1800, § 91). 2o A analogia estabelece uma relação entre coisas
qualitativamente diferentes e a indução passa do particular ao universal {Diário, V A, 74). 3a A doutrina hegeliana
sobre a mudança quantitativa que provoca uma mudança qualitativa é a fonte autêntica do conceito kierkegaardiano.
Hegel dizia: "A água, com a mudança da temperatura, não só se torna mais ou menos quente, mas passa pelos estados
sólido, gasoso e líquido. Esses estados diferentes não nascem aos poucos, mas o próprio processo gradativo de
mudança na temperatura é por eles interrompido, e o aparecimento de um novo estado é um salto. Qualquer mudança
e qualquer morte, em lugar de ser um contínuo pouco a pouco é um truncamento do pouco a pouco e um salto da
mudança quantitativa para a mudança qualitativa {Wissenschaft der Logik, I, seção III, cap. II, B; trad. it., pp. 418419). Kierkegaard censura Hegel por haver limitado este conceito ao domínio da lógica {DerBegriff
Angst, I, § 2; trad. it., p. 35 e nota). Jacobi, no entanto, usara a expressão salto mortale (em italiano) para caracterizar
a passagem da fé ao conhecimento filosófico {Werke, IV, pp. XL ss.), ao passo que Kant utilizou a mesma expressão
para indicar a passagem da razão para a fé cega {Religion, B 158). SALVAÇÃO. V. REDENÇÃO. SAMSARA. V.
BUDISMO. SANÇÃO (lat. Sanctio; in. Sanction; fr. Sanction; ai. Sanktion; it. Sanzioné). Há dois conceitos para este
termo, correspondentes às duas orientações fundamentais da ética (v).
Ia No primeiro, que corresponde à ética dos fins, a S. é a conseqüência agradável ou dolorosa (recompensa ou castigo)
que determinada ação produz em determinada ordenação (natural, moral ou jurídica). Neste caso, a natureza da S.
depende da natureza da ordenação à qual se faz referência, existindo então S. naturais, morais e jurídicas, segundo a
natureza da ordenação que a determine.
2Q No segundo significado, a S. é, em geral, um estímulo à conduta. Este é o conceito de S. estabelecido por
Bentham: "Os estimuladores da conduta transferem a conduta e suas conseqüências para a esfera das esperanças e dos
temores: das esperanças que nos oferecem um excedente de prazeres; dos temores que prevêem um excedente de dor.
Esses estimuladores podem receber o nome de S." {Deontology, 1834,1, 7). Este mesmo conceito de S. foi aceito
pelos utilitaristas ingleses (cf. STUART MILL, Utilitarianism, cap. III) (v. PENA).
SANQUIA. Um dos grandes sistemas filosóficos hindus, segundo o qual existem duas substâncias opostas, mas
ambas eternas e infinitas: as almas (purushã), que são múltiplas, simples e inativas, e a natureza {prakrti), que é
única, complexa e dinâmica. Esse sistema não admite a existência de uma divindade reguladora do mundo. Tudo
nasce da natureza e volta a ela por um movimento circular que se repete indefinidamente (cf. G. Tucci, História da
filosofia indiana, 1957, cap. V, e a bibliografia respectiva).
SANSIMONISMO (in. Saint-Simonism; fr. Saint-Simonisme, ai. Saint-Simonismus; it. Sansimonismo). Doutrina do
conde Claude Henri de Saint-Simon (1760-1825), exposta em numerosos textos, sendo os principais: Intro-duction
aux travaux scientifiques du XIX' siè-cle, 1807; Uindustrie, 1816-18; Nouveau chris-tianisme, 1825, etc. Saint-Simon
é o verdadeiro
SANTIDADE
868
SEITA
fundador do positivismo social, cujo objetivo era utilizar a ciência e a filosofia nela baseada como fundamento de
uma reorganização radical da sociedade humana. Na nova sociedade, o poder espiritual seria entregue aos cientistas, e
o poder temporal, aos industriais. No Novo cristianismo, Saint-Simon definiu o surgimento da sociedade tecnocrática
como retorno ao cristianismo primitivo. O S. contribuiu para a consciência da importância social e espiritual das
conquistas da ciência e da técnica, incentivando poderosamente o desenvolvimento industrial: ferrovias, bancos,
indústrias e até a idéia de construir os canais de Suez e do Panamá couberam a sansimonistas (v. POSITIVISMO).
SANTIDADE (gr. ócruóTr|Ç; lat. Sanctitas; in. Holiness; fr. Sainteté, ai. Heiligkeit; it. Santitã). Este termo tem dois
significados fundamentais: um objetivo, que designa a inviolabilidade e em geral um valor a ser reconhecido e
salvaguardado; 2Q um subjetivo, que designa o grau excelente e superior da virtude ou da religião como virtude.
No primeiro sentido chama-se de santo o que é sancionado ou garantido por uma lei humana ou divina: p. ex., a
santidade das leis, do juramento, etc. No segundo sentido, é chamado de santo o ser que realiza em si a vida moral ou
religiosa no seu grau mais elevado. No primeiro sentido, Platão diz "atribuir corretamente a todos o que é justo e
santo" (Pol, 301 d); no segundo, ele nega que a S. consista em "fazer coisas agradáveis aos deuses" (Eut., 6 e) e
identifica a S. com o grau supremo de virtude, que é a justiça (Rep., X, 6l5b; Leis, II, 663b, etc). Ainda neste segundo
sentido, S. Tomás identificava a S. com a religião, isto é, com a mais alta virtude (S. Th., II, 2, q. 81, a. 8), e Kant
definia a S. como "a conformidade completa da vontade à lei moral". Assim, segundo Kant, a S. é "uma perfeição de
que não é capaz nenhum ser racional do mundo sensível em nenhum momento de sua existência". Portanto, ela só
pode ser admitida como limite do progresso infinito para a perfeição moral (Crít. R. Prática, I, II, cap. II, § 4). Por
outro lado, Kant admite também a S. no sentido objetivo, que ele define como inviolabilidade. Assim, diz que "a lei
moral é santa (inviolável)" (Jbid., § 5) e que "a humanidade deve ser santa para nós em nossa pessoa" (Jbid., § 5):
nesses casos, obviamente, a noção de S. é de valor supremo, que não pode ser ignorado. Essas observações de
Kant foram amplamente repetidas na filosofia moderna.
SAPERE AUDE. Estas palavras de Horácio (Epist. XII, 40) foram adotadas no séc. XVIII como lema do Iluminismo
("Ousa conhecer"); neste sentido, foi citado por Kant em sua obra sobre o Iluminismo (Was ist Aufklü-rung?, 1784,
em Werke, ed. Cassirer, IV, p. 169), que, ao traduzi-lo, dizia: "Tem coragem de usar teu próprio intelecto". Já em
1736 essa frase fora adotada como lema por uma "Sociedade dos Aletófilos" de Berlim, que se inspirava em Wolff
(cf. sobre os empregos dessa expressão: FRANCOVENTURI, Rivista Sto-rica Italiana, 1959, pp. 119 ss.).
SARCASMO (gr. oapKaauóç; in. Sarcasm; fr. Sarcasme, ai. Sarkasmus; it. Sarcasmo). Ironia unida à zombaria. O
conceito é de origem estóica (cf. J. STOBEO, Ecl, II, 6, 222).
SCHEBLIMINI. Termo que aparece no título de uma obra de J. G. Hamann (Golgotha und S., 1784) dirigida contra
Mendelssohn. O termo, provavelmente extraído de um texto de Lutero, significa inspiração divina e a exaltação que
ela comunica, donde sua oposição simétrica a "Gólgota", que é o símbolo da humilhação. (Cf. os esclarecimentos de
L. SCHREINEIR no vol. II de /. G. Hamanns Hauptschriften erklart, 1956; e V. VERRA, Dopo Kant. Ilcriticismo neWetã
pre-romantica, 1957, pp. 147 ss.).
SECUNDÁRIA, PROPOSIÇÃO (in. Secon-dary proposition; fr. Proposition secondaire, ai. Sekundàr Satz; it.
Proposizione secondarià). Boole indicou com esta expressão as proposições que têm por objeto outras proposições,
ao passo que chamou de primárias as proposições que têm por objeto as relações entre coisas (Laws of thought, 1854,
cap. XI).
SECUNDARIAS e PRIMÁRIAS, QUALIDADES. V. QUALIDADE.
SECUNDUM QUID ET SIMPLICITER (FALÁCIA). Já identificada por Aristóteles (El. sof., 5, 167 a), é a falácia
(v.) que consiste em passar de uma premissa, em que certo termo é tomado em sentido relativo, para uma conclusão
em que o mesmo termo é tomado em sentido absoluto ("Se o não-ser é objeto de opinião, o não-ser é"). (Cf. PEDRO
HISPANO, Summ. log., 7. 46 ss.)
SEITA (lat. Secta; in. Sect; fr. Secte, ai. Sekte, it. Settd). 1. Escola ou corrente filosófica. É neste sentido que a
palavra é empregada pelos escritores latinos (CÍCERO, Brut., 31,120; QUINT., Inst. or., V, 7, 35, etc).
SELEÇÃO
869
SEMELHANTE
2. Grupo de pessoas que defendem com fanatismo ou intolerância uma crença qualquer. É este o sentido com que se
usa hoje o adjetivo sectário.
SELEÇÃO (in. Selection; fr. Selection; ai. Selektion; it. Selezioné). Escolha: entendida como procedimento
consciente ou como resultado de um procedimento não deliberado. Neste segundo sentido, C. Darwin falou de S.
natural como procedimento através do qual a luta pela vida assegura a sobrevivência do mais apto (Origin ofSpecies,
IV, § 1).
SEMÂNTICA (in. Semantics; fr. Séman-tique, ai. Semantik). Propriamente, a doutrina que considera as relações dos
signos com os objetos a que eles se referem, que é a relação de designação. Este termo, proposto para tal doutrina por
Bréal (Essais de sêmantique. Science dessignifications, 1897), encontra justificação etimológica no verbo grego
OT|U,(XÍVEIV, introduzido por Aristóteles para indicar a função específica do signo lingüístico, em virtude da qual ele
"significa", "designa" algo. A S. seria portanto a parte da Lingüística (e mais especialmente da Lógica) que estuda e
analisa a função significativa dos signos, os nexos entre os signos lingüísticos (palavras, frases, etc.) e suas
significações. Embora seja esta a acepção mais difundida, hoje em dia, em filosofia e lógica esse termo também tem
outras acepções. Por ex., A. Korzybski (Science and Sanity) utiliza "S." para indicar uma teoria relativa ao uso da
linguagem, sobretudo em relação às neuroses que, segundo esse autor, são efeitos ou causas de certos maus usos
lingüísticos. Os lógicos poloneses em geral (e em particular Chwistek), que contribuíram sobremaneira para o
surgimento desse último ramo da lógica formal, não costumam distinguir entre proposição e enunciado, entre
significado lógico e forma lingüística de uma proposição, e usam esse termo para indicar a lógica formal em seu
conjunto. Não obstante, foi graças ao impulso dado pelos estudos dos lógicos poloneses que, por volta de 1956,
começou-se a delimitar o campo dessa nova disciplina. Foi graças a Ch. W. Morris e R. Carnap que no seio da
semiótica (teoria dos signos em geral, dos signos lingüísticos em particular) começaram a ser distinguidos alguns
aspectos fundamentais: pragmática, que estuda o comportamento gestual dos seres humanos que fazem sinais por
determinados motivos, para atingirem certos objetivos, etc. (portanto, é um ramo da psicologia e/ou da sociologia); S., que, sem considerar as circunstâncias concretas (psicológicas e sociológicas) do comportamento
lingüístico, restringe seu campo de investigação à relação entre signo e referente {significatum, designatum,
denotatum); e sintática, que, abstraindo até mesmo dos significados, estuda as relações entre os signos de
determinado sistema lingüístico. S. e sintática na verdade constituem dois grandes capítulos que dividem a lógica
formal pura. Desta última, porém, faz parte mais a S. pura, que constitui a priori as regras de um sistema sintático
geral, do que a S. descritiva, que é uma investigação empírica com vistas à descrição de determinado sistema
semântico (ou grupo de sistemas afins), portanto mais pertinente à lingüística que à lógica. Assim, a S.pura, mais que
doutrina dos significados, é uma teoria geral da verdade e da dedução nos sistemas sintáticos interpretados; por isso,
distingui-la da sintática torna-se difícil e problemático (cf. MORRIS, Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, cap. IV;
CARNAP, Foundations qfLogic and Mathe-matics, 1939, I, 2; Meaning and Necessity, 1957, p. 233; Introduction to
Semantics, 1942; 2- ed., 1958; LINSKY, editor, Semantics and the Philosophy qfLanguage, 1952).
Mais recentemente, Quine insistiu na diferença entre a referência semântica propriamente dita, que seria o significar,
e a referência do nomear. Tal diferença resulta, p. ex., do fato de que se pode nomear o mesmo objeto, como quando
se diz "Scott" e "o autor de Waverley", mesmo que os significados sejam diferentes. A S. conteria, assim, duas partes:
uma teoria do significado, à qual pertenceria a análise dos conceitos de sinonímia, significação, analiticidade,
implicação; e uma teoria da referência, à qual pertenceria a análise dos conceitos de nomeação, verdade, de-notação
e extensão. Mas o próprio Quine observa que até agora a palavra S. foi empregada principalmente para a teoria da
referência, embora esse nome fosse mais adequado à teoria do significado (From a Logical Point qf View, 1953, VII,
1; II, 1). V. SIGNIFICADO.
SEMASIOLOGIA. O mesmo que semântica (v.).
SEMELHANTE (gr. õ^otoç; lat. Similis, fr. Semblable, in. Alike, Similar, ai. Âhnlich; it. Similé). Aquilo que tem
qualquer determinação em comum com uma ou mais coisas. Aristóteles distinguiu os seguintes significados do
termo: 1Q são S. as coisas que têm a mesma
SEMENTES
870
SENSAÇÃO
forma, ainda que sejam substancialmente diferentes; neste sentido são S. um quadrado maior e um menor, bem como
duas linhas retas desiguais; 2a são S. as coisas que têm a mesma forma, mas estão sujeitas a variações quantitativas,
quando suas quantidades são iguais; 3a são S. as coisas que têm em comum a mesma afeição, como p. ex. o branco; 4 a
são S., as coisas cujas afeições iguais são mais numerosas que as afeições diferentes (Met., X, 3, 1054 b 3). É graças
ao primeiro significado que em geometria as figuras são chamadas de S. (cf. EUCLIDES, El., VI, def. 1, 3; def. 11, etc).
Na tradição posterior, a semelhança foi entendida especialmente em relação à qualidade comum (PEDRO HISPANO,
Sutnm. log., 3. 29), mas às vezes também com relação à forma (S. TOMÁS, Contra Gent, I, 29; cf. S. Th., I, q. 4a 3).
Mais genericamente, Wolff dizia que "são S. as coisas que são idênticas naquilo em que deveriam distinguir-se uma
da outra" (Ont., § 195). Determinações desse tipo definem pouco e dizem apenas que os critérios de semelhança
podem ser variados indefinidamente; o importante é que sejam declarados explicitamente em cada caso.
Foi só na matemática moderna que a noção de semelhança recebeu definição diferente, graças à teoria dos conjuntos.
São considerados S. os conjuntos que apresentem relação de termo a termo. Russell, p. ex., diz: "Diz-se que uma
classe é S. a outra quando existe uma relação de termo a termo, em que uma classe é dominante enquanto a outra é o
dominante inverso" (Jntroduction to Mathematical Philosophy, cap. II, trad. it, p. 27). Esta noção tem grande
importância para definição matemática do infinito (v.).
SEMENTES (gr. orcépiiaxa; lat. Seminà). Assim foram chamados freqüentemente os elementos últimos das coisas.
Anaxágoras foi o primeiro a usar esse termo para designar as partículas que Aristóteles chamou de homeo-merias (Fr.
4, Diels). Esse termo foi usado depois por Epicuro {Fr. 250, Uesener) e por Lucrécio (De rer. nat., VI, 201 ss.; VI,
444, etc). A mesma metáfora está presente na noção estóica de razões seminais (v.).
SEMIOSE (in. Semiosis). O processo em que algo funciona como signo, que é o objeto da semiótica, no sentido de
Morris (Founda-tions ofthe Theory ofSigns, 1938, II, 2). Essa palavra é equivalente à expressão comportamento
gestual (por sinais), que o próprio
Morris preferiu no volume Signs, Language and Behavior, 1946, I, 2 (v. SIGNO).
SEMIÓTICA (gr. TO OT|m.ümKÓV; in. Semio-tic, fr. Sémiotique, ai. Semiotik, it. Semiótica). Este termo, usado
inicialmente para indicar a ciência dos sintomas em medicina (cf. GALENO, Op., ed. Kün, XIV, 689), foi proposto por
Locke para indicar a doutrina dos signos, correspondente à lógica tradicional (Ensaio, IV, 21, 4); depois foi
empregado por Lambert como título da terceira parte do seu Novo Organon (1764). Na filosofia contemporânea, E.
Morris utilizou o conceito de S. como teoria da semiose (v), mais do que do signo, dividindo a S. em três partes, que
correspondem às três dimensões da semiose: semântica, que considera a relação dos signos com os objetos a que se
referem; pragmática, que considera a relação dos signos com os intérpretes; e sintática, que considera a relação
formal dos signos entre si (Foundations ofthe Theory of Signs, 1938, II, 3). Aceita por Carnap (Foundations of Logic
and Mathematics, 1939, I, 2), essa distinção difundiu-se amplamente em filosofia e lógica contemporâneas (V.
PRAGMÁTICA; SEMÂNTICA; SINTAXE).
SEM-LEI (it. eslegè). Viço dá esse nome ao estado que "a providência divina impôs aos ferozes e violentos que se
conduzissem para a humanidade e se organizassem em nações, despertando neles uma idéia confusa de divindade... E
assim, por temor a tal divindade imaginada, começaram a organizar-se de algum modo" (Scienza nuova, dign. 31).
Segundo Viço esse tempo de estado prova a função que a religião exerceu no surgimento da sociedade civilizada.
SENSAÇÃO (gr. aio9r|C7iÇ; lat. Sensus, Sen-sia, in. Sensation; fr. Sensation; ai. Empfin-dung; it. Sensazionè). Este
termo tem dois significados fundamentais: Ia um significado gene-ralíssimo, em virtude do qual designa a totalidade
do conhecimento sensível, ou seja, todos e cada um de seus elementos; 2a um significado específico, em virtude do
qual designa os elementos do conhecimento sensível, ou seja, as partes últimas, indivisíveis, de que supostamente é
constituído. Este segundo significado aparece somente na filosofia moderna.
Ia Para Aristóteles esse termo significa: a) as qualidades elementares, como branco, preto, doce, etc. (Dean., III,
2passim); b) a percepção do objeto real, chamada de S. em ato, que coincide com a realidade do objeto: pelo que
SENSAÇÃO
871
SENSAÇÃO
uma sensação auditiva em ato é idêntica ao som em ato {Md., III, 2, 425 b 26); c) a faculdade de sentir,
em geral, ou senso comum (v.), ao qual atribui a função de perceber tudo o que é sensível e as próprias S.
(ou seja, sentir o sentir) {De somno, 2, 445 a 17; De an., III, 2, 246 b 11; 415 b 12); d) o sentido
específico, como a audição, a visão, etc. {De somno, 2, 445 a 14; De an., III, 2, passini); e) o órgão do
sentido, chamado mais freqüentemente de sensório {De pari. an., II, 10, 657 a 3; IV, 10, 686 a 8; De
sensu, 3, 440 a 19). Esta terminologia mantém-se por muito tempo na história do pensamento ocidental,
até que, com Descartes, o conceito de S. começa a ser distinguido nitidamente do de percepção.
23 Descartes especificou mais o significado de S., entendendo por S. o simples advertir "movimentos
provenientes das coisas"; distinguiu-a de percepção, que é a referência à coisa externa {Pass. de 1'âme, I,
23). A partir desta distinção, que se consolidou cada vez mais depois de Descartes, especialmente graças à
escola escocesa, a S. foi reduzida a unidade elementar do conhecimento sensível, o que Locke chamou de
"idéia simples"; era considerada material de conhecimento, ao passo que a função cognitiva propriamente
dita, vale dizer, a referência ao objeto, cabia à. percepção {v.). Foi esse o conceito aceito e difundido por
Kant, que diz: "A S. é o elemento puramente subjetivo da nossa representação das coisas que estão fora
de nós, mas é propriamente o elemento material dessa representação, o real, aquilo com que é dado algo
de existente" {Crít. do Juízo, Intr., § VII; cf. Crít. R. Pura, § I; Dialética transcendental, livro I, seç. I:
"Uma percepção que se refira unicamente ao sujeito, como modificação de seu estado, é S."). O caráter
primordial ou elementar da S. também era acentuado por Hegel, embora de maneira arbitrária e
fantasiosa: "A S. é a forma da agitação obtusa do espírito em sua individualidade destituída de
consciência e de intelecto." Em certo sentido, é verdadeira, segundo Hegel, a asserção de que "tudo está
na S.", com o sentido de que ela é fonte e origem de tudo; mas fonte e origem significam apenas a
primeira e mais imediata maneira como algo aparece, e a S. não se justifica por si {Ene, % 400).
O conceito de S. como elemento simples e último do conhecimento foi primeiramente aceito e ilustrado
por filósofos, sendo depois utilizado como fundamento da psicologia nascente pelos primeiros estudiosos que cultivaram esta ciência. Condillac foi o primeiro a dar-se conta do
alcance desse conceito. Se a S. é o elemento último do conhecimento, deve ser possível reconstituir, a
partir dela, todo o mundo do conhecimento ou da atividade espiritual humana. Foi essa a demonstração
que ele tentou dar no Tratado das S. (1754), em que adotou como fundamento o princípio de que "o juízo,
as reflexões, as paixões e, numa palavra, todas as operações da alma não passam da própria S. que se
transforma de várias maneiras" {Traité des sensations, Compêndio da primeira parte). Mesmo
polemizando contra o sensacionismo, Maine de Biran reconhece o caráter simples e elementar da S.
{CEuvres, ed. Navine, II, p. 115); esse mesmo caráter da S. é reconhecido por Herbart {Allgemeine
Metaphysik, 1828, II, p. 90).
O conceito de caráter elementar da S. foi tomado como base da psicologia por H. Spencer, que afirmava:
"as S. são estados de consciência primariamente indecomponíveis" {Principies of Psychology, 1855, §
211). Esse princípio era consagrado por G. Fechner em Elemente der Psychophysik (1860) e por Wundt,
que definia as S. explicitamente como "os estados de consciência que não podem ser divididos em partes
mais simples" {Grundzüge derphysiologischen Psychologie, 1893, 4a ed., p. 281). Tornou-se lugarcomum em psicologia, que em sua primeira fase foi atomista e associacionista (v. PSICOLOGIA).
Por outro lado, o modo como os filósofos interpretaram a S. quase sempre pressupôs um caráter
elementar ou atômico. Helmholtz eliminou dela o caráter representativo, considerando-a simples sinal das
coisas, mas reconheceu seu caráter elementar {Vortrage und Reden, I, 1884, p. 393). Husserl considerava
as S. como componentes elementares das experiências representativas {Logische Untersuchungen, II, p.
714), e Mach valeu-se de seu caráter elementar para considerá-las neutras (nem objetivas, nem
subjetivas), portanto como componentes simples de qualquer objeto físico ou psíquico {Analyse der
Empfindungen, 1903, 4a ed., pp. 14, 17, etc). As experiências elementares de que R. Carnap falava em
Visão lógica do mun-dosão, mais uma vez, as S. {DieLogischeAujbau der Welt, 1928, § 67).
Quando o gestaltismo (v. PSICOLOGIA) eliminou o atomismo e o associacionismo da antiga psicologia, o
conceito de S. tornou-se pratica-
SENSACIONISMO
872
SENSO COMUM
mente inútil. A psicologia fala ainda de S. para indicar sons, cores, etc, mas como esse material é dado ao homem
somente em relação com o objeto externo, ou seja, na percepção, é esta última que passa a interessar à psicologia,
tornando-se inútil o conceito de S. como unidade psicológica elementar.
SENSACIONISMO (in. Sensationalism; fr. Sensualisme, Sensationisme, ai. Sensualismus, it. Sensismó). Doutrina
que reduz conhecimento a sensação e realidade a objeto da sensação. Kant chamava Epicuro de sensacionista (Crít. R.
Pura, Doutrina do Método, cap. IV). Nas filosofias modernas, esse nome foi reservado às doutrinas segundo as quais
todos os conhecimentos derivam dos sentidos: essa tese foi entrevista por Hobbes (Leviath., I, 1), mas foi só
Condillac que procurou demonstrá-la, dizendo que das sensações desenvolvem-se gradati-vamente os conhecimentos
e as próprias faculdades humanas iTraité des sensations, 1754). Esse termo costuma ser aplicado a doutrinas desse
tipo. É raro (e impróprio) que ele seja aplicado ao empirismo de cunho lockiano (que admite, ao lado da sensação,
uma outra fonte de conhecimento, que é a reflexão).
SENSIBILIDADE (in. Sensibility, Feeling; fr. Sensibilité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensibilitâ). 1. Esfera das operações
sensíveis do homem, considerada em seu conjunto, o que inclui tanto o conhecimento sensível quanto os apetites, os
instintos e as emoções.
2. Capacidade de receber sensações e de reagir aos estímulos. P. ex., "a S. dos vegetais".
3. Capacidade de julgamento ou avaliação em determinado campo. P. ex., "S. moral", "S. artística", etc.
4. Capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar. Nesta acepção, diz-se que é sensível quem se
comove com os outros, e insensível quem se mantém indiferente às emoções alheias (V. SIMPATIA).
SENSITIVO (in. Sensitive, fr. Sensitif ai. Sensitiv). Sensível no 2Q significado. Às vezes, quem é extremamente
sensível.
SENSÍVEL (gr. aio9T|TÓÇ; lat. Sensibilis; in. Sensible, fr. Sensible, ai. Sensibel; it. Sensi-bilé). 1. Aquilo que pode
ser percebido pelos sentidos. Nesta acepção, "o S." é objeto do conhecimento S., assim como o "inteligível" é objeto
do conhecimento intelectivo (ARISTÓTELES, Dean., II, 6, 418 a 7; KANT, Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. III, Nota).
Aristóteles distinguiu os S. próprios e os S. comuns (v. SENSO COMUM),
e o S. acidental do S. por si, na medida em que o primeiro é percebido acidentalmente, como acontece quando se
percebe o branco ao se perceber que uma pessoa é branca {De An., II, 6, 418 a 16).
2. Aquilo que tem a capacidade de sentir. Nesta acepção, os animais são chamados de "seres S.", ou diz-se que "xé
particularmente S. a algo". Em inglês, é chamado de S. (sensible) quem possui bom senso ou, em geral, é capaz de
julgar corretamente.
3. Quem tem capacidade de compartilhar as emoções alheias ou de simpatizar (v. SIMPATIA).
SENSO (in. Sense; fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). Capacidade de julgar em geral. Com esta significação, a palavra é
empregada nas seguintes expressões: bom S., que Descartes considera sinônimo de razão e define como "faculdade de
bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso" (Discours, I); S. moral, que Shaftesbury (Characteristics of Men,
1111) e Hutchinson (System of Moral Philosophy, Y755) consideraram capacidade instintiva de avaliação moral,
portanto como guia infalível do homem; S. racional ou S. lógico, que Romagnosi considerou como atividade que
julga e organiza as sensações (Che cos'è Ia mente sana, 1827, § 10). Com esta mesma acepção do termo relaciona-se
a expressão S. comum, à qual foi dedicado um verbete à parte, bem como expressões como S. prático, S. financeiro,
S. artístico, etc, que designam a capacidade de julgar ou de orientar-se nos campos especiais, indicados pelo adjunto
adnominal.
SENSO COMUM (gr. KOIVIÍ aio0r|ecaç; lat. Sensus communis; in. Common sense, fr. Sens commun; ai. Gemeinsinn;
it. Senso comune). 1. Aristóteles designou com esta expressão a capacidade geral de sentir, à qual atribuiu duas
funções: Ia constituir a consciência da sensação, que é o "sentir o sentir", porquanto tal consciência não pode
pertencer a um órgão especial do sentido, como, p. ex., à visão ou ao tato (De somno, 2, 455 a 13); 2Q perceber as
determinações sensíveis comuns a vários sentidos, como o movimento, o repouso, o aspecto, o tamanho, o número e a
unidade (De an., III, I, 425 a 14). Essa noção foi admitida também pelos estóicos, que atribuíam ao S. comum as
mesmas funções (J. STOBEO, Ecl, I, 50). Retomada por Avicena (Dean., III, 30), passou para a escolástica medieval
(cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 78, a 4) e mais tarde também foi comumente aceita por todos os aristotélicos e pelos
escrito-
SENSO COMUM
873
SENTIDO
res que se inspiraram de algum modo na psicologia aristotélica.
2. Nos escritores clássicos latinos, essa expressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de
falar. Neste sentido, Cícero adverte que no orador é falta grave "abominar o gênero vulgar do discurso e o costume do
S. comum" {Deor., I, 3, 12; cf. 2, 16, 68), e Sêneca afirma que "a filosofia visa a desenvolver o S. comum" (Ep., 5, 4;
cf. 105, 3)-Viço expressava numa fórmula lapidar o pensamento tradicional dos autores latinos ao afirmar: "O S.
comum é um juízo sem reflexão, co-mumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma nação, ou por
todo o gênero humano" {Ciência nova, 1744, Dignidade 12), e ao atribuir ao S. comum a função de confirmar e
determinar "o arbítrio humano, incer-tíssimo por sua própria natureza, (...) no que diz respeito às necessidades ou
utilidades humanas" ilbid., Dignidade 11). Essa expressão teve o mesmo significado na Escola Escocesa. Em
Investigação sobre o espírito humano segundo os princípios do senso comum (1764), T. Reid usa essa expressão para
designar as crenças tradicionais do gênero humano, aquilo em que todos os homens acreditam ou devem acreditar.
Para essa escola, o S. comum é o critério último de juízo e o princípio que dirime todas as dúvidas filosóficas.
Hoje, essa expressão costuma ter significado análogo, embora sem a conotação elogiosa atribuída pelos filósofos
escoceses. Dewey, p. ex., ressalta o caráter prático do S. comum: "Visto que os problemas e as indagações em torno
do S. comum dizem respeito às interações entre os seres vivos e o ambiente, com o fim de realizar objetos de uso e de
fruição, os símbolos empregados são determinados pela cultura corrente de um grupo social. Eles formam um
sistema, mas trata-se de um sistema de caráter mais prático que intelectual. Esse sistema é constituído por tradições,
profissões, técnicas, interesses e instituições estabelecidas no grupo. As significações que o compõem são efeito da
linguagem cotidiana comum, com a qual os membros do grupo se intercomunicam" {Logic, VI, 6; trad. it., p. 170).
3- Na doutrina de Kant o S. comum é o princípio do gosto, da faculdade de formar juízos sobre os objetos do
sentimento em geral. "Tal princípio só poderia ser considerado S. comum, que é essencialmente diferente da
inteligência comum, que às vezes também é chamada de S. comum {sensus communis), pois esta não julga conforme o sentimento, mas conforme conceitos, embora se
trate em geral de conceitos obscuramente representados" {Crít. do Juízo, § 20). A inteligência comum {Ge-meine
Verstand) neste trecho é o S. comum dos escritores latinos e da escola escocesa, que Kant considera inútil em
filosofia {Prol., A 197); essa também é a opinião de Hegel e de outros (cf. R. CANTONI, Trágico e senso comu-ne, pp.
35 ss.).
SENSORIAL (in. Sensory, fr. Sensoriel; ai. Sensorisch; it. Sensorialè). Que concerne ao sensório, aos órgãos dos
sentidos.
SENSÓRIO (gr. aio8típiov; lat. Sensorium). Na terminologia aristotélica, o órgão de um sentido {Dean., II, 9, 421 b
32; Depart. an., II, 10, 657 a 3, etc): aquilo que hoje é chamado de receptor.
SENSUALIDADE (lat. Sensualitas-, in. Sen-suality; fr. Sensualité, ai. Sinnlichkeit; it. Sensualitã) . Tendência a
entregar-se aos prazeres sensíveis.
SENSUALISMO (fr. Sensualismè). 1. A atitude que consiste em atribuir uma importância excessiva aos prazeres dos
sentidos. Em tal sentido a palavra é usada por Berkeley {Alci-phron, II, 1 6).
2. O mesmo que sensacionismo (v.). Este emprego, que só aparece raramente em alguns escritores italianos e
franceses do século passado, é devido à sugestão do termo alemão correspondente a sensacionismo: Sensualismus.
SENTENÇA (lat. Sententia; in. Sentence, ai. Ausspruch; it. Sentenzd). Juízo, opinião ou máxima: p. ex., "as S. de
Epicuro" (cf. CÍCERO, De nat. deor., I, 30, 85). Na terminologia medieval, além do significado genérico, esse termo
assumiu outro mais específico, de definição autêntica do significado das Escrituras Sagradas e, em geral, de
"concepção definida e certíssima". Uma coletânea de S. constitui uma Summa: a mais famosa foi a de PEDRO
LOMBARDO, Libri quattuor sententiarum, composta entre 1150 e 1152 (cf. M. GRABMAN, Die Geschichte der
scholastischen Methode, II, pp. 21 ss.).
SENTIDO (gr. aío9T)cn.ç; lat. Sensus; in. Sen-se, fr. Sens; ai. Sinn; it. Senso). 1. Faculdade de sentir, de sofrer
alterações por obra de objetos exteriores ou interiores. Essa foi a definição dada por Aristóteles {De an., II, 5, 4l6 b
33) que permaneceu na tradição filosófica. (S. TOMÁS, S. Th., I. q. 78, a. 3; DUNS SCOT, In Sent., I, d 3, q. 8; WOLFF,
Psychol. emp., § 67; KANT, Antr., I,
SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO
874
SENTIMENTO
§ 7, etc). Nesta acepção, o S. compreende tanto a capacidade de receber sensações quanto a consciência que se tem
das sensações e, em geral, das próprias ações: capacidade que na filosofia moderna é chamada mais freqüentemente
de S. interno ou reflexão (cf. LOCKE, Ensaio, II, I, 4; KANT, Crít. R. Pura, Estética, § 1), e às vezes de S.
íntimoQAMNE DE BIRAN, Journal Intime, I, pp. 13-14; CEuvres, ed. Tisserand, p. 15, etc.) ou consciência (v.).
2. Sensação ou conjunto de sensações, como quando se diz "os S. mostram que...", ou então apetites sensíveis, em
especial os desejos sexuais.
3. Órgãos dos S., aquilo que se chama mais propriamente de sensório, ou, na terminologia moderna, receptor.
4. O mesmo que significado (v.). SENTIDO COMPOSTO e DIVIDIDO, FALÁCIA DO. V. COMPOSIÇÃO;
DIVISÃO.
SENTIMENTAL (in. Sentimental; fr. Sentimental; ai. Sentimentalisch; it. Sentimentalé). O significado deste
adjetivo, no uso comum, não tem relação com o significado geral de sentimento, mas costuma referir-se a uma
emoção particular, o amor. "Problemas S.", "crises S.", etc. são expressões que se referem a situações em que está em
jogo o amor, mais precisamente o amor sexual. Freqüentemente esse adjetivo também inclui referência ao amor em
sentido romântico (v.), como acontece no título de dois romances famosos: A viagem S. de Sterne e Educação S. de
Flaubert.
Em sentido específico, esse adjetivo foi empregado por F. Schiller para indicar uma espécie de poesia, em oposição à
poesia ingênua (v. INGENUIDADE).
SENTTMENTALIDADE ou SENTIMENTALISMO (in. Sentimentalism; fr. Sentimenta-lisme, ai.
Sentimentallitãt; it. Sentimentalità ou Sentimentalismo). Consiste em entregar-se às emoções próprias ou alheias, em
exaltar-se com elas desproporcionalmente à força, aos limites e à função dessas emoções. Kant viu no
sentimentalismo a fraqueza de deixar-se dominar, até contra a vontade, pela participação no estado emocional de
outrem. Por isso, opôs à S. o autodomínio, que possibilita a sutileza de sentimentos graças à qual as emoções alheias
não são julgadas segundo a força de quem julga, mas segundo a fraqueza de quem sente. Diante do autodomínio, é
ridículo e pueril deixar-se dominar pela emoção alheia, compartilhando-a indiscriminadamente (Antr., I, § 62). Na
realidade, porém, existe sentimentalismo mesmo quando alguém se entrega às suas próprias emoções ou à sua manifestação
externa, ilu-dindo-se quanto à sua força e consistência, e aumentando sua importância.
SENTIMENTO (in. Sentiment; fr. Sentiment; ai. Gefühl; it. Sentimento). Esse termo pode significar: 1D o mesmo
que emoção, no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção. Para este significado, v.
EMOÇÃO; 2e pressentimento, no sentido em que se usam frases como "sinto que algo não vai bem" para dizer que se
tem uma opinião que não é possível justificar naquele momento; quanto a esse sentido, v. OPINIÃO; 3Q fonte de
emoções, como princípio, faculdade ou órgão que preside às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria
na qual elas se enquadram.
É com este último sentido que essa palavra é comumente empregada hoje, p. ex. quando se opõe o "S." à "razão"
(considerada como órgão ou faculdade de conhecimentos objetivos), em frases como "não se faz política com
sentimentos". Este emprego é justificado por uma tradição filosófica relativamente recente, só encontrada na Idade
Moderna. Isto porque a filosofia antiga e a medieval não conheceram o S. como fonte ou princípio das afeições,
afetos ou emoções e portanto não usam essa noção como categoria para organizar e classificar as afeições da alma.
Nem a psicologia platônica, que distingue uma alma racional, uma concu-piscível e uma irascível iRep., TV, 12-15),
nem a psicologia aristotélica, que distingue um princípio vegetativo, um sensitivo e um intelec-tivo (De an., II, 2),
reconhecem uma fonte e um princípio autônomos das emoções: estas são repartidas entre as várias divisões ou
princípios admitidos, sem exclusão do princípio racional ou intelectivo. O mesmo acontece com a filosofia medieval,
que segue as pegadas da psicologia aristotélica. Na realidade, o reconhecimento de uma fonte ou princípio autônomo
das emoções relaciona-se com o reconhecimento da subjetividade humana como algo irredutível a um conjunto de
elementos objetivos ou objetiváveis ou a modificações passivas produzidas por tais elementos. Este reconhecimento
caracteriza os primórdios da filosofia moderna e é, como todos sabem, uma contribuição do cartesianismo.
Os pressupostos desse reconhecimento devem ser buscados na linha de pensamento que
SENTIMENTO
875
SENTIMENTO
vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftes-bury e
Hume) e chega até Rousseau e Kant, culminando neste último: essa é a linha que levou à elaboração do
conceito moderno de paixão como emoção dominante e à noção de gosto (v.) que está intimamente
relacionada com a de sentimento. "S.", "coração", "espírito de fineza" foram expressões usadas por Pascal
para indicar o princípio ou o órgão das emoções, que é diferente do órgão ou do princípio dos raciocínios
e irredutível a este. Pascal diz: "Os que estão acostumados a julgar com o S. nada entendem das coisas do
raciocínio porque logo querem penetrar a questão com um lance de olhos, desacostumados que estão a
buscar princípios. Os outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios, nada
entendem das coisas do S., porque buscam princípios, e não podem apreendê-los apenas com um lance de
olhos" {Pensées, 3). Ao S. ou ao coração deve-se a mesma certeza que têm os primeiros princípios do
raciocínio ("Os princípios são sentidos, as proposições são deduzidas, e em cada uma dessas duas formas
há certeza, embora obtida por caminhos diferentes"); ao S. e ao coração é atribuída a verdadeira
religiosidade, da qual o raciocínio pode somente aproximar-se e da qual só pode dar expectativas (Ibid.,
282). Assim, os moralistas ingleses e franceses acima citados contribuíram para a elaboração e o
reconhecimento da categoria do sentimento, por terem acentuado o papel dominante das emoções na vida
do homem. Finalmente, é preciso lembrar que a "volta à natureza", proclamada por Rousseau como meio
capaz de libertar o homem dos males produzidos pelos artificialismos sociais e de reconduzi-lo à bondade
original, é entendida por ele como volta ao primitivo S. natural. O S. natural é um instinto, uma tendência
originária que o conduz para o bem; quando não é alterada, afetada ou bloqueada, conserva o homem no
bem e no bem permite-lhe progredir. Nestas famosas teses de Rousseau talvez se encontre a primeira
aparição da categoria do S. como princípio autônomo da vida espiritual. Mas o primeiro a falar em termos
filosóficos sobre essa categoria e a incluí-la numa nova subdivisão dos poderes ou das faculdades
espirituais foi provavelmente Kant. Enquanto Wolff (e depois dele os wolffianos) admitia somente duas
atividades fundamentais do espírito humano, conhecimento e volição, objetos dos dois ramos
fundamentais da filosofia, o teórico e o prático, KANT reconheceu um terceiro poder ou faculdade, o
sentimento. "Todos os poderes ou faculdades da alma — diz KANT iCrít. do Juízo, Intr., § III) — podem
ser reduzidos a três, que não são redutíveis a um princípio comum: o poder cognitivo, o S. do prazer e da
dor e o poder de desejar." O S. de prazer ou dor deve ser inserido entre o poder cognitivo e o poder de
desejar; a ele cabe um princípio autônomo, que Kant chama às. faculdade de juízo (v.). Assim, o S. é o
campo de crítica da faculdade de juízo, assim como a faculdade de desejar é o campo de crítica da razão
prática. Kant caracteriza o S. como o aspecto irredutivelmente subjetivo da representação. Diz (Jbid., §
VII): "Aquilo que há de subjetivo numa representação e que não pode de modo algum tornar-se artigo de
conhecimento é o prazer ou a dor que estão ligados à representação; isso porque através deles nada
conheço do objeto da representação, ainda que eles possam ser efeito de algum conhecimento." Em
conformidade com esta reivindicação de autonomia do S. como categoria espiritual, em sua Antropologia
pragmática, Kant divide a primeira parte, dedicada ao "modo de conhecer interior e exterior do homem",
em três livros, dedicados respectivamente ao poder cognitivo, ao S. de prazer e dor e ao poder apetitivo.
Por sua vez, o segundo livro é dividido em duas partes principais, a primeira das quais dedicada ao "S. de
deleite e prazer sensível na sensação do objeto"; a segunda, dedicada ao "S. do belo, que é em parte
sensível e em parte intelectual, sendo próprio da intuição reflexa ou do gosto". Esta segunda parte resume
de forma mais acessível os resultados da Crítica do Juízo, a primeira contém uma série de observações
sobre o S. de prazer e dor em relação com os dados dos sentidos (cf. também Met. der Sitten, Intr. 1, nota)
(v. EMOÇÃO).
Com isso, o S. ingressara oficialmente na filosofia como categoria independente. O próprio Hegel aceitao como determinação do espírito subjetivo e define-o como "uma afeição determinada", mas determinada
de modo simples, isto é, de tal modo que, mesmo quando seu conteúdo é sólido e verdadeiro (o que nem
sempre acontece), ele assume a forma de "particularidade acidental". Hegel acrescenta: "Quando, ao
discutir sobre uma coisa, alguém não recorre à natureza e ao conceito da coisa, ou pelo menos à razão e à
universalida-
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de do intelecto, mas a seu S., nada se pode fazer; porque desse modo essa pessoa está se recusando a
aceitar a comunhão da razão e fecha-se em sua subjetividade, em sua particularidade" (Ene, § 447). Nesse
aspecto, Hegel opõe-se à tendência literária do Romantismo, cuja bandeira foi a descoberta e a exaltação
do S., considerando-o a forma mais íntima e ao mesmo tempo mais livre de vida espiritual. Para os
românticos só pode ser artista quem — como diz Friedrich Schlegel (Ideen, § 13), — "tem uma religião
própria, uma intuição original do infinito". Essa intuição original do infinito é aquilo que os românticos
chamam de sentimento. Em outras palavras, S. é a manifestação do Infinito, de Deus, à intimidade da
consciência. Portanto, as características que definem o S. na concepção romântica são dois: l s seu caráter
de extrema subjetividade, constituindo o que há de mais subjetivo no sujeito; 2 Q sua capacidade de revelar
o Princípio infinito da realidade. Em virtude deste segundo aspecto, o S. é entendido pelos românticos,
alternada ou concomitantemente, como órgão da arte, da filosofia e da religião. Schleiermacher
considerou-o órgão da religião, afirmando que "só o S. revela o Infinito" (Reden, II; trad. it., p. 43), tese
reexposta e defendida freqüentemente depois disso. Em tempos mais fecentes foi considerado órgão da
arte por Gentile (Filosofia da arte, 1931), porquanto a arte é "a subjetividade pura, íntima e inexprimível
do sujeito pensante", e o S. é precisamente isso. Na concepção de arte de Gentile, o S. conserva todas as
conotações românticas: é o infinito espiritual na própria forma de sua infinidade, livre de determinações
conceptuais necessitantes, constituindo "a subjetividade pura do sujeito" (Ibid., pp. 176 ss.); como tal, a
infinidade do S. é a infinidade do homem em sua universalidade, estando portanto acima e além da
diversidade empírica dos homens, considerados individualmente" (Ibid., p. 205). Mas a outra corrente do
Romantismo oitocentista, o positivismo, também não ficou alheia à exaltação do sentimento. Ao delinear
as características do futuro regime sociocrático (dominado e dirigido por uma corporação de filósofos
positivistas), Comte afirmou que esse regime será dominado mais pelo sentimento que pela razão e que,
portanto, atribuirá papel importante às mulheres, que representam o elemento afetivo do gênero humano
(Politiquepositive, I, pp. 204 ss.). Isto porque a moral dessa sociedade futura será o
altruísmo, mas um altruísmo tão desenvolvido que criará inclinações e instintos benévolos que, tanto
quanto o sentimento, agem sem necessidade de reflexão. As preocupações religiosas e morais de Comte
levaram-no a insistir no valor do S. e a exaltá-lo à maneira romântica.
Mas fora do Romantismo, e contra ele, o S. foi aceito como categoria fundamental da vida espiritual,
como uma das "faculdades" ou "poderes" do espírito. É curioso notar que, enquanto Kant admitia a
tripartição conheci-mentos-vontade-S. com base apenas num modesto mas válido motivo metodológico
(porque os três grupos de fenômenos não são redu-tíveis a um princípio único), logo depois dele essa
tripartição começa a ser dogmatizada: para Fries ela já é resultado imediato da auto-obser-vação
(Anthropologie, I, 1837, § 4). Herbart, conquanto negasse a doutrina das faculdades da alma,
considerando-as "conceitos de classe" segundo os quais os fenômenos estudados se organizam, nem por
isso deixou de incluir entre tais conceitos de classe o conceito de sentimento. Para Benecke, o S. era a
base da moral e da religião; esta última originar-se-ia do S. de dependência em relação a Deus, justificado
pelo caráter fragmentário da vida humana e pela exigência de completitude, que só pode vir de Deus
(System der Metaphysik und Reli-gionsphilosophie, 1840). Para Rosmini o S. era a consciência que cada
um tem de si, ponto de partida e base para o conhecimento da alma (Psicologia, % 69).
A tripartição das faculdades do espírito em conhecimento, sentimento e vontade manteve-se como
esquema praticamente constante na filosofia do séc. XIX. Para sua difusão muito contribuiu a obra de
Cousin, que estabeleceu a correspondência entre essa tripartição e três valores absolutos: o Verdadeiro, o
Belo e o Bem (Du vrai, du beau et du bien foi título da obra mais conhecida de Cousin, 1853). Se
deixarmos de lado as críticas de caráter metodológico sobre a oportunidade de semelhantes esquemas
rígidos de subdivisão no estudo dos fenômenos espirituais, podemos dizer que essa tripartição ainda hoje
é a mais difundida, tendo-se incorporado ao modo de pensar comum. Exceção é Croce, que reconduziu as
formas do espírito às duas formas admitidas por Wolff: a teórica e a prática, criticando o S. como
categoria espúria e ambígua. Para Croce, S. era uma palavra "usada para denominar uma classe de fatos
psíquicos constituída segundo o método
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naturalista e psicológico": noção que várias vezes exerceu função negativa e crítica em estética, historiografia, lógica
e ética, pois contrapunha às interpretações demasiado limitadas e estreitas tudo o que havia de "indeterminado" ou
"semideterminado" fora dessas interpretações. O testemunho a que recorria para rejeitar essa categoria é o da
observação interior: "Quem quiser, investigue seu espírito e tente indicar um ato sequer que, ao contrário dos
indicados acima [atos teóricos e práticos], constitua algo novo e original, e mereça a denominação especial de S."
(Fil. daprática, I, I, c. 2). Mas esse tipo de testemunho é extremamente variável e infenso a qualquer verificação; para
Fries, p. ex., e para muitos outros, a distinção entre S. e outras atividades espirituais era tão claramente provada pelo
testemunho interior quanto desmentida para Croce. Na realidade, o uso de tais categorias, como S., atividade teórica,
atividade prática, só pode ser discutido, portanto submetido a limites e regras, com base na análise precisa de um
grupo delimitável de fenômenos: análise que Croce nem sequer tentou. Contudo, na filosofia contemporânea não
faltam análises desse tipo, que figuram entre suas contribuições menos discutíveis para o conhecimento do homem
em seu mundo. Uma dessas contribuições — das mais importantes — é a de Max Scheler, que se referiu às palavras
de Pascal, "o coração tem razões que a razão desconhece", mas sem interpretá-las no sentido freqüentemente
encontrado na filosofia moderna e contemporânea (v. CORAÇÃO), de que a razão deveria ter certa condescendência
para com o S. e tentar corresponder às suas exigências, porém no sentido de que o S. tem suas próprias leis, seus
próprios objetos e constitui, portanto, um mundo diferente do racional. Scheler começa fazendo a distinção entre os
estados emotivos simples, que não têm caráter intencional, ou seja, que não se referem imediatamente a um objeto
próprio (v. EMOÇÃO), e o S. originário e intencional, que, ao contrário, é uma reação particular ao estado emotivo e
consiste nas atitudes extremamente variáveis e mutáveis assumidas diante do estado emotivo: enfrentar, tolerar, fruir,
suportar, etc. Estado emotivo, p. ex., é o prazer sensível correspondente ao caráter agradável de uma refeição, um
perfume, um leve toque. O S. puro, ao contrário, consiste nas reações do eu a tal estado emotivo: p. ex., fruir em
maior ou menor grau, tolerar, etc. Assim, enquanto um
estado emotivo faz parte do conteúdo fenomenal, o S. puro está entre as funções destinadas a apreender tal conteúdo.
Desse ponto de vista,. a tendência a suportar ou a fruir nada tem a ver com a sensibilidade em relação ao prazer e à
dor. O grau de prazer ou de dor pode ser o mesmo, mas o sofrimento e o gozo por eles provocados em dois indivíduos
ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes podem ser completamente diferentes. Ora, enquanto os estados
emotivos podem ser relacionados apenas de modo indireto com os objetos ou os fatos de que são efeito ou sinal, os
sentimentos puros referem-se imediatamente a um objeto específico, que é o valor. Portanto, a relação entre S. e valor
é a mesma observada entre a representação e seu objeto: a relação intencional (v. INTENCIONALIDADE). Enquanto é
necessário um ato de reflexão para relacionar um estado emotivo com o objeto de que é sinal ou que julgamos ter
provocado, o S. relaciona-se com seu objeto específico, o valor, de modo imediato, como acontece, p. ex., quando
sentimos a beleza dos montes cobertos de neve ao pôr-do-sol. A conexão intencional entre S. e valor não tem, pois,
nada a ver com um vínculo causai entre S. e objeto, e independe também da causalidade psíquica individual, ou seja,
das leis que regem a vida psíquica do indivíduo. De fato, quando as exigências dos valores não são satisfeitas,
sofremos, p. ex., por não nos sentirmos tão alegres quanto o valor de um acontecimento mereceria, ou por não nos
sentirmos tão tristes pela morte de um ente querido quanto esse fato exigiria (Formalismus, pp. 260 ss.). Assim,
segundo Scheler, o S. dá acesso a um mundo de objetos tão reais quanto as coisas ou os fatos que constituem o objeto
da representação, mas que nada têm a ver com eles, porque não são coisas nem fatos, mas valores. Scheler, portanto,
está de acordo com Kant ao julgar que o S. não é "artigo de conhecimento", mas discorda dele quanto a julgar que ele
não tem nenhum objeto e é, por isso, destituído de caráter intencional. Apenas as emoções sensíveis são destituídas de
objeto e por isso constituem estados emotivos puros, ao passo que os sentimentos vitais e os psíquicos sempre podem
revelar caráter intencional (referir-se a um ob-jeto-valor); os S. espirituais revelam-no necessariamente (para a
distinção entre os graus emocionais, V. EMOÇÃO). A análise de Scheler é muito importante porque lança novas luzes
sobre a vida emocional do homem. Contudo, o próprio
SENTIMENTO
878
SER
Scheler usou sua análise como fundamento de uma verdadeira metafísica dos valores, em que estes não são
considerados somente objetos, no sentido próprio e restrito do termo (v. OBJETO), mas verdadeiras realidades, no
sentido em que são chamadas de reais as coisas, as entidades e os fatos, com a diferença de que, diante de qualquer
outra coisa, entidade ou fato, os valores seriam realidades últimas ou "absolutas". Essa integração metafísica de uma
análise meritória pelo modo como foi conduzida e pelas suas conclusões pode levantar dúvidas quanto à sua
legitimidade. Com efeito, pode-se considerar que um dos resultados dessa análise é estender o significado de "objeto"
como termo ou fim de um ato intencional, de tal modo que não sejam chamados de objetos apenas os que possam ser
considerados reais no sentido de terem características de fatos ou entidades subsistentes. Por realidade entende-se,
pois, de modo estrito e rigoroso, o termo de um processo cognitivo passível de verificação (v. REALIDADE), e não há
razão para identificar a inten-cionalidade emotiva com a intencionalidade cognitiva; o próprio Scheler dá boas razões
para fazer o contrário. Se as coisas são assim, ou seja, se a intencionalidade do S. é diferente da intencionalidade do
conhecimento, sendo também diferentes seus respectivos objetos, deixa de ter fundamento a crítica de Scheler à
tendência da psicologia contemporânea, de negar a "função cognitiva" dos S. Isto porque a psicologia contemporânea
admite a função dos S. no comportamento vital do organismo, e considera-os anúncio de situações presentes ou
futuras, o que permite enfrentar tais situações da mesma maneira como um dispositivo de alarme põe em movimento
os meios de enfrentar um perigo. Assim como Scheler, Heidegger reconheceu a importância fundamental do S., que
ele considera arraigado na substância humana, vale dizer, na estrutura ontológica de sua existência. Heidegger chama
de situação afetiva {Befindlichkeit) o tom emocional da ocupação cotidiana do homem, e vê nesse tom uma
manifestação essencial do ser do homem no mundo: "O estado da situação afetiva constitui, essencialmente, a
abertura do ser-aí no mundo" {Sein undZeit, § 29). Segundo Heidegger, a situação fundamental de um ente que, como
o homem, vive num ambiente que lhe fornece as coisas a serem utilizadas e que, por isso, pode ameaçá-lo com a nãoinstrumentalidade, com a resistência das coisas,
é a possibilidade de ser ameaçado pelas coisas e pelos acontecimentos do mundo e de reagir a essa ameaça com medo
ou com coragem. Também neste caso, se deixarmos de lado a linguagem específica da ontologia de Heidegger,
podemos dizer que sua análise concorda fundamentalmente com a da psicologia contemporânea e que confirma a
noção de S. como capacidade de apreender o valor que um fato ou uma situação apresenta para o ser (animal ou
homem) que deve enfrentá-la. Finalmente, é preciso lembrar que para Hartmann o S. — que serviu de base para a sua
ética — é a "principal sede em que os valores se dão" {Ethik, 1926). SENTIMENTO FUNDAMENTAL (it.
Sentimento fondamentalé) Com este termo Rosmini designou a consciência que o homem tem de seu eu e da conexão
(que o constitui) entre alma e corpo. "Existe no homem, tal qual ele é por natureza no primeiro instante de sua vida,
1Q) um sentimento único constante-fundamen-tal, animal-espiritual; 2Q) uma percepção racional, imanente, do
sentimento animal" {Psicologia, 1850, § 256).
SEPARAÇÃO (gr. StáKptmç; lat. Separatia, fr. Séparation; ai. Trennung; it. Separazione). Resolução de um
composto em suas partes ou em seus elementos. Este termo foi usado por Anaxágoras {Fr. 10, Diels) e por
Empédocles {Fr. 58, Diels) (cf. PLATÃO, Sof, 243 b; ARISTÓTELES, Mel, I, 4, 985 a 25).
SEQÜÊNCIA (lat. Sequentia-, in. Séquence, fr. Séquence, ai. Folge, it. Sequenzà). Conjunto de termos entre os quais
há uma relação de antes e depois (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3.562 B). SER (gr. xò õv; lat. Ens ou Esse, in. Being; fr.
Être, ai. Sein-, it. Esseré). Preliminarmente, convém distinguir os dois usos fundamentais desse termo: 1 Q) o uso
predicativo, em virtude do qual dizemos "Sócrates é homem", ou "a rosa é vermelha"; 2e) o uso existencial, em
virtude do qual dizemos "Sócrates é" (= existe) ou "a rosa é" (= existe). Embora nem sempre explicitamente
formulada, essa distinção é assumida ou pressuposta quase universalmente. Em Parmê-nides, Platão dá destaque à
diferença entre a hipótese "o um é um" e a hipótese "o um é"; nesta última "é" significa "participação no S." {Parm.,
137 e; 142 b). Aristóteles expressa de várias formas a mesma diferença: como diferença entre é como terceiro
predicado e é como segundo predicado {De int., 10, 19b 19); como diferença entre é como predicado por acidente
("Homero é poeta") e é predicado por
SER
879
SER
si ("Homero é") (Deint., II, 21 a 25); como diferença entre "S. alguma coisa" e "S. absolutamente" (El. sof., 5, 167 a
1). Na diferença entre S. predicativo e S. existencial baseia-se ainda a distinção aristotélica entre tese e hipótese,
como premissas do silogismo: a primeira não assume a existência do objeto a que se refere; a segunda, sim (An. post.,
1, 2, 72 a 18).
A diferença entre esses dois significados de S. permanece constante na tradição filosófica posterior a Aristóteles. S.
Tomás afirma: "S. tem dois significados: num modo significa o ato de S.; no outro significa a composição da
proposição que o homem encontra ao juntar o predicado ao sujeito" (S. Th., 1, q. 3, a. 4; cf. De ente, 1). Na lógica
terminista medieval dis-tinguia-se o verbo S. como segundo constituinte (secundo adiacens) da proposição, do verbo
S. que aparece como terceiro constituinte (tertio adiacens), em função predicativa ou de cópula (OCKHAM, Summa
log., II, 1; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica, I, 5). Kant estabeleceu a distinção entre a posição predicativa ou relativa,
expressa pela cópula de um juízo, e a posição absoluta ou existencial, com que se põe a existência da coisa (Der
einzig môgliche Beweisgrund zu einer Demonstration des Daseins Gottes, 1763, § 2). Na filosofia moderna e
contemporânea, essa distinção é lugar-comum, embora nem sempre seja explicitamente formulada. Na evolução
sofrida pelas interpretações desses dois significados de S. ao longo da história, pode-se perceber uma correspondência
entre as interpretações do primeiro significado e as do segundo. Contudo, por uma questão de clareza, o estudo de
cada uma delas deverá ser feito em separado.
Ia Significado predicativo. Nas interpretações do significado predicativo é possível distinguir três doutrinas
fundamentais: A) inerência; B) identidade (ou suposição); O relação.
A) Segundo a doutrina da inerência, S., na relação predicativa, significa pertencer ou inerir (gr. vnápxexv; lat. Inessé).
"Sócrates é homem" significa que a Sócrates inere a essência homem; "a rosa é vermelha" significa que à rosa
pertence a qualidade vermelho, e assim por diante. O fundamento dessa doutrina é a teoria aristotélica da substância
(v.). De fato, as relações de inerência que podem ser expressas pelo verbo S. são esclarecidas e distinguidas por
Aristóteles com base nas relações entre a substância e sua essência necessária, ou entre a substância e suas outras
determinações categoriais ou acidentais. Aristóteles diz: "Inerir, inerir necessariamente e inerir possivelmente são coisas diferentes" (An.
pr., 1, 8, 29b 28). Inerência necessária é a da essência necessária (expressa pela definição) à coisa da qual é essência;
inerir ou inerir possivelmente é referir-se à coisa com uma qualidade, quantidade ou qualquer outra das
determinações catego-riais não incluídas na definição da coisa ou puramente acidentais. Este é o significado da
distinção aristotélica entre S. necessário (ouporsi) e S. acidental. "Em sentido acidental, dizemos, p. ex., que o justo é
músico, que o homem é músico e que o músico é homem, ou dizemos que o músico constrói quando acontece de o
construtor ser músico ou de o músico ser construtor: em todos esses casos, dizer 'isto é aquilo' significa 'A isto
acontece aquilo"'(Afeí., V, 7, 101 7 a 7). Ao contrário, a inerência necessária ou por si não tem caráter acidental, e,
mesmo ao especificar-se segundo as categorias, seu principal fundamento é a substância. Aristóteles diz: "Assim
como 'é'inere a todas as coisas de modos diferentes, pois a algumas inere de modo primário e a outras de modo
secundário, também o 'o quê' [essência] inere absolutamente à substância e só de certo modo às outras coisas. A
respeito de uma qualidade podemos até perguntar o que ela é, e por isso até uma qualidade é exemplo de essência,
mas não de modo absoluto. Assim, alguns afirmam que, por lógica, o não-S. é, todavia não é de modo simples, mas
apenas como não-S.: o mesmo se diga da qualidade" (Ibid., VII, 4, 1030 a 22). Portanto, segundo Aristóteles, o S.
predicativo expressa a inerência ao sujeito de sua essência necessária, de determinações categoriais (que, embora não
pertencendo à essência, dependem dela) ou de determinações acidentais. Esse significado de S. tem um sentido
privilegiado, que é o inerir substancial, ou seja, o inerir da essência necessária (expressa pela definição) à substância
definida. "Sócrates é animal bípede" é um caso de inerência predicativa privilegiada se "animal bípede" é definição
do homem, porque é a inerência da essência necessária à substância. As outras determinações, como p. ex. "Sócrates
é filósofo", constituem casos de inerência secundária ou acidental.
As características fundamentais desse conceito do ser predicativo são: 1Q sua redução a um tipo único de relação,
qualificada como pertença ou inerência; 2Q privilégio concedido à forma necessária dessa relação, ou seja, à for-
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ma como ocorre essa relação entre substância e essência. Estas características são mantidas pela doutrina
em exame ao longo de toda a sua história, que é longuíssima. A tradição lógica medieval até o séc. XIII
(quando do ressurgimento das doutrinas dos estóicos através da via moderna) não conhece alternativa. As
doutrinas modernas de caráter racionalista geralmente as compartilham. Leibniz diz: "Todo predicado
verdadeiro tem algum fundamento na natureza das coisas, e quando uma proposição não é idêntica, vale
dizer, quando o predicado não está compreendido expressamente no sujeito, é preciso que esteja
compreendido virtualmente: é isso que os filósofos chamam de in-esse, ao afirmarem que o predicado
está no sujeito" (Disc. de mét., 8). Do mesmo modo, para Hegel, o significado predicativo de S. é a
identidade entre individual e universal, ou seja, aquela mesma relação entre substância e essência que
para Aristóteles era o caso privilegiado de relação predicativa. Hegel diz.- "A cópula é vem da natureza
do conceito, que é de ser idêntico a si mesmo ao se tornar extrín-seco: como momentos seus, o individual
e o universal são determinações que não podem ser isoladas" {Ene, § 166). Segundo Hegel, o juízo tende
a expressar de modo mediato ou reflexo a unidade entre predicado e sujeito, vale dizer, a unidade de um
conceito único que, através do próprio juízo e, mais completamente, através do silogismo, articula-se em
suas determinações necessárias (Wissenschaft der Logik, III, I, cap. 2; trad. it., pp. 77 ss.). A doutrina
exposta por alguns hegelianos ingleses (BRADLEY, Principies of Logic, 1883; BOSAN-QUET, Logic, 1888),
de que S. predicativo significa referência de um conceito ao sistema total da realidade (de sorte que, no
juízo, o conceito é uma qualificação essencial da Realidade Universal), representa a forma assumida pela
doutrina hegeliana da cópula na filosofia contemporânea. Também nessa forma, pode-se reconhecer a
teoria da inerência: a substância ou realidade à qual o predicado inere é a totalidade do real, em vez de ser
(como na doutrina de Aristóteles) uma única substância.
B) A segunda interpretação fundamental de S. predicativo é de identidade (v.) ou suposição (v.): segundo
ela, a cópula significa identidade do objeto ao qual o sujeito e o predicado da proposição se referem ou no
lugar do qual estão {supponunt pró). Assim, p. ex., na expressão "Sócrates é branco", a cópula indicaria
simplesmente que o sujeito "Sócrates" e o predicado "branco" referem-se ao mesmo objeto existente, que,
portanto, pode ser qualificado com um ou com o outro dos dois termos. A origem desta doutrina está
provavelmente na lógica estóica, na qual é fundamental a referência de qualquer enunciado a uma
situação de fato imediatamente presente (v. ESSÊNCIA). Mas é expressa claramente só na lógica do séc.
XIII, em polêmica com a teoria da inerência. Ockham diz: "Proposições como 'Sócrates é um homem' ou
'Sócrates é um animal' não significam que Sócrates tem humanidade ou animalidade. Tampouco
significam que a humanidade ou a animalidade está em Sócrates, nem que o homem ou o animal é uma
parte da substância ou da essência de Sócrates, ou uma parte do conceito ou da substância de Sócrates.
Significam que Sócrates é na realidade um homem e é na realidade um animal: não no sentido de Sócrates
ser esse predicado 'homem' ou esse predicado 'animal', mas no sentido de que existe alguma coisa em
lugar da qual esses dois predicados estão; como quando acontece que esses predicados estão no lugar de
Sócrates" (Sumiria log., II, 2; Quodl, III, 5). Essa doutrina é expressa quase nos mesmos termos por
Hobbes: "A proposição é um discurso que consta de dois nomes conjuntos: quem fala pretende dizer que,
para ele, o segundo nome é um nome da mesma coisa cujo nome é o primeiro, ou — o que dá no mesmo
— o primeiro nome está contido no segundo. Por ex., o discurso 'O homem é animal', em que os dois
nomes estão reunidos pelo verbo é, é uma proposição porque quem a enuncia pretende dizer que, para ele,
o segundo nome 'animal' é nome da mesma coisa cujo nome é 'homem'" (De corp., I, 3, § 2). Essa
doutrina foi substancialmente reproduzida por Stuart MUI, que dis-tinguia as afirmações "essenciais", ou
seja, gerais, que só explicam a essência nominal de uma coisa (v. ESSÊNCIA), das proposições "reais", que
sempre implicam a existência do sujeito a que se referem "porque, no caso de um sujeito inexistente, a
proposição nada teria para asseverar" (Logic, I, VI, 2).
A referência à realidade imediatamente dada ou intuída é a primeira característica fundamental da
doutrina em exame. Os lógicos do séc. XIV chegavam a considerar falsa até mesmo proposições
tautológicas como "A quimera é quimera", quando nelas o sujeito representa um objeto inexistente
(OCKHAM, Summa log.,
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II, 14). A segunda característica dessa doutrina é a identidade da referência objetiva dos termos da proposição
(identidade da coisa em lugar da qual estão).
O Segundo a terceira interpretação fundamental, a cópula é uma relação. Esta interpretação pode ser dividida em
duas alternativas: a primeira (d) considera que a relação predica-tiva é subjetiva; a segunda (b) considera-a objetiva.
d) A interpretação do S. predicativo como relação que é ato ou operação do sujeito pensante tem como pressuposto
óbvio o princípio cartesiano de que o objeto imediato do conhecimento humano é apenas a idéia. Desse ponto de
vista, a proposição apresenta-se como juízo e começa a ter esse nome porque. juízo é exatamente o ato com que o
espírito escolhe ou decide. Descartes diz: "Dos meus pensamentos, alguns são como imagens das coisas, e a eles só
convém o nome de idéia: como quando represento um homem, uma quimera, o céu, um anjo, ou Deus. Outros
pensamentos têm, além destas, outras formas; p. ex., quando quero, temo, afirmo ou nego, estou concebendo alguma
coisa como objeto da ação de meu espírito, mas, com essa ação, acrescento alguma outra coisa à idéia desse objeto;
desses pensamentos, alguns são chamados de vontades ou emoções; outros, de juízos" (Méd, III). Portanto, segundo
Descartes, juízo é uma ação do espírito por meio da qual "se acrescenta alguma coisa" à idéia que se tem de um
objeto; em outros termos, é um ato de unificação ou síntese. Esta noção é claramente expressa na Lógica, de Arnauld:
"Quando digo 'Deus é justo', 'Deus' é o sujeito dessa proposição, 'justo' é o atributo, e a palavra 'é' marca a ação do
meu espírito que afirma, ou seja, que liga as idéias 'Deus' e 'justo' como convenientes uma à outra" (Log., II, 3). A
definição lockiana de conhecimento como "percepção de vínculo e concordância ou de discordância e oposição entre
nossas idéias" (Ensaio, IV, I, § 2) expressa exatamente a mesma tese. Locke diz: "Tudo o que sabemos ou podemos
afirmar sobre uma idéia qualquer reside em ser ou não essa idéia igual a uma outra; em coexistir ou não com alguma
outra idéia no mesmo sujeito; em ter uma ou outra relação com alguma outra idéia; ou em ter existência real ou fora
do espírito" (Ibid., IV, I § 7). Portanto, mesmo em seu uso existencial, o verbo S. só faz expressar relações percebidas
pelo espírito, vale dizer, as
relações cuja realidade está no sujeito cognoscen-te, embora não somente nele. Kant expressou esse mesmo conceito
ao afirmar que o ato de juízo, atividade própria do intelecto, é a síntese: "Entendo por síntese, no sentido mais amplo
dessa palavra, o ato de unir diversas representações e compreender a sua multiplicidade num só conhecimento" (Crít.
R. Pura, § 10). Todas as interpretações idealistas da relação predicativa no mundo moderno partem dessa afirmação
kantiana. Atividade sintética, poder sintético do espírito, síntese a priori, são expressões às quais a interpretação
idealista do kantismo, a partir do Romantismo, emprestou um significado enfático e criativo, que de certo não tinham
na doutrina de Kant: de qualquer modo, expressam o caráter subjetivo da atividade sintética, que como tal só pode
operar entre "idéias" ou "representações", vale dizer, entre elementos ou estados do mesmo sujeito. A dificuldade
fundamental que se opõe a essa doutrina é a óbvia consideração de que uma asserção qualquer não visa a estabelecer
uma relação entre duas idéias, representações ou conceitos, mas entre os objetos aos quais se faz referência através
deles. Quando se afirma "Sócrates é um homem", não se quer dizer que a representação Sócrates é homem, mas sim o
indivíduo real ao qual o nome se refere. É em observações desse tipo que se baseia a alternativa objetivista.
b) A doutrina da cópula como relação objetiva foi apresentada pela primeira vez por De Morgan (.FormalLogic,
1847, cap. 3) e adotada pelo criador da lógica matemática, Boole. Para este, a lógica tem duas espécies de relações:
entre coisas e entre fatos; estas últimas também podem ser chamadas de relações entre proposições (Laws ofThought,
1854, I, § 6). De acordo com essa teoria, a relação expressa pela cópula é a mesma em todas as formas proposicionais, não porque sua natureza esteja expressa na proposição, mas porque é estabelecida por convenção. A cópula pode
então expressar uma relação qualquer. Nesse sentido, ela foi chamada por De Morgan (Cam-bridge Philosophical
Transactions, X, 339) de cópula abstrata. Peirce distinguiu os vários tipos de cópula da seguinte maneira: "Cópula
transitiva é aquela para a qual é válido o modo Barbara. Schrõder demonstrou o importante teorema de que, se
usamos É para representar a espécie de cópula cujo exemplo é 'maior que', então existe algum termo relativo r
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tal que a proposição 'Sé P' seja precisamente equivalente a'5éraPeéra qualquer coisa à qual Pseja r'. Cópula de
inclusão cotrelativa é aquela para a qual são válidos tanto o modo Barbara quanto a fórmula de identidade. Se
representarmos essa cópula com é, existirá um termo relativo r tal que a proposição 'SéP' seja precisamente
equivalente a 'Sé ra qualquer coisa à qual P é r'. Se a última proposição se seguir da penúltima, qualquer que seja o
termo relativo r, a cópula será a de inclusão, usada por Peirce, Schróder e outros. De Morgan usa uma cópula que
vale para qualquer relação que seja ao mesmo tempo transitiva e conversível, como p. ex. 'igual a' ou 'da mesma cor
de'. Para cada cópula desse tipo existirá algum termo relativo rtal que a proposição 'SéP' será exatamente equivalente
a '5 é r a cada coisa e só a cada coisa à qual Pé r'. Tal cópula pode ser chamada de identidade cotrelativa. Se a última
proposição se seguir da penúltima, a cópula é a de identidade, usada por Thompson, Hamilton, Baynes, Jevons e
muitos outros" (Coll. Pap., 3, 622). Com mais simplicidade, hoje se costuma distinguir uma cópula de pertença,
simbolizada por e, que designa a relação entre um indivíduo e uma classe; uma cópula de inclusão, simbolizada por
3, que designa a relação entre uma classe e outra classe; estas duas espécies de cópulas são distinguidas de operador
(ou quantificador) existencial (v. OPERADOR). De qualquer forma, a característica fundamental desta concepção de S.
pre-dicativo é a máxima generalidade: as outras interpretações de cópula podem ser consideradas casos especiais de
relação, e como tais analisados. Além desses, é possível considerar outros casos. É exatamente essa teoria da cópula
que possibilita a doutrina da proposição como função, segundo a qual o predicado é a função, e o sujeito é a variável
da função (v. FUNÇÃO).
2e Significado existencial. O segundo significado fundamental de S., o existencial, deve ser dividido em dois
significados subordinados: I, como existência em geral; II, como existência privilegiada.
I. Em primeiro lugar, S. pode significar existência no l2 significado, geral e indeterminado, mas especificável ou
definível de acordo com um critério qualquer. É nesse sentido que Aristóteles afirma que "o S. se diz de muitos
modos" (Met., VI, 2, 1026 a 32) e que se pode até dizer que o não-S. é Qbid., VII, 4, 1030 a 23).
Mas, tomado nesse sentido, o significado de S. coincide com o de existência (no l 9 sentido), e seu estudo poderá ser
encontrado no verbete EXISTÊNCIA.
II. Em segundo lugar, S. pode significar existência privilegiada ou primária, na sua modalidade primeira e
fundamental, da qual dependem todas as suas manifestações de-termináveis. Na maioria das vezes, este segundo
significado é preparado e anunciado pelo acima exposto (2S, I). O S. se diz de muitos modos, mas apenas um é seu
significado primário e fundamental. Esse é o ponto de vista de Aristóteles (Met., VII, 4,1030 a 21). É justamente da
relação entre os múltiplos significados que, à primeira vista, parecem caber ao S. e o significado único e fundamental
nos quais eles devem ser integrados, que nasce o chamado "problema do S.". Trata-se do problema do significado
primário, único e simples que se presume no S., mas que permanece mais ou menos oculto na multiplicidade dos seus
aspectos aparentes. A investigação metafísica, na sua forma clássica, funda-se nesse problema. Trata-se de ver se
existe um significado primário de S.: em primeiro lugar, no sentido de expressar melhor que os outros a
existencialidade do S.; em segundo lugar, no sentido de possibilitar a integração dos outros significados, servindolhes de fundamento ou princípio.
A indagação do problema do S. tende à determinação de um significado que preencha esses dois requisitos. Mas a
disputa a que dá origem só se compara à "batalha de gigantes" de que falava Platão (.Sof, 246), em que se defrontam
os gigantes, ou "filhos da terra", para os quais toda a realidade é corpo, e os deuses, que afirmam a incorporeidade do
S. e o reduzem às formas ideais. Na realidade, o significado de S. não é suficientemente estabelecido pelo caráter de
corporeidade ou pela sua negação, porque um ser considerado corpóreo pode ter os mesmos caracteres formais de um
S. considerado incorpóreo, como ocorria com o S. de que falavam os dois grupos protagonistas da "batalha de
gigantes". É bem verdade que os caracteres formais do S. evidenciados como solução do problema, ou seja, como
determinação do significado primário de S., são sempre extraídos de uma esfera particular do S., ou pelo menos de
um grupo de entes, ou de um ente, de algum modo privilegiado e tomado como exemplo. Mas também é verdade que
em todos os casos só se pode obter resposta ao
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problema do S. quando, entre os caracteres da esfera, do grupo ou do ente considerado, se escolhe um que seja
passível de generalização, vale dizer, que possa também referir-se às outras esferas, grupos ou entes. Nesse sentido,
Platão desafiava os materialistas a dizerem o que há de comum entre as coisas corpóreas e as incorpóreas, desde que
se diga que ambas são (Ibid., 247d). Mas, apesar de se procurar um significado primário formal (generalizável) do S.,
pode-se dizer que todas as soluções para o problema só fazem privilegiar, ou seja, considerar primária e
"fundamental, uma modalidade determinada do ser. Ora, como as modalidades pelas quais o S. pode ser enunciado ou
asseverado são três (necessidade, possibilidade e assertoriedade), teoricamente também são três as possíveis soluções
para o problema do ser. Mas, uma vez que (como veremos) a assertoriedade se reduz à necessidade, ao longo da
história da filosofia encontram-se duas soluções fundamentais, bem evidentes por trás das aparentes multiplicidades e
disparidades das soluções propostas. Para a primeira dessas soluções (que indicaremos com a) o S. primário é a
necessidade; para a segunda (que indicaremos com (3), o S. primário é a possibilidade. A solução a corresponde à
interpretação A do significado predicativo; a solução p corresponde às interpretações Be C. Um caráter distintivo das
duas soluções, mas que deve ser considerado secundário por nem sempre estar presente, é o que exporemos a seguir.
Na investigação do significado do ser, a primeira delas não toma em consideração a própria investigação, enquanto a
segunda pode tomar esse fato em consideração, atribuindo-lhe importância na determinação do significado do ser. E o
que fazem Platão e os existencialistas.
a) A interpretação do S. segundo a modalidade da necessidade prevalece na metafísica clássica. A famosa tese de
Parmênides, "O S. é e não pode não ser" (Fr. 4, Diels), estabelece que o significado fundamental do S. é a
necessidade, o não poder não ser: no que se refere ao tempo, é eternidade (simultaneidade, totum simul); no que se
refere à multiplicidade, é unidade; no que se refere ao devir (nascer e morrer), é imutabilidade (Fr. 8, 2-4, Diels).
Aristóteles também dá prioridade à necessidade. Para ele, o princípio de contradição, que fundamenta a sua "filosofia
primeira" (ciência do S. enquanto S.), é o princípio que postula a necessidade do S., que se realiza na substância.
Aristóteles diz: "Se a verdade tem significado, necessariamente quem diz homem diz animal bípede porque isso
significa homem. Mas se isso é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: necessidade significa
exatamente isto: é impossível que o S. não seja" (Met., IV, 4, 1006 b 30). O aspecto pelo qual é necessário que um S.
seja (o único graças ao qual o S. é objeto de ciência, visto que do S. acidental não há ciência, Ibid., VI, 2,1027 a) é a
sua substância. Aristóteles diz: "É um só o significado do S.: a sua substância. Indicar a substância de uma coisa é
indicar o seu S." (Ibid., IV, 4, 1007 a 26). Portanto, para ele, a substância é o sentido primário do S.; é também o
sentido fundamental, no qual os outros significados podem ser integrados, visto que, para Aristóteles, todas as
determinações dis-tinguidas ou distinguíveis do S. são aspectos ou manifestações da substância (Ibid., VII, 17) (v.
SUBSTÂNCIA).
Este ponto de vista aristotélico foi decisivo para o desenvolvimento posterior do problema do S. Graças a ele, o
significado primário e fundamental do S. passou a ser (e continua sendo para grande parte da filosofia) a necessidade,
com os atributos, que traz consigo, de imutabilidade, eternidade, unidade, etc. Mesmo quando esses atributos
deixaram de referir-se à estrutura formal do S. (o que ocorreu no neo-platonismo antigo e árabe e no aristotelismo
medieval), e passaram a referir-se a um ente privilegiado (ou seja, não a todas as substâncias, mas à substância
superior, Deus), considerou-se que as outras substâncias derivariam ou participariam desta, e que derivariam ou
participariam de sua necessidade e de seus atributos. Assim, segundo S. Tomás, a participação das coisas criadas no
S. de Deus é participação da perfeição e da imutabilidade d'Ele (S. Th., I, q. 65, a. I). Mas o conceito que dominou a
metafísica medieval e, através dela, a moderna e a contemporânea, foi exposto por Avicena no séc. XI: a necessidade
do S. como tal. Todo S., enquanto tal, é necessário. Avicena dizia: "Se uma coisa não é necessária em relação a si
mesma, é preciso que seja possível em relação a si mesma, mas necessária em relação a uma coisa diferente" (Met.,
II, I, 2). A propriedade essencial do possível é exatamente esta: precisar de outra coisa que o faça existir em ato. Mas,
por isso mesmo, o que existe em ato existe sempre necessariamente, só que às vezes sua necessidade provém de outra
coisa (Ibid.,
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II, 2, 3). Os mesmos conceitos, expressos por Algazel (Mel, I, I, 8), fundamentaram a esco-lástica judaica e cristã.
No mundo moderno, o conceito de S. como necessidade foi reafirmado principalmente por Spinoza e Hegel. Spinoza
viu o S. de Deus na necessidade, e o S. das coisas na necessidade com que derivam da substância divina (Et, I, 8,
scol. II). Hegel expressou esse mesmo conceito com o famoso aforismo que serviu de base para toda a sua filosofia:
"O que é racional é real; o que é real é racional." A racionalidade do real é a sua necessidade; em virtude dela, o real,
em suas determinações fundamentais, só pode ser o que é. Por isso, Hegel diz que "a função da filosofia é entender o
que é, pois o que é, é a razão" (Fil. do dir., Pref.). Também por isso não existe um dever S., um ideal, uma perfeição
que seja diferente do S. e em cujo nome se esteja autorizado a criticar o S. ou a dar-lhe lições. "O que está entre a
razão como espírito autoconsciente e a razão como realidade presente, o que diferencia aquela razão desta e não
permite que se encontre satisfação nesta é o empecilho de alguma abstração que não se libertou e não se tornou
conceito" (Ibid., Pref.). Noutras palavras, só com falsas abstrações distingue-se o que deveria ser do que é,
racionalidade de S. real; isso significa que o S. real é tudo o que deve ser, e que sua modalidade, seu sentido primário,
é essa necessidade. Por outro lado, toda a filosofia de Hegel está voltada para a demonstração da necessidade das
determinações do S..- visa a mostrar que o S., em sua realidade, é tudo o que deve ser (Ene, § I). A necessidade
continua sendo o caráter primário do S. em concepções filosóficas díspares. Quando Fichte afirma que S. e atividade
do eu são a mesma coisa, está reconhecendo como caráter essencial dessa atividade a necessidade com que ela se põe
e o não-eu (Wissenschaftslehre, 1798, § 1). Conceber o S. como "Consciência" ou "Matéria" não faz diferença: as
determinações qualitativas não influenciam sua determinação formal primária. Tanto o Absoluto dos idealistas
(Green, Brad-ley e outros) quanto a matéria dos materialistas são S. necessários. Necessária é a História, de que fala
Croce, tanto quanto é necessário o Ato Puro, de que fala Gentile. Este afirmava: "A necessidade do S. coincide com a
liberdade do espírito" (Teoria generale, XII, § 20). Mesmo Rosmini, para quem a idéia do S. como "S. possível" é
fundamento do conhecimento humano,
vê na necessidade e na universalidade os caracteres primários do S. (Nuovo saggio, §§ 428-29). Husserl afirma
energicamente a necessidade do S. que ele considera primário, que é o S. da consciência: "À tese do mundo, que é
acidental, opõe-se a tese do meu eu puro e do viver do eu, que é necessária e indubitável. Toda coisa dada, mesmo
que presente em carne e osso, pode não ser; mas uma vivência, dada em carne e osso, não pode não ser. Esta é a lei
essencial que define essa necessidade e essa acidentalidade" (Ideen, I, § 46).
Característica típica dessa concepção do S., ou melhor, uma de suas teses fundamentais, é a identificação entre S. e
racionalidade, que serviu de princípio para a filosofia de Hegel. Algumas vezes essa identificação foi entendida como
imanentismo (v.), no sentido de ima-nência do S. na consciência. Embora esta também seja uma tese hegeliana, nada
tem a ver com a outra. Foi expressa pela primeira vez por Parmênides, que, exatamente nesse sentido, identificou S. e
pensar (Fr. 5; Fr. 8, 34-36, Diels). Certamente a tese de Parmênides nada tinha a ver com o imanentismo, porque a
noção de consciência nem sequer tinha nascido (v. CONSCIÊNCIA): expressava apenas o caráter racional da
necessidade ontológica. Esse mesmo caráter era expresso por Aristóteles, na doutrina de que a determinação
fundamental da substância é a essência necessária, que é a razão de ser (logos) da coisa (Depart. an., I, 1, 639 b 15).
Para Rosmini, o S. possível era a própria forma da razão (Nuovo saggio, § 396). A tese em questão, ao mesmo tempo
em que expressa a necessidade do S., postula um conceito correspondente de razão em geral (v. RAZÃO).
Ao que parece, a ontologia de Hartmann escapa a essa tradição, pois não assume a necessidade como significado
primário do S., mas a efetividade (Wirklichkeit), à qual seriam redutíveis possibilidades e necessidades. A efetividade
é a terceira alternativa da modalidade do S., a assertoriedade. O S. ao qual o dever-ser e o poder-ser se reduzem,
segundo Hartmann, é o S. simplesmente existente, em sua pura efetividade ou atualidade, o S. que, no domínio da
realidade de fato, apresenta-se "desse modo e não de outro", ou seja, como existência análoga à matéria. Mas os
enunciados nos quais, segundo Hartmann, se expressa a redução do necessário e do possível ao atual demonstram
que, na realidade, a efetividade ainda é e sempre foi necessidade. Esses enun-
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ciados são os seguintes: Ia o que é realmente possível é também realmente efetivo; 2- o que é realmente efetivo é
também realmente necessário; 3a o que é realmente possível é também realmente necessário. Negativamente: 4 e
aquilo cujo S. é realmente impossível também é realmente inefetivo; 5 a o que é realmente inefetivo também é
realmente impossível; 6° aquilo cujo não-S. é realmente possível também é realmente impossível (Mõglichkeit und
Wirklichkeit, 1938, p. 126). Assim, o primado da asserto-riedade não tem significado diferente do primado da
necessidade. A ontologia de Hart-mann pretendeu apresentar a terceira solução teoricamente possível para o
problema do S., mas essa solução é idêntica, mesmo em sua enunciação, à interpretação do S. como necessidade,
típica da antiga metafísica.
P) O primeiro a formular a concepção de S. primário como possibilidade foi Platão, para quem essa concepção atende
a duas exigências fundamentais: em primeiro lugar, explicar por que se diz que tanto as coisas corpóreas quanto as
incorpóreas são(Sof, 247 d); em segundo lugar, levar em conta o fato de que o S. é ou pode ser conhecido (Ibid., 248
e). A primeira exigência exclui que a materialidade ou a imaterialidade possam fazer parte da definição do S. A
segunda exclui que da definição do S. possam fazer parte determinações necessárias; p. ex.: que o S. seja
necessariamente imóvel (ou seja, que "tudo seja imóvel), ou que o S. esteja necessariamente em movimento (ou seja,
que "tudo esteja em movimento"), etc. (Ibid., 249 d). Em vista disso, Platão afirma que o ser é apenas possibilidade
(ôúva|i,iç); portanto, pode-se dizer que qualquer coisa é, desde que tenha uma possibilidade qualquer de praticar uma
ação, ou então de ser submetida a uma ação por parte de outra coisa qualquer, ainda que insignificante e mesmo que
essa ação seja mínima e só ocorra uma vez {Ibid., 247 e). Nesse sentido, possibilidade nada tem a ver com a potência
de Aristóteles. A potência, de fato, é tal apenas em relação a uma atualidade que, ela só, é o S. primário (v. ATO). Mas
para Platão o S. primário é mesmo possibilidade. Possibilidades são também as relações reais entre os entes: estes não
se mesclam nem deixam de mesclar-se em absoluto, mas apresentam determinadas possibilidades de relações. O
mesmo que acontece com as letras do alfabeto e com os sons — alguns podem misturar-se e outros não — acontece
com todas as coisas: desse
modo, não é tarefa da filosofia enunciar a tese universal da necessidade ou da impossibilidade da comunicação, mas
estudar em particular quais são as coisas que podem (èSéAiw) unir-se entre si e quais as que não podem (Ibid., 25253). Este conceito não dá ensejo a uma metafísica simetricamente oposta àquela que interpreta o S. como
necessidade: não dá ensejo a nenhuma metafísica. É essa sua principal característica. De fato, se é possibilidade, o S.
não tem determinações unívocas necessitantes: não é necessário que ele seja um, e não muitos; imutável, e não
mutável; imóvel, e não em movimento; eterno, e não temporal, etc. De duas determinações opostas e contraditórias,
não é necessário que uma lhe pertença e a outra não: ambas podem pertencer-lhe em determinadas mas diferentes
condições. Portanto, não é possível enumerar definitivamente as determinações unívocas do ser. Platão chegara a essa
conclusão em Parmênides; neste diálogo mostra-se que o S. não é um ou muitos, mas um e muitos ao mesmo tempo,
no sentido de que tanto pode ser um quanto muitos (144 e), e que o mesmo vale para as outras suas determinações
eventuais. A desconcertante conclusão deste diálogo é que "o uno, sendo ou não sendo, ele e as outras coisas, em
relação a ele e entre si, todas, em tudo, são e não são, aparecem e não aparecem" (166 c): palavras que reconhecem a
possibilidade de determinações opostas do S. e excluem que ele possa ser chamado de "um" ou "muitos", ou mesmo
simplesmente "S." em sentido único e absoluto. Deste ponto de vista, uma metafísica que seja o inventário
sistemático das determinações unívocas e absolutas do S. é manifestamente sem sentido. Portanto, não se deve
esperar que essa concepção dê formulações sistemáticas, análogas ou correspondentes à filosofia primeira de
Aristóteles, à metafísica clássica. Ao contrário, podemos dizer que essa concepção tende a evidenciar-se sempre que a
determinação das características universais e necessárias do S. cede lugar à investigação empírica: esta última é busca
de possibilidade, não de determinações necessárias. Deste ponto de vista, pode-se dizer que a tradição filosófica
empirista é herdeira e principal representante da concepção de S. cuja primeira formulação se encontra no Sofista de
Platão. Uma possibilidade pode ser determinada unicamente com base na experiência, na observação dos fatos, nunca
por meio puramente racional ou a priori. Atribuir
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ao S. o significado de possibilidade significa abrir caminho a indagações específicas, destinadas a determinar, em
cada caso, de que possibilidade se trata. Com fundamento na concepção a, mesmo que as determinações do S.
mudem, é necessário que mudem, pois a mudança é determinada por princípio e absolutamente previsível. Quanto à
concepção (3, ao contrário, toda determinação, porquanto possível, só pode ser confirmada por investigação ad hoc.
Sabemos que para os estóicos o significado do S. estava na possibilidade de praticar ou de sofrer uma ação; por
isso,.chamavam de entes apenas os corpos (PLUTARCO, Comm. Not., 30, 2,1073; DIÓG. L., VII, 56); mas, apesar de têlos encaminhado para o materialismo, esse princípio não constituiu a base de um empirismo coerente. O empirismo,
ao contrário, surge sempre que se nega a tese fundamental da concepção oposta, que é a redutibilidade do S. a
predicado. Tal negação pode ser considerada uma tese típica dessa concepção, assim como é típica da outra a
identificação entre S. e racionalidade. No fim da Escolástica, Ockham formulava a tese de que o S. ou o não-S. de
uma coisa só pode ser alcançado pelo "conhecimento intuitivo", que é a própria experiência (In Sent, II, q. 15 H;
Ibid., Prol, q. 1 Z); de tal modo, podia afirmar a irredutibilidade do S. a uma determinação conceituai e o seu
significado de possibilidade. E diz: "À pergunta 'a coisa existe?' só se pode responder quando se sabe se a coisa
existe: isso acontece quando se conhece uma proposição na qual o S. existencial é predicado do sujeito. Ora, uma
proposição assim discutível (...) de nenhum modo pode ser conhecida com evidência, se a coisa significada pelo
sujeito não for conhecida intuitivamente e em si: p. ex., se ela não for percebida por um sentido particular ou se não
for um inteligível não sensível que seja visto pelo intelecto de modo análogo àquele pelo qual a faculdade visual
externa vê o objeto visível. Assim, ninguém pode saber com evidência que o branco éou pode ser se não viu algum
objeto branco; e embora eu possa acreditar nas pessoas que me falam da existência do leão, do leopardo e assim por
diante, não conheço com evidência essas coisas" (Summa log., III 2). Aqui o sentido primário do S. é posto na
possibilidade da experiência. Conseqüentemente, Ockham atribui necessidade apenas às proposições condicionais
("Se o homem é, o homem
é um animal racional"), enquanto nega que uma proposição afirmativa qualquer possa ser necessária. Todas as
proposições afirmativas são contingentes porque a proposição "O homem é animal racional" seria falsa por falsa
implicação, se o homem não existisse (Quodl, V, q. 15). Esses reparos implicam duas tese fundamentais: 1Q o S. não
é redutível a um predicado; 2- o S. é uma possibilidade que pode ser expressa só por uma proposição contingente.
Esta última tese revela a modalidade primária que as observações de Ockham atribuem ao S.: essa modalidade é a
possibilidade. O empirismo clássico do séc. XVII-XVIII atém-se a essa modalidade. Locke contrapõe a certeza das
proposições universais, que não dizem respeito à realidade, à contingência das proposições particulares, que dizem
respeito à existência. "As proposições universais, de cuja verdade ou falsidade podemos ter conhecimento seguro, não
dizem respeito à existência; as afirmações ou negações particulares, que não seriam certas se transformadas em
gerais, referem-se apenas à existência, pois declaram somente a união ou a separação acidentais das idéias em coisas
existentes, idéias que, em sua natureza abstrata, podem não ter entre si nenhuma ligação ou rejeição conhecida"
(Ensaio, IV, 9, I). Portanto, com exceção apenas da existência de Deus, conhecida por meio da demonstração, ou
seja, por meio da relação que ela tem com outras existências, segundo Locke a existência é conhecida de modo
contingente e imediato, através de uma relação direta com o objeto: relação que é intuição no caso da existência do eu
e sensação no caso da existência das coisas. Isso exclui que a existência seja um predicado ou que de qualquer
maneira possa ser reduzida a uma determinação conceptual. Locke diz: "Como, com exceção da existência de Deus,
não existe nenhuma conexão necessária de qualquer existência com a existência de algum homem em particular,
segue-se que ninguém em particular pode conhecer a existência de outro ser senão quando este, atuando sobre ele,
passa a ser percebido. O fato de se ter a idéia de uma coisa em mente não demonstra a existência dessa coisa, tanto
quanto o retrato de um homem não serve de testemunho de sua existência no mundo, ou tanto quanto as visões de
sonho não constituem, por si, uma história verídica" (Ibid., W, II, I). Esse conceito da sensação como órgão de
conhecimento do que existe nada mais é que o antigo
SER
887
SER
conceito estóico de representação cataléptica, que "deriva de um ente subsistente e é impressa e marcada por ele, de
tal modo que se conforma a ele" (DIÓG. L., VII, 46; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 248). Essa doutrina eqüivale a
definir o S. das coisas como possibilidade de manifestação delas à percepção ou como percepção mesmo.
A definição de S. como possibilidade é explicitamente retomada pela filosofia alemã do séc. XVIII, em especial por
Wolff: "Ente é o que pode existir e, conseqüentemente, cuja existência não repugna" (Ont., § 134). Mas como o que
pode existir é possível, o que é possível é ente (Ibid., § 1 35). Mas nesta definição tudo depende, obviamente, do
significado de possível. E a propósito Wolff retoma um conceito talvez oriundo de Duns Scot (In Sent., I, d. 2, q. 7),
que se encontra já formulado em Leibniz (Théod, II, § 224): "possível é o que não implica contradição, vale dizer, o
que não é impossível" (Ont., § 85). Desse ponto de vista, a possibilidade era definida como simples ausência da
impossibilidade, ou seja, como necessidade negativa. Portanto, nessa doutrina, a concepção de S. em termos de
possibilidade era simples aparência. Kant, com muita firmeza, viu o que se escondia por trás dessa aparência: "O jogo
de prestígio, em virtude do qual a possibilidade lógica do conceito (que não se contradiz) é confundida com a
possibilidade transcendental das coisas (em virtude da qual ao conceito corresponde um objeto), pode enganar e
contentar só os inexperientes". A "possibilidade real" é a dada por uma intuição sensível, isto é, pela experiência atual
ou possível (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II). Conseqüentemente, "S. não é predicado real, ou seja, um conceito
de alguma coisa que se pode acrescentar ao conceito de uma coisa. (...) Se eu disser Deus é ou que Deus existe, não
estarei afirmando um predicado novo do conceito de Deus, mas apenas o conceito em si, com todos os seus
predicados, e o objeto em relação ao meu conceito. Ambos devem ter exatamente o mesmo conteúdo, porém nada se
pode acrescentar ao conceito que expressa simplesmente a possibilidade quando penso seu objeto como dado (com a
expressão: 'Ele é')" (Ibid., O ideal da razão pura, seção IV). Deste ponto de vista, está claro o caráter limitado e
condicional de qualquer possibilidade ou S., portanto o caráter fictício ou fantasioso de uma "possibilidade absoluta",
que valha sob
qualquer aspecto (Ibid., Anal. dos princ, Refu-tação do idealismo). Na filosofia contemporânea, as doutrinas abaixo
remetem-se a essa interpretação do significado do S.
d) Teorias que, em matemática, em física e nas ciências em geral, definem a existência como modo de S. particular;
p. ex., como "ausência de contradição", "possibilidade de construção" ou "possibilidade de verificação". A
modalidade não necessária do S. que assim se define é evidente (v. EXISTÊNCIA).
b) Formas do empirismo, que só reconhecem S. aos objetos de experiência possível. É a possibilidade de
experimentação e observação que define o significado do S. (v. EXPERIÊNCIA).
c) Teorias filosóficas que afirmam o primado da possibilidade. Seu precedente está na filosofia de Kierkegaard, que
foi o primeiro a propor uma interpretação da existência humana em termos de possibilidade (V. EXISTÊNCIA, 3). Por
outro lado, o mesmo ponto de vista pode ser reconhecido em alguns aspectos da fenome-nologia de Husserl e nas
doutrinas a ela ligadas. Embora Husserl privilegie o S. da consciência e o considere necessário, ao contrário das
realidades das coisas, a análise fenome-nológica, sob esse aspecto, é uma análise de possibilidade; para ela, como
disse Heidegger (Sein undZeit, § 7 C): "mais elevada que a realidade está a possibilidade". Husserl diz: "Para mim, o
fato de uma natureza, um mundo cultural e humano, com as suas formas sociais, etc, existirem significa que as
experiências correspondentes me são possíveis, ou seja, que, independentemente de minha experiência real desses
objetos, posso, a qualquer instante, realizá-los e desenvolvê-los em certo estilo sintético. Isso significa que me são
possíveis outros modos de consciência correspondentes a essas experiências como atos de pensamento indistinto, etc,
e que é inerente a esses atos a possibilidade de eles serem confirmados ou invalidados por meio de experiências de
um tipo previamente estabelecido" (Cart. Med., § 37). Deste trecho significativo, decorre que a análise
fenomenológica é uma análise em termos de possibilidade; vale dizer: a possibilidade é o significado primário que ela
atribui ao ser. O mesmo acontece no existencialismo. Heidegger disse: "O ser-aí, enquanto compreensão, projeta o
seu S. em possibilidades" (Sein und Zeit, § 32); na realidade, todas as análises de Heidegger têm como tema as
possibilidades do ser-aí, que constituem o
SER, GRANDE
888
SER-AÍ
tema da analítica existencial. Do mesmo modo, para Jaspers, as possibilidades objetivas constituem a própria
existência (Phil., § 18), enquanto Sartre afirma que "o possível é uma estrutura do para-si, ou seja, da consciência"
(Lêtre et le néant, p. 34). É verdade que, para Sartre, distinguir-se-ia dessa estrutura o S. em si, que é o S. do
fenômeno que não seria nem possível nem necessário, mas simplesmente existente. Entretanto, Sartre atribui a esse
mesmo S. o caráter de contingência e não acha possível analisar o S. em si senão a partir do S. para si, a consciência:
portanto, nessa doutrina, o primado da possibilidade é evidente.
Cumpre observar, porém, que uma das características da concepção em exame é a recusa explícita das soluções
simples e globais para o problema do S., ou a desistência de encontrá-las; portanto, é o abandono do tratamento
"metafísico" desse problema. De fato, reconhecer o significado do S. como possibilidade exige que se passe
imediatamente à consideração e ao estudo das possibilidades, nos campos específicos em que são condicionadas,
onde têm "realidade". Logo, não é possível desenvolver uma metafísica da possibilidade, tomando como modelo a
metafísica clássica da necessi-cidade e visando a substituí-la. Uma tentativa desse gênero só teria como resultado o
retorno puro e simples à metafísica da necessidade: isso se demonstra no próprio Heidegger, que, ao abandonar o
terreno da análise existencial e passar à elaboração do "problema do S. em geral", voltou às teses clássicas da
metafísica tradicional com o reconhecimento da necessidade do S. (Einführung in die Me-taphysik, Tübingen, 1953).
SER, GRANDE (fr. Grand Être). Foi desse modo que Comte designou a humanidade como primeira pessoa da
trindade positivista; a segunda pessoa seria o Grande Fetiche (a Terra) e a terceira, o Grande Meio (o Espaço)
(Synthèse subjective ou système universal des conceptions propres ã 1'humanité, 1856).
SER-AÍ (in. There-being ou Beingthereness, fr. Réalité-humaine, ai. Dasein; it. Esserct). O termo alemão, que é o
originário, começa a ser usado no séc. XVIII. Em italiano, o termo esserci é usado por Spaventa (Princ. di fil, 1867,
p. 134) para traduzir o correspondente termo hegeliano e, em inglês, There-being foi usado por Stirling em Segredo
de Hegel (1865) para traduzir o mesmo termo. Beingthereness,
em inglês, e Realité-humaine, em francês, são usados hoje para traduzir o significado existencialista do termo. Ele
significa, na origem, existência real, tanto das coisas finitas quanto a de Deus. Nesse sentido, é empregado por Kant
(Crít. R. Pura, Anal., II, cap. 2, seção 3, 4): "No simples conceito de uma coisa não se pode encontrar nenhum caráter
de sua existência real (.Dasein). Porque, ainda que ele seja tão completo que nada lhe falte para pensar o objeto com
todas as suas determinações internas, a existência real nada tem a ver com isso, mas só com a questão de que uma
coisa nos é dada, de tal modo que a percepção dela possa sempre preceder o seu conceito". Nesse sentido, para Kant,
é a segunda das categorias da modalidade e opõe-se ao não-ser (Ibid., § 10). Usando essa palavra no mesmo sentido,
Jacobi dizia que a filosofia tem a tarefa de desvendar e revelar a existência (Werke, IV, p. 72). Hegel fazia a distinção
entre o Dasein, como simples determinação do ser, e a existência, que é o ser em relação. Diz: "Etimologicanente,
Dasein é estar em determinado lugar, mas a representação espacial não vem ao caso. O Dasein, ou ser determinado, é
em geral, em conformidade com seu devir, um ser com um não-ser, de tal modo que esse nâo-ser está reunido em
unidade simples com o ser" (Wissenschaft der Logik, 1,1, seção I, cap. 1, A; trad. it., p. 109). Em palavras mais
simples, o Dasein é o ser com determinado caráter ou qualidade, aquilo que se chama em geral de "alguma coisa"
(Ene, § 90). Mas, no uso filosófico contemporâneo, essa palavra ingressou com o significado atribuído pelo
existencialismo, sobretudo por Heidegger, que a usou para designar a existência própria do homem. "Esse ente, que
nós mesmos sempre somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o
termo Dasein." (Sein und Zeit, § 2). Assim entendido, o S. possui um "primado ôntico", no sentido de que deve ser
interrogado primeiramente, e um "primado ontológico", porquanto a ele pertence originariamente certa compreensão
do ser: por isso, ele é também o fundamento de qualquer ontologia (Ibid., § 4). Na filosofia contemporânea, esse
termo é habitualmente usado no significado específico estabelecido por Heidegger, como ser do homem no mundo.
Jaspers usa-o nesse sentido (Phil, I, 6 ss.). Com significação semelhante, foi usado por Husserl, que com ele designa a
existência da consciência, considerada privilegiada por-
SERIE
889
SEXO
que necessária: "Na essência de um eu puro, em geral, e de uma vivência em geral funda-se a possibilidade ideal de
reflexão que tem o caráter de evidente e inextinguível tese do S." (Ideen, I, § 46).
SÉRIE (in. Series; fr. Série, ai. Reihe, it. Serie). 1. Conjunto de termos entre os quais haja qualquer relação definível.
2. Relação assimétrica, transitiva e coerente. Neste sentido, S. não é conjunto de termos, ou seja, campo de relação,
mas a própria relação-, p. ex., as séries 1, 2, 3; 1, 3, 2; 2, 3, 1 são diferentes embora tenham o mesmo campo (cf. B.
RUSSELL, Introduction to Mathematical Philo-sophy, IV; trad. it., p. 47). (V. RELAÇÃO.)
SERIEDADE (in. Earnestness; fr. Sérieux, ai. Ernst; it. Serietã). Kierkegaard fez da S. uma espécie de categoria
moral, definindo-a como "a originalidade conquistada pelo sentimento, conservada na responsabilidade da liberdade e
afirmada no gozo da bem-aventurança". A S. consiste na repetição e é condição para que a repetição não diminua o
valor dos atos repetidos (Der Begriff Angst, IV, § 2, c).
SER LANÇADO. V. DECADÊNCIA; FACnCIDADE.
SER PARA SI. V. PARA SI.
SERVO e SENHOR. V. ESCRAVIDÃO.
SEXO (in. Sex, fr. Sexe, ai. Sex, it. Sesso). 1. Raramente os filósofos trataram do sexo como componente do homem.
Em O Banquete, de Platão, ao falar da origem do sexo, Aristófanes expõe o mito dos andróginos, dos quais, por meio
de uma separação desejada por Zeus com fins punitivos, ter-se-iam originado os dois sexos complementares (O
Banq., 189 e). Mas as especulações platônicas não versam propriamente sobre o sexo, mas sobre o amor. É o que
também fazem muitos outros filósofos, inclusive Schopenhauer, que, em Metafísica do amor sexual, considera o
amor sexual como um expediente de que se valeria o "gênio da espécie", ou Vontade de Vida, para favorecer a obra
obscura e problemática da propagação da espécie. No mundo moderno, a ação da psicanálise (v.) chamou a atenção
dos filósofos para o S.; foram especialmente os fenome-nologistas e os existencialistas que se interessaram pelos
fenômenos a ele relativos. Max Scheler, no livro Wesen und Formen der Sym-pathie (1923; trad. fr., pp. 168 ss.),
tentou atribuir ao ato sexual o valor de forma de expressão da personalidade humana. Por outro lado, enquanto
Heidegger considerou o Dasein desprovido de sexualidade, Sartre considerou a
sexualidade como estrutura fundamental da existência: "Embora o corpo tenha uma tarefa importante, precisa
remeter-se ao ser no mundo e ao ser para os outros: desejo um ser humano, não um inseto ou um molusco, e desejo-o
na medida em que ele está, e eu estou, em situação no mundo, e na medida em que ele é outro para mim e eu sou
outro para ele" (Vêtre et le néant, 1943, pp. 452-53). O sexo seria a estrutura fundamental da existência humana
enquanto existência no mundo (cf. também ABBAGNANO, StrutturadelVesistenza, 1939, §55) (v. AMOR, PSICANÁLISE).
2. Os filósofos, ao contrário, insistiram freqüentemente na diferença sexual. Para Aristóteles, a mulher constitui uma
monstruosidade da natureza, inevitável porém para a conservação da espécie (Degen. an., 7, 775 a 15-17). A mulher
difere do homem por participar em menor grau dos poderes da razão (Poi., 1260 a 11-14): portanto, seu lugar é de
subordinação ao homem, a este cabendo comandar e a ela obedecer (Pol., 1254 b 13-15; 1259 b 2-10). Por um
vínculo constante na tradição, essa desvalorização da dignidade da mulher é acompanhada pela exaltação da família
(que, segundo Aristóteles, existiria mesmo que não houvesse sociedade) e das tarefas e virtudes familiares da mulher
(Pol., 1260 a 29-31; Et. nic, 1162 a 19-27). Exatamente por isso Schopenhauer defendeu a poligamia, que estaria
destinada a combater as pretensões da mulher à equiparação e a eliminar o fenômeno da prostituição (Parerga und
Paralipomena, II, 27, § 362 ss.).
Por outro lado, Platão, mesmo admitindo a inferioridade da mulher (Rep., 455), considerava que homens e mulheres
deviam ser admitidos indiferentemente em todos os níveis da educação, para que às funções exercidas pelas classes
superiores tivessem acesso apenas os indivíduos que demonstrassem capacidade de exercê-las, qualquer que fosse o
sexo. Cínicos e estóicos afirmavam, como princípio, a igualdade entre homens e mulheres. A mulher de Crates
andava pelas ruas de Atenas usando, como o marido, o saio tosco dos cínicos-, e um ponto da doutrina estóica era que
homens e mulheres deveriam usar as mesmas roupas (DIOG. L., VII, 33). As mulheres eram aceitas na escola de
Epicuro, na qual muitas exerceram cargos de direção.
Na antropologia contemporânea, não se subestima a diferença entre os S., tanto quanto qualquer outra diferença
biológica existente en-
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
890
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
tre os indivíduos humanos, mas faz-se a distinção entre essa diferença e a exigência de paridade de direitos, baseada
no reconhecimento de que as funções subordinadas atribuídas à mulher, na maior parte das sociedades conhecidas, é
um produto cultural, para o qual pouco ou nada contribui a diferença entre as funções biológicas.
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO (gr XEK-TÓV; lat. Significaticr, in. Meaning; fr. Signifi-cation; ai. Bedeutung;
it. Significató). Entende-se por este termo a dimensão semântica do procedimento semiológico, ou seja, a
possibilidade de um signo referir-se a seu objeto. Os aspectos (ou condições) fundamentais do S. são dois: 1 Q um
nome, um conceito ou uma essência (p. ex., "Alessandra Manzoni", "homem", "autor de Os noivos"), usados com a
finalidade de delimitar e orientar a referência; 2a o objeto (p. ex., respectivamente, Alessandra Manzoni, os homens,
Alessandra Manzoni), ao qual o nome, o conceito ou a essência se referem. Os dois aspectos são inseparáveis; o
segundo é função do primeiro porque é o nome ou conceito que determina a que objeto se faz ou não referência. Mas
os dois aspectos não se identificam porque o objeto pode ser o mesmo, ao passo que o nome ou conceito usado para a
referência é diferente, como no caso de "Alessandra Manzoni" e "autor de Os noivos", que se referem ao mesmo
objeto, mas são nomes diferentes. Tampouco as determinações que têm o mesmo objeto podem ser consideradas
equivalentes, porque não podem ser substituídas umas pelas outras; p. ex., perguntar se "Alessandra Manzoni é o
autor de Os noivos" não é o mesmo que perguntar "se Alessandra Manzoni é Alessandra Manzoni". A diferença entre
os dois aspectos do S. (ou a relação entre eles) constitui a base dos problemas aos quais esse termo deu origem e das
diferentes definições que ele recebeu.
Os estóicos, que fundaram a doutrina da S., reconheceram ambos os aspectos. "São três os elementos que se interrelacionam: o S., aquilo que significa e aquilo que é. O que significa é a palavra, como p. ex. 'Díon'. O S. é a coisa
indicada pela palavra, que nós apreendemos ao pensarmos na coisa correspondente. Aquilo que é, é o sujeito exterior,
como p. ex o próprio Díon" (SEXTO EMPÍRICO, Adv math., VIII, 12). Mais precisamente, para eles S. é uma
"representação racional, graças à qual é possível expor por meio de um discurso aquilo que é
representado" (Ibid., VIII, 70; DIÓG. L., VII, 63). Nestas observações, os dois aspectos do S. são chamados
respectivamente de "palavra", ou "representação racional", e "aquilo que é", ou "sujeito". "Aquilo que é", ou
"sujeito", é o S. como objeto; a "palavra", ou "representação racional", é o S. como nome, conceito ou essência. Os
estóicos reservam especialmente a este último aspecto o nome de S.; nisso, são seguidos (como veremos) por alguns
autores modernos. Na lógica medieval, a distinção entre os dois aspectos foi expressa como distinção entre
"significação" e "suposição". Pedro Hispano diz: "A suposição e a significação diferem porque a significação é feita
por meio da imposição de uma palavra para significar um objeto, mas a suposição é a acepção de um termo já
significante para alguma outra coisa, como, p. ex., quando se diz o homem corre', e o termo 'o homem' está no lugar
de Sócrates e no lugar de Platão. Portanto, a significação precede a suposição, e as duas coisas não são idênticas
porque significar é próprio da palavra, e a suposição é própria do termo que já é composto de palavra e significado"
(Summ. log., 6.03). Aqui, entende-se por significatio o mesmo que os estóicos entendiam por lékton-. o conceito ou a
representação usada para a referência objetiva, ao passo que a própria referência objetiva é designada como
suppositio. Mas, além das idéias dos estóicos, essa doutrina inclui a separação dos dois aspectos do S., atribuindo o
primeiro aos termos tomados isoladamente, o segundo aos conjuntos, ou seja, às proposições. Doutrina idêntica era
exposta na Idade Média por Ockham (Sutnma log., I, 63), por Buridan (Sophismata, 2) e por Alberto da Saxônia
(Lógica, II, 1), ao passo que S. Tomás aludia a uma doutrina diferente apenas do ponto de vista terminológico,
segundo a qual S. e suposição coincidem nos termos particulares mas não nos gerais, para os quais S. é essência (S.
Th., I, q. 39, a. 4, no início).
É na distinção entre os dois aspectos de S. que se baseia a distinção estabelecida pela lógica moderna de cunho
tradicional entre os dois elementos do conceito, chamados ora de compreensão e extensão (v. COMPREENSÃO), ora de
intenção e extensão (v. INTENSÃO), ora de conotação e denotaçâo (v. CONOTAÇÃO). O primeiro par de termos foi
introduzido pela Lógica de Port-Royal (I, 6); o segundo, por Leibniz (Nouv. ess., IV, 17, § 9); o terceiro, por Stuart
Mill (Logic, 1,1, § 5). Este último propunha restringir o sentido de S. à
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
891
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
conotação, chamando-se de denotação a referência objetiva. Dizia: "Sempre que os nomes dados aos objetos
comportam alguma informação, ou seja, sempre que, propriamente, têm um S., o S. não reside naquilo que eles
denotam, mas naquilo que eles conotam. Os únicos nomes de objetos que nada conotam são os nomes próprios; estes,
a rigor, não têm significação" (Ibid., I, 2, § 5). O que ele entendia por conotação aparece claramente no trecho
seguinte: "A palavra homem, p. ex., denota Pedro, Joana, João e um número indefinido de outros indivíduos, que ela
designa como classe. Mas essa palavra é aplicada a eles na medida em que possuem certos atributos, e para significar
que os possuem" {Ibid.). Os atributos que constituem o homem — p. ex., corpo-reidade, animalidade, racionalidade,
etc. — formam, portanto, a conotação do nome "homem": aquilo que a tradição filosófica chamava de "essência" ou,
mais tarde, "conceito".
Portanto G. Frege nada mais fazia além de expressar uma antiga e nova tradição, ao distinguir sentido e significado.
Dizia: "Ao pensar num signo (seja ele um nome, uma expressão com várias palavras, ou uma simples letra) devemos
relacioná-lo com duas coisas distintas: não só com o objeto designado, que se chamará de significado (Bedeutung)
desse signo, mas também com o sentido (Sinrí) do signo, que denota o modo como nos é dado esse objeto". Frege
advertia que, por sentido ou nome, entendia "uma indicação qualquer que desempenhe a função de nome próprio,
vale dizer, que seja um objeto determinado (tomando a palavra objeto no sentido mais amplo)" (Über Sinn und
Bedeutung, 1892, § 1; trad. it., em Aritmética e lógica, pp. 218-19). A mesma distinção era feita por Peirce, mas com
terminologia diferente: Peirce falava de objeto do signo e de interpretante do signo, que é o sentido de Frege. Peirce
diz: "O signo cria alguma coisa no espírito do intérprete e esse alguma coisa, por ter sido criado pelo signo, foi criado
também, de modo mediato e relativo, pelo objeto do signo, embora o objeto seja essencialmente diferente do signo.
Essa criatura do signo é chamada de interpretante" (Coll. Pap., 8.179, o texto é de 1903). Essa terminologia foi
substancialmente aceita por Morris, que deu ao objeto o nome de designatum, e ao conceito o de interpretante
(Foundations of the Theory of Signs, 1938, § 2). É verdade que Morris considera inútil o termo "significado", que lhe
parece
capaz de provocar muita confusão, e tenta evitá-lo em seu estudo (Ibid., § 12). Na realidade, porém, consegue evitá-lo
apenas porque introduziu em sua análise do signo, com outros nomes, os dois componentes do S. que a tradição
distinguiu constantemente. Os lógicos contemporâneos manifestam a tendência, já presente em Stuart MiU, a
restringir o uso da palavra significado à esfera da conotação. Lewis, reservando esse termo para ambos os aspectos,
faz a distinção entre significação (signification) do termo (ou seja, a conotação) e sua referência objetiva, que ele
distingue em denotação e compreensão: a primeira seria a classe de todas as coisas reais às quais o termo se aplica, a
segunda seria a classe de todas as coisas possíveis às quais se aplica (Analysis of Knowledge and Valuation, 1946,
cap. III, pp. 39 ss.). Em seguida, Lewis faz a distinção entre significação e "significado-sentido" (sense mea-ning),
que dela se distinguiria por ser o modo como o espírito se refere à significação (Ibid., p. 113 e nota 3). Mas essas
distinções não modificam substancialmente a dicotomia tradicional do significado de significado. Essa mesma
dicotomia é expressa por Quine, como dicotomia entre S. (ou conotação, ou intensão) e nominação (naming), que
seria a extensão ou denotação (From a Logical Point ofView, 1953, II, 1), e por Carnap, que nela baseia a dicotomia
entre duas operações fundamentais possíveis em relação a uma expressão lingüística dada: a de "analisar a expressão
com a finalidade de entendê-la, de apreender seu S., e a que consiste na investigação da situação de fato à qual a
expressão se refere" (Meaning andNecessity, 1947, § 45). Além disso, insistiu no fato de que o conceito de
significado intencional, como condição geral que um objeto deve preencher para que um falante X predique com esse
significado o objeto, é desprovido de qualquer referência psicológica e pode ser aplicado até a um robô (Ibid., p. 246
e nota 5). Por sua vez, Church adotou a terminologia de Frege, chamando de sentido a conotação e de significado a
denotação, e introduzindo a palavra conceito: "Diremos que um nome denota ou nomeia a sua denotação e expressa o
seu sentido. Menos explicitamente, podemos dizer que um nome tem certa denotação e tem certo sentido. Dizemos
que o sentido determina a denotação ou é um conceito da denotação" (Introduction to Mathematicallogic, 1956, §
01). Em confronto com essa sólida e — ressalvando-se a varieda-
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
892
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
de terminológica — uniforme tradição, estão as tentativas de modificá-la, quer unificando as duas dimensões 04),
quer acrescentando novas espécies de significados (B).
A) A tentativa de unificar as duas dimensões do significado foi feita em ambas as direções: reduzindo sentido a
significado, ou significado a sentido. A primeira tentativa foi feita por Russell e por Wittgenstein. Toda a teoria
exposta por Russell no artigo que escreveu em 1905 ("On Denoting", atualmente in Logic and Knowledge, 1956, pp.
41 ss.), no primeiro capítulo de Principia mathematica, que escreveu com Whitehead (1910), e no seu outro livro, An
Inquiry into Meaning and Truth (1940), consiste, nas próprias palavras do autor, no fato de que "não há significado,
mas apenas, às vezes, uma denotação" (Logic and Knowledge, p. 46, nota). Na realidade, para Russell, o S. de um
símbolo se reduz unicamente aos componentes do fato a que o símbolo se refere. "Os componentes do fato que
tornam verdadeira ou falsa uma proposição, conforme o caso, são os S. dos símbolos que devemos entender para
entender a proposição" (Logic and Knowledge, p. 196). Desse ponto de vista, a linguagem ideal é a que tem apenas
sintaxe e nenhum vocabulário, pois nela o vocabulário é inutilizado pela correspondência de cada termo com um
objeto simples e de cada objeto simples com um termo (Ibid., p. 198; cf. LINGUAGEM). Essa doutrina foi expressa com
rigor por Wittgenstein: "O nome significa o objeto. O objeto é seu S." (Tractatus, 1922, 3- 203). "À configuração dos
signos simples na proposição corresponde configuração dos objetos na situação" (Ibid., 3.21). "O nome faz as vezes
do objeto na proposição" (Ibid. 3.22). Desse ponto de vista, mesmo as proposições aparentemente sem sentido são
legítimas porque "se uma proposição não tem sentido, isso pode ser devido apenas ao fato de não termos dado S. a
uma de suas partes constitutivas" (Ibid., 5.4733), ou seja, de não termos estabelecido a correspondência entre essa
parte e um objeto. Essa conseqüência é importante porque constitui a redução ao absurdo do fato de se eliminar o
sentido (Sinri) do S.: a referência ao objeto, não sendo guiada ou limitada pelo conceito, é sempre legítima, e só não
aparece quando não é efetuada.
A redução inversa, de S. a sentido, vale dizer, a tentativa de reduzir S., em seu conjunto, à conotação ou conceito, foi
realizada por
Husserl. Este negou que o objeto constituísse o S. ou coincidisse com ele (Logische Untersu-chungen, II, p. 46). Sua
tese é que "o S. lógico é uma expressão", no sentido de que ele eleva o sentido (Sinri) perceptivo da coisa "ao reino
do logos, do conceituai, portanto do universal". Em outros termos, Husserl substitui a dicoto-mia objeto-conceito pela
dicotomia sentido (percebido)-conceito, na qual o conceito é a essência da coisa, a sua conceituação ou expressão
acabada (Ideen, I, § 124). Tentativa de redução análoga a esta foi feita por Royce, que, depois de fazer a distinção
entre S. externo de uma idéia, que é a correspondência da idéia com o objeto, e seu S. interno, que é "o objetivo
consciente incorporado na idéia", reduz a este último o próprio S. externo, com o fundamento de que é "a própria
idéia que escolhe o objeto com o qual quer ser confrontada" (The World and the Individual, 1901, II, cap. I).
B) As principais tentativas de apresentar novas espécies de S. em acréscimo ou em concorrência com as duas
consagradas pela tradição são as seguintes:
Ia Definição de S. como uso. Esta é a tese encontrada em Philosophical Investigations (1953), de Wittgenstein. "Para
uma vasta classe de casos — embora não para todos —, nos quais empregamos a palavra 'S.', esta pode ser assim
definida: S. de uma palavra é seu uso na linguagem. O S. de um nome às vezes é explicado indicando-se seu
portador" (Op. cit., § 43). Mas, embora apresentada pelo próprio Wittgenstein e por outros em concorrência com a
definição semântica de S., a noção de uso pertence a outra esfera de problemas e a outro nível de indagação. Com
efeito, o problema a que diz respeito é o da formação dos significados nas línguas naturais. O uso não éo S., mas
determina-o, no sentido de que a ele é devida a conexão entre um objeto e uma palavra (ou em geral um veículo
"sígnico"). Sem dúvida, as definições de um dicionário são estabelecidas pelo uso, mas exprimem a conotação e a
denotação dos termos. Portanto, a teoria do uso não é uma teoria do S., mas uma teoria sobre a origem e a formação
das línguas naturais.
2a A proposta de um S. emotivo, paralelamente ao S. "simbólico" ou "descritivo", foi feita por Ogden e Richards
(Meaning of Meaning, 1923, ed. 1952, p. 149 e passim) e expressa por E. L. Stevenson da seguinte maneira: "S.
emotivo é um S. em que a resposta (do ponto de vista de quem ouve) e o estímulo (do ponto de
SIGNIFICAÇÃO ou SIGNIFICADO
893
SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE
vista de quem fala) é um conjunto de emoções" (Ethics andLanguage, 1944, p. 59). O S. emotivo assim entendido
seria diferente do significado simbólico, que consistiria em sua referência ao objeto, e o próprio significado poderia
ser definido em geral como a qualidade disposicional de um signo a produzir uma ou outra dessas reações, ou seja,
um conjunto de emoções ou a referência ao objeto (Jbid., pp. 53 ss.). Deixando de lado o fato de que o uso do termo
emotivo para indicar normas legais, prescrições técnicas ou comandos (coisas todas que caberiam na categoria dos
significados emotivos) pode com motivo ser considerado aberrante (v. EMOÇÃO), a doutrina em questão parece
sugerida pelo fato de que o significado denotativo é restringido à referência a coisas reais, de tal maneira que muitos
signos simples ou compostos parecem não ter denotação porque não se referem a coisas. Na realidade, a referência
denotativa vale para objetos em geral (v. OBJETOS), e objetos são tanto as coisas reais quanto as quiméricas, tanto os
planos, os projetos, os desejos e as aspirações quanto as qualidades sensíveis ou as entidades percebidas. Portanto, um
enunciado que expresse uma ordem, um desejo ou um projeto pode ter, na situação a que tais coisas se referem, a sua
denotação, vale dizer, seu objeto ou seu referente. Aliás, nem mesmo do ponto de vista lógico, que é o da teoria do
significado, tais objetos podem ser distinguidos dos outros.
3a Na definição de significado como intenção de quem fala, o S. seria aquilo que o falante pretende dizer, sem se
levar em conta a referência objetiva da palavra ou do enunciado empregado. Neste sentido, emprega-se "quer dizer..."
(em inglês: lmean..., do verbo to mean, que tem a mesma raiz de meaning = S.), para esclarecer ou corrigir uma
declaração. Está bem claro que qualquer descrição ou esclarecimento da intenção do falante só pode ocorrer através
da determinação do objeto ao qual se refere, ou de sua conotação, ou seja, por meio do uso das dimensões próprias do
significado. Portanto, tais dimensões são simplesmente pressupostas pela definição em foco. Às vezes é proposta
como um S. acrescentado ao tradicional (cf. M. BLACK, Problems of Analysis, 1954, pp. 55-56), porém está claro que
a intenção do falante não é outra espécie de significado, mas o modo como o falante usa as dimensões lógicas do
significado.
Associa-se a essa confusão entre intenção e S. o uso deste termo em frases como: "Um universo mecânico não teria
S.", "Se tudo acontecesse por acaso, a história não teria S.", nas quais a palavra S. obviamente eqüivale a intenção ou
objetivo, portanto a valor.
A- Proposta de um S. "pictórico" ou "ima-gético", paralelamente aos outros, porquanto "a linguagem pode ser
empregada com a intenção primária de exprimir ou evocar pinturas (ou imagens) de um modo que difere do uso dos
signos e formula possibilidades empiricamente significantes" (v. E. ALDRICH, Pictorial Meaning and Picture
Thinking", em Readings in Philoso-phical Analysis, 1949, pp. 175 ss.). Está claro que também esta proposta é
sugerida pelo pressuposto (estranho a qualquer teoria lógica do S.) de que o objeto da referência é uma coisa real ou
uma situação de fato e de que não pode ser de outra natureza. Na realidade, os S. "pictóricos" têm conotação e
denotação como todos os demais.
5a Definição do S. como vetor de campo, no sentido de que ele seria uma disposição atualizada pelo objeto que se
destaca do fundo de um campo ou contexto apropriado. Mais precisamente, ele seria a ativação ou a atualização de
uma resposta descritiva, provocada pelo objeto (A. P. USHENKO, The Field Theory of Meaning, 1958, p. 109). Mas
esta é uma teoria da formação dos S. (que pode ser discutida no âmbito da teoria da linguagem) e não traz inovações
no que se refere à composição do significado do S., que continua determinado por seus dois componentes: conotação
e denotação (cf. Op. cit, pp. 75-76).
SIGNIFICADO, ESPÉCIES DE (in. Kinds of meaning; fr. Espèces de signification; ai. Bedeutungsarten; it. Specie
di significató). Podem-se distinguir várias espécies de S. quando se deixa de fazer referência aos signos tomados
isoladamente e passa-se a fazer referência aos conjuntos de signos, aos enunciados. Estes podem ter: 1Q um S. lógico;
2a um S. factual; 3a um S. expressivo.
le O enunciado tem S. lógico quando pode ser declarado verdadeiro ou falso com base no S. dos termos que o
compõem. Têm S. desse gênero proposições do tipo "nenhum solteiro é casado", que também são chamadas de
analíticas ou tautologias e são objeto da lógica. (V.
ANALÍTICO; LÓGICA.)
2a Têm S. factual os enunciados que, além de incluírem termos com S., são verificados por
SIGNIFICÂNCIA
894
SIGNO
um fato ou por um conjunto de fatos. Nesse sentido, têm S. factual as proposições das ciências naturais (física,
química, etc). Semelhantes enunciados também costumam ser chamados de sintéticos, para distinguir dos enunciados
analíticos da lógica. Reichenbach dividiu o S. factual em físico, que é a possibilidade física, ou seja, não contradiz as
leis empíricas, e técnico, que é a possibilidade técnica definida por métodos práticos conhecidos ("Verifiability
Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 53 ss.).
O S. lógico e o S. factual costumam ser chamados de S. cognitivos ou teóricos; os enunciados que possuem tais S.
são reconhecíveis por possibilidade de serem declarados verdadeiros ou falsos.
3C Diz-se que têm S. expressivo as locuções que não têm S. teórico mas que apesar disso manifestam um estado de
espírito do sujeito que os emprega ou servem para produzir estados de espírito análogos no sujeito que os ouve. As
interjeições, as exclamações, as expressões metafóricas têm S. desse gênero.
Às vezes, especialmente por parte dos seguidores do empirismo lógico (v.), as expressões da metafísica tradicional
são consideradas enunciados desse gênero, negando-se-lhes qualquer valor cognitivo. Esse uso, porém, é polêmico e
só pode ser registrado como tal (v. ARTE;
METAFÍSICA; POESIA).
SIGNIFICÂNCIA (in. Significance, ai. Be-deutsamkeit; it. Significanzã). 1. O mesmo que significado (v.).
2. Importância ou valor. Desse ponto de vista, diz-se, p. ex., que certos acontecimentos históricos são significantes.
SIGNO (gr. OT||j.eíov; lat. Signum; in. Sign; fr. Signe, ai. Zeichen; it. Segnó). Qualquer objeto ou acontecimento,
usado como menção de outro objeto ou acontecimento. Esta definição, geralmente empregada ou pressuposta na
tradição filosófica antiga e recente, é genera-líssima e permite compreender na noção de S. qualquer possibilidade de
referência: p. ex., do efeito à causa ou vice-versa; da condição ao condicionado ou vice-versa; do estímulo de uma
lembrança à própria lembrança; da palavra a seu significado; do gesto indicativo (p. ex., um braço estendido) à coisa
indicada; do indício ou do sintoma de uma situação à própria situação, etc. Todas essas relações podem ser
compreendidas pela noção de signo. No
entanto, em sentido próprio e restrito, essa noção deve ser entendida como a possibilidade de referência de um objeto
ou acontecimento presente a um objeto ou acontecimento nâo-presente, ou cuja presença ou não-presen-ça seja é
indiferente. Nesse sentido mais restrito, a possibilidade de uso dos S. ou semiose é a característica fundamental do
comportamento humano, porque permite a utilização do passado (o que "não está mais presente") para a previsão e o
planejamento do futuro (o que "ainda não está presente"). Nesse sentido, pode-se dizer que o homem é, por
excelência, um animal simbólico, e que nesse seu caráter se radica a possibilidade de descoberta e de uso das técnicas
em que consiste propriamente sua razão (v.).
Ainda hoje é válida a doutrina do S. formulada pelos estóicos. Estes chamavam de S., de modo geral, "aquilo que
parece revelar alguma coisa", mas em sentido específico chamavam de S. "aquilo que é indicativo de uma coisa
obscura", não manifesta (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 143; Pirr. hyp., I, 99 ss.). Portanto, consideravam que os
S. eram de duas espécies fundamentais: rememorativos, que se referem a coisas apenas ocasionalmente obscuras,
como p. ex. a fumaça, que é S. do fogo, e indicativos, que nunca são observados juntamente com a coisa indicada,
que é obscura por natureza; neste sentido, diz-se que os movimentos do corpo são S. da alma (Jbid., VIII, 148-155).
Sabemos também que na capacidade de usar os S. os estóicos viam a diferença entre homens e animais (Jbid., VIII,
276), e que consideravam o S. um produto intelectual, identificando-o com "uma proposição constituída por uma
conexão válida e reveladora do conseqüente" (Jbid., VIII, 245). Os epicuristas, ao contrário, consideravam que o S.
tem natureza sensível, capaz de permitir e fundamentar a indução (Ibid., VIII, 215 ss.; cf. INDUÇÃO). Mais tarde, nos
moldes da doutrina estóica, o S. continuou sendo definido como relação de referência entre dois termos conexos. S.
Tomás não excluía que se pudesse chamar de S. a causa sensível de um efeito oculto (S. Th., 1,70, a. 2, ad. 2Q). A
lógica terminis-ta distinguiu a referência do S. àquilo que denota, que é a relação de significação instituída
arbitrariamente, da suposição (v.), que é a relação pela qual o termo compreendido numa proposição está em lugar de
alguma coisa (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03). Ockham definiu o S. como "tudo aquilo que, uma vez
aprendido,
SIGNO
895
SIGNO
permite chegar a conhecer alguma outra coisa" (Summa log., I, 1), e fez a distinção entre S. natural, que é o conceito
(ou intenção da alma) enquanto produzido pela própria coisa do mesmo modo como a fumaça é produzida pelo fogo,
e S. convencional, instituído arbitrariamente, que é a palavra (Ibid., I, 14). A filosofia inglesa dos sécs. XVII e XVIII
valeu-se amplamente da noção de S., mas não o definiu de maneira nova. Hobbes dizia: "S. é o antecedente evidente
do conseqüente ou, ao contrário, o conseqüente do antecedente quando antes já tiverem sido observadas
conseqüências semelhantes; quanto mais vezes tiverem sido observadas, tanto menos incerto será o S." (Leviath., I,
3). Berkeley utilizou a noção de S. para definir a função das idéias gerais, que seriam idéias particulares "adotadas
para representar ou substituir outras idéias particulares do mesmo tipo" (Principies of Human Knowledge, Intr., § 12).
No último capítulo de Ontologia, Wolff apresenta uma doutrina lúcida e incisiva do S., definindo-o como "um ente
do qual se infere a presença ou a existência passada ou futura de outro ente" (Ont., § 952) e distinguindo,
conseqüentemente, o S. demonstrativo, que indica um objeto presente designado, o S. prognóstico, cujo ser designado
é futuro, e o S. rememorativo, cujo ente designado é passado Ubid., § 954). Com base nesses conceitos, é óbvio que
qualquer procedimento cognos-citivo pode ser considerado semiológico. Em oposição a isso, Kant considerou, por
um lado, as palavras e os S. visíveis (algébricos, numéricos, etc.) como simples expressões dos conceitos, ou seja,
como "caracteres sensíveis que designam conceitos e servem apenas como meios subjetivos de reprodução, e, por
outro lado, os símbolos como representações analógicas, in-fra-intelectuais, dos objetos intuídos (Crít. do Juízo, § 59;
Antr., I, 38). Portanto, segundo Kant, "quem só sabe expressar-se de modo simbólico tem poucos conceitos
intelectuais, e aquilo que freqüentemente se admira na vivida expressividade presente nos discursos dos selvagens (e
às vezes também dos supostos sábios de um povo rude) não passa de pobreza de idéias, portanto também de palavras
para expressá-las" Ubid., 38). No entanto, os kan-tianos não foram tão contrários quanto seu mestre a reduzir
qualquer conhecimento ao uso de signos. H. Helmholtz considerava as sensações como sinais produzidos em nossos
órgãos dos sentidos pela ação de forças externas, e atribuía a validade desses S. ao fato de terem entre si uma ordem que reproduz a ordem existente entre as
coisas, e não o fato de serem semelhantes às coisas (Die Tatsachen in der Wahrnehmung, 1879). Na mesma linha de
pensamento, E. Cassirer estudou as formas simbólicas da vida humana e seu significado conceituai (Die Philosophie
der symbolischen Formen, 3 vol., 1923-29), e chamou o homem de animal symbolicum (Essay on Man, 1944, cap. II;
trad. it., p. 49).
Quando, por influência da lógica matemática, á teoria dos S. volta a ser estudada na filosofia contemporânea, seus
traços fundamentais não variam, mas é-lhe acrescentada outra ordem de considerações, mais precisamente as que se
incluem na chamada pragmática (v.), vale dizer, as que concernem à relação do S. com seus intérpretes. Pode-se
dizer que, desse ponto de vista, o objeto da semiótica, que é a teoria dos signos, não é mais o próprio S., mas a
semiose (v.), ou seja, o uso dos signos ou o comportamento semiótico. Essa orientação foi inaugurada por E. S.
Peirce. Depois de dar a definição tradicional do S. (como "algo que, uma vez conhecido, conhecemos outra coisa"),
Peirce acrescentou que "S. é um objeto que, por um lado, está em relação com seu objeto e, por outro, em relação
com um interpretante, de tal modo que produz entre o interpretante e o objeto uma relação correspondente à sua
própria relação com o objeto." O S. é, pois, uma relação triádica entre o próprio S., seu objeto e o interpretante (Coll.
Pap., 2.243 ss.; 8.332). Conseqüentemente, Peirce classificava os S. segundo três pontos de vista diferentes: por si
mesmos; em sua relação com o objeto; em sua relação com o interpretante. Considerados em si mesmos, os S. podem
ser: aparências ou qualissignos-, objetos ou acontecimentos individuais, vale dizer, sinsignos (nessa palavra, sin é a
primeira sílaba de semel, simul, similar, etc); tipos gerais ou legissignos (Ibid., 8.334). Considerado em relação ao
objeto representado, o S. pode ser: um ícone, como p. ex. uma percepção visual ou auditiva; um índice, como um
nome próprio ou o sintoma de uma doença; ou um símbolo, que é um S. convencional (Ibid., 8.335). Em relação ao
objeto imediato, o S. pode ser de uma qualidade, de um ente ou de uma lei. Finalmente, em relação ao interpretante, o
S. pode ser um rema, um enunciado ou um tema, isto é, um termo, uma proposição ou um raciocínio (Ibid., 8.337).
Essa
SIGNO
896
SILOGISMO
classificação foi depois reexposta pelo próprio Peirce com outra terminologia, mais aceita. Chamou de tipo a forma
definidamente signi-ficante, que não é uma coisa única ou um evento único, que não existe por si mas é determinada
por coisas que existem; chamou de ocorrência (tokerí) o evento singular que ocorre uma única vez, assim como uma
palavra que se encontra numa única linha de uma única página de uma única cópia de um livro; e chamou de tom
(tone) o caráter significante indefinidamente significante, como o tom de voz (Coll. Pap., 4.537). Essas três espécies
correspondem ao legissigno, sinsigno e qualissigno da classificação anterior (v. PALAVRA; TTPO).
Teve muito sucesso (imerecido) a classificação proposta por Ogden e Richards em The Meaning of Meaning (1923).
Distinguiram o uso simbólico do uso emotivo dos S.; o uso simbólico é a asserção, ou seja, a referência do S. a um
objeto; o uso emotivo tende a expressar e a produzir sentimentos e atitudes. "Na função simbólica incluem-se tanto a
simbolização da referência quanto a comunicação dela ao ouvinte, vale dizer, a produção de referência semelhante no
ouvinte. Na função emotiva incluem-se tanto a expressão de emoções, atitudes, disposições, intenções, etc. do falante,
quanto a comunicação dessas emoções, etc, que é a sua evocação no ouvinte" (The Meaning of Meaning, 10a ed.,
1952, p. 149). Essa classificação foi utilizada (especialmente por E. L. STEVENSON, Ethics and Language, 1944) na
análise da linguagem da moral e, em geral, da linguagem normativa, mas seus fundamentos não são consistentes,
sobretudo pela impossibilidade de propor um critério simples e suficientemente seguro para se fazer a distinção
proposta nos casos particulares. Classificação mais adequada e menos preconcebida é a de Morris, que distingue os
identificadores, que significam a localização no espaço e no tempo; os designadores, que significam as características
do meio; os apreciadores, que significam um status preferencial; os prescritores, que significam a solicitação de
respostas específicas (Signs, Language and Behavior, 1946, III, 2; trad. it., p. 97). Desses S., chamados em conjunto
de lexicais, Morris distingue os S. formadores, que significam que "a situação significada de outro modo é uma
situação alternativa" ilbid., VI, 1). Estes últimos são divididos por sua vez em determinadores, como "todos",
"alguns", "nenhum"; em conectores, como vírgulas, parênteses, cópula, conjunções e, ou, etc.; e em modalizadores, que são, p. ex., pontos de exclamação, etc.
Morris revalidou na filosofia contemporânea a teoria do S. estabelecida por Peirce, introduzindo uma terminologia
útil: chamou de veículo o objeto ou o acontecimento que serve como S.; de designado o objeto a que o S. se refere; de
inter-pretante o efeito do S. sobre o intérprete, ou seja, o sentido do S.; e de intérprete o sujeito do processo
semiológico (Foundations of the Theory of Signs, 1938, II, 2). Na esteira de Peirce, Morris também insistiu no caráter
comportamental do processo semiológico; aliás, procurou definir o S. em termos exclusivamente comportamentais. A
definição a que chegou é a seguinte: "Se A orienta o comportamento para um objetivo de maneira semelhante (mas
não necessariamente idêntica) à maneira como B orientaria o comportamento para o mesmo objetivo no caso de se
observar B, então A é um S." (Ibid., I, 2; trad. it., p. 21). É evidente a influência que a teoria dos reflexos
condicionados exerceu sobre essa definição (v. AÇÃO REFLEXA). Camap — e com ele muitos outros — aceitou os
fundamentos da teoria de Morris, bem como a divisão da semiótica geral nas três partes por ele propostas (cf. R.
CARNAP, Foundations of Logic and Mathematics, 1939,1, 2; trad. it., pp. 6-7) (v. SEMIÓTICA).
SILÊNCIO (lat. Silentium; in. Silence, fr. Si-lence, ai. Schweigen; it. Silenzió). Atitude mística diante da
inefabilidade do ser supremo (cf., p. ex., BOAVENTURA, Ltinerarium mentis in Deum, VII, 5). Segundo Jaspers, a
atitude diante do ser da Transcendência (Phil., III, p. 223). Segundo Wittgenstein, a atitude diante dos problemas da
vida: "Sobre o que não se pode falar, deve-se calar" (Tractatus, 7).
SILOGISMO (gr. GDÀloYiaLióç; lat. Syllo-gismus; in. Syllogism; fr. Syllogisme, ai. Syllogis-mus; it. Sillogismó).
Essa palavra, que na origem significava cálculo e era empregada por Platão para o raciocínio em geral (cf. Teet., 186
d), foi adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo, definido como "um discurso em
que, postas algumas coisas, outras se seguem necessariamente" (An. pr., I, 1, 24 b 18; I, 32, 47a 34). As
características fundamentais do S. aristotélico são: ls caráter mediato; 29 necessidade. O caráter mediato do S. decorre
do fato de ser a contrapartida ló-gico-lingüística do conceito metafísico de substância. Em virtude disto, a relação
entre duas
SILOGISMO
897
SILOGISMO
determinações de uma coisa só pode ser estabelecida com base naquilo que a coisa é necessariamente: sua substância;
p. ex., para decidir se o homem tem a determinação "mortal", só se pode levar em consideração a substância do
homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar da maneira seguinte: "Todos os animais são mortais;
todos os homens são animais; logo todos os homens são mortais". Isso significa que o homem é mortal porque
animal: a animalidade é a causa ou a razão de ser de sua mortalidade. Nesse sentido, diz-se que a noção "animal"
desempenha a função de termo médio do S.: obviamente, o termo médio é indispensável no S. porque representa a
substância, ou a alusão à substância, e somente esta possibilita a conclusão (An. post., II, 11, 94 a 20). Portanto, o S.
tem três termos, a saber o sujeito e o predicado da conclusão e o termo médio, mas é a função do termo médio que
determina as diferentes figuras do silogismo (v. SILOGÍSTICA). Além das figuras, Aristóteles distinguiu várias espécies
de silogismo. O S. é por definição uma dedução necessária: portanto, sua forma primária e privilegiada é o S.
necessário, que Aristóteles chama também de demonstrativo, ou científico, ou S. do universal (An. pr., I, 24, 25 b 29).
Dele se distingue o S. dialético, que se baseia em premissas prováveis, sendo, pois, apenas provável (Ibid., II, 23, 68b
10; An.post., II, 8, 93 a 15). É também chamado de retórico-, uma espécie dele é o S. erístico, baseado em premissas
que parecem prováveis mas não são (Top., I, 1, 100 b 23). Dos S. necessários, a primeira e melhor espécie é a dos
ostensivos (v.), que Aristóteles contrapõe aos que partem de uma hipótese (An. pr., I, 23, 40 b 23). Estes últimos não
são aqueles que serão chamados depois de S. hipotéticos, mas aqueles cuja premissa maior não é a conclusão de outro
S., nem é evidente por si, mas é tomada como hipótese (Ibid., I, 44, 50 a 16). Uma das espécies desses S. é aquele que
conclui mediante a redução ao absurdo (Ibid., 50 a 29). Entre os S. ostensivos, os mais perfeitos são os universais da
primeira figura, nos quais é possível integrar todas as outras formas de S. (Ibid., I, 7, 29 b 1). Finalmente, do S.
dedutivo distingue-se o S. indutivo ou indução (Ibid., I, 23, 68b 15). Por outro lado, não são espécies de S. aquilo que
Aristóteles chama de S. geométrico, médico, político (Top., I, 9, 170 a 32) eprático(Et. nic, VI, 12,1044 a 31), que se
distinguem entre si apenas pelo conteúdo dos
princípios a que se referem, e não pela forma lógica. A rigor, tampouco são espécies de S. os S. compostos, como o
epiquirema ou o sorites; ou truncados, como o entimema-. sobre cada um deles, v. os verbetes correspondentes.
Também não é silogismo a divisão, que é um dos métodos da dialética de Platão, que Aristóteles chama de "S. fraco"
(An. pr, I, 31, 46 a 33).
Os estóicos, que não fundamentaram sua lógica com a teoria da substância, mas com a da percepção, não
consideraram como tipo fundamental de raciocínio o S., mas o raciocínio anapodítico, que tem somente dois termos e
cuja premissa maior é uma proposição condicional ("Se é dia há luz. Mas é dia. Logo há luz"; v. ANAPODÍTICO). OS
aristotélicos, a partir de Teofrasto, traduziram os raciocínios anapo-díticos dos estóicos para os esquemas
aristotélicos, acrescentando ao S. categórico de Aristóteles, como duas outras espécies de S., o hipotético e o
disjuntivo (cf. PRANTL, Geschichte derlogik, I, p. 375 ss.; os textos fundamentais são apresentados por Alexandre, Ad
an.pr., f. 134 a-b). Essa doutrina foi transmitida à filosofia ocidental pela obra de Boécio, que se inspirava em autores
posteriores, principalmente em Galeno (De syllogismo hypothetico, em P. L., 64). A doutrina do S., assim
completada, foi transmitida pela tradição sem mudanças substanciais; depois disso, os lógicos só deram livre curso à
fantasia, atribuindo nomes para qualquer modificação insignificante nas estruturas tradicionais.
Já dissemos que o fundamento do S. aristo-télico é a teoria da substância (cf. VIANO, La lógica di Aristotele, 1955,
III, 6). Como estrutura necessária do ser, a substância garante a ligação entre as determinações, cuja conexão é
demonstrada pelo S.: assim, essa conexão nada mais é que a própria necessidade com que se interligam as
determinações da substância. A necessidade dessa ligação é expressa na universalidade da predicação: universalidade
que em Aristóteles serve de base para o "S. perfeito". Segundo Aristóteles, "dizer que uma coisa está contida na
totalidade de outra coisa é o mesmo que dizer que um termo é predicado por todas as coisas do outro termo. E
dizemos que se predica de todas as coisas sempre que não haja coisa alguma daquelas pelas quais o sujeito pode ser
tomado de que não seja possível predicar a coisa em questâo"G4«.pr., I, 1, 24 b 26). Ser um termo na totalidade de
outro
SILOGISMO
898
SILOGISMO
termo é a relação de inerência que, segundo Aristóteles, expressa a necessidade do ser predicativo (v. SER). Nessa
relação de inerência baseia-se a predicaçâo de omni, ou seja, a referência do predicado a qualquer coisa indicada pelo
sujeito. Em seguida, na lógica medieval, foi justamente o princípio de omni que se reconheceu como fundamento do
S. Eis como era expresso por Pedro Hispano: "Ser dito de omni é quando não se admite no sujeito nada de que o
predicado não seja dito, como p. ex. 'todo homem corre'. Ser dito de nullo é quando não se admite no sujeito nada de
que o predicado não seja removido, como p. ex. 'nenhum homem cone'"{Summ. log., 4.01). Esta lei fundamental do
S. foi expressa nos mesmos termos por uma longa tradição (cf., p. ex., JUNGIUS, Lógica hamburgensis, III, 11,4;
WOLFF, Log, § 346). Na lógica tradicional, o dictum de omni et nullo nunca teve significado extensivo: a
possibilidade de que alguma coisa seja dita de omni não passa de inerência necessária do predicado ao sujeito. Kant
quis dar ao S. um fundamento semântico, que ele expressou com as seguintes regras: "a nota [característica] de uma
nota é uma nota da própria coisa" {nota notae est etiam nota rei ipsius); "o que repugna à nota repugna à própria
coisa {repugnans notae repugnat rei ipsi)", mas reconheceu que essa fórmula é apenas outro modo de expressar o
princípio de omni: modo cuja única vantagem é evitar a "falsa sutileza" da distinção das quatro figuras {Die falsche
Spitzfindigkeit der vier syllogistischen Figuren, 1762, § 2). Em Lógica (1800), Kant recorreu ao fundamento
tradicional do S., definindo-o como "o conhecimento da necessidade de uma proposição mediante a subsunção de sua
condição a uma regra geral dada" {Logik, § 56); o princípio geral do S. é assim expresso: "O que está sob a condição
de uma regra está também sob a própria regra". Kant observa que o S. pressupõe: a) uma regra geral; b) uma
subsunção à condição que ela expressa; e acrescenta que "o princípio de que tudo está sob o universal e é
determinável em regras universais também é o princípio da racionalidade ou da necessidade" {principium
rationalitatis, seu necessitatis) {Ibid., § 57).
Por outro lado, porém, Leibniz tentara expressar o fundamento do S. em termos de extensão, depois de distinguir
claramente extensão e intensão: "Ao dizer 'todo homem é animal' quero dizer que todos os homens estão
compreendidos em todos os animais, mas ao mesmo tempo estou entendendo que a idéia de animal está
compreendida na idéia de homem. Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem compreende mais
idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro tem mais graus de realidade; um tem mais extensão, o outro
tem mais intensão. Portanto, pode-se talvez dizer sem ferir a verdade que toda a doutrina silogística poderia ser
demonstrada pela doutrina do continente e do conteúdo, do compreensivo e do compreendido, que é diferente da
doutrina do todo e da parte, pois o todo sempre excede a parte, ao passo que o compreensivo e o compreendido às
vezes são iguais, como acontece nas proposições recíprocas" {Nouv. ess., IV, 17, 8). Mas foi principalmente
Hamilton quem impôs o ponto de vista extensivo como fundamento do S., com base naquilo que ele chamava de "lei
de identidade ou não-identidade proporcional", segundo a qual o S. se baseia unicamente nas três possíveis relações
entre os termos: Ia de co-inclusão toto-total, ou seja, de identidade ou de absoluta conversibilidade ou reciprocação;
2S de co-exclusão toto-total, ou seja, de não-identidade ou de absoluta não-conversibilidade ou não-reciprocação; 3a
de co-inclusão incompleta, que implica uma relação de co-exclusão incompleta, ou seja, identidade ou não-identidade
parciais, ou conversibilidade ou reciprocação relativas {Lectures on Logic, II, 1866, pp. 290 ss.). O próprio Hamilton
teve a preocupação de ressaltar os precedentes de sua doutrina, mas não inclui entre eles o principal, que é Leibniz
{Ibid., 346-48). A lógica posterior de inspiração aristotélica não seguiu, nesse aspecto, a doutrina de Hamilton,
retornando à interpretação intensiva do fundamento do silogismo. Na realidade, o legado da proposta de Hamilton
seria acolhido principalmente pela lógica matemática; esta, porém, a partir de sua primeira manifestação, as Leis do
pensamento (1854) de G. Boole, alinhou-se com o empiris-mo (ver adiante) e negou ao S. seu primado de forma
fundamental e típica do raciocínio. Boole dizia: "O S., a conversão, etc. não são os últimos processos da lógica.
Baseiam em outros processos mais simples, que constituem os elementos reais do método em lógica, e neles se
resolvem. De fato não é verdade que qualquer inferência seja redutível às formas particulares de S. e de conversão"
{Laws of Thought, cap. 1, Dover Pubblications, p. 10).
SILOGÍSTICA
899
SILOGÍSTICA
Segundo Boole, "os processos elementares da lógica são idênticos aos processos elementares da aritmética" ilbid., p.
11): afirmação que serviu de base para toda a evolução posterior da lógica matemática. Mas com isso o S. era
definitivamente derrubado de seu trono de tipo fundamental do raciocínio dedutivo, feito que a crítica empirista não
lograra totalmente. Desde então, o S. deixou de ser um capítulo autônomo da lógica, e a preocupação dos lógicos em
relação a ele consiste unicamente em mostrar que ele pode ser resolvido e expresso nas fórmulas de cálculo que
preferirem: preocupação que não deixa de ser acompanhada por perplexidade (cf., p. ex., W. v. O. QUINE, Methods of
Logic, 1952, § 14; A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 46.22).
Como já dissemos, independentemente da discussão sobre seus fundamentos, a validade do S. foi questionada várias
vezes do ponto de vista do empirismo. Para Sexto Empírico, o S. ou era a repetição inútil do que já se conhece, ou um
círculo vicioso.- isso porque a premissa maior ("Todos os homens são mortais") implicaria já a verdade da conclusão
("Sócrates é mortal") {Pirr. hyp., I, 163-64; II, 196). Stuart Mill observava a propósito que não existe círculo vicioso,
porque, ao se chegar à proposição geral, a inferência terá terminado, e só nos restará "decifrar nossas observações"
{Logic, II, 3, 2). Mas isso significa reduzir o S. à simples decifração de notas já possuídas. Bacon observara que "o S.
força o assentimento, mas não a realidade" {Nov. Org., I, 13). Foi essa a idéia que, graças a Locke, prevaleceu no que
se refere à natureza do S.: este não descobre nem idéias nem a correlação entre idéias, que só a mente pode perceber,
mas "demonstra apenas que, se a idéia do meio concorda com as outras a que se refere imediatamente de ambos os
lados, então essas duas idéias distantes (ou das extremidades) certamente concordam". Assim, "a conexão imediata de
cada idéia com aquelas a que se aplica de ambos os lados — conexão de que depende a força do raciocínio — é bem
percebida tanto antes do S. quanto depois dele, pois ao contrário quem faz o S. nunca poderia enxergá-la" {Ensaio,
IV, 17, 4). Essa famosa crítica de Locke deu início à perda de supremacia do S., o que terminaria com o predomínio
da lógica matemática na segunda metade do século XIX. SILOGÍSTICA (in. Syllogistic; fr.^ Syllogis-tique, ai.
Syllogistik, it. Sillogisticá). É a teoria
do silogismo (v.). Desenvolvida pela primeira vez por Aristóteles em Analytica priora, em poucos anos transformarse-ia no cerne da lógica, continuando como tal até o advento da lógica matemática contemporânea. A parte mais
antiga é a teoria do silogismo dedutivo categórico, exposta pelo próprio Aristóteles. Este fixa os quatro modos válidos
da primeira figura (as figuras são caracterizadas pela posição do termo médio: na primeira, funciona como sujeito na
premissa maior e como predicado na menor; na segunda, é predicado em ambas as premissas; na terceira é sujeito em
ambas, donde a necessidade de converter uma das premissas. Os modos dispõem-se assim: em primeiro lugar, os que
concluem com uma proposição universal afirmativa, depois os que concluem com uma universal negativa, em
seguida os que concluem com uma particular afirmativa e finalmente os que concluem com uma particular negativa).
A seguir, passa à análise dos modos possíveis da segunda e da terceira figuras, demonstrando sua redutibilidade,
principalmente por meio da técnica de conversão^?), a modos correspondentes da primeira. Depois disso, Teofrasto
formulou os modos da quarta figura, mas parece que seu reconhecimento e sua exposição como figura independente
couberam a Galeno. Todavia, mais tarde, vários lógicos como Averróis, Zabarella e, na idade moderna, Wolff e Kant,
pronunciaram-se contrários a ela, pois a consideraram substancialmente inútil. De fato os modos dessa figura não
passam de modos indiretos da primeira, com permuta das duas premissas; além disso, alguns deles (o primeiro e o
quarto) não "concluem necessariamente" (condição essencial, segundo Aristóteles, para que haja silogismo). A essas
quatro figuras, os lógicos modernos acrescentaram os cinco modos "fracos" obtidos da primeira e da segunda (e
quarta) por subal-ternação (substituição da conclusão universal por uma particular).
Essa teoria, já amplamente explorada pelos comentadores do fim da Antigüidade, peripa-téticos e neoplatônicos, e
depois sintetizada por Boécio, foi reelaborada pelos lógicos medievais, tornando-se extremamente formalista. Com
efeito, coube aos grandes terministas medievais transformar todos os modos em fórmulas, de acordo com uma técnica
complicada: com quatro vogais {a, e, i, o) indicaram os quatro tipos de proposição (respectivamente: universal
afirmativa [a], universal negativa [e], par-
SILOGÍSTICA
900
SILOGÍSTICA
ticular afirmativa [i]; particular negativa [o]); com B, E, D, F, indicaram os quatro modos da primeira figura,
designando-os com as pala-vras-fórmulas Barbara, Celarent, Darii, Ferio, em que as únicas letras significativas são
as iniciais e as três vogais (que indicam o tipo de proposição no que diz respeito à premissa maior, à premissa menor
e à conclusão). Quanto aos modos das outras três figuras, as três primeiras vogais têm o significado de costume; as
iniciais indicam a que modo da primeira figura se reduzem; além disso, são significativas algumas letras minúsculas
pospostas à vogai, que indicam operações a serem realizadas nas proposições indicadas por aquela vogai: 5:
conversão "simpliciter"; p. conversão "per accidens"; m: metátese das premissas; c. "reductio ad impossibile". Ora,
teoricamente, os modos matematicamente possíveis em qualquer figura são 16, obtidos com a combinação dois a dois
em todos os modos possíveis (com repetição); as quatro letras a, e, i, o (pois no silogismo o que decide são as
premissas, e as premissas são duas): aa, ea, ia, oa; ae, ee, ie, oe, ai, ei, ii, oi; ao, eo, to, 00. Portanto, resultariam 64
modos, mas desses são válidos somente os seguintes 19:
Ia figura: Barbara, Celarent, Darii, Ferio;
2- figura: Cesare, Camestres, Festino, Ba-roco;
3a figura: Darapti, Disamis, Datisi, Felapton, Bocardo, Feriso;
4a figura: Baralipton, Celantes (ou Calemes), Dabitis, Fapesmo, Frisesmorum.
Mais os modos "fracos": Barbari, Celaront, Cesaro, Camestros, Calemos (obtidos de Barbara, Celarent, Cesare,
Camestres, Calemes).
Foram também os lógicos da Idade Média que introduziram o silogismo com proposições singulares (como "Todos os
homens são mortais; Sócrates é homem; logo Sócrates é mortal"), que não se incluíam na S. propriamente aristotélica,
totalmente baseada na acepção universal dos termos, portanto no uso dos operadores "tudo" e "em parte" [alguns].
De origem estóica, mas devido em grande parte à elaboração dos lógicos medievais (a partir de Boécio) é o
importante capítulo da teoria do silogismo hipotético e disjuntivo. O silogismo hipotético consiste em uma premissa
(dita maior) que estabelece implicação entre um enunciado e outro ("se A, B"), em uma premissa (dita menor) que
afirma {modus ponens) ou nega {modus tollens), respectivamente, o
antecedente ou o conseqüente da implicação contida na maior; a conclusão afirma ou respectivamente nega o
conseqüente ou o antecedente:
modusponens. se A, B modus tollens: se A, B A
não-B
logo B
logonão-/!
Analogamente, o silogismo disjuntivo consiste em uma premisssa (maior) em que são afirmadas {modus tollendo
ponens) ou reciprocamente negadas {modusponendo tollens) duas proposições, em uma premissa (menor) em que é
negada, ou, respectivamente, afirmada uma das disjuntas da premissa maior, e na conclusão, que consiste em afirmar
ou, respectivamente, negar, a outra disjunta:
modus tollendo ponens: A ou B
A ou B
não-B
não-^4
logo A
logo B
modus ponendo tollens: ou A ou B
ou A ou B
A
B
logo nâo-B logo não-A
Apesar de certas analogias forçadas, estes tipos de "silogismo" representam uma estrutura completamente diferente
da do silogismo categórico, de tal maneira que, se não se levasse em consideração a etimologia, dificilmente
poderiam ser chamados de silogismo; com efeito, para usarmos a linguagem da lógica contemporânea, eles pertencem
ao cálculo proposicional simples e baseiam-se em implicações materiais, ao passo que os modos do silogismo
categórico pertencem ao cálculo das funções pro-posicionais e baseiam-se em implicações formais. Não obstante, na
lógica moderna, principalmente no séc. XIX, foi feita uma tentativa (mas em bases mais gnosiológicas e
epistemológicas que propriamente lógicas) de reduzir o silogismo categórico a silogismo hipotético, interpretando o
primeiro como infe-rência bipotético-dedutiva: "se todos os homens são mortais, e se Sócrates é homem, Sócrates é
mortal". Mas a exposição lógica completa desta última forma de inferência mostra que na realidade ela não se reduz a
nenhuma das duas formas clássicas, perdendo-se a concisão rigorosa e a estrutura ternária destas.
Faltaria considerar o silogismo indutivo, mas seu estudo não pertence à S. propriamente dita (v. INDUÇÃO).
G. P.
SIMBOLISMO
901
SIMPATIA
SIMBOLISMO (in. Symbolism; fr. Symbo-lisme, ai. Symbolismus; it. Simbolismó).
1. Uso dos signos, ou seja, comportamento semiológico ou semiose (v.).
2. Uso de um sistema de signos especial (p. ex., o "S. matemático").
3. Uso de símbolos no 2° sentido do termo: de signos convencionais e secundários (signos de signos, como ocorre na
arte, na religião, etc). Neste sentido, essa palavra é usada por Cassirer ao falar da expressão simbólica como forma
mais madura de desenvolvimento lingüístico, marcada pela distância entre o signo e seu objeto" (ThePhilosophy of
SymbolicForms, II, p. 237); de fato, essa distância é própria do comportamento semiológico.
SÍMBOLO (in. Symbol; fr. Symbole, ai. Symbol; it. Símbolo). 1. O mesmo que signo. É com esta significação
genérica que a palavra é mais usada na linguagem comum.
2. Uma espécie particular de signo. Segundo Peirce: "Um signo que pode ser interpretado em conseqüência de um
hábito ou de uma disposição natural" (Coll. Pap., 4.531). Segundo Dewey, um signo arbitrário ou convencional
(Logic, Intr., IV, trad. it., p. 93). Segundo Morris: um signo que substitui outro signo na orientação de um
comportamento (Signs, Language andBehavior, I, 8). Segundo outros, um signo típico, em contraposição ao signo
individual, que é a palavra como significado (v. PALAVRA) (M. BLACK, Language and Philosophy, VI, 2; trad. it., p.
181).
SIMETRIA (in. Symmetry, fr. Symétrie, ai. Symmetrie, it. Simmetrid). Mensurabilidade, proporção ou harmonia.
Diz-se que é simétrica a relação entre os dois termos nos dois sentidos: p. ex., a relação "irmão" (v. RELAÇÃO).
SIMPATIA (gr. m)urax8eia; in. Sympathy, fr. Sympatie, ai. Sympatbie, it. Simpatia). Ação recíproca entre as coisas
ou sua capacidade de influência mútua. Esse conceito é antigo e desde a antigüidade foi aplicado tanto à realidade
humana quanto à física, mas foi usado pelos filósofos antigos principalmente em relação ao mundo físico. Para os
estóicos, a S. é o nexo que interliga as coisas, mantém-nas ou as faz convergir para a ordem do mundo (ARNIM,
Stoicorum fragmenta, II, p. 264). Para Plotino, a S. era o fundamento da magia: "De onde provêm os encantamentos?
Da S., graças à qual há uma concordância natural entre coisas semelhantes e discordância natural entre as coisas
diferentes, e graças à qual também há grande número de potências variadas que colaboram para a unidade desse grande animal que é o universo." (Enn., IV, 4,
40). Plotino também dizia que "a S. é como uma corda esticada, que ao ser tocada numa das pontas transmite o
movimento para a outra ponta.(...) E se a vibração passa de um instrumento para o outro por S., também no universo
há uma harmonia única, que às vezes é feita de contrários, mas outras vezes é feita também de partes semelhantes e
congêneres" (Ibid., IV, 4, 41). A magia insere-se na S. universal e, recorrendo a meios oportunos, aproveita-a para
suas próprias finalidades, realizando assim efeitos que parecem extraordinários e milagrosos. Esse conceito de S., que
pressupõe a animação de todas as coisas, é o fundamento da magia, sendo admitido igualmente por todos os mágicos
da Renascença (cf. CAMPANELLA, De sensu rerum, IV, 1; 14; AGRIPA, De occulta philosophia, I, 1; I, 37; CARDAN, De
varietate rerum, 1,1-2; G. B. ELMONT, Opuscula philosophica, I, 6, etc).
Com o declínio da magia no mundo moderno, o significado de S. limitou-se a indicar a comunhão de emoções entre
os indivíduos humanos. Hume foi o primeiro a insistir na importância da S. no que se refere à formação de todas as
emoções humanas: "Nenhuma qualidade da natureza humana é mais importante em si mesma ou em suas
conseqüências do que a propensão que temos a simpatizarmos uns com os outros, a recebermos a comunicação das
inclinações e dos sentimentos dos outros, por mais diferentes que sejam dos nossos, ou mesmo contrários. (...) A esse
princípio podemos atribuir a grande uniformidade observável nos humores e nos modos de pensar dos membros de
uma mesma nação: é muito mais provável que essa semelhança surja da S. que da influência do solo e do clima, que,
apesar de serem sempre os mesmos, não conseguem manter inalterado por um século inteiro o caráter de uma nação"
(Treatise, 1738, II, 1,11). É de se notar que Hume atribuiu à S. o caráter que mais tarde seria ressaltado por Scheler e
rejeitado por autores mais modernos: o fato de ela não implicar nenhuma identidade de emoções ou fusão emocional
nas pessoas entre as quais ocorre. Adam Smith só fez adotar a idéia diretiva de Hume, ao considerar a S. como base
da vida moral e ao entendê-la como "a faculdade de participar das emoções de outrem, sejam elas quais forem"
(TbeoryofMoralSentiments, 1759, I, 1, 3). Ocasionalmente, recorreu-se à S. no
SIMPLES
902
SINCATEGOREMATICO
campo estético e biológico, chamando-a às vezes de empatia (v.). Bergson devolveu à S. o caráter instintivo e viu
nela a possibilidade de apreender diretamente a natureza da vida: "O instinto é simpatia. Se essa S. pudesse estender
seu objeto e refletir sobre si mesma, dar-nos-ia a chave das operações vitais, da mesma maneira como a inteligência,
desenvolvida e retificada, nos introduz na matéria" (Évol. créatr., 8a ed., 1911, P- 191)- Por outro lado, numa obra
famosa sobre a S., Scheler distinguiu-a dos fenômenos afins mas não idênticos, especialmente daquilo que ele chama
de contágio emotivo ou fusão emotiva. A fusão emotiva consiste em ter a mesma emoção de outrem; p. ex., os pais
que perderam um filho sentem a mesma dor. AS., ao contrário, não supõe a identidade de emoções: participar da dor
alheia por sentir piedade não significa sentir a mesma dor. Por isso, para Scheler a S. era o componente da
compreensão, que é condicionada pelo reconhecimento da alteridade entre as pessoas: "AS., a participação afetiva
autêntica, é uma função e não comporta um estado afetivo na pessoa que o sente. O estado afetivo de B, implícito na
piedade que sinto por ele, para mim continua sendo o estado afetivo de B: não passa para mim, quando o lastimo, e
não produz em mim um estado semelhante ou idêntico" (Sympa-thie, 1923, 1; trad. fr., p., 69).
SIMPLES (gr. àiíkòoc,; lat. Simplex, in. Sim-ple, fr. Simple, ai. Einfach; it. Semplicé). Aquilo que carece de
variedade ou de composição, vale dizer, o que existe de um único modo ou é destituído de partes. Aristóteles
entendeu o S. no primeiro sentido, como falta de variedade: "No sentido primário e fundamental o que é S. é
necessário porque não é possível que o S. seja ora de um modo, ora de outro" (Met., V, S, 1015 b 12). Leibniz usou
essa palavra no segundo sentido, ao definir a mônada como substância S., porque sem partes (Monad., § 1). Foi
graças a Wolff que esse conceito se consolidou com esse sentido (Ont., § 673). Na lógica terminista medieval usavase com o mesmo sentido o termo incomplexum (= não composto), como contrário de complexo>(v.): ou no sentido de
um termo constituído por uma só palavra, ou no sentido do termo de uma proposição, constituído por uma ou mais
palavras (cf. OCKHAM, Expositio áurea, p. 40 b).
Por simplicidade, como característica das hipóteses ou das teorias científicas, entende-se exigência de economia (v.;
v. também TEORIA).
Analogamente, por simplificação entende-se todo procedimento apto a tornar econômica a conceitualização ou a
teorização, ou seja, qualquer procedimento que reduza o número ou a complexidade dos conceitos empregados.
SIMULACRO. V. ÍDOLOS.
SINAL (in. Signal; fr. Signal; ai. Signal; it. Segnalè). 1. O mesmo que signo (v.). Morris entende essa palavra no
sentido de signo natural (Signs, Language and Behavior, I, 8).
2. O mesmo que símbolo (v.). Neste segundo sentido, a palavra é empregada quando se fala, p. ex., de um "S. de
perigo", em que S. é um signo convencional, um símbolo.
SINCATEGOREMATICO (lat. Syncategore-maticum; in. Syncategorematic; fr. Syncaté-gorématique, ai.
Synkategorematisch; it. Sin-categorematicó). Assim são chamadas, na gramática e na lógica medievais, as partes do
discurso que não têm significação em si, mas só a adquirem em contato com as outras partes do discurso; exemplos
são as conjunções, as preposições, os advérbios, etc. Prisciano (II, 15) diz: "Segundo os dialéticos, as partes do
discurso são duas, o nome e o verbo, porque juntas, e só elas, constituem um discurso completo; chamam as outras de
sincategoremata, ou seja, co-significantes". Essa distinção é retomada na lógica de Pedro Hispano (Summ. log., VII,
5, 11), em S. Tomás (In Perihermeneias), em Duns Scot (In Praedicamenta, 12) e em Ockham (Summa log., I, 4),
que assim a expõe: "Alguns termos são categoremáticos, outros sincategoremãticos. (...) Estes últimos não têm
significado completo e preciso, e não significam coisas diferentes das significadas pelos categoremata; assim como
em aritmética o zero nada significa por si mesmo, mas acrescentado a outro algarismo adquire significado". Ockham
aplicou essa distinção ao conceito de infinito e fez a distinção entre infinito catego-remático, que designa a
quantidade do sujeito ao qual se aplica o predicado infinito, e o infinito S., que designa apenas de que maneira o
sujeito se comporta com relação ao predicado. Nesse sentido, infinito é aquilo que podemos tornar tão grande quanto
queiramos, mas que apesar disso continua finito (OCKHAM, In Sent., I. d. 17, q. 8): conceito que se tornaria
fundamental na matemática moderna (v. INFINITO). Essa palavra também se encontra nos lógicos modernos. Stuart
Mill (Logic, I., cap. II, § 2) emprega esse termo para indicar palavras que não podem ser usadas como nome mas
como par-
SBVCATETESE
903
SINGULAR2
tes de nome. Esse termo é usado em sentido análogo por Husserl {Logische Untersuchun-gen, II, § 4).
Na lógica contemporânea, as partes S. da linguagem são chamadas mais freqüentemente de símbolos impróprios
(porquanto não têm significação própria) e divididos em conectivos (v.) e operadores (v.).
SINCATETESE. V. ASSENTIMENTO.
SINCRETISMO (lat. Synkretismus; in. Syn-cretism; fr. Symcrétisme, ai. Synkretismus; it. Sincretismó). Termo
introduzido na terminologia filosófica por Brucker para indicar uma "conciliação mal feita de doutrinas filosóficas
completamente diferentes" {Historia critica philosophiae, MAA, IV, p. 750). Desde então, designa-se freqüentemente
com essa palavra qualquer conciliação que se considere mal feita ou mesmo os pontos de vista que auspiciem uma
conciliação indesejável. Esse termo também foi empregado na história das religiões, para indicar os fenômenos de
sobreposição e fusão de crenças de origens diversas. Neste caso o termo também é usado com disposição polêmica,
para designar sínteses mal feitas, não tendo, portanto, significado preciso.
Mais arbitrário ainda é o significado com que é empregado por alguns escritores franceses, para indicar a visão geral
e confusa de uma situação qualquer (cf. RENAN, Vavenir de Ia science, p. 301).
SINCRÔNICO. V. DIACRÔNICO.
SINDÓXICO (in. Syndoxic; fr. Syndoxique, it. Sindossicó). Termo empregado por J. M. Baldwin para indicar o
conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos que têm as mesmas experiências, mas que nem por
isso são necessariamente válidos ( Thought and Things, 1906, I, p. 146) (v. SINÔMICO).
SEVECOLOGIA(al. Sinechologie). Teoria da continuidade no tempo e no espaço, que, segundo Herbart, é uma
parte da metafísica, ao lado da metodologia, da ontologia e da idololo-gia {Kurze Enciclopãdie der Philosophie, 184,
pp. 297 ss.).
SINEQUISMO (in. Synechism, fr. Synéchis-me, it. Sinechismó). Termo empregado por Peirce para indicar o
princípio de continuidade, que ele julga de primeira importância em todas as formas da realidade (cf. Chance, Love
and Logic, II, 3; trad. it., pp. 44 ss.).
SINERGIA (in. Synergy, fr. Synergie; ai. Synergie, it. Sinergia). Coordenação de diferentes faculdades ou forças, ou
então ação combinada de diferentes fatores. Esse termo é freqüente na linguagem comum e científica, sendo empregado, p. ex., tanto
para indicar a cooperação dos órgãos em um corpo vivo, quanto o fortalecimento recíproco da ação dos
medicamentos. Às vezes, mas raramente, foi empregado como sinônimo de simpatia ou de cooperação inteligente (cf.
RIBOT, Psychologie des sentiments, 1896, p. 229; FOUILLÉE, Morale des idées-forces, 1908, p. 352).
SINERGISMO (in. Synergism; fr. Syner-gisme, ai. Synergismus, it. Sinergismó). Doutrina teológica segundo a qual
a salvação do homem não depende apenas da ação de Deus, mas também da vontade humana, que colabora com ela
para produzi-la. Essa doutrina foi sustentada por Melanchthon contra o monegismo de Lutero, que atribuía a salvação
unicamente à ação de Deus (v. GRAÇA).
SINGULAR1 (in. Singular, fr. Singulier, ai. Einzig, Singular, it. Singolaré). Termo ou uma proposição que denota
um único objeto; em outras palavras, "forma (ou expressão) que contém uma única variável livre" (CHURCH,
Introduction to Mathematical Logic, 1956, § 02; cf. QUINE, Methods of Logic, § 34).
SINGULAR2 (in. Single, fr. Singulier, ai. Ein-zeln; it. Singold). 1. Que é um indivíduo (v.).
2. O indivíduo considerado como valor metafísico, religioso, moral e político supremo. Neste sentido, é o tema
preferido de algumas filosofias modernas e contemporâneas. Kierke-gaard, polemizando com Hegel, afirmava o valor
existencial do S.: "A existência corresponde à realidade singular (o que já foi ensinado por Aristóteles): não é
abarcada pelo conceito e, de qualquer modo, não coincide com ele". {Diário, X2 A, 328). O S. é superior ao
universal, ao contrário do que julgava Hegel. "Nos gêneros animais sempre vale o princípio de que 'o indivíduo é
inferior ao gênero'. O gênero humano, em que cada indivíduo é criado à imagem de Deus, tem essa característica, de
o S. ser superior ao gênero" {Ibid., X2, A, 426). Em Kier-kegaard, essa exaltação do S. é acompanhada pela
desvalorização da categoria "público", em que o S. desaparece; mas o público não é a comunidade na qual, ao
contrário, o S. é reconhecido como tal {Ibid., X2, A, 390). O único (v.), de Stirner, e o super-homem (v.), de
Nietzsche, são concepções análogas à que Kierkegaard indicou como singular. No mesmo sentido, Jaspers insiste no
caráter excepcional do S. {Phil, II, p. 360).
SÍNOLON
904
SINTAXE
SÍNOLON (gr. tò avvokov, lat. Composi-turrí). Com este termo, que significa "uma coisa só", Aristóteles indicou o
composto de matéria e forma, a substância concreta. "A substância é a forma imanente, da qual, juntamente com a
matéria, deriva aquilo que se chama de S. ou substância: p. ex., a concavidade é a forma da qual, juntamente com o
nariz, (matéria) deriva o nariz achatado" (Met., VII, 11, 1037 a 30). A tradução do termo é "composto" ou "concreto".
SINÔMICO (in. Synnomio, fr. Synnomique, it. Sinnomicó). Termo empregado por G. M. Baldwin para indicar o
conjunto de conhecimentos comuns que se formam nos indivíduos, quando esses conhecimentos são considerados
"aptos ou apropriados a todos os processos lógicos como tais" (Thought and Things, 1906, II, p. 270). Sindóxico, ao
contrário, é aquilo que é comum mas sem caráter de normatividade (v. SINDÓXICO).
SINONÍMIA. (in. Synonimy, fr. Synonymie, ai. Synonimie, it. Sinonimid). A relação de S. é importante para os
lógicos porquanto a utilizam para definir a noção de analiticidade(v.). Como o conceito de S. como "identidade de
significado entre duas formas lingüísticas" não é suficiente, os lógicos costumam acrescentar alguma outra condição
para definir a sinonímia. Lewis diz: "Duas expressões são sinônimas se e apenas se: 1 Q têm a mesma intensão e se
essa intensão não é zero nem universal, ou 2e se sua intensão é zero ou universal, mas elas são analiticamente
confrontáveis" {Analysis of Knowledge and Valuation, 1946, p. 86). Por "expressões que têm intensão zero ou
universal", Lewis entende expressões como "ser", "entidade", "coisa", "qualquer coisa" ilbid., p. 87). Carnap, por sua
vez, observou: "Se pedimos a tradução exata de dada asserção de uma língua para outra, p. ex. de uma hipótese
científica ou de um testemunho em tribunal, costumamos esperar mais que a concordância das intensões dos
enunciados. (...) Mesmo se restringirmos nossa atenção a significados designativos (cognitivos), a equivalência lógica
dos enunciados não será suficiente; será preciso que pelo menos alguns dos desig-nadores constitutivos sejam
logicamente equivalentes ou, em outras palavras, que as estruturas intensionais sejam semelhantes". A S. seria
expressa, pois, por um "isomor-fismo intensional", cujas regras Carnap expõe {Meaning and Necessity, 1957, §§ 14,
15).
Contudo, as exigências expressas por Lewis e Carnap para a definição de S. continuam no campo da intensionalidade
das formas lingüísticas. É o que acontece também com a definição de Church (Introduction to Mathema-tical Logic, §
01). Quine demonstrou, nesse mesmo plano, como é difícil utilizar a S. para definir a analiticidade, pois "dizer que
'solteiro' e 'homem não casado' são sinônimos do ponto de vista cognitivo, significa dizer que é analítica a asserção
'todos os solteiros e só eles são homens não casados'". Portanto, segundo Quine, a S. pode ser definida como a
possibilidade de substituição recíproca de dois termos, salva analyticitate, vale dizer, a possibilidade de, numa
expressão, substituir dois termos um pelo outro sem que a expressão perca o caráter analítico (From a Logical Point
of View, 1953, II, 3).
SINÔNIMO (in. Synonym-, fr. Synonyme, ai. Synonym-, it. Sinônimo). Segundo a definição aristotélica (Cat., 1 a 6;
3b 7), diz-se que são S. as coisas que têm em comum o nome e a definição da essência, assim como o homem e o boi
são chamados (e são) ambos animais. No uso moderno, porém, são chamados de S. os vocábulos (ou enunciados)
diferentes na forma da expressão, mas de igual conteúdo semântico. Na lógica contemporânea são chamados de S. os
enunciados que têm forma diferente mas o mesmo sentido (designando a mesma proposição): no entanto nem sempre
é fácil distinguir sinonímia (semântica) de equivalência (sintática).
SINOPSE (gr. aúvounç; in. Synopsis; fr. Synopsis; ai. Synopsis; it. Sinossi). Visão de conjunto. Platão emprega esse
termo para indicar o primeiro momento do procedimento dialético, que consiste em reunir uma multiplicidade numa
única idéia iRep., 537 e; Fed., 265 d). Esse termo também foi empregado por Kant na primeira edição da Crítica da
Razão Pura, na expressão "a sinopse a priori da multiplicidade por meio do sentido" \Crít. R. Pura, § 14, ao final),
que seria a apreensão da multiplicidade sensível nas formas da intuição (espaço e tempo), que ele distingue da síntese
imaginativa e da síntese conceituai.
SINTAXE (gr. ■cruvTctÇiç; lat. Syntaxis; in. Syntax, fr. Syntaxe, ai. Syntax, it. Sintassi). 1. Qualquer organização,
combinação ou sis-tematizaçâo de partes. O estóico Crisipo define como "S. do todo" o destino que governa a ordem
do mundo {Stoicorum fragmenta, II, p. 293).
SEVTEUCO
905
SÍNTESE
2. Uma das dimensões do procedimento semiológico (v. SEMIOSE), que é a possibilidade de combinar signos com
base em regras deter-mináveis. Neste sentido pode-se falar, p. ex., de "S. dos sons" ou "das cores", etc.
3. A ciência que estuda as formas gramaticais ou lógicas da linguagem, entendendo-se por formas as suas
possibilidades de combinação. Mais particularmente, Carnap definiu a S. lógica das linguagens como "a teoria formal
das formas lingüísticas, a declaração sistemática das regras formais que a regem, as linguagens e as conseqüências
decorrentes dessas regras". Carnap acrescenta que "uma teoria, uma regra, uma definição, etc. deve ser chamada de
formal quando não faz qualquer referência ao significado dos símbolos (p. ex., das palavras) ou ao sentido das
expressões (p. ex., dos enunciados), mas unicamente às espécies e à ordem dos símbolos com que as expressões são
construídas" (Logische Syntax der Sprache, 1934, § 1). Carnap identificou com a S. toda a lógica ou metodologia das
ciências {Ibid., § 81), com base na consideração de que "para determinar se um enunciado é ou não conseqüência de
outro, não é necessária qualquer referência ao significado dos enunciados"; portanto, "uma lógica especial do
significado é supérflua; uma 'lógica não formal' é uma contradição nos termos. A lógica é S." {Ibid., § 71). Mais
tarde, o próprio Carnap admitiu a divisão da análise da linguagem ou semiótica em pragmática, semântica e S.,
considerando o ponto de vista sintático como o procedimento que abstrai do fator semântico (Foundations of Logic
and Mathematics, 1939, § 8).
SINTEIICO (in. Syntelic; fr. Syntélique, it. Sintelicó). Termo empregado por G. M. Bald-win para designar os
elementos práticos comuns a vários indivíduos, mas nem por isso necessariamente válidos: elementos que
correspondem àquilo que é chamado de sin-dóxico no domínio do conhecimento ( Thought and Things, 1906, III 7980).
SINTÉRESE (gr. <xuvnípr|cn.ç; lat. Synteresis; in. Synteresis; fr. Syntérèse, ai. Synteresis; it. Sinteresi). Diretriz da
consciência moral do homem ou essa mesma consciência. Esse termo significa "conservação" e foi empregado pela
primeira vez para indicar a conservação do critério do bem e do mal por parte de Adão, depois da expulsão do
Paraíso. Nesse sentido, foi São Gerônimo o primeiro a usar a palavra, designando com ela "a centelha de consciência
que não se extingue no peito de Adão depois de sua expulsão do Paraíso" {Comm. inEzech., em P. L., 25, col. 22).
Reaparece em outros padres da igreja (Basílio, Gregório, o Grande) e nos Vittorini. Mas foi só em Bonaventura e em
Alberto Magno que se transformou em faculdade natural de juízo moral, que guia o homem para o bem e cria nele o
remorso pelo mal. São Boaventura considera a S. como a iluminação que Deus concede ao intelecto humano no
domínio prático, correspondendo à iluminação que, no domínio teórico, o leva para a ciência. {In Sent., II, d. 39 a. 2,
q. 1). Portanto a S. é "o ápice da mente", o último grau da ascensão a Deus, o que precede imediatamente o arrebatamento final {Itinerarium mentis in Deum, I, 6). Definição análoga aparece em Alberto Magno {S. Th., II, 16, q. 99).
S. Tomás modificou seu conceito, transformando-o de noção mística em noção moral, vale dizer, deixando de
considerá-lo como luz proveniente do alto, e considerando-o como hábito moral. Diz: "A S. não é um poder especial
superior à razão ou à natureza, mas é o hábito natural dos princípios práticos, assim como o intelecto é o hábito dos
princípios especulativos" {S. Th., I, q. 39, a. 12; De ver., q. 16, a. 1). Assim como o intelecto apreende os princípios
últimos que servem de fundamento à ciência, a S. apreende os princípios que servem de fundamento à atividade
prática. Esse conceito não foi alterado pelos escritores escolásticos posteriores (cf. p. ex., DUNS SCOT, Op. Ox., II, d.
39, q. 2, a. 4). Essa noção reaparece, mas raramente, em escritores posteriores: foi utilizada por Nicolau de Cusa, em
seu significado místico {De visione Dei, ed. Bohnenstadt, pp. 150 ss.); foi empregada com o mesmo significado por
B. Gracián: "É o trono da razão, a base da prudência, porque graças a ela custa pouco vencer. É presente do céu, o
mais cobiçado. (...) Consiste na propensão inata a tudo o que mais se conforma à razão, sempre em conjunto com o
que há de mais certo" {Oráculo manual, 1647, § 96).
SÍNTESE (gr. aúvBeoiç; lat. Synthesis; in. Synthesis; fr. Synthèse, ai. Synthese, it. Sintesi). Este termo, além do
significado comum de unificação, organização ou composição, tem os seguintes significados específicos: Ia método
cognitivo oposto a análise; 2a atividade intelectual; 3Q unidade dialética dos opostos; 42 unificação dos resultados das
ciências na filosofia.
ls No primeiro significado, como um dos métodos fundamentais do conhecimento (em
SÍNTESE
906
SBVTESE
oposição a análise), a síntese pode ser considerada como o método que vai do simples ao composto, dos elementos às
suas combinações, nos objetos cuja natureza se pretende explicar. A oposição dos dois métodos foi expressa pela
primeira vez por Descartes (Rép. aux II objec-tíons; v. ANÁLISE); Leibniz assim a expressava: "Chega-se muitas
vezes a belas verdades por meio da S., indo do simples ao composto, mas quando é preciso encontrar o meio de fazer
aquilo que se propõe, a S. normalmente não basta (...) e cabe à análise dar-nos o fio condutor, quando isso é possível,
porque há casos em que a natureza do problema exige que se proceda tateando, e nem sempre é possível cortar
caminho" (Nouv. ess., IV. 2, 7). Segundo Kant, o método sintético é "progressivo", ao passo que o analítico é
"regressivo", vai do objeto às condições que o possibilitam {Prol., § 5, nota). Segundo Kant, o procedimento da
filosofia é analítico, enquanto o da matemática é sintético, mas neste caso os dois termos não têm nenhuma relação
com a classificação dos juízos em analíticos e sintéticos. Em geral, assim como o procedimento analítico é
caracterizado pela presença de dados (inerentes ao objeto ou à situação a ser resolvida) que o guiam e controlam, o
procedimento sintético pode ser caracterizado pela ausência de tais dados e pela pretensão, inerente a ele, de produzir
por si mesmo os elementos de suas construções (v. FILOSOFIA). 2- No segundo significado, o termo designa a união
do sujeito e do predicado na proposição, portanto o ato ou a atividade intelectual que realiza tal união. Foi neste
sentido que Aristóteles utilizou o termo, ao dizer que "onde está o verdadeiro e o falso está também certa S. de
pensamento semelhante à S. que há nas coisas" (De an., III, 6, 430 a 27), e "o que cria essa unidade é o intelecto"
(Ibid., 430b 5). Mas foi Kant quem mais utilizou o conceito de S., reduzindo a ela todas as espécies de atividade
intelectual. Definiu a S. em geral como "o ato de unir diferentes representações e de compreender essa unidade num
único conhecimento" (Crít. R. Pura, § 10), e distinguiu numerosas espécies de S. com base nos elementos que nela se
encontram. Em primeiro lugar, fez a distinção entre S.pura, na qual a multiplicidade não é dada empiricamente, mas
#príon(como a do espaço e do tempo), e a S. empírica, em que a multiplicidade é dada empiricamente. A S. pura é "o
ato originário do conhecimento, o primeiro fato ao qual devemos dar atenção se
quisermos descobrir a origem primeira de nosso conhecimento" (Ibid). Portanto, a S. pura precede qualquer análise,
pois só se pode analisar o que já se deu unido num ato cog-noscitivo. A S. pura, que é possível a priori, pode ser
distinguida da S. figurada (Synthesis speciosd) e da síntese intelectual (Synthesis in-tellectualis): ambas sào
transcendentais porque constituem a possibilidade de qualquer conhecimento, mas enquanto a segunda unifica uma
multiplicidade puramente pensada, a figurada é uma S. da multiplicidade da intuição sensível, ou melhor, é uma S. da
imaginação entendida como "faculdade de determinar a priori a sensibilidade" (lbid., % 24). É nessa S.
transcendental da imaginação que se baseia o cogito, ou apercepção originária (v.). Mas, como todo conhecimento é
síntese e o conhecimento efetivo, segundo Kant, é a experiência, Kant chama a experiência de "síntese, segundo
conceitos, do objeto dos fenômenos em geral" (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. 11, seç. II). Na primeira edição,
Kant falara em três espécies de S.: Ia S. da apreensão na. intuição; 2a S. da reprodução na imaginação; 3a S. da
recognição no conceito (Crít. R. Pura, Ia ed., An. transe, I Livro, cap. 2, seç. 2). Mas tanto na primeira quanto na
segunda edição Kant reduziu qualquer espécie ou grau de atividade cognitiva a S. Esse foi um dos aspectos mais
evidenciados e discutidos de sua obra. Enquanto a noção de S. mudava de natureza no idealismo (v. mais adiante), era
retomada e adaptada por outros filósofos de maneiras diferentes. Galluppi inverteu o ponto de vista kantiano, pondo a
análise antes da síntese. "AS. é a faculdade de reunir as percepções separadas pela análise. A análise é, pois, uma
condição essencial para a síntese" (Saggio fil. sulla critica delia conos-cenza, 1831, II, § 146). Além disso, fez a
distinção entre a S. ideal objetiva, que consiste em reconhecer as relações objetivas que existem entre as coisas, S.
imaginativa civil, que consiste em reunir numa representação complexa, que não corresponde a nenhum objeto,
diferentes representações, cada uma das quais tem um objeto, e S. imaginativa poética, que é uma espécie da
precedente (Ibid., III, §§ 147-149). Por sua vez, Rosmini chamava S. primitiva a sua "percepção intelectiva" (Nuovo
saggio, § 46; § 528, etc). Em geral, o conceito de S. continuou expressando em filosofia a atividade ordenadora,
organizadora e sistematizadora do intelecto. Os neokantianos fizeram amplo
SÍNTESE
907
SINTETICIDADE
uso dessa noção. Para A. Riehl, em especial, a atividade sintética é a função fundamental da consciência e o a priori
de todo o conhecimento (Der philosophische Kriticismus, II, 2, 188 7, p. 68). Outros neokantianos, como Cohen,
preferiram o conceito de origem, e não de S. (Logik der reinem Erkenntnis, 1902, p. 36). Wundt introduziu esse
conceito em psicologia e falou do "princípio da S. criativa", segundo o qual "não só as partes que compõem uma S.
aperceptiva adquirem, ao lado do significado que tinham isoladamente, um novo significado, devido à sua conexão na
representação total, como também essa representação é um novo conteúdo psíquico, que é possibilitado pelas partes
componentes, mas não consiste nelas" (Grundriss der Psychologie, 1896, p. 394). Por outro lado, a filosofia
fenomenológica evidenciou a função da S. na "constituição das objetividades de consciência". Husserl acredita que
todo objeto de conhecimento em geral é uma "unidade sintética", uma S. de consciência (Ideen, I, § 86). Faz a
distinção entre S. continuativas, do tipo, p. ex., que constitui a espacialidade, e as S. articuladas, que são os modos
particulares, em que atos separados uns dos outros se conectam num único ato sintético de grau superior. São S.
articuladas, p. ex., os atos de preferência ou as emoções simpáticas; além disso, há as S. coligantes, disjungentes (que
visam a isto ou àquilo) e explicitantes, que determinam as formas da lógica e da ontologia formal (Ideen, I, § 118).
32 A noção de S. como unidade dos contrários nasceu com o conceito correlato de dialética (v.) e foi exposta pela
primeira vez por Fichte, que diz: "O ato pelo qual se busca, nas comparações, a característica graças à qual as coisas
comparadas são opostas entre si chama-se procedimento antitético (chamado ordinariamente analítico). (...) O
procedimento sintético, ao contrário, consiste em buscar nos opostos a característica graças à qual eles são idênticos"
(Wissenschaftslehre, 1794, § 3-D, 3). A lei dessa identidade é que "nenhuma antítese é possível sem uma S. porque a
antítese consiste precisamente em buscar nos iguais a característica oposta, mas os iguais não seriam iguais se antes
não tivessem sido postos como iguais por um ato sintético" (Ibid., § 3, D, 3). Schelling falava de um "processo que
vai da tese à antítese e depois à síntese", em virtude do qual o eu afirma o objeto, opõe-se a ele e finalmente volta a compreendê-lo em si mesmo (System des transzendentalen Idealismus, 1800, III, cap. I; trad. it., pp.
58 ss.). Hegel, no entanto, preferiu os termos "identidade" ou "unidade", mesmo lamentando que a palavra unidade
indicasse, bem mais que "identidade" uma "reflexão subjetiva". A unidade ou a identidade que fecha uma tríade
dialética é uma conexão objetiva; segundo Hegel, seria melhor chamá-la de "inseparabilidade" se, desse nome, não
fosse excluída a natureza positiva da S. (Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, e, nota 2; trad. it., p. 85). Na
linguagem filosófica francesa e italiana, a palavra S. foi preferida a "identidade" ou "unidade" para indicar o
momento resolutivo do procedimento dialético, que é realmente o momento produtivo e criativo. O. Hamelin falou
em método sintético, que consistiria em "mostrar a conexão necessária entre noções opostas"; sua mola seria a
correlação, graças à qual os opostos remetem um ao outro e colaboram entre si (Essai sur les éléments principaux de
Ia représentation, 1907, p. 20). Os idealistas italianos (Croce e Gentile) empregaram a expressão S. apriorino sentido
de atividade produtiva ou criadora. Com ela Gentile entendeu auto-síntese, que seria "posicionar-se na sua própria
identidade e diferença", que é a autocriação (Sistema di lógica, II, 3a ed., 1942, p. 83, cf. I, 2a ed., 1922, p. 27). Croce
falou da S. a priori como atividade criadora do espírito: "A S. a priori pertence a todas as formas do Espírito porque
o Espírito, considerado genericamente, nada mais é que S. a priori; e esta se explicita na atividade estética e na
prática, bem como na atividade lógica" (Lógica, 4-ed., 1920, p. 141). Para ele, a S. a priori era a identidade entre
filosofia e história, pois ela "contém em si a historidade que seu descobridor [Kant] omitia ou desconhecia" (Ibid., p.
369).
4a Finalmente, entendeu-se por S. a unificação dos resultados finais das ciências específicas no seio da filosofia
primeira, segundo o conceito positivista de filosofia (v.). Tal S. foi chamada de subjetiva por Comte, que a
considerava imprescindível em vista das necessidades naturais do homem (S. subjetiva ou sistema universal das
concepções próprias do estado normal da humanidade, 1856, I). Pelo mesmo motivo, Spencer chamou o conjunto de
sua obra de "Sistema de filosofia sintética"; o primeiro volume é constituído pelos Primeiros princípios (1862).
SINTETICIDADE (in. Syntheticity). Validade das proposições que depende dos fatos.
SINTETISMO
908
SISTEMA
Pelo menos este é o significado que hoje se costuma atribuir ao adjetivo sintético quando se refere a proposições ou
enunciados. Kant, a quem se deve a introdução dos termos analítico e sintético, empregou-os para distinguir os juízos
explicativos e os juízos extensivos. Os primeiros nada acrescentam, por meio do predicado, ao conceito do sujeito,
mas limitam-se a dividir por meio da análise o conceito em seus conceitos parciais, que nele já eram pensados, ainda
que confusamente; os segundos, pelo contrário, acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não estava
contido nele nem podia ser dele deduzido por análise" (Crít. R. Pura, Intr., § IV). Mas, segundo Kant, os juízos
sintéticos são não apenas os que se referem a coisas de fato, mas também os da matemática e da física pura,
porquanto baseados na intuição a priori do espaço e do tempo e nas categorias, sendo por isso chamados de "juízos
sintéticos a priori". Na filosofia contemporânea, porém, a S. como caráter das expressões foi entendida no sentido
das "proposições de fato" de Hume ou das "verdades de fato" de Leibniz (v. EXPERIÊNCIA; FATO), OU seja, como
proposições que se referem a situações ou estados de coisas e que podem ser verdadeiras ou falsas em relação a elas.
Carnap diz: "Um enunciado sintético é verdadeiro às vezes — quando existem certos fatos — e às vezes falso;
portanto, ele diz algo sobre quais os fatos que existem. Os sintéticos são os enunciados autênticos acerca da
realidade" (Logische Syntax der Sprache, § 14). Todavia, os lógicos muitas vezes preferem definir negativamente os
enunciados sintéticos, como enunciados que não são analíticos nem contraditórios: é o que fazem, p. ex., Lewis
(Analysis of Knowledge and Valua-tion, 1946, p. 35) e Reichenbach (Theory of Probability, 1949, p. 20). Assim
como as proposições analíticas (v. ANALITICIDADE) são chamadas de "verdades necessárias" porque sua negação é
impossível, também as proposições sintéticas são chamadas freqüentemente de contingentes, no sentido de não serem
nem necessárias nem impossíveis (cf. CARNAP, Meaning and Necessity, § 39).
SINTETISMO (ai. Synthetismus). Esse nome, que se baseia na unidade de ser e saber, foi dado à sua filosofia por
um certo "Senhor Krug", que desafiou Hegel a deduzir nem que fosse a pena com que escrevia, ao que Hegel
respondeu que isso não seria impossível, quando a ciência tivesse progredido suficientemente, e nada houvesse de melhor a fazer (cf. W. T. KRUG, Fundamentalphilosophie, 1818; HEGEL, Ene, § 250, nota).
Rosmini chamou de S. a união do princípio senciente com o corpo, sentido no ser animado, e em geral a união de
elementos diferentes, um dos quais espiritual e o outro material, em todos os aspectos da realidade. Neste sentido, ele
disse que o S. "é lei e chave da natureza de todas as coisas do universo" (.Antropologia, § 325; Psicologia, I, §§ 34
ss.).
SINTOMA. V. INCONSCIENTE; PSICANÁLISE.
SISTEMA (gr. aúcrrnLia; in. System, fr. Sys-tème, ai. System; it. Sistema). 1. Uma totalidade dedutiva de discurso.
Essa palavra, desconhecida neste sentido no período clássico, foi empregada por Sexto Empírico para indicar o
conjunto formado por premissas e conclusão ou o conjunto de premissas (Pirr. hyp., II, 173), e passou a ser usada em
filosofia para indicar principalmente um discurso organizado dedutivamente, ou seja, um discurso que constitui um
todo cujas partes derivam umas das outras. Leibniz chamava de S. o repertório de conhecimentos que não se limitasse
a ser um simples inventário, mas que contivesse suas razões ou provas e descrevesse o ideal sistemático da seguinte
maneira: "A ordem científica perfeita é aquela em que as proposições são situadas segundo suas demonstrações mais
simples e de maneira que nasçam umas das outras" (Me-thode de Ia certitude, Op., ed. Erdmann, pp. 174-75). Wolff,
por sua vez, dizia: "Chama-se de S. um conjunto de verdades ligadas entre si e com seus princípios" (Log., § 889). A
noção de S. moldava-se assim na de procedimento matemático. Kant subordinou-a a outra condição: a unidade do
princípio, que fundamenta o sistema, pois ele entendeu por S. "a unidade de múltiplos conhecimentos, reunidos sob
uma única idéia"; afirmou que o S. é um todo organizado finalisticamente, sendo portanto uma articulação
(articulatió), e não um amontoado (coacervatió); pode crescer de dentro para fora (per intussusceptionem), mas não
de fora para dentro (per appositionem), sendo, pois, semelhante a um corpo animal, cujo crescimento não acrescenta
nenhum membro, mas, sem alterar a proporção do conjunto, torna cada um dos membros mais forte e mais apto a seu
objetivo (Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. III). Com base nisso, Kant fala de "unidade sistemática do
conhecimento, da qual as idéias da razão pura tentam aproximar-se" (Ibid.,
SISTEMA
909
SISTEMA
Dialética, cap. II, seç. I). A unidade do S., ou seja, sua possibilidade de derivar de um único princípio, é a
característica que determinou o sucesso dessa noção na literatura filosófica romântica. Constitui o ideal da teoria da
ciência de Fichte: "Se não deve haver somente um ou vários fragmentos de S., nem mesmo vários S., mas um S.
único e perfeito do espírito humano, então deverá haver um princípio fundamental absolutamente primeiro e
supremo. E embora, a partir dele, nosso saber se expanda por si em tantas séries, das quais procedem outras séries e
assim por diante, todas essas séries devem unir-se num só elo, que não está preso a nada, mas se mantém e a todo o
sistema por sua própria força" (Über den Begriff der Wissenschaftslehre, 1794, § 2; trad. it., p. 19). Na filosofia
romântica é lugar-comum considerar o S. como forma da ciência, que supõe um princípio único e absoluto. A origem
disso é o ideal matemático, no qual Leibniz, Wolff e o próprio Kant se haviam inspirado; mas esse ideal acaba por
voltar-se contra a própria matemática e sendo reivindicado exclusivamente para a filosofia. Shelling dizia: "Admitese em geral que à filosofia convém uma forma especificamente sua, que se chama de sistemática. Pressupor tal forma
não deduzida cabe a outras ciências, que já pressupõem a ciência da ciência, mas não a esta, que se propõe como
objeto a possibilidade de semelhante ciência" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, I, cap. I; trad. it., p.
27). Hegel só fez sancionar o mesmo ponto de vista: "A ciência do Absoluto é essencialmente S., porque o
verdadeiro, como concreto, é tal apenas na medida em que se desenvolve em si, se reúne e mantém em unidade, vale
dizer, como totalidade, pois só pela diferenciação e pela determinação de suas diferenças são possíveis a necessidade
destas e a liberdade do todo" (Ene, § 14). Hegel acrescenta que "um filosofar sem sistema não pode ser nada
científico" porque expressa um modo de sentir subjetivo; e em oposição às doutrinas românticas irracionalistas ou
fideístas ele impõe a exigência sistemática. Essa mesma exigência manteve-se e foi valorizada nas filosofias
idealistas. Croce dizia: "Pensar determinado conceito puro significa pensá-lo em sua relação de unidade e distinção
com os outros todos; assim, o que se pensa nunca é realmente um conceito único, mas um S. de conceitos, o
Conceito" (Lógica, 4a ed., 1920, p. 172).
O ideal de S. como organismo dedutivo baseado num único princípio continuou sendo patrimônio da filosofia, que o
cultivou mesmo quando — a exemplo de Kant — declarou que esse ideal era inatingível pelo conhecimento humano.
Contudo, esse termo foi e é empregado também sem relação com este significado, para indicar qualquer organismo
dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único como fundamento. É o caso dos S. de que hoje se fala em
matemática e lógica. Os S. hipotéti-co-dedutivos, abstratos, axiomáticos, etc. não são S. por terem um princípio
único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, devem ser independentes entre si, não devem poder ser
deduzidos um do outro (v. AXIOMA, AMOMATIZAÇÃO). São chamados de S. unicamente por seu caráter dedutivo, e no
mesmo sentido fala-se de S. numérico e, às vezes, de "S. de axiomas" para indicar um simples conjunto não
contraditório de proposições primitivas (cf. M. R. COHEN E. NAGEL, "The Nature of a Logical or Mathematical
System", em Readings in the Philosophy of Science, 1953, pp. 129 ss.). Isso significa que o uso dessa palavra perdeu
o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo.
2. Qualquer totalidade ou todo organizado. Neste sentido, fala-se em "S. solar", "S. nervoso", etc, e também de
"classificação sistemática" ou, mais simplesmente, de S. em lugar de classificação, como fez Lineu, quando quis
insistir no caráter ordenado e completo de sua classificação (Systema naturae, 1735).
Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o S. como conjunto contínuo de partes que têm inter-relações
diversas e a estrutura (v.) ou a organização que os componentes dele podem assumir em determinado momento (W.
BUCKLEY, Sociology and Modem System Theory, 1967, p. 5).
3. Qualquer teoria científica ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter escassamente empírico.
No séc. XVIII falava-se de "S. do mundo" para indicar as teorias cosmológicas (cf., p. ex., D'ALEMBERT, (Euvres, ed.
Condorcet, pp. 165 ss.). Leibniz chamava de S. suas teorias sobre a relação entre a alma e o corpo ou entre as
diferentes substâncias (Système nouveau de Ia nature et de Ia com-munication dessubstances, 1695). Baumgarten
chamava de S. psicológicos as "opiniões que parecem aptas a explicar a relação entre alma e corpo" (Mel, § 76l); no
mesmo sentido, mas de
SISTEMA LOGÍSTICO
910
SITUAÇÃO
maneira depreciativa, os iluministas falavam de S. e de espírito sistemático. Diderot dizia: "Chamo de espírito
sistemático o costume de traçar planos e criar sistemas do universo, para depois pretender adaptar-lhes os fenômenos,
pela razão ou pela força" (Giuvres, p. 291). D'Alembert falava igualmente de S. como "sonhos dos filósofos" (cf. p.
ex., CEuvres, ed. Condorcet, p. 234). Hegel queixava-se desse uso dos filósofos franceses, para os quais, segundo ele,
S. coincidia com unilateralidade ou o dogmatismo (Geschichte der Pbilosopbie, I, cap. III, seç. I, B, 4; trad. it., II, p.
293; I, cap. III, seç. III, E; trad. it., III, 1, p. 29). Esse uso manteve-se na França mesmo no séc. XIX (cf. E. BERNARD,
Introduction à Ia medicine expéri-mentale, 1865, I, II, § 6).
SISTEMA LOGÍSTICO (in. Logistic system, fr. Système logistique, ai. Logistiches System; it. Sistema logístico).
Cálculo lógico ao qual não se dá nenhuma interpretação. Para constituir um S. logístico são suficientes:
l2 um vocabulário de símbolos primitivos;
2° as regras de formação que determinam quais as combinações de símbolos primitivos são permitidas e quais não
são;
3° regras de inferência, ou seja, de transformação das expressões compostas que dão origem a outras;
4S algumas proposições primitivas ou axio-mas.
Distingue-se do S. logístico a linguagem formal, pois a esta última é dada certa interpretação. Para passar do S.
logístico à linguagem formal são, pois, necessárias algumas regras semânticas que atribuam um significado às
fórmulas do sistema. Pode-se dizer também que a diferença entre S. logístico e linguagem formal é que o primeiro
tem somente regras sintáticas e a segunda tem também regras semânticas {d., sobre isso, A. CHURCH, "The Need for
Abstract Entities in Semantic Analysis", em Proceedings ofthe American Academy ofArts and Sciences, 1951, pp. 100
ss.; Introduction to Mathematical Logic, 1956) (v. CÁLCULO, FORMALIZAÇÃO).
SISTEMÁTICA (in. Systematics; fr. Systéma-tique, ai. Systematik, it. Sistemática). Técnica, caminho ou meio de
realizar o sistema. Essa noção deriva do princípio kantiano de que o sistema é o ideal regulador da investigação
filosófica, e não sua realidade. "No entanto — diz Kant — o método pode sempre ser sistemático. Pois nossa razão
(subjetivamente) é por si mesma um sistema, mas em seu uso puro, por simples conceitos, é apenas um sistema de investigação, segundo
princípios, da unidade à qual a experiência só pode fornecer a matéria" (Crít. R. Pura, Doutr. do mét, cap. I, seç. I).
Essa noção firmou-se principalmente no criticismo alemão. Natorp falava de "S. filosófica" no sentido de
investigação destinada a conferir ao saber filosófico a unidade própria do sistema {Philosophische Systematik, § 1).
SISTEMÁTICO (in. Systematic; fr. Systéma-tique, ai. Systematisch; it. Sistemático). 1. Que constitui sistema ou
pertence a um sistema, em qualquer dos sentidos dessa palavra. É neste sentido que se diz "saber S." ou "erro S."
2. Que tende para o sistema, mas não é um sistema: com referência a sistemática. Neste sentido, N. Hartmann
distinguia na história da filosofia o pensamento-sistema, voltado para a construção do sistema, e o pen-samentoproblema, que se mantém na indagação aberta (Systematische Pbilosopbie, 1931, § D- Além disso, segundo ele, "já
ficou para tráso tempo das visões S., e a filosofia S. acabou no terreno despretensioso mas sólido da indagação
problemática" {Derphilosophische Gedanke und seine Geschichte, III, 4; cf. Zur Grundlegung der Ontologie-, 1935,
p. 31).
SITUAÇÃO (in. Situation; fr. Situation-, ai. Situation; it. Situazione). A relação do homem com o mundo, na medida
em que limita, condiciona e, ao mesmo tempo, fundamenta e determina as possibilidades humanas como tais. Esse
termo foi introduzido por Jaspers, que assim o explicava: "A situação externa, apesar de tão mutável e diferente,
segundo o homem ao qual se aplica, tem a seguinte característica típica: para todos tem duas faces, incita e obsta,
inevitavelmente limita e destrói, é ambígua e insegura" (Psychologie der Weltans-chauungen, 1925, cap. III, § 2; trad.
it., p. 268). Jaspers falava também de situações-limite que possuem em grau elevado as características próprias de
qualquer S. do homem no mundo. Tais são as situações imutáveis, definitivas, incompreensíveis, nas quais o homem
se acha como se estivesse diante de um muro contra o qual se choca sem esperança. São elas: estar sempre em
determinada situação; não poder viver sem luta e sem dor; a necessidade de assumir culpas; ter a morte como destino
{Phil, II, p. 209). Nessas situações Jaspers via a cifra (v.) (revelação negativa) da existência.
SITVERUM
911
SOBERBA
Heidegger notou que esse termo também tem significado espacial, mas designa sobretudo a determinação pela qual a
existência, como ser no mundo, decide acerca de seu próprio lugar (Sein und Zeit, § 60). A existência impessoal
acha-se diante de "S. gerais" e perde-se nas oportunidades mais próximas. A conclamação da consciência leva o
homem à presença de sua situação própria e à exigência de uma decisão autêntica (Ibid., § 60). Em sentido
semelhante se disse.- "A necessidade da relação entre a finitude do ente e a determinação constitutiva do mundo e do
outro ente é a S. existencial do ente. (...) O constituir-se do ente na S. que o individualiza na sua finitude é o acontecer
do ente, sua historicidade fundamental (ABBAGNANO, Estrutura da existência, 1939, §70). E Sartredisse: "Se oparasi[a consciência do homem] nada mais é que sua situação, decorre que o ser em S. define a realidade humana, dando
conta ao mesmo tempo de seu estar aí e de seu estar além. Com efeito, a realidade humana é o ser que está sempre
além de seu ser-aí. E a S. é a totalidade organizada do ser-aí, interpretado e vivido por e para o ser, além deste mesmo
ser" (Vêtre et le néant, 1943, p. 634).
Em sentido psicológico, mais precisamente gestáltico (v. PSICOLOGIA), esse termo foi utilizado por Dewey, que
identificou a S. com o campo {Logic, 1939, I, cap. IV; trad. it., pp. 111 ss.). Mas o próprio Dewey insistiu no caráter
objetivo da S. (Ibid., cap. IV, § 1) trad. it., 159 ss.).
SIT VERUM. Uma das obrigações (v.) da lógica terminista medieval. Consiste em responder a uma proposição
como quem sabe que ela é falsa, ou como quem sabe que ela é verdadeira, ou como quem dela duvida (cf. OCKHAM,
Summa log, III, III, 44).
SOBERANIA (in. Sovereignty, fr. Souverai-neté, ai. Souverãnitát; it. Sovranitã). Poder preponderante ou supremo
do Estado, considerado pela primeira vez como caráter fundamental do Estado por Jean Bodin, em Six livres de Ia
republique(1516). Segundo Bodin, a S. consiste negativamente em estar liberado ou dispensado das leis e dos usos do
Estado; positivamente, consiste no poder de abolir ou criar leis. O único limite da S. é a lei natural e divina (Six livres
de Ia republique, 9a ed., 1576,1, pp. 131-32). O termo e o conceito foram aceitos por Hegel: "As duas determinações,
de os negócios e os poderes particulares do Estado não serem
autônomos e estáveis nem em si mesmos, nem na vontade pessoal dos indivíduos, mas de terem raízes profundas na
unidade do Estado — que outra coisa não é senão a identidade deles — constituem a S. do Estado" (Fil. do dir., §
278). Hegel esclarece esta noção dizendo.- "O idealismo que constitui a S. é a mesma determinação segundo a qual,
no organismo animal, as chamadas partes deste não são partes, mas membros, momentos orgânicos cujo isolamento
ou existência por si é enfermidade" (Ibid., § 278). Essas determinações de Hegel são dirigidas contra o princípio
afirmado pela Revolução Francesa, de que a S. está no povo. Rous-seau qualificara de soberano o corpo político que
nasce com o contrato social (Contraí social, I, 7) e assim definira o seu poder: "O corpo político ou soberano, cujo ser
deriva tão-somente da santidade do contrato, nunca pode obrigar-se, nem mesmo em relação a outros, a nada que
derrogue aquele ato primitivo, que seria a alienação de alguma parte de si mesmo ou a sua submissão a outro
soberano. Violar o ato graças ao qual existe significaria anular-se; e o que nada é nada produz " (Ibid., I, 7). Portanto,
o princípio da S. é ser o poder mais alto em certo território: isso não significa poder absoluto ou arbitrário. Para a
moderna teoria do direito, a S. pertence à ordenação jurídica (v. ESTADO), sendo entendida como a característica em
virtude da qual "acima da ordenação jurídi-co-estatal não existe outra" (H. KELSEN, General Theory ofLaw and State,
1945; trad. it., p. 390). Segundo Kelsen, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito internacional, o Estado
pode ser considerado soberano apenas em sentido relativo-, se admitirmos a hipótese da prioridade do direito estatal,
pode ser chamado de soberano no sentido absoluto e originário da palavra. A escolha entre as duas hipóteses é
arbitrária (Ibid., p. 39DSOBERBA (gr. xawóxnç; lat. Superbia; in. Pride, fr. Orgueil; ai. Hochmuth; it. Superbia). Vício correspondente à
virtude da magnanimidade (v.) e que tem como extremo oposto a pusilanimidade, na ética de Aristóteles. Segundo
ele, "os soberbos são insensatos porque se enganam sobre si mesmos: empreendem tarefas honradas acreditando
serem dignos delas, mas com isso só demonstram sua própria insuficiência" (Et. nic, IV, 3, 1125 a 27). Essa definição
tornou-se tradicional e foi repetida muitas vezes. Spinoza dizia: "A S. é uma alegria cuja
SOBRENATURAL
912
SOCIEDADE
origem está em o homem sentir-se mais do que é" {Ibid., III, 26, scol.).
SOBRENATURAL (in. Supernatural; fr. Sur-naturel; ai. Übernatürlich; it. Soprannaturalé). O que acontece na
natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não pode ser explicado com base neles. É
um conceito próprio da teologia cristã, que atribui à fé a crença no S. assim entendido (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 99,
a. 1).
SOBRENATURALISMO (in. Supranatura-lism; fr. Surnaturalisme, ai. Supranaturalis-mus; it.
Soprannaturalismó).1. Em geral, a crença no sobrenatural. De modo mais específico, Kant chamou de S. "a doutrina
que julga necessária para a religião em geral a fé na revelação sobrenatural" (Religion, IV, 1; trad. it., Durante, p.
169).
2. Corrente filosófica que defende a tradição católica; difundiu-se na Itália e na França entre o fim do séc. XVIII e o
início do XIX e conta com os nomes de De Bonald, De Maistre, Ros-mini, Lamenais, Gioberti. Seus partidários
foram também chamados de teocráticos ou ultra-mundanistas (v. TRADICIONALISMO).
SOBREVIVÊNCIA. V. IMORTALIDADE.
SOCIAL (in. Social; fr. Social; ai. Sozial; it. Socialé). Que pertence à sociedade ou tem em vista suas estruturas ou
condições. Neste sentido, fala-se em "ação S.", "movimento S.", "questão S.", etc.
2. Que diz respeito à análise ou ao estudo da sociedade. Neste sentido, fala-se em "economia S.", "psicologia S.", etc.
Em especial, a expressão ciências S. designa o conjunto das disciplinas sociológicas, jurídicas, econômicas e às vezes
também a ética e a pedagogia.
SOCIALIDADE (in. Sociality, fr. Socialité, ai. Geselligkeit; it. Socialitã). O mesmo que sociedade no primeiro
sentido. G. H. Mead entendeu a S. em sentido mais vasto, atribuindo-a ao universo inteiro. "O caráter social do
universo consiste na situação de o novo acontecimento estar ao mesmo tempo na velha ordem e na ordem nova, cujo
prenuncio é sua realização. S. é a capacidade de ser várias coisas a um só tempo" (ThePhilosophyofthePresent, 1932,
p. 49).
SOCIALISMO (in. Socialism; fr. Socialistne, ai. Sozialismus, it. Socialismo). Este termo, que se difundiu na
Inglaterra (em oposição a individualismo) nas primeiras décadas do séc. XIX, tem duas significações principais:
ls Uma significação mais ampla, designando, em geral, qualquer doutrina que defenda ou preconize a reorganização da sociedade em bases coletivistas. Nesse sentido, são S. o de Platão e o de Marx,
o de Owen e o de Proudhon, o de Lênin e o de Stálin. Refere-se a esse significado a distinção feita por Marx e Engels
entre S. utópico, para o qual a sociedade socialista é um ideal que não leva em conta as vias ou os modos de realizála, e o S. científico, que, sem apresentar qualquer ideal, prevê o advento inevitável da sociedade socialista com base
nas próprias leis que determinam o desenvolvimento da sociedade capitalista (cf. sobre esta distinção, especialmente:
ENGELS, Antidühring, 1878, introdução e cap. I da III parte).
Neste sentido, o termo é muito vago e indica qualquer aspiração, ideal, tendência ou doutrina que tenha em vista
alguma transformação da sociedade atual em sentido coletivista.
2S Em sentido mais restrito, entendem-se por S. as correntes coletivistas que se distinguem do comunismo (v.) e se
opõem a ele, enquanto: a) excluem a necessidade da ditadura do proletariado; b) excluem que tal ditadura possa ser
exercida, em nome do proletariado, por qualquer partido político; c) excluem a diferença radical, que se observa nos
países de regime comunista, entre a qualidade de vida da elite dirigente e a da maioria dos cidadãos; d) excluem a
subordinação da vida cultural às exigências do partido, à vontade de seus dirigentes; é) exigem respeito às regras do
método democrático.
A distinção das formas históricas que o S. assumiu diz respeito à política mais que à filosofia, não pertencendo,
portanto, à sua alçada.
SOCIEDADE (lat. Societas; in. Society, fr. Société, ai. Gesellschaft; it. Società). No sentido geral e fundamental: l9
campo de relações intersubjetivas, ou seja, das relações humanas de comunicação, portanto também: 2° a totalidade
dos indivíduos entre os quais ocorrem essas relações; 3Q um grupo de indivíduos entre os quais essas relações
ocorrem em alguma forma condicionada ou determinada.
Ia O primeiro significado, como se disse, é o fundamental; foi introduzido na cultura ocidental pelos escritores latinos
— especialmente por Cícero — que o hauriram no estoicismo. Nos escritores clássicos da Grécia, os aspectos estatal
e social encontram-se fundidos e não se distinguem do conceito de polis; graças ao cosmopolitismo dos estóicos,
foram dissociados e, portanto, a S. passou a ser considerada
SOCIEDADE
913
SOCIEDADE
independente do estado, da organização política. Foi expondo a doutrina dos estóicos que Cícero disse: "Nascemos
para a agregação dos homens e para a S. e a comunidade do gênero humano" {De finibus, IV, 2, 4). Esse conceito de
S. é retomado pelo jusnaturalismo moderno, no qual é acompanhado pelo conceito de direito natural (o que já
acontecia nos estóicos). O direito natural, aliás, é empregado pelos jusnaturalistas para delimitar o campo da
sociedade. Huig van Groot (Grócio), p. ex., diz que "a conservação da S., em conformidade com a inteligência
humana, é fonte do direito propriamente dito" {Dejurebellisacpacis, 1625, Proleg., § 8). Analogamente, para Hobbes,
a S. era uma associação decorrente das necessidades humanas e do temor, vale dizer, constituída em última análise
por relações humanas de utilidade recíproca {De eive, 1642,12). Pufendorf fundamentava a lei natural com o
princípio seguinte: "Cada um, no que depender de si, deve promover e manter para com seus semelhantes um estado
de sociabilidade pacífica, condizente em geral com a índole e as finalidades do gênero humano", e explicava que se
devia entender por sociabilidade "a disposição do homem para com o homem, graças à qual um se considera
vinculado ao outro pela benevolência, pela paz e pela caridade" {De jure naturae, 1672, II, 3). Também é possível
encontrar uma definição indireta da S. nos textos que insistem na tendência natural do homem para a sociabilidade,
como os que aparecem freqüentemente nas obras de Kant. "O homem tem inclinação a associar-se porque no estado
de S. sente-se mais homem, vale dizer, sente que pode desenvolver melhor suas disposições naturais. Mas também
tem forte tendência a dissociar-se (isolar-se) porque tem em si também a qualidade anti-social de querer voltar tudo
para seu próprio interesse, em virtude do que deve esperar resistência de todos os lados e, por sua vez, sabe que terá
de resistir aos outros" {Idee zu einer allgemeinen Ges-chichte in weltbürgerlicher Absicht, 1784, IV; trad. it., p. 127;
Met. derSitten, II, § 47; Crít. do Juízo, § 41). Fichte expressava esse mesmo conceito ao dizer: "Chamo de S. a
relação recíproca entre seres racionais" {Die Bestimmung des Gelehrten, 1794, II). Desse ponto de vista, a análise da
S. pode ter como objetivo:
a) Os fins que a totalidade do gênero humano deve ter em vista e dos meios que a razão indica para a consecução de
tais fins. As teorias
políticas dos autores gregos, p. ex., de Platão e de Aristóteles, e as teorias jusnaturalistas analisam a S. nesse sentido.
b) As condições que, de fato, possibilitam as relações humanas. Essas condições foram definidas de várias maneiras,
e sua definição pode ser considerada a primeira tarefa da sociologia (v.). Max Weber identificou-as na atividade
social, que se realiza segundo uma ordem deliberada e relativamente constante {Über einige Kategorien der
verstehenden Soziologie, 1913, V; trad. it., in // método delle scienze storico-sociali, pp. 262 ss.). Durkheim
considerou característicos da S. humana os modos de agir que são impostos de fora e se consolidam nas instituições
{Règles de Ia méthode sociologique, 1895, cap. I). E a própria ação, ou comportamento, às vezes é considerada
elemento objetivo que define o campo das relações humanas (cf. TALCOTT PARSONS, The Structure of Social Action,
1949; 2a ed., 1957). Este segundo modo de entender a S. atribui-lhe explícita ou implicitamente o caráter de "campo"
e a reduz portanto a uma construeto conceituai, isentando-a do caráter de totalidade real e do caráter de ideal
normativo.
2° O conceito de S. como totalidade de indivíduos entre os quais há relações intersubje-tivas, ou seja, como "mundo
social", em geral está ligado ao conceito de S. como organismo ou "superorganismo". Os antigos já haviam
comparado a comunidade política, o Estado, a um organismo. Os estóicos compararam toda a S. — como
comunidade de seres racionais — a um organismo (cf. MARCO AURÉLIO, Memórias, VII, 13); esse paralelo continua
na Idade Moderna. Comte chama a sociedade de "organismo coletivo" {Cours de phil. positive, IV, pp. 442 ss.). Por
sua vez, Spencer chama de superorgânica a evolução que conduz à S. e considera a própria S. como um organismo
cujos elementos são, em primeiro lugar, as famílias e depois os indivíduos isolados. Segundo Spencer, o organismo
social difere do organismo animal porque a consciência pertence apenas aos elementos que o compõem, pois a S. não
tem órgãos de sentido como os animais, mas vive e sente apenas através dos indivíduos que a compõem {TheStudy
ofSociology, 1873); Wundt expressou-se no mesmo sentido {System der Philosophie, 2a ed., 1897, pp. 616 ss.). A
hipótese organicista continua por trás de muitas teorias políticas e sociológicas modernas. Pode ser considerada uma
variante dessa mesma
SOCIEDADE
914
SOCIOLOGIA
concepção a doutrina de Hegel, para quem a "S. civil" é uma fase imperfeita ou preparatória do Estado, que é a Idéia
Divina realizada na terra: "A substância que, enquanto espírito, se particulariza abstratamente em muitas pessoas (a
família é uma só pessoa), em famílias ou em indivíduos, que por si estão em liberdade, são independentes e
particulares, e perde seu caráter ético; isso porque essas pessoas, enquanto tais, não têm na consciência e como
objetivo a unidade absoluta, mas sua própria particularidade e seu ser por si: daí nasce o sistema da atomística". Este
sistema é precisamente a sociedade civil como "conexão universal e mediadora de extremos independentes e de seus
interesses particulares" ou como "Estado exterior" {Ene, § 523; Fil. do dir., § 184). Neste sentido, segundo Hegel, a
S. civil compreende, em primeiro lugar, o sistema das necessidades; em segundo lugar, a administração da justiça; em
terceiro lugar, a polícia e a corporação, ou seja, os órgãos que detêm a tutela dos interesses particulares {Fil. do dir., §
188). O próprio Marx manteve inalterado este conceito da S. civil, mas inverteu sua relação com o Estado e adotou-o
como princípio de explicação do próprio Estado e, em geral, de todo o mundo ideológico: "Por meus estudos, fui
levado à conclusão de que nem as relações jurídicas nem as formas do Estado poderiam ser compreendidas por si
mesmas ou pelo chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas de que estão enraizadas nas relações
materiais da existência, cujo conjunto é enfeixado por Hegel com o nome de S. civil, a anatomia dessa S. civil deve
ser buscada na economia política" {Zur Kritik der politischen Õkonomie, 1859, Pref.; trad. it., Cantimori, p. 10).
Conceito análogo de S. pareceu a Bergson ser o próprio ideal de S. "aberta", ou S. mística. "Uma S. mística que
abarque toda a humanidade e que, animada por uma vontade comum, marche para a criação incessantemente
renovada de uma humanidade mais completa, certamente se realizará no porvir tanto quanto no passado existiram S.
humanas funcionando de maneira orgânica à semelhança das S. animais. A aspiração pura é um limite ideal como a
obrigação nua" {Deux sources, I, trad. it., p. 87).
3S Na linguagem comum e nas disciplinas sociológicas a palavra S. costuma ser usada no terceiro significado, de
conjunto de indivíduos caracterizado por uma atitude comum ou institucionalizada. Neste sentido, designa tanto um
grupo de indivíduos quanto a instituição que caracteriza esse grupo, como acontece nas expressões "S. comercial",
"S. capitalista", etc. Esse emprego é tão óbvio que em geral não é sequer definido. Às vezes é definido em relação
com cultura, como fazem Kluckhohn e Kelly: "S. refere-se a um grupo de pessoas que aprenderam a agir em
conjunto; cultura refere-se aos modos de vida que distinguem esse grupo de pessoas" (R. LINTON, The Science ofMan
in the World Crisis, 7a ed., 1952, p. 79).
SOCEVIANISMO (in. Socinianism; fr. So-cinianisme, ai. Socinianismus; it. Sociniane-simó). Doutrina religiosa de
Lelio Socini (1525-62) e Fausto Socini (1539-1604), que exerceu influência especialmente na Polônia; seus principais
pontos são os seguintes.- Ia negação do dogma trinitário; 2Q negação do pecado original e da predestinação; 3e
negação do valor das obras e da necessidade de mediação eclesiástica; 4 S recurso direto à Bíblia como meio único de
salvação; 5Q recurso à razão como único instrumento para a interpretação autêntica da Bíblia. Além da Polônia, o S.
difundiu-se na Holanda e na Inglaterra, mas sua influência foi enorme em toda a cultura liberal moderna (cf. D.
CANTIMORI, Eretici italiani dei Cinquecento, Florença, 1939).
SOCIOCRACIA, SOCIOLATRIA (in. So-ciocracy, sociolatry, fr. Sociocracie, sociolatrie, ai. Soziokratie,
Soziolatrie, it. Sociocrazia, so-ziolatrid). Termos criados por A. Comte para designar, respectivamente, o regime
político baseado na sociologia, que ele concebe como análogo ou correspondente à teocracia medieval, baseada na
teologia {Politique positive, 1851,1, p. 403), e o culto da sociedade, que deveria tomar o lugar das religiões positivas
{Catéchisme posüiviste, VI).
SOCIOLOGIA (in. Sociology, fr. Sociologie, ai. Soziologie, it. Sociologia). E a ciência da sociedade, entendendo-se
por sociedade o campo das relações intersubjetivas. Esse termo foi criado em 1838 por A. Comte, para indicar "a
ciência de observação dos fenômenos sociais" {Cours de phil. positive, IV, 1838), e é usado atualmente para qualquer
tipo ou espécie de análise empírica ou teoria que se refira aos fatos sociais, ou seja, às efetivas relações
intersubjetivas, em oposição às "filosofias" ou "metafísicas" da sociedade, que pretendem explicar a natureza da
sociedade como um todo, independentemente dos fatos e de modo definitivo. Sem dúvida, na história do pensamento
SOCIOLOGIA
915
SOCIOLOGIA
ocidental sempre foram feitas observações úteis e decisivas no campo social, que encontraram lugar especialmente na
ética e na política. Contudo, tais observações não constituíam uma disciplina autônoma, dotada de metodologia
própria: isso só começou com Comte. É possível distinguir dois conceitos fundamentais de S., sucessivos no tempo:
1Q S. sintética (ou sistemática), cujo objeto é a totalidade dos fenômenos sociais a serem estudados em seu conjunto,
em suas leis; 2- S. analítica, cujo objeto são grupos ou aspectos particulares dos fenômenos sociais, a partir dos quais
são feitas generalizações oportunas. Nesta segunda fase, a S. fragmenta-se numa multiplicidade de correntes de
investigação e tem certa dificuldade para reencontrar sua unidade conceituai.
I9 Foi com Comte que nasceu a S. como sistema, como determinação da natureza da sociedade em seu conjunto,
através da determinação de suas leis. Nessa fase, tenta organizar-se à semelhança da física newtoniana: como ciência
que, através de leis rigorosas, delineia uma ordem necessária e o desenvolvimento dessa ordem, não menos
necessário. Portanto, Comte chamava a S. de física social, cuja primeira parte seria o estudo da ordem social
(estática) e a segunda, o estudo do progresso social (dinâmica) (Cours de phil. positive, IV, p. 292). Além disso,
Comte atribuía à S. a mesma função atribuída às outras ciências a partir de Bacon: dominar os fenômenos de que
tratam em proveito do homem. Conseqüentemente, a S. teria a função de "perceber nitidamente o sistema geral das
operações sucessivas — filosóficas e políticas — que devem libertar a sociedade de sua fatal tendência à dissolução
iminente e conduzi-la diretamente a uma nova organização, mais progressista e sólida que a fundada na filosofia
teológica" (Ibid., IV, p. 7). A sociocracia (v.) seria assim o efeito inevitável da fundação da S. como ciência. Mesmo
isentando a S. da tarefa de fundar uma nova humanidade, Spencer conservou seu caráter sistemático. Segundo ele,
trata-se de uma ciência descritiva que visa a determinar as leis da evolução superorgânica, que regem o progresso do
organismo social. Neste sentido, a S. é o estudo da ordem progressiva da sociedade como um todo (Principies of
Sociology, 1876, I). Este conceito inspirou a primeira organização da S. em todos os países do mundo. Aceito por W.
G. Summer (Folkways, 1906) nos Estados Unidos, e por Wundt (Volkerpsychologie,
1900), com o nome de psicologia dos povos, na Alemanha, foi um conceito constantemente dominado pelo princípio
de evolução, tomado em seu sentido otimista de progresso necessário: princípio que inspirou também alguns estudos
sociológicos que se tornaram clássicos (como, p. ex., os de E. WESTERMARK sobre a Origem e desenvonvimento das
idéias morais, 1906-1908). Mas a maior realização da S. sistemática talvez seja o Tratado de s. geral (1916-23) de
Vilfredo Pareto, que, sob outro aspecto, é também o início da crise desse tipo de S. Com efeito, Pareto, ao mesmo
tempo em que quer realizar a S. como uma ciência positiva que estuda "a realidade experimental pela aplicação dos
métodos já comprovados em física, química, astronomia, biologia e nas demais ciências", por outro lado repudia
qualquer construção sistemática demasiado complexa e não hesita em qualificar de metafísicas e dogmáticas as
doutrinas sociológicas de Comte e Spencer (Tratado, § 5, 112). Segundo Pareto, o caráter essencial da ciência é
"lógico-experi-mental" e implica dois elementos: o raciocínio lógico e a observação do fato. Contudo, o objetivo da
ciência continua sendo o de formular leis necessárias que descrevam em seu conjunto aquilo que Pareto chama de
equilíbrio social, por ele comparado às vezes a um sistema mecânico de pontos, outras vezes a um organismo vivo
(Cours d'économiepolitique, 1896, § 619). Entretanto, ele também insiste no simples caráter de "uniformidade
experimental" da lei e no fato de que todo fenômeno concreto é devido à intersecção de certo número de leis
diferentes (Tratado, § 99); isso significa que toda explicação científica é aproxima-tiva e parcial (Ibid., § 106). Ainda
mais distante do ideal sistemático de S. é o corpo de análises que Pareto apresenta em seu Tratado, cujo objeto é
principalmente aquilo que ele chama de "ações não lógicas", cujos elementos estariam nos resíduos e nas derivações
(v.).
2- Pode-se dizer que o marco da passagem da S. sintética para a analítica é a obra de E. Durkheim, que se afasta do
pressuposto fundamental da S. sistemática, de que a sociedade constitui um todo ou um sistema orgânico. Durkheim
diz: "O que existe, o que só é dado à observação, são as sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e
morrem, independentemente umas das outras" (Règles de Ia méthode sociologique, 1895, 11a ed., 1950, p. 20).
Paralelamente, Durkheim insistiu no cará-
SOCIOLOGIA
916
SOCIOLOGIA
ter exterior do objeto da ciência social: "Os fatos sociais consistem em modos de agir, pensar e sentir, exteriores ao
indivíduo e dotados de um poder de coerção graças ao qual se impõem a ele" {Ibid., p. 5). Considerar os fatos sociais
deste modo significa considerá-los como coisas, independentemente de preconceitos subjetivos e das vontades
individuais (Ibid., pp. 11 ss.). Os mesmos motivos foram sistematizados na obra metodológica de Max Weber. A este
cabe o mérito de ter sido o primeiro a distinguir a S. das outras disciplinas antropológicas, especialmente das
historiográ-ficas. Ele identificou o objeto da S. na uniformidade da atitude humana, que é dotada de sentido, ou seja,
acessível à compreensão. Mais precisamente, atitude é a ação humana que: l s refere-se, segundo a intenção de quem
age, à atitude dos outros; 2e seu curso é determinado também por essa referência; 3e pode ser explicada por essa
referência (Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie, 1913, trad. it., em // método delle scienze storicosociali, p. 243). A segunda conquista importante da S. de Max Weber é a nítida separação que pretendeu estabelecer
entre a investigação empírica ou lógica, por um lado, e as avaliações práticas ou éticas, políticas ou metafísicas, por
outro lado (Der Sinn der Wertfreiheit der soziologischen und õkonomischen Wíssens-chaften, 1917; na coletânea
citada, pp. 311 ss.). Ainda que, obviamente, seja mais fácil propor essa separação como exigência do que realizá-la na
pesquisa, ela vale até hoje como regra que empenha a honestidade do pesquisador. Em terceiro lugar, da obra de
Weber dimana a exigência da investigação empírica particular, a única que pode determinar as unifor-midades de
atitudes que constituem o objeto da sociologia. Esses três pontos permaneceram no desenvolvimento posterior da S.
contemporânea. Esta aceitou com entusiasmo o convite de Weber no sentido da pesquisa empírica particular e da
formulação de técnicas adequadas de observação. Hoje a S. dispõe de um imponente conjunto de técnicas que podem
ser classificadas em quatro grupos fundamentais: 1° técnicas de observação (observação direta, livre ou controlada,
observação clínica, observação participante, etc); 2e técnicas de entrevista, que vão desde a entrevista livre até os
questionários; 3Q técnicas de experimentação e técnicas sociométricas. estas últimas tendem a descrever as relações
sociais espontâneas (consideradas
componentes elementares de todos os agrupamentos) através da participação ativa dos próprios sujeitos estudados (cf.
MORENCY, Who Shall Survíve?, 1934); 49 técnicas estatísticas, que a S. compartilha com muitas disciplinas sociais
(cf, para um quadro dessas técnicas, Traité de sociologie, dirigido por G. Gurvitch, 1958, pp. 135 ss.). Com o uso
dessas técnicas, foi realizado grande número de "pesquisas de campo" nos sentidos mais díspares, tendo-se
acumulado dessa maneira, sobretudo nos últimos trinta anos, um material de observação volumoso e complexo.
Mas a pesquisa sociológica não se desenvolveu no mesmo sentido em todos os países. Na Inglaterra, dedicou-se
sobretudo a descrever o mundo dos primitivos, suas instituições e seus comportamentos fundamentais (cf.
especialmente a obra de G. FRAZER, The Golden Bough, 1911-14, 12 vols., e os textos de B. Malinowski e A. R.
Radcliffbrown). Na França, além de descrever a mentalidade dos primitivos (cf. especialmente os textos de LévyBruhl a partir de Les fonctions mentales dans les sociétés infé-rieures, 1910), conservou o caráter teórico, dedicandose ao estudo de problemas fundamentais, em especial por obra de Gurvitch (La vocation actuelle de Ia sociologie,
1950; Dé-terminismes sociaux et liberte humaine, 1955). Na Itália, depois de haver dado uma contribuição
importante à S. sistemática com a obra de Pareto e de outros autores menores, calou-se no período entre guerras
devido à influência negativa da cultura idealista, e só hoje vai readquirindo força e capacidade, atualizando-se
rapidamente nos métodos e interesses e dedicando-se ao estudo da sociedade italiana. Mas é sobretudo nos Estados
Unidos que a pesquisa sociológica produziu uma quantidade considerável de trabalhos com as mais diferentes
orientações. Aqui só será possível indicar os principais caminhos tomados pela pesquisa sociológica:
a) S. urbana: desenvolveu-se nos Estados Unidos, principalmente graças ao incentivo de R. E. Park, dando origem a
obras clássicas como as de R. S. e H. LIND, Middletown (1929) e Middletown in Transiction (1937) (cf. também o
estudo clássico de PARK, The City, 1925, atualmente em Human Communities, 1952).
b) Estudo da estratificação e da mobilidade social: iniciou-se nos Estados Unidos, na época da crise (1929), e
alcançou desde então resultados importantes (cf., para um balanço, G.
SOCIOLOGIA
917
SOFISMA
GADDA CONTI, Mobilitã e stratificazione sociale, 1959).
c) Estudo dos grupos étnicos: conta hoje com importante conjunto de obras, entre as quais a clássica obra de Thomas
e Znaniecki, The Polish Peasant in Europe and America (1918-21).
d) Estudo da família: deteve-se especialmente na análise da desorganização familiar e nos problemas conjugais (cf.,
p. ex., E. V. HAMILTON, Estudos sobre o casamento, 1929).
é) Análise da opinião pública e dos instrumentos de propaganda, que conta hoje com uma riquíssima literatura (cf., p.
ex., R. K. MERTON, Mass Persuasion, 1947).
f) Estudo de pequenos grupos, cujos melhores resultados foram obtidos nos Estados Unidos (cf. E. SHILS, LO stato
attuale delia S. americana, em Quademi di S., 1953, n. 7).
g) S. industrial, termo com que se designa o estudo das relações em locais de trabalho e as influências recíprocas
entre essas relações e a organização industrial (cf., para um balanço, FRANCO FERRAROTTI, La S. industriale in
America e in Europa, 1959).
h) S. da religião, fundada por Max Weber {Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, 1904; Die
protestantische Sekten und der Geist des Kapitalismus, 1906, etc), que consiste na análise das interações entre as
relações sociais e os fatos religiosos; nos últimos anos não obteve grandes resultados.
i) S. do conhecimento, cuja fundação costuma ser atribuída a Marx, que foi o primeiro a insistir nas interações entre o
saber e as formas sociais; foi cultivada especialmente por Max Scheler (Die Wissensformen und die Gesells-chaft,
1926) e por Karl Mannheim (Das Pro-blem einer Soziologie des Wissens, 1926).
Como já dissemos, a quantidade de trabalhos realizados em muitos desses ramos da pesquisa sociológica é enorme,
mas a sua utilização conceituai não foi adequada. Shils disse: "O principal defeito da sociologia americana é o inverso
de sua principal virtude: sua indiferença, até agora dominante, para com a formação de uma teoria geral está
estreitamente ligada à sua avidez de precisão na observação imediata" (Lo stato attuale delia S. americana, em
QuadernidiS., 19S3, n. 8). Essa situação não é exclusiva da S. americana, mas está presente em todos os países em
que a pesquisa sociológica alcança certo grau de desenvolvimento. Por isso, mesmo os que mais insistiram
na importância das técnicas objetivas às vezes sentem saudade da velha forma sistemática da S. (cf. PITIRIM SOROKIN,
Fads and Faibles in Modem Sociology and Related Sciences, 1956). Contudo, não faltam à literatura sociológica
moderna certas tentativas importantes e felizes de estabelecer uma teoria sistemática do objeto da S., que é a ação
social (cf., p. ex., T. PAR-SONS, The Structure of Social Action, 1937,2a ed., 1949), outras de consolidar a relação entre
a teoria social e a pesquisa social (cf., p. ex., R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure), ou mesmo de
realizar a S. como uma "tipologia quantitativa e descontinuísta", altamente teórica, como é a de G. Gurvitch (Traité
de sociologie, 1959, pp. 155 ss.). Portanto, o que se pode prever, dado o estado atual dessa disciplina, é a
multiplicação e o fortalecimento das tentativas de conceituação teórica do material a que se teve acesso através de
pesquisas especiais, sem contudo voltar à forma sistemática que a S. assumira na sua primeira fase dogmática.
SOCIOLOGISMO (in. Sociologism- fr. Socio-logisme, ai. Soziologismus-, it. Sociologismó). Termo polemístico
para designar a tendência a reduzir fenômenos morais ou religiosos a fatos sociais (cf. BOUTROUX, Science et religion, p. 342).
SOCIOMETRIA. V. SOCIOLOGIA.
SOCRATISMO (in. Socratism- fr. Socratis-me, ai. Socratismus-, it. Socratismo). Doutrina de Sócrates, da forma
como se consolidou na tradição antiga; seus fundamentos podem ser assim resumidos: l s valor da indagação
filosófica, sem o que a vida não é digna de ser vivida; 2- a indagação restringe-se ao homem, não havendo interesse
por qualquer estudo da natureza; 3S identificação entre ciência e virtude, no sentido de que é possível ensinar e
aprender a virtude, e não é possível praticar o bem sem conhecê-lo; 4Q importância atribuída ao ensinamento: nada se
ensina, pois apenas se favorece a criação intelectual dos ouvintes; 5S método de interrogação e a ironia (v.).
SOFISMA (in. Sophism-, fr. Sophisme, ai. Sophisma; it. Sofismá). 1. O mesmo que falácia (v.).
2. Raciocínio caviloso ou que leva a conclusões paradoxais ou desagradáveis. Neste sentido, esse termo tem uso
muito vasto, e até os paradoxos (v.) e os argumentos duplos podem ser chamados de S.
SOFISTICA
918
SOLIPSISMO
SOFÍSTICA (in. Sophistics; fr. Sopbistique, ai. Sophistik, it. Sofistica). 1. Aristóteles chamou de S. "a sabedoria
(sapientia) aparente mas não real" (El. soph., 1, 165 a 21), e esse passou a indicar a habilidade de aduzir argumentos
capciosos ou enganosos.
2. Em sentido histórico, a S. é a corrente filosófica preconizada pelos sofistas, mestres de retórica e cultura geral que
exerceram forte influência sobre o clima intelectual grego entre os sécs. V e IV a.C. A S. não é uma escola filosófica,
mas uma orientação genérica que os S. acataram devido às exigências de sua profissão. Seus fundamentos podem ser
assim resumidos:
1Q O interesse filosófico concentra-se no homem e em seus problemas, o que os sofistas tiveram em comum com
Sócrates.
2° O conhecimento reduz-se à opinião e o bem, à utilidade. Conseqüentemente, reconhece-se da relatividade da
verdade e dos valores morais, que mudariam segundo o lugar e o tempo.
3Q Erística: habilidade em refutar e sustentar ao mesmo tempo teses contraditórias.
4Q Oposição entre natureza e lei; na natureza, prevalece o direito do mais forte.
Nem todos os sofistas defendem essas teses: os grandes sofistas da época de Sócrates (Pro-tágoras e Górgias)
sustentaram principalmente as duas primeiras. As outras foram apanágio da segunda geração de sofistas (cf.
UNTERSTEINER, Isofisti, 1949).
SOLECISMO (in. Solecism; fr. Solécisme, ai. Solecismus; it. Solecismd). Em Aristóteles (El. sof, passirri) e depois,
na lógica de origem aris-totélica, designa um dos objetivos da dialética sofistica, qual seja, a tentativa de induzir o
interlocutor a aceitar um enunciado que contém uma impossibilidade gramatical, como ho-mines currit. Esse termo
passou a indicar uma aberração gramatical de natureza morfológica ou sintática.
G.
P.
SOLIDÃO (in. Solitude, fr. Solitude, ai. Einsamkeit; it. Solitudinè). Isolamento ou busca de melhor comunicação. No
primeiro sentido, a S. é a situação do sábio, que, tradicionalmente, é autárquico e por isso se isola em sua perfeição
(v. SÁBIO). Afora esse ideal, o isolamento é um fato patológico: é a impossibilidade de comunicação associada a todas
as formas da loucura. Em sentido próprio, contudo, a S. não é isolamento, mas busca de formas diferentes e
superiores de comunicação: "Não dispensa os laços com o ambiente e a vida cotidiana, a não ser em vista de outros laços com homens do passado e do futuro, com os quais seja possível uma forma
nova ou mais fecunda de comunicação. O fato de a solidão dispensar esses laços é, pois, uma tentativa de libertar-se
deles e ficar disponível para outras relações sociais" (ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, XI, § 8).
SOLIDARIEDADE (in. Solidarity, fr. Soli-darité, ai. Solidaritãt; it. Solidarietã). Termo de origem jurídica que, na
linguagem comum e na filosófica, significa: le inter-relação ou interdependência; 2- assistência recíproca entre os
membros de um mesmo grupo (p. ex.: S. familiar, S. humana, etc). Neste sentido, fala-se de solidarismo para indicar
a doutrina moral e jurídica fundamentada na S. (Cf. L. BOURGEOIS, La solidarité, 1897).
SOLILÓQUIO (lat. Soliloquium). Colóquio da alma consigo mesma. Soliloquia foi o título que S. Agostinho deu a
uma de suas primeiras obras, em que declarava desejar conhecer apenas Deus e a alma, e nada mais (Sol, I, 2). S.
Anselmo chamou de Monologion o seu colóquio interior em torno da essência de Deus.
SOLIPSISMO (in. Solipsism; fr. Solipsisme, ai. Solipsismus; it. Solipsismo). Tese de que só eu existo e de que todos
os outros entes (homens e coisas) são apenas idéias minhas. Os termos mais antigos para indicar essa tese são
egoísmo (cf. WOLFF, Psychologia rationalis, § 38; BAUMGARTEN, Met., § 392; GANUPPI, Saggio filosófico sulla
critica delia conoscenza, IV, 3, 24, etc), egoísmo metafísico (KANT, Antr., I, § 2) ou egoísmo teórico
(SCHOPENHAUER, Die Welt, I, § 19). Kant empregou o termo S. para indicar a totalidade das inclinações que
produzem felicidade quando satisfeitas (Crít. R. Prática, I, livro 1, cap. III; trad. it, p. 85); esse mesmo termo foi
empregado para indicar o egoísmo metafísico por alguns escritores alemães da segunda metade do séc. XIX (cf.
SCHUBERT-SOL-DERN, Grundlagen zu einer Erkenntnistheorie, 1884, pp. 83 ss.; W. SCHUPPE, Der Solipsismus, 1898;
H. DRIESCH, Ordnungslehre, 1912, pp. 23 ss., etc). Como já notava Wolff, o S. é uma espécie de idealismo que reduz
a idéias não só as coisas, mas também os espíritos (Psychol. rat, § 38). Freqüentemente, o S. foi declarado irrefutável,
pelo menos com provas teóricas: tal era a opinião de Schopenhauer (loc. cit), muitas vezes repetida (cf. RENOUVIER,
Les dilemmes dela métaphysique purê, 1901; A. LEVI, Sceptica, 1921; SARTRE, Vêtre et le néant,
SOLIPSISMO
919
SONHO
1943, p. 284). Na realidade, o S. só é irrefutável do ponto de vista idealista (com o qual coincide), segundo o qual os
atos ou as ações do sujeito são conhecidos de maneira imediata, privilegiada e absolutamente segura.
Foi a aceitação (explícita ou implícita) dessa tese que por vezes levou a adotar o S. como ponto de partida obrigatório
da teoria do conhecimento (cf., p. ex., DRIESCH, Op. cit., p. 23) ou como procedimento metodológico
(SCHUBERT-SOLDERN, Op. CÜ., pp. 65 SS.). Este
último ponto de vista foi adotado pelo positivismo lógico, especialmente por Wittgenstein e Carnap. O primeiro,
tendo observado que "os limites de minha linguagem constituem os limites de meu mundo" (Tractatus, 5, 6), concluiu
"ser absolutamente correto o significado do S., que, apesar de não poder ser dito, manifesta-se. O fato de os limites da
linguagem (da linguagem que só eu entendo) constituírem os limites do meu mundo revela que o mundo é o meu
mundo" (Ibid., 5.62) e que, portanto, "eu sou o meu mundo" (Ibid., 5.63). Mas, assim entendido, o S. transforma-se
imediatamente em realismo: "O S. rigorosamente desenvolvido coincide com o realismo puro. O eu do positivismo
reduz-se a um ponto inextenso, e a realidade a ele se coordena" (Ibid., 5.64). O pressuposto desse discurso é a teoria
segundo a qual a correspondência entre os elementos da linguagem e os da realidade se dá termo a termo, e os
elementos da realidade se reduzem a fatos de experiência imediata, sendo, pois, apenas meus. Quando faltam tais
fatos, falta o significado (o objeto) da palavra, e eu não a entendo: portanto, Wittgenstein diz que os limites de minha
linguagem são os limites do mundo. O mesmo pressuposto leva Carnap a falar de S. metódico. Com muita razão
Carnap fala de S. a propósito da escolha dos elementos básicos (Grundelemente), porque, como através de tais
elementos (que servem de base para a construção lógica do mundo) Carnap escolhe (assim como Wittgenstein) os
fatos imediatos da experiência, ou, como diz ele, "a base psíquica própria", seu procedimento é solipsista (Der
logische Aufbau der Welt, 1928, § 64). J. R. Weinberg já observava que no positivismo lógico o S. lingüístico é
inevitável; por isso, uma vez que é necessário superá-lo para atingir a objetividade científica, "ou se alteram
necessariamente alguns postulados do sistema para isentar o positivismo das idéias metafísicas, ou — se esse método
falhar — será preciso abandonar todo o sistema do positivismo lógico" (An Examination of Logical Positivism, cap. VII; trad. it., pp. 235 ss.).
Na realidade, o pressuposto do positivismo que dá origem ao S. é reflexo da tese idealista na teoria da linguagem: os
elementos da linguagem são signos de experiências imediatas, porque as experiências imediatas são a única realidade
(v. EXPERIÊNCIA; LINGUAGEM).
SOMA LÓGICA (in. Logical sum; fr. Somme logique, ai. Logische Summe, it. Somma lógica). É a figura (a + b)
resultante de uma adição lógi-ca(v.). __
G.P.
SOMÁTICO (in. Somatic, fr. Somatique, ai. Somatisch; it. Somático). Corpóreo (v. CORPO).
SOMATOLOGIA (in. Somatology, fr. Soma-tologie, ai. Somatologie, it. Somatologid). Parte da antropologia que
considera os aspectos físicos do homem (V. ANTROPOLOGIA).
SOMBREAMENTO (ai. Abschattung). Termo empregado por Husserl para indicar o modo parcial e aproximativo
com que a coisa externa é dada à consciência perceptiva. P. ex.: "A mesma cor aparece em seqüências contínuas de
sombreamentos de cores. O mesmo vale para qualquer qualidade sensível e para qualquer figura parcial. Uma única e
mesma figura, dada em carne e osso como sempre a mesma, aparece continuamente 'de modo diferente', em
sombreamentos sempre diferentes de figura. Essa é a situação necessária das coisas, que tem validade universal"
(Ideen, I, § 4).
SONHO (gr. ÊvúiiTiov; lat. Somnium- in. Dream; fr. Rêve, ai. Traum; it. Sogno). Ação da imaginação durante o
sono. Esta é a definição já proposta por Platão (Tim., 45 e) e Aristóteles (Qesomniis, 1, 459 a 15), sendo também
adotada pela psicologia moderna; nesta, dá origem a uma série de problemas que escapam completamente à alçada da
filosofia (cf. a propósito desses problemas E. SERVADIO, II sogno, 1955). Freud e os psicanalistas interpretaram o S.
de / modo funcionatista, ao tentarem determinar 1 sua função na vida do homem. Se^undoJFreud, o S. "é um meio de
suprimir as excitações (psíquicas) quejDerturbem o sono, supressão essa realizada através de satisfações
alucinatórias" (Intr. à Ia psychanalyse, 1932, p. 151). Ojjue encontra realização simbólica no S. na maioria das vezes
são desejos proibidos, inibidos pela censura, que,~portanto, sofrem uma elaboração radical, cabendo ao psicólogo
interpretá-la. (Ibid., pp. 189, 234). Essa teoria de Freud foi muito discutida, e não parece apta a explicar
SONHO
920
SORTE
todas as espécies de S. ou todos os seus aspectos; apesar disso, foi a única a propor o problema da funcionalidade do
S., vale dizer, da função que ele exerce na economia da vida psíquica.
Os filósofos algumas vezes se dedicaram à análise do S. para mostrar a incerteza da discriminação entre ele e a
vigília, utilizando-o como elemento de dúvida teórica. Platão dizia: "Nada nos impede de crer que as conversas que
agora mantemos sejam mantidas em sonho, e quando em S. cremos contar um S., a semelhança das sensações no S. e
na vigília é realmente maravilhosa" {Teet, 158 c). Por outro lado, "o tempo /durante o qual dormimos é igual ao
tempo em que estamos acordados, e em ambos nossa alma afirma que só as opiniões que tem naquele momento são
verdadeiras; desse modo, por igual espaço de tempo dizemos que são verdadeiras ora estas, ora aquelas, e
defendemos _umas e outras com a mesma energia" {Ibid., 158 d). Nos sécs. XVII e XVIII esse tema foi
freqüentemente repetido por poetas e filósofos. Shakespeare dizia: "Somos feitos da mes-ma substância ~ãe que sao
"feitos os S., enossa fcu£tãj^^ênciaesTa~rômigãjíõ^ê7íod o"rk*i i m Isono" (TempesÇãxõlYrcênã I). Calderón de Ia
Barca utilizou o mesmo tema em A vida é S. (1635): "São as glórias tão semelhantes aos S. que as verdadeiras passam
por falsas, e as falsas por verdadeiras? É tão pouca a distância entre umas e outras que é preciso saber se o que se vê
ou frui é S. ou realidade?" (Ato III, cena X). Descartes empregava o mesmo tema como elemento de dúvida: "O que
acontece em sonho não parece tão claro e distinto quanto o que acontece durante a vigília. Mas, pensando a respeito,
lembro-me de ter sido muitas vezes enganado por simples ilusões, enquanto dormia. E, detendo-me nesse
pensamento, vejo com clareza que não há indícios concludentes, nem sinais bastante seguros, que possibilitem
distinguir com nitidez a vigília do S., a tal ponto que fico admirado, e minha admiração é tanta que quase me
convence de que estou dormindo" (Méd., I; cf. Princ.phíi, I, 4). A teoria de Leibniz, segundo a qual a vida da mônada
(substância espiritual) é "um S. bem regulado", constitui outra manifestação do mesmo tema. Leibniz diz:
"Metafisicamente falando, não é impossível que haja um S. tão contínuo e duradouro quanto a idade de um homem.
(...) Mas, desde que os fenômenos estejam interligados, não importa que sejam
chamados de sonhos ou não, porque a experiência mostra que não nos enganamos ao aprendermos os fenômenos,
quando eles são aprendidos segundo as verdades de razão" {Nouv. ess., IV, 2, 14). Voltaire dizia: "Se os órgãos, por
si sós, produzem os S. da noite, por que não poderiam produzir, por si sós, as idéias do dia? Se a alma, por si só,
tranqüila no descanso dos sentidos e agindo sozinha, é a causa única e o único sujeito de todas as idéias que temos
dormindo, por que todas essas idéias são quase sempre irregulares, irracionais, incoerentes?"
(Dictionnairephilosophique, 1764, art. Songes). Schopenhauer talvez seja o último a apresentar esse tema em sua
forma clássica: "A vida e os S. são páginas de um mesmo livro. A leitura contínua chama-se vida real. Mas quando o
tempo habitual de leitura (o dia) chega ao fim e vem a hora de descansar, então às vezes continuamos, fracamente,
sem ordem e conexão, a folhear aqui e acolá algumas páginas: às vezes é uma página já lida, muitas outras vezes uma
outra ainda desconhecida, mas sempre do mesmo livro" (Die Welt, I, § 5).
SONO e VIGÍLIA. V. SONHO.
SORITES (lat. Acervus; in. Sorites; fr. So-rite, ai. Sorites; it. Soritè). 1. Argumento de Eu-búlides contra a
multiplicidade (V. MONTÃO, ARGUMENTO DO).
2. Silogismo composto ou polissilogismo (v.), no qual a conclusão do silogismo que precede é adotada como
premissa do silogismo subseqüente, até se chegar a relacionar o antecedente do primeiro silogismo com a
conseqüência do último (cf. ARNAULD, Log., III, I; JUN-Gius, Lógica hamburgensis, III, 28; WOLFF, Log., § 474;
HAMILTON, Lectures onLogic, p. 366, etc). A expressão soriticus syllogismus deve ter sido usada pela primeira vez
por Mário Victo-rino (séc. IV) (cf. PRANTL, Geschichte der Logik, I, p. 663), mas foi difundida por Lourenço Valia
(Dialecticae disputationes, III, 12).
SORTE (gr. m%i\; lat. Fortuna-, in. Fortune, fr. Fortune, ai. Glück, it. Fortuna). Segundo Aristóteles, distingue-se
do acaso (v.) porque se verifica no domínio das ações humanas e por isso não podem ter S. ou falta de S. os seres que
não podem agir livremente. "Os seres ina-nimados, os animais, as crianças, não fazem nada por S. porque não têm
escolha; e a boa ou a má S. só lhes é atribuída por semelhança, da mesma maneira como Protarco disse que as pedras
do altar têm sorte porque são homena-
SOTERIOLOGIA
921
SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO
geadas, enquanto suas companheiras são pisadas" (Fís., II, 6, 197b 1). Essa significação manteve-se no uso moderno
da palavra. Seu conceito filosófico é, portanto, o mesmo de acaso (v.).
SOTERIOLOGIA (in. Soteríology, fr. Sote-ríologie, ai. Soteriologie, it. Soteriologid). Doutrina religiosa da
salvação. Sobre o aparecimento de tendências soteriológicas no ocidente, v. a obra de F. CUMONT, Les religions
orientales dans lepaganisme romain, 1906, 2- ed., 1909.
SPINOZISMO (in. Spinozism; fr. Spinozis-me, ai. Spinozismus-, it. Spinozismó). Doutrina de Baruch Spinoza (163277), nos principais aspectos reconhecidos pela tradição filosófica, que podem ser assim resumidos: 1 Q unicidade da
substância do mundo e sua identificação com Deus, graças à qual Spinoza se refere à substância com a expressão"
Deus sive natura"; 2- ateísmo ou, como também se diz (com Hegel), acosmismo (v.), segundo o qual Deus é o
princípio e a ordem do mundo; 3S o neces-sitarismo, segundo o qual todas as coisas derivam por absoluta necessidade
da substância divina; 4a o geometrismo, afirmação do caráter geométrico da necessidade cósmica que é o modelo do
método geométrico da filosofia; 5S redução da liberdade humana ao reconhecimento e à aceitação da necessidade da
ordem cósmica; 6° defesa da liberdade filosófica e religiosa do homem, fundada na redução da fé religiosa à
obediência (v. FÉ).
STATUS. Condição ou modo de ser, especialmente em sentido sociológico, como pertencente a determinado estrato
social.
STURM UND DRANG. Com esta expressão, que significa "tempestade e ímpeto" e foi título de um drama de
Klinger, escrito em 1776, designa-se um movimento filosófico e literário que surgiu na Alemanha na segunda metade
do séc. XVIII e constitui o antecedente imediato do Romantismo. As atitudes peculiares desse movimento são
simbolizadas pelas duas palavras acima. Trata-se de manifestações irracio-nalistas cuja expressão filosófica se
encontra nas doutrinas de Haman, Herder e Jacobi: estas remetem aos limites impostos por Kant à razão apenas para
irem além da razão e recorrer à experiência mística ou à fé (v. FÉ, FILOSOFIA DA). Do "S. und Drang" passa-se para o
Romantismo ao se passar do conceito kantiano de razão finita — à qual se contrapõe a fé ou o sentimento, atribuindose-lhes poder cognoscitivo superior — para o conceito de razão infinita ou
capaz de atingir o Infinito; isso tem início com Fichte, em quem realmente se encontra a primeira inspiração do
romantismo (v.).
SUAREZISMO (in. Suarezianism; fr. Sua-rézisme, it. Suarezismó). Doutrina do espanhol Francisco Suárez (15481617), que é a maior expressão filosófica da Contra-Reforma católica. Trata-se, substancialmente, de um retorno
decidido e rigoroso ao tomismo: sua obra Disputationes metaphysicae é um manual sistemático de metafísica tomista.
Suárez, porém, faz uma importante concessão à escolástica do séc. XIV, ao admitir a individualidade do real, •vale
dizer, ao reconhecer que cada coisa é tal por si mesma, e não pela matéria, pela forma ou por outro princípio
qualquer. Afastou-se também do tomismo na doutrina política exposta em De legibus (1612), ao afirmar que o poder
temporal dos príncipes provém apenas do povo; isso tem a finalidade de privilegiar o poder eclesiástico, que proviria
diretamente de Deus.
SUBALTERNAÇÃO (lat. Subalternaticr, in. Subalternation; fr. Subalternation; ai. Subalternation; it.
Subaltemazionè). Com este termo e com a expressão oposição subalterna, indica-se a relação entre a proposição
universal e a particular correspondente e da mesma qualidade; p. ex., entre "todo homem é justo" e "alguns homens
são justos", ou entre "nenhum homem é justo" e "alguns homens não são justos". A proposição universal chama-se
subal-ternante e a particular, subalternada (PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.14); JUNGIUS, Log. hamburgensis, II, 9,
15; B. HERDMANN, Logik, § 70). Hamilton chamou a S. de restrição (Lec-tures on Logic, II2, p. 269). (V. QUADRADO
DOS OPOSTOS.)
SUBCONSCIENTE (in. Subconscious, fr. Sub-conscíent; ai. Unterbewusst; it. Subcosciente). O mesmo que
inconsciente. Alguns psicólogos franceses do século passado procuraram distinguir o S. do inconsciente,
considerando-o como consciência débil ou diminuída (Riboy, Janet e outros). Mas essa distinção pareceu fa-laz, e a
palavra caiu em desuso (v. INCONSCIENTE).
SUBCONTRÂRIA, PROPOSIÇÃO (lat. Fro-positio subcontraria; in. Subcontrary propo-sition; ai.
Subcontràrsatz; it. Proposizione sub-contrariã). Na lógica tradicional são assim chamadas, em suas inter-relações, a
proposição particular afirmativa e a particular negativa; p. ex..- "alguns homens correm" e
SUBCONTRARIEDADE
922
SUBLIME
"alguns homens não correm" (cf, p. ex., PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.13) (v. QUADRADO DOS OPOSTOS).
SUBCONTRARIEDADE (lat. Subcontrarie-tas, in. Subcontrary, fr. Subcontraire, ai. Sub-contràr, it.
Subcontrarietã). Relação de oposição entre proposições particulares. P. ex.: "Sócrates corre", "Sócrates não corre"
(PEDRO HISPANO, Summ. log., I. 27). Às vezes, a relação entre possível e não necessário (JUNGIUS, Lógica
hamburgensis, II, 12, 29).
SUBDIVISÃO. V. DIVISÃO.
SUBJETIVIDADE (in. Subjectivity, fr. Sub-jectivité, ai. Subjektivitüt; it. Soggettivita). 1. Caráter de todos os
fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos de consciência (v.), que o sujeito relaciona consigo mesmo e chama de
"meus".
2. Caráter do que é subjetivo no sentido de ser aparente, ilusório ou falível. Nesse sentido, Hegel situava na esfera da
subjetividade o de-ver-ser em geral, bem como os interesses e as metas do indivíduo. Dizia: "Uma vez que o
conteúdo dos interesses e das metas está presente apenas na esfera unilateral do subjetivo, e que a unilateralidade é
um limite, essa falta manifesta-se aò mesmo tempo como inquietação, como dor, como algo negativo" {Vorlesun-gen
über die Àsthetik, ed. Glockner, p. 141). Kierkegaard quis inverter o ponto de vista hegeliano, colocando a S. acima
da objetividade: "O erro consiste principalmente no fato de o universal, em que — segundo o hegelia-nismo —
consiste a verdade (e o individual torna-se verdade só se nele subsumido), é uma abstração: o Estado, etc. Ele não
chega a dizer que é a S. em sentido absoluto, e não chega à verdade, ou seja, ao princípio de que realmente, em última
instância, o individual está acima do universal" {Diário, X2 A 426).
SUBJETTVISMO (in. Subjectivism, fr. Sub-jectivisme, ai. Subjectivismus; it. Soggettivismó). Termo moderno que
designa a doutrina que reduz a realidade ou os valores a estados ou atos do sujeito (universal ou individual). Nesse
sentido, o idealismo é S. porque reduz a realidade das coisas a estados do sujeito (percepções ou representações);
analogamente, fala-se de S. moral e S. estético quando o bem, o mal, o belo ou o feio são reduzidos às preferências
individuais. Esse termo é empregado na maioria das vezes com intenções polêmicas, e por isso seu significado não é
muito preciso.
SUBJETIVO (in. Subjective, fr. Subjectif, ai. Subjektiu, it. Soggettivó). Aquilo que pertence ao sujeito ou tem caráter
de subjetividade. Esse adjetivo teve dois significados, correspondentes aos do termo sujeito, mas somente o segundo
ainda é usado. 1. A partir da escolástica do séc. XIII, o adjetivo significa simplesmente substancial. Ockham dizia:
"Pode-se dizer com probabilidade que o universal não é algo real que tenha existência substancial Cesse subjectivum) na alma ou fora da alma, mas que existe na alma num modo de ser representativo {in esse objectivó) que
corresponde àquilo que a coisa externa é na sua existência substancial" {InSent., I. d. 2, q. 8, E; cf. DUNS SCOT, Dean.,
17, 14). Este significado mantém-se em toda a Idade Média.
2. O significado de S. como pertencente ao eu ou ao sujeito do homem é encontrado pela primeira vez em alguns
escritores alemães do séc. XVIII (sobre eles cf. CASSIRER, Erkenntnis-problem, 1908, livro VII). Já Baumgarten
falava da "fé considerada subjetivamente", em oposição à "fé considerada objetivamente", que é o conjunto de
crenças {Mel, 1739, § 993). Algumas décadas depois, discutia-se a beleza ou a verdade: seriam subjetivas ou
objetivas? Entendia-se por objetiva "uma propriedade dos objetos", e por S. "uma representação da relação entre as
coisas e nós, ou seja, uma relação com quem as pensa" (J. E. Lossius, Physische Ursa-chen des Wahren, 1775, p. 65).
A mesma distinção encontra-se em Tetens {Philosophische Versuche, 1776,1, pp. 344, 560, etc). Foi desse uso do
adjetivo que Kant extraiu o novo significado atribuído ao substantivo sujeito.
SUBLIMAÇÃO (in. Sublimation; fr. Subli-mation; ai. Sublimierung; it. Sublimazione). Mecanismo psicológico de
defesa, que consiste em transformar os impulsos sexuais em atividades psíquicas superiores, especialmente na
produção artística. Esse mecanismo foi assim descrito por Freud: "As excitações excessivas que derivam de fontes
diversas da sexualidade são desviadas e utilizadas em outros domínios, de tal modo que as disposições que no início
eram perigosas produzirão um aumento apreciável nas aptidões e nas atividades psíquicas {Trois essais sur Ia théorie
de Ia se-xualité, trad. fr., p. 177).
SUBLIME (gr. üyoç; lat. Sublime; in. Sublime, ai. Erhaben; it. Sublime). 1. Forma lingüística, literária ou artística
que expresse sentimentos ou atitudes elevadas ou nobres. Essa
SUBLIME
923
SUBLIME
palavra começou a ser usada com tal sentido no séc. I a.C, tendo sido analisada no pequeno tratado Sobre o S. do
Pseudo Logino: "O S. é a ressonância da nobreza da alma, tanto que admiramos às vezes um pensamento singelo,
sem voz, por si, pela superioridade do sentimento. O silêncio de Ajax em Nekyia é maior e mais nobre que qualquer
discurso" (Desubi, IX). No mesmo significado, essa palavra foi usada pelos autores latinos, principalmente por
Quintiliano (Inst. or, VIII, 3, 18; VIII, 3, 74; XI, I, 3; XI, 3, 153, etc). Este é também o significado com que essa
palavra costuma ser usada; refere-se não só a expressões lingüísticas ou literárias, mas também a ações ou atitudes
consideradas nobres ou elevadas. Foi nesse mesmo sentido que Croce entendeu o S., definindo-o como "afirmação
subitânea de uma força moral poderosíssima", para expungi-lo da arte (Estética, 4a ed., 1912, p. 107).
2. Em sentido próprio e estrito, o S. é o prazer que provém da imitação (ou da contemplação) de uma situação
dolorosa. Com esse sentido, essa noção vem diretamente do conceito aristotélico de tragédia.- que deve provocar
"piedade e terror"; por isso, como diz Aristóteles, o poeta trágico "deve propiciar o prazer que nasce da piedade e do
terror por meio da imitação" (Poet. 14,1453 b 10). No século XVIII, essa noção de tragédia deu origem a um
problema que foi examinado por Hume num dos seus Ensaios morais epolíticos (1741): "Parece inexplicável o prazer
que os espectador de uma tragédia bem escrita aufere da dor, do terror, da angústia e de outras paixões que, em si
mesmas, são desagradáveis e penosas" (é assim que Hume inicia o ensaio intitulado Of Tra-gedy); sua análise serviu
de fundamento para a obra de Burke, que em Inquiry on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful (1756)
distinguiu claramente o S. do Belo: "O Belo e o S. são idéias de natureza diferente: um tem fundamento na dor e o
outro no prazer; embora possam depois afastar-se da verdadeira natureza de suas causas, estas continuarão sendo
diferentes uma da outra, e essa diferença nunca deverá ser esquecida por quem se propuser suscitar paixões" (Inquiry
on the Origin ofour Ideas of Sublime and Beautiful, 1756, III, 27). O terror, a dor em geral, as situações de perigo são
causas do S. (Ibid., IV, 5). O modo como essa causa pode produzir prazer (porque o S. é um prazer) é um problema
que Burke resolve da mesma maneira que Hume; este, por sua
vez, inspirara-se em Fontenelle (Réflexions sur Ia poétique, 36): o prazer provém do exercício, ou seja, do movimento
que a dor e o terror provocam no espírito quando isentos do real perigo de destruição. Nesse caso — como diz Burke
— o que nasce não é exatamente o prazer, mas "uma espécie de horror deleitável, de tranqüilidade matizada de terror;
este, porém, quando provém do instinto de conservação, é uma das paixões mais fortes. Isso é o S." (Ibid., IV, 7). Nas
Observações sobre o sentimento do belo e do S. (1764), Kant repetiu substancialmente os mesmos conceitos,
robustecendo-os com vasta exemplificação, de valor bastante duvidoso, pois continha entre outras coisas a
caracterização dos diferentes povos, com base em suas atitudes em relação ao S. e ao belo (Beobachtungen über das
Gefühl des Schõnen und Erhabenen, IV). Mas em Crítica do juízo, as idéias de Hume e Burke foram expressas com
maior rigor conceituai, ganhando forma clássica. Segundo Kant, o sentimento do S. tem dois componentes: 1 Q
apreensão de uma dimensão desproporcional às faculdades sensíveis do homem (S. matemático), ou de um poder
terrificante para essas mesmas faculdades (S. dinâmico); 2° o sentimento de conseguir reconhecer essa desproporção
ou ameaça, e, por isso, de ser superior a ambas. Kant diz: "A qualidade do sentimento do sublime é ser ele, em
relação a algum objeto, um sentimento de padecimento, representado ao mesmo tempo como final; isso é possível
porque nossa impotência revela a consciência de um poder ilimitado do mesmo sujeito, e o sentimento só pode julgar
esteticamente este último através da primeira" (Crít. dojuízo, § 27). Por isso, Kant define o S. como "o que agrada
imediatamente pela sua oposição ao interesse dos sentidos" (Ibid., § 29, Obs. geral); com isso entende que, ao advertir
a desproporção ou o perigo que o S. representa para a sua natureza sensível, o homem se dá conta de que, justamente
por adverti-la, não é escravo dessa natureza, mas livre perante ela. Friedrich Schiller só fez expor e esclarecer as
idéias de Kant ao afirmar que "se chama de S. o objeto para cuja representação nossa natureza física sente seus
próprios limites, ao mesmo tempo em que nossa natureza racional percebe sua própria superioridade, seu caráter
ilimitado: um objeto diante do qual somos fisicamente fracos mas moralmente superiores, graças às idéias"
(VomErhabenen, 1793). Schiller distinguiu o S. teórico,
SUBLIMINAR
924
SUBSISTIR
que está em conflito com as condições do conhecimento sensível, do 5. prático, que está em conflito com o instinto
de conservação; no S. prático distinguiu o S. prático contemplativo e o S. prático patético: v. PATÉTICO (cf.
PAREYSON, A estética do idealismo alemão, I, pp. 175 ss.). Hegel, por sua vez, expressou na oposição infi-nito-finito
o conflito típico do Sublime: O S. é a tentativa de exprimir o Infinito, sem encontrar, no reino das aparências, um
objeto que se preste a essa representação" (Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 483). Por isso, "as
formas por meio das quais aquilo que se manifesta é também abolido, de tal sorte que a manifestação dos conteúdos é
também a superação das expressões, é a sublimidade: portanto, esta não consiste" — como diz Kant — "na
subjetividade pura do sentimento e em seu poder de estar acima das idéias da razão, mas, ao contrário, baseia-se no
significado representativo, em virtude do qual se refere a uma Substância Absoluta" (Ibid., p. 484). Portanto, Hegel
viu no S. uma forma especial de arte, mais precisamente a arte simbólica. Nele, a dor e a situação de perigo que, para
a estética do séc. XVIII, representam a causa do S., foram substituídas pela inefabilidade e pela majestade da
Substância Infinita. Schopen-hauer, contudo, limitou-se a reafirmar a teoria tradicional e considerou que o S. existe
quando "os objetos, cujas formas significativas nos convidam à contemplação pura, têm uma atitude hostil para com a
vontade humana em geral (cuja objetividade se evidencia no corpo humano) e se opõem a ela ou a ameaçam com sua
força superior" (Die Welt, § 39). O último pensador a expor o conceito de S. nesses termos foi Santayana: "A
sugestão do terror faz que nos refugiemos em nós mesmos; aí, como numa ação de ricochete, intervém a consciência
da segurança ou da indiferença, e nós sentimos a emoção de distanciamento e libertação, em que consiste, realmente,
o S." ( The Sense of Beauty, 1896, p. 60).
SUBLIMINAR (in. Subliminal; fr. Subliminal; ai. Subliminal; it. Subliminale). O mesmo que inconsciente. Esse
termo foi divulgado por F. Myers (Human Personnlity and its Sur-vival ofBodily Death, 1903), que com ele designou
o vasto domínio que está sob o limiar da consciência, onde se vai acumulando aos poucos o material que depois é
utilizado na criação genial.
SUBORDINAÇÃO (lat. Subordinatio; in. Subordination; fr. Subordination; ai. Subordination; it. Subordinazionê).
Relação entre dois conceitos: um deles (o subordinado) faz parte da extensão do outro (o sobre-ordenadó)
(HAMILTON, Lectures of Logic, I2, p. 188; SIG-WART, Logik, I, 2, pp. 343 ss.; v. HUSSERL, Ideen, I, § 13).
SUBORDINACIONISMO (in. Subordina-tionism; fr. Subordinatianisme-, ai. Subordi-natianismus, it.
Subordinazionismd). Doutrina trinitária dos Padres gregos do séc. II, em particular de Orígenes: afirma que o Filho
tem natureza subordinada à do Pai. Assim, segundo Orígenes, a eternidade do Filho depende da vontade do Pai: Deus
é a vida, e o Filho recebe a vida do Pai. O Pai é Deus-Pai, o Filho é Deus (Injohann., II, 1-2).
SUB-REPTÍCIO (lat. Surreptitius; in. Sur-reptitious; fr. Subreptice; ai. Erschlichen; it. Surrettiziò). No sentido do
termo latino, o que se possui, conquista ou faz clandestinamente ou sem direito. Em filosofia, esse termo é usado
especialmente para indicar um pressuposto ou uma hipótese de que se faz uso num raciocínio, sem assumir ou
declarar explicitamente. Foi nesse sentido que Kant denominou de sub-repções das sensações ("Subreptione der
Empfindungen", Crít. R. Pura, § 6) as qualidades sensíveis atribuídas aos objetos empíricos com base nas sensações. .
SUBSISTIR (lat. Subsistere, in. To Subsist; fr. Subsister, ai. Subsistiren; it. Sussisteré). Existir como substância, ou
existir independentemente do espírito ou do sujeito pensante. No primeiro sentido, esse termo (que no uso latino
comum significa persistir ou durar) foi introduzido por Boécio (Phil. cons., III, 11), passando a ser usado desse modo
na tradição escolástica (GILBERTO DELA PORRE, In Boethi de trinitate, P. L. 64e, 1281; S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 29, a. 2).
É usado com o mesmo significado pelos escritores modernos, como p. ex. Descartes (IVRép., I), Arnauld {Log., 1, 2)
e Kant, que chama de "categoria da inerência e da subsistência" a categoria da substância (Crít. R. Pura, § 10).
No segundo sentido, de existência que não depende do espírito ou do sujeito pensante, esse termo foi usado por
Berkeley (Dialogues between Hylas and Philonous, I, Works, ed. Jessop, II, p. 199, r.42) e por Kant (Crít. R. Pura, §
6, [B52, A361); foi retomado por Peirce, que com ele designou o ser das relações ("A relação por si é um ens rationis
e uma mera pos-
SUBSTÂNCIA
925
SUBSTÂNCIA
sibilidade lógica; mas a sua subsistência tem natureza de fato" {Coll. Pap., 3-571, o texto é de 1903), e estendido por
Russell {Problems of Philosophy, 1912, cap. 9) ao modo de ser dos universais e pelos neo-realistas americanos a
todas as entidades neutras, constituintes do mundo, que, com sua agregação, podem formar a consciência ou as coisas
{The New Realista, 1912). Este segundo significado é ainda bastante difundido na filosofia contemporânea.
SUBSTÂNCIA (gr. oúaía; lat. Substantia-, in. Substance, fr. Substance, ai. Substanz; it. Sostanzá). Esse termo teve
dois significados fundamentais: 1Q de estrutura necessária; 2B de conexão constante. O primeiro pertence à metafísica
tradicional; o segundo, ao empi-rismo.
1B No primeiro significado, é S.: à) o que é necessariamente aquilo que é; b) o que existe necessariamente. Ambas
estas determinações foram expostas na metafísica aristotélica, que gira inteiramente em torno do conceito de S. A
primeira determinação é designada por Aristóteles com a expressão lò xí nv eivai {quodquid erat esse), que pode ser
traduzida como essência necessária; com efeito, ao pé da letra, essa expressão significa aquilo que o ser era, onde o
imperfeito "era" indica a continuidade ou estabilidade do ser, seu ser desde sempre e para sempre. A essência
necessária é expressa pela definição (v.) e é objeto do conhecimento científico (v. CIÊNCIA). A segunda determinação
relaciona-se com a primeira: é S. o que existe necessariamente. Aristóteles diz: "Temos ciência das coisas particulares
só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o
bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência
não é uno; e assim com todas as outras coisas" {Met., VII, 6, 1031 b 6). Aristóteles aduz esse argumento contra a
separação que Platão faz entre a idéia e as coisas, mas, obviamente, esse argumento significa que tudo é o que é em
virtude da essência necessária (que é a sua causa intrínseca ou extrínseca) e que, portanto, tudo o que há de real ou de
cognoscível nas coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. Assim, para Aristóteles, a S.
constitui a estrutura necessária do ser em sua concatena-ção causai, porque todas as espécies de causas são
determinações da S. (v. CAUSALIDADE). Precisamente neste sentido, Aristóteles afirma que
a forma das coisas é eterna e não pode ser produzida nem destruída {Met., VII, 8; VIII, 3), pois a forma é a essência
necessária das coisas compostas. Por outro lado, Aristóteles não se preocupou muito em enumerar todos os modos de
ser da substância. Começa dizendo que, comumente, se fala de S. em quatro sentidos, senão em mais, a saber: como
essência neces sária, como universal, como espécie e como sujeito {Met., VII, 3, 1028 a 32). Mas a S. como universal
ou como espécie é excluída pela crítica ao platonismo, ou — o que dá no mesmo — é chamada por Aristóteles de
substância segunda, em confronto com a S. primeira, que é a autêntica {Cal, 5, 2 a 13). Restam, portanto, apenas a S.
como essência necessária e a S. como sujeito (v.). Neste último significado, a S. pode ser a forma, a matéria ou o
composto de ambas {Ibid., 1029 a 2). Em seus dois significados legítimos, a S. exprime o significado fundamental do
conceito do ser e, portanto, constitui o objeto da metafísica. "Aquilo que há muito tempo vimos procurando e ainda
procuramos, aquilo que sempre será um problema para nós (o que é o ser?) significa isto: o que é a S." {Met., VII, 1,
1028 b 2). Por outro lado, a estrutura substancial do ser é o fundamento do saber científico. A essência necessária das
coisas que não têm causa fora de si é intuída diretamente pelo intelecto e constitui os princípios primeiros que
fundamentam a demonstração, ao passo que a essência necessária das coisas que têm causa fora de si pode ser
revelada, senão demonstrada, pela própria demonstração. Em todos os casos, a necessidade da demonstração é a
própria necessidade da S. {An.post, II, 9, 43 b 21; cf. toda a discussão precedente). A história posterior do conceito de
S. repete o caráter que já havia servido a Aristóteles para defini-lo: a necessidade. Tal caráter é empregado
explicitamente por Plotino para a definição do termo {Enn., I., VI, 3, 4), mas é a Escolástica árabe, em especial
Avicena, que mais insiste nele: "Dizemos que tudo o que é tem uma S. {essentid) graças à qual é o que é, e graças à
qual é a necessidade disso e seu ser" {Logic, I). S. Tomás, que, com as equivalências lingüísticas estabelecidas em De
ente et essentia, pusera fim a um longo período de confusões termi-nológicas (v. ESSÊNCIA), reduz a S. (interpretando
corretamente os textos de Aristóteles) à qüi-didade (essência necessária) e ao sujeito {S. Th., I. q. 29, a. 2). Descartes
só fazia expressar o mesmo caráter de necessidade ao afirmar
SUBSTÂNCIA
926
SUBSTÂNCIA
que "quando concebemos a S., concebemos uma coisa que existe de tal modo que, para existir, não tem necessidade
de outra coisa senão de si mesma" {Princ. phil, I, 51). Spinoza observava com razão que essa é a própria definição da
S. infinita {R. cartesi principia phi-losophiae, 1663), e a adotava para definir esta última: "Entendo por S. aquilo que
é em si e se concebe por si mesmo, ou seja, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa pela qual deva
ser formado" {Et, I, prop. III). A definição proposta por Wolff ("S. é o sujeito perdurável e modificável") é por ele
mesmo considerada idêntica à definição tradicional e à cartesiana {Ont, § 768, 772). A definição tradicional é
simplesmente repetida por Baum-garten: "S. éo ente subsistente por si" {Met, § 191). Leibniz conseguiu expressar em
termos modernos o conceito tradicional de S.: "A natureza de uma S. individual ou de um ser completo é ter uma
noção tão perfeita que com ela seja possível abranger e deduzir todos os predicados do sujeito aos quais essa noção é
atribuída" {Disc. de mét., 1686, § 8). O próprio Leibniz aproximava esta noção da noção esco-lástica tradicional de
forma substancial {Ibid., § 11), mas, na realidade, era a própria noção de essência necessária, que já Aristóteles
concebia como o princípio do qual podem ser deduzidas todas as determinações de um ente.
Nada muda quando Kant começa a considerar a S. como categoria mental, pois a função de tal categoria, segundo ele,
é constituir os próprios objetos da experiência. Mas, com esta transformação o conceito não muda. A S. é a
"necessidade interna de permanência dos fenômenos", e "para que o que se costuma chamar de S. no fenômeno possa
ser substrato de qualquer determinação temporal, é necessário que nele qualquer existência, no passado ou no futuro,
possa ser determinada de uma só e única maneira" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. 11, seç. III, 3). Em outras
palavras, a permanência que constitui a S. é necessidade: é só poder ser de uma única maneira. Neste mesmo sentido,
Fichte chamava o eu de substância: "Na medida em que se considera que o eu abrange todo o círculo absolutamente
determinado de todas as realidades, ele é Substância.(...) S. é toda a reciprocidade pensada em geral; acidente é
alguma coisa determinada que varia com alguma outra coisa variável" {Wis-senschaftslehre, 1794, II, § 4, D; trad. it.,
pp. 100-101). No mesmo sentido, Hegel afirmava ainda
que o conceito é S.: "O conceito é a verdade da S., e como o modo determinado de relação da S. é a necessidade, a
liberdade mostra-se como a verdade da necessidade e como o modo de relação do conceito" (Wissenschaft der Logik,
ed. Glockner, II, p. 7; trad. it., III, p. 10; cf. Ene, § 150, 152). A noção de necessidade continuou a caracterizar a idéia
de S. em todos os filósofos que a empregam. Rosmini incluía na idéia de S. em universal: 1 B o pensamento da
existência atual; 2Q o pensamento do indivíduo que existe; 3e o pensamento "das determinações que ele deve ter para
existir, isto é, o pensamento da necessidade de que ele seja completo e tenha tudo o que lhe é necessário para existir"
{Nuovo saggio, 589). Pode-se dizer que até Wittgenstein emprega esse termo neste sentido tradicional: "S. é aquilo
que existe independentemente do que acontece" {Tractatus, 2.024).
2a O segundo conceito de S., como conexão constante entre determinações simultaneamente dadas pela experiência, é
o produto da crítica empirista ao conceito tradicional. Essa crítica visa o caráter fundamental tradicionalmente
atribuído à S., a sua necessidade, porquanto tal necessidade não é resultado da experiência. A incognoscibilidade da
S. em si mesma, por não ser objeto da experiência e só se dar na experiência como coleção de qualidades, já fora
sustentada por Ockham no séc. XIV {In Sent, I, d. 2, q. 2; Quodl, III, 6), mas coube a Locke difundir esse ponto de
vista no mundo moderno. Neste sentido, a S. é também chamada por ele de essência real ou forma substancial, e sua
crítica encontra-se no cap. 6 do Livro III, mais do que no famoso capítulo 23 do Livro II: "No conhecimento e na
distinção das S., nossas faculdades não vão além de uma coleção de idéias sensíveis que observamos nelas; esta,
mesmo que criada com a maior diligência e exatidão de que sejamos capazes, estará sempre distante da verdadeira
constituição interna de que tais qualidades derivam. (...) Quando nos ocorre examinar as pedras sobre as quais
caminhamos ou o ferro que manejamos todos os dias, logo descobrimos que não sabemos como são feitos nem
sabemos explicar as diversas qualidades que descobrimos neles. É evidente que a constituição interna de que
dependem suas propriedades nos é desconhecida" {Ensaio, III, 6, 9). Aqui Locke identifica com justeza a S. com a
"constituição interna" da qual deveriam
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SUBSTRATO
derivar as qualidades da coisa: derivar no sentido de que deveriam ser deduzíveis dessa constituição, de
tal modo que pudessem ser explicadas e compreendidas em virtude dela. Esta era na realidade a S.
aristotélica como essência necessária das coisas. Declarando-a incognoscível, Locke reduz a S. a uma
simples "coleção de idéias", abandonando a noção de necessidade em favor da noção de simples
coexistência de fato das determinações percebidas. Assim, em Locke, o conceito de S. sofre uma
transformação análoga à que o conceito de causa sofrerá nas mãos de Hume: de necessidade racional
passa a ser uniformidade factual. A S. deixa de ser necessidade racional, em virtude da qual as
determinações de um ente estariam todas racionalmente interligadas e seriam deriváveis da determinação
fundamental que constitui a essência do ente, e passa a ser um conjunto de determinações que de fato
estão juntas, mas cuja necessidade não pode ser demonstrada. Hume expressava bem essa nova idéia de S.
ao dizer que "as qualidades particulares que formam uma S. costumam referir-se a algo desconhecido a
que elas supostamente inerem, ou, deixando de lado essa ficção, são consideradas estreita e
inseparavelmente interligadas por relações de continuidade e de causação" (Treatise, I, 1, 6; ed. SelbyBigge, p. 16). A conexão de contigüidade e causação tomou o lugar da necessidade racional. Formulação
ainda mais rigorosa do mesmo conceito foi proposta por Mach: "A S. não passa de persistência da
interconexão: persistência que nunca é absoluta ou rigorosa (Analyse der Emp/indungen, XIV, § 14; trad.
it., p. 382). No mesmo sentido, Dewey escreveu: "A condição, a única condição para que possa haver
subs-tancialidade, é que a interdependência entre certas qualificações seja um sinal seguro de que, em se
verificando certas interações, se-guir-se-ão certos resultados" (Logic, cap. VII; trad. it., p. 187).
A idéia de S., no seu significado tradicional de necessidade, e a idéia correlata de causa constituem os
eixos de qualquer metafísica (v.). Portanto, são aceitas integralmente por qualquer metafísica de cunho
tradicional, ao passo que as correntes empiristas tendem a ver no conceito de S. a interconexão que Hume
já entrevira, ou tendem até a desprezá-la, opon-do-lhe a idéia de função, vale dizer, de relação. Esta
última passagem já foi realizada
por Mach, porquanto a "persistência da interconexão" nada mais é que a uniformidade de certas relações.
SUBSTANCIAL (in. Substantial; fr. Substan-tiel; ai. Substantiell; it. Sostanzialé). 1. O que constitui
uma substância ou pertence a uma substância: que é essencial ou que existe necessariamente.
2. O que é, num sentido qualquer, importante ou decisivo: p. ex., "uma contribuição substancial".
SUBSTANCIALIDADE(in. Substantiality,íx. Substantialité, ai. Substantialitãt; it. Sostanzia-litã). O
modo de ser da substância (no sentido 1). Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant chamou de
"paralogismo da S." o fato de se atribuir ao "eupenso" o modo de ser da substância CCrít. R. Pura, A,
349). Depois disso, Hegel preferiu empregar esse termo com o simples significado de substância em geral
(cf. Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, 1, p. 697).
SUBSTANCIALISMO (in. Substantialism- fr. Substantialisme, ai. Substantialismus-, it. Sostanzialismó). Termo com que a doutrina metafísica da substância foi às vezes designada pelos que a
combatiam (Renouvier, Hamelin e outros).
SUBSTITUIÇÃO (in. Substitution, fr. Subs-titution, ai. Unterschiebung; it. Sostituzioné). Uma das
operações fundamentais do pensamento em todos os campos. Leibniz definiu a igualdade e a identidade
(v.) como possibilidades de substituição. A matemática e a lógica podem ser consideradas sistemas de
regras de substituições na medida em que a fórmula a = b pode ser considerada uma regra segundo a qual
a, onde quer que apareça, pode ser substituído por b (F. WAISMANN, Einfürung in das ma-thematische
Denken, 1936, cap. IX, C; trad. it., p. 165).
Mais especificamente, fala-se em lógica de regra de S. como uma das regras primitivas fundamentais de
inferência, segundo a qual é permitido inferir de uma fórmula A uma outra fórmula de A substituindo uma
variável em A por uma fórmula B (cf. A. CHURCH, Intro-duction to Mathematical Logic, § 10; CARNAP,
The Logical Syntax of Language, § 6; Meaning and Necessity, § 11; QUINE, Methods of Logic, § 6, etc).
SUBSTRATO (lat. Substratum, in. Substra-tum; fr. Substrat; it. Sostrató). Esse termo foi introduzido
pela escolástica do séc. XTV para in-
SUBSUNÇÃO
928
SUICÍDIO
dicar o indivíduo real (substratum singulare. PEDRO AURÉOLO, In Sent., 1. d. 3S, q. 4, a. 1), sendo depois retomado
por Locke para designar aquilo que era tradicionalmente chamado de subjectum ou suppositum, ou seja, o sujeito ou a
substância como sujeito {Ensaio, 11, 23, 1). Aceito por Berkeley (Principies ofHuman Knowledge, I, § 7) e por
Leibniz (Nouv. ess., II, 23, 1), esse termo passou a ser muito usado e acabou prevalecendo, não sem riscos de
confusão (v. SUJEITO).
SUBSUNÇÃO (lat. Subsumptio; in. Subsumption; fr. Subsumption; ai. Subsumption; it. Sussunzione). Em sentido
próprio, a assunção da premissa menor do silogismo, chamada de hipolema por Hamilton, para reservar o termo lema
(v.) à premissa maior (Lectures on Logic, I2, p. 283; cf. WOLFF, Log., § 361). Kant falou de "S. de um objeto sob um
conceito" (Crít. R. Pura, Anal. dos Princ, cap. I), e em sentido idêntico Husserl observava que "a S. de um indivíduo,
em geral de um este aqui, sob uma essência não deve ser confundida com a subordinação de uma essência a uma
espécie ou a um gênero superiores" (Ideen, I, § 13).
SUBTRAÇÃO (in. Subtraction; fr. Sous-traction-, ai. Subtraction; it. Sottrazioné). A noção de S. lógica foi
introduzida por Boole da seguinte maneira: "Se x representa uma classe de objetos, então 1 - x representa a classe
contrária ou suplementar de objetos, que contém todos os objetos que não estão na classe x" (Laws of Thought, 1854,
cap. III, Prop. III, Dover publ., p. 48; v. também PEIRCE, Coll. Pap., 3, 5, 9, 18, etc). Na lógica posterior essa noção
desapareceu.
SUCESSÃO (in. Succession; fr. Succession; ai. Folge, it. Successioné). 1. O mesmo que série no significado 2.
2. Uma série temporal; p. ex., "uma S. de eventos".
SUCESSO (in. Success; fr. Succès; ai. Erfolg; it. Successó). Algumas vezes o instrumentalismo americano foi
chamado de "Filosofia do S.", no sentido de ser uma filosofia que considera o S. a medida dos valores. Na realidade,
o instrumentalismo também acentuou o caráter sempre relativo e provisório do S. Dewey disse: "O S. nunca é final ou
terminal. (...) O mundo não pára quando a pessoa que obteve S. conseguiu o que quis, nem ela mesma pára, e o tipo
de S. que ela obteve, assim como sua atitude em relação a ele, é um fator daquilo que advirá" (Human Nature and
Conduct, p. 254).
SUFICIENTE, RAZÃO. V. FUNDAMENTO.
SUFISMO (in. Sufism; fr. Sufisme; ai. Sufis-mus; it. Sufismó). Misticismo árabe e persa (assim chamado porque os
mantos de seus adeptos eram feitos de pêlos de camelo) que se desenvolveu a partir do séc. VIII por influência do
cristianismo e culminou no neoplato-nismo de Algazali (séc. XI) (cf. J. A. ARBERRY, Sufism, 1950).
SUGESTÃO (in. Suggestion; fr. Suggestion; ai. Suggestion; it. Suggestioné). 1. Em geral, qualquer tipo ou forma de
associação psíquica. Peirce, p. ex., diz: "O modo de S. com que a hipótese sugere os fatos na indução é por contigüidadé, conhecimento habitual de que as condições das hipóteses podem ser realizadas em certos modos
experimentais" (Coll. Pap., 7.218) (v. ASSOCIAÇÃO).
2. Qualquer influência exercida por uma pessoa sobre o comportamento de outra pessoa. Nesse sentido, esse conceito
pertence à psicologia.
SUICÍDIO (gr. è^aycoYií; in. Suicide; fr. Suicide, ai. Selbstmord; it. Suicídio). Os filósofos condenaram o S. pelos
seguintes motivos:
ls Porque é contrário à vontade divina. Platão afirma que "não é irracional que alguém não possa matar-se antes que a
divindade lhe comande essa necessidade" (Fed., 62 c). Este é o ponto de vista constantemente afirmado pelos
escritores cristãos (v. para todos eles: S. AGOSTINHO, Deciv. Dei, I, 20; S. TOMÁS, S. Th., II, 2, q. 64, a. 5). A
afirmação de que o S. é contrário à ordem do destino (PLOTINO, Enn., I, 9) ou à lei natural (S. TOMÁS, S. Th., II, 2, q.
64, a. 5) não é diferente, visto que o destino ou a lei natural são manifestações da vontade divina. A esse argumento
Hume replicava que nada escapa à vontade divina, nem a morte, natural ou voluntária, e que por isso o S. não pode
ser considerado contrário à vontade divina ou à ordem das coisas (Of Suicide, em Essays, ed. Green e Grose, II, p.
412).
2Q Porque o S. não chega a separar completamente a alma do corpo. Este é o argumento aduzido por Plotino contra o
S.; segundo ele, "quando o corpo é coagido por violência a separar-se da alma, não é ele que permite a partida da
alma, mas foi uma decisão da paixão, seja ela tédio, dor ou ira" (Enn., I, 9). Esta também é a razão aduzida por
Schopenhauer, segundo quem "o S., longe de ser negação da vontade, é um ato de forte afirmação da vonta-
SUICÍDIO
929
SUJEITO
de" porque "o suicida quer a vida e só está descontente com as condições que lhe couberam" (Die Welt, 1, § 69).
3a Porque é transgressão de um dever para consigo mesmo, pois, como diz Kant, "o homem tem a obrigação de
conservar a vida unicamente pelo fato de ser uma pessoa" iMet. der Sitten, II, parte I, § 6).
4a Porque é um ato de covardia. Fichte observava a propósito que também pode ser considerado um ato de coragem.
Se, de fato, falta ao suicida coragem "para suportar uma vida que se tornou insuportável", o S. executado com fria
premeditação é a expressão do domínio da razão sobre a natureza, que é o instinto de autoconservaçâo. E concluía:
"Se confrontado com o homem virtuoso, o suicida é um covarde; se confrontado com o miserável que se submete à
desonra e à escravidão para prolongar por alguns anos o sentimento mesquinho de existir, é um herói" (Sittenlehre,
1798, em Werke, IV, p. 268).
5a Porque é injusto para com a comunidade à qual o suicida pertence. Esta é a razão aduzida por Aristóteles (Et. nic,
V, 11, 11 38a 9). A esse argumento Hume objetava que as obrigações do homem e da sociedade são mútuas; assim, a
morte voluntária não anula só as obrigações do homem para com a sociedade, mas também as da sociedade para com
ele (Of Suicide, em Essays, cit., p. 413).
Por outro lado, os filósofos consideraram o S. lícito ou necessário pelos seguintes motivos: Ia Porque pode ser um
dever renunciar à vida quando continuar vivendo impossibilita o cumprimento do dever. Era assim que pensavam os
estóicos, cuja doutrina Cícero expõe da seguinte maneira: "Quem possui em maior número as coisas segundo a
natureza tem o dever de continuar vivendo; quem, ao contrário, tem ou se acredita destinado a ter em maior número
as coisas contrárias, tem o dever de sair da vida. Donde se segue que o sábio às vezes tem o dever de sair da vida
mesmo sendo feliz, e o tolo, de continuar vivendo mesmo sendo infeliz" (De finibus, III, 18, 60; v. SÊNECA, Ep., 12).
2a Porque é uma afirmação da liberdade do homem contra a necessidade. Epicuro dizia: "É uma desventura viver na
necessidade, mas viver na necessidade não é em absoluto necessário"; e Sêneca comentava: "Agradecemos a Deus
que ninguém possa ser retido em vida contra sua própria vontade: é possível esmagar a própria necessidade" (Ep., 12). A exaltação da morte por Zaratustra tem o mesmo motivo: "Louvo minha morte,
a morte livre, que vem porque eu quero. E quando vou querer? Quem tem uma meta e um herdeiro quer a morte na
hora certa, pela sua meta e por seu herdeiro" (Also sprach Zarathustra, I, Da livre morte).
3a Porque pode ser a saída para uma situação insustentável e o único modo de salvar a dignidade e a liberdade. Desse
ponto de vista Hume afirmava que "o S. está de acordo com o interesse e o dever pessoal: isso não pode ser
questionado por quem reconhece que a idade, a doença e a infelicidade podem transformar a vida num peso
insustentável e torná-la pior que o aniquilamento" (Of Suicide, em Essays, cit., p. 414). Na filosofia contemporânea,
Jas-pers aduziu o mesmo argumento em favor do S. (Phil, 11, pp. 303 ss.), e Sartre escreveu: "Se estou mobilizado
numa guerra, essa é a minha guerra: ela é à minha imagem e eu a mereço. Mereço antes de tudo porque podia ter-me
subtraído dela com o S. ou com a deserção: essas possibilidades extremas devem sempre ser levadas em conta quando
é preciso enfrentar alguma situação" (Vêtre et le néant, p. 639).
SUI GENERIS. Expressão usada em frases escolásticas como: "Todas as coisas são medidas por alguma coisa do
mesmo gênero", como p. ex. o comprimento pelo comprimento, o número pelo número, etc. Essa frase pode ser
considerada uma premissa para se afirmar que, pelo fato de ser Deus a medida de todas as substâncias, ele pertence ao
gênero das substâncias. Mas a doutrina escolástica a propósito afirma, ao contrário, que Deus não está em nenhum
gênero, conquanto seja princípio do gênero das substâncias e de todos os outros gêneros (v. S. TOMÁS, 5. Th., I., q. 3,
a. 5; Contra Gent., I, 25).
SUJEITO (gr. tmoiceíuEvov; lat. Subjectum, Suppositum-, in. Subject; fr. Sujet; ai. Subjekt; it. Soggettó). Esse termo
teve dois significados fundamentais: Ia aquilo de que se fala ou a que se atribuem qualidades ou determinações ou a
que são inerentes qualidades ou determinações; 2a o eu, o espírito ou a consciência, como princípio determinante do
mundo do conhecimento ou da ação, ou ao menos como capacidade de iniciativa em tal mundo. Ambos esses
significados se mantêm no uso corrente do termo: o primeiro na terminologia gramatical e no conceito de S. como
tema ou assunto do dis-
SUJEITO
930
SUJEITO
curso; o segundo no conceito de S. como capacidade autônoma de relações ou de iniciativas, capacidade
que é contraposta ao simples ser "objeto" ou parte passiva de tais relações.
Ia O primeiro significado pertence à tradição filosófica antiga. Aparece em Platão (Prot., 349 b) e é
definido por Aristóteles como um dos modos da substância. Aristóteles diz: "S. é aquilo de que se pode
dizer qualquer coisa, mas que por sua vez não pode ser dito de nada" (Met., VII, 3,1028 b 36). Neste
sentido, o
5. pode ser entendido: d) como a matéria de que se compõe uma coisa, p. ex. o bronze; ti) como a forma
da coisa, como p. ex. o desenho de uma estátua; c) como a união de matéria e forma, como p. ex. a estátua
(Ibid., 1029 a 1). Essas determinações pertencem estritamente à metafísica aristotélica. Mas o que importa
é o sentido geral do termo: S. é o objeto real ao qual são inerentes ou ao qual se referem as determinações
predicáveis (qualidade, quantidade, etc). Este é também o conceito de sujeito dos estóicos, que o
consideraram como objeto externo ao qual se refere o significado, ou seja, como a denotação do
significado (SEXTO EMPÍRICO, Adv. tnath., VIII, 12; cf. SIGNIFICADO). Os epicuristas empregaram esse
termo com o mesmo sentido (EPICURO, Epístola, I, pp. 12, 24, Uesener). É com essa tradição que se
relaciona o uso gramatical do termo, que começou no séc. II d.C; Apuleio já chamava de subjectiva ou
subdita a parte do discurso que os antigos chamavam de nome, e de declarativa a parte que os antigos
chamavam de verbo (De dogmate Platonis, III, p. 30, 30; cf. MARCIANO CAPELA, De nuptiis, IV, 393).
Esse significado de "S." permanece inalterado através de longa tradição. Os escritores medievais adotam
as determinações de Aristóteles: chamam a substância de subjectum ou suppositum porquanto a ela
inerem as qualidades ou as outras determinações (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q. 29, a. 2; DUNS SCOT, Op. Ox,
II, d. 3, q.
6, n. 8; OCKHAM, In Sent, I, d. 2, q. 8, E). O significado desse termo não muda quando por S. é entendida
a alma como substância à qual inerem determinados caracteres ou da qual emanam determinadas
atividades. Hobbes diz: "O S. da sensação é o próprio senciente, ou seja, o animal" (De corp., 25, 3).
Locke chama o sujeito neste sentido de substratum ou suporte (Ensaio, II, 23, 1-2). É com esse mesmo
sentido que Hume se vale desse termo: "Eis que aparece Spinoza a dizer-me que só há modificações e que o S. ao qual elas inerem é simples, não composto e indivisível" (Treatise, 1, IV, 5, ed. SelbyBigge, p. 242). Por outro lado, esse mesmo significado mantém-se até mesmo no racionalismo alemão.
Leibniz pretende conservar o significado tradicional de S. (Nouv. ess., II, 23, 2) e, ao falar de disposições
"que vêm asubjecto, ou da própria alma", está falando de disposições que vêm da própria substância da
alma (Remarques sur le Livre de 1'origine du mal, em Op., ed. Erdmann, p. 645). Por sua vez, Wolff
define o S. como "o ente, enquanto dotado de essência e capaz de outras coisas além dela" (Ont., § 7 11).
No mesmo sentido, Baumgarten diz que o S. é o ente, determinado na matéria de que é constituído (Met.,
§ 344). Aliás, o próprio Kant recorre a essa noção tradicional de sujeito. Diz: "Há tempos observou-se
que, em todas as substâncias, o S. propriamente dito, aquilo que fica depois de retirados os acidentes
(como predicados), portanto o verdadeiro elemento substancial, nos é desconhecido" (Prol, § 46).
2Q O segundo significado desse termo, como o eu, a consciência ou a capacidade de iniciativa em geral,
teve início com Kant, que certamente teve em mente o significado que a oposição entre subjetivo e
objetivo assumira em alguns escritores alemães, seus contemporâneos (v. SUBJETIVO). Para Kant, S. é o
eu penso da consciência ou autoconsciência que determina e condiciona toda atividade cognos-citiva:
"Em todos os juízos sou sempre o S. determinante da relação que constitui o juízo". "Para o eu, para o ele
ou para aquilo (a coisa) que pensa, a representação é apenas de S. transcendental dos pensamentos, = x
que só é conhecido através dos pensamentos que são seus predicados e dos quais, à parte estes, não
podemos ter o menor conceito" (Crít. R. Pura, Dial. transcendental, II, cap. 1). Nessas palavras de Kant
pode-se reconhecer a passagem do velho para o novo significado de sujeito. O eu é S. na medida em que
seus pensamentos lhe são inerentes como predicados: este é ainda o significado tradicional do termo. Mas
o eu é sujeito na medida em que determina a união entre S. e predicado nos juízos, na medida em que é
atividade sintética ou judicante, espontaneidade cognitiva, portanto consciência, autoconsciência ou
apercepção; e este é o novo significado de sujeito.
A tradição pós-kantiana atém-se exclusivamente a este segundo significado. Para Fichte,
SUJEITO
931
SUJEITO
o S. é o Eu, que é "S. absoluto, não representado nem representável", que "não tem nada em comum com
os seres da natureza" (Wissens-chaftslehre, 1794, § 3, d). Segundo Fichte, a diferença entre a Substância
de Spinoza e o Eu Absoluto consiste no fato de que Spinoza não concebeu a substância como S. (Ibid.,
trad. it., pp. 78 ss.). Schelling fala no mesmo sentido de identidade ou unidade do S. e de objeto na
Autoconsciência Absoluta (System des transzen-dentalenIdealismus, 1800,1, cap. II; trad. it., p. 34). Por
sua vez, Hegel dizia: "Tudo depende de se entender e expressar o Verdadeiro não somente como
Substância, mas de maneira igualmente decidida como S. (...) A substância viva é o ser, que na verdade é
S. ou — o que dá na mesma — é o ser que na verdade é efetivo, mas somente na medida em que a
substância é o movimento de pôr-se a si mesma ou é a mediação do vir a ser outra consigo mesma"
(Phánomen. des Geistes, Pref., II, 1). No mesmo sentido, Hegel afirma que a Idéia Absoluta é unidade de
S. e objeto (Ene, § 214). E acrescenta: "A unidade da idéia é subjetividade, pensamento, infinidade, e
portanto deve ser distinguida essencialmente da idéia como substância do mesmo modo como se deve
fazer a distinção entre essa subjetividade domi-nadora, esse pensamento, essa infinidade e a subjetividade
unilateral, o pensamento unilateral, a infinidade unilateral, à qual ela se rebaixa ao julgar e definir" (Ene,
§ 215). Logo, a subjetividade como "subjetividade infinita", ou seja, não intelectual, prevalece sobre a
objetividade na "unidade S.-objeto" que é a Idéia ou o Absoluto. Mas Hegel também viu no S. como tal a
capacidade de iniciativa ou o princípio da atividade em geral. "O S. é a atividade da satisfação dos
impulsos, da racionalidade formal, vale dizer, é a atividade que traduz a subjetividade do conteúdo (que
sob esse aspecto é fim) na objetividade em que o S. se conjuga consigo mesmo" (Ene, § 475). Assim
como Fichte, Schopenhauer insistia na impossibilidade de representar o S.: "Aquele que tudo conhece e
não é conhecido por ninguém é o Sujeito. É ele, pois, que tem o mundo em si; é a condição universal e
sempre pressuposta de qualquer fenômeno, de qualquer objeto: porque o que existe, existe para o sujeito"
(Die Welt, I, § 2). É quase supérfluo observar como o idealismo contemporâneo abusou dessas noções,
especialmente o idealismo italiano. Gentile dizia: "A realidade espiritual objeto do
nosso conhecimento não é espírito e fato espiritual, mas pura e simplesmente espírito, como sujeito.
Como tal, ela só é conhecida na medida em que sua objetividade se resolve na atividade real do S. que a
conhece" (Teoriagenerale dello spirito, 1920, 11, § 3). Croce emprega a palavra S. para indicar o Espírito
do Mundo, a Razão ou a Humanidade, que é o princípio criativo da história (Storiografia e idealitã
morale, 1950, p. 21).
Ficaram poucos sinais dessa pesada mitologia no restante da filosofia contemporânea. Por um lado, as
correntes do neocriticismo(v), ao insistirem no aspecto lógico-objetivo do conhecimento, relegaram para
segundo plano a função do sujeito; aliás, evitaram empregar seu conceito e o próprio termo em suas
análises explicativas. Por outro lado, o S. como eu (ou o eu como S.) simplesmente desaparece em
algumas filosofias contemporâneas porque desaparece a função diretiva e construtiva que ele deveria
exercer. É o que acontece, p. ex., na filosofia de Mach, em que o eu se torna simplesmente um conjunto
de sensações, de elementos cognoscitivos, e não tem mais função como S. (Analyse derEmpfindungen,
1900,1, 12). Em sentido análogo, Wittgenstein diz que o S. "não existe. Se eu escrevesse um livro 'O
mundo como encontrei', deveria falar também de meu corpo, e dizer quais as partes dele que obedecem à
minha vontade e quais não, etc, o que seria um método de isolar o sujeito ou de mostrar que, em sentido
importante, não há sujeito. Com efeito, não se poderia falar dele sozinho nesse livro" (Tractatus, 1922,
5.631). O S. não existe porque "o S. não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo" (Ibid., 5.632),
no sentido de que, assim como o olho, vê tudo mas não se vê a si mesmo, e portanto se resolve
inteiramente nos objetos vistos. Não é muito diferente o significado da tese de Santayana, de que "o
espírito não existe" (Scepticism and Animal Faith, 1923, cap. 26). Mas mesmo quando se reconhece a
existência do S., sua função é reduzida ao mínimo pela corrente realista. Ao afirmar que "S. e objeto são
sempre correlativos um ao outro e por isso inseparáveis", N. Hart-mann está reduzindo a função do S. a
"imagem, representação ou conhecimento do objeto", excluindo inclusive a possibilidade de que ele
modifique a natureza deste (Sistematische Philosophie, 1931, § 10). Finalmente, mesmo quando não
excluída, a função do S. não é considerada incondicionada ou criadora, mas
SUMA
932
SUPERAR
submetida a limites e condições, negando-se em todos os casos que ele possa valer como substância ou força
autônoma. Husserl diz: "O ego constitui-se por si mesmo na unidade de uma história. Ao se dizer que, na constituição
do ego, estão contidas todas as constituições de todos os objetos que existem para ele, ima-nentes e transcendentes,
reais e ideais, é preciso acrescentar que o sistema de constituições em virtude das quais tais objetos existem para o
ego só é possível no quadro de leis genéticas" {Cart. Med, 1931, 37). Desse ponto de vista, o S. é uma função, não
uma substância ou uma força criadora. Heidegger disse: "Se para o ente que nós somos e que definimos como ser-aí
for escolhido o termo sujeito, poderemos dizer: a transcendência implica a essência do S., é a estrutura fundamental
da subjetividade. Não que o S. exista antes como S. e depois, no momento em que alguns objetos se revelem
presentes, ele possa até mesmo transcendê-los. Ser S. significa ser existente na transcendência e enquanto
transcendência" {Vom Wesen des Grundes, 1929, II; trad. it., p. 30). É preciso lembrar que, para Heidegger,
transcendência (v.) é relação com o mundo; portanto, o S. é por ele identificado com essa relação. De modo mais
empírico, Dewey ressalta o caráter puramente funcional da subjetividade: "Uma pessoa, ou — mais genericamente —
um organismo, torna-se sujeito cognoscente em virtude de seu empenho em operações de investigação controlada"
{Logic, 1938, p. 526). Admitir que existe S. cognoscente independente da investi-gação e anterior a ela significa
supor algo que é impossível verificar empiricamente e que, portanto, não passa de preconceito metafísico. Essa idéia
fora exposta por Dewey já em Studies in Logical Theory, de 1903 (cf. também Experience and Nature, 1926, cap.
VI).
SUMA. No séc. XII começou-se a designar com este termo os breves tratados sistemáticos sobre algum conjunto de
conhecimentos. Abelardo escrevia no prefácio à sua Introdução à Teologia: "Escrevi uma suma da sagrada erudição,
como introdução à divina escritura" {P. L., 68°, col. 979). As S. costumavam ter como título a matéria tratada {S. de
vitiis et virtutibus-, S. de articulis fidei; S. sermonum; S. grammaticalis, S. logicalis, etc). Depois do séc. XIII,
começou-se a dar preferência a esse termo, em vez de Sententiae, para. título das exposições sistemáticas de teologia.
Os manuscritos da obra de Pietro da Capua (escrita por volta de 1200) já
recebem o título de Summa. Nas grandes obras sistemáticas do séc. XIII esse termo é usado quase com exclusividade,
(v. M. GRABMANN, Geschichte der scholastischen Methode, II, pp. 23 ss.).
SUNTTAS (in. Sunnites-, fr. Sunnite, ai. Sun-niten-, it. Sunnití). Corrente islamita ortodoxa que admite a validade de
crenças práticas não prescritas no Alcorão, mas cuja origem seria o próprio Maomé. Os xiitas, ao contrário, negam o
valor da tradição.
SUPERADDITA, FORMA. Telésio extraiu essa expressão nos escolásticos de inspiração escotista para designar a
alma supranatural, diretamente infundida no homem por Deus, que ele admite estar ao lado da natural e material,
como sujeito da vida religiosa e da aspiração do homem pelo que está além da natureza. Ao contrário da alma natural,
a forma S. não seria corruptível {De rer. nat., V, 3).
SUPERAR (in. To sublate-, fr. Dépasser, ai. Aufheben-, it. Superaré). Termo usado por He-gel para indicar o
processo dialético que, ao mesmo tempo, conserva e elimina cada um de seus momentos. Hegel dizia: "Na língua, a
palavra S. tem sentido duplo porque, por um lado, significa conservar, reter, e, por outro, fazer cessar, pôr fim.
'Conservar' já encerra o negativo, implica que algo foi privado de sua imediação, portanto de uma existência aberta a
influências externas, com o fim de ser retido. Assim, o que é superado é ao mesmo tempo algo conservado que
perdeu apenas a imediação, mas nem por isso é anulado." {Wissens-chaft der Logik, I, Livro I, seç. I, cap. 1, nota;
trad. it., pp. 105-06). Embora Hegel, no mesmo trecho, faça um paralelo entre o significado do termo alemão e o
latim tollere, o uso em italiano estabeleceu a equivalência do termo com superar. Superação significa,
conseqüentemente, progresso que conservou o que havia de verdadeiro nos momentos precedentes, levando-o a
completar-se. Como exemplo desse conceito, pode-se citar o que Hegel diz sobre a superação no domínio da
filosofia. "Toda as filosofias foram necessárias e ainda são; nenhuma desapareceu, mas todas foram conservadas
afirmativamente na filosofia como momentos de um todo.- os princípios são conservados, e a filosofia mais recente é
o resultado de todos os princípios precedentes: nesse sentido, nenhuma filosofia foi refutada. O que foi refutado não é
o princípio de dada filosofia, mas apenas a sua pretensão de representar a conclusão últi-
SUPEREROGATORIO
933
SUPERSTIÇÃO
ma e absoluta" {Geschichte der Philosophie, I, Intr., A, 3, b). O idealismo italiano entre guerras usou e abusou desse
termo.
SUPEREROGATORIO (in. Supererogato-ry). O que é feito ou dado sem estrita obrigação jurídica ou moral; tratase de doação supérflua, portanto meritória. Essa é uma possibilidade que a moral kantiana excluiria, porque, segundo
Kant, o homem está sempre em débito para com o dever (Religion, II, I, c; trad. it., Durante, p. 67).
SUPERESTRUTURA (in. Superstructure, fr. Superstructure, ai. Überbau; it. Soprastrutturd). Termo empregado
pelos marxistas para designar a ordenação política e jurídica, bem como as ideologias políticas, filosóficas, religiosas,
etc, na medida em que dependem da estrutura econômica de dada fase da sociedade. Marx diz: "O conjunto de
relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou seja, a base real sobre a qual se ergue a S.
jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de consciência social. O modo de produção da vida
material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida" {Zur Kritik der politischen Ôkonomie,
1859, Pref.) (v. MATERIALISMO HISTÓRICO).
Esse termo também foi empregado por N. Hartmann para indicar um estrato ou plano do ser no qual se conservem
somente algumas das categorias do plano inferior; distinguir-se-ia da sobreformação (Überformung) porque nesta se
conservariam todas as categorias do plano inferior. Por ex., o plano psíquico seria uma S. em relação ao plano
orgânico, porque nele é abandonada a categoria espaço, que ainda domina o ser orgânico. Assim, a diferença entre S.
e sobreformação bloquearia o caminho para a concepção mecanicista da vida psíquica {Aufbau der realen Welt,
1940). Algumas vezes o termo de Hartmann é traduzido como sobreconstrução (it., so-pracostruzioné) (cf. BARONE,
Nicolai Hartmann, p. 342).
SUPER-HOMEM (gr. Ú7iepáv6pü)7toç; in. Superman; fr. Surhomme, ai. Übermensch; it. Superuomó). O termo
que se encontra em Luciano {Cataplus, 16) e que algumas vezes foi usado para designar o homem-Deus (= Cristo; v.
T. TASSO, Lettere, V, 6), foi empregado antes por Ariosto (Orl. Fur, 38, 62) para indicar uma humanidade
extraordinária. Foi introduzido na Alemanha por Heinrich Müller {Geistliche Erbauungstunden, 1664-66) e
empregado por
vários escritores do Romantismo alemão, inclusive por Goethe {Fausto, 1, Noite). Mas foi só com Nietzsche que esse
termo assumiu significado filosófico e se tornou popular. O S. é a encarnação da vontade de potência: "O homem
deve ser superado. O S. é o sentido da terra. (...) O homem é uma corda esticada entre o animal e o S., uma corda
sobre o abismo" {Also sprach Zarathustra, I, 3). O S. é a encarnação dos valores vitais que Nietzsche contrapõe aos
valores tradicionais; para Nietzsche, é o filósofo criador de valores, dominador e legislador, em oposição aos
"operários da filosofia", que são os comumente considerados filósofos (Jenseits von Gut undBõse, § 211). Apesar de
o conceito nietzschiano não ter nenhum significado político preciso, acabou servindo de pretexto ao racismo e às
concepções antidemocráticas em política.
SUPERIOR (lat. Superius; in. Superior, fr. Supérieur, ai. Hõher, it. Superioré) 1. Em sentido lógico: mais extenso,
que tem maior extensão ou denotação. Nesse sentido, fala-se de "gênero S.", de "conceito S." ou, em geral, de "termo
S.". Este uso remonta à lógica terminista do séc. XIV (PEDRO HISPANO, Summ. log., 2.08; 3.02; 12.13; cf. PRANTL,
Geschichte der Logik, IV, p. 49).
2. O que pertence a uma fase mais avançada da evolução biológica: nesse sentido, fala-se de "espécies S." ou
"animais superiores".
3. O que pertence à esfera das funções espirituais ou simbólicas do homem. Nesse sentido fala-se em "funções S."
ou "interesses superiores".
4. Aquilo a que, em algum sentido, se atribui grau mais elevado de dignidade ou valor; p. ex. "homem S." ou
"formas superiores de arte ".
SUPERSTIÇÃO (gr. SeiaiSaiixovía; lat. Su-perstitio; in. Superstition; fr. Superstition; ai. Aberglaube, it.
Superstizioné). Excesso ou aberrações da religião, ou então a forma de religião de que não se compartilha. Foi Cicero
quem definiu a S. no primeiro sentido: "Não só os filósofos mas também os nossos antepassados distinguiram a S. da
religião: aqueles que rezavam o dia inteiro e imolavam vítimas para que os filhos sobrevivessem [lat. superstes, superstitis = sobrevivente] foram chamados de supersticiosos, e depois essa palavra ganhou significado mais extenso"
{De nat. deor., II, 28, 71-72). Essa definição foi repetida substancialmente por S. Tomás: "A S. é o vício que, por
SUPERVERDADE
934
SUPRA-ENTE
excesso, se opõe à religião, pois se presta culto divino a quem não se deve ou na forma indevida" {S. Th., II, 2, q. 93,
a. 1). No segundo sentido, foi definida por Hobbes: "O temor diante dos poderes invisíveis, se estes forem
imaginados pelo espírito ou sugeridos por narrativas publicamente admitidas, é religião; se sugeridos por narrativas
não admitidas publicamente, é S." {Leviath., 1, 6).
Na verdade, S. é um termo polêmico: para o estudo objetivo (antropológico ou sociológico) das crenças, não existem
superstições, e sempre que se fala em S., está-se tomando como referência determinado sistema religioso, que é
considerado o único verdadeiro. Assim, cada religião parece S. aos seguidores de uma religião diferente, e a única
descrição exata do termo é a que se encontra em Hobbes.
SUPERVERDADE (lat. Superveritas). Um atributo de Deus, segundo Scotus Erigena {De divis. nat., I, 14) (v.
SUPRA-ENTE).
SUPOSIÇÃO (gr. ráóeecnç; lat. Suppositio, in. Supposition; fr. Supposition; ai. Voraus-setzung, Supposition; it.
Supposizioné). 1.0 mesmo que hipótese.
2. Na lógica terminista medieval, é o significado denotativo dos termos presentes na proposição, enquanto o
significado em sentido estrito é o conotativo (v. SIGNIFICADO). Nesse sentido, a S. é definida como uma positio pro
alio, um estarem lugar de alguma outra coisa: p. ex., quando dizemos "o homem corre", o termo "homem" está em
lugar de Sócrates, Platão ou algum outro (PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03; OCKHAM, Summa log., I, 63; BURIDAN,
Sophysmata, 3; ALBERTO DE SAXÔNIA, Lógica) Com exceção de alguns casos isolados, a teoria da suppositio é mais
ou menos uniforme em todos os lógicos do séc. XIV. Eles distinguiam três espécies fundamentais de S.: pessoal,
simples e material. Tem-se a S. pessoal quando o termo está no lugar do objeto significado, qualquer que ele seja:
coisa externa, palavra, conceito, sinal escrito ou outra coisa. Assim, nas frases: "o homem é um animal", "o nome é
parte da proposição", "a espécie é um universal", os termos homem, nome e espécie têm S. pessoal porque estão no
lugar dos respectivos objetos. Tem-se S. simples quando o termo não está no lugar do objeto significado, mas de seu
conceito. Assim, quando se diz "o homem é uma espécie", o termo homem não está no lugar de "o homem", mas do
conceito "homem". Finalmente, tem-se S. material quando um termo está no lugar da palavra ou do sinal escrito, como nas frases "homem é substantivo" ou "está escrito homem",
onde homem está no lugar de uma palavra ou de um sinal escrito. Cada um desses atributos da S. foi ainda
subdividido pelos lógicos do séc. XIV e estudado em termos de dificuldades e problemas que apresentam. Para se ter
uma idéia desses problemas, eis como Ockham enfrenta a dificuldade apresentada pela S. do termo "homem" na
proposição "o homem é a mais elevada das criaturas". Aqui o termo "homem" não pode ter uma S. simples porque
não é o conceito homem que é a mais elevada das criaturas; tampouco pode ter uma S. pessoal, porque, subs-tituindose 'homem' por algum homem individual, o juízo torna-se falso. A solução é que a proposição tem uma S. pessoal,
mas que deve ser limitada, dizendo-se que o homem é a mais elevada de todas as criaturas que sejam diferentes dele.
nesse caso, a proposição é verdadeira para cada indivíduo humano {Summa log., I, 66).
A teoria da S. foi posta de lado quando a lógica terminista foi abandonada em favor da lógica mentalista, sob a
influência do carte-sianismo. Os problemas por ela tratados foram herdados pela teoria do conceito (cf. E. ARNOLD,
Zur Geschichte der Suppositionstheorie, em Symposion, III, 1954; E. A. MOODY, Truth and Consequence in
Mediaeval Logic, 1953).
SUPRA-ALMA (in. Oversoul). Foi assim que R. W. Emerson definiu Deus, concebendo-o princípio imanente no
mundo e no homem {Nature, 1836).
SUPRACONSCIÊNCIA (fr. Supraconscien-cé). Termo usado por Bergson para indicar uma "verdadeira atividade
criadora" ou uma "consciência pura", que, para ele, não é a vida {Évol. créatr., 8a ed., 1911. pg. 267, 283, etc).
SUPRACONSTRUÇAO. V. SUPERESTRUTURA.
SUPRA-ENTE (gr. ÚTtepoúoioç; ai. Über-seiend; it. Superessenté). Encontramos esse adjetivo pela primeira vez
em Proclo {Inst. theol, 115), mas Platão já dissera que o bem está além da substância {Rep., VI, 509 b), conceito que
se tornou basilar na filosofia de Plo-tino, para quem o uno está "além do ser" {Enn., V, 5, 6) ou "antes do ser" {Lbid.,
III, 8, 10). Dionísio, o Areopagita usou o termo "su-pra-essencial" {De divinis nominibus, II, em P. L., 122s, col.,
1122), e Scotus Erigena valeu-se do termo superessentia {Dedivis. nat, 1,14). O mesmo termo é encontrado ainda na
tradição mística e teosófica. Mestre Eckhart fala de Deus
SUPRALAPSARIANISMO
935
SYNKATATHESIS
como de "uma essência supra-essencial e um nada S." (Deutsche Mystiker des XIVJahrhun-derts, ed. Pfeiffer, II, pp.
318-19). A mesma qualificação aparece em Schelling (Werke, I, X, p. 260) (v. TEOLOGIA; TRANSCENDÊNCIA).
SUPRALAPSAMANISMO (in. Supralapsa-rianism, fr. Supralapsarianisme, ai. Supralapsa-rianismus; it.
Sopralapsarismó). No séc. XVII, foi esse o nome dado à doutrina de que Deus predeterminou a queda (lapsus) de
Adão ab aetemo, para pôr em ação seus instrumentos de salvação. Essa doutrina foi sustentada por alguns teólogos
calvinistas, mas negada por outros que se chamaram de infralapsarianos. Leibniz discutiu longamente esses
problemas no segundo livro da Teodicéia (1710) (v. GRAÇA; PREDESTINAÇÃO).
SUPRA-ORGÂNICO (in. Superorganic, fr. Superorganique, ai. Überorganisch; it. Superor-ganicó). Termo usado
pelo positivismo para indicar o que está além da vida orgânica, vale dizer, a vida psíquica ou a vida social,
especialmente esta última. Esse termo é usado freqüentemente por Spencer.
SUPRA-SENSÍVEL (in. Supersensible, fr. Suprasensible, ai. Übersinnlich; it. Soprasen-sibilé). Na terminologia
kantiana (que pôs esse termo em uso), o mesmo que númeno: "Aquilo que diz respeito à faculdade especulativa da
razão, mas de que nenhum conhecimento é possível (noumenorum non datur scientià)" (Fortschrifte derMetaphysik,
1804, [A 55]). Portanto, o S. é o domínio das idéias da Razão Pura, com tudo o que elas implicam para a vida moral
do homem. Hegel empregou esse termo em sentido análogo, mas positivo, para indicar aquilo que a aparência
sensível é em sua natureza racional: "O S. é o sensível e o percebido postos como são em verdade", portanto como "o
universal simples, o universal em que a multiplicidade não subsiste, em que nada há para conhecer": em suma, o
universal do modo como Schelling o entendeu (Pbãnomen. des Geistes, I, IV, B; trad. it., p. 127 e nota).
SUPREMO BEM. V. BEM SUPREMO.
SUSPENSÃO DO JUÍZO. V. EPOCHÉ.
SYNKATATHESIS. V. ASSENTIMENTO.
T
TABU (in. Taboo; fr. Tabou; ai. Tabu; it. Tabu). Termo polinésio que significa simplesmente proibir ou proibido e
que passou a indicar a característica sagrada da proibição em todos os povos primitivos e qualquer proibição não
motivada em todos os povos. A generalização nesse sentido do conceito é de autoria de Salomon Reinach. A melhor
explicação da função do T. encontra-se em A. R. Radcliffe-Brown, que nele discerniu um instrumento para ressaltar a
importância social de acontecimentos, ações, interditos, normas, etc. Nesse sentido, o T. está ligado a qualquer
prescrição ritual (Structure and Function in Primitive Society, 1952, cap. VII). Freud comparou o T. à neurose
obsessiva e viu entre as duas coisas quatro pontos semelhantes: ls falta de motivação das proibições; 2S sua validação
por meio de uma necessidade interior; 3a possibilidade de deslocamento e contágio dos objetos proibidos: 4a criação
de práticas cerimoniais e mandamentos derivados das proibições (Totem e T, 1913, cap. II; trad. it., p. 37.)
TÁBUA (lat. Tabula-, in. Table, fr. Table, ai. Tafel; it. Tavolá). Esse termo foi várias vezes usado para indicar a
apresentação organizada ou sistemático de conceitos. Os antigos falavam das tabulae logicae, que era a apresentação
hierárquica de conceitos dispostos segundo a maior generalidade: a árvore de Porfírio (v.) é a mais conhecida dessas
tábuas. No mesmo sentido, denominavam T. os conjuntos de normas morais ou jurídicas (a lei das 12 tábuas, as T. de
Moisés). Bacon deu o nome de T. às coordenações das instâncias, ou seja, dos aspectos particulares de um fenômeno
(Nov. org., II, 10) e distinguiu as T. de presença, as T. de ausência, as T. dos graus ou comparativas e as T. exclusivas
(Ibid. II, 11-13). A partir de
Kant fala-se de "T. das categorias" (v. CATEGORIA).
TÁBUA RASA (gr. rcívaE, àypoKpriç; lat. Tabula rasa). Expressão que indicou, às vezes, a condição da alma antes
da aquisição dos conhecimentos. Essa expressão nasce da comparação do processo de aquisição de conhecimentos
com o processo de impressão de sinais ou letras sobre tabuinhas cobertas de cera ou de escrita sobre página. Trata-se
de comparação bastante antiga, que já se encontra em Esquilo (Prom., 789). Platão comparava a alma a um bloco de
cera onde se gravam as sensações e os pensamentos de que depois nos lembramos (Teet., 191 d; Pii, 39 a). Aristóteles
comparava o intelecto a uma tabuinha onde nada está escrito (De an., III, 4, 430 a I). Os es-tóicos comparavam a
parte hegemônica da alma a um papiro onde serão escritos os sinais das coisas, ou seja, as representações (PLUTARco, Plac, IV, 11; v. GALENO, Hist. philos., 92; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 228). A mesma comparação é depois
repetida com freqüência (FÍLON, Ali. leg., I, 32; BOÉCIO, Phil. cons., V, 4; etc), mas a expressão "tabuinha sem
escrita" encontra-se pela primeira vez no comen-tador de Aristóteles, Alexandre de Afrodisia (cerca de 200 a.C); na
Idade Média foi usada por S. Tomás (De an., a. 8, resp.; S. Th., I, q. 89, a. 1, ad 3S).
Locke utilizou essa imagem para expressar a tese da origem empírica dos conhecimentos (Ensaio, II, I, 2) e Leibniz a
usou na sua crítica a essa tese de Locke (Nouv. ess., II, I, 2). Desde então essa expressão passou a indicar a tese
empirista sobre a origem do conhecimento e a negação do inatismo.
TÁBUAS DE VERDADE (in. Truth tables; fr. Tables de vérité, ai. Wahrheitsmóglichkeiten;
TÁBUAS DE VERDADE
937
TÁBUAS DE VERDADE
it. Tavole di veritã). No cálculo das proposições, T. construídas pelo método de matrizes (v.), que permite enumerar
todas as possibilidades de verdade para certo número de proposições simples e assim identificar se uma proposição é
verdadeira. Essas tábuas são construídas com os símbolos dos conectivos lógicos (v. CONECTIVO) e, com V e F,
indicam respectivamente o valor de verdade e de falsidade de uma proposição. Assim, utilizando o símbolo ~p para
indicar a negação de p (ou que p é falso), tem-se a seguinte T.:
p
~P
VF
FV
significando que, se pé verdadeiro, sua negação é falsa e, se p é falso, sua negação é verdadeira. Se considerarmos a
conjunção entre duas proposições, indicada pelo símbolo'.', teremos a seguinte T. de verdade:
1
p
p.q
V
V
V
V
F
F
F
V
F
F
F
F
que indica todos os valores possíveis de verdade para cada tipo de conjunção entre as proposições; por isso, pode ser
assumida como a própria definição do conceito lógico de conjunção (v.). Significa que a conjunção entre duas
proposições conexas pela palavra "e" é válida só no caso de ambas as proposições serem verdadeiras, como quando
se diz "Está chovendo e há umidade".
Tem-se disjunção quando se insere entre duas proposições a palavra "ou", representada pelo símbolo v; na língua
corrente, pode ter dois significados: um significado inclusi-vo (em que "ou" corresponde ao latim vel), como quando
se diz "Pode-se ir a Roma por este caminho ou pelo outro", em que pelo menos uma das duas proposições é verdade;
e um significado exclusivo ("ou" nesse caso corresponde ao latim aui), como quando se propõe uma alternativa:
"Vamos a Roma ou a Paris", em que pelo menos uma das proposições é verdadeira e pelo menos uma é falsa. A T. de
verdade da disjunção geralmente é a seguinte:
p
q
pwq
V
V
V
V
F
V
F
V
V
F
F
F
que fornece o critério mais geral para a validade de uma disjunção qualquer.
Quanto à T. de verdade da relação condicional, expressa através do conectivo se... e pelo símbolo z>, ver os termos
IMPLICAÇÃO E CONDICIONAL.
Com base nessas tábuas, é possível construir outras mais complexas, como a seguinte, que dá os valores de verdade
das combinações condicionais possíveis entre as proposições condicionais e as disjuntivas (cf. TARSKY, Intr. to Logic,
§ 3); para a função (p v q) (p.r), onde p, q, r representam proposições quaisquer:
p 1 r p.q pz>q (p.q)^(pz)v)
V
V
V
V
V
V
F
V
V
V
F
F
V
F
V
V
V
V
F
F
V
F
F
V
V
V
F
V
F
F
F
V
F
V
F
F
V
F
F
V
F
F
F
F F F
F
V
Para simplificar o significado dessa T., considere-se a quinta linha depois do cabeçalho: nela se supõe que pe q são
proposições verdadeiras e que ré uma proposição falsa. Com base na segunda T. fundamental, obtém-se que "p.q" é
uma proposição verdadeira e que "p o q" é uma proposição falsa; unindo-se "(p.q) z> (p=> r)", obtém-se uma
implicação em que o antecedente é verdadeiro e o conseqüente é falso e que, com base na T. das implicações, é falsa.
O uso das T. pode ser ampliado a todos os teoremas do cálculo das proposições. Assim como da T. de implicação
material, das outras T. derivam conseqüências que se mostram paradoxais do ponto de vista da linguagem corrente.
Vejamos as seguintes:
se q é verdadeiro, então q se segue de qualquer p, ou, em outros termos, uma proposição
TALENTO
938
TAREFA
verdadeira se segue de qualquer outra proposição;
se p é falso, então p implica um q qualquer; ou, em outros termos, uma proposição falsa implica qualquer outra
proposição;
quaisquer que sejam pe q, ou p implica qou q implica p em outros termos, pelo menos uma de duas proposições
quaisquer implica a outra.
Essas conclusões derivam das T. de verdade, sobretudo da T. de implicação, que constitui a simplificação e a
generalização dos usos correntes na linguagem comum e nas disciplinas científicas (com exceção da matemática), em
que as relações puramente lógicas entre as proposições são submetidas a outras condições mais restritivas. No
entanto, continuam a dar ensejo a discussões que alguns lógicos (como Tarsky) consideram ociosas.
Como dissemos no verbete IMPLICAÇÃO, a escola estóico-megárica, principalmente por meio de Fílon, foi a primeira a
criar a T. da implicação material. Na lógica moderna, a idéia da T. foi retomada por Boole {Mathematical Analysis of
Logic, 1847), por Frege {Begriffsschrift, 1879) e por Pierce (1885: cf. Coll. Pap., 3.370 ss.), sendo difundida por
Wittgenstein {Tractatus, 1921, 4.31).
TALENTO (lat. Talentum; in. Talent; fr. Talent; ai. Talent; it. Talento). O sentido metafórico desse termo, derivado
da parábola evangélica dos T. {Mat., 25, 14-30), é de "superioridade do poder cognoscitivo, que não provém do
ensino mas da aptidão natural do sujeito". Esta é a definição de T. encontrada em Kant {Antr, I, § 54), que também
distingue os T. em engenho produtivo, sagacidade e originalidade: este último é o gênio. Essa doutrina kan-tiana foi
repetida diversas vezes com poucas variações; está presente até na psicologia moderna, embora acentuando-se a
importância dos chamados T. específicos.
TALIÃO (gr. xò ávTUtE7tov9óç; in. Talion; fr. Talion; ai. Vergeltung; it. Taglione ou Contrap-passó). Forma de
justiça segundo a qual o ofen-sor deve sofrer o mesmo mal que causou ao ofendido. Segundo relato de Aristóteles,
foram os pitagóricos que definiram a justiça como retaliação {Et. nic, V, 5, 1132 b 21). Esse mesmo princípio inspira
a lei mosaica do "olho por olho, dente por dente" {Levit., 24,17-21). Dante modelou a estrutura moral do Inferno e do
Purgatório segundo a lei de talião.
TALMUD. Este termo, que na língua hebraica significa "ensino", designa a coletânea enciclopédica da tradição judaica escrita em ara-maico, que foi compilada durante oitocentos anos (de 300 a.C. a 500
d.C.) na Palestina e na Babilônia. Essa obra não é um simples comentário do Antigo Testamento, mas uma síntese de
filosofia, teologia, história, ética e folclore judaicos, acumulados durante oito séculos. O T. é composto por duas
partes principais: o Misbnab, redigido na Palestina, e o Gemara, que é um comentário do primeiro. O Gemara,
compilado na Palestina, é denominado juntamente com o Mishnah, T. de Jerusalém; por outro lado, o Gemara
compilado na Babilônia é chamado, também com o Mishnah, de T. da Babilônia (v. H. L. STRACK-P. BILLER-BECK,
Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch, Mônaco, 1922-28).
TANATISMO (in. Thanatism, ai. Thanatis-mus; it. Tanatismo). Termo criado por E. Hae-ckel para indicar a sua
doutrina da mortalidade da alma, em oposição a atanatismo (v.).
TAOÍSMO (in. Taoism; fr. Taoisme, ai. Taois-mus; it. Taoismo). Doutrina de Lao-Tse (que viveu na China
provavelmente no séc. VI a.C), a quem se atribui o Tao Te Ching, isto é, o Livro do caminho e da virtude. Em
oposição ao caráter racionalista, terreno e prático do ensinamento de Confúcio, está o caráter místico, religioso e
contemplativo do ensinamento de Lao-Tse; nele encontramos vestígios do pan-teísmo metafísico dos Upanishad. Os
dois aspectos principais do T. são: monismo panteísta, segundo o qual o tao, que é o caminho para a salvação, é
também o princípio único do universo (todas as outras coisas suas são manifestação); a ética do não fazer, ou seja,
entrega à ação imanente do princípio cósmico e a renúncia a interferir nele ou a obstá-lo. (v. A. WALEY, The Way and
Its Power, 1934).
TAREFA (gr. êpTOV; lat. Officium; in. Task, fr. Tache, ai. Aufgabe, it. Compito). Limitação da atividade de uma
pessoa ou de uma coisa, para garantir o melhor resultado dessa atividade. Nesse sentido, Platão entendia por T. de
uma coisa "aquilo que só ela sabe fazer, ou pelo menos que faz melhor que qualquer outra coisa" {Rep., I, 353 a);
utilizava essa noção para definir a virtude (v.). No mesmo sentido e com o mesmo fim, Aristóteles utilizou essa noção
quando, para definir o que é felicidade, perguntava qual é "a T. do homem"; e respondia que a T. do homem é a
atividade da alma conforme à razão, e não independentemente da razão {Et. nic, 1,6, 1098 a7). Esse conceito é
freqüente, com o
TATO
939
TÉCNICA
mesmo significado, na filosofia contemporânea (v. FUNÇÃO; OPERAÇÃO).
TATO(in. Tact; fr. Tact; ai. Tact; it. Tattó). 1. Um dos cinco sentidos, que Condillac chamava de "sentimento
fundamental", porque este é o "sentimento que a estátua (v.) tem da ação recíproca das partes do corpo e
especialmente dos movimentos da respiração" {Traité des sensations, II, I). Segundo Condillac, o T. é também o
sentido do qual provém a noção do mundo exterior (Ibid., II, 8, 30 ss.).
2. Sabedoria do mundo ou espritdefinesse, como nas frases "ter T.", "proceder com T." ou "falar com T.", etc.
TAT TWAM ASI. Uma das formas fundamentais da filosofia do Upanishad, que significa exatamente "este és tu" e
prescreve que todo homem deve reconhecer-se idêntico, em seu princípio (ou átmari), a qualquer ser ou coisa que
esteja diante dele, pois o princípio universal, ou Brahman, é idêntico em tudo. Essa locução indiana encontra-se
especialmente no Chandogya-Upanishad (VI, 8, 7 ss.).
TAUTOLOGIA (in. Tautology, fr. Tautolo-gie, ai. Tautologie, it. Tautologid). Na terminologia filosófica
tradicional, T. significa genericamente um discurso (em especial, uma definição) vicioso porquanto inútil, visto
repetir na conseqüência, no predicado ou no defi-niens o conceito já contido no primeiro membro: "M. de Ia Palisse,
quinze minutos antes de morrer, ainda estava vivo". É só na álgebra da lógica que o termo "T" adquire significado
técnico, porquanto se introduzem com o nome de lei de T. os teoremas (1) a u a = a, (2) a n a = a [(1): a afirmação
disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale à simples afirmação de p, a soma de uma classe a a
si mesma é igual à simples classe a; (2) a afirmação conjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma eqüivale
à simples afirmação de p, a interferência de uma classe a em si mesma é igual à classe a pura e simples]. Ao lado
dessa lei, em Principia mathematica, Whitehead e Russell introduzem um princípio de T: p v p. D p. [a afirmação
disjuntiva de uma mesma proposição p consigo mesma implica materialmente a mesma p: "se p ou p, p"]. Em
Wittgenstein {Tractatus, 1922, 4.46), o conceito de T. adquire notável importância, passando a designar uma
proposição molecular (funcional), cujo valor-verdade é "verdadeiro", sejam quais forem os valores-verdades das
proposições atômicas (variáveis proposicionais)
que a compõem; p. ex., "/>v ~ p' ["chove ou não chove' ]. Wittgenstein — adotado a contragosto por Russell —
chega a afirmar que a matemática pura (inclusive a Lógica) constam exclusivamente de T., aliás são a classe de todas
as possíveis T. (Tractatus, cit., 6. I, 6.22). Na lógica atual (pós-Wittgenstein), o conceito de T. perdeu importância e
foi substituído por uma multiplicidade de noções análogas, como proposição analítica, C-verdadeira, L-verda-deira,
conforme os casos e conforme os pontos de vista filosóficos dos diferentes autores. G. P. TAXIONOMIA (in.
Taxonomy, fr. Taxino-mie, ai. Taxinomie, it. Tassonomid). Teoria da classificação nas ciências naturais. Termo
cunhado e usado no séc. XIX. São chamadas de taxionômicas a botânica e a história natural.
TEÂNDRICO (in. Theandric; fr. Théan-drique, it. Teandricó). Termo da teologia cristã que se refere à união da
natureza humana e da natureza divina na pessoa do Cristo.
TEANTROPISMO (in. Theantrophism, fr. Théantropisme, ai. Theantropismum; it. Tean-tropismó). 1. Doutrina da
união da natureza divina e da humana na pessoa do Cristo. 2. O mesmo que antropomorfismo (v.). TÉCNICA (in.
Technic; fr. Technique. ai. Technik, it. Técnica). O sentido geral desse termo coincide com o sentido geral de arte
(v.): compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Nesse sentido, T.
não se distingue de arte, de ciência, nem de qualquer processo ou operação capazes de produzir um efeito qualquer:
seu campo estende-se tanto quanto o de todas as atividades humanas. É preciso, porém, chamar a atenção para o fato
de que nesse significado do termo, que é bastante antigo e geral, não se inclui o significado atribuído por Kant, que
falou de técnica da natureza para indicar a causalidade dela (Crít. do Juízo, § 72), mas negou que a filosofia —
especialmente a filosofia prática — pudesse ter uma técnica, porque não pode contar com uma causalidade necessária
(Met. der Sitten, Intr., § II). O pressuposto desse significado, porém, é a redução de T. a procedimento causai, ao
passo que esse termo foi entendido (da melhor maneira) como procedimento qualquer, regido por normas e provido
de certa eficácia.
Nessa esfera de significado generalíssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais díspares; estes, porém, podem
ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) T.
TÉCNICA
940
TÉCNICA
racionais, que são relativamente independentes de sistemas particulares de crenças, podem levar à modificação
desses sistemas e são auto-corrigíveis; B) T. mágicas e religiosas, que só podem ser postas em prática com base em
determinados sistemas de crenças; não podem, portanto, modificar esses sistemas e apresentam-se também como nãocorrigíveis ou não-modificáveis. Essas T. constituem um dos dois elementos fundamentais de qualquer religião e
podem ser indicadas com o nome genérico de ritos (v.).
As T. racionais, por sua vez, podem ser distinguidas em: l s T. simbólicas (cognitivas ou estéticas), que são as da
ciência e das belas artes; 2a T. de comportamento (morais, políticas, econômicas, etc); 3fi T. de produção.
ls As T. cognitivas e artísticas podem ser chamadas de simbólicas porque consistem essencialmente no uso dos
signos. Distinguem-se dos métodos (v.) que, a rigor, são indicações gerais sobre o caráter das T. a serem seguidas. As
T. simbólicas podem ser: de explicação, de previsão ou de comunicação, mas essas distinções não são mutuamente
excludentes.
2S As T. de comportamento do homem em relação a outro homem cobrem um campo extensíssimo que compreende
zonas díspares: vão das T. eróticas às de propaganda, das T. econômicas às morais, das T. jurídicas às educacionais,
etc. Nesse grupo também podem ser incluídas as T. organizativas, que visam a encontrar condições para obter o
rendimento máximo com o mínimo esforço em todos os domínios da atividade humana. Essa técnica é tratada pela
tectologia (v.) ou praxíologia (v.).
3Q O terceiro grupo de T. é o que diz respeito ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à produção
de bens. Nesse sentido, a T. sempre acompanhou a vida do homem sobre a terra, sendo o homem — como já notava
Platão (.Prot., 321 c) — o animal mais indefeso e inerme de toda a criação. Portanto, para que qualquer grupo
humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da T., e a sobrevivência e o bem-estar de grupos
humanos cada vez maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos. O primeiro filósofo a
reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o
bem-estar do homem e visava a produzir, em última análise, descobertas que facilitassem a vida do homem na terra.
Quando, em
Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou política, mas
imaginou um paraíso da T., onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de todo o mundo. O
sansimonismo (v.) e o positivismo (v.) do séc. XIX compartilharam a exaltação baconia-na da técnica. Só depois do
fim do século passado e nas primeiras décadas do séc. XX foi que começou a manifestar-se o que hoje se chama de
problema da T. que nasceu das conseqüências produzidas pelo desenvolvimento da T. do mundo moderno sobre a
vida individual e social do homem. Antes da Segunda Guerra Mundial, o conflito entre homem e T. foi o tema
predileto da literatura profetizadora. Os profetas da decadência e da morte da civilização ocidental (p. ex., O.
SPENGLER, Der Mensch unddie Technik, 1931), os defensores da espiritualidade pura (p. ex., D. ROPS, Le monde sans
âme, 1932) haviam já identificado na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo
esses diagnósticos, o mundo em que a máquina domina não tem alma, é nivelador e mortificante: um mundo onde a
quantidade tomou o lugar da qualidade e onde o culto dos valores do espírito foi substituído pelo culto dos valores
instrumentais e utilitários. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, essas acusações foram reforçadas e
desenvolvidas; estão presentes em toda a obra de Albert Camus (v., p. ex., Ni bourreaux ni victimes, 1946). Para
outros, o mal do "maquinismo" estaria no desarraiga-mento que ele produz no homem (S. WEIL, L'enracinement,
1948). Ao condenarem a T., outros ainda implicam a "razão", que seria seu princípio, ou acalentam a utopia de um
retorno à produção artesanal (M. DE CORTE, Essaisurla fin d'une civilisation, 1949; L. DUPLESSY, La machine ou
1'homme, 1949). Por outro lado, a partir da obra de HUSSERL, A crise das ciências européias (1954), a T. e a ciência
em que ela se baseia passaram a ser freqüentemente consideradas uma degradação ou uma traição da Razão
Autêntica, pois escravizam a razão a objetivos utilitários, ao passo que sua verdadeira função é o conhecimento
desinteressado do ser, a contemplação. Esse conceito constitui a base4e todas as críticas dirigidas à sociedade
contemporânea, que estaria fundada na técnica e dominada pela tecnocracia (v.).
Mas hoje há uma vasta literatura que, apesar de não partir de preconceitos metafísicos,
TÉCNICA
941
TECNOCRACIA
ideológicos ou teológicos, evidencia os aspectos negativos da T., que podem ser resumidos da seguinte maneira:
Ia exploração intensa dos recursos naturais, acima dos limites de seu restabelecimento natural, portanto o
empobrecimento rápido e progressivo desses recursos;
2S poluição da água e do ar por dejetos industriais, com a multiplicação dos meios mecânicos de transporte e com a
maior densidade demográfica;
3a destruição da paisagem natural e dos monumentos históricos e artísticos, em decorrência da multiplicação das
indústrias e da expansão indiscriminada dos centros urbanos;
4a sujeição do trabalho humano às exigências da automação, que tende a transformar o homem em acessório da
máquina;
5a incapacidade da T. de atender às necessidades estéticas, afetivas e morais do homem; portanto, sua tendência a
favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos.
No que diz respeito aos três primeiros fatores, pode-se recorrer a uma contratécnica, que seria uma T. (ou um
conjunto de T.) capaz de contrabalançar ou de corrigir os efeitos devastadores da T.: seus meios seriam
suficientemente potentes para diminuir (senão equilibrar) os efeitos da devastação. O quarto e o quinto aspectos são
humanos, morais e políticos; costumam ser considerados como constituintes do fenômeno da alienação (v.).
Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na sociedade contemporânea, a T. é
um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de desenvolvimento parece irreversível
porque só dele dependem as possibilidades de sobrevivência de um número cada vez maior de seres humanos e seu
acesso a um padrão de vida mais elevado. Inclusive a diferença entre T. e ciência, em que às vezes ainda se insiste,
parece diminuir ou atenuar-se quando se consideram as tarefas hoje atribuídas à ciência (v.). Hoje, o único remédio
aos reais perigos da T. parecem ser o seu robuste-cimento e o seu desenvolvimento em todos os campos, e não a
renúncia a seus benefícios. Isso se traduziria em, por um lado, buscar novos instrumentos que não só controlassem
mas também protegessem a natureza e, por outro, buscar novas T. de relacionamento humano que pudessem controlar
e corrigir os efeitos
malignos das T. produtivas sobre o homem. A esperança de que isso possa acontecer baseia-se apenas no fato de que
a própria T. produtiva está a exigir cada vez mais que o homem tenha exatamente as capacidades de iniciativa,
imaginação criativa e solidariedade que o próprio sistema tecnológico parecia ameaçar.
TECNICISMO (in. Technicism, ai. Techni-zismus; it. Tecnicismó). 1. O mesmo que técnica. Kant usa esse termo
para indicar a técnica da natureza, ou seja, o mecanicismo (Crít. do Juízo, § 78).
2. Uso de palavras ou frases pertencentes à linguagem técnica.
TECNOCRACIA (in. Technocracy, fr. Tech-nocratie, ai. Technokratie, it. Tecnocrazid). Uso da técnica como
instrumento de poder por parte de dirigentes econômicos, militares e políticos, em defesa de seus interesses,
considerados concordantes ou unificados, com vistas ao controle da sociedade. Esse é o conceito de T. que se
encontra nos escritores mais qualificados (p. ex., C. W. MILLS, The Power Elite, 1956), que permite defini-la como "a
filosofia autocrá-tica das técnicas" (G. SIMONDON, DU monde d'existence des objets techniques, 1958). Assim, as
críticas mais radicais feitas à sociedade contemporânea trazem à baila a T. A ela é imputada não só a responsabilidade
por todos os males da técnica (para os quais, ver TÉCNICA) e por não poder nem querer fazer nada para eliminá-los,
como também a responsabilidade de suprimir ou bloquear a liberdade de escolha do homem em todos os campos de
atividade (do trabalho ao divertimento), com uma determinação interna que o impede de exercer sua razão crítica e
reprime seu instinto vital e a livre procura da felicidade. Marcuse escreveu: "O aparato produtivo tende a tornar-se
totalitário na medida em que determina não só as ocupações, as habilidades e os comportamentos socialmente
necessários, mas também as necessidades e as aspirações individuais. (...) A tecnologia serve para instituir novas
formas de controle e coerção social mais eficazes e mais agradáveis" {One Dimensional Man, 164, p. XV). Desse
ponto de vista, a T. (chamada também de "The Establishment" ou "O Sistema" por antono-másia) exercitaria um
determinismo necessitan-te sobre todas as atividades humanas e impediria ou bloquearia qualquer forma de crítica
social, qualquer possibilidade de transformação. Por outro lado, porém, admite-se (como faz o próprio Marcuse, Ibid.,
p. 238) que "a racio-
TECNOLOGIA
942
TEÍSMO
nalidade pós-tecnológica" possa transformar a técnica em meio de pacificação e em instrumento para a arte de viver,
nesse caso, a função da razão — cujo uso instrumental deu origem à T. — convergiria para a função da arte.
Outras vezes, põe-se em dúvida o caráter monolítico e necessitante da tecnocracia. Gal-braith fala de tecnoestrutura
para designar a formação pluralista e heterogênea dos grupos que dirigem a sociedade industrial, admitindo a
possibilidade de minimizar a subordinação das crenças às necessidades do sistema industrial e de considerar este
último apenas "uma parte da vida (uma parte em processo de diminuição)", que pode ser subordinada aos fins
estéticos que constituem a dimensão da vida e possibilitam a liberdade individual ( The New Industrial State, 1964, p.
399). Às vezes também se apresenta uma conotação "não pejorativa" de T. em correlação com o conceito mais
compósito que se tem hoje de classe social (cf., p. ex., A. Tou-RAINE, La sociétépos-industrielle, 1969, cap. I).
TECNOLOGIA (in. Technology, fr. Techno-logie, ai. Technologie, it. Tecnologia). 1. Estudo dos processos técnicos
de determinado ramo da produção industrial ou de vários ramos.
2. O mesmo que técnica.
3. O mesmo que tecnocracia.
TECTOLOGIA. Termo criado pelo filósofo russo A. Bogdanov para indicar uma "ciência organizativa universal",
que ensina a construir o mundo a partir dos elementos neutros dados na experiência (Tektologija, 1923). Essa
disciplina, que também cuida da organização de todas as atividades humanas com o fim de determinar as condições
de seu máximo rendimento, foi depois chamada (nesse aspecto) de praxiologia (v.) por Kotarbinsky. Integra os
estudos de organização e administração, de economia política e cibernética (cf. CAUDE, MOLES e outros,
Méthodologie vers une science de Tac-tion, Paris, 1964).
TÉDIO (in. Boredom; fr. Ennui; ai. Lan-gweile, it. Noia). Moralistas e filósofos algumas vezes insistiram no caráter
cósmico e radical desse sentimento. "Sem o divertimento" — dizia Pascal — "haveria o T., e este nos levaria a buscar
um meio mais sólido para sair dele. Mas o divertimento nos deleita e assim nos faz chegar distraídos à morte"
iPensées, 171). Sho-penhauer observou que "tão logo a miséria e a dor concedem uma trégua ao homem, o T. chega
tão perto que ele necessita de um passatempo"; por isso, segundo ele, a vida oscilava continuamente entre a dor e o T. (Die Welt, I, § 57). Com mais profundidade e antecipando o existencialismo, Leopardi via
no T. a experiência da nulidade de tudo o que é: "O que é o T.?" — perguntava. "Nenhum mal ou dor em especial
(aliás, a idéia e a natureza do T. excluem a presença de qualquer mal ou dor), mas apenas a vida plenamente sentida,
experimentada, conhecida, plenamente presente no indivíduo, ocupando-o por inteiro" (Zibaldone, VI, p. 421).
Heidegger repetiu essas idéias, percebendo no T. o sentimento que revela a totalidade das coisas existentes, em sua
indiferença: "O verdadeiro T. não é aquele provocado por um livro, por um espetáculo ou por um divertimento que
nos maçam, mas o que nos invade quando 'nos entediamos': o T. profundo que, como névoa silenciosa, recolhe-se nos
abismos de nosso existir, comunga homens e coisas, nós com tudo o que há em torno de nós, numa singular
indiferença. Esse é o T. que revela o existente em sua totalidade" (Was ist Me-taphysik?, 5a ed., 1949, p. 28). Nesse
sentido, o T. está muito próximo da náusea (v.), de que fala Sartre, também ela experiência da indiferença das coisas
em sua totalidade. Seu precedente talvez possa ser vislumbrado na melancolia (.Schwermui), que, segundo
Kierkegaard, é a desembocadura inevitável da vida estética. "Se perguntarmos a um melancólico qual a razão para ser
assim e o que o desgosta, responderá que não sabe, que não pode explicar. Nisso consiste a infinidade da melancolia"
(En-tweder-Oder, em Werke, II, p. 171). Nesse sentido, melancolia é a acídia medieval (Ibid., II, 168), sendo
considerada por Kierkegaard a "histeria do espírito", o pecado fundamental, porquanto "é pecado não querer com
profundidade e sentimento" (Jbid., p. 171).
TEÍSMO (in. Theisni; fr. Théisme, ai. Theis-mus, it. Teismo). Este termo, usado desde o séc. XVII para indicar
genericamente a crença em Deus, em oposição a ateísmo (assim também em Voltaire, Dictionnaire philosophique, a.
Théiste), foi definido por Kant, no seu significado específico, em oposição a deísmo (v.). Kant diz: "Quem só admite
uma teologia transcendental é chamado de deísta; quem admite também uma teologia natural é chamado de teísta. O
primeiro admite que com a razão apenas podemos conhecer um Ser originário do qual só temos um conceito
transcendental, de Ser que tem realidade mas que não pode ter nenhuma determinação a mais. O segundo afir-
TELEGNOSE
943
TELEPATIA
ma que a razão tem condições de dar mais determinações do objeto segundo a analogia com a natureza, ou seja, pode
determiná-lo como Ser que, por intelecto e liberdade, contenha em si o princípio originário de todas as outras coisas.
Aquele representa esse Ser apenas como causa do mundo (sem decidir se é uma causa que age pela necessidade de
sua natureza ou por liberdade), este representa-o como um criador do mundo" {Crít. R. Pura, Diál. transe, III, seç. 7).
Em outros termos, o deísta pode ser também panteísta e acreditar na necessidade da relação entre Deus e o mundo,
embora também possa não ser; o teísta contrapõe-se ao panteísta. Ademais, indo além daquilo em que a razão pura
permite acreditar, o teísta afirma a respeito de Deus qualidades ou características não testemunhadas pela razão, mas
pela revelação; nesse sentido, como Kant diz mais adiante, no mesmo trecho, ele crê num "Deus vivo" (v. também
Crít. do Juízo, § 72). Essas observações de KANT definiram o significado do termo no uso contemporâneo, em virtude
do que T. se contrapõe não só a ateísmo mas também a deísmo e a panteísmo, admitindo-se Deus como pessoa,
embora em sentido mais elevado do que o comumente atribuído ao homem.
Nesse sentido, o T. é um aspecto essencial do espiritualismo (ou personalismo) contemporâneo, especialmente na sua
reação ao idealismo romântico, que é sempre tendencialmen-te panteísta. O T. foi explicitamente defendido tanto pelo
espiritualismo que reagiu ao hege-lianismo clássico (Fichte Júnior, Lotze e outros) ou ao positivismo (Renouvier,
Boutroux e outros), quanto pelo espiritualismo que reagiu ao neo-idealismo romântico surgido nas primeiras décadas
do séc. XX na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Itália, do qual o próprio espiritualismo extrai muitos dos seus
temas. (V. para o T. anglo-saxão W. E. HOCKING, Meaning of God in Human Experience, 1912; A. SETH PRINGLEPATTISON, Theldea ofGod in theLightof Recent Philosophy, 1917; CLEMENT C. J. WEBB, God andPersonality, 1920,
etc. Para o T. italiano: as obras de Carlini, Guzzo, Sciacca e outros).
TELEGNOSE (in. Telegnosis). O mesmo que vidência: faculdade de conhecer acontecimentos distantes sem auxílio
dos meios de conhecimento normais (v. TELEPATIA).
TELEGRAMA, ARGUMENTO DO (in. Te-legram argument; ai. Telegrammbeispiel; it. Argomento deltelegrammd). Argumento ou exemplo aduzido por F. A. Lange para ilustrar a tese materialista de que as
reações psíquicas dependem dos estímulos físicos e de que é possível reduzir o que comumente se chama de alma ou
consciência a mecanismos fisiológicos. O T. que anuncia a um comerciante a falência de um de seus correspondentes
determina uma série de reações que podem ser fisiologicamente descritas do mesmo modo como se descreve
fisicamente (em termos de ondulações luminosas) o estímulo que as provocou {Geschichte des Materialismus, II, III,
2 e anotação 39; trad. it., II, pp. 385 ss. e 661 ss.). Algumas vezes esse argumento foi invertido e usado para
demonstrar a relativa independência das reações em relação aos estímulos. O T. "Seu filho morreu" difere só por uma
letra do T. "Meu filho morreu", mas produz uma reação completamente diferente que não corresponde à diferença
física entre os estímulos, nas pessoas que os recebem (v. C. D. BROAD, The Mind and its Place in Nature, 1925, pp.
118 ss.).
TELEÓCLISE (ai. Teleoklisè). Tendência à atividade finalista, considerada própria dos organismos vivos. Termo
raro.
TELEOFOBIA (ai. Teleophobié). Aversão ao finalismo.
TELEOLOGIA (in. Teleology, fr. Téléologie, ai. Teleologia; it. Teleologià). Este termo foi criado por Wolff para
indicar "a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas" (Log., 1728, Disc. prael, § 85). O mesmo que
finalismo (v.).
TELEONOMIA. (in. Teleonomy, fr. Téléo-nomie, it. Teleonomiã). Termo usado pelos biólogos modernos para
indicar a adaptação funcional dos seres vivos e de seus artefatos à conservação e à multiplicação da espécie. Deu-se o
nome de informação teleonômica à quantidade de informações que deve ser transmitida para que as estruturas vitais
sejam realizadas e conservadas (cf., p. ex., J. MONOD, Le hasard et Ia necessite, 1970, pp. 26 ss.)
TELEOSE (ai. Teleosis). Perfeição. É a transcrição fonética da palavra grega.
TELEPATIA (in. Telepathy, fr. Télépathie, ai. Telepathie, it. Telepatia). Uma forma de teleg-nose, mais
precisamente a que consiste em conhecer os estados do espírito de pessoas distantes ou de saber o que lhes está
acontecendo, sem a ajuda dos meios de conhecimento normais. Esse termo foi proposto pela Society for Psychical
Researches, de Londres, em 1882,
TEMA
944
TEMPO
e comumente aceito. Às vezes, como sinônimo, usa-se Telestesia (v. D. J. WEST, Psychical Research Today, 1954,
cap. VI).
TEMA (lat. Thema; in. Theme, fr. Thème, ai. Thema; it. Tema). Assunto ou objeto de indagação, discurso ou estudo.
Na terminologia filosófica contemporânea são também usados os termos tematizar e tematizaçâo para indicar a
escolha ou a formação dos T., que é uma fase importante e muitas vezes decisiva da investigação. Heidegger, em
especial, entendeu por tematizaçâo a manifestação dos seres intra-mundanos, em virtude do que tornam-se objetos
(Sein und Zeit, 69 b).
TEMPERAMENTO (gr. Kpãoiç; lat. Tempera-mentum-, in. Temper, fr. Tempérament; ai. Tempérament; it.
Temperamento). Disposição do homem a agir de um modo ou de outro segundo a mescla de humores que compõem
seu corpo. A teoria do T. foi criada pelo pai da medicina, Hipócrates (séc. V a.C), e propagou-se como teoria médica.
Hipócrates admitia quatro humores fundamentais: sangue, fleuma (linfa, soro, muco nasal e intestinal, saliva), bile
amarela e atrabile ou bile negra (considerada como secreção do pâncreas), correspondentes aos quatro elementos do
macrocosmo. Conforme o humor predominante, temos os quatro T. fundamentais: sangüíneo, fleumático, bilioso e
melancólico ou atrabiliário. {De nat. hom., 4). Encontram-se alusões a essa teoria ou a teorias semelhantes em Platão
(O Banq., 188a; Tim., 86B), em Aristóteles {Problem., 30, 1), em Sê-neca {De ira, II, 18 ss.), em Lucrécio {De rer.
nat., III, 288 ss.), em Plutarco {Quaest. nat., 26) e em outros, sem ligação com os pressupostos filosóficos de que
esses autores partem, como demonstra a sua unânime aceitação. Na Idade Média a teoria dos T. também foi
propagada por meio da medicina, especialmente árabe (Avicena e Averróis), chegando aos médicos e magos do
Renascimento. Paracelso substituiu os humores hipocráticos por seus três elementos (enxofre, sal e mercúrio), na
classificação dos temperamentos. Contudo, a noção de T. não sofreu modificação até Kant, que, para resumi-la,
distinguiu o aspecto fisiológico e o aspecto psicológico do T. "Fisiologicamente falando, o T. é formado pela
constituição física (estrutura forte ou fraca) e pela compleição (fluido posto regularmente em movimento pela força
vital, no que se inclui o calor ou o frio produzido na elaboração desses humores). Psicologicamente falando, como T.
da alma (do
poder afetivo e apetitivo), essa expressão, derivada da propriedade do sangue, refere-se à analogia entre os
sentimentos e os desejos com as causas físicas e motoras (das quais a principal é o sangue)" (Antr, II, 2). Depois,
Kant retomaria a antiga classificação hipocrática dos T., que muitas vezes também teve aceitação na psicologia
moderna (p. ex., V. WUNDT, Phy-siologischePsychologie, II4, pp. 519 ss.). Mas na psicologia, essa palavra deixou de
ser usada desde o fim do século XTX, sendo substituída por caráter (v.).; que numa das suas acepções significa a
estrutura orgânica originária que condiciona as disposições naturais do indivíduo. O uso da palavra caráter marca
também a passagem dessa noção do domínio da medicina para o da psicologia e da filosofia.
TEMPERANÇA (gr. aaxppocrúvri; lat. Tempe-rantia; in. Temperance, fr. Tempérance, ai. Be-sonnenheit; it.
Temperanza). Uma das virtudes éticas de Aristóteles, mais precisamente a que consiste no justo uso dos prazeres
físicos. Aristóteles notava que a T. não se refere a todos os prazeres físicos (não compreende, p. ex., os que derivam
da visão ou da audição), mas apenas os que derivam da alimentação, da bebida e do sexo {Et. nic, III, 9-12). Platão
definiu a T. de modo diferente: para ele, era "a amizade e a concordância das partes da alma, existentes quando a
parte que comanda e as que obedecem concordam na opinião de que cabe ao princípio racional governar, e assim não
se lhe opõem"; segundo Platão, isso é T., tanto para o indivíduo quanto para o Estado {Rep., IV. 442 b). Os estóicos
definiram a T. como "a ciência das coisas a serem desejadas e das coisas a serem evitadas" Q. STOBEO, Ecl, II, 6,
102). A ética de Demócrito também cuidou do assunto: "A sorte nos dá a mesa suntuosa; a T. nos dá a mesa em que
nada falta" {Fr. 210, Diels).
TEMPO (gr. xpóvoç; lat. Tempus; in. Time, fr. Temps; ai. Zeit; it. Tempo). Podemos distinguir três concepções
fundamentais: Ia o T. como ordem mensurável do movimento; 2-o T. como movimento intuído; 3a o T. como
estrutura de possibilidades. À primeira concepção vinculam-se, na Antigüidade, o conceito cíclico do munijo e da
vida do homem (me-tempsicose) e, na época moderna, o conceito científico de tempo. À segunda concepção vinculase o conceito de consciência, com a qual o T. é identificado. A terceira concepção, derivada da filosofia
existencialista, apresenta algumas inovações na análise do conceito de tempo.
TEMPO
945
TEMPO
Ia A concepção de T. mais antiga e difundida considera-o como ordem mensurável do movimento. Os pitagóricos, ao
definirem o T. como "a esfera que abrange tudo" (a esfera celeste), relacionaram-no com o céu, que com o seu
movimento ordenado permite medi-lo perfeitamente (ARISTÓTELES, Fts., IV, 10, 218 a 33). Ao definir o T. como "a
imagem móvel da eternidade", Platão {Tim., 37 d) pretende dizer que, na forma dos períodos planetários, do ciclo
constante das estações ou das gerações vivas e de qualquer espécie de mudança, ele reproduz no movimento a
imutabilidade do ser eterno {Ibid., 38 b-39 d). A definição de Aristóteles, "o T. é o número do movimento segundo o
antes e o depois" {Fís., IV, II; 219 b 1), é a expressão mais perfeita dessa concepção, que identifica o T. com a ordem
mensurável do movimento. Não é diferente o significado da definição dos estóicos, segundo a qual o T. é "o intervalo
do movimento cósmico" (DIÓG. L., VII, 141). Na verdade, intervalo não passa de ritmo, ordem, movimento cósmico.
Talvez não seja diferente tampouco o significado da definição de Epi-curo: "O T. é uma propriedade, um
acompanhamento do movimento" 0' STOBEO, Ecl., I, 8, 252). Na Idade Média, essa concepção do T. foi
compartilhada por realistas (ALBERTO MAGNO, S. Th., I, q. 21, a. I; S. TOMÁS, S. Th., 1. q. 10, a. 1) e por nominalistas
(OCKHAM, In Sent, II, q. 12), que repetiram unanimemente a definição de Aristóteles. Telésio, que criticava essa
definição, reduziu o T. à duração e ao intervalo do movimento {De rer. nat., I, 29). Hobbes definiu o T. como
"imagem (phantasmà) do movimento, na medida em que imaginamos no movimento o antes e o depois, ou seja, a
sucessão"; "; considerava que essa definição estava de acordo com a de Aristóteles {De corp., 7, 3). Descartes
simplesmente repetia essa última, definindo o T. como "número do movimento" {Princ. phil, I, 5 7). Locke criticava a
vincu-lação do T. ao movimento, estabelecida pela definição de Aristóteles, só para afirmar que o T. está ligado a
qualquer espécie de ordem constante e repetível: "Qualquer aparição periódica e constante, ou mudança de idéias, que
acontecesse entre espaços de duração aparentemente eqüidistantes, e fosse constante e universalmente observável,
poderia servir para distinguir intervalos do T. tão bem quanto as que foram usadas na realidade" {Ensaio, II, 14, 19).
Para definir o T., Berkeley substituía a ordem do movimento pela ordem das idéias,
ou melhor, a ordem do movimento externo pela ordem do movimento interno: "Se eu tentar construir uma simples
idéia do T. abstraindo da sucessão de idéias de meu espírito, que flui uniformemente e é compartilhada por todos os
seres, estarei perdido e embaraçado por dificuldades inexplicáveis" {Principies ofHuman Knowledge, I, 98).
Essa concepção de T. fundamentou a mecânica de Newton, que distinguia o T. absoluto e o T. relativo, mas a ambos
atribuía ordem e uniformidade. "O T. absoluto, verdadeiro e matemático, na realidade e por natureza, sem relação
com nada de externo, flui uniformemente {aequabiliter) e também se chama duração. O T. relativo, aparente e
comum é uma medida sensível e externa da duração por meio do movimento" {Naturalis philosophiae principia, I,
def. VIII). Nessa definição de Newton, o uniforme fluir da duração absoluta é confrontado com a uniformidade do
movimento que é tomado como medida do tempo. Leibniz esclarecia o mesmo conceito do seguinte modo: "Conhecendo-se as regras dos movimentos não uniformes, é possível relacioná-los com os movimentos uniformes
inteligíveis e prever com este meio o que acontecerá a diferentes movimentos reunidos. Nesse sentido, o T. é a
medida do movimento, ou seja, o movimento uniforme é a medida do movimento não uniforme" {Nouv. ess., II,
14,16). Portanto, definia o T. como "uma ordem de sucessões" {Troisième lettre ã Clarke, § 4): definição aceita por
Wolff {Ont., § 572) e por Baumgarten {Mel, § 239)- Essa era a concepção a que Kant se referia implicitamente, ao
afirmar, em Estética transcendental, a idealidade transcendental do T., ao lado de sua realidade empírica (v. mais
adiante). Mas a principal contribuição de Kant na interpretação do conceito de T. não está na Estética transcendental,
mas na Analítica dos princípios, mais precisamente no estudo da segunda analogia, ou "princípio da série temporal
segundo a lei da causalidade". Aí Kant reduz ordejfl de sucessão a ordem causai. Afirma que uma coisa só "pode
conquistar seu lugar no T. com a condição de que no estado precedente se pressuponha outra coisa à qual esta sempre
deva seguir-se, ou seja, segundo uma regra". A série temporal não pode inverter-se porque, "uma vez posto o estado
precedente, o acontecimento deve seguir-se infalível e necessariamente"; portanto, "é lei necessária de nossa
sensibilidade e, conse-
TEMPO
946
TEMPO
qüentemente, condição formal de todas as percepções que o T. precedente determine necessariamente o seguinte".
Isso realmente permite a distinção entre percepção real do T. e imaginação, que poderia e pode inverter a ordem dos
eventos, transformando a sucessão temporal em "único critério empírico do efeito em relação à causalidade da causa"
(Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 3). Essa redução do T. à ordem causai, defendida por Kant em relação
ao conceito de T. dominante em sua época (derivada da física newtoniana), foi reapresentada em nossos dias com
relação à física einsteiniana. Ao afirmar a relatividade da medida temporal, Einstein na realidade não inovou o
conceito tradicional de T. como ordem de sucessão: só negou que a ordem de sucessão fosse única e absoluta (v.
Über die spezielle und die allgemeine Relativitàtstheorie, 1921, §§ 8-9). Em confronto com a física de Einstein, H.
Reichenbach voltou a propor a tese kantiana da identidade do T. com a causalidade: "O T. é a ordem das cadeias
causais: este é o principal resultado das descobertas de Einstein" (Albert Einstein: Philosopher-Scientist, ed. por P. A.
Schilpp, 1949, pp. 289 ss.). "A ordem do T., a ordem do antes e do depois, é redutível à ordem causai. (...) A inversão
da ordem temporal para certos eventos, resultado que deriva da relatividade da simultaneidade, é apenas uma
conseqüência desse fato fundamental. Uma vez que a velocidade de transmissão é limitada, existem eventos tais que
nenhum deles pode ser causa ou efeito do outro. Para tais eventos, a ordem do T. não é definida, e cada um deles
pode ser chamado de posterior ou anterior ao outro" (Ibid., 1949, pp. 289 ss.). Esses mesmos conceitos foram
explicados por Reichenbach em seu livro póstumo The Direction ofTime (1956), no qual identifica a ordem do T.
com a causalidade, e a direção do T. com a entropia crescente (v. especialmente §§ 6, 16).
A redução do T. a causalidade pode ser considerada a mais importante (mas não por isso a mais consistente)
proposição filosófica apresentada no campo da concepção do T. como ordem. Ao contrário, tem bem menos
importância a discussão — a que muitas vezes os filósofos se inclinaram — sobre a subjetividade ou objetividade do
T. Foi Aristóteles quem deu início a tais discussões, chegando à conclusão de que, se por um lado o T. como medida
não pode existir sem a alma — pois só a alma pode
medir —, por outro lado o movimento ao qual a medida se refere não depende da alma (Fís., IV, 14. 223 a 20-29). No
séc. XIV, retomando essas considerações, Ockham afirmava que não existiria T. se a alma não pudesse medir nem
numerar (In Sent., II. q. 12). Até Hobbes chamava o T. de imagem (v. definição citada anteriormente). Menos
significativa é a redução do T., de autoria de Locke e de Berkeley, à ordem das idéias: porque as idéias, para esses
filósofos, são os únicos objetos de que se pode falar. Quanto ao "subjetivismo" da concepção kantiana, segundo a
qual o tempo é "intuição pura", condição de qualquer percepção sensível, não passa de mal-entendido, pois só o T.
pode ser considerado subjetivo com relação às coisas em si, que estão além da consideração humana, mas é objetivo e
real em relação às coisas naturais, em virtude do que o T. tem "realidade empírica" indubitável (Crít. R. Pura, §§ 6,
7). Além disso, o objetivismo da concepção kantiana é demonstrado pela redução do T. à ordem causai: tese a que os
neo-em-piristas chegaram sem conhecer sua prove-niência kantiana.
2- A segunda concepção fundamental de T. considera-o como intuição do movimento ou "devir intuído". Esta última
definição é de He-gel, que acrescenta ser "o T. o princípio mesmo do Eu = Eu, da autoconsciência pura, mas é esse
princípio ou o simples conceito ainda em sua completa exterioridade e abstração" (Ene, § 258). Portanto, Hegel não
identifica o T. com a consciência, mas com algum aspecto parcial ou abstrato da consciência. Sem essa limitação,
Schelling dissera: "o T. outra coisa não é senão o sentido interno que se torna objeto para si" (System des
transzendentalen Idealismus, seç. III, Segunda época, D; trad. it., p. 141). A rigor, a concepção de T. como intuição
do devir traz em seu bojo a redução de T. a consciência. Isso já acontece em Plotino. Segundo este último, o T. não
existe fora da alma: "é a vida da alma e consiste no movimento graças ao qual a alma passa de uma condição de sua
vida para outra" (Enn., III, 7.11); assim, pode-se dizer que até o universo está no T. só na medida em que está na
alma, ou seja, na alma do mundo (Ibid., III, 7, 3). A S. Agostinho deve-se a melhor expressão e a difusão dessa
doutrina na filosofia ocidental. O T. é identificado por Agostinho com a própria vida da alma que se estende para o
passado ou para o futuro (extensio ou distensío animi). S. Agostinho diz: "De que modo dimi-
TEMPO
947
TEMPO
nui e consuma-se o futuro que ainda não existe? E de que modo cresce o passado que já não é mais, senão porque na
alma existem as três coisas, presente passado e futuro? A alma de fato espera, presta atenção e recorda, de tal modo
que aquilo que ela espera passa, através daquilo a que ela presta atenção, para aquilo que ela recorda. Ninguém nega
que o futuro ainda não exista, mas na alma já existe a espera do futuro; ninguém nega que o passado já não exista,
mas na alma ainda existe a memória do passado. E ninguém nega que o presente careça de duração porque logo
incide no passado, mas dura a atenção por meio da qual aquilo que será passa, afasta-se em direção ao passado"
(Conf, XI, 28,1). A tese fundamental dessa concepção de T. foi enunciada pelo próprio S. Agostinho: "A rigor, não
existem três T., passado, presente e futuro, mas somente três presentes: o presente do passado, o presente do presente
e o presente do futuro" (íbid., XI. 20, 1).
Na filosofia moderna, Bergson reexpôs essa concepção, contrapondo-a ao conceito científico de tempo. Segundo ele,
o T. da ciência é espacializado e, por isso, não tem nenhuma das características que a consciência lhe atribui. Ele é
representado como uma linha, mas "a linha é imóvel, enquanto o T. é mobilidade. A linha já está feita, ao passo que o
T. é aquilo que se faz; aliás, é aquilo graças a que todas as coisas se fazem" {La pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p.
9). Já em sua primeira obra, Essai sur les données immédiates de Ia conscience, Bergson insistira na exigência de
considerar o T. vivido (a duração da consciência) como uma corrente fluida na qual é impossível até distinguir
estados, porque cada instante dela transpõe-se no outro em continuidade ininterrupta, como acontece com as cores do
arco-íris. Esse ficou sendo o conceito fundamental de sua filosofia. Segundo Bergson, o T. como duração possui duas
características fundamentais: ls novidade absoluta a cada instante, em virtude do que é um processo contínuo de
criação; 2- conservação infalível e integral de todo o passado, em virtude do que age como uma bola de neve e
continua crescendo à medida que caminha para o futuro. Não muito diferente é o conceito de Husserl sobre o "T.
feno-menológico". Ele afirma: "Toda vivência efetiva é necessariamente algo que dura; e com essa duração insere-se
em um infinito contínuo de durações, em um contínuo pleno. Tem necessariamente um horizonte temporal atualmente infinito de todos os lados. Isso significa que pertence a uma corrente
infinita de vivências. Cada vivência isolada, assim como pode começar, pode acabar e encerrar sua duração; é o que
acontece, p. ex., com a experiência de uma alegria. Mas a corrente de vivências não pode começar nem acabar"
ildeen, I, § 81). Isso significa que, assim como a duração bergso-niana, a corrente de vivências tudo conserva e é uma
espécie de eterno presente.
3a O terceiro conceito de T. transforma-o em estrutura da possibilidade. Esse é o conceito encontrado em Heidegger
na obra Ser e T. (1927), que já no título anuncia a identidade dos dois termos. A primeira característica dessa
concepção é o primado do futuro na interpretação do tempo; as duais concepções anteriores fundam-se no primado do
presente. O T. como ordem do movimento é uma totalidade presente porque toda ordem pressupõe a simultanei-dade
de suas partes, de cuja recíproca adaptação ela nasce. A concepção de T. como devir intuído só faz interpretá-lo em
função do presente, porque a intuição do devir é sempre um agora, um instante presente. Heidegger, ao contrário,
interpretou o T. em termos de possibilidade ou de projeção: o T. é originariamente opor-vir {Zu-kunft); mais
precisamente: quando o T. é autêntico (originário e próprio da existência), é "o porvir do ente para si mesmo na
manutenção da possibilidade característica como tal". "Porvir não significa um agora, que, ainda não tendo se
tornado atual, algum dia o será, mas o advento em que o ser-aí vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a
antecipação que torna o ser-aí propriamente porvindouro, de sorte que a própria antecipação só é possível porque o
ser-aí, enquanto ente, sempre já vem a si" (Sein und Zeit, % 65). O passado, como um ter-sido, é condicionado pelo
porvir porque, assim como são possibilidades autênticas aquelas que já foram, também já foram as possibilidades às
quais o homem pode autenticamente retornar e de que ainda pode apropriar-se (Ibid., § 65). Tanto o T. autêntico, em
que o ser-aí projeta sua própria possibilidade privilegiada (o que já foi, de tal modo que suas escolhas são escolhas do
já escolhido, isto é, da impossibilidade de escolher), quanto o T. inautêntico, que é o da existência banal, como
sucessão infinita de instantes, ambos são o so-brevir do que a possibilidade projetada apresenta ao ser-aí (isto é, ao
homem); portanto são
TEMPO
948
TENSÃO
um apresentar-se, a partir do futuro, daquilo que já foi no passado {Jbid., § 80, 81). A análise heideggeriana do T.
sem dúvida contém um grande compromisso metafísico, porquanto o T. é considerado uma espécie de círculo, em
que a perspectiva para o futuro é aquilo que já passou; por sua vez, o que já passou é a perspectiva para o futuro.
Nesse sentido, Heidegger fala de T. finito, ou autêntico, já que T. inau-têntico (que ele também chama de databilidade ou T. público) é o desconhecimento parcial da natureza do T. e a sua concepção como linha aberta e sucessão
infinita de instantes {Sein undZeit, §§ 79-81). Todavia, a análise de Heidegger contém alguns elementos de interesse
filosófico notável porque constitui uma importante inovação na análise do conceito de tempo. Esses elementos são os
seguintes:
ls Mudança do horizonte modal, passando-se da necessidade à possibilidade: o T. já não é integrado numa estrutura
necessária, como a ordem causai, mas na estrutura da possibilidade. Esse aspecto pode ser utilizado para expressar
adequadamente a transformação a que a noção de T. foi submetida pela relatividade de Einstein. Com efeito, se dois
eventos são simultâneos segundo certo sistema de referência mas podem não ser simultâneos segundo um outro,
conclui-se que o T. não é uma ordem necessária, mas a possibilidade de várias ordens.
2- O primado do futuro na interpretação do T. não constitui apenas uma alternativa diferente do primado do presente
e a ele oposta, na qual se baseiam as outras duas interpretações principais, mas também oferece a possibilidade de não
achatar sobre o presente as outras determinações do T. e de entendê-las em sua natureza específica: o futuro como
futuro (e não como "presente do futuro") e o passado como passado.
3e A relação entre passado e futuro, que Heidegger enrijeceu num círculo, pode ser facilmente dissolvida com a
introdução da noção de possível. O passado pode ser entendido como ponto de partida ou fundamento das
possibilidades porvindouras, e o futuro como possibilidade de conservação ou de mudança do passado, em limites (e
aproximações) de-termináveis.
4a A introdução de novos conceitos inter-pretativos, expressos por termos como projeto ou projeção, antecipação,
expectativa, etc, mostraram-se úteis nas análises filosóficas e passaram a fazer parte do uso filosófico corrente.
TEMPORAL (in. Temporal; fr. Temporel; ai. Zeitlich; it. Temporalé). 1. O que pertence ao tempo, diz respeito ao
tempo ou acontece no tempo. P. ex., ordem T., esquema T., etc.
2. O que é mundano, pertence à ordem do tempo, em contraposição ao que é espiritual e pertence à ordem da
eternidade. A contraposição entre T. e espiritual é um dos temas dominantes do cristianismo paulino (v., p. ex., Ad
cor., II, IV, 18; Adhebr., XI, 25; etc).
TEMPORÁRIO (in. Temporary, fr. Tempo-raire, ai. Einstweilig; it. Temporaneó). De pouca duração, provisório.
TENDÊNCIA (in. Tendency, fr. Tendance, ai. Trieb, it. Tendenzd). Entende-se porT. todo impulso habitual e
constante para a ação. Nisso a T. distingue-se do impulso (v.), que é a ação súbita e temporária. Kant restringiu o
significado desse termo a apetite habitual, de natureza sensível (Antr., § 73). Schiller admitiu três T. fundamentais no
homem; a primeira, de natureza sensível, instiga-o à mudança; a segunda, ou T. à forma, instiga-o à imutabilidade;
finalmente, a terceira, ou T. ao jogo, instiga-o a combinar as duas primeiras (Briefe über die aesthetische Erziehung,
12, 13). A esta distinção Fichte contrapôs outra, entre a T. ao conhecimento, que torna o homem um "ser
representante", a T. prática, que visa à modificação e à formação das coisas, e a T. estética, que visa a determinada
representação só em vista dela mesma, e não da coisa ou do conhecimento da coisa (Werke, VIII, pp. 278-79). Mais
recentemente, Jaspers distinguiu três ordens de T.: Ia as sensíveis, com correlato somático (fome, sede, sexo, etc); 2 a
as vitais mas sem localização somática (T. à auto-exaltaçâo ou à submissão, à imigração, à sociabilidade, etc); 3 a as
espirituais, voltadas para a realização de valores {Allgemeine Psychopathologie, 1913).
TENSÃO (gr. tóvoç; in. Tension-, fr. Tension; ai. Spannung; it. Tensioné). 1. Conexão entre dois opostos que estão
ligados apenas por sua oposição. Segundo os antigos (v. FÍLON, Rer. div. Her., 43), esse conceito constituía a grande
descoberta de Heráclito; este dissera: "Os homens não sabem como aquilo que é discordante está em acordo consigo:
harmonias de T. opostas, como as do arco e da lira" {Fr. 51, DIELS). Nesse sentido, os estóicos também falaram da T.
que mantém o universo coeso (AR-
TEOCRACIA
949
TEOLOGIA
NIM, Stoic.fragm., II, 134). Enquanto a dialética (v.) é a unidade dos opostos como síntese ou conciliação, a T. é o elo
entre os opostos como tais, sem conciliação ou síntese. Por isso, as situações de T. não permitem prever conciliação;
essa palavra é usada com esse sentido mesmo na linguagem comum, como quando se fala da "T. internacional". No
mesmo sentido, fala-se de "T. psicológica" para indicar um estado latente de conflito.
2. Os estóicos (mais precisamente Cleantes; v. ARNIM, Stoic. frag., I, 128) introduziram a noção de T. como força
tendente a um resultado: nesse sentido, é sinônimo de tendência ou de esforço, especialmente de esforço prolongado
ou penoso.
TEOCRACIA (in. Theocracy, fr. Théocratie, ai. Theokratie, it. Teocrazia). 1. Regime político em que o governo é
exercido pela casta sacer-dotal. Nesse sentido foram T. o estado hebraico, o estado maometano e o calvinismo de
Genebra.
2. Doutrina da supremacia do poder eclesiástico, do qual o poder civil extrairia direito e investidura. T. nesse sentido
encontrar-se-ia na Idade Média.
3. Mais em geral, qualquer doutrina segundo a qual toda autoridade provém de Deus (v. AUTORIDADE).
TEOCRASIA(gr. 6eoKpocoía; in. Theocrasy, fr. Théocrasie, ai. Tbeocrasie, it. Teocrasiá). União ou mescla da
alma com Deus, no misticismo (v. JÂMBLICO, De vita pythagorica, 33, 240).
TEODICÉIA (in. Theodicea; fr. Théodicée, ai. Theodizee, it. Teodiced). Termo criado por Leibniz e que serviu de
título a uma de suas obras {Ensaio de T. sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, 1710),
para demonstrar que há justiça divina por meio da solução de dois problemas fundamentais: o do mal e o da liberdade
humana. Sobre o primeiro problema, a T. de Leibniz responde mais especificamente às considerações desenvolvidas
por Bayle em seu Dicionário (1697), que na realidade só ampliavam o que epicuristas já haviam dito em polêmica
com os estóicos: "Deus não quer, ou não pode, ou pode e não quer, ou não quer nem pode, ou quer e pode eliminar o
mal. Se quer e não pode, é impotente: o que Deus não pode ser. Se pode e não quer, é invejoso, o que igualmente é
contrário a Deus. Se não quer nem pode, é invejoso e impotente, portanto não é Deus. Se quer e pode — única coisa
que convém a Deus —, qual a
origem da existência do mal e por que não os elimina?" {Fr. 374, Usener). A solução de Leibniz é a tradicional: o mal
não é uma realidade; portanto, a responsabilidade por ele não remonta a Deus (v. MAL). Quanto ao problema da
liberdade, Leibniz discute principalmente as várias formas assumidas pelo determinismo teológico na literatura
protestante de seu tempo, para reivindicar a liberdade do homem no sentido tradicional de autodeterminação (v.
LIBERDADE). Deus predispõe sem determinar, e a liberdade do homem não consiste na indeter-minação absoluta, ou
seja, no arbítrio de indiferença, mas na ausência de necessidade e de coação (v. LIBERDADE). A partir de Leibniz, a T.
passa a ser considerada parte fundamental da teologia racional (v. TEOLOGIA).
TEOFANIA (lat. Theophania; in. Theopha-ny, fr. Théophanie, ai. Theophanie, it. Teofa-nid). Esse termo, que
significa "visão de Deus", foi usado por Scotus Erigena (séc. IX) para indicar o mundo como manifestação de Deus.
Segundo ele, T. é o processo de descida de Deus ao homem através da criação e de retorno do homem a Deus através
do amor. T. também é qualquer obra da criação que manifeste a essência divina, que assim se torna visível nela e
através dela {De divis. nat, I, 10; V, 23).
TEOGNOSE (ai. Theognosis). Conhecimento científico de Deus (v. C. F. KRAUSE, Vorlesun-gen über das System
der Phiolosophie, 1828, p. 27). Termo bastante raro.
TEOGONIA (gr. 8eoTOVÍa; in. Theogony, fr. Théogonie, ai. Theogonie, it. Teogonid). Geração dos deuses e do
mundo: cosmologia mítica (V. PLATÃO, Leis, X, 886 c) (v. COSMOLOGIA).
TEOLOGAIS, VIRTUDES (lat Virtutes theologicae, in. Theological virtues; fr. Vertus theologiques; ai.
Theologische Tugenden; it. Virtú teologiché). Foram assim chamadas na Idade Média a fé, a esperança e a caridade,
virtudes que dependeriam de dons divinos e que visaram a obter a bem-aventurança a que o homem não pode chegar
só com as forças da sua natureza. Por esse caráter sobrenatural, as virtudes T. distinguem-se das éticas (v.) e dianoéticas{v.) (v. S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 62, a. 1). Para as virtudes em separado, vejam-se os respectivos verbetes.
TEOLOGIA (gr. 0eo^oyía; lat. Theologia; in. Theology fr. Théologie, ai. Theologie, it. Teologia). Em geral,
qualquer estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divi-
TEOLOGIA
950
TEOLOGIA
nas. Foi nesse sentido generalíssimo que essa palavra foi entendida pelo grande erudito romano Marco Terêncio
Varrão (séc. I a.C), cuja distinção de três T. foi transmitida por S. Agostinho: T. mítica ou fabulosa; T. natural ou
física; T. civil. A T. mítica ou fabulosa é utilizada pelos poetas e admite muitas ficções contrárias à dignidade e à
natureza da divindade. A T. natural é a dos filósofos e estuda "o que os deuses são, o lugar em que residem, o gênero
deles, sua essência, o tempo em que nasceram ou sua perenidade, e se o princípio deles está no fogo, como crê
Heráclito, nos números, como afirma Pitágoras, ou nos átomos, como acredita Epicuro". Finalmente, a T. civil "deve
ser conhecida e praticada pelos cidadãos, principalmente pelos sacerdotes; ensina quais as divindades a serem
veneradas publicamente e quais as cerimônias e sacrifícios a serem realizados" (AGOSTINHO, De civ. Dei, VI, 5).
Nesse sentido varroniano, Viço considerava a sua "ciência nova" como "uma T. civil e racional da providência",
porquanto sua origem está na "sabedoria comum dos legisladores que fundaram as nações e que contemplarem Deus
com o atributo de providencial" (Sc. n., II, Corolário em torno dos aspectos principais dessa ciência). Em sentido mais
especificamente histó-rico-filosófico, é possível distinguir: Ia T. metafísica; 2a T. natural; 3a T. revelada; 4B T.
negativa.
ls Aristóteles chamou sua "ciência primeira", a metafísica, de T.: entendeu-a ao mesmo tempo como ciência do ser
enquanto ser (ou seja, da substância) e como ciência da substância eterna, imóvel e separada (ou seja, de Deus) (Met.,
VI, 1, 1026 a 10). Esse conceito de T. como metafísica persistiu por longos séculos. O estóico Cleantes incluía a T.
entre as partes da filosofia (DIÓG. L., VII, 41). Para Plotino, a T. era a única ciência digna desse nome (Enn., V, 9, 7).
Desse ponto de vista, os neoplatôni-cos muitas vezes chamaram os filósofos — inclusive os físicos e os materialistas
— de teólogos, porquanto eles se ocupavam (como diz Proclo) dos "princípios primeiríssimos das coisas subsistentes
por si mesmas" (Plat. theol, I, 3). Esse é também o significado que Varrão atribuía à expressão "T. natural". Esse uso
perdurou na filosofia cristã: nem na patrística nem na primeira fase da escolástica seria possível encontrar uma
delimintaçâo exata entre T. e filosofia. S. Tomás mesmo, na primeira fase de sua obra, aceitou a identidade entre T. e
metafísica,
como se vê no prólogo ao seu comentário à Metafísica de Aristóteles, onde ele diz que, como a metafísica considera
em primeiro lugar as substâncias separadas ou divinas, em segundo lugar o ente como tal e em terceiro lugar as
causas ou os princípios primeiros, "é chamada de ciência divina ou T. quando considera as substâncias separadas; de
metafísica quando considera o ente; (...) e de filosofia primeira quando considera as causas primeiras das coisas" (In
Met., Proemium).
No séc. XVII começou-se a fazer a distinção entre "filosofia primeira", que também foi chamada de ontologia (v.), e
T.; começou-se também a fazer a distinção entre T. como ciência natural e T. baseada na revelação. Essas distinções
estão claramente estabelecidas em De augumentis scientiarum (1623) de F. Bacon, que chamou de T. natural o
conhecimento que se pode obter de Deus "através da luz da natureza e da contemplação das coisas criadas" (De
augm. scient., III, 2), e de T. inspirada ou sagrada a que se baseia em princípios diretamente inspirados por Deus
(Ibid., III, 1).
2a O segundo conceito de T. é, portanto, o de T. natural, que se distingue do anterior só pelo fato de compreender
uma parte da metafísica, e não a sua totalidade; mais precisamente a parte que tem por objeto as coisas divinas. A
expressão de Bacon, "T. natural", foi retomada e difundida por Wolff: ele a definia como "a ciência do que é possível
por obra de Deus", portanto como uma parte da filosofia, que é, em geral, a ciência das coisas possíveis (Log., Disc.
prael., 57). Baumgarten insistia no caráter racional da T. assim entendida: "T. natural é a ciência de Deus, na medida
em que pode ser conhecido sem fé" (Met., § 800), e a considerava fundamento da filosofia prática, da T. e da T.
revelada (Ibid., § 601). Foi esse conceito de T. que, juntamente com seu conteúdo, Kant criticou em Crítica da Razão
Pura. Ele, porém, preocupou-se também em distinguir as várias espécies de T., e, partindo da distinção básica entre
T. racional e T. revelada, distinguiu na T. racional a T. transcendental— que "concebe seu objeto simplesmente como
razão pura, por meio de meros conceitos transcendentais (ens originarium, realissimum, ens entiurri)" — e a T.
natural, que utiliza "conceitos tomados da natureza". Por sua vez, a T. transcendental pode ser cosmoteologia, se
deduzir a existência de Deus da experiência em geral, ou onto-teologia, se deduzir sua existência a partir de
TEOLOGIA
951
TEOREMA
conceitos, sem recorrer à experiência. Finalmente, a T. natural pode ser T. física, se remontar aos atributos de Deus
partindo da ordem e da constituição do mundo, ou T. moral, se considerar Deus como o princípio da ordem e da
perfeição moral (Crít. R. Pura, Dialética, cap. III, seç. VII). Algumas dessas distinções persistiram e ainda são usadas
no campo da T. eclesiástica.
3Q A T. revelada ou sagrada extrai seus princípios da revelação. A primeira formulação explícita desse conceito é,
provavelmente, tomis-ta: S. Tomás afirma que "a sagrada doutrina é ciência porque parte de princípios conhecidos
através da luz de uma ciência superior, que é a ciência de Deus e dos bem-aventurados" (5. Th., I. q. 1, a. 2). A
"ciência de Deus e dos bem-aventurados" coincide com os "artigos de fé" ou com a "revelação divina" (Ibid., a. 78).
Era essa a T. que Duns Scot considerava ciência puramente prática, em confronto com a metafísica, que ele
considerava a ciência teórica por excelência: o único objetivo da T. seria persuadir o homem a agir em vista da
salvação (Op. Ox., Prol, q. 4, n. 42), e mesmo as verdades aparentemente teóricas teriam valor apenas prático como,
p. ex., a proposição "Deus é trino", que incluiria simplesmente o conhecimento do justo amor que o homem deve a
Deus (Jbid., Prol., q. 4, n. 31). A negação do valor cognitivo da T. persiste, no fim da es-colástica, mesmo quando
não se atribui caráter prático à sua totalidade. Ockham não considerava a T. como ciência, mas como um simples
conjunto de conhecimentos diversos, teóricos e práticos, baseados exclusivamente na autoridade e cujo único fim
seria guiar o homem para a salvação (In Sent., Prol., q. 12, E-I). Esse conceito não difere muito daquilo que Spinoza
exporia mais tarde em Tratado teológico-político (v. especialmente cap. 15).
4Q O conceito da T. negativa surgiu e propagou-se no misticismo. A distinção entre T. positiva ou afirmativa (que
parte de Deus em direção ao finito por meio da determinação dos atributos ou nomes de Deus) e T. negativa (que
parte do finito em direção a Deus e o considera acima de todos os predicados ou nomes com os quais possa ser
designado) encontra-se nos tratados do Pseudo-Dionísio, o Areopagita {De myst. theol, 1; De div. nom., I, 4; 4, 2; 13,
1; De eccl. hyerar, 2, 3), mas sua fonte está nos textos neoplatônicos, para os quais Deus está acima de todas as
determinações finitas e
do próprio ser (v. TRANSCENDÊNCIA). Essa distinção é repetida por Scotus Erigena (De divis. nat, II, 30) e retomada
pelo misticismo especulativo alemão do séc. XIV (v. ECKE-HART, em PFEIFFER, Deutsche Mystiker des 14
Jahrhunderts, II, pp. 318-19) e pelo Renascimento, com Nicolau de Cusa (Dedocta ignor., I, 24; 26) e Charles de
Bouelles (De nihilo, 11, 1, 4). Pode-se considerar manifestação dessa T. — revivida através da experiência de Kierkegaard — a chamada "T. da crise" de K. Barth, salvo pelo fato de esta não consistir na negação dos atributos finitos de
Deus, mas em considerar a relação entre o homem e Deus como a negação de todas as possibilidades humanas
(crise), que se reduziriam a meras impossibi-lidades, de tal modo que só dessa negação nasceria uma possibilidade de
salvação, cuja origem não é mais humana, porém divina (Rômerbrief, 1919).
TEOLOGIZANTE, FILOSOFIA. Foi esse o nome dado por Croce à filosofia que cuida de problemas mal
formulados e por isso irresolúveis, seja discutindo-os como problemas "máximos" ou "eternos", seja resolvendo-os
com sistemas "imaginários", seja assumindo atitude agnóstica diante deles ("Sobre filosofia T. e as suas sobrevivências", em Saggifilosofici, 1920, V, p. 297).
TEOMANCIA (in. Theomancy, ai. Theo-mantie, it. Teomanzià). Adivinhação inspirada pela divindade (v.
ENTUSIASMO).
TEOMONISMO (ai. Theomonismus). Doutrina segundo a qual Deus é a única realidade: o mesmo que acosmismo
(v.) ou panteísmo (v.).
TEONOMIA (in. Theonomy, fr. Théonomie, ai. Théonomie, it. Teonomid). Governo ou legislação de Deus. Esse
termo às vezes é contraposto a autonomia.
TEOPANTISMÓ (in. Theopantism; fr. Théo-pantisme, ai. Theopantismus-, it. Teopantismó). Doutrina segundo a
qual Deus é a única realidade: o mesmo que panteísmo (v.).
TEOPNEUSTIA (in. Theopneusty, fr. Théo-pneustíe, ai. Theopneustie, it. Teopneustià). Inspiração divina, através da
qual é comunicada a verdade revelada.
TEOREMA (gr. 0eúpr|Lia; lat. Theorema; fr. Théorème, ai. Theorem, it. Teorema). Qualquer proposição
demonstrável. Esse termo ingressou na linguagem matemática já na Antigüidade (v. ARISTÓTELES, Met., XIV, 2, 1090
a 14), mas conservou, fora da linguagem matemática, o significado de proposição não primitiva mas derivada ou
derivável de outras proposições.
TEORIA
952
TEORIA
TEORIA (gr. Becopía; lat. Theoria; in. Theory, fr. Théorie, ai. Theorie, it. Teoria)- Este termo possui os seguintes
significados principais:
1Q Especulação ou vida contemplativa. Esse é o significado que o termo teve na Grécia. Nesse sentido, Aristóteles
identificava T. com bem-aventurança (Et. nic, X, 8, 1178 b 25); T. opõe-se então a prática e, em geral, a qualquer
atividade não desinteressada, ou seja, que não tenha a contemplação por objetivo.
2° Uma condição hipotética ideal, na qual tenham pleno cumprimento normas e regras, que na realidade são
observadas imperfeita ou parcialmente. Este significado está presente quando se diz: "Teoricamente, deveria ser
assim, mas na prática é outra coisa". Kant examinou o problema da relação entre T. e prática nesse sentido num
escrito de 1793 (Über den Gemenspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nichtfür die Praxis), em
que se encontram as seguintes definições de T. é prática: "Chama-se T. um conjunto de regras também práticas,
quando são pensadas como princípios gerais, fazendo-se abstração de certa quantidade de condições que exerçam
influência necessária sobre a sua aplicação. Inversamente, o que se chama de prática não é um ato qualquer, mas
apenas o ato que concretiza um objetivo e é pensado em relação a princípios de conduta representados
universalmente" (Op. cit., princ).
3a A chamada "ciência pura", que não considera Tslífflícãçolis^dircTencIíli técnica de produção, ou então as ciências,
ou partes de ciências, que consistem na elaboração conceituai ou matemática dos resultados; p. ex., "física teórica".
4MJma_hip_ótese ou um conceito_científico. Este último significado deve ser considerado especialmente neste
verbete, visto que o problema da T. científica constitui um dos capítulos mais importantes da metodologia das
ciências. Os resultados principais das pesquisas nesse campo podem ser resumidos do modo seguinte:
«)_A_T;_científica_é üma ^E2Íʧ.e ou> Pel° menos, contém uma ou mais hipóteses como
suas partes integrantes. A ciência moderna abandonou a repugnância da ciência dos sécs. XVIII e XIX pelas
hipóteses, tão bem expressa por Newton e outros (v. HIPÓTESE). Isso aconteceu porque a hipótese deixou de ser uma
suposição sobre as causas últimas ou ocultas dos fenômenos. Kant já condenara as "hipóteses
transcendentais" que recorrem a simples idéias racionais e declarara-se favorável às hipóteses empíricas, cuja
característica é "a suficiência para determinar a priori as conseqüências que já estão dadas" (Crít. R. Pura, Teoria do
método, cap. I, seç. 3). Em 1865, ao falar das T., Claude Bernard afirmava seu caráter indispensável e ao mesmo
tempo hipotético, no sentido estrito do termo: "O experimentador formula sua idéia [ou hipótese experimental] como
uma questão, uma interpretação antecipada da natureza, mais ou menos provável, da qual deduz logicamente
conseqüências que a cada momento compara com a realidade, por meio da experiência" (Introduction à Vétude de Ia
médecine expérimentale, I, 2). E reconhecia a fecundidade das hipóteses para a descoberta de fatos novos: "O
objetivo cias hipóteses é não só levar-nos a fazer experiências novas, mas também descobrir fatos novos que não
teríamos percebido sem elas" (Ibid., III, 1, 2). No início do séc. XX, Mach reconhecia expressamente a
impossibilidade de a hipótese científica (e a hipótese em geral) ser diretamente provada pelos fatos: "Damos o nome
de hipóteses às explicações provisórias cujo fim é facilitar a compreensão dos fatos, mas que ainda escapa à
comprovação pelos fatos" (Er-kenntniss undIrrtum, 1905, cap. XIV; trad. fr., p. 240). E Duhem enumerava da
seguinte maneira as condições às quais uma hipótese deveria corresponder para ser escolhida como fundamento de
uma T. física: Ia a hipótese não deve ser uma proposição contraditória; 2 a não deve apresentar contradição com as
outras hipóteses da mesma ciência; 3S as hipóteses devem ser tais que, de seu conjunto, seja possível deduzir
matematicamente conseqüências que representem, com aproximação suficiente, o conjunto das leis experimentais (La
théorie physíque, II, 7, 1, p. 363). Poincaré, por sua vez, insistiu na necessidade de hipóteses em qualquer
procedimento experimental, mas também na necessidade de não multiplicar hipóteses. Esta última advertência nada
mais é que o antigo princípio de economia (v.), ou navalha de Ockham, sempre eficaz no campo das formulações
conceituais (La science et Vhypothèse, 1902, cap. IX).
tí) Uma T. científica não é um acréscimo interpretativo ao corpo da ciência, mas é o esqueleto desse corpo. Em outros
termos, a T. condiciona tanto a observação dos fenômenos quanto o uso mesmo dos instrumentos de ob-
TEORIA
953
TEÓRICO/TEORÉTICO
servação. Sobre esse ponto é clássico o livro de Duhem, A teoria física (1906; cf. especialmente o cap. IV da segunda
parte). Esse é um aspecto às vezes aproveitado para demonstrar o caráter relativo e imperfeito do conhecimento
científico. Foi o que fez, p. ex., E. Le Roy (Science et pbilosophie, 1899-1900). Contudo, na realidade ele não
invalida a ciência, mas apenas a tese da separação nítida entre observação e T. e a tese da verdade absoluta da ciência.
c) Além da parte hipotética, uma T. científica contém um aparato que permite a sua verificação ou confirmação.
Duhem distinguia na T. física quatro operações fundamentais: Ia a definição e a medida das grandezas físicas; 2a a
escolha das hipóteses; 3a o desenvolvimento matemático da T.; 4a o confronto entre T. e experiência (La théorie
physique, I, 2, § 1). Obviamente, as três primeiras operações constituem a construção e o deseuvolvimento da
hipótese, enquanto a quarta é diferente e constitui a fase de confirmação. Analogamente, Norman R. Campbell
distinguiu em qualquer T. física dois grupos de proposições: "um, que consiste em asserções sobre algum conjunto de
idéias características da T.; outro, que consiste nas relações entre essas idéias e outras idéias de natureza diferente". O
primeiro grupo de idéias é a hipótese-, o segundo é o dicionário. A finalidade do dicionário é possibilitar a
verificação indireta da hipótese. Campbell diz: "Deve ser possível determinar, independentemente do conhecimento
da T., se determinadas proposições que contêm as idéias do dicionário são verdadeiras ou falsas. O dicionário
relaciona algumas dessas proposições, cuja verdade ou falsidade é conhecida, com algumas proposições que
compreendem as idéias hipotéticas, afirmando que, se o primeiro conjunto de proposições é verdadeiro, então
também o segundo é verdadeiro e vice-versa; essa relação pode ser manifestada pela asserção de que o primeiro
conjunto implica o segundo" (Physics: the Elements, 1920, p. 122). Analogamente ainda, G. Bergmann disse que uma
T. científica consiste em: ls axiomas; 2Q teoremas; 3Q provas dos teoremas; 4S definições (Pbilosopby of Science,
1957, p. 35); nessa enumeração, as "provas dos teoremas" constituem o aparato de verificação da teoria. Duas
observações são muito importantes a esse propósito. A primeira é que as modalidades e o grau da prova ou
confirmação que uma T. deve possuir para ser declarada ou considerada "científica" não são definíveis segundo um
critério unitário.
Obviamente, a verdade de uma T. psicológica ou de uma T. econômica exige um tipo de comprovação
completamente diferente do exigido por uma T. física, visto que as técnicas de verificação são completamente
diferentes. Até mesmo os graus de confirmação exigidos sào diferentes; muitas vezes, fora do campo da física, são
chamadas de "T." simples conjecturas que não incluem o menor aparato comprobatório. A segunda observação é que
cada aparato comprobatório exige a limitação das hipóteses contidas na T.; isso porque, sempre que essas hipóteses
puderem ser multiplicadas à vontade, a T. poderá manter-se até contra qualquer desmentido empírico, e sua
confirmação passa a ser irrelevante (foi o que aconteceu, p. ex., com a T. dos epiciclos na cosmologia ptolemaica).
Mas mesmo com essa limitação às vezes é difícil decidir até que ponto a aquisição de algum dado experimental se
concilia com a T. ou questiona todo o seu conjunto
d) Uma T. não é necessariamente uma explicação do domínio de fatos aos quais se refere, mas um instrumento de
classificação e previsão. Duhem observava: "T. verdadeira não é aquela que dá uma explicação das aparências físicas
conforme à realidade, mas sim a T. que represente de modo satisfatório um conjunto de leis experimentais" (La
théorie physique, I, 2, 1). A verdade de uma T. está em sua validade, e sua validade depende de sua capacidade de
cumprir as funções às quais se destina. As funções de uma T. científica podem ser especificadas da seguinte maneira:
ls uma T. deve constituir um esquema de unificação sistemática de conteúdos diversos; o grau de abrangência de
uma T. é um dos elementos fundamentais na avaliação de sua validade: 2 2 uma T. deve oferecer um conjunto de
meios de representação conceituai e simbólica dos dados de observação. Sob esse aspecto, o critério ao qual deve
satisfazer é o de economia dos meios conceituais, vale dizer, simplicidade lógica; 3S uma T. deve constituir um
conjunto de regras de inferências que permitam a previsão dos dados de fato. Este é considerado hoje uma das tarefas
fundamentais das T. científicas, e a capacidade de previsão de uma T. é critério fundamental para avaliá-la (v. S.
TOULMIN, The Philosophy of Science, 1953, p. 42; M. K. Mu-NITZ, Space Time and Creation, 1957, IV, 1).
TEORICO/TEORÉTICO (gr. 6ecopT|TiKÓç,; lat. Speculativus; in. Theoretical; fr. Théorétique, ai. Theoretisch; it.
Teoretico). Esse adjetivo corres-
TEOSE
954
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO
ponde a especulação (v.); por isso, assim como este substantivo, possui dois significados fundamentais: ls o que é
puramente cognitivo e opõe-se a prático; 2° o que não é redutível à experiência e opõe-se a empirico. No primeiro
exemplo, fala-se de "ciências T."; no segundo, de "conceitos T.".
TEOSE. V. DEIFICAÇÀO.
TEOSOFIA (gr. 0£OGO(pía; in. Theosophy, fr. Théosophie, ai. Theosophie, it. Teosofid). Este termo já era usado
pelos neoplatônicos para indicar o conhecimento das coisas divinas, proveniente da inspiração direta por Deus (PORFÍRIO, Deabst., IV, 1 7; JÂMBLICO, Demyst., VII, 1; PROCLO, Theol. plat., V, 35). Foi retomada com o mesmo sentido
por Jacob Bôhme (Sex puncta theosophica, 1620; Quaestiones theo-sophicae, 1623) e pelos outros místicos da
Reforma; Kant observava que a limitação da razão "impede que a teologia se eleve à T., a conceitos transcendentais
em que a razão se perde" {Crít. do Juízo, § 89). E Schelling falava do teosofismo de Jacobi, entendendo por teósofos
os filósofos que se consideram diretamente inspirados por Deus (Münchener Vorlesungen em Werke, X, p. 165).
Em 1875, esse termo foi retomado pelos fundadores da Sociedade teosófica, entre os quais se encontrava Helena
Petrowna Bla-vatsky, autora de ísis sem véu (1877) e Doutrina secreta (1888), obras que expunham a nova T.: uma
mistura de ocultismo e de crenças orientais, que supostamente estariam fundadas na inspiração direta por Deus. A
atuação e as doutrinas dessa sociedade extrapolam o campo da filosofia. Aqui nos limitaremos a aludir ao cisma
provocado por Rudolff Steiner, que o levou à formulação da antroposofia (v.).
TER (gr. £%evv; lat. Habere, in. To have, fr. Avoir, ai. Haben; it. Avere). Uma das dez categorias de Aristóteles, na
qual ele mesmo distinguiu muitos significados, desde que pode referir-se a qualidade, quantidade, posse, disposição,
uma parte do corpo, conteúdo de um recipiente, uma propriedade ("T. uma casa ou uma fazenda"). Aristóteles
também observa que se diz "T. uma mulher", mas que esse significado é impróprio porque significa apenas que se
mora com ela (_Cat., 15, 15 b 3 ss.). Essas distinções são repetidas na lógica medieval (cf., p. ex., PEDRO HISPANO,
Summ. log., 3.37-38; JUNGIUS, Lógica hamburgensis, I, 14, 24). Num significado assim amplo esse termo
indica uma relação qualquer. Hegel, porém, queria restringi-lo à relação entre a coisa e suas propriedades {Ene, §
125).
Mareei contrapôs o T. ao ser. O T. seria a categoria dominante na exterioridade das coisas, entre as quais o homem
vive em sua função social ou vital, enquanto o ser seria a categoria própria da subjetividade, que é mistério (Être et
avoir, 1935). No T., no fazer e no ser, Sartre viu as três grandes categorias da existência humana. Mas o fazer se
resolveria no T., visto que qualquer forma de ação ou de produção, inclusive o conhecer, é uma forma de
apropriação; por outro lado, o T. se reduz ao ser porque o desejo de T. no fundo é redutível ao desejo de "estar em
relação com certo objeto em certa relação de ser" (Vêtre et le néant [1943], 1955, pp. 663 ss.).
Tanto na linguagem corrente quanto na lógica e na matemática, T. hoje indica apenas uma relação de qualquer
gênero.
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO (in. Principie of excluded middle, fr. Príncipe du milieu ou tiers exclu;
ai. Grundsalz vom ausgeschlossenen Dritten; it. Principio dei terzo escluso). Foi Baumgarten o primeiro a dar nome
a esse princípio, considerando-o independente do princípio de contradição (Met., 1739, § 10), embora Wolff falasse
da "exclusão do médio entre os contraditórios", como de um corolário do princípio de contradição (Ont., § 53).
A história desse princípio está estreitamente relacionada com a do princípio de contradição, do qual não se separou
até Baumgarten. Contudo, Aristóteles formulou-o com toda a clareza ao dizer: "Entre os opostos contraditórios não
há meio termo. Na verdade, contradição é o seguinte: oposição em que uma das partes está presente na outra, de tal
modo que não há meio termo" (Met., X, 7, 1057 a 33). Essa formulação não está isolada, porque (como se vê também
no trecho citado), segundo Aristóteles, a exclusão do T. não pode ser eliminada da contradição (V. G. A. VIANO, La
lógica diAris-totele, 1955, pp. 35 ss.). A lógica medieval ignorou totalmente esse princípio, que só começou a ser
diferenciado do princípio de contradição por Leibniz. Este observou que o princípio de contradição contém dois
enunciados verdadeiros: "Um, segundo o qual o verdadeiro e o falso não são compatíveis na mesma proposição, ou
uma proposição não pode ser verdadeira e
TERCEIRO EXCLUÍDO, PRINCÍPIO DO
955
TERCEIRO HOMEM
falsa ao mesmo tempo; o outro, segundo o qual o oposto ou a negação do verdadeiro e do falso não são compatíveis,
ou não há um meio termo entre o verdadeiro e o falso, ou não é possível que uma proposição não seja nem verdadeira
nem falsa" {Nouv. ess., IV, 2, 1). A partir de meados do séc. XVIII, por obra de Wolff e Baumgarten, o princípio do
T. E.'era introduzido entre as "leis fundamentais do pensamento", juntamente com os de identidade e de contradição.
Mas não teve a sorte dos outros: algumas vezes foi posto em dúvida. Segundo relato de Cícero, Epicuro consideravao duvidoso para desvalorizar a dialética {Acad, IV, 30, 97). Enquanto Hegel repetia contra ele as críticas que
habitualmente dirigia a todos os princípios lógicos tradicionais {Ene, § 119), Kant procurava estabelecer uma exceção
para ele na dissertação sobre as antinomias cosmológicas. Distinguiu a oposição analítica, que é a da contradição e
exclui o meio termo, da oposição dialética, que, ao contrário, admite o meio termo. Se as duas proposições, "O
mundo é infinito quanto à grandeza", "O mundo é finito quanto à grandeza", forem consideradas em oposição
analítica, o mundo só pode ser finito ou infinito. Mas elas só podem ser consideradas em oposição analítica se
admitirmos que o mundo é uma "coisa em si", ou seja, se admitirmos como válida a idéia de mundo. Kant declara
negar essa validade: portanto, as duas proposições estão em oposição dialética, e pode-se afirmar que o mundo "não
existe nem como um todo em si infinito, nem como um todo em si finito" {Crít. R. Pura, Dial. transe, cap. II, seç.
VII). Isso eqüivale a declarar que o princípio do T. E. não é válido no caso da oposição dialética e a introduzir um
novo valor lógico ao lado do verdadeiro e do falso, o indeterminado.
A lógica contemporânea não deixou escapar a oportunidade de construir uma lógica que excluísse o princípio do T.
E. Lukasiewicz em 1920 e depois Lukasiewicz e Tarski em 1930 elaboraram uma lógica de três valores,
correspondentes ao verdadeiro, ao falso e ao possível, simbolizados pelos algarismos 1, 0, 1/2. Nessa lógica, o
princípio do T. excluído não tem lugar, no sentido de que não é expressável por símbolos da lógica e não constitui um
de seus teoremas {Untersuchungen über den Aussagenkalküs, em Comptes rendus des séances de Ia Société des
Sciences et des Lettres de Varsovie, 1930, pp. 3050, 51-77). Os próprios autores ditaram as regras para a construção de um sistema com um número finito n de valores
de verdade {Phi-losophische Bemerkungen zu tnehrwertigen Systemen des Aussagenkalküls, nos mesmos Comptes
rendus, 1930, classe III, pp. 51-77). E. L. Post {Introduction to a General Theory of Elementary Propositions, em
American Journal ofMathematics, 1921, 43, 163) também elaborara um tipo de lógica polivalente, e A. Heyting, por
sua vez, construiu uma lógica formal intuicionista, com três valores, verdadeiro, falso e indeterminado, que se aplica
à teoria intuicionista da matemática de Brower e implica a renúncia à demonstração por absurdo (Die formalen
Regeln der intuitionistischen Logik, em Sitzungesber. Preuss.Akad. Wiss. [Phys.-Math. Klasse], 1930, pp. 42-56).
A lógica de três valores constitui, portanto. uma alternativa aos sistemas lógicos tradicionais. C. I. Lewis escrevia: "O
princípio do T. E. não está escrito nos céus: reflete, sim, a nossa obstinação em aderir ao mais simples de todos os
modos de divisão e o nosso interesse predominante pelos objetos concretos, em oposição aos conceitos abstratos. As
razões pelas quais escolhemos um sistema lógico não derivam da própria lógica, assim como não derivam de
princípios matemáticos as razões para escolher as coordenadas cartesianas em vez das polares ou das coordenadas de
Gauss" (Alternative Systems of Logic, em TheMonist, 1932, p. 505). H. Reichenbach demonstrou a utilidade da lógica
de três valores para a mecânica quântica, dada sua natureza probabilista {Philosophic Foundationsof Quantum
Mechanics, § 30) (sobre essa questão, cf. também L. ROUGIER, Traité de Ia connaíssance, 1955, II, cap. VII).
TERCEIRO HOMEM (gr. xpíxoç av0pco-noç). Aristóteles alude várias vezes a um argumento assim denominado,
contrário à doutrina platônica das idéias, dando-o por conhecido. portanto deixando de expô-lo {Met., I, 9, 990 b 17;
VII, 13, 1039 a 2; El. sof, 178 b 36). Segundo Alexandre de Afrodisia {In met, I, 9), esse argumento consistiria em
dizer que, uma vez que um homem individual é semelhante ao homem ideal, deve existir um terceiro homem do qual
os dois participem. Mas esse é o argumento aduzido contra a doutrina das idéias de Platão, que no entanto não
menciona o exemplo do homem {Parm., 132a). Alexandre, porém, menciona também outras formas desse argumento
do T. Homem. Ia Uma delas é a usada
TERMINISMO
956
TERMO
pelos sofistas: quando dizemos "o homem está passeando", não estamos falando nem da idéia de homem (que é
imóvel), nem de um homem em particular; devemos então estar falando de um homem de uma terceira espécie. 2 S
Fânias, discípulo de Aristóteles, em seu livro contra Diodoro Cronos, atribuía ao sofista Polixeno o seguinte
argumento: se o homem existe por participar da idéia de homem, deve haver algum homem que possua o seu ser em
relação com a idéia; mas não será nem a própria idéia, nem o homem em particular. Finalmente, o próprio Alexandre
nota que o argumento do T. homem, exposto na primeira forma, pode ser repetido ao infinito, porque a relação entre
T. homem, por um lado, e idéia do homem particular por outro pode dar lugar ao quarto e quinto homem, e assim por
diante.
Como Platão expõe o argumento por meio de Parmênides, contra a interpretação da doutrina das idéias que estabelece
uma separação nítida entre idéias e coisas, é provável que esse argumento fosse corrente na própria escola platônica;
sua origem, porém, parece ser megárica ou sofistica (cf. a nota de W. D. Ross a Met., I, 9, na edição de Metafísica por
ele organizada, bem como a nota de DIES a Parmênides, em Coll. des Univ. de France, VIII, p. 21).
TERMINISMO (in. Terminism; fr. Termi-nisme: ai. Terminismus; it. Terminismo). Desde o começo do séc. XV, são
designados pelos nomes de terministas (terministae) ou nomi-nalistas (nominales) os defensores da tese no-minalista
na disputa sobre os universais (v. NOMINAUSMO; UNIVERSAL), que eram, ao mesmo tempo, cultores da nova lógica,
considerada como o estudo das propriedades dos termos. Jean Gerson (que morreu em 1429) já fala da disputa entre
formalistas e terministas {De conceptibus, em Opera, 1706, IV, p. 806). Num manuscrito do mesmo século, da
Biblioteca Colbert (publicado em parte por S. BALUZI, Miscellanea, IV, p. 531 f), encontra-se: "São denominados
nominalistas os doutores que não multiplicam as coisas significadas pelos termos segundo a multiplicação dos
termos; realistas, ao contrário, são os que afirmam que as coisas se multiplicam segundo a multiplicidade dos termos.
(...) Também são chamados de nominalistas os que usam estudo e diligência para conhecer todas as propriedades dos
termos, das quais depende a verdade ou a falsidade das proposições; tais propriedades são a suposição, a
denominação, a extensão, a restrição, a
distribuição e os exponíveis, e que conhecem também as antinomias (obligationes) e os verdadeiros fundamentos dos
argumentos dialéticos" (transcrito em PRANTL, Geschichte der Logik, IV, p. 187). O estudo das propriedades dos
termos, de que se fala aí, partia da tendência geral desses filósofos e lógicos, segundo os quais o conhecimento e a
ciência só têm por objeto os termos. Ockham diz a respeito: "Qualquer ciência, seja racional, seja real, é ciência só de
proposições, e de proposições conhecidas, porquanto só as proposições são conhecidas. Todos os termos dessas
proposições são apenas conceitos, e não substâncias externas" (In Sent., I, d. 2, q. 4, M, N) (v. LÓGICA;
NOMINALISMO; UNIVERSAL).
TERMINOLOGIA (in. Terminology, fr. Ter-minologie, ai. Terminologie, it. Terminologia). Qualquer linguagem
artificial: p. ex., "T. matemática", "T. hegeliana", etc.
TERMINUS A QUO, AD QUEM. Expressões usadas a propósito do movimento: T. a quo denomina-se o lugar do
qual um móvel procura afastar-se. T. ad quem denomina-se o lugar para qual o móvel procura dirigir-se (HOBBES, De
corp., 8, § 10; WOLFF, Cosm., § 161).
TERMO (gr. õpoç; lat. Terminus; in. Term-fr. Terme; ai. Terminus; it. Termine). Os significados principais são os
seguintes:
Ia Signo lingüístico ou conjunto de signos. Este é o significado que mais diz respeito à filosofia (v. adiante).
2a Qualquer objeto ou coisa a que um discurso se refira. Nesse sentido, é sinônimo de objeto (v.) ou de coisa (v.).
3Q Limite de uma extensão.
A- Ponto de chegada de uma atividade ou resultado de uma operação. Nesse sentido, p. ex., o T. da vontade é a ação,
o T. do intelecto é o conhecimento;
5- Ponto de partida ou ponto de chegada de um movimento. Nesse sentido, fala-se de terminus a quo e de terminus ad
quem (v.).
No primeiro significado, que interessa à lógica, é possível distinguir os seguintes significados subordinados:
a) os elementos que compõem as premissas do silogismo categórico: sujeito e predicado;
b) todos os componentes simples presentes nas proposições; nesse sentido, são T. não só o sujeito e o predicado, mas
também os verbos, as preposições e as conjunções, ou seja, os componentes sincategoremãticos (v.), ao passo
TERRORISMO
957
TESTABIIIDADE
que as proposições não são T. porque não são simples;
c) todos os componentes das proposições, tanto simples quanto complexos. Nesse sentido muito geral, são T. não só o
sujeito, o predicado, o verbo e os componentes sincategore-máticos, mas também as proposições, já que podem fazer
parte de outras proposições, como quando se diz ' "Sócrates é homem' é uma proposição".
O significado (d) é o definido por Aristóteles (An. pr., I, 1, 24 b 16); persistiu até a lógica medieval (v. PEDRO
HISPANO, Summ. log., 4.01). Os outros significados foram admitidos pela lógica terminista do séc. XIV e podem ser
encontrados em Ockham (Summa log., I, 2).
Em vista da diversidade de significados dessa palavra, foram numerosas e diversas as divisões do conceito. A divisão
que os lógicos terministas consideram fundamental é entre T. escrito, T. falado e T. pensado, correspondentes às três
espécies de proposições distinguidas por Boécio. Eles distinguiram também os T. categoremáticose
sincategoremãticos(v.); concretos e abstratos (v.); conotativos e absolutos (v. CONOTAÇÃO); unívocos e equívocos
(v.) (sobre essas divisões, cf. OCKHAM, Summa log., I, 3 ss.).
Na lógica moderna, essa palavra é assumida no significado mais extenso, no sentido (c) (v. CHURCH, Introduction to
Mathematical Logic, n. 4). Em matemática, é assumida com significado análogo, entendendo-se por T. qualquer
componente, simples ou complexo, de uma expressão.
TERRORISMO (in. Terrorism-, fr. Terroris-me, ai. Terrorismus; it. Terrorismo). Este termo pertence à filosofia só
no significado de T. moral, atribuído por Kant: seria a interpretação da história como decadência ou regressão (Der
Streit der Fakultãten, 1798, II, 3).
TESE (gr. 9éotÇ; in. Thesis; fr. Thêse, ai. The-se, it. Tesi). Este termo deriva dos textos lógicos de Aristóteles, nos
quais se encontra com dois significados principais:
ls para designar o que o interlocutor põe no início de uma dissertação como assunção sua (Top., II, 1, 109 a 9);
2Q para designar uma proposição assumida como princípio (An.post., I, 2, 72 a 14).
Esses dois significados conservaram-se na tradição filosófica. O primeiro encontra-se já em P LATÃO (Rep., I, 335 a),
e, segundo tradição
relatada por Diógenes Laércio, Protágoras teria sido o primeiro a mostrar como apoiar uma T. em argumentos (DIÓG.
L., IX, 53). Na terminologia dos lógicos medievais e dos matemáticos prevaleceu esse significado: a T. designa uma
proposição que se pretende demonstrar.
Com Kant, esse termo adquiriu novo valor filosófico: nas antinomias da razão pura T. é o enunciado afirmativo da
antinomia (v.).
Na dialética pós-kantiana, o momento da T. é o elemento positivo ou de posição, portanto inicial, do processo ou do
desenvolvimento dialético (v. DIALÉTICA, 4e).
G. P.
TESTABUJDADEün. Testability, fr. Testabi-lité, ai. Testabilitàt;it. Testabilità ou Attestabilita). A possibilidade de
pôr à prova um enunciado, portanto de confirmá-lo ou de desmenti-lo. Esse termo é freqüentemente usado na lógica e
na metodologia contemporâneas. A testabili-dade compreende qualquer possibilidade de confirmação, verificação,
averiguação e aferição, na medida em que cada uma dessas possibilidades pode redundar na prova (v.) ou na falta de
prova do enunciado em questão.
Carnap, porém, restringiu o significado desse termo ao de verificação empírica incompleta, entendendo-o como "um
procedimento que conduz à confirmação, pelo menos em certo grau, do enunciado ou de sua negação". Tem-se T.
quando efetivamente se possui um procedimento desse gênero. Ao contrário, tem-se apenas confirmabilidade quando,
mesmo não se possuindo esse procedimento, conhecem-se as condições nas quais o enunciado seria confirmado.
Assim, um enunciado pode ser con-firmável sem ser testável: é o que acontece quando se sabe que certa observação o
confirmaria, mas não se têm condições de efetuar a observação (Testability andMeaning, 1936, em Readings in the
Philosophy of Science, 1953, p 47). Carnap também distinguiu o que é diretamente e o que é indiretamente testável.
Algo é diretamente testável quando "são concebíveis circunstâncias nas quais consideremos o enunciado tão
fortemente confirmado ou não-confir-mado por uma observação ou por algumas observações, que o aceitamos ou o
rejeitamos sem outras considerações; como, p. ex.. 'há uma chave na minha mesa'". Tem-se a T. indireta de um
enunciado quando se "provam diretamente outros enunciados que estejam em relação lógica específica com o
enunciado em questão". Esses outros enunciados podem ser
TESTEMUNHO
958
TEURGIA
chamados de enunciados-prova (testsentences) (Truth and Confirmation, 1936, em Readings in Philosophical
Analysis, 1949, p. 124).
TESTEMUNHO (ín. Witnessing, Testimony, fr. Témoignage, ai. Zeugniss-, it. Testimonian-za). Recurso à
experiência alheia ou às as-serções alheias como método de prova para as proposições que expressem fatos.
Aristóteles já observara que é possível referir-se "a questões de fato ou a questões de caráter pessoal", que também
são questões de fato (Ret, I, 15, 1376 a 23). O valor do testemunho nesse sentido é reconhecido pela Lógica de PortRoyal (1662): "Para julgar da verdade de um acontecimento e decidir-se a crer ou a não crer nele, não é preciso
considerá-lo em si, como se faria com uma proposição de geometria, mas é preciso considerar todas as circunstâncias
que o acompanham, internas ou externas. Denomino internas as circunstâncias que pertencem ao fato em si, e
externas as que dizem respeito às pessoas por meio de cujo T. somos levados a crer nele" (ARNAULD, Log., IV, 13).
Locke, por sua vez, introduzia o T. como um dos dois fundamentos do juízo de probabilidade (o outro é "a
conformidade de uma coisa com o nosso conhecimento, observação ou experiência"). Segundo Locke, no T. dos
outros é preciso considerar: 1B o número de testemunhas; 2S sua integridade; 3Q sua capacidade; 4e a intenção do
autor, se o T. for extraído de um livro; 5Q a coerência entre as partes e as circunstâncias da relação; 62 os T.
contrários" (Ensaio, IV, 15, 4). Leibniz admitia o valor do T. subordinada-mente ao caráter de verossimilhança do
acontecimento testemunhado, como argumento "não artificial", que se diferencia dos "artificiais", deduzidos das
coisas através do raciocínio. Todavia, observava que o T. pode fornecer um fato que leva à formação de um
argumento artificial (Nouv. ess., IV, 15, 4). Hamilton assim resumia a teoria do T.: "O objeto do T. é chamado de fato
(facturri); sua validade constitui o que se chama de credibilidade histórica (cre-dibilitas histórica). Para avaliar essa
credibilidade, é preciso considerar: ls a fidedignidade do T. (Jides testium); 2Q a probabilidade objetiva do fato. A
primeira baseia-se em parte na sinceridade da testemunha e em parte na sua competência. A segunda depende da
possibilidade absoluta e relativa do próprio fato. O T. é imediato ou mediato. É imediato quando o fato relatado é
objeto de experiência pessoal; é mediato se o fato é objeto de experiência alheia" (Lectures on Logic, 2- ed., II, pp. 175-76). TEST-SENTENCE. V.
TESTABILIDADE. TÉTICA (ai. Thetik). Segundo Kant, "qualquer conjunto de doutrinas dogmáticas", em oposição a
Antitética(v.) (Crít. R. Pura, Dialética, livro II, cap. 2, seç. 2).
TÉTICO (in. Thetic; fr. Thétique, ai. The-tisch; it. Teticó). Que afirma ou põe. Fichte chamou de T. "o juízo no qual
alguma coisa não é posta como igual ou contrária a outra, mas apenas como igual a si mesma". Esse juízo se distinguiria do juízo antitético e do juízo sintético"; mais precisamente se oporia ao juízo antitético. O supremo juízo T.
seria "Eu sou", no qual, segundo Fichte, "nada se afirma do eu, mas deixa-se vazio p lugar do predicado para a
possível determinação do eu ao infinito". Este juízo seria "a absoluta posição do eu" (Wissens-chaftslehre, 1794, I, §
3, D7).
Esse adjetivo foi usado na maioria das vezes em sentido análogo ao estabelecido por Fichte. Husserl chamou de T.
"os atos que põem o ser", ou seja, que têm caráter de crença (Ideen, I, § 103).
TETRÁCTIS (gr. texpociecúç). Segundo os pitagóricos, a soma dos primeiros quatro números, ou seja, o número
10, representável por um triângulo cujo lado é o 4. (Carm. aur., 48). A figura constitui uma disposição geométrica
que expressa um número, ou constitui um número expresso por uma disposição geométrica. Tinha caráter sagrado, e
os pitagóricos costumavam jurar por ela.
TETRAFARMACON (gr. TetpacpáputtKov). Com este termo (que significa propriamente um medicamento
composto por quatro elementos), Filodemo (Herc. Vol., 1005, 4) indicou o conjunto das quatro máximas
fundamentais da ética epicurista: lâ não temer a divindade, que não se preocupa com homem; 2- não temer a morte; 3a
ter em mente a facilidade do prazer; 4- ter em mente a brevidade da dor (cf. EPICURO, Ep. aMenec, 123, 124. 133)
TEURGIA (gr. Geotipyía; lat. Theurgia-, in. Theurgy, fr. Théurgie, ai. Théurgie, it. Teurgid). Poder mágico ou
purificador das técnicas religiosas, dos ritos. Já admitida por Porfírio (v. AGOSTINHO, De civ. Dei, X, 9), segundo
Jâmblico ela estaria acima da união espiritual com Deus, ou seja, do êxtase. Ainda segundo Jâmblico, a característica
da T. é o valor autônomo que os ritos possuem, independentemente de quem os utiliza, vale dizer, sua capacidade de
comover ou
TIMOCRACIA
959
TIRANIA
convencer as potências divinas {De myst. aegyp., II, 11). S. Agostinho dedicou grande parte de sua obra à crítica da
T., que, na sua opinião, se endereçaria indiferentemente aos demônios ou aos anjos {De civ. Dei, X, 10 ss.). Kant
considerou a T. como "a ilusão da fantasia que consiste em acreditar possuir a inteligência de outros seres suprasensíveis e de poder influir sobre eles"; para ele, assim como a teosofia, a T. é impossibilitada pelo reconhecimento
da limitação da razão (Crít. do Juízo, § 89).
TIMOCRACIA (gr. 'U|iOKpaTía; in. Timocra-cy, fr. Timocratie, ai. Timokratie, it. Timocraziá). 1. Forma de
governo baseada no desejo de honradas, que, segundo Platão, é uma corrupção da aristocracia {Rep., VIII, 545 b).
2. Forma de governo baseada na riqueza, segundo Aristóteles {Et. nic, VIII, 10, 1160 a 36).
TTMOLOGIA. V. AXIOLOGIA.
TÍPICA (in. Typics; fr. Typique, ai. Typik, it. Tipica). Kant chamou de "T. do juízo prático" o que na Crítica da
Razão Prática corresponde ao esquematismo (v.) transcendental da Crítica da Razão Pura. O tipo da lei moral é a
própria lei moral que "pode ser manifestada de forma concreta no objeto dos sentidos", ou seja, livremente realizada
no mundo sensível {Crít. R. Prática, livro I, cap. II).
TÍPICO (in. Typical; fr. Typique, ai. Typisch; it. Tipico). Em geral, o que corresponde a um tipo, a um modelo ou a
uma representação geral ou esquemática, ou então o que exprime ou realiza os caracteres do tipo. Assim, p. ex., a
"beleza T.", exaltada por Ruskin, é a beleza idealizada segundo certo modelo. "Representação T." é uma
representação generalizada e comum a uma classe de coisas. "Características T." são as que distinguem o tipo, ao
passo que uma "experiência T." é a que pode servir de modelo a muitas outras experiências ou resume suas
características comuns.
Como se vê, esse termo não tem um significado rigoroso, mas sempre implica a referência ao que é comum e geral e
que, justamente por isso, é considerado fundamental.
TIPO (gr. xÚ7toç; in. Type, fr. Type, ai. Typus; it. Tipo). No sentido de modelo, forma, esquema ou conjunto
interligado de características que pode ser repetido por um número indefinido de exemplares, essa palavra já é usada
por Platão {Rep, 379 a, 380 c, 396 e, etc.) e por Aristóteles {Et. nic, II, 2, 1104 a 1; Ibid., II, 7, 1107 b 14, etc).
Galeno usou-a para indicar as
formas da doença {Op., ed. Kühn, VII, 463), e essa palavra continuou com o mesmo significado em muitos usos
correntes da linguagem comum, científica e filosófica. A biologia e a psicologia utilizam muito esse termo e o
consideram fundamental. Kretschmer, p. ex., diz: "Aquilo que chamamos, matematicamente, de pontos focais de
correlações estatísticas, chamamos também, em prosa mais descritiva, de T. constitucionais. (...) Pode-se reconhecer
o T. verdadeiro pelo fato de ele sempre conduzir a maiores conexões de importância biológica. Sempre que há muitas
e renovadas correlações com fatores biológicos fundamentais (...) estamos diante de pontos focais da máxima
importância" {Kõrperbau und Charakter, 1948). Em psicologia, o T. é analogamente definido como "um grupo de
padrões correla-tivos", do mesmo modo como padrão é definido como um grupo de atos comportamentais ou de
tendências a ações correlativas (H. J. EYSENCK, The Structure ofHuman Personality, 1953, pp. 13 ss.).
O significado dessa palavra não muda na chamada "teoria dos T. lógicos" de Russell e Whitehead, na qual designa as
formas ou os modelos dos conceitos (v. ANTINOMIA). Para Peirce, T. é a palavra ou o signo que não sejam uma coisa
única ou um evento único, mas uma "forma definidamente significante" que, para ser usada, deve ganhar corpo numa
ocorrência {tokerí); esta deve ser o signo de um T., portanto do objeto que o T. significa. P. ex., é T. o artigo "o" na
língua portuguesa, que não pode ser visto ou ouvido porque não é um evento único, mas determina os eventos únicos,
vale dizer, as ocorrências ou os exemplos dele no discurso escrito ou falado {Coil. Pap., 4.537) (v.
OCORRÊNCIA; PALAVRA; SlGNO).
TIPOLOGIA (in. Typology, fr. Typologie, ai. Typologie, it. Tipologia). Estudo dos tipos numa disciplina ou ciência
qualquer; p. ex., T. biológica, T. racial, T. psicológica, etc.
TIQUISMO. V. CAUSALIDADE.
TIRANIA (gr. túpavvtç; lat. Tyrannis; in. Tyranny fr. Tyrannie, ai. Tyrannei; it. Tiran-nide). Forma de governo em
que o arbítrio de uma ou várias pessoas representa a lei. O conceito de T. foi elaborado pelos gregos, juntamente com
o de constituição livre. A definição de tirano já se encontra nos versos de Eu-rípides.- "Não há pior inimigo que um
tirano numa cidade, sob o qual desaparecem todas as leis comuns, e só uma pessoa comanda, tendo
TIRANIA
960
TODO1
a lei em suas mãos" (Suppl, II, 429-32). Segundo Platão, a T. é conseqüência da excessiva liberdade em que às vezes
incidem as democracias. "Ao fugir da fumaça — como se diz — da servidão sob um governo de homens livres, o
povo acaba caindo, com a T., no fogo da servidão sob o despotismo de servos e, em troca daquela liberdade excessiva
e inoportuna, é obrigado a vestir a túnica do escravo e a sujeitar-se à mais triste e amarga das servidões, a de ser servo
dos servos" (Rep., VIII, 569 b-c). Aristóteles diz que a T. acumula os males da democracia e os da oligarquia. Da
oligarquia extrai a finalidade, que é a riqueza (única condição para se manter o poder e o luxo), bem como a falta de
confiança no povo, que é privado de armas, e a agressão à população, que é afastada das cidades e espalhada pelo
campo. Da democracia toma a luta contra os notáveis, sua destruição pública ou oculta, o seu exílio (Pol, V 1, 1311 a
8 ss.). Na Idade Média, ao mesmo tempo em que S. Tomás acha que "quando a monarquia se transforma em T. o mal
é menor do que quando um governo de maioria se corrompe" (De regimine principum, I, 5) e condena o tiranicídio,
recomendando paciência aos súditos para suportar a T. ou confiando num poder superior para eliminá-la (Ibid., I, 6),
João de Salisbury defende explicitamente o tiranicídio por considerar que o tirano é um rebelde contra a lei à qual os
reis, tanto quanto todos os cidadãos, estão vinculados (Policraticus, IV, 7). Essas idéias depois foram freqüentemente
repetidas pelos adversários irredutíveis da monarquia e pelos jusnaturalistas do séc. XVI e XVII. Bodin dizia: "A
maior diferença entre o rei e o tirano é que o rei se conforma às leis da natureza e o tirano as esmaga; um cultiva a
piedade, a justiça e a fé; o outro não tem Deus, fé ou lei" (De Ia republique, 1576, II, 4, 246). Locke afirmava: "Onde
acaba a lei começa a T., quando a lei é transgredida em prejuízo de outros; e todo aquele que, no exercício da
autoridade, exceder o poder que lhe foi conferido pela lei e usar a força para realizar em relação aos súditos o que a
lei não lhe permite, está deixando de ser magistrado e, por estar deliberando sem autoridade, pode sofrer oposição
tanto quanto sofre oposição qualquer outro que viole pela força os direitos alheios" (Two Treatises of Govemement,
II, § 202). Hobbes, ao contrário, afirmara que "quem se opõe a uma monarquia dá-lhe o nome de tirania" (Le-viath.,
II, 19, 2).
O conceito de T. acompanhou a formação do liberalismo político porque serviu de pedra de toque ou de símbolo para
tudo o que o liberalismo condenava. Como tal, também constitui um dos temas da retórica revolucionária e liberal a
partir do séc. XVI. Hoje esse termo é bem menos usado, não porque os regimes tirânicos tenham desaparecido ou
porque não haja mais o perigo de que estes se instaurem mesmo onde vigore certo grau de liberdade, mas apenas
porque ele parece pertencer a uma espécie de retórica fora de moda. Absolutismoou totalitarismo são os termos que
substituíram tirania, mas o conceito não mudou, e estas mesmas palavras significam ainda: regime no qual o arbítrio
individual ocupa o lugar da lei; escravidão imposta por escravos; governo que não pode ser mudado nem corrigir a
não ser pela violência.
TITANISMO. V. ROMANTISMO.
TODO1 (gr. TÒ 7CÕV; lat. Totum; in. Whole, fr. Tout; ai. Ali; it. Tutto). Um conjunto qualquer de partes,
independentemente da ordem ou da disposição das partes. Nisso o T. pode ser distinguido da totalidade, em que a
ordem das partes não pode ser modificada sem modificar a própria totalidade (v. MUNDO; TOTALIDADE; UNIVERSO).
Com base nas determinações de Aristóteles (Met., V, 26, 1023 b 25), a lógica medieval dis-tinguia: ls o T. universal
ou essencial, cujas partes constituem sua substância: p. ex., "corpo vivo"; 2- o T. integral, cujas partes são
quantidades: quantidades semelhantes como em "água", ou quantidades dessemelhantes como em "árvore"; 3S o T. na
quantidade, que é o universal tomado universalmente como "todo homem" ou "nenhum homem"; 4 e o T. no modo,
que é o universal tomado sem determinação, como "o homem"; 5 Q o T. no lugar, que é uma determinação que
compreende adver-bialmente o lugar, como "em todos os lugares" ou "em nenhum lugar"; 6 S o T. no tempo, que é
uma expressão que compreende adverbial-mente a totalidade do tempo, como "sempre" e "nunca" (PEDRO HISPANO,
Summ. log., 5, 14-23). Nizolio reduzia a duas estas espécies, argumentando que só duas se encontram na natureza, o
T. contínuo (que é uma coisa só) e o T. descontínuo, que é um conjunto de coisas singulares (De veris principiis, I,
10). A isso Leibniz acrescentava o T. disjuntivo, como p. ex. "o animal é homem ou bruto" (nota ao trecho citado de
Nizolio). Outras distinções estão
TODO2
961
TOLERÂNCIA
registradas em Hamilton: o T. por si, em que as partes estão interligadas necessariamente, como o corpo e a alma
estão ligados no homem, e o T. per accidens, em que as partes estão ligadas contingentemente. O T.porsi pode ser:
lógico, como um universal; metafísico ou real; físico ou substancial; matemático, quantitativo ou integral; e coletivo
ou de agregação (Lectures on Logic, 2- ed., I, pp. 202 ss.).
Na lógica moderna T. é um operador, mais precisamente o quantificador universal simbolizado pela notação "(x)" (v.
OPERADOR). Quanto à diferença entre todo e qualquer, ver este último termo.
TODO2. V. QUALQUER.
TODOS. V. QUALQUER.
TOKEN. V. OCORRÊNCIA.
TOLERÂNCIA (in. Toleration, fr. Tolérance; ai. Toleranz, it. Tolleranzà). Norma ou princípio de liberdade
religiosa. Algumas vezes se considerou pouco apta a designar esse princípio uma palavra que significa "paciência",
mas na realidade ela foi o emblema dessa liberdade, desde as primeiras lutas empreendidas, por meio das quais se
afirmou em formas ainda hoje frágeis ou incompletas. Por isso, não poderia ser substituída por nenhum outro termo.
Desde que essas lutas se iniciaram, a T. foi entendida como coexistência pacífica entre várias confissões religiosas,
sendo hoje entendida, em sentido ainda mais geral, como coexistência pacífica de todas as possíveis atitudes
religiosas. O critério para verificar se essa exigência está sendo realizada nas situações históricas ou políticas é um só:
a sua realização significa que o cidadão não sofre violência, inquirição jurídica ou policial, diminuição ou perda de
direitos ou qualquer tipo de discriminação em virtude de suas convicções, positivas ou negativas, em matéria
religiosa.
O princípio de T., ou pelo menos um corolário imediato, que é a possibilidade de redenção mesmo fora da fé cristã,
encontra-se em alguns filósofos do séc. XIV, especialmente em Ockham. Este diz: "Não é impossível que Deus
designe como digno da vida eterna todo aquele que viva segundo os ditames da justa razão e que só creia naquilo que
sua razão natural indicar como digno de crença. E se Deus assim dispõe, poderia salvar-se mesmo aquele que na vida
só teve como guia a justa razão" (In Sent., III, q. 8, C). Por outro lado, a T. religiosa já está implícita no conceito que
Ockham tinha de Igreja infalível como comunidade dos
fiéis que viveram desde os tempos dos profetas até hoje (Dialogus inter magistrum et discipu-lum, I, IV, em
GOLDAST, Monarquia, II, p. 402), e do papado como de um principado mi-nistrativus que não pode negar a ninguém
os direitos e as liberdades que Deus concedeu a todos os homens e que o cristianismo veio reivindicar (De
imperatorum etpontificum po-testate, IV, ed. Scholz, p. 458). O famoso conto de Boccaccio dos três anéis
(Decameron, 28) ilustra a possibilidade de salvação concedida igualmente a maometanos, judeus e cristãos. Todavia,
o princípio de T. começou a aparecer como elemento indispensável da vida civilizada do Ocidente só depois da
Reforma, nas lutas que opuseram as várias facções da cristandade. E provável que tenha sido explicitamente afirmado
pela primeira vez pelo grupo de reformadores italianos que recusaram o dogma da Trindade, ou seja, os socinianos,
obrigados por Calvino a fugir para a Transilvânia e para a Polônia, onde propagaram a sua doutrina. Em 1565,
Giacomo Aconcio, em seu Stratagemata Satanae, via a intolerância religiosa como uma armadilha de Satanás e
afirmava que é essencial à fé apenas o que encoraja a esperança e a caridade. Em 1580, por motivos de natureza
política, Michel de Montaigne defendia a liberdade de consciência em um ensaio (Ess., II, 19). Por volta de 1593,
Jean Bodin defendia, em Colloquium heptaplomeres, a necessidade da paz religiosa, a ser obtida com um retorno à
religião natural que eliminasse as controvérsias dogmáticas. Por sua vez, Huig van Groot considerava fundamentais
as crenças da religião natural, e não coercitivas as crenças da religião positiva, freqüentemente ambíguas. Para ele,
acreditar no cristianismo só é possível com a ajuda misteriosa de Deus; por conseguinte, querer impô-lo pelas armas é
contrário à razão (De jure belli acpacis, 1625, II. 20, 48-49). Em 1644, Milton escrevia seu discurso pela liberdade de
imprensa, intitulado Areopagitica. Todas essas defesas do princípio de T. aduzem em seu favor argumentos políticos
e religiosos, mais que filosóficos ou conceituais; aliás, na maioria das vezes os argumentos são especificamente
religiosos, tendo então valor apenas para quem compartilha as crenças religiosas a que fazem apelo.
O primeiro a basear a defesa da T. em argumentos objetivos foi Spinoza, que apresentou em seu favor o argumento
por excelência, ou seja, a violência e a imposição não podem pro-
TOLERÂNCIA
962
TOMISMO
mover a fé; portanto, as leis que se propõem esse fim são inúteis (Tractatus theologico-po-liticus, 1670, cap. 20).
Desse ponto de vista, é clássica a Epístola sobre a T. (l689). Nesse texto, Locke demonstra que, ao examinar
independentemente o conceito de Estado e o de Igreja, o princípio de T. acaba sendo o ponto de encontro de suas
respectivas tarefas e interesses. O Estado é "uma sociedade de homens, estabelecida unicamente para conservar e
promover os bens civis", entendendo-se por bens civis a vida, a liberdade, a integridade e o bem-estar físico, a posse
dos bens externos, etc. Portanto, entre suas funções não está o cuidado com as almas e a sua salvação eterna, porque
em relação a essa tarefa o magistrado civil é incompetente como qualquer outro cidadão e não possui nenhum
instrumento eficaz, visto que seu único instrumento é a coação, e ninguém pode ser obrigado a salvar-se. Por outro
lado, a Igreja é "uma sociedade livre de homens, unidos espontaneamente para servir a Deus, em público, do modo
que julgarem mais aceito por Ele, com o fim de obter a redenção de suas almas". Como sociedade livre e voluntária,
não pode vincular ninguém por meio da força, e as sanções de sua competência são as exortações, as advertências e
os conselhos, únicos capazes de promover a persuasão e a fé. O princípio de T. garante igualmente o interesse
religioso da Igreja e o interesse político do Estado, os direitos dos cidadãos e as exigências do desenvolvimento
cultural e científico.
Contudo, nem mesmo na Epístola de Locke o princípio de T. tem expressão completa, pois para Locke "quem nega a
existência de Deus não deve ser tolerado de nenhum modo". Foi só com o triunfo do Iluminismo no séc. XVIII e do
pensamento político liberal do séc. XIX que se chegou a reconhecer o princípio de T. em sua forma completa, que é a
exposta acima. No entanto, a literatura posterior pouco ou nada acrescentou às justificações desse princípio
apresentadas por Locke; nesse sentido, tampouco se distingue o Tratado sobre a T. (1763) de Voltaire, cuja justa
fama se deve à influência histórica que exerceu.
O princípio de T. passou a fazer parte da consciência civil dos povos do mundo inteiro. Todavia, a sua realização nas
instituições que regem a vida de muitos povos é incompleta e está sempre sujeita a novos perigos. As discussões a seu
respeito muitas vezes são inspiradas pelo desejo de manter ou restabelecer privilégios em favor de alguma confissão religiosa específica, procurando-se, na melhor das hipóteses, fazer concessões
formais ao princípio de T. (cf. em especial F. RUFFINI, La liberta religiosa, 1901; J. B. BURY, A History of Freedom
of Tbought, 1913; nova ed., 1952; W. K. JORDAN, The Development of Religious Toleration in England, 1932 ss.).
2. Na linguagem comum e às vezes na filosófica, a T. também é entendida em sentido mais amplo, abrangendo
qualquer forma de liberdade, seja ela moral, política ou social. Assim entendida, identifica-se com pluralismo de
valores, de grupos e de interesses na sociedade contemporânea; às vezes se discerne nesse pluralismo um meio para
manter o controle dos grupos sociais existentes em toda a sociedade, portanto um obstáculo à realização de uma nova
forma de sociedade. Por "T. pura" entende-se às vezes a T. que se estende às políticas, às condições e aos
comportamentos que não deveriam ser tolerados por impedirem, ou mesmo destruírem, as probabilidades de uma
existência sem medo ou sofrimento. Marcuse afirmou que, embora a T. indiscriminada se justifique nos debates
inócuos e nas discussões acadêmicas, sendo indispensável na religião e na ciência, nào pode ser admitida quando
estão em jogo a paz, a liberdade e a felicidade da existência, porque nesse caso eqüivaleria à repressão de todos os
fatores de inovação da realidade social {A Critique ofPure Tolerance, de WOLFF, MOORE JR. e MARCUSE, 1965).
Contudo, nesse significado mais genérico, a palavra T. não se distingue de liberdade, e seus problemas são os
mesmos dos limites e das condições da liberdade política.
TOLERÂNCIA, PRINCÍPIO DE. V CON TRADIÇÃO, PRINCÍPIO DE; CONVENCIONALISMO.
TOMISMO (in. Thomism; fr. Thomisme, ai. Thomismus; it. Tomismó). Fundamentos da filosofia de S. Tomás,
conservados e defendidos pelas correntes medievais e modernas que nele se inspiram. Podem ser assim resumidos:
\° A relação entre razão e fé consiste em confiar à razão a tarefa de demonstrar os preâmbulos da fé (v. PREAMBULA
FIDEI), de esclarecer e defender os dogmas indemonstrá-veis e de proceder de modo relativamente autônomo
(excetuando-se o respeito das verdades de fé que não podem ser contraditas) no domínio da física e da metafísica.
TÓPICA
963
TOTEMISMO
2B Analogicidade do ser (v. ANALOGIA), segundo a qual o termo ser, usado com referência à criatura, não tem
significado idêntico, mas apenas semelhante ou correspondente, ao ser de Deus. Este princípio, que S. Tomás extraía
de Avicena, serve para estabelecer a distinção entre teologia e metafísica e a dependência da metafísica em relação à
teologia.
3B Caráter abstrativo do conhecimento, que consiste em abstrair do objeto, em qualquer caso, a espécie sensível ou a
espécie inteligível (que corresponde à essência da coisa).
4e A individuação depende da matéria assinalada (v. INDIVIDUAÇÃO).
5a A clássica explicação dos dois dogmas cristãos da Trindade e da Encarnação (v. ENCARNAÇÃO; RELAÇÃO; TRINDADE).
Esses aspectos básicos distinguem claramente o T. do escotismo (v.), que foram duas doutrinas proeminentes nos
sécs. XIV e seguintes, e também constituem os tópicos de maior interesse da retomada do T. pela neo-escolástica
contemporânea. Para a formação histórica do T. contribuíram a obra de Alberto Magno, mestre de S. Tomás, a obra
de Avicena e a de Moisés Maimônides.
TÓPICA (gr. TOTUKÍI xéxvri; lat. Tópica-, in. Topics; fr. Topique, ai. Topik, it. Tópica). Teoria dos lugares lógicos e
a arte de inventá-los (v. LUGARES).
Kant chamou de T. transcendental a teoria dos lugares transcendentais, ou seja, as posições atribuídas aos conceitos
na sensibilidade ou no intelecto puro. Essa T. deveria evitar a anfibolia (uso duvidoso) dos conceitos de reflexão
(Crít. R. Pura, Analítica transe, nota a anfibolia).
Droysen falou também em T. historiogrãfi-ca, que seria a coletânea das exposições do que foi historicamente
investigado {Grundzüge derHistorik, 1882, § 18).
TOPOLOGIA (in. Topology, fr. Topologie, ai. Topologie, it. Topologia). Com este nome, ou com o de analysis
situs, designa-se, há um século, o estudo das propriedades das figuras geométricas que não variam mesmo quando as
figuras são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas propriedades métricas e projetivas. O precursor
da T. foi L. Euler (1707-83), mas sua primeira formulação encontra-se na obra de A. F. Moebius (1790-1868) (cf.
especialmente O. VEBLEN, Analysis situs, 2- ed., 1931, e as palavras GRUPO-, TRANSFORMAÇÃO).
Alguns dos conceitos da T. são aplicáveis a outras disciplinas, sobretudo no gestaltismo, que utilizou o conceito
topológico de região (com as suas várias determinações), que se presta a expressar o espaço vital de um organismo
(KURT LEWIN, Principies of Topological Psychology, 1936, esp. cap. XI e s.). (V. CAMPO-,
PSICOLOGIA.)
TOTALIDADE (gr. tò õA,ov; lat. Universitas, in. Totality, fr. Totalité; ai. Allheit, Totalitàt; it. Totalitq). Um todo
completo em suas partes e perfeito em sua ordem. Este é o conceito de T. que se encontra em Aristóteles, que se
distingue de todo, cujas partes podem mudar de disposição sem modificar o conjunto (Mel, V, 26, 1024 a 1). Nesse
sentido, o mundo (cosmos) é uma T., mas o universo não (v. MUNDO).
Mesmo nas línguas modernas, a noção de T. conservou a característica da completitude e de disposição perfeita das
partes. Segundo Kant, a "T. das condições" corresponde, na síntese da intuição, à universalidade do predicado na
premissa maior do silogismo. A noção de T. das condições é a idéia da Razão Pura. Portanto, segundo Kant, a idéia é
a noção de uma perfeição, ainda que não de uma perfeição real (Crít. R. Pura, Dialética, livro I, seç. I-II) (v. TODO).
TOTALITARISMO (in. Totalitarianism; fr. Totalitarisme, ai. Etatismus; it. Totalitarismo). Teoria ou prática do
Estado totalitário, vale dizer, do Estado que pretende identificar-se com a vida dos seus cidadãos. Esse termo foi
cunhado para designar o fascismo italiano e o nazismo alemão. Às vezes também é usado para designar qualquer
doutrina absolutista, em qualquer campo a que se refira (é usado nesse sentido por G. H. SABINE, A History
o/Political Theory, 1951, cap. 35; trad. it., pp. 708 ss.). Muitas vezes, por extensão, entende-se por T. qualquer forma
do absolutismo doutrinário ou político.
TOTEMISMO (in. Totemism-, fr. Totémisme, ai. Totemismus; it. Totemismó). Crença no totem, ou organização
social fundada nessa crença. O termo totem foi extraído do idioma dos índios norte-americanos e depois passou a
indicar o fenômeno (presente em todos os povos primitivos) de transformar uma coisa (natural ou artificial) em
emblema do grupo social e em garantia da sua solidariedade. Foi Durkheim quem mais enfatizou esse caráter do'
totem, vendo nele a expressão da unidade do grupo social em sua inteireza e, portanto, nas inter-re-
TOTO-PARCIAL, TODO-TOTAL
964
TRABALHO
laçòes dos clans em que o grupo se divide (Les formes élémentaires de Ia vie religieuse, 1912). Ao lado desse caráter
do T., A. R. Radcliffe-Brown evidenciou o seu caráter ainda mais universal, segundo o qual o T. constituiria "uma
representação do universo como ordem moral e social"; portanto, a regulamentação da relação entre o homem e a
natureza, além da regulamentação da relação entre os homens, seria um elemento universal da cultura humana
{Structure and Function in Primitive Society, 1952, cap. VI). Lévi-Strauss, porém, parece reduzir o T. a fenômeno
lingüístico formal: "Aquilo que se chama de T. é apenas uma expressão particular, através de uma nomenclatura
especial formada por nomes de animais e de plantas (ou, como diríamos, um código), que é seu único caráter
distintivo, das correlações e opo-sições que podem ser formalizadas de outros modos: p. ex., como acontece em certas
tribos das Américas, por oposições do tipo céu-terra, guerra-paz, em cima-embaixo, vermelho-bran-co, etc." (Le
totémisme aujourd'hui, 1962, p. 172). Por outro lado, Freud apresentou uma interpretação psicanalítica do T.: "Se o
animal totem é o pai, então os dois principais preceitos do T., de não matar o totem e de não usufruir sexualmente de
nenhuma mulher do totem, coincidem substancialmente com os dois crimes de Édipo (que matou o pai e casou-se
com a mãe) e com os desejos primitivos da criança, desejos cuja remoção insuficiente ou cujo despertar talvez
constituam a raiz de todas as psiconeuroses" {Totem e tabu, 1913, IV, 3; trad. it., p. 146). Para uma interpretação
semelhante a esta de Freud, v. J. G. FRAZER, Totemism and Exogamy, 1910.
TOTÒ-PARCIAL, TOTO-TOTAL (in. Toto-partial, Toto-total). Expressões usadas por W. Hamilton para indicar,
respectivamente, a proposição na qual o sujeito é considerado universalmente e o predicado, particularmente (ex., os
homens são animais), e a proposição na qual tanto o sujeito quanto o predicado são considerados universalmente (ex.
os animais são mortais) (Lectures on Logic, II, p. 287).
TRABALHO (gr. TTÓVOÇ; lat. Labor, in. Labor, fr. Travail; ai. Arbeit; it. Lavoró). Atividade cujo fim é utilizar as
coisas naturais ou modificar o ambiente e satisfazer às necessidades humanas. Por isso, o conceito de T. implica: 1)
dependência do homem em relação à natureza, no que se refere à sua vida e aos seus interesses: isso constitui a
necessidade, num de seus
sentidos (v.); 2) reação ativa a essa dependência, constituída por operações mais ou menos complexas, com vistas à
elaboração ou à utilização dos elementos naturais; 3) grau mais ou menos elevado de esforço, sofrimento ou fadiga,
que constitui o custo humano do trabalho.
Era principalmente nesse aspecto que se baseava a condenação da filosofia antiga e medieval ao T. manual (v.
BANAUSIA). Com esse mesmo aspecto, na Bíblia o T. é considerado parte da maldição divina, decorrente do pecado
original {Gênese, III, 19). Num texto famoso de S. Paulo, o preceito "Quem não quer trabalhar não coma" deriva da
obrigação de não onerar os outros com o cansaço e o sofrimento do T. (77 Tessal., III, 8-10). Era nesse mesmo
sentido que S. Agostinho {De operibus monachorum, 17-18) e S. Tomás {S. Th., II, II, q. 187 a. 3) prescreviam o T.
como preceito religioso. Na exigência de distribuir imparcialmente o sofrimento e a degradação do T. manual
inspiraram-se Utopia (1516), de Thomas More, e A cidade do Sol (1602), de Campanella, que prescrevem para todos
os membros de sua cidade ideal a obrigação do trabalho.
Com base nisso, fixava-se a contraposição entre trabalho manual e atividade intelectual, entre artes mecânicas e artes
liberais. Mesmo no Renascimento, a defesa quase unânime feita por literatos e filósofos da vida ativa em oposição à
contemplativa e a condenação unânime ao ócio (que perde o caráter de disponibilidade para atividades superiores
atribuído pela Antigüidade clássica) nem sempre levam à revalorização do T. manual. Um trecho de Giordano Bruno
afirma que a providência dispôs que o homem "se ocupe na ação das mãos e na contemplação do intelecto, de tal
maneira que não contemple sem ação e não obre sem contemplação" {Spaccio delia bestia trionfante, 1584, em Op.
itali, II, p. 152). Mas é sobretudo nos textos científicos e técnicos que se afirma, a partir do séc. XV, a dignidade do
T. manual. Galileu reconhecia explicitamente o valor das observações feitas pelos artesãos mecânicos para a pesquisa
científica (Discorsi intorno a due nuovescienze, em Op., VIII, p. 49). Bacon fundamentava seu experimentalismo nas
"artes mecânicas", que agem sobre a natureza e se enriquecem com a luz da experiência {Nov. Org., I, 74), e
considerava, pois, indispensáveis as operações materiais ou manuais para a obtenção de um saber que fosse ao
mesmo tem-
TRABALHO
965
TRABALHO
po poder sobre a natureza, com vistas à satisfação das necessidades e dos interesses humanos {Ibid., I, 83). Se
Descartes dava pouca importância à parte técnica ou instrumental da ciência (que para ele continua sendo um sistema
rigidamente dedutivo) e ao T. manual, Leibniz, ao contrário, insistia na importância do T. dos artesãos, dos
agricultores, dos marinheiros, dos comerciantes, dos músicos, não só em proveito da ciência, mas também da vida e
da civilização (Phil. Schriften, VII, pp. 180 ss.).
Essas idéias tornaram-se dominantes no Ilu-minismo, sobretudo graças a Bacon e a Locke; este último reconhecia na
investigação experimental, voltada para a determinação das propriedades dos corpos físicos, único instrumento de
que o intelecto humano dispõe para ampliar esse tipo de conhecimento, visto que a substância dos corpos continua
desconhecida {Ensaio, IV, II, 25). Na esteira de Bacon, o verbete "Art", de Diderot na Encyclopédie, criticava a
distinção das artes em liberais e mecânicas, considerando-a preconceito, tendente a "encher as cidades de
raciocinadores orgulhosos e de contemplativos supérfluos, e os campos de tiranetes ociosos, preguiçosos e
arrogantes". O Iluminismo, em geral, marca a reivindicação da dignidade do T. manual, a partir do qual Rousseau
desejava que Emílio adquirisse as primeiras idéias sobre solidariedade social e sobre as obrigações que ela impõe
{Émile, [1762], IV). Kant, mesmo fazendo a distinção entre T. e arte, não considerava possível uma separação nítida
porque até nas artes liberais "é necessário algo de obrigatório e — como se diz — um mecanismo sem o qual o
espírito não adquiriria corpo e evaporaria" (Crít. do Juízo, § 43).
Foi só no Romantismo que se começou a estabelecer a relação entre o T. e a natureza do homem. Fichte afirmava que
até mesmo a ocupação mais reles e insignificante, se estiver ligada à conservação e à livre atividade dos seres morais,
é santificada tanto quanto a ação mais elevada {Sittenlehre, III, § 28). Foi Hegel quem formulou a primeira teoria
filosófica do T., utilizando os resultados a que chegara Adam Smith na economia política (v.). Já em Lições de Iena
(1803-04), Hegel considerava o T. como "mediação entre o homem e seu mundo"; isso porque, diferentemente dos
animais, o homem não consome de imediato o produto natural, mas elabora de maneiras diferentes e para os fins mais
diversos a matéria fornecida pela natureza, conferindo-lhe assim valor e conformidade com o fim a que se destina {Fil. do dir., § 196). Só na satisfação
de suas necessidades através do T. é que o homem é realmente homem, porque assim se educa tanto teoricamente.
por meio dos conhecimentos que o T. exige, quanto na prática, ao habituar-se à ocupação, ao adequar suas atividades
à natureza da matéria e ao adquirir aptidões universalmente válidas. Por isso, ao contrário do bárbaro, que é
preguiçoso, o homem civilizado é educado no costume e na necessidade da ocupação {Ibid., § 197 e Zusatz). Através
do T., "o egoísmo subjetivo converte-se na satisfação das necessidades de todos os outros", de tal modo que,
enquanto "alguém adquire, produz e usufrui, justamente por isso está produzindo e adquirindo para o usufruto de
outros" {Ibid., § 199). Hegel também evidenciou o crescimento indefinido das necessidades, a importância da divisão
do T. e a relevância assumida pela distinção de classes, com base nessa divisão {Ibid., §§ 195, 241, 245). Viu também
que a divisão do T. leva à substituição do homem pela máquina. Isso porque, com essa divisão, aumenta realmente a
facilidade do T. — portanto da produção —, mas ao mesmo tempo ocorre a limitação a uma única habilidade,
portanto a dependência incondicional do indivíduo ao contexto social. A própria habilidade torna-se mecânica e
ocasiona a substituição do T. humano pela máquina {Ene, § 526). Esses princípios hegelianos foram aceitos por
Marx, que, no entanto, insiste no caráter natural ou material da relação criada pelo T. entre o homem e o mundo,
contra o caráter espiritual atribuído por Hegel, que permitia considerá-lo um momento ou uma manifestação da
consciência. Segundo Marx, os homens começaram a distinguir-se dos animais quando "começaram a produzir seus
próprios meios de subsistência, progresso este condicionado pela organização física humana. Produzindo seus meios
de subsistência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material" {Ideologia alemã, I, A; trad. it., p. 17).
Portanto, o T. não é apenas o meio com que os homens asseguram sua subsistência: é a própria extrinsecação e
produção de sua vida, é um modo de vida determinado. A produção e o T. não são, pois, uma condenação para o
homem: constituem o próprio homem, seu modo específico de ser e de fazer-se homem. Pelo T., a natureza torna-se
"o corpo inorgânico do homem", e o homem pode ascender à cons-
TRABALHO
966
TRADIÇÃO
ciência de si mesmo, não tanto como indivíduo, mas como "espécie de natureza universal" (Manuscritos econômicopolíticos de 1844, I, trad. it., pp. 230 ss.). O T. também transforma o homem num ente social porque o põe em contato
com os outros indivíduos, mais do que com a natureza: desse modo, as relações de T. e de produção constituem a
trama ou a estrutura autência da história, cujos reflexos são as várias formas de consciência. Isso acontece, porém, no
T. não alienado, que não se tornou mercadoria; no trabalho alienado, que ocorre na sociedade capitalista, manifestase o contraste entre a personalidade individual do proletário e o T. como condição de vida que lhe é imposta pelas
relações das quais faz parte como objeto, e não como sujeito (Ideologia alemã, I, C; trad. it., p. 75).
Do ponto de vista da ética religiosa, Kierke-gaard afirmava a estreita conexão do T. com a dignidade humana:
"Quanto mais baixo é o escalão em que está a vida humana, menos necessidade há de trabalhar; quanto mais alto,
tanto mais essa necessidade se manifesta. O dever de trabalhar para viver exprime o universal humano, inclusive no
sentido de ser uma manifestação da liberdade. É exatamente por meio do T. que o homem se torna livre; o T. domina
a natureza: com o T. ele mostra que está acima da natureza (Entweder-Oder, II, em Werke, III, p. 301).
Essa estreita conexão do trabalho com a existência humana, que enobrece o T. e graças à qual ele é fim, além de
meio, passa a ser lugar-comum em filosofia e, em geral, na cultura contemporânea. Mesmo fora do âmbito marxista,
o caráter penoso do T. não é atribuído ao T. em si, mas às condições sociais em que ele é realizado nas sociedades
industriais. Dewey diz: "É natural que a atividade seja agradável. Ela tende a encontrar saídas, e encontrá-las é, em
si, gratificante porque marca um êxito parcial. O fato de a atividade produtiva ter-se tornado tão inerentemente
insatisfatória que os homens precisam ser induzidos a empenhar-se nela por vias artificiais é prova de que as
condições em que o T. se realiza impedem o conjunto de atividades, em vez de promovê-las, irritam e frustram as
tendências naturais, em vez de orientá-las para a fruição" (Human Nature and Conduct, II, 3, pp. 123-24). Nietz-sche,
porém, via no T. uma traição à espiritualidade alegre e contemplativa que deveria ser própria do homem. Escreveu a
propósito
dos americanos: "O seu furibundo T. sem fôlego — vício peculiar do Novo Mundo — já começa, por contágio, a
asselvajar a velha Europa e a estender sobre ela uma prodigiosa falta de espiritualidade". Notara que só o T.
proporciona "a boa consciência" e que, ao contrário, a inclinação à alegria, chamada de "necessidade de criação",
começa a ter vergonha de si mesma (Die Froehlich Wissenschaft, 1882, § 329). Vira no T. assim concebido a melhor
polícia, que mantém todos subjugados e consegue impedir vigorosamente o desenvolvimento da razão, do desejo
violento, do gosto pela independência (Morgenrõthe, 1881, § 173). A essas idéias de Nietzsche remete-se, implícita
ou explicitamente, quem contrapõe entretenimento e T. ou quer transformar o T. em entretenimento. "O
entretenimento é improdutivo e inútil" — escreveu Marcuse — "exatamente porque apaga as características
repressivas e exploradoras do T. e da riqueza; mas ele 'simplesmente se en-tretém' com a realidade". Por outro lado, o
próprio Marcuse afirma que uma ordem "não repressiva" do T. é uma ordem de abundância, que ocorre "quando
todas as necessidades fundamentais podem ser satisfeitas com um gasto mínimo de energia física e psíquica, em
tempo mínimo" (Eros ecivilização, cap. 9, trad. it., pp. 212-13). Por trás da condenação do valor do T., mais que
censura às formas alienadas que o T. assumiu na civilização contemporânea, está a nostalgia da vida puramente
contemplativa, a fé numa vida instintiva que, não fora reprimida pelo T., levaria o homem infalivelmente ao paraíso
perdido.
TRADIÇÃO (gr. 7rapáSocnç; in. Tradition-, fr. Tradition; ai. Überlieferung; it. Tradizioné). Herança cultural,
transmissão de crenças ou técnicas de uma geração para outra. No domínio da filosofia, o recurso à T. implica o
reconhecimento da verdade da T., que, desse ponto de vista, se torna garantia de verdade e, às vezes, a única garantia
possível. Foi entendida nesse sentido pelo próprio Aristóteles, que, em suas investigações, recorre freqüentemente à
T., considerando-a garantia de verdade: "Nossos antepassados, das mais remotas idades, transmitiram à posteridade
tradições em forma mítica, segundo as quais os corpos celestes são divindades e o divino abrange a natureza inteira.
Outras T. foram acrescentadas em forma de mito, para persuadir a maioria e como objetivo de reforçar as leis e
promover a utilidade pública; elas dizem que os deuses têm forma de ho-
TRADIÇÃO
967
TRADICIONAIISMO
mens ou de outros animais, dando sobre eles outros pormenores semelhantes. Mas, se considerarmos apenas o
essencial em separado do resto, ou seja, que as primeiras substâncias são tradicionalmente consideradas divindades,
poderemos reconhecer que isso foi divinamente dito e que estes e outros mitos, ainda que explorados, aperfeiçoados e
novamente perdidos pelas artes e pela filosofia, foram conservados até hoje como antigas relíquias. É só desse modo
que podemos tornar claras as opiniões dos nossos antepassados e predecessores" (Met., XII, 8, 1074 b). Para
Aristóteles, sua própria filosofia consiste em libertar a T. de seus elementos míticos, portanto em descobrir a T.
autêntica ao mesmo tempo em que se funda na garantia oferecida por essa mesma T. Esse foi o ponto de vista que
predominou no último período da filosofia grega, especialmente na corrente neoplatônica. Plotino dizia: "É preciso
crer sem dúvida que a verdade foi descoberta por antigos e santos filósofos; a nós convém examinar quem as
encontrou e como poderemos chegar a compreendê-la" (Enn., III, 7, 1). Foi graças a essa idéia que, com base numa
suposta T., se tornou possível fabricar documentos fictícios quando os autênticos faltavam; e as obras de falsas
atribuições — as mais famosas foram as de Hermes Trismegisto — obedecem à exigência de remeter ao passado a
doutrina em que se acredita e de atribuir-lhe, embora fraudulentamente, o prestígio e a garantia da tradição.
Desde então, o conceito de T. não mudou, conservando a aparência ou a promessa dessa garantia. O grande retorno
da idéia de T. está no Romantismo. Em Ideen zur Philosophie der Geschichte der Menschheit (1783-1791), J. G.
Herder exaltara a T. como "cadeia sagrada que liga os homens ao passado, conserva e transmite tudo que foi feito
pelos que os precederam". Hegel exaltou explicitamente ale insistiu no seu caráter providencial: "A T. não é uma
estátua imóvel, mas vive e mana como um rio impetuoso que mais cresce quanto mais se afasta da origem. (...) O que
cada geração produziu no campo da ciência e do espírito é uma herança para a qual todo o mundo anterior contribuiu
com sua economia, é um santuário em cujas paredes os homens de todas as estirpes, gratos e felizes, afixaram tudo o
que os auxiliou na vida, o que eles hauriram das profundezas da natureza e do espírito. E esse herdar é, ao mesmo
tempo, receber a herança e fazê-la fortificar" (Geschichte der Philosophie, ed. Glock-ner, I, p. 29). Nesse sentido, obviamente, a T. é apenas outro nome para
designar o plano providencial da história (v. HISTÓRIA).
Foi esse o ponto de vista dominante em todo o Romantismo, sendo o chamado tradi-cionalismo (v.) apenas uma de
suas manifestações.
A antítese dessa valorização da T. é a concepção segundo a qual: Ia nem todos os resultados, nem os melhores
produtos da atividade humana foram infalivelmente conservados e incrementados ao longo do desenvolvimento
histórico-, 29 o que esse desenvolvimento conservou nem por isso tem garantia de verdade ou de valor. Concepção
desse tipo foi assumida pelo Iluminismo (por isso mesmo freqüentemente definido como anti-historicista por quem
vê a história como ordem providencial ou T.). O Iluminismo erigiu-se contra a T., afirmando que sua herança, na
maioria das vezes, é erro, preconceito ou superstição, e recorrendo ao juízo da razão crítica para contestá-la (v.
ILUMINISMO).
Como se vê, as discussões filosóficas sobre o significado e a importância da T. na realidade são discussões sobre
história (v.). No campo da sociologia, porém, analisar a T. é o mesmo que analisar determinada atitude, ou melhor,
um tipo e espécie de atitude, mais precisamente a que consiste na aquisição inconsciente (não deliberada) de crenças
e técnicas. Na atitude tradicionalista, o indivíduo considera como seus os modos de ser e de comportar-se que recebeu
ou continua recebendo do ambiente social, sem perceber que são modos de ser do grupo social. Na T., não há
distinção entre presente e passado, entre "mim" e os outros, sendo por isso uma forma de comunicação primitiva e
imprópria (ABBAGNANO, Pro-blemi di sociologia, 1959, XI, 3). Segundo esse ponto de vista, a atitude tradicionalista
opõe-se à atitude crítica, graças à qual o indivíduo tem certa liberdade de juízo (que no entanto nunca é absoluta ou
infalível) em relação às crenças e técnicas que hauriu da tradição. A atitude crítica tem condições antitéticas em
relação às da T.: alteridade entre presente e passado e entre os indivíduos.
TRADICIONAIISMO (in. Traditionalism-, fr. Traditionalisme; ai. Traditionalismus-, it. Tradi-zionalismó). 1.
Defesa explícita da tradição, cujos principais protagonistas pertencem ao Romantismo francês: Madame de Staél
(1766-
TRADUCIANISMO
968
TRÁGICO
1817), que, em De 1'Allemagne (1813), vê a história humana como progressiva revelação religiosa; René de
Chateaubriand (1769-1848), que, em Génie du christianisme (1802), vê o catolicismo como depositário da tradição
das humanidades; e em Louis de Bonald (1754-1840), Joseph de Maistre (1753-1821) e Robert Lamennais (17821854), que se transformaram em paladinos das duas principais instituições personificadoras da T., verberadas pelo
Ilu-minismo e hostilizadas pela Revolução: a Igreja e o Estado. Por isso, esses escritores também foram chamados de
teocrãticos ou ultramon-tanistas (v. TEOCRACIA).
2. Em sentido mais geral e filosófico, pode-se entender por T. o retorno à tradição que marcou o Romantismo da
primeira metade do séc. XIX, entre cujos defensores estariam seus principais protagonistas (Fichte, Schelling, He-gel,
Maine de Biran [1766-1824], Antônio Rosmini Serbati [1797-1855], Vincenzo Gioberti [1801-52] e o próprio
Giuseppe Mazzini [1805-72]) e outros escritores menores em vários países (p. ex., o inglês J. Martineau [18051900]). A idéia comum de todos esses pensadores é que tanto o pensamento individual quanto a tradição da
humanidade baseiam-se numa revelação direta de Deus, que o homem tem o dever de desenvolver com a reflexão
individual e com a ação coletiva. A idéia do ser, de Rosmini, é a melhor expressão conceituai dessa noção de
revelação progressiva. Aplicado à história, este conceito é o mesmo que providencialismo (v.).
TRADUCIANISMO (in. Traducianism; ai. Traducianismus; it. Traducianismo). Doutrina segundo a qual a alma
dos filhos provém da alma dos pais assim como um ramo (tradux) provém da árvore. Essa doutrina já se encontrava
nos estóicos (TEMÍSTIO, Dean., II, 5; GALENO, Op., IV, 699), foi aceita por Tertuliano (De an., 22) e por outros
escritores da patrística e defendida mais tarde pelos teólogos protestantes que viam nela a possibilidade de explicar a
transmissão do pecado original. Era aceita por Leibniz (Théod., I, § 86).
A mesma doutrina foi, às vezes, indicada com o nome de generacionismo. A doutrina oposta, de que toda as almas
são criadas ex-novo chama-se criacionismo (v.).
TRÁGICO (in. Tragic; fr. Tragique, ai. Tra-gisch; it. Trágico). O conceito de T. foi, às vezes, discutido pelos
filósofos não só em relação à forma de arte que é a tragédia, mas também em relação à vida humana em geral, ou ao
palco do mundo. O ponto de partida implícito ou explícito dessas discussões quase sempre é a definição aristotélica
de tragédia, segundo a qual ela é "imitação de acontecimentos que provocam piedade e terror e que ocasionam a
purificação dessas emoções" (Poet, 6, 1449 b 23). As situações que provocam "piedade e terror" são aquelas em que a
vida ou a felicidade de pessoas inocentes é posta em perigo, em que os conflitos não são resolvidos ou são resolvidos
de tal modo que determinam "piedade e terror" nos espectadores. W. Haeger escreveu: "na tragédia grega a
felicidade, como toda posse, não pode ficar muito tempo com quem a detém; a perpétua instabilidade é inerente à sua
natureza. A convicção de Sólon, de que há uma ordem divina no mundo, encontrou nessa noção (embora tão dolorosa
para o homem) o apoio mais sólido. Esquilo também é inconcebível sem tal convicção, que pode ser chamada mais
de noção que de crença" (Paidéia, II, cap. I; trad. it., p. 449). As interpretações da natureza do T. no pensamento
moderno são três. Ia T. é o conflito continuamente resolvido e superado na ordem perfeita do todo; 2a T. é o conflito
não solucionado e insolúvel; 3a T. é o conflito que pode ser solucionado, mas cuja solução não é definitiva nem
perfeitamente justa ou satisfatória.
Ia O primeiro conceito de T. é de Hegel, para quem o conflito em que consiste o T., embora constituindo a substância
e a verdadeira realidade, não se conserva como tal, mas encontra justificação só na medida em que é superado como
contradição. "No entanto o objetivo e o caráter T. são legítimos" — diz Hegel — "porque é necessária a solução do
conflito em que ele consiste. Por meio dessa solução a eterna justiça se afirma sobre os fins e os indivíduos, de tal
modo que a substância moral e a sua unidade se restabelecem com o ocaso das individualidades que perturbam o seu
repouso" ÇVorlesungen über die Àsthetik, ed. Glo-ckner, III, p. 530). Portanto, a solução T. restabelece a harmonia, e
o que ela destrói é apenas a "particularidade unilateral" que não pôde concertar-se com a harmonia (Ibid., ed. Glockner, III, p. 530). Obviamente, desse ponto de vista, que caracteriza o otimismo ou providencialismo de caráter
romântico, a tragédia é simplesmente a aparência de uma comédia substancial: tudo acaba bem, e o que se perde
TRÁGICO
969
TRANSAÇÃO
é a "particularidade unilateral" que não tem o mínimo valor.
2- A segunda interpretação do T. é de Schopenhauer, segundo a qual o T. é conflito insolúvel. Para ele, "a tragédia é a
representação da vida em seu aspecto terrificante. É ela que nos apresenta a dor inominável, a aflição da humanidade,
o triunfo da perfídia, o es-carnecedor domínio do acaso e a fatal ruína dos justos e dos inocentes; por isso, ela
constitui um sinal significativo da natureza do mundo e do ser" {Die Welt, I, § 51). Mas a inevita-bilidade e, portanto,
a certeza de um destino maléfico ou de uma injustiça imanente, assim como a inevitabilidade e a certeza da justiça e
da harmonia, suprimem a tragicidade. Diante deles, de fato, a única atitude possível é a resignação ou o desespero:
atitudes que, assim como as que lhe são opostas, excluem o conflito constitutivo do trágico.
3a A terceira concepção foi apresentada por Schiller na obra Über naive und sentimenta-lische Dichtung (1795-96).
Nela, oT. é apresentado como manifestação da poesia sentimental (v. INGENUIDADE), mais precisamente da poesia
que representa o conflito entre o real e o ideal. A poesia sentimental divide-se em sátira e elegia: na sátira o poeta tem
por objeto o geral, considerando-o insuficiente em relação ao ideal. Ainda segundo Schiller, quando a insuficiência
do real é representada pelo conflito entre o real e nossas exigências morais, tem-se a sátira séria, que é o T. {Werke,
ed. Karpeles, XII, p. 150). Em conceitos semelhantes inspirava-se a chamada "pantragicidade" de Hebbel (v. Werke,
X, p. 43). Bem mais paradoxalmente, Nietzsche via no T., por um lado, o caráter terrificante da existência, por outro a
possibilidade de aceitar e transfigurar esse caráter ou por meio da arte ou da vontade de potência. A primeira solução
é a que Nietzsche atribui aos gregos em Die Geburt der Tragòdie (1872). O homem grego, que tinha condições de
distinguir com clareza o horrível e o absurdo da existência, conseguiu transfigurá-la por meio do espírito dionisíaco,
domando e sujeitando o horrível, que assim se transforma em sublime (o objeto da tragédia), e libertando da aversão
ao absurdo, que assim se transforma em cômico (o objeto da comédia) {Die Geburt der Tmgõdie, § 7). Mais tarde,
Nietzsche achou que a saída do terrificante da vida estaria na aceitação da vida graças à vontade de potência,
considerando o T. como aceitação dionisíaca do
que é terrificante e incerto. Escreveu então^ "A profundidade do artista T. reside no fato de que seu instinto estético
considera as conseqüências remotas e não se detém com visão estreita nas coisas próximas; de que ele afirma a
economia ã larga, que justifica o que é terrível, maligno e problemático, mas não se contenta apenas em justificá-lo"
{Wille zur Macht, ed. 1901, § 374). Essa concepção do T. — que costuma ser expressa com imperfeição ou mesclada
com as outras duas — pode ser reconhecida pelo fato de abrir espaço, em sua caracterização, à problematicidade da
situação T., vale dizer, à possibilidade de ela ser decidida de um modo ou de outro, sem que a decisão seja definitiva
ou perfeita. Foi com esse espírito que Miguel de Unamuno entendeu a tragicidade em Do sentimento T. da vida
(1913), expressando-a com o quién sabe? de Don Quixote. No mesmo sentido expressaram-se Scheller {Vom
Umsturz der Werte, 1953), Jaspers {Über das Tragische, 1952) e Cantoni {Trágico e senso comune, 1964). P.
Romanell diz que, ao contrário da épica, em que o conflito se dá entre o bem e o mal, no T. o conflito se dá entre bens
diferentes, valores heterogêneos entre os quais a escolha é dolorosa e sempre implica sacrifício
{MakingoftheMexicanMind, 1952, p. 22). Esse caráter do T. é bem realizado na tragédia grega. A tragédia de
Sófocles baseia-se na convicção de que existe uma ordem divina no mundo, em virtude da qual às vezes o inocente
precisa pagar por um erro cometido por outros. O fato de a solução do conflito não poder ser límpida, de algo se
perder nessa solução e de esse algo não ser — como dizia Hegel — uma "particularidade unilateral" é o que constitui
o fascínio e a verdade da tragédia.
TRANQÜILIDADE. V. ATARAXIA.
TRANSAÇÃO (in. Transaction; fr. Transaction; ai. Transaction; it. Transazioné). Termo introduzido em filosofia
por Dewey e Bentley para indicar uma relação que não pressupõe os termos relativos como entidades em si. Dewey
diz: "Esse termo indica negativamente que nem o senso comum nem a ciência devem ser considerados entidades,
como à parte, completo e circunscrito.(...) Positivamente, indica que devem ser marcados pelas características e pelas
propriedades encontradas em tudo o que se reconhece como T.: p. ex., um negócio ou uma T. comercial. Essa T.
transforma um dos participantes em comprador e o outro em vendedor: não existem compradores e vendedores a não
TRANSCENDÊNCIA
970
TRANSCENDÊNCIA
ser em T. e por causa da T. em que são empenhados" (Knowing and the Known, 1949, p. 270). Na Itália, esse termo
foi empregado por Romagnosi: segundo ele, "do comércio entre o interior e o exterior" do homem nasce "sobre o
pano de fundo do eu pensante uma T. que harmoniza as leis do mundo interior com o exterior, para formar um único
mundo e uma única vida" (Che cos'è Ia mente sana? [1827], ed. 1936, p. 100, 138).
TRANSCENDÊNCIA (in. Trancendence, fr. Transcendance, ai. Transzendez, it. Trascen-denzd). Esse termo foi
usado com dois significados diferentes: \° estado ou condição do princípio divino, do ser além de tudo, de toda
experiência humana (enquanto experiência de coisas) ou do próprio ser; 2- ato de estabelecer uma relação que exclua
a unificação ou a identificação dos termos.
1Q No primeiro sentido, esse termo vincula-se à concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera que o Bem,
como princípio supremo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e as torna visíveis, está
além da substância (èjiÉKetva Tfjç oüoíaç, Rep., VI, 509 b). A exemplo de Platão, Plotino repete que o Uno está
"além da substância" (Enn., VI, 8, 1 9), mas acrescenta que ele também está "além do ser" (èratceivoc ÕVTOÇ, Ibid.,
V, 5, 6) e "além da mente" (è7rÍK£iva voO, Ibid., III, 8, 9), de tal modo que é transcendente (Ú7t£pftepT|Ka)Ç) em
relação a todas as coisas, mesmo produzindo-as e conservando-as no ser {Ibid., V, 5, 12). Proclo diz: "Além de todos
os corpos está a substância da alma; além de todas as almas, a natureza inteligível; além de todas as substâncias
inteligíveis, está o Uno" (Inst. theol., 20). Escoto Erigena e outros usaram o termo supra-ente (v.) para designar a T.
absoluta, graças à qual Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser ou da substância.
Nem sempre, porém, a T. é levada ao ponto de situar Deus além do ser, transformando-o de algum modo em "nada".
A escolástica clássica, reconhecendo a analogi-cidade do ser, não põe Deus além do próprio ser: esta forma de T. é,
ao contrário, própria da teologia negativa ou mística (v. TEOLOGIA, 4). Fora da teologia, essa espécie de T. foi
reconhecida por Jaspers, que a contrapôs à existência: T. é o que está além da possibilidade de existência, é o ser que
nunca se resolve no possível e com o qual a única relação que o homem pode ter consiste na impossibilidade
de alcançá-lo. Nesse sentido, a T. se manifesta sob forma de cifra (v.) nas situações-limite (v.) e não pode ser
caracterizada nem como "divindade", sem incidir na superstição. A única certeza que se pode ter em relação à T. é
que "o ser é, e é assim" (Phil., III, p. 134).
Entrementes, as correntes realistas da filosofia contemporânea atribuíam T. às coisas, aos objetos do conhecimento
em geral ou ao ser de tais objetos. Nesse sentido, Husserl negava que uma coisa pudesse ser dada como imanente em
qualquer percepção ou consciência, e definia o ser da coisa como ser transcendente, que é mais ou menos sombreado
pelas aparições da coisa à consciência (ldeen, I, § 41). N. Hartmann insistia na T. do ser em relação ao conhecimento,
porquanto o ser fica sempre além do objeto cognitivo imanente (Metaphysik der Erkenntniss, 2a ed., 1925, p. 50). No
mesmo sentido, a T. era combatida pelas várias formas do imanentismo (v.).
2- No segundo significado, T. é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou identidade de
seus termos, mas sim garantindo, com a própria relação, a sua alteridade. Esse conceito também tem origem religiosa
e neoplatônica. Plotino dizia que a contemplação é "para quem foi além de tudo" (xto vmepfiávTi rcávTa, Enn., VI,
9, 11). Num trecho famoso, S. Agostinho dizia: "Se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo", e
acrescentava: "Lembra-te de que, ao te transcenderes a ti mesmo, estás transcendendo uma alma racional e que,
portanto, deves visar ao ponto do qual provém a luz da razão" (De vera relig., 39).
Esse sentido ativo de T. ficou praticamente obliterado na filosofia tradicional e só foi retomado pela filosofia
contemporânea. Com referência à T. do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende ou ao ato de
conhecimento que é seu objeto, a própria consciência ou o ato de conhecimento foram chamados de transcendentes.
Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto e em relação à qual a coisa é
transcendente, o que difere da percepção imanente, que tem por objeto as experiências conscientes que são imanentes
à própria percepção (Ideen, I, § 42, 46). N. Hartmann baseou o seu realismo no conceito de T.: "O conhecimento não
é um simples ato de consciência, como o representar e o pensar, mas um ato transcendente. Um ato desses se liga ao
sujeito só por um lado, mas
TRANSCENDÊNCIA
971
TRANSCENDENTAL
por outro fica fora; por este último, liga-se ao existente, que, graças a ele, se torna objeto. O conhecimento é uma
relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a consciência" (Systematische Philosophie, § 11). No mesmo sentido ele chama de transcendente a relação cognoscitiva (Ibid., § 10). No entanto, a mais
importante utilização do conceito nesse sentido foi a de Heidegger, que definiu como transcendente a relação entre o
homem (Dasein, ser-aí) e o mundo. "O ser-aí que transcende (eis uma expressão já por si tautológica) não ultrapassa
nem um obstáculo anteposto ao sujeito de tal modo que o obrigue a permanecer em si mesmo (imanência), nem um
fosso que o separaria do objeto. Por sua vez, os objetos (entes que lhe estão presentes) não são aquilo em cuja direção
ocorre a ultra-passagem. O que é ultrapassado é unicamente o ente, ou seja, qualquer ente que possa ser revelado ou
revelar-se ao ser-aí, portanto o ente que o ser-aí é, enquanto, existindo, é ele mesmo" (Vom Wesen des Grundes, 1929,
II). Em outros termos, é pelo ato de T. que o homem, como ente no mundo, se distingue dos outros entes ou objetos e
se reconhece como "ele mesmo". Heidegger, portanto, considera a T. como o significado do ser no mundo. "Quem
ultrapassa e, portanto, vai além, deve como tal sentir-se situado no ente. O ser-aí, na medida em que se sente como
tal, está incluído no ente de tal modo que, reabarcado nele, é por ele conciliado consigo mesmo. A T. é um tal projeto
do mundo que quem projeta é dominado pelo ente que transcende e está já de acordo com ele. Com esse ser incluído
do ser-aí, ligado com a T., o ser-aí ganhou base no ente, obteve o seu fundamento" (Ibid., III). São características de
Heidegger essa reincidência e esse acha-tamento da T. nos objetos transcendidos, do projeto nas suas condições de
partida, do possível no efetivo, do futuro no passado. Heidegger chama de decadência ou facticidade (v.) essa
reincidência ou achatamento. Foi o que fez Sartre, que expressa o mesmo conceito de T. afirmando que a consciência
(opa-ra-si), ao transcender para o ser (o em-si), está apenas se anulando para revelar e afirmar, através de si, o próprio
ser (L'être et le néant, II, cap. III, espec. pp. 268-69). Para uma interpretação da T. que fuja ao achatamento ou à
nadificação, cf. ABBAGNANO, Struttura delTesis-tenza, 1939, § 18; ID., IntroduzioneaWe-sistenzia-lismo, I, 6; etc.
TRANSCENDENTAL (lat. Transcendentalis; in. Transcendental; fr. Transcendental; ai. Transzendental; it.
Trascendentalé). Com este termo ou com transcendente, começaram a ser denominadas, no fim do séc. XIII, as
propriedades que todas as coisas têm em comum, que por isso excedem ou transcendem as diversi-dades de gêneros
em que as coisas se distribuem. Esse nome já se encontra em F. Mayron (morto em 1325, Formalitates, ed. 1479, f.
22, r. A), e com certeza Lorenzo Valia (Dialecticae disputationes, I, 1) contribuiu para a sua difusão, mas os
transcendentais ou transcendentes já haviam sido definidos por S. Tomás como as propriedades "que se acrescentam
ao ente e que expressam um de seus modos que não é expresso pelo nome do ente"; e enumerava seis delas: ens, res,
unum, aliquid, bonum, verum (De ver., q. 1, a. 1), lista esta que se tornou a mais difundida e acreditada entre todas.
Esse conceito de T., com alguma mudança ocasional na lista dos termos, foi repetido inúmeras vezes depois disso
(CAMPANELLA, Dialec-tica, I, 4; G. BRUNO, De Ia causa, IV; F. BACON, De augm. scient., III, I; JUNGIUS, Lógica
ham-burgensis, I, 1, 45: SPINOZA, Et., II, 40, escólio I; BERKELEY, Principie of Human Knowledge, § 118; WOLFF,
Ont., § 495, 503; BAUMGARTEN, Met., § 72, 89; HAMILTON, Lectures on Logic, I, p. 198). A essa tradição junta-se o
uso kantiano do termo. Kant diz: "Esses supostos predicados T. das coisas nada mais são que exigências lógicas e
critérios para qualquer conhecimento das coisas em geral e repousam nas categorias de quantidade (unidade,
pluralidade e totalidade). Mas essas categorias, que deveriam ser assumidas no significado material como
pertencentes à possibilidade das coisas, na verdade eram usadas pelos antigos só com valor formal, como
constituintes da exigência lógica para qualquer conhecimento; todavia, transformavam inadvertidamente esses
critérios do pensamento em propriedade das coisas em si mesmas" (Crít. R. Pura, Analítica, § 12). Em outros termos,
Kant considera que o antigo conceito de T. peca por dois motivos: 1° porque considera o T. simples conceito lógicofor-mal; 2a porque considera esse conceito formal como propriedade das coisas em si. Ao contrário, o conceito
kantiano de T. consiste em: ls considerar o T. como condição da possibilidade da coisa, ou seja, como conceito apriori
ou categoria; 2a considerar a coisa, cuja condição é o T., como fenômeno, e não como "coisa em
TRANSCENDENTAL
972
TRANSCENDENTALISMO
si". Contudo, para Kant, o T. não se identifica com as condições a priori do conhecimento humano e dos seus objetos
(que são os fenômenos), mas é considerado o conhecimento (ou a ciência, se existe uma ciência) dessas condições a
priori. Kant diz: "Não chamo de T. o conhecimento que cuida dos objetos, mas o que cuida do nosso modo de
conhecer os objetos, e que seja possível a priori" (Ibid., Intr., VII). E esclarece: "Não se deve chamar de T. qualquer
conhecimento apriori, mas apenas o conhecimento que possibilite saber que representações (intuições ou conceito)
são aplicadas ou são possíveis exclusivamente a priori e como isso se dá. Vale dizer: é T. o conhecimento da
possibilidade do conhecimento ou do uso dele a priori" (Ibid., Lógica, Intr., II; v. Prol, § 13, obs. III). Desse ponto de
vista, T. não é "o que está além da experiência", mas sim "o que antecede a experiência (apriori) mesmo não se
destinando a outra coisa senão a possibilitar o simples conhecimento empírico" {Prol, Apêndice, nota [A 204]). No
entanto, é preciso observar que KANT não se atem rigorosamente a esse significado do termo e que, muitas vezes,
chamou de T. o que é independente da experiência ou de princípios empíricos (cf., p. ex., Crít. R. Pura, O ideal da
mão pura, seç. 5, Descoberta e ilustração da aparência dialética). De qualquer forma, com base no significado
explicitamente aceito por Kant, podem ser chamados de T. apenas os conhecimentos que têm por objetos elementos a
priori, e não estes mesmos elementos. Portanto, são T. a estética, a lógica e as suas partes, mas não o são as intuições
puras, as categorias ou as idéias. Mas mesmo este uso não é rigoroso, pois Kant chama de T. as idéias e de unidade T.
o eu penso (lbid., § 16).
Esse termo foi retomado por Fichte para designar a teoria da ciência, pois mostra que todos os elementos do
conhecimento estão no Eu, ou seja, na consciência: "Essa ciência não é trancendente, mas continua T. em sua
profundidade. É verdade que ela explica a consciência com alguma coisa que existe independentemente da
consciência, mas mesmo nessa explicação não se esquece de conformar-se às suas próprias leis; e assim que reflete
sobre ela, o termo independente torna-se novamente produto da faculdade de pensar, portanto algo dependente do Eu,
porque deve existir para o Eu, no conceito do Eu". (Wissenschaftslehre, 1794, § 5, II; trad. it., p. 231). Shelling
entendia
esse termo no mesmo sentido; para ele, no saber T., "o ato do saber chega a absorver o objeto como tal", de tal modo
que é "um saber do saber, porquanto puramente subjetivo" (System des transzendentalen Idealismus, 1800, Intr., § 2).
Schopenhauer atribui o mesmo sentido idealista: T. é "o conhecimento que determina e estabelece, antes de qualquer
experiência, tudo o que é possível na experiência" (Über die vierfache WurzeldesSatzes vom zureichen-den Grunde, §
20).
Como resultado destas determinações, o conceito do T. foi-se fixando na filosofia contemporânea como aquilo que
pertence ao sujeito ou à consciência como condição do objeto e da própria realidade. Portanto, qualificou-se de T.
qualquer atividade ou elemento da consciência de que dependa a afirmação ou a posição da realidade objetiva. Assim,
expressões como "ponto de vista T." ou "conhecimento T." eqüivalem à expressão de Schelling "idealismo T.", ou
seja, doutrina que mostra que na consciência subjetiva estão as condições da realidade. Este conceito de T. persistiu
tanto nas escolas de inspiração kantiana mais estrita quanto nas escolas idealistas. Gentile chamava de "Eu T." o eu
absoluto ou universal, que cria a realidade pensando (Teoria generale dello spirito, 1920,1 § 5). Mantém-se o sentido
idealista também em Husserl, que qualifica de T. a experiência fenomenológica ou a reflexão que a ocasiona. "Na
reflexão fenomenológica T., saímos do terreno empírico praticando a epoché universal quanto à existência ou à nãoexistên-cia do mundo. Pode-se dizer que a experiência do mundo assim modificada, a experiência T. consiste no
seguinte: examinamos o cogito trans-cendentalmente reduzido e o descrevemos sem efetuar além disso a posição de
existência natural implícita na percepção espontânea" (Cart. Med., § 15). Para Heidegger, porém, T. tem sentido
objetivo porque indica "qualquer manifestação do ser no seu ser transcendente" (Sein und Zeit, § 7 C).
TRANSCENDENTALISMO (in. Transcenden-talism; fr. Transcendentalisme, ai. Transzenden-talismus; it.
Trascendentalismó). Teoria do idealismo transcendental, vale dizer, do idealismo romântico. O nome foi introduzido
nos países anglo-saxões, especialmente nos Estados Unidos, por Emerson (v. O. B. FRONTHINGHAM,
Transcendentalism in New England, 1876; nova ed., 1959).
TRANSCENDENTE
973
TRANSFORMAÇÃO
TRANSCENDENTE (lat. Transcendem; in. Transcendent; fr. Transcendam-, ai. Transzen-dent; it. Trascendente).
Este termo tem dois significados fundamentais, correspondentes aos dois significados de transcendência (v.): Ia o que
está além de determinado limite, tomado como medida ou como ponto de referência; 2e operação de transposição.
1B No primeiro significado, essa palavra assume valores muito diferentes, segundo o que se considere limite ou
medida. As propriedades transcendentais (v.) eram chamadas assim por serem T. em relação aos gêneros, dos quais
eram consideradas independentes. Fala-se de "perfeição T." como perfeição que supera todos os graus alcançáveis.
Mais freqüentemente, esse termo é usado em filosofia para indicar o que ultrapassa os limites de alguma faculdade
humana ou de todas as faculdades e do próprio homem. Assim, Boécio afirmava que "A razão transcende a
imaginação porque apreende a espécie universal que está ligada às coisas singulares" (Phil. cons., V, 4). S. Tomás
afirmava que a teologia "transcende todas as outras ciências tanto especulativas quanto práticas" porque é mais certa
que elas e por tratar de coisas "que, pela elevação, transcendem a razão" (S. Th., I, q. 1, a. 5). Ao tratar da identidade
do mínimo absoluto e do máximo absoluto em Deus, Nicolau de Cusa diz que "isso transcende o nosso intelecto, que
não pode combinar racionalmente as coisas que são contraditórias em seu princípio" (De docta ignor., 1,4).
Foi mais precisamente a partir de Kant que T. passou a designar a noção que excede os limites da experiência
possível. Portanto, segundo Kant, são T. as idéias da razão pura: "Chamaremos de imanentes os princípios cuja
aplicação se mantém em tudo e por tudo nos limites da experiência possível, e de T. os que devem ultrapassar esses
limites" (Crít. R. Pura, Dialética, Intr., I; cf. Prol, § 40). É diferente dos princípios T. o uso transcendental dos
princípios imanentes, que se vale de princípios cognitivos legítimos, mas sem levar muito em conta os limites da
experiência (Ibid., Dialética, Intr., I; cf. Prol., § 40).
2Q Nos significados anteriores, a palavra T. designa o que está além de certo limite. Na filosofia contemporânea, é
muitas vezes usada para designar uma atividade ou uma operação correspondente ao 2° significado de
transcendência. Nesse sentido, segundo Husserl, é T. a
percepção das coisas em oposição à percepção que a consciência tem de si mesma (que é percepção imanente) (Ideen,
I, § 46). No mesmo sentido, Hartmann chama de ato T. o conhecimento (Systematische Philosophie, § II). Heideg-ger
define como T. "o que atualiza a ultrapas-sagem, o que se mantém na ultrapassagem" ( Vom Wesen des Grundes, II;
trad. it., p. 29) (v. TRANSCENDÊNCIA) .
TRANSCENDENTISMO. Termo que só se encontra no italiano, às vezes usado para designar as doutrinas que
admitem a transcendência do ser divino.
TRANSCRIAÇÃO (in. Transcreation; fr. Transcréation; it. Transcreazionè). Termo usado por Leibniz para indicar
a ação com que Deus dá razão à alma sensível ou animal. Leibniz prefere esta à hipótese segundo a qual a alma
animal se eleva à razão por meios puramente naturais (Théod., I, § 91).
TRANSEUNTE (in. Transeunt; fr. Transeunt; ai. Transeunt; it. Transeunte). 1. O mesmo que transitivo (v.).
2. Mutável, passageiro.
TRANSFERENCIA. V. PSICANÁLISE.
TRANSFTN1TO (in. Transfinite, fr. Transfl-ni; ai. Transfinit; it. Transfinitó). Expressão usada por G. Cantor para
indicar os números que estão além dos números finitos. P. ex., se for T., o número ordinal da classe que compreende
todos os números ordinais finitos, em sua ordem natural (0, 1, 2, ...), será denotado por um ômega minúsculo (G.
CANTOR, Contribu-tion to the Founding of the Theory of Transfinite Numbers, trad. in., 1915) (v. INFINITO).
Conseqüentemente, por "indução transfinita" entende-se a extensão da indução matemática (v.) a uma classe de
números ordinais arbitrários de maneira semelhante ao modo como a indução é aplicada a uma classe bem ordenada
de números ômega.
TRANSFORMAÇÃO (in. Transformation; fr. Transformation; ai. Umformung, Transformation; it.
Trasformazione). Dewey viu na T. a categoria fundamental do raciocínio matemático. "A T. dos conteúdos
conceituais, segundo regras metódicas que satisfaçam determinadas condições lógicas, está implícita tanto na conduta
do raciocínio quanto na formação dos conceitos que fazem parte dele". Pode-se enunciar o princípio lógico da T. da
seguinte maneira: 1Q o conteúdo do raciocínio consiste em possibilidades; 2Q enquanto possibilidade, ele exige a
formulação em símbolos (Logic, XX,
TRANSFORMISMO
974
TRIÂDICO
1; trad. it., p. 516). Costuma-se chamar de regras de T. as regras da inferência dos sistemas logísticos ou das
linguagens formais (v. SISTEMA LOGÍSTICO).
TRANSFORMISMO (in. Transformism-, fr. Transformisme, ai. Transformismus; it. Trasfor-mismo). Com esse
termo indica-se o evolu-cionismo biológico, que admite a transformação de uma espécie viva em outra (v.
EVOLUÇÃO).
TRANSnTVIDADE (in. Transitivity, fr. Tran-sitivité, ai. Transitivitãt; it. Transitivitã). Caráter de uma relação que,
se ocorrer entre x e y e entre y e z, também ocorre entre x e z. Esse caráter é próprio das relações de identidade ou de
igualdade como também das relações menor, precede, ã esquerda de, etc. (v. B. RUSSELL, Introduction to
MathematicalPhilosophy, cap. IV; trad. it., p. 44).
No cálculo proposicional, as leis de T. da implicação material e da equivalência material são as seguintes: "Se p
implica q e q implica r, então p implica r (isto é: [p z> q] [qDrblpD r]). Se p é equivalente a q e q é equivalente a r,
então p é equivalente a r (isto é: [p = q] [q = r] ([p = r]) (v. A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, I, § 48
etc). TRANSMIGRAÇÃO. V. METEMPSICOSE. TRANSMUTAÇÃO DE VALORES (f r. Trans-mutation des
valeurs; ai. Umwertung aller Wer-te-, it. Trasmutazione dei valorí). Frase famosa com que Nietzsche resumiu a
finalidade de sua filosofia: "Inversão de todos os valores, eis minha fórmula para um ato de supremo reconhecimento
de si mesma por parte da humanidade, ato que em mim tornou-se carne e gênio. Meu destino exige que eu seja o
primeiro homem honesto, que me sinta em oposição às mentiras de vários milênios" (Ecce homo, § 4). A inversão de
valores consiste em substituir a tábua tradicional de valores, que se baseia na renúncia à vida, pelos novos valores
oriundos da aceitação entusiástica (dionisíaca) da vida, mesmo em seus aspectos mais cruéis (Ge-nealogie der Moral,
I, § 10; Die froeliche Wissenschafte, § 344 etc.) (v. VALOR).
TRANSNATURAL(fr. Transnaturel; it. Trans-naturalé). Termo proposto por M. Blondel para indicar a situação do
homem, que está posto entre a natureza e a supranatureza e durante a vida mortal está destinado a preparar-se para a
vida eterna (Histoire et dogme, 1904, p. 68). TRANSOBJETIVO (ai. Transobjektiv- it. Transobbiettivo). Termo
usado por N. Hartmann
para indicar a parte da realidade que fica além dos limites do conhecido, portanto além do objeto de conhecimento
(Metaphysik der Erkennt-nis, 2a ed., 1925, p. 50).
TRANSPARÊNCIA (ai. Durchsichtigkeii). Assim Heidegger chamou a intuição que o ser-aí tem de si mesmo:
"Existindo, o ser-aí tem a visão de si só à medida que se faz, de modo originário, transparente em seu ser no mundo e
em seu ser com os outros momentos constitutivos da sua existência" (Sein undZeit, % 31).
TRANSPATIA (in. Transpathy). Termo usado por escritores ingleses para indicar o contágio emotivo ou a fusão
emotiva, que difere da simpatia (v.).
TRANSPOSIÇÃO (in. Transposition; fr. Transposition-, ai. Transposition; it. Trasposizio-né). É assim chamado o
teorema do cálculo proposicional, segundo o qual de "se p, então q" pode-se inferir "não q, então não p".
TRANSRACIONALISMO (in. Transratio-nalism-, fr. Transrationalisme, ai. Transrationa-lismus, it.
Transrazionalismo). Termo usado por A. Cournot para indicar a disposição natural do homem a crer no sobrenatural,
no misterioso ou, em geral, no que está além da razão (Ma-térialisme, vitalisme, rationalisme, 1875, p. 385).
TRANSUBJETIVO (in. Transubjective, ai. Transsubjektiv; it. Transoggettivó). O mesmo que Transcendente (v).
TRANSUBSTANCIAÇÃO (lat. Transustan-tiaticr, in. Transubstantiation-, fr. Transubstan-tiation-, it.
Transustanziazioné). Interpretação do sacramento do altar, segundo a qual a substância do pão e do vinho se
transforma na substância do corpo ou do sangue de Cristo e, portanto, seus acidentes ficam sem substância. Essa é a
interpretação de S. Tomás (S. Th., III, q. 77, a. 1), que foi aceita pelo Concilio de Trento. A interpretação alternativa,
aceita pela Reforma, é a da consubstanciação (v.).
TRIÂDICO (in. Triadic; fr. Triadique, ai. Triadisch; it. Triadicò). A divisão T. gozou freqüentemente de certo
privilégio em filosofia. Sem falar da perfeição que os antigos pitagó-ricos atribuíam ao número três, Plotino
reconheceu três fases da emanação, portanto três hipóstases da divindade, o Uno, o Logos e a Alma (Enn., II, 9, D.
Mas foi principalmente Proclo quem privilegiou o procedimento T., discernindo três fases em todo e qualquer
processo (ou emanação): Ia aquilo que procede permanece semelhante a si mesmo; 2a diferencia-se de si mesmo; 3a
retorna para si mesmo
TRIADISMO
975
TRINDADE
(Inst. tbeol., 31). Sobre essas três fases da emanação Hegel moldou suas três fases da sua dialética, que consistem
respectivamente: 1* na identidade de um conceito consigo mesmo; 2 a na contradição ou na alienação do conceito em
relação a si mesmo; 3a na conciliação e na unidade das duas primeiras fases (v. Ene, §§ 79-82). Segundo essa divisão
T., Hegel interpretou tanto a lógica quanto a natureza e o espírito (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, pp. 340
ss.). Embora Hegel atribua a Kant q mérito dessa triadicidade dos processos racionais e — portanto — de toda a
realidade (Ibid., p. 344), a justificação de Kant para o fato de suas "divisões em filosofia pura serem quase sempre T."
é completamente diferente e provém da lógica. Kant disse: "Se for necessário fazer uma divisão apriori, esta poderá
ser: analítica, segundo o princípio de contradição, e então será feita sempre em duas partes (quodlibet ens est aut A
aut non A); ou sintética, e nesse caso deverá derivar de conceitos apriori (...) e conterá (1Q) a condição, (2a) um
condicionado e (3B) o conceito que nasce da união da condição com o condicionado, acabando assim por ser
necessariamente uma tricotomia" (Crít. do Juízo, Intr., Nota final).
TRIADISMO (in. Triadism; fr. Triadisme, ai. Trialismus, it. Triadismo ou Trialismó). Doutrina de origem estóica
que considera o homem formado por três princípios: alma, corpo e pneuma ou espírito; é repetida nas epístolas de S.
Paulo (v. PNEUMA).
TRIBUNAL (in. Tribunal; fr. Tribunal; ai. Gerichtshof; it. Tribunalé). Esse termo foi usado por Kant para definir a
finalidade da filosofia crítica: "A crítica da razão pura pode ser considerada o verdadeiro T. para todas as suas
controvérsias, porque esta não se imiscui nas controvérsias que se referem imediatamente aos objetos, mas é
instituída para determinar e para julgar os direitos da razão em geral, segundo os princípios da sua primeira
instituição" (Crít. R. Pura, Doutr. do mét., cap. I, seç. 2).
TRICOTOMIA (in. Trichotomy, fr. Tricho-tomie, ai. Trichotomie, it. Tricotomia). Divisão em três partes, elementos
ou classes. Esse termo é usado quase exclusivamente para a doutrina da tríplice composição da alma, que se chama
também triadismo.
A teoria lógica da T. foi elaborada no séc. XVII, com a advertência de que é preciso reduzir a T. à dicotomia sempre
que dois membros da dicotomia tenham uma noção em comum.
Pode-se dizer que o triângulo pode ser retân-gulo ou obliquângulo, podendo-se ainda dividir o triângulo obliquângulo
em obtusângulo e acutângulo (v. JUNGIUS, Lógica hamburgensis, 1638, IV, 7, 13).
TRILEMA (in. Trilemma; fr. Trilemme; ai. Trilemma; it. Trilemma). Os lógicos do séc. XIX deram esse nome ao
esquema de inferên-cia que tenha como premissa maior uma tricotomia, em vez da dicotomia do dilema (v.): "Cada
coisa é ou P ou Q ou M; S não é nem Aí nem Q; logo, Sé P". No mesmo sentido, fala-se de tetralema ou de polilema,
mas trata-se de esquemas de inferência pouquíssimo aplicados.
TRINDADE (in. Trinity; fr. Trinité; ai. Dreifaltigkeit; it. Trinitã). Um dos dogmas fundamentais do cristianismo,
que afirma a unidade da substância divina na T. das pessoas. A fórmula desse dogma foi fixada pelo Concilio de
Nicéia em 325, e em sua formulação desempenharam papéis importantes a obra do bispo Ata-násio e a polêmica
contra a doutrina de Ário, que tendia a acentuar a subordinação do Filho em relação ao Pai e praticamente ignorava a
terceira pessoa da Trindade. A explicação clássica desse dogma [assim como do dogma da en-camação(v.)] foi dada
por S. Tomás, por meio do conceito da relação. A relação, por um lado, constitui as pessoas divinas na sua distinção
e, por outro, identifica-se com a mesma e única essência divina. As pessoas divinas são constituídas por suas relações
de origem: o Pai, pela paternidade (ou seja, pela relação com o Filho); o Filho, pela filiação ou geração (ou seja, pela
relação com o Pai); o Espírito, pelo amor (ou seja, pela relação recíproca de Pai e Filho). Essas relações em Deus não
são acidentais (nada existe de acidental em Deus) mas reais; subsistem realmente na substância divina. Portanto, a
substância divina em sua unidade, ao implicar as relações, implica as diferenças das pessoas (S. Th., I, q. 27-32 e esp.
q. 29, a. 4). Esta interpretação basta, segundo S. Tomás, para mostrar que "o que a fé revela não é impossível". Do
ponto de vista lógico, implica uma doutrina historicamente importante sobre a natureza das relações (v. RELAÇÃO).
No último período da escolástica, porém, o dogma da T. recebeu duas interpretações: foi considerado "verdade
prática", por Duns Scot (Op. Ox., Prol. q. 4, nQ 31), ou algo que está além de qualquer possibilidade de entendimento,
como fez Ockham (In Sent., I. d. 30, q. 1 B).
TRINITARISMO
976
TUTIOMSMO
O dogma da T. também foi aceito pelas igrejas protestantes, com exceção da tendência representada pelo
socinianismo (v.), que retomou as doutrinas de tipo ariano, comuns nos primeiros séculos do cristianismo. Essas
doutrinas foram retomadas pelos chamados unitários, que constituíram um movimento religioso difundido
principalmente na Inglaterra e na América do Norte a partir da segunda metade do séc. XVIII (v. UNITARISMO).
TRINITARISMO (in. Trinitarianism; fr. Trinité, it. Trinitarismó). Doutrina oficial da Igreja cristã sobre a natureza
de Deus como uma única substância em três pessoas iguais e distintas (v. TRINDADE).
TRITEÍSMO (in. Tritheism; fr. Trithéisme, ai. Tritheismus; it. Triteismó). Com este termo designa-se comumente a
heresia trinitária que consiste em admitir três substâncias divinas relativamente independentes. Essa heresia foi
sustentada no sec. V por João Filopono e no séc. XI por Roscelin, que, segundo relato de S. Anselmo, afirmava que
"as três pessoas da trindade são três realidades, como três anjos e três almas, embora sejam absolutamente idênticas
em vontade e potência" (Dejide trinitatis, 3). Gilbert de Ia Porrée também se inclinava ao T., chamando de deidadea
única essência divina, da qual participariam as três pessoas diferentes; é provável que Gioacchino Da Fiore (séc. XII)
adotasse esse ponto de vista. Trata-se de uma doutrina constantemente condenada pela Igreja.
TRÍVIO. V. CULTURA, 1.
TROPOS (gr. Tpórcoi; lat. Tropes; fr. Tropes; ai. Tropen; it. Tropí). Assim eram chamados os modos ou os
caminhos indicados pelos cép-ticos para chegar à suspensão do assentimen-to. Estes T. consistem na enunciação das
situações das quais resultem oposição de opiniões ou mesmo contradições. Enesidemo de Cnossos enumerava dez
deles, que são os seguintes: ls
a diferença entre os animais, que estabelece uma diferença entre suas representações; 2 S a diferença entre os homens,
pelo mesmo motivo; 32 a diferença entre as sensações; 4a a diferença entre as circunstâncias, que também influem na
diversidade das opiniões; 5a a diferença das posições e dos intervalos; 6a a diferença das misturas; 7~ a diferença
entre os objetos simples e os objetos compostos; 8e a diferença entre as relações, visto que as opiniões mudam
segundo as relações das coisas com o sujeito judicante; 9a a diferença entre a freqüência ou a raridade dos encontros
entre o sujeito judicante e as coisas; 10a a diferença da educação, dos costumes, das leis, etc. {Pirr. hyp., I, 36-163).
Por sua vez, Agripa acrescentava outros cinco tropos, como objeções contra a possibilidade de atingir a verdade: Ia a
discordância das opiniões; 2e o processo ao infinito em que se incide quando sé quer aduzir uma prova, já que esta
prova precisa de outra, e esta outra de uma mais uma, e assim por diante; 3 Q a relação entre o sujeito e o objeto, que
leva à variação da aparência do objeto; 4a a hipótese, que é o recurso a uma assunção sem demonstração, portanto
insustentável; 59 o dialeto, ou círculo vicioso, quando se assume como princípio de prova exatamente o que se deve
provar (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 164-69).
Finalmente, Sexto Empírico enuncia outros dois tropos, que são argumentos segundo os quais não se pode
compreender uma coisa nem com base em si mesma nem com base em outra coisa {Pirr. hyp., I, 178-79).
TRUÍSMO (in. Truism; fr. Truisme, it. Truis-mo). Uma verdade evidente mas óbvia, portanto pouco importante ou
pouco útil. Tanto o termo quanto a noção são próprios da língua inglesa.
TUTIORISMO. V. PROBABILISMO.
u
U. Na lógica tradicional, símbolo da proposição modal que consiste na negação do modo e na negação da proposição:
p. ex., "não é possível que não p' (v. ARNAULD, Log., II, 8) (v. PURPÚREA).
UBI. Com esse advérbio latino (onde) Duns Scot indicou a determinação qualitativa que o corpo em movimento
adquire a cada instante do seu movimento. O U. não é o lugar (v.) porque o lugar de um corpo não é um atributo dele,
mas está nos corpos que o cercam; é semelhante ao calor, que é adquirido pelo corpo que se aquece (Quodl, q. II a. 1).
Essa noção foi criticada por Pedro Auréolo (In Sent. I, d. 17, a. 4), por Ockham (In Sent., II, q. 9 c) e por Gre-gório de
Rimini (In Sent., II, d. 6, q. I, a. 2), que reduziram o movimento do corpo que se move. Também é lembrada, com
desprezo, por Locke (Ensaio, II, 23, 21).
UBICAÇÃO. V. LUGAR.
UBIQÜIDADE (lat. Ubiquitas; in. Ubiquity, fr. Ubiquité, ai. Allgegenwart; it. Ubiquitã). O modo de ser no espaço
que os escolásticos do séc. XIV chamavam de definitivo (definítivus); consiste em estar tudo em todo o espaço, e tudo
em qualquer parte do espaço. Esse modo de ser era distinguido do chamado circunscritivo(circums-criptivus), que
consiste em estar tudo em todo o espaço (ocupado) e parte em cada parte dele (v., para esta distinção, OCKHAM, In
Sent., IV, q. 4; Quodl., VII, q. 19; Decorp. Christi, 6). O conceito de existência espacial definitiva servia para
entender a presença do corpo de Cristo no pão e a onipresença de Deus no mundo. Quanto a esta última, Leibniz
(lembrando os dois primeiros modos, que chama de ubietés), fala de uma ubieté repletiva (Nouv. ess., II, 23, 21).
UCRONIA (fr. Uchroniê). É o titulo de um romance de Charles Renouvier (Uchroniê,
1'utopiedans Vhistoire, 1876), em que o autor se propõe reconstruir "a história apócrifa do desenvolvimento da
civilização européia, como poderia ter sido, mas não foi". A finalidade do romance é mostrar a ausência da
necessidade em história (v. HISTÓRIA).
ÚLTIMO (gr. tò êaxa-cov; in Ultimate, fr. Ultime, ai. Letzt; it. Ultimo). Um dos dois extremos de uma série, mais
precisamente aquele em que a série acaba. Como é possível considerar que uma mesma série termine em um dos
extremos no que se refere a determinados objetivos (ou pontos de vista) ou no outro extremo no que se refere a outros
objetivos (ou pontos de vista), a palavra U. muitas vezes é ambivalente, e as mesmas coisas são declaradas U. e
primeiras. É o que acontece com freqüência na terminologia aristotélica: nela. o motor imóvel é qualificado de U. por
ser o primeiro da série dos movimentos (Fís., VIII, 2, 244 b 4); no entanto, é chamada de U., também, a espécie mais
próxima do indivíduo (Met., III, 3, 998 b 15). Aristóteles também chama de U. um sujeito como a água ou o ar (Ibid.,
V, 6, 1016 a 23), mas qualifica a substância de U. substrato (Ibid., V, 8, 1017 b 24) e considera o princípio de
contradição "uma opinião U." (Ibid., IV, 3, 1005 b 33). Também chama de U. o fim (Ibid., V, 16, 1021 b 25).
Todos estes usos, ou outros bastante semelhantes a estes, permaneceram na tradição filosófica. Na Idade Média a
bem-aventurança foi chamada de "fim U.", porquanto é o fim além do qual não se pode prosseguir (cf. S. TOMÁS, S.
Th., II, I, q. I, a. 4). Hoje se fala de "problemas U." ou de "razões U." no mesmo sentido em que se poderia falar de
problemas primeiros ou máximos e de razões primeiras: isso demonstra ainda uma vez que o termo pertence
UM, UNO
978
UNIÃO
principalmente à retórica do discurso filosófico e tem pouco valor conceituai (v. EXTREMO).
UM, UNO (gr. eíç; lat. Unus, in. One, fr. Un; ai. Ein; it. Uno). 1. O elemento de um conjunto ou de uma classe
qualquer, como quando se diz "O homem é um animal". Nesse aspecto, diz-se que uma relação é de muitos para U, se
para cada x do seu campo houver um só y que tenha relação com x. Fala-se que a relação é de U.para muitos se para
cada y dominante inverso do seu campo houver um único x que tenha relação com y. Afirma-se finalmente que a
relação é de U. para U. se ela e o seu inverso forem de um para muitos e de muitos para um. Nesse caso fala-se
também de uma correspondência de U. para U. (A. CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, pp. 556, 564).
2. O que é único, como quando se diz "Deus é U." (v. ÚNICO).
3. A unidade no sentido próprio do termo (v. UNIDADE).
4. O número U., ou seja, o primeiro termo da série natural dos números ou, em geral, o primeiro termo de uma série
qualquer.
5. O U. hipostático ou teológico: Deus ou o Bem como primeiro termo do processo de emanação e último termo do
processo do retorno. Nesse sentido Heráclito dizia "de todas as coisas o U., e do U. todas as coisas" (Fr. 10 DIELS; cf.
EMPÉDOCLES, Fr. 17, I). Mas foram principalmente os neoplatônicos que usaram esse termo para designar a divindade
ou o bem, que é transcendente em relação ao ser e à inteligência, portanto, está além de qualquer multiplicidade.
Plotino dizia: "É preciso que antes de todas as coisas haja alguma coisa simples e diferente de todas as coisas que
vêm depois dela; ela é em si mesma, não se mistura com as que a seguem, mas pode estar de algum modo presente
nas outras: esse é o {/., não alguma coisa que seja una, mas simplesmente o U" (Enn., V, 4, I). Assim, a unidade do
primeiro princípio deve ser entendida tão rigorosamente que o próprio nome "U." parece impróprio a Plotino. "Este
nome U talvez só contenha a exclusão da multiplicidade. Os pitagóricos os designavam simbolicamente como Apoio,
para indicar a negação de muitos. (...) Pode-se usar essa palavra para começar a indagação com uma palavra que
designe a máxima simplicidade, mas afinal é preciso negar esse mesmo atributo, que não merece mais que os outros
designar a natureza que não pode ser atingida pelo ouvido nem compreendida por quem a denomina, mas apenas por quem a contempla" (Ibid., V, 5, 6). Essas especulações sobre o U. foram
freqüentemente retomadas pela teologia negativa e pelo pan-teísmo. Em Plotino e nos outros, são acompanhadas pela
exaltação da função da unidade em todo o domínio do conhecer e do ser (v. UNIDADE). Foi o que aconteceu nas
especulações platônicas do Renascimento e também no Romantismo, que assumiu o Uno-Todo como princípio do
mundo coincidente com o próprio mundo, o que se vê de modo mais explícito na filosofia da natureza de Schelling
(Werke. I, III, p. 276). Hegel, por sua vez, que via concreção na unidade (v.), via na U. abstração ou imediação e
insistia na relação do U. com muitos, ilustrando-a de modo fantasioso, com o uso das noções, arbitrariamente,
manipuladas, de atarraco e repulsão (Wissenschaft der Logik, I, I, seç. I, cap. III, B; trad. it., pp. 181 ss.). O conceito
de U. nesse sentido é usado com freqüência tanto pelas doutrinas teístas quanto pelas panteístas. Entre os que o
utilizaram de modo mais amplo e rigoroso, deve-se lembrar Piero Martinetti (La liberta, 1928, p. 490; Ragione e fede,
1942, 402), embora na especulação de Martinetti se sinta o efeito da separação radical entre Deus, como U. absoluto,
e realidade empírica e multíplice, em que insistira Africano Spir (Denken und Wirklichkeit, 1873).
UNHEIMLICH (Heidegger). Desambienta-do, estranho. Segundo Heidegger, esse sentimento é um dos aspectos da
angústia (v.). Sentir-se estranho, desambientado, significa "não se sentir em casa" no mundo; do ponto de vista
ontológico-existencial, esse é o "fenômeno mais originário" (Sein und Ziet, § 40).
UNIÃO (in. Union; ir. Union; ai. Verhíndung; it. Unione). Qualquer forma de relação que permita considerar (a
qualquer título) o conjunto dos termos como um todo. Esta é a definição dada por Leibniz (De arte combinatoria,
1666; Op., ed. Erdmann, p. 8). Um todo não é necessariamente uma unidade ou uma totalidade (v. TODO), e os graus
de coesão entre suas partes podem ser muito diferentes. Assim também os graus da U. podem ser muito diferentes.
Kant dividiu a U. em composição (compositio) e nexo (nexus). A primeira é uma síntese não necessária; não liga
necessariamente os seus termos; para Kant, pertencia à matemática e se dividia em agregações, que dizem respeito às
quantidades extensivas, e em coalizão, que diz respeito às quantidades in-
ÚNICO
979
UNIDADE
tensivas. O nexo, ao contrário, é uma síntese necessária; p. ex. a síntese do acidente com a substância e do efeito com
a causa. Pode subsistir mesmo entre termos heterogêneos; pode ser* física (nexo entre os fenômenos) ou metafísica
(U. dos fenômenos na faculdade cognitiva a priori) (Crít. R. Pura, Analítica, livro II, cap. 2, seç. 3, n. [B 202]).
Essa diferença de significado encontra-se tanto no uso corrente do termo quanto no filosófico e no teológico. A
teologia fala de uma "U. hipostática" (substancial ou necessária) entre a natureza humana e a natureza divina na
pessoa do Cristo (v. ENCARNAÇÃO), mas fala também de U. mística da alma com Deus, que não é nem substancial
nem necessária. A filosofia fala de U. entre matéria e forma, e entre substância e acidente, que são necessárias, e fala
ainda de U. entre alma e corpo, que não é necessária (cf. LEIBNIZ, Op., Erdmann, p. 127). Na linguagem comum estão
ultrapassados alguns desses usos; além disso se fala, p. ex., de "U. carnal"; ou de U. no sentido de concórdia, de
solidariedade ou de associação para a defesa de interesses comuns (U. operária, etc).
ÚNICO (lat. Unicus; in. Unique, fr. Unique, ai. Einzig; it. Único). 1. O que não é a espécie de um gênero,
entendendo-se por gênero uma determinação de que possam participar várias espécies. Nesse sentido só Deus é U. (v.
S. TOMÁS, S. Th., I, q. 3, a. 5).
2. O que está só na sua espécie, isto é, o único indivíduo pertencente a determinada espécie. Nesse sentido, na
metafísica tradicional podem-se dizer que os anjos são U., pois é impossível existirem dois da mesma espécie,
porquanto são desprovidos de matéria, que distingue os pertencentes a uma mesma espécie (cf. S. TOMÁS, S. Th., I, q.
50, a. 4). Stirner entendia do seguinte modo a unicidade: "Eu, o U., sou o homem. A pergunta 'o que é o homem?' Em
'oquê?' procurava-se o conceito; em 'quem?', a questão resolvida, porque a resposta é dada por quem pergunta" (Der
Einzige und sein Eigentum, 1845; trad. it., p. 270). O "oqué' é o uquem", a espécie é o indivíduo (v. ANAR-QUISMO).
3. O que não é substituível em seu valor ou em sua função. Nesse sentido, qualifica-se de U. uma pessoa ou uma
obra de arte; em matemática, o valor de uma função.
4. O que não se repete ou não se repete de modo idêntico. Nesse sentido qualifica-se
de U. o acontecimento histórico como tal (v. HISTÓRIA).
5. O que pode ser efetuado de um só modo; nesse sentido dizemos que uma operação é U.: p. ex., a decomposição de
um número em fatores primos.
UNIDADE (gr. u.ot>òcç; lat. Unitas; in. Unity, fr. Unité, ai. Einheit; it. Unita). 1. Em sentido próprio, o que é
necessariamente uno, indivisível: ou no sentido de ser desprovido de partes ou de suas partes serem inseparáveis da
totalidade e inseparáveis entre si. Este foi o conceito elaborado por Aristóteles, que distinguiu o que é uno por si, ou
essencialmente, do que é uno por acidente (Met., V, 6, 1015 b 16); definiu a U. (uotxxç) como alguma coisa
indivisível, absoluta ou quantitativamente (Ibid., 1016 b 24), e distingiu quatro espécies fundamentais de U.: a) a das
totalidades contínuas, como p. ex. os organismos; b) a das formas ou substâncias; c) a numérica; d) a definitória, ou
seja, a U. de coisas que têm a mesma definição (Ibid, X, 1052 a 15-1052 b 15; v. V, 6, 1016 a I-1016 a 35). Essas
determinações aristotélicas não são perfeitamente coerentes porque, ao mesmo tempo que definem a U. como indivisibilidade, incluem entre suas formas a continuidade que o próprio Aristóteles define como a divisibilidade em partes
por sua vez divisíveis (v. CONTÍNUO). Seu significado, porém, está bem claro. A U., ou seja, o uno por si, é, por um
lado, a identidade da forma ou da substância consigo mesma; por outro, a identidade dos objetos que têm a mesma
definição (identidade dos indiscerníveis) e por outro ainda é o elemento ou o princípio do número.
No que diz respeito ao número, esse conceito de U. durou muito tempo (v. NÚMERO), mas das outras duas formas
distinguidas por Aristóteles, a U. formal ou substancial foi a mais freqüentemente assumida como conceito ou ideal
de U. na tradição filosófica. Os neoplatô-nicos ilustraram e exaltaram a U. como condição necessária do ser,
negligenciando a distinção aristotélica entre a U., que é necessária, e o uno, que não é. Para Plotino, a U. é sempre
necessária: "Separados do um, os seres não existem mais. O exército, o coro, o rebanho não existiriam se não fossem
um exército, um coro. um rebanho. A casa e a nave não são se não têm unidade, porque a casa é uma casa e a nave é
uma nave, e, se perdessem a unidade, não seriam nem casa nem nave. Nem as grande-
UNIDADE
980
UNIFORME
zas contínuas existiriam se não tivessem unidade. Divida-se uma grandeza: perdendo a U., seu ser se transforma. O
mesmo acontece para os corpos das plantas e dos animais, que, se perdem a U. e se dividem em muitas partes,
perdem o ser que possuíam e não são mais o que eram; transformam-se em outros seres que, em sendo, são um ser
cada um {Enn., VI, 9,1). Essas considerações foram decisivas para a história ulterior do conceito de unidade.
Repetidas por Proclo {Inst. theoi, 21, etc.) e por Dionísio, o Areopagita {De div. nom., XIII, C-D), passaram para a
filosofia medieval (v. S. TOMÁS, S. Th., I, q. II, a. I) e foram retomadas por Nicolau de Cusa {Dedocta ignor, I, 5),
que identificou a U. absoluta com o máximo absoluto e ambas as coisas com Deus, inspirando as especulações
correspondentes de G. Bruno sobre o assunto. A substância das coisas consiste na U. {De Ia causa, princípio et uno,
V, em Op., ed. Guzzo e Ameno, p. 409).
Locke foi o primeiro a polemizar o conceito de U. substancial. Afirma que "a U. de substância" não permite entender
as várias espécies de identidades, como p. ex. a identidade da substância do homem, da pessoa, etc, e que tais
identidades devem ser esclarecidas ou explicadas independentemente umas das outras {Ensaio, II, 27, 8). Mas já
Leibniz voltava à defesa da identidade substancial, "única U. verdadeira e real" {Nouv. ess., II, 27, 4). Wolff redefiniu
a U. no sentido tradicional, entendendo-a como "a inseparabilidade das coisas por meio das quais o ente é
determinado" {Ont., § 328); segundo Wolff, determinação do ente nada mais é que a razão ou a forma do ente {Ibid.,
§ 116). O papel determinante que Kant atribui à síntese (v.), em todos os graus e formas do conhecimento e, em geral,
da atividade humana, orienta-se pelo mesmo privilégio concedido à noção de unidade. Para Kant, U. é sinônimo de
síntese ou de nexo necessário. Seu caráter específico é, em outros termos, a inseparabilidade do que é unificado ou
sintetizado. Como fundamento de todos os graus ou formas de U., que constituem as formas e os graus do
conhecimento, Kant põe "a U. objetiva da percepção", que se manifesta com o uso da cópula é, em sentido objetivo.
Segundo Kant, essa cópula designa "a U. necessária" do sujeito com o predicado e a relação dessa U. necessária com
a apercepção originária. Isso não quer dizer que as representações ligadas pela cópula sejam "necessariamente
subordinadas uma à
outra", mas sim que elas são "subordinadas uma à outra por meio da U. necessária da apercepção" {Crít. R. Pura, §
19). Como se vê, o uso kantiano do conceito de U. é, rigorosamente, tradicional: Kant transfere para o eu penso, ou
"U. necessária da apercepção", o fundamento da U. necessária dos objetos, mas a noção mesma de U. necessária" é
aristotélica. Nem mesmo Hegel se afasta dessa noção, lamentando que ela pudesse ser entendida como "reflexão
subjetiva" e afirmando que deveria, ao contrário, ser entendida no sentido de "não-separação e inseparabilidade". Mas
este é justamente o conceito aristotélico de U. {Wissenschaft der Logik, I, livro I, seç. I, cap. I, n. 2). O uso desse
termo, presente em toda a obra de Hegel para indicar o terceiro momento da dialética, o da U. ou identidade dos
opostos, conforma-se perfeitamente a esse conceito.
No uso filosófico corrente, esse termo nem sempre conserva o significado próprio de indi-visibilidade ou
inseparabilidade, ou seja, de nexo necessário. Contudo, esse significado está presente quando se fala da U. de Deus,
do mundo, da natureza, ou da história, e mesmo quando se fala de U. idéias ou normativas, como "U. da humanidade"
ou "U. da família", etc.
2. Em correlação com o significado acima, os filósofos chamam de U. os elementos constitutivos ou os princípios
gerais do ser. Sabemos que, nesse sentido, para os pitagóricos "a U. é o princípio de todas as coisas" (DIÓG. L., VIII,
25; J. STOBEO, Eci, I, 2, 58). No mesmo sentido, o neoplatonismo falou em Manadas ou de Énades (PROCLO, Inst.
theol, 64) e Leibniz chamou de Manadas (v.) as substâncias espirituais que, segundo ele, seriam os elementos do
mundo. Nesses usos, o termo conserva o significado de substância indivisível.
3. Em sentido genérico e impróprio o mesmo que um/uno (v.).
UNIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS. V. ENCICLOPÉDIA.
UNIFORME (gr. ÓLiO£i8f|Ç,; lat. Uniformis; in. Uniform; fr. Uniforme, ai. Einfórmig; it. Uniforme). 1. O que
pertence à mesma espécie ou à mesma essência ou substância; esse era o sentido atribuído por Aristóteles {Met., V, 2,
1013 b 31; I, 9, 991 b 23; VII, 7, 1032a 24, etc.) e aceito por S. Tomás {In Sent, II, d. 48, q. I, a. 1). Assim,
qualificam-se de U. os objetos que têm o mesmo gênero, a mesma espécie ou, em geral, a mesma natureza.
UNITARISMO
981
UNIVERSAIS, DISPUTA DOS
2. O que permanece constante, imutável ou pelo menos relativamente constante e imutável. Nesse sentido fala-se da
uniformidade das leis da natureza (v. INDUÇÃO).
3. O que apresenta analogias ou semelhanças parciais, evidenciadas pela abstração preci-siva, e é suscetível de
previsão. Nesse sentido, fala-se de uniformidade da natureza ou da uniformidade da história ou do mundo humano e
social. Peirce ilustrou a uniformidade da seguinte maneira: "Se escolhermos muitos objetos, seguindo o princípio de
que eles devem pertencer a determinada classe, e julgarmos que todos têm um caráter comum, perceberemos que,
com grande freqüência, a classe inteira tem o mesmo caráter. Ou, se escolhermos muitos caracteres de uma coisa ao
acaso e depois acharmos uma coisa que tem todos esses caracteres, geralmente percebemos que a segunda coisa é
bastante semelhante à primeira" (Coll. Pap., 7.131). Como observa o próprio Peirce, uniformidade nesse sentido
poderia ser encontrada mesmo num mundo em que tudo ocorresse ao acaso (Ibid., 7.136). São essas as uniformidades
de que se valem as disciplinas científicas, tanto as naturais quanto as sociais, assim como o senso comum. O léxico de
uma linguagem qualquer nada mais é que a expressão de uniformidades desse tipo. A repetibili-dade é o caráter
fundamental da uniformidade nesse sentido.
4. O que está em conformidade com uma ordem, ou seja, com uma regra ou uma lei qualquer. Nesse sentido, são
qualificados de U. os fenômenos naturais que obedecem a leis, mas na realidade essa espécie de uniformidade e a
precedente são a mesma coisa, visto que uma lei científica nada mais é que uma uniformidade no sentido 3. Isso foi
evidenciado por J. Stuart Mill (System of Logic, III, IV, I) (v. REGULARIDADE).
UNITARISMO (in. Unitarianism; fr. Unita-risme, ai. Unitarismus, Unitismus, it. Unitarismó). 1. Corrente religiosa
que defende a unidade de Deus, em oposição à fórmula trinitária do cristianismo. Embora se ligue a antigas heresias
religiosas, o socinianismo (v.) foi a primeira forma moderna de U., constituindo depois a corrente religiosa mais
tolerante e liberal do mundo moderno. Desenvolveu-se quase exclusivamente na Inglaterra e na América do Norte.
Na Inglaterra, a Associação Unitarista foi criada em 1825, e dela deriva o nome assumido por
essa corrente mesmo fora da associação ou em numerosas outras associações da Inglaterra e da América do Norte. V.
W. E. CHANMNG, Works, 1886; Unitarian Christianity and Other Essays, ed. I. H. Barlett, 1957; A. A. BOWMAN,
TheAbsur-dity of Christianity and Other Essays, ed. C. W. Hendel, 1958.
2. Em alemão, especialmente, esse termo eqüivale a panteísmo (v.). Fichte diz: "Se perguntássemos qual o caráter da
teoria da ciência no que se refere a unitarismó (ev Kod Ttõv) e dualismo, a resposta seria: ela é unitarismó em seu
aspecto ideal por saber que, como fundamento de todo o saber, encontra-se o eterno Uno, que está além do saber; e é
dualismo no aspecto real, ao pôr o saber como real" (Wissenschaftslehre. 1801, § 32, em Werke, II, p. 89).
UNIVERSAIS, DISPUTA DOS (in. Contro-versy about universais; fr. Querelle des univer-saux, ai.
Universalienstreit; it. Disputa degli universali). Essa expressão designa a disputa sobre o status ontológico dos U.
(gêneros e espécies), que começou na Escolástica do séc. XI e caracterizou toda a filosofia medieval, continuando
depois, com formas pouco diferentes, na filosofia moderna. Essa disputa foi motivada por um trecho da Isagoge
(Introdução) de Porfírio às Categorias de Aristóteles e pelos comentários de Boécio a ela relativos. O trecho de
Porfírio é o seguinte: "Dos gêneros e das espécies não direi aqui se subsistem ou se são apenas postos no intelecto,
nem — caso subsistam — se são corpóreos ou incorpóreos, se separados das coisas sensíveis ou situados nas coisas,
expressando seus caracteres comuns" (Isag., I). Das alternativas indicadas por Porfírio nesse trecho, apenas uma não
se encontra na história da disputa: aquela segundo a qual os U. seriam realidades corpóreas. Em compensação, uma
alternativa que Porfírio não previra verificou-se historicamente, pelo menos segundo dizem: o U. não existe nem no
intelecto e é apenas um nome, um flatus voeis. Essa é a solução atribuída a Roscelin por S. Anselmo (Defide
Trinitatis, 2) e por João de Salisbury (Metal, II 13; Policrat., VII, 12). As soluções dadas a esses problemas na
Escolástica e depois dela foram muito numerosas, e muitas vezes diferem por ninharias. Realismo (v.) e nominalismo
(v.) são as soluções fundamentais, mas Ockham, na refutação sistemática que quis fazer ao realismo, enumerava seis
formas fundamentais deste (In Sent., I, d. 2. q. 4-8;
UNTVBERSAIS, DISPUTA DOS
982
UNIVERSAL
Quodl, V, q. 10-14; Summa log., I, 15-17; v. ABBAGNANO, G. de Ockbam, II, § 8-II).
Mas o fundamental para entender tanto a origem histórica da disputa quanto o alcance permanente que ela pode ter é
que suas duas soluções fundamentais, realismo e nominalis-mo, correspondem às duas tendências fundamentais da
lógica antiga e medieval, a platônico-aristotélica e a estóica. Essas duas tendências correspondem à lógica antiga e à
lógica moderna, nomes medievais daquilo que mais tarde foi chamado de formalismo e de terminismo (v.
TERMINISMO). A primeira dessas correntes defendia as doutrinas lógicas tradicionais; a segunda, a doutrina da
suposição (v.) e os raciocínios antinômicos. Os tratados lógicos da Idade Média justapõem os dois troncos
doutrinários, mas a inconciliabilidade e o antagonismo deles se manifesta na disputa dos U., que denuncia a presença
ativa, na Escolástica, de uma tradição lógica antiaristotélica, que é a estóica, haurida nas obras de Boécio e de Cícero.
Realismo e nominalismo constituem, portanto, as duas soluções típicas e iniciais do problema. Para o realismo, isto é,
para a tradição lógica platônico-aristotélica, o U. é, além de conceptus mentis, a essência necessária ou substância das
coisas. Para o nominalismo, ou seja, para a tradição estoicizante, o U. é um signo das coisas. O realismo e o
nominalismo medievais constituem, assim, as duas alternativas sempre presentes na teoria do conceito (v. CONCEITO).
Mais especificamente, no que diz respeito ao realismo, é possível distinguir três formas fundamentais, que podem ser
chamadas de platonizante, aristotélica e semi-aristotélica. A forma platonizante do realismo é atribuída por Abelardo
ao seu mestre Guilherme de Cham-peaux (séc. XI): o U. seria a substância, e os indivíduos constituiriam acidentes
dessa substância (ABELARDO, CEuvres, ed. Cousin, p. 513). A solução aristotélica é a mais comumente defendida na
escolástica, sendo expressa por S. Tomás, para quem o U. está in re como forma ou substância das coisas, post rem
como conceito no intelecto e ante rem na mente divina como Idéia ou modelo das coisas criadas {In Sent., II, d. 3, q.
2, a. 2). Esses três U. perfazem apenas um, vale dizer, identificam-se com a essência, a substância ou a forma da
coisa, que existe ab aeterno no intelecto divino e que o intelecto humano abstrai da coisa (S. Th., I, q. 85, a. I).
Finalmente, pode ser chamada de
semi-aristotélica a solução encontrada por Duns Scot, segundo o qual o verdadeiro U. existe somente no intelecto,
enquanto nas coisas existe uma natureza comum que se distingue formalmente da individualidade das coisas, e não
numericamente (Op. Ox., II, d. 3, q. 6, n. 15). O caráter peculiar dessa solução está no princípio de distinção formal
(v. DISTINÇÃO), que é uma das características da filosofia de Duns Scot.
Por outro lado, o nominalismo é mais uniforme. Excetuando a mencionada tese de Roscelin (sobre a qual, de resto,
não existem documentos convincentes), o nominalismo, de Abelardo a Ockham, sempre sustentou as mesmas teses
fundamentais, a redução do U. à função lógica da predicabilidade, dividindo-se apenas no que diz respeito à
atribuição ou não de realidade psíquica ao U. Ockham mostra-se indiferente a este último problema: nega,
obviamente, que o U. seja uma species (v.), mas considera indiferente identificá-lo com o ato do intelecto ou negar
que tenha uma realidade qualquer na alma {In Sent., I, d. 2, q. 8, E). Seu caráter fundamental é a função de signo, isto
é, a suposição (v.). Esses foram os princípios fundamentais da lógica terminista depois de Ockham; noção análoga de
U. encontra-se na teoria do conceito defendida pelo empirismo inglês a partir do séc. XVII: Locke, Berkeley e Hume
(v. CONCEITO, 2).
UNIVERSAL (gr. KOCGÓAOU; lat. Universalis; in. Universal; fr. Universel; ai. Allgemein; it. Universale). Esse
termo teve dois significados principais: le significado objetivo, em virtude do qual indica uma determinação qualquer,
que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas; 2° significado subjetivo, em virtude do qual indica a possibilidade
de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro e ao falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal, etc.) ser válido para todos
os seres racionais.
1Q O primeiro significado é o clássico; Aristóteles diz que Sócrates foi o descobridor do universal {Met., XIII, 4,
1078 b 28). Nesse sentido, o U. pode ser considerado no duplo aspecto ontológico e lógico. Ontologicamente, o U. é
a forma, a idéia ou a essência que pode ser partilhada por várias coisas e que confere às coisas a natureza ou o caráter
que têm em comum. O U. ontológico é a forma ou a espécie de Platão (v., p. ex., Parm., 132 a) ou a forma ou
substância de Aristóteles: por isso, este afirma-
UNIVERSAL
983
UNIVERSAL
va que só existe ciência do U. {Dean., II, 5, 417 b 23). Logicamente, o U. é, segundo Aristóteles, "o que, por sua
natureza, pode ser predicado de muitas coisas" (De int., 7, 17 a 39): definição que foi quase universalmente aceita na
história da filosofia. Foi o U. nesse sentido que os lógicos medievais atribuíram o caráter de signo (v.) e a função de
suposição (v.). Era este o U. que M. Nizolio interpretava como um todo coletivo ou multitudo rerum singularium, de
modo que a preposição "o homem é animal" ou significaria "todos os homens são animais" (De verisprincipiis, I, 6);
a isso Leibniz contestava que, ao contrário, se trata de um todo distri-butivo, e assim a proposição significa que este
ou aquele homem, seja ele qual for, é animal (Op., ed. Erdmann, p. 70). Desse modo, nesse aspecto Leibniz
reproduzia substancialmente a doutrina nominalista da suposição do U. (OCKHAM, Summa log, I, 70). Está claro que
U., nesse sentido, não é senão outro nome para conceito, signo ou significado: por isso, os problemas a ele
relacionados devem ser considerados sob esses verbetes.
Por outro lado, o status ontológico do U. dava ensejo à chamada disputa sobre os U., que ocupou boa parte da
filosofia medieval e de algum modo continuou e continua na filosofia moderna (v. UNIVERSAIS, DISPUTA DOS). Como
dissemos, o U. no significado ontológico é a forma ou a substância das coisas: conceito que não é somente
aristotélico e medieval. Locke também observada que o fundamento da universalidade das proposições só pode ser a
substância, com o nexo necessário que ela implica entre suas determinações, e que onde falta o conhecimento da
substância a universalidade não é rigorosa (Ensaio, IV, 6, 7). Analogamente, Kant observava que a universalidade
empírica nunca é rigorosa ou verdadeira, e que a universalidade autêntica precisa estar fundada nas formas a priori do
conhecimento, ou seja, nas formas que constituem as coisas como fenômenos (Crít. R. Pura, Intr., II ). Hegel, por sua
vez, insistia na unidade do U. e do particular, que éoíí concreto, Idéia ou Conceito Real. Portanto, ao U. abstrato, que
é contraposto ao particular e ao indivíduo, ele contrapunha o U. concreto, que é a essência ou a natureza positiva do
particular (WissenschaftderLogik, II, livro III, seç. I, cap. I, A; trad. it., III, pp. 42 ss.), e considerava ser tarefa da
filosofia conhecer o U. concreto: "E tarefa da filosofia demonstrar,
contra o intelecto, que o verdadeiro, a Idéia, não consiste em generalidades vazias, mas em um U. que, em si mesmo,
é o particular, o determinado" (Geschichte der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 58). No mesmo sentido, Croce
escrevia: "Se o conceito é U. transcendente em relação à representação singular, tomada na sua singularidade abstrata,
por outro lado é imanen-te em todas as representações, portanto também na singular", identificando assim conceito
com razão ou idéia (Lógica, 1920, p. 28). A "con-creção do U." de que falam os escritores idealistas nada mais é que
o status ontológico atribuído ao U. pela metafísica tradicional.
Ao U. ontológico ligam-se também alguns outros usos do termo universal. Assim, "história U." é a história que tem
por objeto a forma ou a ordem global do mundo humano (v. HISTÓRIA). A "gravitação U." é uma força ou um
princípio que rege a totalidade do mundo, e assim por diante. Nestes usos do termo o seu significado objetivo está
unido ao seu alcance ontológico.
2S No segundo significa, U. é o que é ou deve ser válido para todos. O conceito de U. nesse sentido nasceu no
domínio da análise dos sentimentos, especialmente dos sentimentos estéticos (v. GOSTO). Já Hume se propunha
procurar uma regra do gosto, "por meio da qual possam ser harmonizados os vários sentimentos dos homens"
(Essays, I, pp. 268 ss.), mas foi Kant que, além de usar esse tipo de universalidade no domínio da estética, estendeu-o
para o domínio moral e elucidou suas características específicas, definindo-o como validade comum ou
universalidade subjetiva. No que diz respeito à esfera estética, Kant via no juízo de gosto simplesmente "a
necessidade objetiva de concordância do sentimento de cada um com o nosso próprio sentimento", e nesse sentido
definia o belo como "um prazer necessário", no sentido de ser um prazer que todos devem sentir do mesmo modo
(Crít. do Juízo, § 22). No domínio da ética, Kant afirmava que uma lei só é prática se for "válida para a vontade de
todos os seres racionais" (Crít. R. Prática, § I), e considerava a universalidade subjetiva (possibilidade de uma
máxima valer como lei para todos os seres racionais) o critério para julgar se uma máxima é ou não uma lei moral
(Grundlegung der Metaphysik der Sitten, II). Mas ele também evidenciava a diferença entre essa universalidade
subjetiva e a universalida-
UNIVERSALISMO
984
UNÍVOCO e EQUÍVOCO
de objetiva. Dizia: "Cada juízo objetivamente U. é sempre subjetivo; isso significa que, quando o juízo é válido para
tudo que está compreendido em dado conceito, também é válido para qualquer um que represente um objeto segundo
esse conceito". Todavia, o inverso nem sempre é verdadeiro, isto é, nem todo juízo que tem universalidade subjetiva
ou validade comum também é objetivamente U.; esse é o caso da universalidade estética, que possui universalidade
subjetiva, mas não objetiva (Crít. do Juízo, § 8). A partir de Kant, a universalidade subjetiva tornou-se lugar-comum
em filosofia, tanto quanto a noção de validade (v.).
Talvez com mais exatidão, essa espécie de U. é hoje indicada pelo termo intersubjetivo (v.). A referência à
intersubjetividade constitui o significado desse termo em muitas expressões correntes, como "linguagem U.",
"educação U.", "consenso U.", "amor U.", etc. Em outras expressões, esse termo pode ter tanto o significado subjetivo
quanto o objetivo e lógico: p. ex., "gênio U.", que pode ser entendido como o gênio que todos devem reconhecer ou
reconhecem, ou como o gênio que é gênio em relação a qualquer ramo do conhecimento.
UNIVERSALISMO (in. Universalism; fr. Uni-versalisme, ai. Universalismus, it. Universalismo). 1. Em sentido
teológico, doutrina de que Deus quer salvar todos os homens, não existindo, pois, predestinação à danação. É a
doutrina sustentada, entre outros, por Leibniz, que nesse sentido fala da oposição entre "universalistas" e "particularistas" (Tbéod., I, § 80).
2. Em sentido ético, qualquer doutrina contrária ao individualismo que afirme a subordinação do indivíduo a uma
comunidade qualquer (Estado, povo, nação, humanidade, etc).
UNIVERSALIZAÇÃO. V. GENERALIZAÇÃO.
UNIVERSO (gr. TO rtãv; lat. Universuni; in. Universe, fr. Univers; ai. Universum; it. Universo). 1. Um todo
qualquer: p. ex., "U. do discurso", "U. das estrelas fixas" ou "U. visível".
2. O todo da natureza física, sem mencionar sua ordem. Este é o significado atribuído a esse termo por Aristóteles
(Met., V, 26, 1024 a I) e pelos estóicos 0- STOBEO, ECL, I, 21, pp. 442 ss.).
3. O mesmo que mundo. Este uso prevalece entre os modernos (v. MUNDO; TOTALIDADE; TODO).
UNIVERSO DO DISCURSO (in. Universe of discourse, fr. Univers du discours; it. Universo dei discorsó). Esta
expressão foi introduzida por
De Morgan (Formal Logic, 1847, p. 37) e divulgada por Boole (Laws of Thought, 1854, III, § 4) para indicar, em
geral, "a extensão do campo em cujo interior estão todos os objetos do nosso discurso".
Mais tarde e com maior precisão, esse termo passou a indicar, na álgebra da lógica, uma classe não vazia, da qual, e
somente da qual, sejam extraídos todos os elementos com que são constituídas todas as classes sobre as quais o
cálculo é feito. Daí se conclui facilmente que o U. do discurso é a soma lógica de todas as classes que podem ser
formadas com tais elementos. É indicado com o símbolo "v" ou "1". Na interpretação proposicional, será constituído
pela disjunção (soma lógica) de todas as proposições sobre as quais é feito o cálculo, ou da conjunção (produto
lógico) de todas as proposições verdadeiras.
Na lógica das relações, o U. do discurso é, ainda, formado por todos os elementos que podem entrar nas relações
consideradas; nesse caso deve conter pelo menos dois elementos, se forem consideradas apenas relações diádicas;
pelo menos três elementos, se forem consideradas também as relações triádicas... pelo menos n elementos se forem
consideradas as relações w-ádicas. A relação-U. é a relação "a v b" que existe entre todos os pares possíveis de
elementos do universo.
Na lógica contemporânea, esse conceito perdeu importância: quando usado, é-o no sentido acima definido. Na
prática, porém, usa-se com freqüência a expressão "U. do discurso", para indicar o conjunto de elementos (termos e
proposições) que constituem o campo de determinada disciplina.
G. P.
UNÍVOCO e EQUÍVOCO (gr. OWCÒvuLloç., óncóvuLioç; lat. Univocus, aequivocus; in. Uni-vocal, equivocai; fr.
Univoque, equivoque, ai. Eindeutig, Aequivok, it. Univoco, equivoco). Estes dois termos receberam definições
diferentes, segundo tenham sido atribuídos ao objeto ou ao conceito (ou nome).
1. Aristóteles atribuiu-os ao objeto e entendeu por unívocos (ou sinônimos) os objetos que têm em comum tanto o
nome quanto a definição do nome: assim, p. ex., tanto o homem quanto o boi são chamados de animais. Chamou de
equívocos (ou homônimos) os objetos que têm o nome em comum, enquanto as definições evocadas pelo nome são
diferentes: nesse sentido, chama-se de animal tanto o ho-
URDOXA ou URGLAUBE
985
ÚTIL
mem quanto um desenho (Cat., I, Ia I-II). Essas definições são repetidas com freqüência na escolástica (p. ex., PEDRO
HISPANO, Sumtn. Log., 3.01) e encontram-se em lógicos mais recentes (p. ex., JUNGIUS, Lógica hamburgensis, I, 2, 49).
2. A lógica terminista julgou "imprópria" a referência dos dois termos aos objetos e julgou que eles deveriam referirse propriamente apenas aos signos, ou seja, aos conceitos ou nomes. Desse ponto de vista, as definições de Ockham
são as seguintes. "U. é ou a palavra ou o signo convencional que corresponde a um único conceito ou, mais
estritamente, é aquilo que, por si só, pode ser predicado de várias coisas, ou é o pronome demonstrativo de uma coisa.
Equívoco, por outro lado, é o nome que, significando várias coisas, não está subordinado a um único conceito, mas é
único signo de vários conceitos ou intenções da alma. O U. pode derivar do acaso, como acontece quando o nome de
Sócrates é imposto a vários homens, ou de deliberação, quando se impõe certo nome a certas coisas e se o subordina a
um único conceito, mas depois, graças à semelhança desse conceito com outros, estende-se a outros o mesmo nome"
(Summa log., I, 13).
Ainda hoje esses termos recebem as definições terministas. As discussões sobre a natureza da univocidade tinham
imediata ressonância teológica na Idade Média-, quanto à disputa entre os defensores da univocidade e os da analogicidade do ser, v. ANALOGIA.
URDOXA ou URGLAUBE. Husserl usou esse termo (que significa crença originária) para indicar a certeza que
caracteriza a crença, ou seja, a referência segura da crença a um objeto existente (Ldeen, I, § 104) (v. CRENÇA).
URPHAENOMENON. Termo usado por Goethe, que explicava da seguinte forma o seu conceito: "Na experiência,
o mais das vezes captamos apenas casos que, com certa atenção, podem ser enquadrados em rubricas empíricas
gerais. Estas, por sua vez, subordinam-se a rubricas científicas que remetem mais além, de forma que acabamos
conhecendo melhor algumas condições indispensáveis do que aparece. Daí para a frente, tudo se sistematiza
gradualmente sob regras e leis superiores, que não se manifestam ao intelecto por meio de palavras e hipóteses, mas à
intuição por meio de fenômenos. São estes os fenômenos que chamamos de originários, porque na aparência nada
está acima deles, e, assim como antes subimos, eles nos permitem descer gradualmente até o caso mais comum da
experiência cotidiana". (Farben-lehre, 1808, § 175).
USIOLOGIA (in. Usiology, fr. Asiologie, ai. Usiologie, it. Usiologia). Doutrina das essências. Termo raro.
USO (in. Use, fr. Usage, ai. Gehrauch; it. Uso). O ato ou o modo de empregar meios, instrumentos ou utensílios.
Esse termo é usado em filosofia sobretudo com referência a instrumentos ou meios intelectuais ou com referência à
própria razão. Kant falou de U. lógico da razão, por meio do qual são feitas inferências imediatas, isto é, silogísticas,
e de U. puro, por meio do qual a razão se faz "uma fonte especial de conceitos e de juízos". Este último é o U.
dialético da razão iCrít. R. Pura, Dialética, Intr., II, B-C). Kant distinguiu também o U. teórico e o U. pratico da
razão (Crít. R. Pura, Pref. à segunda ed.) e finalmente fez a distinção entre U. empírico dos conceitos, que significa a
sua referência a objetos da experiência possível, e U. transcendental, que significa a sua referência a objetos que
estão além de tal experiência (v. TRANSCENDENTAL).
Wittgenstein lançou mão da noção de U. para definir o significado dos termos lingüísticos: "Para uma ampla classe de
casos — embora não para todos — nos quais empregamos a palavra 'significado', ela pode ser assim definida: o
significado de uma palavra é o seu U. na linguagem" {Philosophical Investigations, §43)
(v. LINGUAGEM; SIGNIFICADO).
Os lógicos contemporâneos fazem a distinção entre U. de uma palavra e sua menção. Na frase "o homem é um animal
racional", a palavra "homem" é usada mas não mencionada. Ao contrário, a frase "em português, a tradução de man
tem cinco letras", a palavra homem é mencionada mas não usada. Finalmente, na frase "a palavra homem tem cinco
letras" a palavra homem é ao mesmo tempo usada e mencionada. Este último U. foi chamado pelos escolásticos de
suposição material (v. SUPOSIÇÃO) e por Carnap de U. autônimo (CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 64; QUINE,
Me-thods of Logic, § 7; CHURCH, Introduction to Mathematical Logic, § 80).
ÚTIL (in. Useful; fr. Utile, ai. Nützlich; it. Utilé). 1. O que é meio ou instrumento para um fim qualquer. Nesse
sentido, a utilidade foi definida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 8,
UTILIDADE MARGINAL
986
UTILITARISMO
a. 3), Geulinex {Ethica, III, 6) e Haumgarten {Met., § 336); é um caráter das coisas.
2. Mais especificamente, a partir de Hobbes, chamou-se de Ú. o que serve à conservação do homem ou, em geral,
satisfaz às suas necessidades ou atende aos seus interesses. Hobbes afirmava, a propósito, que cada homem é por
direito natural árbitro do que lhe é Ú., e que "a medida do direito é a utilidade"(£)e eive, 1642, 1, 9-10). Seguindo
Hobbes, Spinoza identificava o comportamento racional do homem com a procura do Ú.: "A razão, não exigindo
nada de contrário à natureza, requer por si só, antes de mais nada, que cada um se ame e procure o que lhe é Ú. e que
realmente assim seja." Entre as muitas coisas Ú. e desejáveis, as mais importantes são as que convém à natureza
humana; por isso, a mais importante de todas é a conservação do homem, na sua própria pessoa e na do outro. "Os
homens que são governados pela razão, ou seja, os que procuram o que lhe é Ú. segundo a direção da razão, não
desejam para si nada que também não desejem para os outros homens justos, fiéis e honestos" {Et, IV, 18, schol.).
Nesse sentido, por um lado a utilidade tornou-se fundamento da doutrina moral chamada utilitarismo (v.) e, por outro
lado, conceito fundamental da economia política (v.). Na primeira direção, Hume já perguntava "por que a utilidade
agrada", e encontrava a resposta a esta pergunta na natural simpatia do homem para com o outro homem {Inq. Cone.
Morais, V). A coincidência da utilidade individual com a social estava assim já postulada e passou a ser um dos
temas do utilitarismo. Bentham definia utilidade como "a propriedade de um objeto em virtude da qual ele tende a
produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade {Intro-duetion to the Principies of Morais, 1789, I, D-No
campo da economia política, por Ú. entendeu-se habitualmente "tudo o que satisfaz uma necessidade"; a percepção de
que nem sempre o que satisfaz uma necessidade econômica (é desejado como tal) satisfaz a necessidade biológica
induziu Pareto a introduzir a noção de ofelimidade (v.), que é o Ú. no contexto econômico
{Traitéd'économiepolitique, n. 2028).
UTILIDADE MARGINAL. V. ECONOMIA POLÍTICA.
UTTLITARISMO (in. Utilitarianism, fr. Uti-litarisme, ai. Utilitarismus; it. Utilitarismo). Embora se possa dizer
que a identificação do bom
com o útil remonta a Epicuro (v. ÉTICA), do ponto de vista histórico, o U. é uma corrente do pensamento ético,
político e econômico inglês dos sécs. XVIII e XLX. Stuart Mill afirmou ter sido o primeiro a usar a palavra
utilitarista (utili-tariarí), extraindo-a de uma expressão usada por Galt em Annals of Paris (1812); de fato, a ele se
deve o sucesso desse nome. Contudo, essa palavra foi usada ocasionalmente por Bentham, a primeira vez em 1781.
Os aspectos essenciais do U. podem ser resumidos do modo seguinte:
1Q Em primeiro lugar, o U. é a tentativa de transformar a ética em ciência positiva da conduta humana, ciência que
Bentham queria tornar "exata como a matemática" {Introduction to the Principies of Morais, em Works, I, p. V). Essa
característica faz do U. um aspecto fundamental do movimento positivista, ao mesmo tempo em que lhe garante um
lugar importante na história da ética (v.).
2a Por conseguinte, o U. substitui a consideração do fim, derivado da natureza metafísica do homem, pela
consideração dos móveis que levam o homem a agir. Nisto, liga-se à tradição hedonista, que vê no prazer o único
móvel a que o homem ou, em geral, o ser vivo, obedece (v. HEDONISMO). Nesse aspecto, assim como no precedente, o
U. foi tratado sobretudo por J. Bentham (1748-1832).
3S Reconhecimento do caráter supra-indivi-dual ou intersubjetivo do prazer como móvel, de tal modo que o fim de
qualquer atividade humana é "a maior felicidade possível, compartilhada pelo maior número possível de pessoas":
fórmula enunciada primeiramente por Cesare Beccaria {Dei diritti e delle pene, \1(A, § 3) e aceita por Bentham e por
todos os utilitaristas ingleses. A aceitação dessa fórmula supõe a coincidência entre utilidade individual e utilidade
pública, que foi admitida por todo o liberalismo moderno (v. LIBERALISMO). A obra de James Mill e de Stuart Mill
dedicaram-se principalmente a justificar essa coincidência. Para James Mill, ela decorria da lei da associação
psicológica: cada um deseja a felicidade alheia porque ela está intimamente associada com a sua própria felicidade
{Analysis ofthe Phenomena of the Human Mind, ed. 1869, II, pp. 351 ss.). Para Stuart Mill essa mesma vinculação
estava ligada ao sentimento de unidade humana, que Comte evidenciara com sua religião da humanidade
{Utilitarianism, 2- ed., 1871, p. 61).
UTOPIA
987
UTOPIA
4Q Associação estreita do U. com as doutrinas da nascente ciência econômica. Dois dos fundadores dessa ciência,
Malthus (1766-1834) e David Ricardo (1772-1823), foram utilitaristas e compartilharam o espírito positivo e
reformador do U.
5Q Espírito reformador dos utilitaristas no campo político e social: preocuparam-se em pôr sua doutrina moral a
serviço de reformas que deveriam aumentar o bem-estar e felicidade dos homens em vários campos. Nesse aspecto, o
U. também foi denominado radicalismo.
Cf. S. LESLIE, The English Utilitarians, três vols., 1900; E. ALBEE, A History of English Uti-litarianism, 1901, 2a ed.,
1957.
UTOPIA (lat. Utopia; in. Utopia-, fr. Utopie, ai. Utopie, it. Utopia). Thomas More deu esse nome a uma espécie de
romance filosófico {De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), no qual relatava as condições de
vida numa ilha desconhecida denominada U.: nela teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância
religiosa. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer tentativa análoga, tanto anterior quanto
posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de Campanella), mas também qualquer ideal político,
social ou religioso de realização difícil ou impossível.
Como gênero literário, U. extrapola a consideração filosófica: aqui só observaremos que ela foi e ainda é muito
divulgada, sendo adaptada até para romances de ficção científica. Cabe à filosofia avaliar a U., tanto a expressa em
forma de romance quanto a expressa em forma de mito ou ideologia, etc; quanto a essa avaliação, os filósofos não
estão de acordo. Para Comte, cabia à U. a tarefa de melhorar as instituições políticas e de desenvolver as idéias
científicas {Politique positive, I, p. 285). Marx e Engels, ao contrário, condenaram como "utópicas" as formas
assumidas pelo socialismo em Saint Simon, Fourier e Proudhon, contrapondo a elas o socialismo "científico", que
prevê a transformação infalível do sistema capitalista em sistema comunista, mas exclui qualquer previsão sobre a
forma que será assumida pela
sociedade futura e qualquer programa para ela (v. SOCIALISMO). No mesmo sentido, à U. — "obra de teóricos que,
depois de observarem e discutirem os fatos, procuram estabelecer um modelo ao qual possam ser comparadas as
sociedades existentes para medir o bem e o mal que encerram" — Sorel contrapunha o mito, expressão de um grupo
social que se prepara para a revolução {Reflexions sur Ia violence, 4* ed., p. 46). Mannheim, ao contrário, considerou
a U. como algo destinado a realizar-se, ao contrário da ideologia (v.), que nunca conseguiria realizar-se. Nesse
sentido, a U. seria o fundamento da renovação social Udeologie und Utopie, 1929, II, I; v. R. K. MERTON, Social
Theoty and Social Structure, 1957, 3a ed., cap. XIII). Em geral, pode-se dizer que a U. representa a correção ou a
integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas vezes aconteceu, essa correção
pode ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade
vivida. Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo corpo e consistência suficientes
para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da inovação. Em geral, essa palavra é
considerada mais com referência à primeira possibilidade que à segunda. Ao primeiro significado está ligada a
chamada "teoria crítica da sociedade", desenvolvida por Horkheimer, Adorno e Marcuse (especialmente por este
último), que se concentra sobretudo na crítica arrasadora da sociedade contemporânea. Marcuse escreveu: "A teoria
crítica da sociedade não possui conceitos que possam lançar uma ponte entre o presente e o futuro, não faz promessas
e não mostra sucessos, mas permanece negativa" {One Dimensional Man, 1964, p. 257). E ainda: "Se hoje
pudéssemos formular uma idéia concreta da alternativa, não seria a de uma alternativa: as possibilidades da nova
sociedade são tão abstratas, tão distantes e incôngruas em relação ao universo de hoje, que levariam ao malogro
qualquer tentativa de identificá-la em termos deste universo" {An Essay on Liberation, 1969; trad. it., p. 101).
V
VACUÍSTAS (in. Vacuists; fr. Vacuistes; ai. Vacuisten). Com este termo ou com o termo antiplenistas, são
designados os defensores da teoria do espaço vazio, enquanto seus adversários foram chamados de plenistas (v.
LASSWITZ, Geschichte der Atomistik, II, p. 291).
VÁCUO ou VAZIO (gr. KEVÓV; lat. Vaccum; in. Vacuum-, fr. Vide, ai. Leere, it. Vuoto). A existência do V. é um
dos aspectos fundamentais da concepção do espaço como continente dos objetos (v. ESPAÇO). Leibniz falou de um
"V. de formas" (vacuum formarurrí), que existiria se não existissem substâncias capazes de todos os graus de
percepção, tanto inferiores quanto superiores aos homens (Op., ed. Erdmann, p. 431).
VAGO (in. Vague, fr. Vague, ai. Unbestimmt; it. Vago). Diz-se que uma palavra (ou um conceito ou uma proposição)
é V. se o seu significado não for suficientemente determinado, de tal modo que haverá casos em que parecerá
impossível decidir se ela é aplicável ou não. Assim a palavra distante é V. porque existem casos nos quais é
impossível decidir se é possível falar de distância ou não; entretanto, não é V. a expressão "distante trinta
quilômetros''. Peirce definiu esse termo da seguinte maneira: "Uma proposição é V. sempre que sejam possíveis
estados de coisas tais que quem fala, mesmo os contemplando, ficaria intrinsecamente indeciso quanto a serem
afirmados ou negados na proposição. Por intrinsecamente indeciso pretendemos falar do que é duvidoso, não pela
ignorância de quem interpreta, mas pela indeterminação da linguagem de quem fala" (em BALDWIN, Dictionary of
Philosophy, II. p. 748). A indeterminação não deve ser identificada com ambigüidade nem com generalidade. B. Russell, porém, insistiu na dificuldade de distinguir o V. do geral inclinando-se à interpretação subjetiva da
incerteza inerente ao que é V. (Analysis ofMind, 1921, p. 184). Max Black fez uma análise exaustiva da noção de V.,
provocando uma discussão muito fértil a esse propósito ( Vagueness em Language and Philosophy, 1952, cap. II; na
tradução italiana, Vangueness é traduzido por Indetermi-natezza).
VAIDADE (in. Vanity fr. Vanité, ai. Eitelkeit; it. Vanità. 1. Nulidade, coisa vã. É nesse sentido que essa palavra é
empregada freqüentemente na Bíblia (v. Eclesiastes, 1, 2: "V. das V., disse o Eclesiastes; V. das V., é tudo V.").
2. Ambição mesquinha, vangloria, egocentrismo (v.).
VAISESICA. Um dos principais sistemas filosóficos da índia antiga, cuja fundação é atribuída a um brâmane
chamado kanada, que afirmou uma espécie de atomismo, considerando que a matéria é formada por elementos
indivisíveis e se caracteriza por seis determinações fundamentais: substância, qualidade, movimento, generalidade,
particularidade e inerên-cia. Esse sistema também admite a existência das almas, demonstrada, por inferência, a partir
da impossibilidade de atribuir ao corpo eventos como o conhecimento, o prazer, o amor, etc.; também admitia a
existência de Deus, considerado como causa e regulador do Karman (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957,
pp. 112 ss.).
VALÊNCIAGn. Valency fr. Valence, ai. Wer-theit; it. Valenza). Correspondente objetivo ou noemático do valor,
segundo Husserl: "Por um lado falamos da simples coisa que é 'valente', tem caráter de valor, tem V.; por outro,
falamos
VALIDADE
989
VALOR
dos próprios valores concretos ou da objetividade de valor" ildeen, I, § 95).
Peirce estabelecera uma analogia entre as propriedades das proposições e a V. química (Coll. Pap., 3, 470-71).
VALIDADE (in. Validity, fr. Validité, ai. Gül-tigkeit; it. Validitã). 1. Universalidade subjetiva (v. UNIVERSALIDADE,
2): nesse sentido, é válido o que é (ou deve ser) reconhecido como verdadeiro, bom, belo, etc. por todos.
2. Conformidade com regras de procedimento estabelecidas ou reconhecidas. Nesse sentido, diz-se que há validade
na inferência que se conforme às regras da lógica, na lei que se conforme às regras constitucionais, na sentença que se
conforme às leis, na ordem que seja dada pela pessoa a quem cabe dá-la e nas formas estabelecidas pelas regras. Com
esse sentido, V. deve ser distinguida de valores de verdade, de justiça, e te. De fato, uma inferência válida, isto é,
realizada em conformidade com regras lógicas, não é uma inferência verdadeira, mas só será verdadeira se as suas
premissas forem verdadeiras. Assim, uma lei ou uma sentença válidas nem por isso são justas, etc. (v., sobre a V.
lógica nesse sentido, Peirce, Coll. Pap., 3168; 7.461).
3. Utilidade ou eficiência de um meio ou de um instrumento qualquer. Nesse sentido, Dewey afirmou que as
proposições, como meios pro-cessivos para conduzir uma pesquisa, não são verdadeiras nem falsas, mas apenas
válidas (sólidas, eficientes) ou inválidas (débeis, inadequadas) {Logic, XV; trad. it., pp. 382-83). É a esse significado
de V. que se apela sempre que se usa a expressão válido para. O que se segue ao para é o fim ou a função em relação
à qual se considera eficiente o instrumento, o meio ou a condição de que se trata. P. ex., um bilhete de viagem é
válido para determinado percurso; determinada organização é válida para determinadas funções, etc.
4. Mais particularmente e no domínio da lógica, Carnap propôs que se chamasse de válido o enunciado (ou a classe
de enunciados) que seja conseqüência de uma classe nula de enunciados, e de contraválido o enunciado do qual
qualquer enunciado possa ser conseqüência. Os dois termos, nesse sentido, correspondem, respectivamente, a
analítico e contraditório (The Logical Syntax of Language, § 48). Analogi-camente, Quine propôs chamar de válido o
esquema lógico que continua verdadeiro seja qual for a interpretação dada a seus símbolos. P. ex.,
o esquema pípé um esquema válido, enquanto o esquema/», 'qé coerente, mas não é válido, porque é só verdadeiro
quando p é interpretado como verdadeiro e q como falso (Methods of Logic, § 6). Nesse sentido, V. significa apenas
analiticidade ou verdade lógica.
VALOR (gr. áÇía; lat. Aestimabile, in. Value, fr. Valeur, ai. Wert; it. Valore). Em geral, o que deve ser objeto de
preferência ou de escolha. Desde a Antigüidade essa palavra foi usada para indicar a utilidade ou o preço dos bens
materiais e a dignidade ou o mérito das pessoas. Contudo, esse uso não tem significado filosófico porque não deu
origem a problemas filosóficos. O uso filosófico do termo só começa quando seu significado é generalizado para
indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha, o que acontece pela primeira vez com os estói-cos, que
introduziram o termo no domínio da ética e chamaram de V. os objetos de escolha moral. Isso porque eles entendiam
o bem em sentido subjetivo (v. BEM, 2), podendo assim considerar os bens e suas relações hierárquicas como objetos
de preferência ou de escolha. Por V., em geral, entenderam "qualquer contribuição para uma vida segundo a razão"
(DIÓG. L., VII, 105), ou, como diz Cícero, "o que está em conformidade com a natureza ou é digno de escolha
(selectione dignurri): (Definibus, III, 6, 20). Por "estar em conformidade com a natureza", entendiam o que deve ser
escolhido em todos os casos, ou seja, a virtude; como "digno de escolha", entendiam os bens a que se deve dar
preferência, como talento, arte, progresso, entre as coisas do espírito; saúde, força, beleza entre as do corpo; riqueza,
fama, nobreza, entre as coisas externas (DIÓG. L, VII, 105-06). A divisão entre V. obrigatórios e V. preferenciais será
mais tarde expressa como divisão entre V. intrínsecos ou finais e valores extrínsecos ou instrumentais.
A retomada dessa noção no mundo moderno só ocorre com a retomada da noção subjetiva de bem: isso acontece com
Hobbes: "O V. de um homem, como o de todas as outras coisas, é seu preço, o que poderia ser pago pelo uso de suas
faculdades: portanto, não é absoluto, mas depende da necessidade e do juízo de outro. O preço de um hábil
comandante militar é alto em tempo de guerra, presente ou iminente, mas não em tempos de paz" (Leviath., I, § 10).
Todavia, a noção de V. só suplantou a de bem nas discussões morais do séc. XIX, e mesmo nessa época isso
aconteceu porque foi
VALOR
990
VALOR
estendido o significado do termo que fundamentava então as ciências econômicas (v. ECONOMIA POLÍTICA). Kant
identificara o bem com o V. em geral: "Cada um chama de bem aquilo que aprecia e aprova, isto é, aquilo em que há
um V. objetivo"; e acrescentava que nesse sentido o bem é bem para todos os seres racionais (Crít. do Juízo, § 5). No
entanto, limitava-se a designar com a palavra V. o bem objetivo, excluindo o agradável e o belo. A extensão do termo
para indicar não só o bem, mas também o verdadeiro e o belo, se deve aos Kantianos, principalmente à corrente
psicologista do Kantismo. Polemizando contra o próprio Kant, Beneke afirmava que a moralidade não pode
determinar uma lei universal da conduta, mas pode e deve determinar a ordem dos V. que devem ser preferidos nas
escolhas individuais; os próprios V. são determinados pelo sentimento (Grundlinien der Sittenlehre, 1837, I, pp. 231
ss; Grundlinien des Naturrechtes, 1838, I, pp. 41 ss.). Essa orientação da ética para os V., em filósofos que se
inspiravam em Kant, sem dúvida é devida à tendência psicologizante, que tem como corolário a noção subjetivista do
bem. Mas foi principalmente Windelband quem falou, nos ensaios depois reunidos em Prelú-Í#05(1884), de um "V.
de verdade" e de um "V. de beleza", além de um "V. de bem". Para a difusão desse conceito e do termo V., Nietzsche
contribuiu muito com suas obras fundamentais Jenseits von Gut undBôse(1886) e Zur Genealo-gie der Moral (1887).
Foi mais ou menos a partir dessa época que o conceito de V. passa a ser fundamental em filosofia, e as discussões em
torno dele esgotam quase totalmente o campo dos problemas morais.
É também a partir da mesma época que tende a reproduzir-se, no campo da teoria dos V., uma divisão análoga à que
caracterizara a teoria do bem: entre um conceito metafísico ou absolutista e um conceito empirista ou subjetivista do
V. O primeiro atribui ao V. um status metafísico, que independe completamente das suas relações com o homem. O
segundo considera o modo de ser do V. em estreita relação com o homem ou com as atividades humanas. A primeira
concepção é motivada pela intenção de subtrair o V., ou melhor, determinados valores e modos de vida neles
fundados, à dúvida, à crítica e à negação: essa intenção parece pueril, se pensarmos que o v. mais solidamente
ancorado na consciência dos homens e que mais paixões provoca também é o v. mais mutável e
relativo, a tal ponto que às vezes os filósofos se recusam pudicamente a considerá-lo autêntico: o V.-dinheiro.
1Q A primeira concepção deve, por um lado, insistir na ligação do V. com o homem e por outro na independência do
V. A primeira determinação é, de fato, constitutiva do V. e marca a característica que o distingue do bem, como é
tradicionalmente entendido. A segunda determinação visa a conferir caráter absoluto ao V. O conceito Kantiano do
apriori parecia conter ambas as determinações; por isso, com Windelband e Rickent o conceito de V. foi elaborado
em relação com o de apriori. Para Windelband, o V. é o dever-ser de uma norma que também pode não se realizar de
fato, mas que é a única capaz de conferir verdade, bondade e beleza às coisas julgáveis (Praludien, 4.a ed., 1911, II,
pp. 69 ss.). Nesse sentido, os V. não são coisas ou supra-coisas, não têm realidade ou ser, mas seu modo de ser é o
dever-ser(solleri). Rickert repete esse ponto de vista e reitera que o ser dos V. não consiste na sua realidade, mas em
seu dever-ser. Contudo, em Rickert os V. se transformam em realidades transcendentes. Rickert distingue seis
domínios do V.: lógica, estética, mística (que é o domínio da santidade impessoal), ética, erótica (que é o domínio da
felicidade) e filosofia religiosa. A cada um desses domínios corresponde um bem (ciência, arte, uno-todo,
comunidade livre, comunidade de amor, mundo divino); uma relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração, ação
autônoma, unificação, devoção); e determinada intuição do mundo (intelectualismo, esteticismo, misticismo,
moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo) (System der Philosophie, 1921). A mediação entre a realidade e os
V. é esclarecida por Rickert com o conceito de sentido (Sinrí): sentido é a referência da realidade, ou de parte dela, ao
mundo dos V., por meio da qual os V. ingressam na história e são realizados pelo homem (System der Philosophie, I,
pp. 319 ss.). Teorias dos V. muito semelhantes a esta foram elaboradas pelo teuto-americano Ugo Münsterberg em
Philosophie der Werte, de 1908, pelo americano W. M. Urban (Valuations; its Nature and Laws, 1919; The
Intellegible World, 1920), pelo italiano Guido delia Valle (Teoria generale e formale dei V., 1916) e por numerosos
outros escritores. Todas essas teorias omitem o problema que está por trás de sua formulação ou lhe dão soluções
ilusórias. Por um lado, reconhecem que o V.
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VALOR
está de algum modo presente no homem, nas atividades humanas ou no mundo humano cuja norma ou dever-ser
constitui; por outro, exigem que ele seja independente do reconhecimento ou dos feitos humanos e que possua um
status indiferente em relação ao mundo humano. Nessas teorias, tende-se a atribuir aos V. as características do ser
perfeito: unidade, universalidade e eternidade, em contraposição à multiplicidade, à particularidade e à mutabi-lidade
das manifestações empíricas cuja regra eles deveriam constituir. Por outro lado, como regras dessas manifestações, os
V. devem ter com elas uma relação essencial, sem a qual não poderiam servir nem para julgá-las nem para dirigi-las.
O conceito Kantiano do a priori transcendental não se revelara eficaz como modelo para uma solução desse
problema. Procurou-se outro tipo de solução, atribuindo-se a intuição do V. a uma experiência suigeneris, de natureza
sentimental. Segundo Scheler, o sentimento é "uma forma de experiência cujos objetos são completamente
inacessíveis ao intelecto, que é cego para eles assim como a orelha e o ouvido são insensíveis às cores"; essa forma de
experiência nos apresenta autênticos objetos dispostos numa ordem hierárquica eterna, que são os V. {Der
Formalismus in der Ethik, 3a ed., 1927, p. 262). Em outros termos, o V. é o objeto intencional do sentimento, assim
como a realidade é o objeto intencional do conhecimento; e esse objeto é apreendido em sua relação hierárquica com
os outros objetos da mesma espécie. A intuição sentimental do V. é também um ato de escolha preferencial que segue
a hierarquia objetiva dos valores, constituída por quatro grupos fundamentais: V. do agradável e do desagradável,
correspondentes à função do gozo e do sofrimento; V. vitais, correspondentes aos modos do sentimento vital (saúde,
doença, etc); V. espirituais, ou seja, estéticos e cognitivos; e V. religiosos (Op. cit., pp. 103 ss.).
Esta solução de Scheler, porém, trazia de novo à tona, no domínio da intuição fundamental, a mesma antinomia que
caracteriza a interpretação neocriticista ou transcendental do valor, E essa antinomia era justamente tomada como
rqn.cteriy.acao do V. por Hartmann; este por um lado afirma que os V. são V. só em relação ao ser do sujeito,
reconhecendo portanto a relacionabilidade (e não relatividade) deles {Ethik, 3a ed., 1949, p. 141). Por outro lado,
afirma que os V. têm um "ser em si" independente das opiniões do sujeito e que constituem autênticos objetos; estes,
embora não sejam reais como os objetos das ciências naturais, têm um modo de ser igualmente imutável e absoluto
ilbid., p. 153). Com terminologia diferente porque de natureza teológica, mas análoga, os mesmos dois aspectos
antônimos do V. foram expressos por R. Le Senne, para quem o V. é um Deus-conosca, Deus, que é único e
transcendente; como conosco está em relação com o homem e é capaz de guiá-lo {Obstacleet valeur, 1934, pp. 220
ss.).
2Q O sucesso do termo V. no mundo moderno se deve em grande parte à obra de Nietz-sche e ao escândalo que
provocou com a pretensão de inverter os valores tradicionais. Nietzsche declarava depositar suas esperanças "em
espíritos fortes e suficientemente independentes para dar impulso a juízos de V. opostos, para reformar e inverter os
valores eternos, em precursores ou homens do futuro, que no presente constituam a semente que obrigará a vontade
dos milênios a abrir novos caminhos, etc. (Jenseits von Gut und Bóse, § 203). Nietzsche considerou que a missão de
sua filosofia era a inversão dos V. tradicionais, ironizados como "V. eternos" {Ecce homo, § 4). Essa inversão
consistia substancialmente em substituir os V. da moral cristã, fundada no ressentimento (v.), portanto na renúncia e o
ascetismo, pelos V. vitais, que nascem da afirmação da vida, de sua aceitação dionisíaca (Genealogie der Moral, I,
§10).
Essa concepção de Nietzsche foi considerada uma espécie de relativismo dos V., e como tal serviu de alvo para a
polêmica de todas as doutrinas absolutistas. Na realidade, em Nietzsche, são poucos os indícios de uma relatividade
dos V.: sua intenção é, antes, restabelecer uma tábua autêntica de V., que é a dos V. vitais, em lugar dos V. fictícios,
adotados pela moral do ressentimento. A tese autêntica de Nietzsche é de intrínseca relação entre o ser do V. e o
homem, de tal maneira que não há V. que não seja uma possibilidade ou um modo de ser do homem. É esta a tese
característica da interpretação do V. que chamamos de empirista ou subjetivista. Meinong foi o primeiro a reapresentar explicitamente essa tese, ao reduzir o V. de um objeto à sua "força de motivação" ("Über Werthaltung und
Wert" em Archiv für syste-matische Philosophie, 1895, p. 341). Ehrenfels,
VALOR
992
VALOR
observando que, com base nessa definição, só teriam V. os objetos existentes, definiu o V. como simples
"desejabilidade" {System der Wertheorie, I, 1897, p. 53). Essa definição de Ehrenfels é importante porque introduz
pela primeira vez e de modo explícito a conotação da possibilidade na noção de V. V. não é a coisa desejada, mas o
objeto desejável: não é coisa no sentido de não ser necessariamente um objeto real: não é desejado porque
simplesmente pode sê-lo. Não tem significado diferente a definição de V. apresentada alguns anos mais tarde por R.
B. Perry, para quem "todo objeto, qualquer que seja, adquire V. quando é investido por um interesse qualquer"
{General Theory ofValue, 1926, 2a ed., 1950, p. 116): de fato, o interesse, diferentemente do desejo, é apenas uma
possibilidade.
Foi exatamente no âmbito dessa concepção de V. que nasceu o relativismo dos valores; isso aconteceu no coração do
historicismo, da consideração da relação entre os V. e a história. O primeiro a defender o relativismo dos V. foi
Dilthey: "A própria história é a força que produz as determinações de V., idéias e metas, com base nos quais se
determina o significado de homens e acontecimentos" {Gesammelte Schriften, VII, p. 290). Portanto, os V. e as
normas nascem e morrem na história e não subsistem fora dela nem acima de seu curso (Jbid., p. 290). O relativismo
dos V. em relação à história foi afirmado ainda mais explicitamente por Simmel. Partindo do reconhecimento da
relatividade do V. econômico, Simmel chegou ao reconhecimento da relatividade de todos os V.: o V. nunca é uma
entidade objetiva, mas sua objetividade deriva apenas da correlação entre sujeito e objeto. Portanto, não existem V.
absolutos, e são V. só aqueles que, em determinadas condições, os homens reconhecem como tais. A esfera dos V.
distingue-se da esfera da realidade, não com base num status ontológico próprio, mas por uma qualificação
categorial, que pode ser aplicada a qualquer objeto (Philo-sophie des Geldes, 1900, I, § I). O historicismo alemão,
todavia, não foi unânime em reconhecer essa relatividade; considerou-a sempre como um perigo, mas às vezes quis
evitá-la. Foi Troeltsch o primeiro a formular claramente a antítese entre relatividade histórica e absolutis-mo dos V.,
ao mesmo tempo em que procurava recuperar esse absolutismo no próprio âmbito do historicismo. A solução que ele
deu à antítese é a coincidência entre os dois termos
antinômicos: cada ponto da história está em relação direta com a esfera dos V. absolutos e contém em si tais V. sem
relativizá-los à sua mu-tabilidade {Der Historismus und seine Pro-bleme, 1922, Gesammelte Schriften, III, p. 211).
Do mesmo modo, Meinecke afirmava que a relação com o Absoluto é constitutiva da história, mas que essa relação
vai do infinito para o finito, e não o inverso: de sorte que, enquanto a história encontra fundamento nos V. que
realiza, o modo de ser destes V. é irredutível à relatividade histórica e conserva validade incondicional {Die
Entstehung des Historismus, 1936, II, p. 645).
Como se vê, no interior desta segunda interpretação fundamental do V., reproduz-se uma situação análoga à que se
verificou na primeira: a atribuição de duas características opostas ao V., absolutidade e relatividade: a primeira
constituiria o modo de ser do valor em si, o segundo o seu modo de ser na história. O pressuposto dessa oposição é o
caráter de relatividade atribuído à história e em geral a tudo o que encontra lugar na história, entendida segundo o
esquema de Bergson como uma criação contínua, em que tudo se cria e se destrói a cada instante. Portanto, não há
vestígio de relativismo dos V. onde não há vestígio de relativismo histórico e onde há um conceito menos superficial
e diletante de história. Mesmo insistindo na pluralidade dos V. e das esferas de V., Max Weber não via na história
uma incessante criação de V., cada um deles relativo a um momento da história, nem uma relação fugaz com V.
Absolutos, mas uma luta entre diferentes V. à escolha do homem {Gesammelte Politische Schriften, p. 63; v. PIETRO
ROSSI, Lo storicismo tedesco contemporâneo, pp. 367 ss.). O mesmo reconhecimento da multiplicidade dos V. e da
importância da escolha que essa multiplicidade está sempre a exigir do homem encontra-se em Dewey, que,
exatamente por isso, definiu a filosofia como "crítica dos V.".- "A confusão em que todas as teorias do V. incidiram,
entre determinada posição na relação causai ou sucessiva e o V. propriamente dito, é uma prova indireta de que toda
valoração inteligente é também crítica, isto é, juízo da coisa que tem V. imediato. Toda teoria do V. é
necessariamente um ingresso no campo da crítica" {Experience and Nature, 1926, p. 397). Mas a crítica dos V. nesse
sentido nada mais é que a disciplina inteligente das escolhas humanas. Tal disciplina implica em primeiro lugar a
con-
VARIAÇÕES CONCOMITANTES
993
VELEIDADE
sideração da relação existente entre meios e fins, de tal modo que não se pode julgar dos fins a não ser julgando ao
mesmo tempo dos meios que servem para alcançá-los (Theory of Valuation, 1939, p- 53)- Por outro lado, a crítica dos
V. não poderia ser eficazmente instituída sem levar em conta outro aspecto dos V. em que R. Frondizi insistiu muito:
a conexão entre V. e situação: "A organização econômica e jurídica, os hábitos, a tradição, as crenças religiosas e
muitas outras formas de vida que transcendem a ética contribuem para configurar determinados valores que, ao
contrário, são considerados existentes num mundo estranho à vida do homem. Embora o V. não possa derivar
exclusivamente de elementos de fato, tampouco pode prescindir de conexão com a realidade. Uma separação dessas
condena quem a executa a manter-se no plano desencarnado das essências" (Qué son los valores?, 1958, p. 127). Os
estudos contemporâneos, elaborados com base nesse pressuposto negativo, evidenciaram os seguintes aspectos:
Ia O V. não é somente a preferência ou o objeto da preferência, mas é o preferível, o desejável, o objeto de uma
antecipação ou de uma expectativa normativa (v. DEWEY, The Field of Value: a Cooperative Inquiry, ed. Ray Lepley,
1949, p. 68; CLYDE KLUCKOHN e outros, em 7b-ward a General Theory ofAction, ed. Parsons e Schils, 1951, p. 422).
2B Por outro lado, não é um mero ideal que possa ser total ou parcialmente posto de lado pelas preferências ou
escolhas efetivas, mas é guia ou norma (nem sempre seguida) das escolhas e, em todo caso, seu critério de juízo (v.
C. MORRIS, Varieties ofHuman Value, 1956, cap. I).
3e Conseqüentemente, a melhor definição de V. é a que o considera como possibilidade de escolha, isto é, como uma
disciplina inteligente das escolhas, que pode conduzir a eliminar algumas delas ou a declará-las irracionais ou
nocivas, e pode conduzir (e conduz) a privilegiar outras, ditando a sua repetição sempre que determinadas condições
se verifiquem. Em outros termos, uma teoria do V., como crítica dos V., tende a determinar as autênticas
possibilidades de escolha, ou seja, as escolhas que, podendo aparecer como possíveis sempre nas mesmas
circunstâncias, constituem pretensão do V. à universalidade e à permanência.
VARIAÇÕES CONCOMITANTES, MÉTODO DAS (in. Method ofconcomitant variations; fr. Méthode des
variations concomitantes; ai.
Methode der einander begleilenden Verãn-derungen; it. Método delle variazioni conco-mitantí). Foi esse o nome
dado por J. Stuart Mill a um dos métodos indutivos já ilustrados por Herschel (A Discourse on the Study of Natural
Philosophy, § 145), que se expressa com a seguinte regra: "Qualquer fenômeno que varie de qualquer maneira sempre
que outro fenômeno variar de alguma maneira particular é causa ou efeito desse fenômeno ou está ligado a ele por
meio de algum fato de causação" (.Logic, III, VIII, § 6). As outras regras da indução são o método da concordância, o
método da diferença e o método dos resíduos, sobre os quais v. os respectivos verbetes.
VARIÁVEL. V. CONSTANTE.
VEDANTA (in. Vedanta; fr. Vedanta, ai. Vedanta; it. Vedanta). Um dos grandes sistemas filosóficos da índia antiga,
codificado no Brahma-sutra ou Vedântasutra, atribuído a Badarayana (talvez séc. III d.C). O princípio do sistema é o
Brahman ou Átman, considerado como única realidade: o mundo é aparência enganadora, maya. Segundo esse
sistema, Sankara supunha que o eu individual é idêntico a Brahman ou Átman, enquanto Ramanuja elaborava um
sistema teísta, distinguindo de Brahman tanto o mundo criado quanto as almas individuais (DAS GUPTA, A History of
Indian Philosophy, 1932-55, III; C. Tucci, Storia delia filosofia indiana, 1957, pp. 136 ss.).
VEÍCULO SIGNITIVO (in. Sign Vehiclé). Um dos quatro componentes do processo semioló-gico (ao lado do
designado, do interpretante e do intérprete), segundo Morris; mais precisamente, o objeto ou coisa que funciona
como signo (Foundations ofthe Theory ofSigns, 1938, § 2) (v. SIGNO).
VELEIDADE (in. Velleity, fr. Velléitê, ai. Vellei-tát; it. Velleitã). Esforço impotente ou malsu-cedido. Esse termo
encontra-se em Locke, que com ele designa "a gradação mais baixa do desejo, que está mais próxima da inexistência"
(Ensaio, II, 20, 6). Esse termo aparece com sentido análogo em Leibniz, para quem é "uma espécie bastante
imperfeita de vontade condicional", ou seja, de uma vontade que, se pudesse, se empenharia, mas não pode (Théod.,
III, 404). Esta consideração está muito mais próxima do significado moderno do termo, sendo também, por outro
lado, o significado mais antigo. S. Tomás entendia por V. uma vontade antecedente, que pode ser ou permanecer sus-
VERACIDADE
994
VERDADE
pensa, assim como a vontade do juiz que, como homem, gostaria que o réu vivesse, mas que, no entanto, deseja que
ele seja enforcado (S. Th., I, q. 19, a. 6, ad. Ia).
VERACIDADE (in. Truthfulness- fr. Véra-cité, ai. Wahrhaftigkeit; it. Veracita). 1. Caráter do discurso que exprime
a convicção de quem o pronuncia e, portanto, não pode ser fonte de engano em quem ouve. Nesse sentido, Locke
chamava a V. de "verdade moral", e a distin-guia de verdade "metafísica", que é a conformidade das idéias às coisas
{Ensaio, IV, 5, II). Mas para isso Leibniz usava a palavra V. (Nouv. ess., IV, 5, 11).
2. Às vezes, V. significa sinceridade, que não é uma qualidade do discurso, mas da pessoa que faz habitualmente
discursos verazes. Nesse sentido, Descartes falara em "V. divina", afirmando que Deus não pode enganar-nos, no
sentido de não poder ser causa de erros (Méd., IV).
VERBAUSMO (in. Verbalism, fr. Verbalisme, it. Verbalismó). 1. Expressão verbal de pouco significado ou de
significação indefinido; tendência a valer-se dessas expressões. 2. Uma expressão verbal. VERBO1. V. LOGOS.
VERBO2 (gr. pf\\ia-, lat. Verbum; in. Verb, fr. Verbe, ai. Zeittvort; it. Verbo). Como parte do discurso, o V. foi
definido por Aristóteles como "o nome em cujo significado há uma determinação temporal, cujas partes nada
significam separadamente e que é o signo das coisas que se dizem de outra coisa" {De int, 3, 16 b 6). Essa definição
foi conservada pela lógica medieval (v. PEDRO HISPANO, Summ. log., 1.05). Na lingüística moderna, a distinção entre
nome e verbo tornou-se muito menos importante, visto que, embora comum a muitas línguas, não existe em outras
(BLOOMFIELD, Language, 1933, p. 20).
VERDADE (gr. àXÍ]Q£ia; lat. Ventas; in. Truth; fr. Vérité, ai. Wahrheit; it. Vertia). Validade ou eficácia dos
procedimentos cognoscitivos. Em geral, entende-se por V. a qualidade em virtude da qual um procedimento
cognoscitivo qualquer torna-se eficaz ou obtém êxito. Essa caracterização pode ser aplicada tanto às concepções
segundo as quais o conhecimento é um processo mental quanto às que o consideram um processo lingüístico ou
semiótico. Ademais, tem a vantagem de prescindir da distinção
entre definição de V. e critério de V. Essa distinção nem sempre é feita, nem é freqüente; quando feita, representa
apenas a admissão de duas definições de V. P. ex., quando se faz a distinção entre teoria da correspondência e critério
de V., este é definido como evidência recorren-do-se ao conceito de V. como revelação, e a teoria da V. como
conformidade a uma regra, apresentada por Kant como critério formal ao lado do conceito de V. como
correspondência, torna-se então uma definição da própria V.
É possível distinguir cinco conceitos fundamentais de V.: Ia a V. como correspondência; 2° a V. como revelação; 3° a
V^como conformi-chde_aumaregra; 4a a V_cqmo coerência; j"a V^ comõ~utilidade. Essas concepções tem
importâncias diferentes na história da filosofia: as duas primeiras, em especial a primeira, sem dúvida são as mais
difundidas. Não são nem mesmo alternativas entre si: é possível encontrar mais de uma no mesmo filósofo, embora
usadas com propósito diferente. No entanto, por serem díspares e mutuamente irredutíveis, devem ser consideradas
distintas.
ls O conceito de V. como correspondência é o mais antigo e divulgado. Pressuposto por muitas das escolas présocráticas, o primeiro a formulá-lo explicitamente foi Platão, na definição do discurso verdadeiro feita em Crãtilo.
"Verdadeiro é o discurso que diz as coisas como são; ?also é aquele que as diz como não são" {Crat., 385 b; v. Sof.,
262 e; Fil, 37 c). Por sua vez, Aristóteles dizia: "Negaraquilo queée_afirmar aquilo que não é^é falsõTenquanto
afirmãroque è__e_pegar o que^não é, é a verdade" {Met., IV, 7, 1011 b 26 ss.; v. V, 29, 1024 b 25). Aristóteles
enunciava também as duas teses fundamentais dessa concepção de verdade. A primeira é que a V. está no pensamento
ou na linguagem, não no ser ou na coisa {Mel, VI, 4, 1027 b 25). O segundo é que a medida da V. é o ser ou a coisa,
não o pensamento ou o discurso: de modo que uma coisa não é branca porque se afirme com V. que ela assim é, mas
afirma-se com V. que ela é branca porque é {Met., IX, 10, 1051 b 5).
Nas doutrinas anteriores a definição de V. e o critério de V. coincidem. Em outras doutrinas, mesmo mantendo-se
fixa a definição de V., o critério de V. é considerado diferente; é o que acontece no estoicismo e no epicurismo. Estóicos e epicuristas continuam admitindo que a V. é a correspondência entre o conhecimento e a coisa (SEXTO EMPÍRICO,
Adv. math., VIII, 38; II, 9),
VERDADE
995
VERDADE
mas julgam que o critério da V. é diferente, porque para os estóicos ele está na representação cataléptica (v.), que é a
manifestação do objeto para o homem, enquanto para os epicuristas ele está na sensação, que é o próprio manifestarse da coisa (DiÓG. L., X, 31). Nesses casos, a distinção entre V. e critério eqüivale a reconhecer dois conceitos de V.,
considerados compatíveis (ou não incompatíveis).
Ademais, a coexistência de dois conceitos de V. não é rara. Muitas vezes a teoria da correspondência é acompanhada
pela teoria da V. como manifestação ou revelação. S. Agostinho, por um lado, define a verdade como "aquilo que é
como aparece" (Solil, II, 5) e por outro considera como V. "aquilo que revela o que é, ou que se manifesta a si
mesmo"; nesse sentido, identifica a V. com o Verbum ou Logos, que é a primeira manifestação imediata e perfeita do
ser, ou seja, de Deus (De vera rei, 36). Por sua vez, S. Tomás, retomando uma definição de Isaac Ben Salomon, do
século IX, define a V. como "adequação entre o intelecto e a coisa" (S. Th., I, q. 16, a. 2; Contra Gent., I, 59; Dever.,
q. I, a. I), mas, ao mesmo tempo em que mantém, com relação ao homem, a tese aristotélica de que as coisas — e não
o intelecto — são a medida da V. inverte essa tese no que diz respeito a Deus.- "O intelecto divino é mensurante, e
não mensurado; a coisa natural é mensurante e mensurada, mas o nosso intelecto é mensurado, e não mensurante, em
relação às coisas naturais; é mensurante só em relação às coisas artificias" (De ver., q. I, a. 2). Portanto, existe
também uma V. das coisas, que é aquilo em virtude do que as coisas se assemelham ao seu princípio, que é Deus;
nesse sentido Deus é a primeira e suprema V. (S. Th., I, q. 16, a. 5). Esses conceitos são freqüentes na filosofia
medieval. O conceito de V. como correspondência é amplamente empregado. Pedro Hispano (Summ. log., 3-34),
Herveus Natalis (Quodl., III, I), Antônio Andréa (Super artem veterem, ed. 1508, f. 45rA) mantêm a teoria da V.
como conformidade entre intelecto e coisa, embora polemizando sobre o modo de ser da coisa, ou mais exatamente
dos objetos aos quais o intelecto deve conformar-se. Em geral, na Escolástica da segunda metade do séc. XIII e na do
XIV, especifica-se que a "coisa" à qual o intelecto deve conformar-se é a "res intellecta", isto é, a coisa como é
apreendida pelo intelecto, não exterior ao próprio intelecto (v. Também DURAND DE
SAINT-POURÇAIN, In Sent, I, d. 19, q. 5). O conceito de adequação ou conformidade, porém, perde alcance metafísico
e teológico para assumir significado estritamente lógico ou, como hoje se diria, semântico. A identificação polêmica,
defendida por Ockham, entre "V." e "proposição verdadeira" eqüivale propriamente à negação do valor metafísico da
palavra V. (Sumtna log., I, 43; Quodl., V. q. 24). Os platônicos de Cambridge mantêm, por motivos óbvios, o caráter
metafísico e teológico da noção de correspondência, falando de conformidade da coisa consigo mesma ou com a sua
essência contida no intelecto divino (v. HERBERT DE CHERBURY, De veritate, 1656, pp. 4 ss.), mas Hobbes insiste no
ponto de vista nominalista da V. como simples atributo das proposições (De corp., 3, § 7); isso também foi feito por
Locke (Ensaio, II, 32, 3-19) e até por Leibniz, que rejeita a noção metafísica de V. como "atributo do ser" e limita-se
a ver na V. "a correspondência das proposições, que estão no espírito, com as coisas das quais se trata" (Nouv. ess.,
IV, 5. 11). Wolff unia o conceito de V. como "concordância do nosso juízo com o objeto, ou seja, com a coisa
representada" (Log., § 505) — que ele chamava de definição nominalàn V. — com a noção lógica da V. como
"determinabilidade do predicado por meio da noção do sujeito" — que ele chamava de definição real (Ibid., § 513).
Baumgarten retornava à noção de V. metafísica como "ordem da multiplicidade na unidade" (Met., § 89), enquanto
Kant declarava pressupor simplesmente a "definição nominal da V." como "acordo do conhecimento com o seu
objeto", e propunha o problema de encontrar um critério para a V. Excluindo a possibilidade de um critério geral,
válido para qualquer conhecimento, ele se detinha no critério formal da V., que é a conformidade do conhecimento
com as suas regras (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; v. adiante). Esse conceito de V. como correspondência nunca
esteve ausente, nem na filosofia mais recente, pela qual às vezes é assumido como simples pressuposto, às vezes
explicitamente defendido. Isso aconteceu especialmente nas correntes realistas (v., p. ex., BOLZANO, Wissenschaftslehre, I, § 25; A. MEINONG, Über Annahmen, pp. 125 ss.). Exatamente no espírito do realismo, N. Hartmann
defendeu a concepção da V. como "coincidência com um objeto que deve ser entendido como tal" (Systematische
Philo-sophie, § 9). Hartman estende o conhecimento
VERDADE
996
VERDADE
como "reflexão do ser sobre si mesmo" {Meta-physik der Erkenntnis, 1921, cap. 27, b).
Os lógicos contemporâneos também recorrem à doutrina da correspondência, procurando formulá-la de tal modo que
ela seja independente de qualquer hipótese metafísica. Deste ponto de vista, quem melhor formulou essa teoria foi
Alfred Tarski, que retomou explicitamente, além da definição aristotélica acima, também algumas definições
análogas ou dependentes delas, como aquela segundo a qual "um enunciado é verdadeiro quando designa um estado
de coisa existente" (B. RUSSEIX, An Inquiry into Meaning and Truth, 1940, pp. 362 ss.). Tarski partiu de uma
equivalência do seguinte gênero: "O enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro se, e somente se, a neve for branca",
para generalizá-la na fórmula: "X é verdadeiro se, e somente se, p". Utilizando a noção semântica de satisfação
entendida como a relação entre objetos arbitrários e determinadas expressões chamadas de "funções enunciativas" do
tipo "xé branco", "xé maior que y", etc, Tarski chegou à seguinte definição de V.: " Um enunciado será verdadeiro se
for satisfeito por todos os objetos; caso contrário, será falso". Tarski salientou o fato de que a noção semântica de V.
(como ele a chamou e como habitualmente se chama) nada implica quanto às condições nas quais um enunciado
como "a neve é branca" pode ser asseverado. Indica só que, sempre que afirmamos ou rejeitamos esse enunciado,
deveremos estar prontos a afirmar ou rejeitar o enunciado correlativo "O enunciado 'a neve é branca' é verdadeiro".
Desse modo, ele considera que o conceito semântico de V. pode conciliar-se com qualquer atitude epis-temológica,
sendo neutro em relação a qualquer concepção realista ou idealista, empirista ou metafísica do conhecimento (The
Semantic Conception of Truth", 1944, em Readings in Philosophical Analysis, 1949, pp. 52-84; a concepção de
Tarski foi exposta pela primeira vez num texto polonês de 1933, traduzido para o alemão em Studia phüosophica, de
1935, pp. 261-405). Carnap aceitava essa concepção da verdade, mas ressaltava que ela diferia fundamentalmente dos
conceitos de crença, verificação, confirmação, etc. {Introduction to Semantics, § 7). M Black enfatizou a
insignificância filosófica dela (Language and Philosophy, IV, § 8).
2Q A segunda concepção fundamental de V. considera-a como revelação ou manifestação.
Tem duas formas fundamentais: uma empirista e outra metafísica ou teológica. A forma empirista consiste em admitir
que a V. é o que se revela imediatamente ao homem, sendo, portanto, sensação, intuição ou fenômeno. A forma
metafísica ou teológica afirma que a V. se revela em modos de conhecimento excepcionais ou privilegiados, por meio
dos quais se torna evidente a essência das coisas, seu ser ou o seu princípio (Deus). A característica fundamental
dessa concepção é a ênfase dada à evidência, assumida ao mesmo tempo como definição e critério da verdade. Mas a
evidência, obviamente, nada mais é que revelação ou manifestação.
No sentido empirista, a V. era considerada como revelação pelos cirenaicos, que viam nas sensações a própria
evidência das coisas (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VII, 199-200), pelos epicuristas, que consideravam a sensação
como o critério da V. (DIÓG. L., X, 31-32), e pelos estóicos, para os quais esse critério estaria na representação
cataléptica (v.) (DIÓG. L., VII, 54). Em Ockham, a noção de conhecimento intuitivo é a noção de manifestação
imediata das coisas para o homem (das coisas em seus caracteres e nas suas relações) {In Sent., Prol., q. I, Z). No
mesmo espírito, Telésio dizia que as coisas "retamente observadas manifestam por si mesmas a grandeza que cada
uma tem, bem como sua capacidade, suas forças, sua natureza"; para ele, a sensação era essa revelação imediata das
coisas {De rer. nat., I, Proem.). Em geral todas as doutrinas que confiam à sensibilidade o conhecimento das coisas
tendem a discernir na sensibilidade a revelação da natureza das coisas e identificam com tal revelação a própria
verdade ou o critério de verdade.
Por outro lado, da própria interpretação metafísica ou teológica da V. como correspondência nasce o conceito de V.
como manifestação do ser ou do princípio supremo. Plotino dizia: "A verdade verdadeira não está de acordo com
outra coisa, mas de acordo consigo mesma: ela não enuncia nada fora de si, mas enuncia o que ela mesma é" {Enn.,
V, 5, 2). Nesse sentido, a V. é hipostasiada: não é o caráter formal de certos procedimentos cognoscitivos, mas
princípio metafísico ou teológico que tem a mesma substancialidade e a mesma dignidade do princípio que nela se
manifesta, ou seja, Deus. Esse conceito é tema de numerosas especulações na filosofia patrística e escolástica. S.
Agostinho afirma dever existir uma natureza que esteja tão
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próxima da unidade que a reproduz em tudo e é una com ela; essa natureza é a V. ou Verbo de Deus (De vera rei.,
36). É comum na Escolás-tica a doutrina de que a verdade é o próprio intelecto ou Verbo de Deus (ANSELMO, De
Veritate, 14; S. TOMÁS, De ver., q. I, a. 4).
Mais tarde, o mesmo conceito de V. como revelação levou a reconhecer, com base no critério de evidência, a
existência de V. eternas. Descartes viu no cogito (v.) a evidência originária, pela qual a existência do sujeito pensante
se revela ao próprio sujeito pensante, e considerou que deveria ser considerado como verdadeiro tudo o que se
manifesta de modo evidente. No âmbito do que se manifesta desse modo, Descartes pôs as V. eternas, estabelecidas e
garantidas pela imutabilidade de um decreto de Deus (Méd., IV; Princ.phil., I, 49). Segundo Descartes, as V. eternas
são garantidas e reveladas diretamente por Deus, e por isso são eternas (Repouses, IV, 4). Assim também pensava
Malebranche, embora para ele, ao contrário de Descartes, elas não seriam postas, mas simplesmente reconhecidas e
validadas por Deus (Recherche de Ia vérité, X éclairissement). Mas o conceito da V. como revelação foi muito
prezada pelo Romantismo, que, em seu aspecto essencial, poderia ser classificado como filosofia da revelação (v.
ROMANTISMO). Hegel dizia.-"A idéia é a V.: porque a V. é a correspondência entre a objetividade e o conceito. Não
no sentido de que se as coisas externas correspondem às minhas representações: estas são, nesse caso, apenas
representações exatas que eu tenho como indivíduo. Mas no sentido de que todo o real, enquanto verdadeiro, é a idéia
e só tem V. por meio da idéia e nas formas da idéia" (Ene, § 213). Em outros termos, a Idéia é "a objetividade do
conceito", a racionalidade do real, mas à medida que se manifesta à consciência na sua necessidade, ou seja, como
saber ou ciência (System der Philosophie, ed. Glockner, I, p. 423; Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 275): e
o saber e a ciência são a automanifes-tação da Idéia, vale dizer, sua autêntica e completa revelação.
Como meio-termo entre a forma empírica e a forma teológica dessa concepção de V., está a concepção
fenomenológica e existencialista. A fenomenologia é, segundo conceito próprio, um método que possibilita às
essências manifestar-se ou revelar-se como tais. A epoché (v.) fenomenológica, ao pôr entre parênteses a atitude naturalista que consiste em afirmar a realidade das coisas no mundo, tende a possibilitar que as próprias coisas
manifetem sua essência. Desse ponto de vista, a V. é a evidência com que os objetos fenomenológicos se apresentam
quando a epoché é efetuada (Ideen, I, § 136). Portanto, segundo Husserl, V. e evidência pertencem não só aos objetos
teóricos, mas a todos os objetos da consideração fenomenológica, sejam eles valores, sentimentos, etc. (Ibid, § 139).
Por sua vez, Heidegger insistiu no caráter de revelação ou de descobrimentodàV'., recorrendo inclusive à etimologia
da palavra grega. Assim, por um lado insistiu no nexo estreito entre o modo de ser da V. e o modo de ser do homem,
ou ser-aí, porquanto só ao homem a V. pode revelar-se e revela-se (Sein und Zeit, § 44). Por outro lado, insistiu na
tese de que o lugar da. V. não é o juízo, e que a V. não é uma revelação de caráter predicativo, mas consiste no ser
descoberto do ser das coisas, ou das próprias coisas, e no ser descobridor do homem (Ibid., § 44 b; v. Vom Wesen des
Grandes, I, trad. it, p. 20). Heidegger, porém, também ressaltou o fato de que cada descobrimento do ser, por ser
parcial, também é um cobrimento dele; esse tema é recorrente sobretudo nos seus textos do segundo período. "O ser
subtrai-se, ao mesmo tempo em que se revela, ao ente. Desse modo o ser, ao iluminar o ente, desencaminha-o ao
mesmo tempo para o erro" (Holzwege, p. 310).
J1 A terceira concepção considera a V. como conformidade com uma regra ou um conceito. O primeiro a enunciar
essa noção foi Platão. "Ao tomar como fundamento o conceito que considero mais sólido, tudo o que me pareça estar
de acordo com ele será por mim posto como verdadeiro, quer se trate de causas, quer se trate de outras coisas
existentes; o que não me pareça de acordo com ele será por mim posto como não verdadeiro" (Fed., 100 a). Essa
concepção reaparece esporadicamente na história da filosofia. S. Agostinho afirmava que "acima da nossa mente há
uma lei chamada V." e que nós podemos julgar todas as coisas em conformidade com essa lei, que no entanto escapa
a qualquer juízo (De vera rei, 30-31)- Na literatura de inspiração agostiniana, esse tema retorna com freqüência,
porém a mais importante expressão deste conceito de V. encontra-se em Kant. Este, de fato, não se vale dessa noção
para a definição da V. (pois como dissemos, ele declara pressupor a definição nominalàa. V., que
VERDADE
998
VERDADE
é a da correpondência), mas como critério de V. Segundo Kant, o critério pode referir-se só à forma da V., ou seja, do
pensamento em geral, e consiste na conformidade com "as leis gerais necessárias do intelecto". "O que contradiz
essas leis" — afirma Kant — "é falso, porque o intelecto nesse caso contradiz suas próprias leis, portanto a si
mesmo." Todavia, esse critério formal não basta para estabelecer a verdade material, ou objetiva, do conhecimento;
aliás, a tentativa de transformar esse cânone de avaliação formal em órgão de conhecimento efetivo não passa de uso
dialético, ou seja, ilusório da razão {Crít. R. Pura, Lógica, Intr., III; Logik, Intr., VII). Esse critério foi acolhido e
acentuado pelos neokantianos, sobretudo pelos da Escola de Baden. Windelband considerava que o objeto do
conhecimento, aquele que mede e determina a V. do conhecimento, não é uma realidade externa (que como tal seria
inalcançável e incognoscível), mas a regra intrínseca do próprio conhecimento {Pràludien, 1884,4a ed., 1911,
passim). Rickert identificava o objeto do conhecimento com a norma à qual o conhecimento deve adequar-se para ser
verdadeiro {Der Gegenstad der Erkenntnis, 1892). Nesses neokantianos, a conformidade com a regra — que Kant
propusera simplesmente como critério formal de V. — torna-se a única definição de V.
4B A noção de V. como coerência aparece no movimento idealista inglês da segunda metade do séc. XIX e é
compartilhada por todos os que participaram desse movimento na Inglaterra e nos Estados Unidos. Aparece pela
primeira vez em Lógica ou morfologia do conhecimen-to(1888) de B. Bosanquet, mas sua difusão se deve à obra de
F. H. Bradley, Appearance and Reality (1893). A crítica de Bradley ao mundo da experiência humana partia do
princípio de que aquilo que é contraditório não pode ser real; isso o levava a admitir que V. ou realidade é coerência
perfeita. A coerência, porém, atribuída à realidade última, ou seja, à Consciência Infinita ou Absoluta, não é simples
ausência de contradição; é abolição de qualquer multiplicidade relativa e forma de harmonia que não se deixe
entender nos termos do pensamento humano {Appearance and Reality, 2- ed., 1902, pp. 143 ss.). Segundo Bradley,
os graus de verdade que o pensamento humano alcança podem ser julgados e classificados segundo o grau de
coerência que possuam, embora essa coerência seja sempre aproximativa e imperfeita {Lbid., p. 362). Esses conceitos aparecem em grande número de pensadores da mesma tendência (v. IDEALISMO),
sem que a noção de coerência seja por isso modificada ou esclarecida (v. COERÊNCIA). OS precedentes dessa doutrina
não estão tanto em Hegel (a quem, todavia, os idealistas ingleses se referiam com mais freqüência), mas em Spinoza.
Na realidade, não passa de transcrição daquilo que Spinoza chamava de "terceiro gênero de conhecimento" ou "amor
intelectual por Deus": conhecimento da ordem total e necessária das coisas, que Spinoza identificava com o Deus
{Et., V, 25).
5° A definição da V. como utilidade pertence a algumas formas da filosofia da ação, especialmente o pragmatismo.
Mas o primeiro a formulá-la foi Nietzsche: " Verdadeiro err^geral significa apenas_o que é apropriado à conservação
3a humanidade. O quejne jaz perecer quandojhe JÍQII fé não é verdade para mim: é uma relação arbitrária e
ilegítimajjp meu ser com as coisas externas" {Wille zurMacht, ed. Krõner, 78, 507). Foi o pragmatismo que difundiu
essa noção, defendida primeiramente por W. James. Este, porém, identificou utilidade e V. só nos limites das crenças
empiricamente não verificáveis ou não demonstráveis, tais como as morais e as religiosas {The Will to Be-lieve,
1897). A equação entre utilidade e V. foi estendida a toda a esfera do conhecimento por F. C. S. Schiller {Humanism,
1903 e textos seguintes). Desse ponto de vista, uma proposição, qualquer que seja o campo a que pertença, só é
verdadeira pela sua efetiva utilidade, ou seja, por ser útil para estender o conhecimento ou para, por meio deste,
estender o domínio do homem sobre a natureza, ou então por ser útil à solidariedade e à ordem do mundo humano.
Critério semelhante foi apresentado por H. Vaihinger em Filosofia do como se {Phi-losophie des Ais, 1911) e
divulgado por M. De Unamuno em Vida de Don Quijote y Sancho (1905) (v. PRAGMATISMO). Talvez se possa
entrever uma forma diferente dessa mesma concepção na tese de Dewey, da Insírumentalidade dos procedimentos
cognoscitivos e do conhecF mento em seu ranjunto^com vistas ao aperfei-çoamento da vida humana no mundo.
Contudo, em Dewey não se encontra a definição de V. como utilidade, mas apenas a afirmação do caráter
instrumental — portanto válido, mas não verdadeiro — das proposições {Logic, XV, trad. it, p. 382-83) (v.
VALIDADE).
VERDADE DUPLA
999
VERIFICAÇÃO
VERDADE DUPLA. V. DUPLA VERDADE.
VERDADEIRO (gr. à\r\Béç, lat. Verum, in. True, fr. Vrai; ai. Wahr, it. Vero). Os estóicos distinguiam V. de
verdade, porque o V. é um enunciado, logo é incorpóreo, enquanto a verdade, como ciência que contém todos os V., é
um modo de ser da parte hegemônica do homem, portanto corpórea. Ademais, o V. é simples, enquanto a verdade
consta de muitos V., e a verdade pertence à ciência, portanto ao sábio, enquanto o V. pode ser também do néscio
(SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 81-83; Adv. dogm., I, 38-42).
Na Escolástica o V. foi considerado um dos transcedentais (v.), isto é, dos caracteres que pertencem às coisas como
tais, independentemente dos seus gêneros, e por V. foi entendida a inteligibilidade da coisa (S. TOMÁS, S. Th., q. 16,
a. \ ad. 3e).
VERÍDICO (in. Veridical; fr. Vêridique, ai. Wahrhaftig; it. Verídico). 1. O mesmo que ve-raz ou verdadeiro (v.
VERACIDADE).
2. O que contém uma parte ou um indício de verdade. P. ex., "sonho V", "alucinação V.", etc.
VERIFICABILIDADE. V. VERIFICAÇÃO.
VERIFICAÇÃO (in. Verification-, fr. Verification; ai. Verifikation; it. Verificazioné). 1. Em geral, qualquer
procedimento que permita estabelecer a verdade ou a falsidade de um enunciado qualquer. Uma vez que os graus e os
instrumentos da V. podem ser inumeráveis, esse termo tem alcance generalíssimo e indica a aplicação de qualquer
procedimento de atestação ou prova (v.). Esse termo também pode ser usado para indicar a aferição de uma situação
qualquer com base em regras ou instrumentos idôneos; nesse sentido, fala-se em verificar as contas, os graus de um
ângulo ou a autenticidade de certos documentos, etc. Neste sentido geral, esse termo também é empregado sem
referência à experiência ou aos fatos, poden-do-se falar em V. de uma expressão matemática, de um enunciado
analítico da lógica, assim como em V. de um enunciado factual ou hipótese científica. Por outro lado, a noção de V.
às vezes é ampliada para nela incluir não só o procedimento que permite estabelecer a verdade ou a falsidade de um
enunciado, mas também o que permite estabelecer a verdade, a falsidade ou a indeterminaçâo do enunciado: isso com
referência a uma lógica de três valores, e não de dois (cf. REICHENBACH, "The Principie of Anomaly in Quantum
Mechanics", 1948,
em Reading in the Phil. of Science, 1953, pp. 519-20).
2. Em sentido restrito e específico, a V. diz respeito aos enunciados factuais e é um procedimento que recorre à
experiência ou aos fatos. Foi exatamente nesse sentido que o empb-rismo lógico (v.) entendeu a V. como critério do
significado das proposições: critério que o Círculo de Viena (v.) interpretava da forma mais rigorosa, declarando
desprovidos de sentido todos os enunciados que não se prestassem a uma absoluta verificação empírica. Esse ponto
de vista foi expresso com todo o rigor por Carnap em sua obra Der logische Aufbau der Welt (1928). A possibilidade
de uma verificação absoluta foi, porém, negada, no âmbito do próprio Círculo de Viena, por K. Popper (lo-gik der
Forschung, 1935) e depois por Lewis ("Experience and Meaning", em Philosophical Review, 1934) e por Nagel (em
Journal of Phi-losophy, 1934). Assim, o próprio Carnap modificava seu ponto de vista, e num ensaio de 1936
("Testability and Meaning", agora em Readings in the Phil. of Science, 1953, p. 47-92) falava de confirmação
(confirmation) dos enunciados, em vez de V. Sempre que a V. completa não seja possível (e quase nunca é possível
no campo da ciência), o princípio da verificabilidade expressa a exigência de uma confirmação gradualmente
crescente ilbid., p. 49). Deste ponto de vista, a aceitação ou a recusa de um enunciado factual contém sempre um
componente convencional, que consiste na decisão prática que se deve tomar para considerar o grau de confirmação
de um enunciado como suficiente para a sua aceitação. Este ponto de vista é hoje amplamente aceito.
3. No que diz respeito ao procedimento de V. factual, pouco foi dito até agora pelos filósofos. Reichenbach dividiu
esse procedimento em duas fases, que são: ls introdução de uma classe fundamental O de enunciados observa-cionais,
ou seja, de significados primitivos ou diretos que não estão sob indagação durante o curso da análise; 2Q um conjunto
de relações derivativas (ou regras de transformação) D, que permitem ligar alguns termos com as bases O. Depois de
definidas por indagação específica tanto a base O quanto as relações derivativas D, o termo "verificado" pode ser
definido como "o ser derivado da base O nos termos das relações D'. A esta descrição Reichenbach acrescenta uma
determinação importante: a condição do sig-
VEROSSÍMIL
1000
VIDA
nificado não é a atual, mas a V. possível (sem a qual os enunciados históricos, p. ex., não teriam significado);
portanto, a noção de V. pressupõe a de possibilidade, e a esse respeito Rei-chenbach distingue a possibilidade lógica,
a possibilidade física e a possibilidade técnica, distinguindo correspondentemente três espécies de significados
("Verifiability Theory of Meaning", em Proceedings of the American Academy of Arts and Sciences, 1951, pp. 46
ss.). Assim, a teoria de V. está ligada à noção da possibilidade (v.).
VEROSSÍMIL (gr. EÍKÓÇ ; lat. Verisimiles; in. Líkely, fr. Vraisemblable, ai. Wahrscheinlicb, it. Verisimile). 1. O que
é semelhante à verdade, sem ter a pretensão de ser verdadeiro (no sentido, p. ex., de representar um fato ou um
conjunto de fatos). Portanto, uma narrativa, seja um romance ou uma tragédia, pode ser V. sem ser minimamente
provável, sem que exista qualquer probabilidade de que os fatos mencionados se tenham verificado ou venham a
verificar-se. Nesse sentido, foi constante o emprego do conceito de V. na estética, a partir de Aristóteles. "Narrar
coisas efetivamente acontecidas" — dizia Aristóteles — "não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o
que poderia acontecer, as coisas possíveis segundo verossimilhança ou necessidade" (Poet., 9, 1451 a 36). Nesse
sentido, V. é o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou
as das possibilidades teóricas ou humanas. Um acontecimento humano imaginado é V. se for considerado compatível
com o comportamento comum dos homens ou encontrar explicações ou respaldo nesse comportamento.
2. O mesmo que persuasivoCy.) ou provável (v.). Popper, contudo, fez a distinção entre verossimilhança
(verisimilitudê) e probabilidade, porque, enquanto esta última representa a idéia de aproximação da certeza lógica ou
da verdade tautológica por meio da gradual diminuição do conteúdo informativo, a verossimilhança representa a idéia
da aproximação da verdade abrangente e, assim, combina verdade e conteúdo, enquanto a probabilidade combina
verdade e falta de conteúdo (Conjectures andRe-futations, 1965, p. 237).
VERUMIPSUM FACTUM. Fórmula utilizada por G. B. Viço para expressar o princípio de que o homem pode
conhecer só o que ele mesmo fez, porque o conhecimento de uma coisa é o
conhecimento da sua gênese (De antiquissima italorum sapientia, 1710, § 1). Mas esse conceito foi extraído de
Hobbes, que o expusera em De homine (1658). Hobbes reduzira o domínio do conhecimento humano, por um lado, à
matemática, cujos objetos são inteiramente produzidos pelo homem, e por outro lado à política e à ética, que também
tratam de objetos (leis, convenções, princípios) criados pelo homem (De bom., 10). Analogamente, Viço inicialmente
limitou o domínio do conhecimento humano à matemática (De antiquissima), e depois o estendeu para a história.
Scienza nuova (1725).
VETOR (in Vector, fr. Vecteur, ai. Vector, it. Vettoré). Em matemática, uma grandeza determinada em quantidade,
direção e sentido. É habitualmente representado por uma flecha. Whitehead utilizou esse termo para indicar o referirse da experiência sensível ao exterior (Process and Reality, 1929, p. 249).
VÍCIO (gr. KOCKÍOC ; lat. Vitium; in. Vice, fr. Vice, ai. Laster, it. Vizio). 1. O contrário da virtude nos vários
significados deste termo. Com referência ao conceito aristotélico-estóico de virtude como hábito racional da conduta,
o V. é um hábito (ou uma disposição) irracional. Neste caso, são V. os extremos opostos cujo meio-termo é a virtude:
p. ex., a abstinência e a intem-perança diante da moderação, a covardia e a temeridade diante da coragem, etc. Neste
sentido, a palavra V. só se aplica às virtudes éticas. Com referência às virtudes dianoéticas ou in-telectivas, V.
significa simplesmente a falta delas: falta que, segundo Aristóteles, é vergonhosa somente como participação
malograda nas coisas excelentes de que participam todos os outros, ou quase todos, ou pelo menos os que são
semelhantes a nós, ou seja, os que têm nossa idade ou que são de nossa cidade, família ou classe social (Ret., II,
6,1383b 19; 1384a 22).
2. Portanto, o sentido mais geral de V. é a falta ou deficiência de alguma característica que um objeto qualquer (no
sentido mais amplo) deveria ter segundo a regra ou a norma que lhe diga respeito. Nesse sentido geral, pode-se falar e
fala-se de V. lógico ou de V. jurídico, etc.
VIDA (gr. Çarf|, pUoç; lat. Vita-, in. Life, fr. Vie; ai. Leben; it. Vita). Característica que têm certos fenômenos de se
produzirem ou se regerem por si mesmos, ou a totalidade de tais fenômenos. Essa caracterização é aqui dada apenas
por ser aquela em torno da qual é mais amplo o açor-
VIDA
1001
VIDA
do entre filósofos e cientistas, e a título puramente descritivo, sem que o reconhecimento de uma característica
própria dos fenômenos da V. implique o reconhecimento de um princípio ou de uma causa em si desses fenômenos.
Veremos, aliás, que em certos níveis de V. a própria distinção entre o que é V. e o que não o é torna-se muito difícil
ou perde sentido. A disputa entre vitalismo e antivitalismo não concerne ao problema da caracterização da V., mas ao
da origem e do desenvolvimento da V.; quanto a esse problema, v. VITALISMO.
Desde a Antigüidade os fenômenos da V. têm sido caracterizados com base em sua capacidade de autoprodução, vale
dizer, com base na espontaneidade com que os seres vivos se movem, se nutrem, crescem, se reproduzem e morrem,
de um modo que, pelo menos aparente e relativamente, não depende das coisas externas. Platão identificava alma e V.
(Fed., 105 c), porque considerava própria da alma a capacidade de "mover-se por si" (Fed., 245 c). Aristóteles
entendia por V. "a nutrição, o crescimento e a destruição que se originam por si mesmos" (Dean., II, I, 412 a 13), e
conseqüentemente considerava que a V. é própria dos seres animais, pois estes "possuem em si mesmos uma potência
ou um princípio tal que sofrem aumento ou diminuição nas direções opostas" (Ibid., II 413 a 27). Com base no
mesmo conceito de V., Plotino afirmava que "toda V. é pensamento" e que o pensamento "vive por si mesmo" (Enn.,
III, 8, 8). S. Tomás afirmava que V. significa "a substância à qual convém por natureza mover-se ou conduzir-se
espontaneamente e de qualquer modo à ação" (S. Tb., I, q. 18, a. 2); portanto, a alma é seu princípio (Ibid., I, q. 75, a.
1).
Quando, com Descartes e Hobbes, surgiu o conceito mecanicista da V. e começou-se a comparar o homem e, em
geral, o organismo vivo a uma máquina bem montada, o conceito de V. não mudou, visto que a hipótese mecanicista
era inspirada aos filósofos exatamente pela crença de que "os autômatos podem mover-se por si" (DESCARTES, Traité
de Vhomme, p. I; HOBBES, Leviath, I, Intr.). O que se negava neste caso era a identidade entre alma e V.: assim,
considerava-se possível que a mesma matéria cor-pórea, em certas formas de organização, teria condições de moverse ou de desenvolver-se por si. A disputa entre vitalismo e mecanicismo (v. VITALISMO) versa sobre o seguinte: o
mecanicismo afirma que a V. é devida a certa organização físico-química da matéria corpórea, enquanto o vitalismo
considera que essa organização não é suficiente, e que a V. depende de um princípio de natureza espiritual, que é, p.
ex., a archeus (v.) de Helmont, a natureza plástica (v.) de Cudworth, o dominante(v.) de Reinke, a enteléquia (v.) de
Driesch, o elã vital(v.) de Bergson.
Leibniz objetava ao mecanicismo e ao vitalismo que ambos contradizem o "grande princípio da física", segundo o
qual "um corpo só se move se impelido por um corpo vizinho e em movimento"; considerava que a única teoria da V.
compatível com esse princípio é a da harmonia preestabelecida, segundo a qual a V. consiste na concordância da ação
das substâncias, preestabelecida por Deus (Sur le príncipe de vie, 1705, em Op., ed. Erdmann, pp. 429 ss.). O
conceito da V. como auto-regulação parece ser simplesmente pressuposto tanto por aquela disputa quanto pela
observação de Leibniz. E também por Kant, quando este afirma que "a V. é a capacidade de atuar segundo a
faculdade de desejar", entendendo por faculdade de desejar "a faculdade de, por meio das representações, ser causa
dos objetos dessas representações" (Crít. R. Prática, Pref, anotação; Anfangsgründe der Naturwissenschaft, III, teor.
3, anotação). O conceito de vida como auto-regulação também era pressuposto por Schel-ling, para quem a diferença
entre o orgânico e o inorgânico consiste no fato de que o orgânico tem em si sua própria organização ou sua própria
forma de V., enquanto o inorgânico é privado dela e faz parte de uma organização mais ampla, que é a V. da natureza
em seu conjunto (Werke, I, III, pp. 89 ss.). Em sentido análogo, Hegel identificava a V. com "o princípio que dá início
e movimento a si mesmo" (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 250), ou, em outros termos, com "o todo que
se desenvolve, resolve seu desenvolvimento e mantém-se simples nesse movimento" (Phãnomen. des Geistes, I, IV,
1). Por outro lado, Claude Bernard escrevia: "As máquinas vivas são criadas e construídas de tal modo que, ao se
aperfeiçoarem, vão-se tornando mais livres no ambiente cósmico geral. (...) A máquina viva mantém-se em
movimento porque o mecanismo interno do organismo repara, por meio de ações e forças sempre renascentes, as
perdas constituídas pelo exercício das funções. As máquinas cria-
VIDA
1002
VIOLÊNCIA
das pela inteligência do homem, embora infinitamente mais rudimentares, não são construídas de outra forma" (Intr.
à 1'étude de Ia medicine expérimentale, II, 1,8). Finalmente, é preciso notar que o elã vital, em que Bergson
reconheceu a fonte da V., outra coisa não é senão consciência, e consciência criadora, que extrai de si mesma tudo o
que produz. Bergson diz: "O elã de V. de que falamos consiste numa exigência de criação. Não pode criar de modo
absoluto porque encontra diante de si a matéria, ou seja, o movimento que é o inverso do seu ponto. Mas ele se
apodera dessa matéria, que é a própria necessidade e tende a nela introduzir a maior soma possível de ^determinação
e liberdade" (Évol. créatr., 8a ed., 1911, p. 273). Parece ter o mesmo significado a expressão de Whitehead, de que a
vida é "autofruição individual e absoluta" (Nature and Life, 1934, II).
Por outro lado, parece que a própria ciência recorre a uma caracterização nâd muito diferente dos fenômenos vitais,
embora, como é óbvio, evite hipostasiar em entidades ou princípios essa caracterização. Os fenômenos que a ciência
considera próprios da V. (metabolismo, plasticidade, reatividade, reprodução) são justamente aqueles em que é
evidente o caráter de uma auto-regulação. Quando J. B. S. Haldane afirma que se pode considerar vivo "qualquer
modelo de reação química capaz de autoperpetuar-se" ("The origin of Life", em Rationalist Annual, 1928, pp. 14853), está apenas expressando, com outras palavras, o velho conceito da auto-regulação, ao qual recorrem também,
embora de modo indireto ou com expressões ambíguas ou disfarçadas (como "totalidade", "ciclicidade", "autonomia",
"seletividade", etc), inclusive os cientistas de nítida inspiração materialista.
Mas, apesar de serem quase unânimes as opiniões em torno do conceito de auto-regulação, este dificilmente poderia
ser considerado uma caracterização suficiente dos fenômenos vitais em todos casos. Por um lado, realmente, em
certos extremos da escala biológica (p. ex., para os vírus), não é possível afirmar que se trate de corpos vivos ou não.
Em vista disso, já houve quem considerasse sem sentido o uso da palavra V. para referir-se aos sistemas situados na
zona limítrofe, entre a V. e a matéria inorgânica (N. W. PIRIE, The Meaninglessness ofthe Terms "Life"and "Living",
emj. NEEDHAM e D. R. GREEN, Perspectives in Biochemistry, 1937, pp. 21 ss.).
Por outro lado, a teleonomia (v.), atribuída aos organismos vivos e interpretada como atividade orientada, coerente e
construitiva, não impede que a biologia moderna (baseada sobretudo na genética e na bioquímica) considere os seres
vivos como máquinas químicas, dotadas de unidade funcional e capaz de autoconstruir-se. Essas máquinas exigem a
intervenção de um sistema cibernético que governe e controle a atividade química nos pontos estratégicos. Embora
hoje estejamos distantes do dia em que a estrutura dos sistemas que constituem os organismos superiores será
totalmente esclarecida, a tendência da ciência moderna nas pesquisas biológicas continua sendo marcada pela
cibernética e pela bioquímica (cf., p. ex., MONOD, Lehasard et Ia necessite, 1970, cap. II).
VIDA, FILOSOFIAS DA (in. Philosophies of life, fr. Philosohies de Ia vie, ai. Lebensphiloso-phien; it. Filosofe
delia vita). Com esta expressão, utilizada especialmente na Alemanha, são denominadas as filosofias que têm em
comum a característica de considerar a filosofia como V., mais que reflexão sobre a vida. Trata-se de uma expressão
polêmica que permite aproximar filosofias diferentes como as de Nietzsche, Dilthey, Simmel, Spengler, James,
Bergson e outros; foi empregada com fins polêmicos no título de um livro de Rickert (Die Philosophie des Lebens,
1920).
VIDA, TERCEIRA (fr. Troisième vie). Foi esse o nome que Maine de Biran deu à vida religiosa ou mística do
homem, que se distingue da vida simplesmente humana por ser a libertação dos afetos e das paixões, e da vida
animal, que se caracteriza pelas sensações e pelos instintos (Nouveaux essais d'anthropolo-gie, 1823-24, em (Euvres,
ed. Naville, III, p. 519). A terceira V. é a mesma que no Evangelho de João se chama de "V. segundo o espírito".
VINGANÇA. V. TALIÃO.
VIOLÊNCIA (gr. píct; lat. Violentia; in. Vio-lence, fr. Violence, ai. Gewaltsamkeit; it. Violen-zd). 1. Ação contrária
à ordem ou à disposição da natureza. Nesse sentido, Aristóteles distin-guia o movimento segundo a natureza e o
movimento por V.-. o primeiro leva os elementos ao seu lugar natural; o segundo afasta-os (De caei, I, 8, 276, a 22)
(v. FÍSICA).
2. Ação contrária à ordem moral, jurídica ou política. Nesse sentido, fala-se em "cometer" ou "sofrer V.". Algumas
vezes esse tipo de V. foi exaltado por motivos políticos. Assim, Sorel fez
VIRTUAL
1003
VIRTUDE
a distinção entre a V. que se destina a criar uma sociedade nova e a força, que é própria da sociedade e do
estado burguês. "O socialismo deve à V. os altos valores morais com que oferece salvação ao mundo
moderno" (Réflexions surla violence, 1966, trad. it., p. 133).
VIRTUAL (in. Virtual; fr. Virtuel; ai. Virtuell; it. Virtualè). O mesmo que potencial (v.).
VIRTUDE (gr. àpevf]; lat. Virtus; in. Virtue, fr. Vertu-, ai. Tugend; it. Virtü). Este termo designa uma
capacidade qualquer ou excelência, seja qual for a coisa ou o ser a que pertença. Seus significados
específicos podem ser reduzidos a três: ls capacidade ou potência em geral; 2a capacidade ou potência do
homem; 3S capacidade ou potência moral do homem.
ls No primeiro sentido, que é o da definição geral, a V. indica uma capacidade ou potência qualquer, como
p. ex. de uma planta, de um animal ou de uma pedra. Maquiavel fala da "V." da arte da guerra {Opríncipe,
14), e Berkeley fala das "V. da água de alcatrão" (Subtítulo de Siris, 1744).
2a No segundo sentido, a V. é uma capacidade ou potência própria do homem. Assim, p. ex., chama-se de
virtuoso/virtuose quem possui uma habilidade qualquer, como p. ex., para cantar, tocar um instrumento
ou usar a gazua. Nietzsche quis retomar esse sentido de V..- "Reconheço a V. no seguinte: 1Q ela não se
impõe; 2a ela não supõe a V. em todo lugar, mas precisamente uma outra coisa; 3 S ela não sofre pela
ausência da V., mas considera essa ausência como uma relação de distância graças à qual há algo de
venerável na V.; 4a ela não faz propaganda; 5a não permite que ninguém se erija em juiz, porque é sempre
uma V. por si mesma; 6a ela faz exatamente tudo o que é proibido (a V., como a entendo, é verdadeiro
vetitum em toda a legislação do rebanho); 7a ela é V. no sentido renascentista, V. livre de moralidade"
{Wille zurMacht, ed. 1901, § 431).
3o No terceiro sentido, o termo designa uma capacidade do homem no domínio moral. Deve tratar-se de
uma capacidade uniforme ou continuativa, como já declarava Hegel (Fil. do dir., § 150, anexo), porque
um ato moral não constitui virtude. Essa condição, porém, nem sempre é respeitada, e Locke, p. ex., fala
de V. e de vício no sentido de atos morais isolados (.Ensaio, II, 28, 11). As definições de V. nesse sentido
estão compreendidas nas seguintes rubricas: a) capacidade de realizar uma tarefa
ou uma função; b) hábito ou disposição racional; c) capacidade de cálculo utilitário; d) sentimento ou
tendência espontânea; e) esforço. d) A V. como capacidade de realizar uma tarefa determinada é conceito
platônico. Assim como os órgãos (p. ex., a função dos olhos é ver, e a possibilidade de ver é a V. dos
olhos), a alma tem suas próprias funções, e sua capacidade de cumpri-las é a V. da alma (Rep., I, 353).
Por isso, segundo Platão, a diversidade das V. é determinada pela diversidade das funções que devem ser
cumpridas pela alma ou pelo homem no Estado. As quatro V. fundamentais ou cardeais (v.) são
determinadas pelas funções fundamentais da alma e da comunidade.
b) A concepção da V. como hábito (v.) ou disposição racional constante encontra-se em Aristóteles e nos
estóicos, sendo a mais difundida na ética clássica. Segundo Aristóteles, a V. é o hábito que torna o
homem bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa (Et. nic, II, 6, 1106 a 22); é um hábito racional (Ibid.,
II, 2,1103 b 32) e, como todos os hábitos, uniforme ou constante. Os estóicos, por sua vez, definiam a V.
como "uma disposição da alma coerente e concorde, que torna dignos de louvor aqueles em quem se
encontra e é louvável por si mesma, independentemente de sua utilidade" (CÍCERO, Tusc, IV, 15, 34;
STOBEO, Ecl, II, 7, 60). Essas definições foram repetidas inúmeras vezes na filosofia antiga e medieval e
também no pensamento moderno. Encontram-se, p. ex., em Abelardo (Theol. christ., II), Alberto Magno
(5. Th., II, q. 102, a. 3), S. Tomás (S. Th., II, I, q. 55), Leibniz (que faz a distinção entre V. como hábitos,
e as ações correspondentes, Nouv. ess., II, 28, 7) e Wolff (Phil. practica, I, § 321).
c) O terceiro conceito considera a V. como capacidade de cálculo utilitário. Foi Epicuro o primeiro a
expor essa noção, considerando como V. suprema (da qual todas as outras derivam) a sabedoria, que é
capaz de julgar dos prazeres que devem ser escolhidos e dos prazeres de que é preciso fugir, e destrói as
opiniões causadoras das perturbações da alma (DIÓG. L., X, 132). No Renascimento esse conceito foi
defendido por Telésio, para quem a V. era a faculdade de estabelecer a medida certa das paixões e das
ações, para que delas não proviessem prejuízo ao homem (De rer. nat. IX, 5). Mais tarde, concepção
análoga foi defendida por Hu-me (Ink. Cone. Morais, I) e, em geral, pelo uti-litarismo inglês, em especial
por Bentham, que
VIRTUDE
1004
VISÃO
definia a V. como "disposição para produzir felicidade" (Deontology, X). Apesar de ser peculiar ao empirismo, esse
conceito de V. foi compartilhado por Spinoza: "Para nós, agir absolutamente segundo a V., nada mais é que agir,
viver e conservar o próprio ser (três coisas que significam o mesmo) segundo a orientação da razão sobre o
fundamento da busca do útil" (Et., IV, 24).
d) O conceito de V. como sentimento ou disposição, vale dizer, como espontaneidade, encontra-se nos analistas
ingleses do séc. XVIII, a começar por Shaftesbury: "Numa criatura sensível, que não é feito por meio de uma afeição
não produz nem bem nem mal em sua natureza, pois essa criatura só pode ser chamada de bondosa quando o bem ou
o mal do sistema com o qual ela está em relação for objeto imediato de alguma emoção ou afeição que a mova"
(Characteristics ofMen, Treatise IV, livro I, part. 2, seç. I). Com base nisto, Hutchinson postulou um sentido moral
como fundamento da V. (System of Moral Sentiments, 1754, III, I) e Adam Smith definiu esse sentido moral como
simpatia (Theory ofMoral Sentiments, 1759, III, 1). Mas foi principalmente o Iluminismo francês que divulgou esse
conceito: Rousseau falava da piedade como "V. natural", que é "uma disposição conveniente a seres tão débeis e
sujeitos a tantos males quanto os homens", que antecede a reflexão (De 1'inégalité parmi les hommes, I); no mesmo
sentido, Voltaire considerava que V. outra coisa não é senão "fazer o bem ao próximo" (Dictionnairephilosophique,
art. Vertu). A ética do positivismo ateve-se a essa concepção, considerando a V. como manifestação do instinto
altruísta (COMTE, Catéchisme positiviste, p. 48; SPENCER, Data ofEthics, § 46). Na filosofia contemporânea, pode-se
distinguir concepção análoga na chamada "moral aberta" de Bergson, que é a manifestação do elã vital (Deux
soucers, 1932, cap. I).
é) Finalmente, a concepção de V. como esforço foi enunciada por Rousseau e adotada por Kant. Rousseau dizia:
"Não existe felicidade sem coragem, nem V. sem luta: a palavra V. deriva da palavra força; a força é a base de toda
virtude. A V. pertence apenas aos seres de natureza débil, mas de vontade forte: exatamente por isso homenageamos
o homem justo; também por isso, mesmo atribuindo bondade a Deus, não dizemos que Ele é virtuoso, porque suas
boas obras são por ele cumpridas
sem esforço algum" (Émile, V.). Nesse espírito, Kant definiu a V. como "intenção moral em luta", que não teria
sentido caso o homem tivesse acesso à santidade, ou seja, à coincidência perfeita da vontade como lei (Crít. R.
Prática, I, livro I, cap. III). Assim como Cícero (v. CORAGEM) e Rousseau, ele uniu estreitamente a noção de V. com
a de coragem: "A qualidade especial e o propósito elevado com que se resiste a um adversário forte mas injusto
chama-se coragem (fortitudo); quando se trata do adversário encontrado pela intenção em nós mesmos, chama-se V.
(virtus, fortitudo moralis). Portanto, a parte da doutrina geral dos deveres que submete a liberdade interna (e não a
externa) a leis é uma doutrina da V." (Met. der Sitten, II, Intr., I). Em polêmica com Kant, Schiller procurou integrar
a doutrina Kantiana na concepção de V. como espontaneidade ou sentimento, dizendo: "Não tenho bom conceito do
homem que pode confiar tão pouco na voz do instinto que precise silenciá-lo o tempo todo diante da lei moral;
respeito e estimo mais aquele que se entrega ao instinto com certa segurança, sem o risco de ser por ele desencaminhado" (Über Anmut und Würde, 1793, em Werke, ed. Karpeles, XI, p. 202). O conceito de alma bela (v.) nascia
exatamente dessa noção da V. como espontaneidade, à qual Kant respondia que, se "o temperamento da V. for
corajoso e portanto alegre", a V., entre os seus outros benefícios, também pode ser acompanhada pela graça
(Religion, I, Observ., nota).
Já Hegel observava que no seu tempo não se falava mais tanto de V. (Fil. do dir., § 150, Zusatz), pois "falar de V.
confina facilmente com declamação vazia, pois assim se fala apenas de algo abstrato e indeterminado"; e que o
discurso sobre a V. destina-se ao indivíduo enquanto arbítrio subjetivo (Ibid., § 150). A observação de Hegel também
se aplica aos nossos tempos, em que a discussão do problema moral deixou de ter forma de discurso sobre a V., para
assumir a forma de discurso sobre valores e normas, de um lado, e sobre atitudes e modos de vida de outro (v.
ÉTICA).
VIRTUDES CARDEAIS, DIANOÉTICAS, ÉTICAS, TEOLOGAIS. V. CARDEAIS, VIRTUDES;
DlANOÉTICO; ÉTICAS, VIRTUDES; TEOLOGAIS, VIRTUDES.
VISÃO (in. Vision; fr. vision; ai. Anschauung, Trãumerei; it. Visioné). 1. No sentido propriamente filosófico, o
mesmo que intuição (v.).
2. O sentido da vista.
VISIONÁRIO
1005
VTTALISMO
3. Alucinações, sonhos, imagens de fantasmas ou de espíritos desencarnados, consideradas reais.
VISIONÁRIO (in. Visionary, fr. Visionnaire, ai. Geisterseher, it. Visionário). Quem tem visões no terceiro sentido
do termo. Este é o sentido da palavra do título da obra de Kant, Sonhos de um visionário esclarecidos por sonhos da
metafísica (1766), em que ele fazia uma analogia entre "os sonhadores da sensação", que são os que acreditam ver
espíritos desencarnados, e os "sonhadores da razão", ou metafísicos, que também vivem num mundo de sonhos ou de
visões particulares.
VITALIDADE (in. Vtíality, fr. Vitalité, ai. Vita-litã; it. Vitalita). No sentido corrente do termo, potência ou plenitude
de vida. Esse termo começou a ser usado quando Nietzsche evidenciou e exaltou os "valores vitais", opondo-os aos
valores renunciatórios da moral tradicional (v. TRANSMUTAÇÃO).
VITALISMO (in. Vítalism- fr. Vitalisme, ai. Vitalismus, it. Vitalismó). Termo oitocentista para indicar qualquer
doutrina que considere os fenômenos vitais como irredutíveis aos fenômenos físico-químicos. Essa irredutibilidade
pode significar várias coisas, pois vários são os problemas cujas soluções dividem os partidários e os adversários do
V. ls Em primeiro lugar, significa que os fenômenos vitais não podem ser inteiramente explicados com causas
mecânicas. 2S Em segundo lugar, significa que um organismo vivo nunca poderá ser produzido artificialmente pelo
homem num laboratório de bioquímica. 3S Em terceiro lugar, significa que a vida sobre a terra, ou, em geral, no
universo, não teve origem natural ou histórica decorrente da organização e do desenvolvimento da substância do
universo, mas é fruto de um plano providencial ou de uma criação divina. l s Segundo o primeiro ponto de vista,
podem ser chamados de vitalistas todos os conceitos clássicos que, identificando a vida com a alma, excluem-na de
qualquer influência das forças materiais. Em sentido mais preciso, V. é a doutrina defendida por filósofos e cientistas
entre meados do séc. XVIII e meados do séc. XIX, segundo a qual o fundamento dos fenômenos vitais é uma força
vital que não depende de mecanismos físico-químicos. É característica do V. declarar inútil a investigação científica
dos fenômenos vitais, portanto ela nunca conseguirá apreender a força que constitui a
essência da vida. O V. nesta forma foi invalidado pelas descobertas da bioquímica, que, a partir de 1828 (data em que
foi efetuada a fabricação sintética da uréia), demonstrou a possibilidade de produzir substâncias orgânicas em
laboratório. O neovitalismo, levando em conta essa possibilidade, reconhece a utilidade da investigação físicoquímica dos fenômenos vitais, mas continua admitindo a irredutibilidade desses fenômenos às forças físico-químicas,
afirmando que eles são dirigidos por um elemento específico que recebe vários nomes {dominante [v.] em Reinke,
enteléquia [v.] em Driesch, elã vital [v.] em Bergson.
A dificuldade principal desse aspecto do V. é a inoportunidade de admitir uma causa desconhecida e inacessível,
pouco mais que um nome e, além disso» capaz de tornar insignificante ou descabida a observação científica dos
fenômenos vitais. Uma causa assim, exatamente por fugir à observação, nada explica ao pretender tudo explicar; é um
asilo da ignorância ou da razão indolente.
2° Quase todas as formas de V. contemporâneo compartilham, além da tese da irredutibilidade no sentido acima, a
profecia de que é impossível a ciência produzir vida em laboratório. Obviamente, essa profecia está além de tudo o
que a ciência pode afirmar legitimamente. É fato que a investigação bioquímica até hoje não conseguiu produzir
sínteses orgânicas que tenham características evidentes de matéria viva, mas que ela não possa chegar a isso não é
fato, e sim uma asserção que só pode estar apoiada num conceito ultracientífico ou metafísico da vida. Desse ponto
de vista, o interesse da ciência é um materialismo metodológico que admite: Ia que os fenômenos vitais tem
características próprias, diferentes das características do fenômenos físico-químicos, mas não tão diferentes que criem
um abismo entre ambas as ordens de fenômenos e impossibilitem qualquer passagem de um para outro; 2S que se
pode e deve levar adiante a análise científica dos fenômenos vitais, como a única capaz de explicar os fenômenos.
Esse é o ponto de vista de um grupo numeroso de biólogos contemporâneos (cf. a respeito G. G. SIMPSON, TheMeaning ofEvolution, cap. X).
3a Quanto ao problema da origem da vida na Terra ou, em geral, no universo a antiga crença na geração espontânea
admitia como fato normal, não miraculoso, que a vida se ori-
VITORIOSO, ARGUMENTO
1006
VOCAÇÃO
gina da matéria inorgânica. Essa crença já refutada pelas experiências de Francesco Redi (1668) e de Lazzaro
Spallanzani (1765), foi definitivamente alijada da ciência por Pasteur (1862). Por outro lado, a hipótese da
panspermia (v.), que admite a migração de sementes vitais no universo, ao mesmo tempo que não constitui uma
resposta ao problema da origem da vida, parece ser contraditada pelas condições supostamente existentes nos espaços
interestelares, sobretudo pela ação bactericida dos raios ultravioleta.
Nessa situação, só existem duas soluções alternativas. Pela primeira, a vida é obra direta ou indireta de Deus, de tal
forma que sua origem nada tem de natural, mas é fruto de uma criação que ocorreu em dado ponto da história
cósmica ou ocorre incessaate e continuamente. Esta última é a versão aceita por Bergson iÉvo-lution créatrice, 1907)
e retomada por Teilhard de Chardin (Lephénomèríe humain, 1955).
A segunda alternativa admite a possibilidade de que a vida na Terra tenha uma origem natural ou histórica que se deu
a partir de determinada fase da organização da matéria inorgânica. Essa possibilidade pode ser exemplificada com
boas razões científicas; isso foi feito, p. ex., por A. I. Oparin (L'origine delia vita sula terra, trad. it., 1956). Os
últimos avanços da biologia devidos à genética (v.) e à bioquímica, dão destaque a essa possibilidade, que no entanto
só se realizaria se a ciência conseguisse reproduzir vida em laboratório e, assim, determinar as condições que
possibilitam efetivamente o seu desenvolvimento a partir da matéria inorgânica. Mas está claro que, se isso
acontecesse, toda a discussão da origem da vida perderia sentido, pois estaria determinada inclusive a data provável
de sua origem em relação a história da Terra.
VITORIOSO, ARGUMENTO (gr. ó Kupi eúrav Xóyoç). Argumento famoso, com o qual Diodoro Cronos, um dos
seguidores da escola socrática de Mégara (séc. IV-V a.C), mostrava a identidade entre o possível e o necessário. Esse
argumento era assim formulado: "Do que é possível não pode seguir-se algo impossível. Ora, é impossível que aquilo
que passou seja diferente do que foi. Mas se, num momento anterior, tivesse sido possível algo diferente do que foi,
do possível teria surgido o impossível: logo, o que é diferente do que foi não era possível em nenhum momento. Por
conseguinte, é impossível que possa acontecer algo que não aconteça realmente" (EPICTETO, Diss., II, 19, I; v. CÍCERO, De fato, 6 ss.).
Limitando a possibilidade ao que realmente aconteceu, Diodoro afirmava a necessidade de tudo o que acontece, ou
seja, é impossível que o que acontece possa acontecer de modo diferente de como acontece (v. NECESSÁRIO;
POSSÍVEL). Na filosofia contemporânea, esse argumento é adotado por N. Hartmann, com explícita referência a
Diodoro Cronos (Mòglicbkeit und Wirklichkeit, 1938, pp. 186 ss.).
VTVACIDADE (in. Vivacity). Característica fundamental que estabelece a distinção entre impressões e idéias,
segundo Hume: impressões e idéias assemelham-se, mas as primeiras têm mais "força e V.", e assim inclinam à
crença (Treatise, I, I, 1; I, III, 7).
VIVÊNCIA (ai. Erlebnis). Experiência viva ou vivida, a V. designa toda atitude ou expressão da consciência.
Dilthey utilizou bastante essa noção assumindo-a como instrumento fundamental da compreensão histórica e, em
geral, da compreensão inter-humana. Caracterizou-a do seguinte modo: "A V. é, antes de mais nada, a unidade
estrutural entre formas de atitude e conteúdos. Minha atitude de observação, juntamente com sua relação com o
objeto, é uma V., assim como meu sentimento de alguma coisa ou meu querer alguma coisa. A V. é sempre
consciente de si mesma" (Grundlegung der Geisteswissenschaften, II, 1, 2). Do mesmo modo, Husserl considerou a
V. como um fato de consciência, logo, como um entre os demais conteúdos do cogito. "Consideramos as V. de
consciência em toda a plenitude concreta com que se apresentam em sua conexão concreta — o fluxo da consciência
— e na qual se unificam graças à sua própria existência. Portanto, é evidente que toda V. do fluxo que o olhar
reflexivo consegue apreender tem uma essência própria, a ser captada intuitivamente, em conteúdo que pode ser
considerado em sua característica intrínseca" ildeen, 1, § 34). Carnap falou de V. elementares (Elementarerlebnisseri)
como elementos originários de que se vale a construção lógica do mundo, juntamente com as relações (Der logische
Aufbau der Welt, 1928, § 65).
VOCAÇÃO (gr. KÀf|cn.ç; lat. Vocatio, in. Vo-cation; fr. Vocation; ai. Beruf; it. Vocazioné). Na origem, um dos
conceitos fundamentais do cristianismo paulino: "Quem for chamado numa
VOLUNTÁRIO
1007
VONTADS
V., nela permaneça" (Adcor, I, VII, 20). A V. é hoje um conceito pedagógico e significa propensão para qualquer
ocupação, profissão ou atividade. É diferente da aptidão, por ser a atração que o indivíduo sente por determinada
forma de atividade, para a qual pode ser ou não apto. A aptidão pode ser controlada objetivamente; a V. é subjetiva.
Uma V. pode portanto ser também um beco sem saída (blind-alley vocatiorí).
VOLUNTÁRIO (in. Voluntary, fr. Volontaire, ai. Freiwillig; it. Volontarió). 1. Que pertence à vontade ou diz
respeito à vontade.
2. O mesmo que livre (v. LIBERDADE).
VOLUNTARISMOCin. Voluntarism, fr. Volon-tarisme, ai. Voluntarismus, it. Volontarismô). Este termo, usado pela
primeira vez por Tõnnies em 1883 e divulgado por Wundt (v. EUCKEN, Geistige Strõmungen der Gegenwart, p. 33),
foi empregado para indicar duas tendências doutrinais diferentes: Ia a que afirma o primado da vontade sobre o
intelecto; 2a a que vê na vontade à substância do mundo.
Ia A primeira tendência é a gnosiológica e ética. Esse tempo foi aplicado para caracterizar algumas correntes da
filosofia medieval. Henrique de Gand (morto em 1293) afirmou a superioridade da vontade sobre o intelecto porque o
hábito, a atividade e o objeto da vontade são superiores aos do intelecto. De fato, o hábito da vontade é o amor; o do
intelecto é a sabedoria; o amor é superior à sabedoria. A atividade do querer identifica-se com o objeto dele, que é o
fim, enquanto a atividade do intelecto é sempre distinta e separada do seu objeto. Finalmente o objeto do querer é o
bem, que é o fim absoluto, enquanto o objeto do intelecto é o verdadeiro, que é um dos bens, portanto subordinado ao
fim último (Quodi, I, q. 14). Duns Scot afirmou o primado da vontade, mas com outro fundamento: não é a bondade
do objeto que causa necessariamente o assenti-mento da vontade, mas é a vontade que escolhe livremente o bem e
livremente luta pelo bem maior (Op. Ox., I, d. I, q. 4, n. 16). A esta doutrina está ligada outra, segundo a qual o bem e
mal consistem no mandamento divino. "Deus não pode querer algo que não seja justo porque a vontade de Deus é a
primeira regra" (Ibid, IV, d. 46, q. I, n. 6). No último período da Escolástica o V. ocorre numa ou noutra dessas
formas.
Análogo a essas concepções medievais é o V. psicológico, encontrado em Tõnnies (Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887, pp. 99 ss.) e principalmente nas obras de Wundt, que divulgou conceito e termo. Nesse
sentido, V. não significa reduzir todos os processos psíquicos a V., mas explicar esses processos segundo o modelo
apresentado pelos processos da vonta^ de (WUNDT, Grundzüge der physiologischen Psychologie, 1902, 5a ed., pp.17
ss.). Esse V. foi defendido na França por Fouillée (Psychologie des Idées-forces, 1893) e adotado por numerosos
psicólogos nas primeiras décadas do séc. XX. 2â O V. metafísico foi iniciado por Scnopen-hauer, para quem a
vontade é substância ou número do mundo, enquanto o mundo natural é manifestação ou revelação da vontade. Como
aparência ou fenômeno, o mundo é representação; como substância ou número, é vontade. A vontade é a essência do
corpo humano, no qual é conhecida diretamente e está em si mesma, e essência de qualquer outro corpo,
identificando-se com qualquer força do mundo (Die Welt, I, § 19). Como tal, a vontade determina o mundo da
representação, definido por Schopen-hauer como "objetividade da vontade", e sub-julga esse mundo, mostrando-o nas
formas de espaço, tempo e causalidade, que são as formas do fenômeno (Ibid., § 23). Essas idéias muitas vezes foram
parcialmente acolhidas pelos filósofos do fim do século passado: basta aqui lembrar Novos ensaios de antropologia
(1813-24), de Maine de Biran, e Filosofia do inconsciente, de Eduard von Hartmann (1869). VOLUPTUOSIDADE.
V PRAZER VONTADE (gr. (3oúA.riOT.ç; lat. Voluntas; in. Will; fr. Volunté, ai. Wille, it. Volonta). Esse termo foi
usado com dois significados fundamentais: 1Q como princípio racional da ação; 2a como princípio da ação em geral.
Ambos os significados, porém, pertencem à filosofia tradicional e à psicologia oitocentista, porque ligados à noção de
faculdade, ou poderes originários da alma que se combinaram para produzir as manifestações do homem (v.
FACULDADE). Mas hoje nem a filosofia nem a psicologia interpretam desse modo a conduta do homem. As noções de
comportamento (v.) e de forma (v.), bem como a tendência funcionalista da psicologia (v.), não permitem falar de
"princípios" da atividade humana e, portanto, a classificação intelecto-V. ou intelecto-sentimento-V. perderam o
significado literal. Às vezes, o termo V. é conservado, mas unicamente para indicar determinados tipos de conduta ou
certos aspectos da
VONTADE
1008
VONTADE
conduta. É nesse sentido que devem ser entendidas as referenciais à psicologia contemporânea contidas neste verbete.
Ia O primeiro significado é o da filosofia clássica: para ela, a V. é apetite racional ou compatível com a razão, distinto
do apetite sensível, que é o desejo (v.). A distinção entre estas duas coisas está em Platão, para quem retores e tiranos
não fazem o que querem, embora façam o que lhes agrada ou parece, visto que fazer o que se quer significa fazer o
que se mostra bom ou útil. e isso é agir racionalmente {Górg., 466 ss.). Aristóteles definiu a V. como "apetição que se
move de acordo com o que é racional" {Dean., III, 10, 433 a 23); o termo voluntário é usado por Aristóteles para
definir a escolha (v.), que seria "a apetição voluntária das coisas que dependem de nós" {Et. nic, III, 3, 1113 a 10). Os
estóicos concordaram com esse conceito de V., por eles definida como "apetição racional" (DiÓG. L., VII, 116).
Cícero referia-se a essas doutrinas afirmando que "a V. é um desejo compatível com a razão, enquanto o desejo
oposto à razão, ou demasiado violento para ela, é a libidinagem ou a cupidez desenfreada que se encontra em todos os
insensatos" {Tusc, IV, 6, 12).
Esta concepção prevalece durante toda a Idade Média e é repetida por Alberto Magno (5. Th., I, q. 7, a. 2), S. Tomás
{S. Th., I, q. 80, a. 2), Duns Scot {Rep. Par., III, d. 17, q. 2, n. 3; Op. Ox., III, d. 33, q. 1, n. 9) e Ockham {In Sent., IV,
9, 14 G).
Todas são repetições liberais do conceito tradicional de V. como apetite racional. Menos liberal é a repetição desse
conceito em Spinoza, que entende por V. "a faculdade de afirmar ou de negar, e não o desejo.- faculdade graças à
qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro ou o que é falso, e não desejo com que a mente deseja ou repele as
coisas" {Et., II, 48, scol.). Entretanto, ainda literal é a repetição desse conceito por Wolff (chama-se "V. o apetite
racional que nasce da representação distinta do bem", Psicol. empírica, § 880) e pelo próprio Kant, que entende por
V. a razão prática, isto é, a "faculdade de agir segundo a representação de regras" {Grundlegung der Metaphysik der
Sitten, II). Fichte não pensava em nada muito diferente ao afirmar que a V. é a faculdade "de efetuar com consciência
a passagem da indeterminação para a determinação": faculdade que a razão teórica obriga a pensar que existe
{Sittenlehre, § 14). Em sentido análogo,
Hegel afirma que a V. é universal, "no sentido de universal como 'racionalidade'" {Fil. do dir., § 24). A distinção de
Croce entre a forma econômica, utilitária, e a forma ética ou moral da atividade prática corresponde à distinção
tradicional entre desejo e vontade. Segundo Croce, a forma econômica seria voliçâo do particular, ou seja, do útil; a
forma moral seria voliçâo do universal, ou seja, apetição racional {Filosofia delia pratica, 1909, pp. 217 ss.).
Na noção de V. como apetite racional também pode ser integrada a tendência da psicologia moderna a fazer distinção
entre V. e impulso e a considerar a V. condicionada por uma manipulação de símbolos. G. Murphy, p. ex., diz: "V. é
o nome com o qual se designa um complexo processo interior que influencia nosso comportamento de tal modo que
nos toma presa menos fácil da pura força bruta dos impulsos. Falamos com nós mesmos, introduzimos modos
diferentes de expressar nossa situação, imaginamos as conseqüências dos vários tipos de resposta e procuramos
avaliar quanto cada um deles nos agradará" Untroduction to Psychology, 1950, cap. IX, trad. it., p. 163). O que a
psicologia moderna chama de "elaboração de símbolos" é o mesmo que na terminologia tradicional se chamava
"processo racional". Finalmente, a mesma noção de V. está implícita nas expressões V.pura, boa V., V. geral, V. de
crer.
Segundo Kant, V. pura é a V. determinada apenas por princípios a priori, por leis racionais, e não por motivos
empíricos particulares {Grundlegung der Met, der Sitten, pref.).
Boa V., também segundo Kant, é a V. de comportar-se exclusivamente de acordo com o dever; desse modo, é
exaltada por Kant como o que existe de melhor no mundo ou também fora do mundo {Ibid., I).
V. geral é concebida pelos iluministas como a própria razão. Diderot diz: "A V. geral é em cada indivíduo um ato
puro do intelecto que raciocina no silêncio das paixões sobre o que o homem pode exigir de seu semelhante e sobre o
que o seu semelhante tem direito de exigir dele" {Ari droit naturel, na Encyclopé-die, V, p. 116). Rousseau fazia a
distinção entre "V. de todos", que pode errar, e V. geral, que nunca erra porque só tem em mira o interesse comum
{Contraí social, II, 3).
Finalmente, a V. de crer, de que fala James, nada mais é que a racionalidade da fé, o direito de crer no que não é
absurdo, no que torna a
VONTADE
1009
VONTADE
vida mais aceitável e, às vezes, é posto em ser pela própria fé {The Will to Believe, 1897).
2Q Por outro lado, a V. às vezes foi identificada com o princípio da ação em geral, ou seja, com a apetição. O
primeiro a expor esse conceito generalizado da V. foi S. Agostinho, segundo quem "a vontade está em todos os atos
dos homens; aliás, todos os atos nada mais são que vontade" {De civ. Dei, XIV, 6). S. Anselmo repetia essa noção
{Libero arbítrio, 14, 19), que na idade moderna foi aceita por Descartes. Este, assim como S. Agostinho, chamou de
V. todas as ações da alma, em oposição às paixões: "O que chamo de ações são todas as nossas V., porque sentimos
que elas vêm diretamente do nosso espírito, e parece que dependem só dele, enquanto as afeições são todas as
percepções ou conhecimentos que se encontram em nós mas não foram produzidos por nossa alma, que, portanto, os
recebeu das coisas representadas" {Pass. de Vâme, I, 17). Hobbes faz uma crítica explícita à noção tradicional: "Não é
boa a definição de V. como apetite racional, comumente proferida pelas escolas. Pois se fosse, não poderiam existir
atos voluntários contrários à razão. (...) Mas se, em lugar de apetite racional, dissermos apetite resultante de
deliberação anterior, então a V. será o último apetite a deliberar" {Leviath., I, 6). O último apetite é o mais próximo
da ação, ao qual a ação se segue. Desse ponto de vista, a V. humana não é diferente da apetição animal {De corp., 25,
§ 13). De modo análogo, Locke definia a V. como "o poder de começar ou não começar, continuar ou interromper
certas ações do nosso espírito, ou certos movimentos do nosso corpo, simplesmente com um pensamento ou com a
preferência do próprio espírito" {Ensaio, II, 21, 5). E Hume declarava: "Por V.mão entendo outra coisa senão a
impressão interior que sentimos ou de que somos côns-cios, quando conscientemente damos origem a um novo
movimento do nosso corpo ou a uma nova percepção do nosso espírito" {Treatise, II, III, I). Hume negava também
qualquer influência da razão sobre a V. assim entendida, reduzindo as chamadas volições racionais às emoções
tranqüilas, ligadas a instintos originários da natureza humana (como benevolência e ressentimento, amor pela vida,
gentileza para a criança) ou ao apetite geral pelo bem e a aversão ao mal {Ibici., II, III, 3). Muito semelhante a esta é a
definição de Condillac: "Por V. se
entende um desejo absoluto, em virtude do qual pensamos que a coisa desejada está em nosso poder" {Traité des
sensations, I, 3, 9). Concepções muito semelhantes encontram-se freqüentemente nos iluministas e nos ideólogos do
séc. XVIII e do início do séc. XIX. Mach retomava essa concepção {Populãrwissenschaftlische Vorlesungen, 1896, p.
72), e Dewey repetia quase literalmente a definição de Hobbes ao dizer: "A V. não é algo oposto às conseqüências ou
separado delas. É a causa das conseqüências; é a causação em seu aspecto pessoal; o aspecto que precede
imediatamente a ação" {Human Nature and Conduct, p. 44). À mesma tendência geral pertence a interpretação da V.
como modo de ser do cuidado (v.), segundo Heidegger, sendo o cuidado a manifestação fundamental da existência do
homem no mundo, que consiste propriamente em preocupar-se com as coisas e cuidar dos outros {Sein und Zeit, §
41). Por outro lado, certas interpretações da psicologia contemporânea podem ser enquadradas na mesma tendência
geral: é o que acontece com a famosa interpretação de McDougall, segundo a qual a volição seria "o apoio ou o
reforço que um desejo ou uma conação recebe da cooperação de um impulso excitado no sistema dos sentimentos de
autoconsideraçào" (Introduction to Social Psycology, 1908). Segundo essas interpretações, de fato, seriam atos
voluntários aqueles nos quais o impulso determinante é constituído por uma atitude de respeito ou de exaltação do Eu
diante de si mesmo.
Finalmente, nas expressões V. de viver e V. de potência, a V. é entendida no sentido mais geral.
A V. de viver que, segundo Schopenhauer, é o número do mundo, nada tem de racional: "é um ímpeto cego,
irresistível, que já vemos aparecer na natureza inorgânica e vegetal, assim como também na parte vegetativa de nossa
própria vida". Portanto, "o que a v. sempre quer é a vida, justamente porque esta é apenas o manifestar-se da V. na
representação, e é simples pleonasmo dizer V. de viver era vez de V." {Die Welt, I, § 54).
Analogamente, V. de potência é, segundo Nietzsche, um impulso fundamental que nada tem de causação racional: "A
vida, como caso particular, aspira ao máximo sentimento de potência possível. Aspirar a outra coisa não é senão
VÓRTICE
1010
VULGAR
aspirar à potência. Essa V. é sempre o que há de mais íntimo e profundo: a mecânica é uma simples
semiótica das conseqüências iWille zurMacht, ed., 1901, § 296).
VÓRTICE (gr. 8tvoç; lat. Vortex, in. Vortex, fr. Vortex, ai. Wirbel; it. Vórtice). Conceito fundamental da
física antiga. Anaxágoras considerava o V. como o meio de que se vale o intelecto divino para ordenar o
mundo (CLEMENTE, Strom., II, 14). Demócrito considerava-o como "a causa da geração de todas as
coisas" e identificava-o com a necessidade (DióG. L., IX, 45). Epicuro retomava o mesmo conceito ilbid.,
X,
90), que na Idade Moderna ainda foi utilizado por Descartes (Phil. princ, II, 33).
VULGAR (lat. Vulgares-, in. Vulgar, fr. Vulgaire, ai. Gemein; it. Volgaré). Essa palavra foi usada em
sentido não pejorativo por Tertuliano, que deu valor ao testemunho contido nas expressões usadas pelo
povo; elas são "V. porque comuns, comuns porque naturais, naturais porque divinas" {De testimonio
animae, 6). Viço dizia: "as tradições V. devem ter possuído razões notórias de verdade, em vista do que
nasceram e foram propagadas por povos inteiros por longos intervalos de tempo" (Sc. nuova, diga, 16; v.
dign., 17)
1
w
WELTANSCHAUUNG. V. INTUIÇÃO DO MUNDO.
X
X. 1. Às vezes a letra xé usada em filosofia como símbolo da incógnita. Foi usada por Kant na primeira edição da
Crítica da Razão Pura e em Opus postumum: "O objeto transcendental significa alguma coisa = x, da qual nada
sabemos e da qual (segundo a atual constituição do nosso intelecto) nada podemos saber, mas que pode servir apenas
como um correlato da unidade da aper-cepçào" (Crít. R. Pura, A, 250; v. Opus postumum, IX, 2, pp. 280, 308, 418,
etc). Outras
vezes, nos neokantianos, o x constitui o indeterminado que o processo tende a determinar, o incógnito ser do qual
cada passo do conhecimento serve para evidenciar um aspecto (NATORP, Philosophie, 1921, 3g ed., pp. 41 ss.).
2. Na lógica contemporânea, "x" é o argumento qualquer de uma função (v.). O símbolo "(x)" é o quantificador
universal, um dos operadores lógicos fundamentais (v. OPERADOR).
2
ZELOTIPIA (lat. Zelotypid). Segundo Baum-garten, é o amor que deseja que o amor do ser amado lhe seja
proporcional (Mel, § 905).
ZEN. Corrente budista fundada por Bodhi-dharma na China, no ano 527 d.C., e introduzida no Japão por Ei-Sai em
1191, onde se desenvolveu com características próprias. Seu ensinamento fundamental é a eliminação da oposição —
típica do budismo — entre o mundo das aparências (samsard) e o nirvana-, sua tarefa é ensinar a ver (e realizar) o
nirvana nas mais simples e modestas manifestações da vida diária. Um mestre do Z. enumera da seguinte maneira os
dez passos sucessivos que constituem o trabalho de toda a vida de um partidário do Z.:
1- o partidário do Z. deve crer que existe um ensinamento (o Z.), transmitido fora da doutrina budista geral;
2- deve ter conhecimento definido desse ensino;
3a deve entender por que tanto o ser senciente quanto o não senciente podem pregar o dharma (a lei do mundo);
4- deve ser capaz de ver a substância como se contemplasse algo vivido e claro bem na palma de sua mão; o seu
passo deve ser sempre resoluto e firme;
5e deve ter "o olho do dharma";
6Q deve trilhar "a senda dos pássaros" e "a estrada do além" (ou "estrada do milagre");
7Q deve saber desempenhar tanto um papel positivo quanto um papel negativo no drama do Z. ;
8e deve destruir todos os ensinamentos heréticos e enganadores e apontar para os justos;
9a deve conquistar grande força e flexibilidade;
10Q deve participar da ação e praticar diferentes modos de vida.
Nos últimos anos o Z. suscitou grande interesse nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos, onde às
vezes é estudado em relação com vários aspectos da cultura ocidental (cf. a bibliografia contida na tradução italiana
de A. W. WATTS, The Spirit of Z., 1935. Para os dez graus da iniciação do Z., v. CHANG-CHENG-CHI, The Practice of
Z, 1959, p. 33).
ZERO (in. Zero-, fr. Zero; ai. Null; it. Zero). O Z. foi introduzido como número só na matemática moderna. Peano
incluiu-o entre as noções primitivas do seu sistema lógico (v. ARITMÉTICA). Russell definiu o Z. como "a classe cujo
único membro é a classe nula" (Introduction to MathematicalPhilosophy, III; trad. it., p. 35).
Em sentido metafórico, às vezes se diz ponto Z. para indicar o ponto de encontro ou de equilíbrio de possibilidades
diferentes. Kierkegaard diz: "O que eu sou é um nada; isso me dá, e ao meu gênio, a satisfação de conservar minha
existência no ponto Z, entre o frio e o calor, entre a sabedoria e a estupidez, entre alguma coisa e o nada, como um
simples talvez" (Werke, IV, p. 246).
ZETÉTICO (gr. ÇnTnTiKóÇ; lat. Zetetic, fr. Zététique; ai. Zetetisch; it. Zetetico). Investigativo ou inquisitivo. Este
termo foi primeiramente aplicado por Trasilo para indicar um grupo de diálogos de Platão (DIÓG. L., III, 49; V.
ARISTÓTELES, Pol, 1256 a 12). Em seguida, foi assumido como denominação da atitude céptica: "A corrente céptica é
chamada de Z. por procurar e investigar; suspensiva pela disposição da alma que, depois da indagação, mantém em
relação ao objeto indagado; e dubitativa por duvidar e indagar de todas as coisas (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 7).
ZOOLATRIA
1014
ZWINGLIANISMO
Algumas vezes se chamou de zetética a forma de análise matemática que se refere à determinação das grandezas
desconhecidas.
ZOOLATRIA (in. Zoolatry- fr. Zoolatrie; ai. Zoolatrie, it. Zoolatrià). Culto aos animais, considerados
manifestações ou encarnações da divindade. A Z. esteve presente em muitas religiões antigas: egípcia, frígia e siríaca
(V. F. CUMONT, Les religions orientales dans le pa-ganisme romain, 1906 passim) (v. TOTEM).
ZOROASTRISMO (in. Zoroastrianism; fr. Zoroastrisme, ai. Zoroastrismus; it. Zoroastris-mo). Religião persa,
conhecida também como masdeísmo ou parsismo, estabelecida por Zoroastro ou Zaratustra (século VI a.C), cujo
principal documento no Zendavesta. O ensinamento principal dessa religião é o dualismo entre dois princípios
opostos, chamados respectivamente Ormuz (Ahura Mazdatí) e Ari-man (Angra Manyu), graças ao qual ela se
apresenta como solução para o problema do mal (v. MAL, I, b).
ZWINGLIANISMO (in. Zwinglianísm; fr. Zwinglianisme, ai. Zwinglianismus; it. Zuin-glismo). Doutrina do
reformador suíço Ulrich Zwinglio (1484-1531), que compartilhou com o humanismo a idéia de que há uma sabedoria
religiosa originária, da qual proviriam tanto os textos das Sagradas Escrituras quanto os dos filósofos pagãos.
Portanto, para Zwinglio a revelação é universal, e Deus é a força que rege o mundo e revela-se em todas as coisas.
São também características da doutrina de Zwinglio a predestinação (v.) e a interpretação dos sacramentos, inclusive
da Eucaristia, como cerimônias simbólicas. É sobre esse aspecto que Lutero e Zwinglio discordam, pois, ao contrário
de Lutero, Zwinglio negava também o valor absoluto da autoridade política.

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