Ed.135 Mar-Abr 2015 - Revista Principios
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Ed.135 Mar-Abr 2015 - Revista Principios
1 Ed. 135 – Março/Abril 2015 2 Editorial Petrobras é alvo de pesado ataque dos entreguistas e do imperialismo Marcelo Piu / Agência O Globo E coa pelo país o lema “Defender a Petrobras é defender o Brasil!”, uma versão atual da clássica palavra de ordem “O petróleo é nosso!”. Ela revela a alma dessa empresa-símbolo da soberania nacional. O conceito de patriotismo contido na frase vem dos primórdios da luta pelo petróleo, quando Monteiro Lobato se empenhou em mostrar ao povo a “força mágica do maravilhoso sangue negro da terra”. Ficaram explícitas, desde então, concepções distintas, bem caracterizadas como sendo ou patrióticas ou entreguistas. E, com o sentimento de defesa dos interesses da nação forjado pela compreensão da importância estratégica do petróleo, a Petrobras resistiu bravamente aos ataques dos entreguistas. A lei do monopólio estatal do petróleo, aprovada em 1953, já nasceu sob o fogo da direita, mas todas as tentativas de atingir a Petrobras foram firmemente rechaçadas pelas forças patrióticas, formadas por uma ampla frente englobando basicamente trabalhadores, intelectuais e correntes políticas democráticas. A empresa sofreu um ataque agressivo da ditadura militar com os “contratos de risco” e, na primeira ofensiva do projeto neoliberal, durante o governo do presidente Fernando Collor de Mello, chegou a entrar na lista do “Programa Nacional de Desestatização”. O ponto crítico dessa ofensiva se deu no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que proclamou o monopólio estatal do petróleo como uma “página virada” na história do Brasil após a aprovação da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de 1995. A chamada Lei do Petróleo, aprovada em 6 de agosto de 1997, conferiu legalidade ao entreguismo e foi a consumação parcial de um sonho dos magnatas dos trustes privados internacionais, que sempre cobiçaram as imensas reservas petrolíferas brasileiras. Contudo, o campo patriótico e democrático conseguiu barrar a privatização da Petrobras. Os governos do ex-presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff proporcionaram uma trajetória virtuosa na estatal. A descoberta do pré-sal foi um grande feito da engenharia nacional e da Petrobras, e atiçou a cobiça dos trustes, que manipulam o mercado internacional de petróleo e dão suportes às variadas formas de guerras de rapina, da comercial à militar, passando pela midiática. Nas investidas contra a empresa, os entreguistas sempre usaram pretextos. Na atualidade, manipulam à exaustão as investigações da Operação Lava Jato que desbaratou um esquema empresarial criminoso de pagamento de propinas que atuava a partir de contratos feitos com a Petrobras. A mal disfarçada campanha de denúncias de “corrupção” na estatal foi explicitamente desmascarada quando os senadores tucanos Aloysio Nunes e José Serra apresentaram projetos de lei propondo o fim regime de partilha e a retirada de autonomia da Petrobras sobre o petróleo brasileiro. Ficaram escancaradas com esses dois projetos as reais intenções da oposição neoliberal: enfraquecer a Petrobras para, de um modo ou de outro, privatizá-la, tendo como primeiro lance a entrega da riqueza do pré-sal às multinacionais. Os corruptos de dentro e de fora da Petrobras devem ser punidos na forma da lei, não cabe dúvida. Mas a defesa da empresa e do petróleo brasileiro não pode ser deixada para segundo plano, como têm se manifestado os trabalhadores, os intelectuais progressistas, as correntes políticas patrióticas e a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras, recentemente constituída na Câmara dos Deputados. Como em outras ocasiões, esses setores democráticos estão se levantando em defesa da soberania nacional. Em seu apoio, cumpre dar consequência à ideia de uma frente ampla para assegurar a democracia e os interesses do povo. Adalberto Monteiro Editor 1 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Capa Defesa da Petrobras, na defesa do Brasil Haroldo Lima................................................................... 4 Petrobras: uma vida sob o cerco da direita Osvaldo Bertolino...................................................... 10 4 Ataque à Petrobras – Nova ofensiva, velhos argumentos! Davidson Magalhães, Luiza Erundina, Afonso Florence.......................................................... 16 À LUTA! Adilson Araújo, Divanilton Pereira e José Maria Rangel....................................................... 20 Economia 26 Experiências da austeridade econômica Renildo Souza............................................................. 26 Crise sistêmica, política e luta de classes no Brasil Sergio Barroso............................................................ 33 Brasil O golpe dos golpistas e a resposta democrática Osvaldo Bertolino...................................................... 38 38 Reforma Política, cláusula de barreira e a Constituição Federal Orlando Silva e Wladimyr Camargos......................... 44 PCdoB Maranhão é palco de comemoração nacional dos 93 anos do PCdoB Cezar Xavier................................................................ 50 Íntegra do discurso de Renato Rabelo 93 anos: Partido Comunista do Brasil, uma exigência histórica!...................................................... 53 A participação institucional dos comunistas Márvia Scárdua........................................................... 56 50 2 Sumário 61 Teoria Pós-modernidade, globalização e crise dos partidos políticos Antônio Levino............................................................ 61 História Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro Bernardo Joffily.......................................................... 66 Vietnã: guerra, revolução e desenvolvimento Paulo Fagundes Visentini............................................. 72 Coreia: da luta antijaponesa à libertação em 1945 (1ª Parte) Raul Carrion............................................................... 77 Memória Imagens de uma América mutilada Cezar Xavier................................................................ 66 84 Cultura Picasso e a modernidade espanhola no CCBB-SP Mazé Leite.................................................................... 86 Homenagem Arte “subversiva” de Abelardo da Hora em exposição Cezar Xavier................................................................ 77 89 Resenha Getúlio: biografia de um grande e polêmico presidente Carlos Rogério Carvalho Nunes................................. 92 84 89 3 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Defesa da Petrobras, na defesa do Brasil Haroldo Lima* Marcelo Camargo - Agência Brasil Movimentos sociais e trabalhadores se erguem em defesa da estatal e da riqueza do pré-sal As forças vivas da Nação não devem se deixar enganar. Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de toque dos interesses nacionais no Brasil. A punição aos que, dentro e fora da estatal, comprovadamente participaram do esquema da corrupção, deve ser feita, exemplarmente. O que não pode é essa punição ser associada a enfraquecimento da estatal, nem a sua privatização, nem ao fim da partilha, nem a manobras que visam transformar em reserva das multinacionais o mercado brasileiro de grandes obras 4 Capa O Brasil enfrenta dificuldades nesse inía empresa, de acabar com o regime de partilha no cio de 2015. Variados são os problepré-sal. Tudo era preparado para se levantar depois a mas que enfrenta. privatização da companhia. Sua economia sofre com a crise É nesse momento que o povo vai às ruas em 24 internacional do capitalismo, iniciaestados do país, em 13 de março passado, vergastanda em 2008/9 e ainda não debelada. A do o golpismo, clamando pelo fim de financiamento produção local foi atingida. Os consumidores interempresarial às campanhas eleitorais e reafirmando a nacionais reduziram suas compras, o valor de seus Petrobras como vital para o desenvolvimento indeprodutos caiu, suas exportações diminuíram. pendente do Brasil. A persistência entre nós de formas neoliberais adotadas em época anterior 1) Uma história de agravou a situação. Tudo conameaças debeladas tinua submetido ao objetivo da formação de um “superávit priTem sido assim a história da mário”, que no ano passado foi Petrobras. Em diversos momende 53 bilhões de dólares, dos tos de sua vida, golpes contra sua maiores do mundo, inflexivelexistência foram urdidos e tentamente garantido para pagar endos, sua privatização requerida. cargos financeiros. Os serviços Mas o povo atento, tudo debelava. públicos padecem, a indústria Em agosto de 1958, o próprio retroage, o desenvolvimento beisecretário de Estado norte-amera a estagnação. ricano John Foster Dulles, em Nesse meio tempo, um imvisita ao Brasil, pressionou o gopressionante surto de corrupção verno de Juscelino para desestafoi descoberto na Petrobras, enbilizar a estatal. O general Lott, volvendo gente de dentro e de então ministro da Guerra, deu a fora da empresa. resposta merecida: “A Petrobras é Ademais, nos últimos 7 meintocável”. ses, uma contínua queda de preNa Revisão Constitucional de 1993/94, outra tentativa foi feita. ços do petróleo gravou países Tem sido assim a O passo inicial era desgastar a exportadores do óleo e pôs em história da Petrobras. imagem da estatal. A revista Vealerta os que têm grandes invesEm diversos momentos ja, em sua edição de 30 de março timentos à vista, como o Brasil. de 1994, publicou uma enorme Traficando com todos esses de sua vida, golpes reportagem, de dez páginas, preproblemas, setores reacionários contra sua existência nhe de mentiras e difamações da oposição, mancomunados contra a empresa. A resistência, com a grande mídia conservaforam urdidos nas ruas e no Parlamento, detodora, urdiram um plano para e tentados, sua nou a torpe pretensão. acabar com o modelo de desenEm 1995, o presidente FHC volvimento com inclusão social privatização requerida. encaminhou ao Congresso projeem vigor no Brasil. Tratava-se de Mas o povo atento, tudo to abrindo ao mercado o acesso responsabilizar Dilma por tudo debelava a atividades petrolíferas até ende ruim que tem acontecido no tão exclusivas da Petrobras. Era o país, que sabia de todas as falcafim do monopólio. Sabia-se que, truas existentes e, assim, agitar em seguida, viria a privatização da empresa. Parirresponsavelmente a ideia do seu impeachment. Era lamentares nacionalistas articularam uma emenda, um plano nitidamente golpista. assinada pelo senador Ronaldo Cunha Lima, relator Usando essa tormenta para desgastar a Petrodo projeto que punha fim ao monopólio, admitindo bras, a direita e a grande mídia reacionária inflaram acabar com este, mas proibindo a privatização da Peos problemas e começaram a apresentar a Petrobras trobras. O governo rejeitou a emenda. Patenteou-se como uma empresa-problema. Inacreditável. O vaque o objetivo era a privatização da empresa. lor de mercado da estatal foi depreciado, e logo coMas a resistência recrudesceu. Com o apoio do meçou a se especular sobre a retirada da Petrobras presidente do Senado, a base parlamentar naciode setores “onde nunca deveria estar”, de “fatiar” 5 Ed. 135 – Março/Abril 2015 nalista obstruía a votação da quebra do monopólio, alertando que, se isso fosse votado, o próximo passo seria a privatização da Petrobras. O presidente FHC encaminhou, então, ao Senado, uma carta, datada de 9 de agosto de 1995, na qual assumia o compromisso de não promover a privatização da estatal. A trama para impor um mercado aberto sem estatal malogrou, e em seu lugar ficou um mercado aberto com forte presença estatal. Nas eleições que levaram Lula e Dilma à presidência da República, de 2002 para cá, esses candidatos fizeram a defesa da Petrobras e das estatais estratégicas, o que empolgou o eleitorado e reforçou suas vitórias. Quando hoje vemos o Estado brasileiro com o controle acionário da Petrobras, Furnas, Itaipu, Chesf, Tucuruí, Banco do Brasil, Caixa, BNDES, Correios etc. temos que ressaltar que isto foi fruto de muita luta. Diversas dessas estatais já estiveram na lista das privatizáveis. 2) Velho esquema corrupto é desmantelado O cerco que agora fazem à Petrobras usa como pretexto a descoberta do esquema corrupto que agia na empresa. De saída afaste-se a ideia de que a corrupção grassou na Petrobras por ser ela uma estatal. Há pouco, a americana Enron, das maiores energéticas do mundo, e que era uma empresa privada, faliu, em meio a escândalos escabrosos. Agora, o inglês The Guardian e outros mostraram que o maior banco em ativos do mundo, o HSBC, através de sua filial na Suíça, ajudou 106.000 clientes a “sonegar impostos no valor de US$120 bilhões, entre 1988 e 2007”. Noticia-se que 4,8 mil cidadãos brasileiros faziam parte do esquema, com contas que Depoimentos na CPI indicam que arranjo criminoso na estatal começou no governo FHC 6 movimentaram R$20bilhões, provocando uma evasão de divisas muito maior que a corrupção havida na Petrobras, o que estranhamente não merece destaque na grande mídia brasileira. Pelo que disse um dos detratores do esquema corrupto, a corrupção descoberta funcionava há 18 anos. Era um velho arranjo criminoso, da época dos governos de FHC, que teria crescido após 2003, já no governo Lula. De todo modo, a situação criada por esse esquema é deplorável. Três ex-diretores da Petrobras e mais de 20 dirigentes de empreiteiras foram presos. Só um funcionário concordou em devolver R$225 milhões. Admite-se que o total de desvios, a ser confirmado, pode ultrapassar os 2,5 bilhões de reais. A Petrobras não conseguiu apresentar Balanço auditado, e perdeu seu “grau de investimento”. Nos EUA, foram abertas 11 ações contra ela, o que só foi possível porque, em agosto de 2000, no período de FHC, mais de 108 milhões de ações da empresa foram vendidas na Bolsa de Nova York. E assim a Petrobras ficou submetida à legislação americana. Divulgou-se que 23 empresas brasileiras relacionaram-se com o esquema corrupto. A Diretoria da Petrobras suspendeu relações com todas elas. A legislação veda a possibilidade de empresas, consideradas “inidôneas”, firmar contrato com entidade pública. 3) Punir os corruptos, salvaguardar a Petrobras e as empresas nacionais Entre as 23 empresas citadas, estão as maiores companhias nacionais de engenharia e construção pesada. Se forem excluídas do mercado, estaríamos entregando, graciosamente, toda a engenharia de grandes projetos e a construção pesada no Brasil a empresas estrangeiras. Os interesses nacionais teriam sido rudemente golpeados. E passaríamos a ideia ingênua e abobalhada de que julgamos os empresários brasileiros corruptos e os estrangeiros honestos! Punir os culpados, ex-diretores ou não da Petrobras e dessas grandes empresas privadas, é interesse de todos. Salvaguardar a estatal petroleira e as grandes empresas nacionais de engenharia e construção pesada, onde atuam dezenas de milhares de técnicos e trabalhadores, competentes e honestos, responde aos interesses nacionais. Resolver a questão dessas grandes empresas é desafio para homens de Estado, não para delegados ou promotores. Há problemas penais, mas há problemas nacionais. E os primeiros não podem se sobrepor aos segundos. A Advocacia Geral da União já estuda a questão, procurando solucioná-la através de “acordos de leniência”, que combatam a Capa corrupção, punam os corruptos e estabeleçam condições para a continuidade das empresas. 4) A persistente queda dos preços do petróleo A grande mídia oligopolizada, de arraigada tradição entreguista e golpista, ocupou logo seu lugar na trama, sintonizando-se com os grupos estrangeiros hegemônicos nos negócios do petróleo. Assumiu a tarefa de desacreditar e desmoralizar a Petrobras junto aos brasileiros A partir de meados de 2014, fato de grande importância começa a ocorrer: a persistente queda do preço do petróleo. Este fenômeno, que a todos impacta, alterou significativamente o comércio com o petróleo. A cotação do óleo, em junho do ano passado, esteve em US$112 / barril; em outubro estava em US$90 / barril e chegou a US$45 /barril no meio de janeiro de 2015. Uma queda de cerca de 60% em seis ou sete meses. Diversas são as causas desse acontecimento. Mas o fator decisivo foi o aumento da produção nos Estados Unidos do shale gas e do shale oil, a partir de novas tecnologias. Eles, os EEUU, que são os maiores consumidores do planeta – 21 milhões de barris/dia – e que importavam 60% do que consumiam, diminuíram drasticamente suas importações. A Organização dos Países Exportadores do Petróleo, que em situações parecidas, há 30 anos, reduzia sua produção para sustentar o preço do óleo, desta vez manteve sua produção, e o preço do óleo desabou. Os efeitos do preço baixo do hidrocarboneto são variados. Em curto prazo, exceto para os países exportadores de petróleo, há benefícios para a economia mundial. Em longo prazo, todos os projetos que envolvam grandes investimentos são prejudicados. Repercussão especialmente negativa ocorre para o meio ambiente, pois que, nas condições atuais, todas as fontes alternativas mais limpas de energia só conseguem concorrer com o petróleo recebendo subvenções e porque o combustível fóssil é caro. Se ele se torna barato – petróleo abaixo de US$50/barril – não há energia alternativa que consiga concorrer com o mesmo. A Petrobras, que estava comprando petróleo caro e vendendo gasolina barata, imediatamente melhorou seu caixa, passando a comprar petróleo a preço reduzido. Mas a Petrobras não é uma mera compradora de petróleo, é uma grande produtora e tem reservas e projetos grandiosos, especialmente no pré-sal. O custo do óleo permanecendo abaixo dos US$45 pode tornar menos atraente, ou mesmo não atraente, o próprio pré-sal. 5) Forças reacionárias usam os problemas para atacar a empresa A queda do preço do petróleo atingiu a Petrobras no mesmo instante em que investigações revelavam o vulto a que chegara a corrupção na empresa. O lamentável é que os detratores da companhia, quando perceberam o impacto negativo que esses dois fatores tinham sobre ela, ao invés de protegê-la, separando o “o joio do trigo”, pondo, de um lado, os corruptos, de outro, a empresa, resolveram lançar outra investida difamatória contra a Petrobras e tentar dela se apoderar. A grande mídia oligopolizada, de arraigada tradição entreguista e golpista, ocupou logo seu lugar na trama, sintonizando-se com os grupos estrangeiros hegemônicos nos negócios do petróleo. Assumiu a tarefa de desacreditar e desmoralizar a Petrobras junto aos brasileiros. Passou a construir uma imagem grotesca e surreal da Petrobras. Omitia dados importantes, exacerbava fatos fora do contexto, generalizava situações localizadas. O produto final de tudo isso era uma mentira, divulgada para empulhar o povo. E mentem, como diria um poeta popular anônimo, “de corpo e alma, completamente/ mas mentem, sobretudo, impunemente”. 7 Ed. 135 – Março/Abril 2015 6) Alquimia ao avesso: transformar a Petrobras em seu inverso em 13º lugar; na lista divulgada pela mesma revista, em maio de 2014, a estatal brasileira pulou para o 9º lugar; 4 - segundo a agência Reuters, no primeiro seTrês objetivos passaram a ser perseguidos: apremestre de 2014, a Petrobras era a segunda maior sentar a Petrobras como um covil de bandidos, como produtora de petróleo do mundo, entre as petroleiuma petroleira ineficiente e como uma empresa que ras de capital aberto; a primeira era a ExxonMobil, perdeu seu valor. norte-americana; O covil de bandidos ficava su5 - segundo a agência Reuters, postamente “demonstrado” com A Petrobras é no terceiro trimestre de 2014, a a prisão de três diretores e de ExxonMobil perdeu sua condição mais alguns funcionários. A ignouma petroleira de maior produtora de petróleo miniosa marca de bandido, aprogigante em escala entre as companhias de capital priada para um número restrito aberto do mundo; passou para o de maus funcionários, de repenmundial. Detém das segundo lugar; a líder mundial te parecia se estender aos 86 mil maiores reservas passou a ser a Petrobras; trabalhadores da empresa, postos petrolíferas do 6 - nesse terceiro trimestre em suspeição. O corpo técnico da de 2014, a produção de petróleo companhia, dos maiores e mais mundo. Como todas da Petrobras foi de 2,209 miqualificados do mundo, desapaas suas congêneres, lhões de barris/dia; a da Exxonrecia do noticiário. A sua capaciMobil foi de 2,065 milhões de dade de ação ficava tolhida, pois enfrenta os efeitos barris/dia; que todo trabalho se desenvolvia da queda do preço 7 - as produções somadas de debaixo de um clima generalizainternacional do óleo e gás colocavam, no início do de “caça às bruxas”. de 2015, a Petrobras em quarta A ineficiência da petroleira petróleo, observa posição no ranking mundial; era algo tão difícil de ser dea evolução desse 8 - no dia 16 de dezembro de monstrada quanto a quadratu2014, na província do pré-sal, a ra do círculo. O melhor era esproblema e está Petrobras produziu 700 mil barconder os dados reais e praticar segura de que seus ris/dia, um recorde, e em 21 de o rasteiro jornalismo de omitir dezembro, bateu outro recorde, para iludir. E as notícias fundagrandes projetos o da produção diária de 2,3 mimentais foram jogadas para as serão viabilizados lhões de bep; pontas das páginas da grande 9 - a Petrobras Biocombustíimprensa, só merecendo destaveis, subsidiária da companhia, teve um crescimento que nos blogs e portais independentes, que não se de 17% em 2014 na produção de etanol, chegando a curvaram a esse procedimento canhestro. Assim, 1,3 bilhão de litros. foram obscurecidas que: 1 - Até setembro de 2014, em todo o mundo, só duas empresas de capital aberto aumentaram sua produção de petróleo, a Petrobras e a americana ConocoPhillips; a Conoco aumentou de 0,4%, a Petrobras de 3,3%; 2 - na situação em que os preços do petróleo caíram pela metade, era de se esperar uma queda equivalente na arrecadação de royalties. Os prejuízos para os estados e municípios seriam enormes. O aumento da produção amenizou esse prejuízo. Em janeiro deste ano, a arrecadação de royalties caiu apenas 10,3%, comparado com o ano passado, segundo a ANP; 3 - em novembro de 2013, fazendo uma combinação de critérios, a revista Forbes divulgou a lista das maiores petroleiras do mundo: a Petrobras ficou 8 Por último, vale observar que o valor de mercado da Petrobras, bombardeada diuturnamente por noticiário faccioso, caiu continuamente. Mas o valor que caiu foi o de mercado, o valor na Bolsa, que reflete mais as perspectivas de curto prazo da empresa. Ele se comporta como o “capital fictício” de que falou Marx, e flutua com tal autonomia que “reforça a ilusão de que é um verdadeiro capital ao lado do capital que representa…” (Marx). Mas não é o capital real da empresa, não representa seu valor efetivo, os incontáveis ativos da companhia. Assinala como os investidores estão apreciando a empresa naquele momento. E neste sentido, sua queda foi grande. Em março de 2011, após a oferta pública do pré-sal, o valor de mercado da Petrobras chegou a Capa R$413,5 bilhões, o maior da América Latina. Em 31 de janeiro de 2014, caiu para R$184 bilhões; em 13 de outubro de 2014, voltou a ser o maior da América Latina, R$278,4 bilhões. Ao encerrar o ano de 2014, em 27 de dezembro, foi a R$139,2 bi. Detalhe: um ano antes, em 2013, a empresa faturou R$370 bilhões! 7) Com o respaldo do povo, a Petrobras seguirá em frente A Petrobras é uma petroleira gigante em escala mundial. Detém das maiores reservas petrolíferas do mundo. Como todas as suas congêneres, enfrenta os efeitos da queda do preço internacional do petróleo, observa a evolução desse problema e está segura de que seus grandes projetos serão viabilizados. No período recente, sofreu duro golpe pela ação do referido esquema corrupto que por anos a saqueou, mas que está sendo extirpado. A Petrobras vê-se, de qualquer forma, acossada por uma campanha torpe que tenta sufocá-la, desacreditá-la, para fomentar sua privatização. Ao mesmo tempo, forças interessadas em abrir espaços para as multinacionais no pré-sal, movimentam-se para acabar com uma das maiores conquistas do Brasil nos últimos tempos, a partilha da produção nessa província, e já apresentaram no Senado o Projeto de Lei nº 417/2014, de autoria do Líder do PSDB Aloysio Nunes, para pôr fim à partilha. As forças vivas da Nação não devem se deixar enganar. Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de toque dos interesses nacionais no Brasil. A punição aos que, dentro e fora da estatal, comprovadamente participaram do esquema da corrupção, deve ser feita, exemplarmente. O que não pode é essa punição ser associada a enfraquecimento da estatal, nem a sua privatização, nem ao fim da partilha, nem a manobras que visam tornar o mercado brasileiro de grandes obras, reserva das multinacionais. O Brasil mais uma vez vencerá. * Haroldo Lima é consultor de petróleo, ex-diretor geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, ex-deputado federal e é do Comitê Central do PCdoB. As forças vivas da Nação não devem se deixar enganar. Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de toque dos interesses nacionais 9 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Petrobras: uma vida sob o cerco da direita Osvaldo Bertolino* Getúlio Vargas apresentou o projeto da criação da Petrobras no final de 1951. Em 3 de outubro de 1953, foi aprovada a lei n° 2004 que criou a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras) Desde 1953, quando foi criada, a Petrobras enfrenta o cerco da direita. A empresa nasceu como consequência da batalha pelo controle estatal do petróleo, condição fundamental para a defesa da soberania nacional. E, por ter esse simbolismo, nunca foi aceita pelas forças conservadoras, devidamente caracterizadas como entreguistas. Os recentes ataques à estatal, agora mais intensos por conta do pré-sal, são apenas o capítulo mais recente dessa história O que está por trás dos arroubos dos patriotas de ocasião e raivosos publicistas da direita que se “indignam” com a profusão de denúncias envolvendo a Petrobras? A batalha mundial pelo petróleo é a resposta óbvia, mas em torno dela existem outros interesses igualmente estratégicos. A principal é a união do Brasil com 10 seus vizinhos, cujo exemplo mais significativo se dá na área de energia, que historicamente representou um dos maiores motivos de integração entre os povos. A União Europeia, para citar um exemplo recente, começou a surgir em 1951 com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Inicialmente, a preocupação básica era o suprimento de energia. Capa No caso da América do Sul, há um fator que fave montanhas, a convicção rompe o seio da terra e cilita essa integração: os países da região, excetuanarranca de lá os seus tesouros. Não sei, concluí em do Brasil e Chile, têm mais energia do que necesuma das minhas pregações, que sacrifício eu não fasitam. Não há nada mais natural do que vender o ça para ver meu país arrancado à miséria crônica e excedente a quem precise. Para que esse comércio elevado ao poder e à riqueza pela força mágica do ocorra, contudo, são necessárias obras gigantescas, maravilhoso sangue negro da terra”, asseverou. que tendem a consolidar a ligação entre os países. Impulsionado por essa ideia, Monteiro Lobato Só o gasoduto entre Brasil e Bolívia, para se ter uma escreveu cartas ao presidente Getúlio Vargas exponbase, custou mais de US$ 2 bido o que considerava a verdade lhões. Ninguém faria uma obra sobre o problema do petróleo desse porte se não fosse para ter no Brasil, que lhe renderia uma uma relação de longo prazo. Esprisão. “O petróleo! Nunca o prosa ideia, no entanto, sempre enblema teve tanta importância; frentou forte oposição dos intee se com a maior energia e urresses que dominam a economia gência o senhor não toma a si a mundial; a indústria do petróleo, solução do caso, arrepender-se-á que nasceu no final do século amargamente um dia, e deixará XIX, por ser fonte constante de de assinalar a sua passagem periqueza se tornou desde cedo eslo governo com a realização da sencialmente monopolista. ‘grande coisa’. Eu vivi demais No Brasil, a luta pela soberaesse assunto. No livro O escândania energética é antiga. A confirlo do petróleo denunciei à nação o mação da existência de petróleo crime que se cometia contra ela no país foi uma vitória das forças (...). Doutor Getúlio, pelo amor patrióticas e progressistas, que de Deus, ponha de lado a sua sempre demarcaram campo com displicência e ouça a voz de Jeos entreguistas. O escritor Monremias. Medite por si mesmo no teiro Lobato disse em seu livro O que está se passando. Tenho cerescândalo do petróleo, de 1936, que teza de que se assim o fizer, tuO escritor Monteiro existiam duas visões geológicas: do mudará e o pobre Brasil não uma paga para “engazopar” o púserá crucificado mais uma vez”, Lobato disse em seu blico, outra para o uso interno dos escreveu. livro O escândalo do trustes. Até então, escreveu ele, o Mais de treze anos depois, em Brasil vivia em regime de com3 de outubro de 1953, o segundo petróleo, de 1936, que partimentos estanques. A imengoverno Vargas instituiu a lei do existiam duas visões sa extensão territorial do país e a monopólio estatal do petróleo. geológicas: uma paga falta de bons transportes fizeram Nesse ínterim, amadureceu no os brasileiros serem regionais. país a consciência de que o separa “engazopar” o Nasciam e morriam em um destor energético — especialmenpúblico, outra para o ses compartimentos e quando alte a indústria do petróleo — é guém desejava viajar corria para peça-chave do desenvolvimento uso interno dos trustes a Europa. As coisas começavam a econômico e social. Tanto que o mudar graça ao petróleo; o brasiProjeto de Lei que criou o monoleiro já circulava mais, de automóvel ou de avião, e espólio atingiu amplo consenso, apesar das pressões tava descobrindo o Brasil rapidamente. O país estava dos interesses internacionais já no momento da vose transformando em uma grande coisa. tação no Congresso Nacional. Aquele homenzinho de grossas sobrancelhas perA decisão brasileira de nacionalizar suas reservas corria o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, prefoi uma resposta aos propósitos dos monopólios que gando patriotismo. “Não temos petróleo? Falta-lhe se formaram com a história do imperialismo do sé(ao governo) em olhos o que lhe sobra em traidoculo XIX e do início do século XX. Eram tempos de res vendidos aos interesses estrangeiros”, escreveu. partilhas de mercados, de guerras mundiais, de moMas, afirmou, “havemos de dar olhos ao Brasil”. dificações nas correlações de forças e de soberanias “Havemos de obrigá-lo a ver, a convencer-se da exisnacionais ameaçadas. Na América Latina, território tência do gigantesco lençol subterrâneo. Se a fé mohistoricamente cobiçado pelos norte-americanos, o 11 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Campanha a favor do monopólio estatal do petróleo México nacionalizou seu petróleo em 1938 e a Arportanto, brotou em plena batalha mundial pelas regentina já explorava suas jazidas na década de 1940. servas petrolíferas. Era uma questão que requeria a Chile e Bolívia encaminhavam-se para o monopólio união do povo brasileiro e um governo minimamendo Estado. te comprometido com a independência nacional. A formação do bloco socialista tirou do campo Apoiada na tenacidade dos pioneiros — como Monde visão dos grupos privados importantes reservas teiro Lobato —, e fortalecida pelo esclarecimento das mundiais — um dos quatro maiores lençóis de pecampanhas do Partido Comunista do Brasil, a palatróleo, o do Mar Cáspio, passou para as mãos dos povra de ordem “O Petróleo é Nosso!” abriu caminho vos soviéticos. O drama do petróleo entre todas as barragens e emerentrava em uma fase nova, margiu como um grande movimento cada pelo avanço da democracia popular em defesa da soberania Além da mobilização contra o imperialismo. Já naquela nacional. popular e das época, as concessões abarcavam Além da mobilização popular regiões imensas. e das denúncias na tribuna do denúncias na tribuna Uma companhia norte-ameriCongresso Nacional, os comudo Congresso cana era concessionária de toda nistas apresentaram três projea Abissínia — hoje Etiópia. Na tos sobre o petróleo. De autoria Nacional, os Arábia Saudita, metade do país do deputado Carlos Marighella, comunistas estava nas mãos de outras duas o primeiro — subscrito por Mauapresentaram três empresas dos Estados Unidos. rício Grabois, Gregório BezerEm 1945, o Paraguai outorgou a ra, Henrique Oest, José Maria projetos uma petrolífera norte-americana Crispim, Jorge Amado, Abílio sobre o petróleo. Um concessões que compreendiam Fernandes e Diógenes Arruda dois terços do seu território. Na Câmara — dizia que “as jazidas deles dizia que “as Venezuela, regiões imensas foram de petróleo e gases naturais exisjazidas de petróleo entregues às companhias norte-atentes no território nacional pere gases naturais mericanas e inglesas. Os Estados tencem à União, a título de doUnidos controlavam mais de 80% mínio privado imprescindível”. existentes no território do petróleo do mundo capitalista, Ou seja: só brasileiros poderiam nacional pertencem cerca de 70% de toda a produção pesquisar e lavrar petróleo e gás. mundial. Em muitos países, como O segundo — não há registro à União, a título de a Venezuela, populações miseráconhecido de subscrição — decladomínio privado veis vegetavam em torno de poços rava de utilidade pública o abasriquíssimos. tecimento nacional de petróleo. imprescindível” A luta pelo petróleo nacional, Isto é: a produção, importação, 12 Capa exportação, refino, transporte, construção de oleoduto, distribuição e comércio seriam exclusividade de empresas de capital nacional, com 51% das ações em poder do Estado. O terceiro projeto de Marighella — subscrito por Maurício Grabois, Diógenes Arruda Câmara, João Amazonas, Henrique Oest, Gregório Bezerra, Gervásio Azevedo, Jorge Amado e Abílio Fernandes — criava o Instituto Nacional do Petróleo, entidade autárquica com ampla competência. Além destes três projetos, Abílio Fernandes apresentou outro, em nome da bancada comunista, regulamentando a aplicação dos artigos 152 e 153 da Constituição de 1946, relativos às minas e demais riquezas do subsolo. Segundo o projeto, “os decretos de concessões de petróleo e de autorizações de lavra” seriam “conferidos exclusivamente a brasileiros ou sociedades organizadas no país”. As propostas pararam na Comissão de Constituição e Justiça e o assunto passou a ser monopolizado por uma nova legislação que seria enviada ao Congresso pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A concretização do monopólio estatal do petróleo, contudo, só viria no segundo governo do presidente Getúlio Vargas, eleito em 1950. Ao longo dos debates, ficou evidenciada a importância da “batalha pelas reservas”. O deputado comunista Pedro Pomar disse na tribuna da Câmara que o problema fundamental do Brasil era produzir petróleo para o consumo doméstico e assegurar reservas para qualquer emergência. Segundo Pomar, os brasileiros não podiam ficar à mercê da política agressiva e provocadora de guerra dos norte-americanos. Desde cedo, portanto, os defensores da posse do petróleo pelo Estado compreenderam a importância dessa bandeira para o desenvolvimento nacional e a defesa da soberania do país. O petróleo é a base principal da economia e do poder do Estado nacional. Por ter essa importância, os entreguistas brasileiros nunca aceitaram a Petrobras. Nos anos 1940-1950, as ações para impedir a posse estatal do petróleo tinham muito a ver com o desdobramento do dramático episódio conhecido como “Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No seu final, o Brasil assinou os “Tratados de 1938” pelos quais ganhou uma região para pesquisar petróleo. O governo brasileiro havia construído a estrada de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu a “área de estudo” como pagamento. O acordo seria desfeito em 1955, quando o governo do presidente Café Filho devolveu a área ao governo boliviano, que seria repassada à Standard Oil. No caminho estava o pai dos neoliberais brasileiros, Eugênio Gudin, ministro da Fazenda. Ele se re- Cartaz da III Convenção Nacional de Defesa do Petróleo, promovida pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (Cedpen). Rio de Janeiro, 5 de julho de 1952. cusou a liberar os recursos necessários já aprovados no Congresso e destinados ao reinício das atividades do Conselho Nacional do Petróleo na região sub-andina boliviana. A mídia, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom senso”. Em La Paz, o procedimento foi o mesmo. Festejaram, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin. O alvo era a Petrobras, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada. Os monopólios privados sabiam que a estatal era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que seria a base econômico-financeira do desenvolvimento nacional. Foi assim que começou a primeira campanha contra a Petrobras. No início da década de 1960, no entanto, o monopólio estatal foi reforçado com a incorporação da importação de petróleo e da distribuição de derivados. A integração de todas as fases da indústria petrolífera — exploração, produção, transporte, refino e distribuição — no regime de monopólio permitiu ao país controlar a totalidade do seu petróleo. O setor evoluía em um ambiente iluminado pelo debate democrático e parecia intocável, apesar do assédio incessante das multinacionais. 13 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Com a chegada do regime golpista de 1964, foram criadas as condições para a volta dos ataques privatistas. Já em 1965, a ditadura militar promulgou três decretos-lei: um que restituiu as refinarias estatizadas aos seus antigos proprietários e outros dois que retiraram a petroquímica e o xisto do monopólio estatal. Em 1970, contrariando a essência da lei que instituiu o monopólio, a direção da Petrobras, cumprindo decisão do governo, reduziu o esforço exploratório, o que comprometeria o objetivo de atingir a autossuficiência nacional. “A autossuficiência no campo do petróleo, por mais desejável que seja, não é a missão de base da empresa”, declarou o então presidente Petroleiros debatem os rumos do movimento de greve durante a da Petrobras, general Ernesto Geisel. assembleia, em Campinas, São Paulo - 1983 Ao mesmo tempo, a ditadura flertava com as multinacionais do setor. O primeiro resultado foi a associação da Petrobras à Mobil Oil e à fissionais, os parlamentares e todos os setores sociais National Iranian Oil Company para formar a Hordo país para que retomemos juntos a luta: pela abolimoz Petroleum Company, com atuação no Irã. Em ção dos contratos de risco; pela restauração integral outubro de 1975, Geisel, agora do monopólio estatal do petróleo presidente da República, disse através da Petrobras; pelo conO governo Lula que as empresas multinacionais trole da população sobre os reestavam autorizadas a explorar cursos minerais e energéticos.” interrompeu petróleo no Brasil, anunciando a De 1977 a 1988, foram assio processo de adoção, pelo governo brasileiro, nados 243 “contratos de riscos”, dos “contratos de risco”. que resultaram em 79 poços esfacelamento Quatro anos depois, em deperfurados, em uma área de 1,5 que estava sendo zembro de 1979, um telex da milhão de quilômetros quadraPresidência da República deterpreparado pelos dos (superior à dos territórios da minou à Petrobras a criação das Inglaterra, Itália, Japão, Suíça, tucanos para vender a condições necessárias à particiGrécia e Portugal juntos), e inPetrobras. A partir de pação das multinacionais tamvestimentos de US$ 1,25 bilhão, bém na fase de produção. O obdos quais ingressaram no país então, salva do balcão jetivo era tornar os “contratos US$ 350 milhões. Um resultade privatrizações, a de risco” mais atrativos. No endo pífio. A Petrobras, no mesmo tanto, o país entrara na fase de período, aplicou US$ 26 bilhões, empresa cresceu e lutas pela redemocratização e perfurou 8.203 poços e descoalcançou resultados a decisão da ditadura provocou briu os campos gigantescos de fantásticos para o protestos. Marlin, Albacora e Barracuda — Em manifesto de 28 de fealém de outros localizados onde Brasil vereiro de 1980, os sindipetros vigoraram “contratos de risco”, (sindicatos de petroleiros) disnas áreas Sul-Tubarão, Estrela do seram: “Estamos levantando Mar, Coral e Caravela. a bandeira do ‘Petróleo é nosso!’, não pelo simples No governo do presidente Fernando Collor de prazer de uma nova luta, mas pela vontade de preMello, surgiu a proposta do “Emendão”, uma tenservar tudo o que foi conquistado com suor e sangue tativa de alterar a Constituição pela qual ele jurou de nosso povo.” fidelidade, que incluía a possibilidade de quebra do Uma resolução das associações de geólogos de almonopólio estatal do petróleo. O coordenador do guns estados e da Sociedade Brasileira de Geologia, Programa Nacional de Desestatização e presidente dizia: “Conclamamos todos os colegas, principaldo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico mente aqueles que trabalham na Petrobras e outras e Social (BNDES), Eduardo Modiano, disse que era empresas públicas, os sindicatos e associações propossível reverter a tendência majoritária no Con- 14 Capa Com a descoberta do pré-sal, a condição estratégica da Petrobras como esteio da soberania nacional foi elevada a um patamar nunca imaginado gresso Nacional contra a privatização da Petrobras. “Isso depende de emenda constitucional, mas acho que parlamentares e sociedade se sensibilizarão com o sucesso do programa de privatização e, aí, será viável a privatização da Petrobras”, declarou. A proposta recebeu, de pronto, o apoio do ministro do Planejamento, Paulo Haddad. A ideia seria enterrada pelo presidente Itamar Franco, que declarou, em reunião com representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE), que a Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce não seriam privatizadas. “Enquanto eu for presidente essas estatais não serão privatizadas”, declarou. Contudo, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC) assumiu o Ministério da Fazenda o assunto voltou à baila. “Esse assunto (a privatização da Petrobras) depende do Congresso, porque trata da questão do monopólio”, afirmou. No governo FHC, a ideia de privatizar a Petrobras surgiu oficialmente em 1996 quando Luis Carlos Mendonça de Barros, então presidente do BNDES — um tucano de alta plumagem —, desceu do muro para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma voz que deveria ser levada a sério; ele foi um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio gente como FHC e José Serra. A privatização não se concretizou, mas a aprovação da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de 1995, quebrou o monopólio estatal e iniciou o processo de abertura da indústria petrolífera e gasífera no Brasil. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu o processo de esfacelamento que estava sendo preparado pelos tucanos para vender a Petrobras, de acordo com José Sérgio Gabrielli, que assumiu a presidência da estatal. “A Petrobras estava sendo dividida em partes, estava em processo de esfacelamento. Eu acho que a empresa teria sido vendida se nós não tivéssemos interrompido esse processo”, disse ele. A Petrobras só alcançou tantos resultados (autossuficiência em petróleo, anunciada em 21 de abril de 2006) porque não foi parar no “balcão das privatizações”, destacou. Lula falou sobre a sensação de presenciar essa conquista da estatal. “Eu acredito que ser brasileiro, conhecer a história da Petrobras e viver o 21 abril de 2006 como eu vivi, eu acho que é uma dádiva de Deus”, afirmou. O presidente lembrou as críticas que a estatal enfrentou no decorrer de sua história. “Eu sei que a Petrobras desde 1953, com o decreto de Getúlio Vargas, foi vítima de críticas daqueles pessimistas que gostam de criticar tudo, daquele mesmo que disse que a Petrobras não ia dar certo”, comentou. Com a descoberta do pré-sal, a condição estratégica da Petrobras como esteio da soberania nacional foi elevada a um patamar nunca imaginado e ainda não totalmente dimensionado. * Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor, editor do portal Grabois. São de sua autoria, entre outras obras, as biografias de Maurício Grabois, Pedro Pomar e Carlos Danielli 15 Ed. 135 – Março/Abril 2015 ATAQUE À PETROBRAS Nova ofensiva, velhos argumentos! Davidson Magalhães, Luiza Erundina, Afonso Florence* Com 210 deputados e 42 senadores, foi criada em março a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras. Princípios publica a seguir artigo de três integrantes desta frente no qual defendem a estatal e apresentam argumentos contra as propostas da direita neoliberal que pretendem enfraquecer a empresa com o objetivo de privatizá-la A o longo da sua trajetória, dos primeiros poços de produção à vanguarda tecnológica da exploração de petróleo e gás em águas profundas, até atingir a camada do pré-sal, ela só tem acumulado êxitos, configurando-se num símbolo da excelência técnica e gerencial dos brasileiros. A Petrobras alcançou no ano de 2014 o título de maior produtora de petróleo entre as companhias de capital aberto, situando-se atualmente entre as dez maiores petroleiras do mundo. Este vitorioso itinerário consolidou-a numa posição estratégica na economia do país, representando hoje 15% dos investimentos e 10% do nosso Produto Interno Bruto (PIB). Por outro lado, devido às suas conquistas e performance, aliadas à descoberta e prospecção no présal, a estatal sempre esteve na mira de interesses escusos, alvo de ataques e tentativas de privatização. No passado recente, exemplos não nos faltam. No dia seguinte ao Natal do ano 2000, o Brasil foi surpreendido por uma notícia capciosa: o presidente da Petrobras, Henri Philippe Reichstul, anunciava 16 que a empresa mudaria seu nome comercial para Petrobrax. A pseudo justificativa do governo de FHC (PSDB) seria para “unificar a marca e facilitar seu processo de internacionalização”. Esta tentativa de caminhar rumo à privatização e desnacionalização da companhia foi desmascarada e o governo FHC foi obrigado a recuar. Quase quinze anos depois, no último dia 25 de fevereiro, se valendo da crise e turbulência no setor, resultante da operação Lava Jato, o senador José Serra (PSDB) recolocou em cena a velha política privatista e antinacional. Com argumentos toscos, que demonstram o completo desconhecimento da realidade da indústria petrolífera mundial e suas tendências, além de transvestir-se de cordeiro para disfarçar a fome de lobo faminto. Desmontar para privatizar A fala do senador tucano foi emblemática. Disse ele: “A Petrobras tem que ser refundada. Mudar radicalmente os métodos de gestão, profissionalizar dire- Capa Fotos: http://wenceslaujr.blogspot.com.br No último dia 24 de março foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras, na Câmara dos Deputados toria, conselho administrativo e rever as tarefas que exerce. Sua função essencial é explorar e produzir petróleo. No Brasil, a Petrobras diversificou demais e foi muito além do necessário (...). Hoje, ela atua na distribuição de combustíveis no varejo, nas áreas de petroquímica, fertilizantes, refinarias, meteu-se em ser sócia de empresa para fabricar plataformas e investiu até em etanol (...). O que dá prejuízo precisa ser enxugado. Vendido, concedido ou extinto”. Por diversos motivos merece resposta esta cantilena tucana, pois propõe a venda dos ativos de refino e distribuição para fazer caixa e financiar a produção de óleo. Como se essa fosse a solução redentora das atuais dificuldades da Petrobras. Um absurdo, oriundo de quem não sabe o que diz. Desconsidera por completo a natureza e especificidade dessa indústria que, definitivamente, não se trata de uma indústria qualquer. Não por acaso, em quase todos os países, a maior empresa é sempre uma petroleira. Por fim, petróleo é energia e base da química moderna; sem ele, não há soberania para um país de proporções continentais como o Brasil. O senador também desconhece conceitos técnicos básicos do mercado, como, por exemplo, o “custo de transação”, ou, que o valor, para ser gerado, necessita ser extraído e realizado, daí o porquê de a integração de atividades tornar-se imprescindível para a sobrevivência e o crescimento da Petrobras. Durante a década de 1990 o objetivo do governo foi “enxugar a Petrobras” para, em seguida, vendê-la ao melhor preço. Foi o pior momento da história da estatal, iniciado na curta presidência de Collor e implementado pelo presidente FHC ao longo de seus dois mandatos. Além dos baixos indicadores de extração, produção e refino, registraram-se naquele período três cenários negativos que afetaram o desempenho da companhia, direta ou indiretamente. Primeiro, coincidiu com o desamparo governamental que originou as dificuldades da indústria química brasileira que, apesar de tudo, resistiu e hoje se mantém como a sexta maior do mundo, graças à base construída anteriormente, porque nada foi feito no período tucano. Em segundo lugar, houve uma sensível deterioração da qualidade dos combustíveis automotivos. Em 1999, por exemplo, 20% de cada litro de gasolina vendido na cidade Depois de enfraquecer e tentar vender a Petrobras durante o governo FHC, agora tucanos como o senador José Serra (PSDB-SP) querem entregar a riqueza do de São Paulo estavam fora dos papetróleo brasileiro para grandes petrolíferas estrangeiras drões técnicos para o consumo. 17 Ed. 135 – Março/Abril 2015 E, finalmente, ocorreu a deterioração das condições de segurança operacional na Petrobras, entre 1999 e 2002. Resultou em dois naufrágios, com numerosos óbitos e dois acidentes ambientais que se tornaram os piores dos anais da companhia. Do poço à bomba Há outras questões determinantes afeitas ao tema. Nos últimos dez anos, entre as dez maiores empresas petroleiras mundiais de capital aberto, somente uma optou por abandonar o refino e a venda de derivados para se concentrar em E&P (exploração e produção). Todas as demais são integradas, assim como as maiores empresas do setor controladas pelo Estado. As “majors”, “super majors” e grandes estatais produzem do “poço de petróleo à bomba de gasolina”. Apenas as independentes norte-americanas e as médias empresas petroleiras, espalhadas pelas diversas bacias sedimentares produtoras no mundo, não dispõem de meios para refinar o que produzem; justamente, porque não têm caixa para fazê-lo. Será que todas elas estão erradas e só a ConocoPhilips acertou? A despeito da notória incapacidade dos economistas para prever o preço do petróleo, o capital petrolífero não costuma errar suas estratégias e seus cenários. Esso, Shell, Total e BP são empresas centenárias, sobreviveram a inúmeras crises. Pemex, Aranco, Petrochina, Statoil, Ecopetrol e Petrobras, pelo lado das estatais, em pouco mais de meio século, apoiadas em uma crescente capacidade de refino e distribuição, se içaram como as maiores competidoras, num oligopólio antes dominado pelas “sete irmãs”. Embora incapazes de saber qual será o preço futuro, todas elas entenderam que o preço do petróleo é cíclico; na verdade, profundamente cíclico. Para sobreviver aos ciclos e, a despeito deles, continuar a crescer, o capital se aproveita de outra especificidade da indústria: não se abastece carro com petróleo. Depois de achado e extraído, é preciso transportá-lo, refiná-lo, armazenar seus derivados e distribuí-los, para somente depois chegar ao seu uso final. A cada etapa, gera-se valor. A coordenação de uma série complexa de atividades diferentes é que permite a transformação do mineral num fluxo quase contínuo de produção. É a integração das partes que permite à petroleira se apropriar do valor gerado ao longo de toda a cadeia produtiva. E o somatório final não é pequeno. Ajudadas pelo aumento de preço, como na última década, jamais as petroleiras lucraram tanto. E não foi diferente para as estatais. A integração do poço à bomba, além disso, permite proteger-se durante as baixas. As petroleiras aprenderam muito cedo que, quando o petróleo está 18 com preço vil, ela ganha na venda de seus derivados (que são muitos) e na sua transformação química. Não é à toa que todas as grandes empresas do setor têm refinarias, meios de transporte e distribuição próprios. Além disso, Esso, Chevron, Shell, BP e Total também dispõem de importantes plantas petroquímicas. O mesmo acontece nas grandes estatais e, em particular, na China e no Oriente. É fácil entender a lógica da petroleira: a perda à montante será compensada pelo ganho à jusante. Em particular, com matéria-prima barata, o refino e a petroquímica geram enormes lucros. Basta ver o que aconteceu nos últimos anos nos EUA: um quarto de seu crescimento se deveu ao barateamento do gás natural e excesso de condensado decorrente. Avançar na crise O movimento de queda recente nos preços do petróleo já era sentido pelas grandes petroleiras. A reestruturação em curso será profunda e, como nas baixas anteriores, o resultado será uma concentração maior, com o desaparecimento dos competidores mais fracos e menores. Aquele capital petrolífero, que depende apenas da produção de um ou dois campos, que está na fronteira da tecnologia, que produz não convencionalmente, ou que não tem como valorizar seu petróleo, seja refinando, seja transformando-o em produtos de base para a petroquímica, será o primeiro a ser afetado. Os oportunistas e as empresas gigantes saberão aproveitar a ocasião de liquidação dos ativos para fortalecer suas posições. Uma onda de fusões e aquisições se avizinha e, pelo visto, quer que a Petrobras esteja do lado das perdedoras e vendedoras. Os vencedores serão sempre os mesmos. Aqueles que, há mais de um século, são capazes de desenhar uma estratégia contracorrente e avançar em tempos de crise. Desfazer-se do refino e distribuição, a esta altura, seria um erro estratégico primário jamais visto. Seria também entregar um ativo construído em mais de meio século a um preço necessariamente baixo. Capa As maiores empresas petroleiras mundiais de capital aberto produzem do “poço de petróleo à bomba de gasolina” a sucessivos ciclos econômicos em razão da inação de suas elites. A indústria petrolífera do Brasil, com a Petrobras à frente, e o pré-sal criam uma nova e grande oportunidade de se mudar a história, mas, pelo visto, parte da elite (por desconhecimento, ou má fé) ainda não se deu conta de que já estamos no Pior é permitir que, por século XXI. vias tortas, o capital exterOs neoliberais capitaneados pelos tucanos são no – o único que teria conungidos pela grande mídia a paladinos da moralidadição de adquirir as instade. Mesmo se recusando a assinar a CPI do HSBC, da lações – assuma ativos que privataria, da aprovação da reeleição de FHC, denhoje fazem a Petrobras ser tre outras, e tendo diversas lideranças de destaque a maior distribuidora de nacional com seus nomes elencados em escândalo. combustíveis automotivos A pretexto de combater o deplorável esquema de do país, fornecedora da corrupção instalado na companhia há cerca de vinte quarta (ou quinta) maior anos, segundo um dos detratores, retomam a ofensifrota de veículos no munva contra a Petrobras e os interesses nacionais. do e sexta maior petroquíEsta nova ofensiva ocorre com fortes reflexos no mica. É bom lembrar que Brasil, num contexto de crise econômica internacioo Brasil ainda importa dois nal, de instabilidade política e de investida conservaterços dos fertilizantes que utiliza em sua agricultura. dora. Tentam impor uma agenda social regressiva e Um campo ainda a ser potencializado entre as múltide fragilização da companhia e do seu prestígio em plas vertentes do mercado. razão da operação Lava Jato. O rebaixamento da Petrobras no A energia do país ranking do grau de investimento Na condição de é mais um fator agravante, geum “quase” Estado Mesmo sob fogo cerrado, a rando importantes entraves ao Petrobras acumulou em 2014 extrativo-exportador, financiamento dos seus investidestacados êxitos operacionais. mentos. Os interesses antinaciopor cinco séculos, o A produção de petróleo e gás nais buscam paralisar a Petropaís esteve submetido alcançou a marca histórica de bras com sérias consequências 2,670 milhões de barris equivapara a empresa e o país. a sucessivos ciclos lentes/dia; o pré-sal produziu em As forças nacionais e demoeconômicos em razão média 666 mil barris de petrócráticas precisam retomar a inileo/dia; a capacidade de procesciativa política. Reafirmar nosso da inação de suas samento de óleo aumentou em compromisso com a soberania elites. A indústria 500 mil barris/dia; a produção popular e o respeito e preservapetrolífera do Brasil, de etanol cresceu 17%, atingindo ção dos bens públicos. Combater 1,3 bilhão de litros. Em setembro e punir corruptos e corruptores. com a Petrobras à de 2014 a Petrobras tornou-se a E, prioritariamente, articular frente, e o pré-sal maior produtora mundial de peamplas mobilizações em defesa tróleo dentre as empresas de cada Petrobras e a sua integralidacriam uma nova e pital aberto, superando a Exxonde, uma empresa cuja energia é grande oportunidade Mobil (Esso). decisiva na luta por um projeto Restringir-se à exportação de de se mudar a história nacional de desenvolvimento óleo bruto e não valorizar a crescom soberania, inclusão social e cente produção é um retrocesso participação popular. histórico, um absurdo em termos de política industrial e um crime contra o patrimônio nacional. Do * Luiza Erundina é deputada federal (PSB) por São pau-brasil ao café, passando pelo ouro, o açúcar e a Paulo, ex-prefeita da cidade de São Paulo. Davidson borracha, o Brasil sempre esteve condenado à perifeMagalhães é deputado federal (PCdoB) pela Bahia, ria, exportando produtos com baixo valor agregado. ex-presidente da Bahiagás. Afonso Florence é Na condição de um “quase” Estado extrativo-exdeputado federal (PT) pela Bahia, 3° vice-líder do portador, por cinco séculos, o país esteve submetido PT e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário. 19 Ed. 135 – Março/Abril 2015 À LUTA! Adilson Araújo, Divanilton Pereira e José Maria Rangel* A disputa política no Brasil atingiu alturas perigosas. Graves ameaças pairam sobre o país. Uma classe dominante apátrida, liderada por Washington, patrocina a instabilidade constitucional, promove o ódio de classe e, mais uma vez, opera para tentar entregar a Petrobras e o pré-sal ao capital estrangeiro. Diante dos atuais acontecimentos políticos no Brasil recorremos a um rápido exame da atual geopolítica, particularmente de seus vínculos com a atividade petrolífera. Um exercício necessário para melhor identificar as questões de fundo que norteiam a ação política da direita brasileira em conluio com a grande mídia 20 Capa V ivemos um tempo de transição para uma multipolaridade no mundo, no qual novos centros políticos e produtivos exercem importante protagonismo. Uma disputa geopolítica entre o estágio anterior, unipolarizado pelos EUA e aliados, e uma nova conformação entre as nações em desenvolvimento, destacadamente as do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Um cenário que reproduz tensões e incertezas, e que sob os efeitos da crise capitalista em curso faz também intensificar o acirramento da concorrência intercapitalista e os conflitos políticos. O petróleo na política Não é segredo que a geopolítica tem uma forte relação com a atividade petrolífera. Sejam os países exportadores ou grandes consumidores desse combustível fóssil, suas economias dependem das flutuações da oferta e dos preços do petróleo. A principal locomotiva econômica do mundo hoje, a China, é a maior consumidora de energia do mundo – responde por 19% da demanda mundial, com tendência de ser a maior importadora de petróleo nos próximos anos. Atualmente importa 59% de suas necessidades. Para garantir o seu desenvolvimento e o espaço na nova geopolítica, promove uma grande ofensiva para garantir sua segurança energética. Incluindo inúmeras parcerias, aquisições e contratos em vários continentes do mundo, inclusive com as reservas do pré-sal do Brasil. A Rússia, após o desmonte de um período privatista no setor, retomou com Putin o controle público sobre o petróleo e gás. Para isso, alterou a legislação e adotou mecanismos que retirou o poder das petroleiras ocidentais. No entanto, pelo seu papel na quadra internacional e em função de sua fortíssima dependência das receitas do petróleo, o país sofre os efeitos de um dumping que tem provocado uma queda significativa no preço do barril do petróleo. É evidente que o enfraquecimento do governo russo (um dos pilares do BRICS), assim como da Venezuela, interessa sobremaneira aos EUA, que cotidianamente impõem novas sanções aos dois países. 21 Ed. 135 – Março/Abril 2015 A estratégia dos EUA com soberania energética. Um invejável e disputado status que atrai a sanha dos grandes conglomerados internacionais, sobretudo a dos EUA. Os EUA são os maiores consumidores de petróleo Diante disso, o então presidente Luiz Inácio Lula do mundo (21 milhões de barris-dia) e há pouco imda Silva aprovou a estratégica legislação para a exportavam 60% da demanda interna. Recentemente ploração da província no pré-sal. Nela estabeleceu-se esse percentual teve uma redução significativa em o regime de partilha, a Petrobras como operadora função da utilização das novas tecnologias na exploúnica e o Fundo Social. São partes-chave, pois delas ração do shale gas e do shale oil. No entanto, contiviabilizam-se a fiança para um nuam com um importante grau Novo Projeto Nacional de Desende dependência externa. E para volvimento, no qual as questões assegurar o controle sobre suas Só uma elite liberal, estruturantes como a educação, fontes externas eles já demonscomo a brasileira, a ciência, a tecnologia, a saúde e traram do que são capazes – ina indústria nacional se destacam. vadiram o Iraque, o Afeganistão, insiste em Os derrotados até hoje conspibombardearam a Líbia, semeiam desmantelar um ram contra essa conquista. a guerra em todo o Oriente Médio – e não hesitam também, patrimônio nacional, Petrobras: velhos e através de suas grandes petroleidesnacionalizar novos desafios ras, de auferirem os mesmos oba legislação petrolífera jetivos patrocinando legislações A Petrobras como meio preantinacionais ou privatizações a atual e entregar a ponderante dessa atividade mais seu favor. exploração uma vez está diante de grandes Não restam dúvidas de que desafios. Desde que surgiu eno controle sobre as reservas e a do pré-sal às frenta cotidianamente seus adprodução mundial de petróleo multinacionais. É um versários históricos, aqueles que está no centro da agenda e das afirmaram que não havia petróleo disputas geopolíticas, sobretudo despropósito no Brasil e que este não teria canessa fase de transição da ordem sem similaridade pacidade para produzi-lo. Os meseconômica e política mundial. mundo afora mos que, sob a liderança de FerNessa realidade de explosivas nando Henrique Cardoso/PSDB, tensões os países não abrem mão tentaram privatizá-la. de suas reservas, ao contrário, Atualmente ela busca superar os efeitos de um ampliam outros domínios e reforçam suas empresas perverso esquema de corrupção, somente hoje dese legislações. coberto, e o grave impacto da redução do preço do No Brasil, bem como na Venezuela e Argentina, barril do petróleo. Essa nova circunstância exige uma classe dominante vocacionada historicamente um enfrentamento combinado, pois sob o pretexto para o entreguismo, insiste mais uma vez em desde combate à corrupção, os históricos entreguistas mantelar a espinha dorsal dessa atividade, a estaestão na ofensiva política contra a empresa mais tal Petrobras. As circunstâncias pelas quais passa a uma vez. GESTÃO da Petrobras – que deve ser enfrentada com Só uma elite liberal, como a brasileira, insiste em todo rigor – não justifica a colossal campanha para desmantelar um patrimônio nacional, desnacionalisua desmoralização. zar a legislação petrolífera atual e entregar a exploração do pré-sal às multinacionais. É um despropóO Brasil, o pré-sal e a Petrobras sito sem similaridade mundo afora. Fragilizar uma empresa do porte da Petrobras – O Brasil com suas potencialidades naturais, que mesmo com as revisões em curso, é detentora imenso mercado consumidor e uma economia diverdo maior programa de investimento de uma empresificada, integra o importante bloco político-econôsa ocidental (US$ 220,6 bilhões entre 2014 e 2018); mico do BRICS e exerce nele um papel de grande conquistou ano passado, entre as companhias de carelevância. pital aberto, a condição de maior produtora de petróE um fator que potencializou essa sua condição leo no mundo (2 milhões e 661 mil barris-dia); tem foram as descobertas no pré-sal, uma das mais imum índice de sucesso exploratório de 75% no pós-sal portantes em todo o mundo na última década. Um e de 100% no pré-sal; terá suas atuais reservas de cenário que projeta o país a se tornar uma nação 22 Capa Números da Petrobras/ Variáveis 2002 2013 Valor de mercado (31 de dezembro) R$ 54 bilhões R$ 215 bilhões Lucro Líquido anual R$ 8,1 bilhões R$ 23,5 bilhões Investimentos realizados R$ 18,8 bilhões R$ 104,4 bilhões Número de trabalhadores próprios 46 mil 86 mil Produção de óleo no Brasil (barris/dia) 1,5 milhões 2,5 milhões Reservas provadas (barris) 11 bilhões 16 bilhões Venda de derivados (barris/ dia) 1,6 bilhões 2,1 bilhões Investimentos da Petrobras % ano % ano 15,6 bilhões dobradas em 2022; apenas 8 anos após a descoberta do pré-sal, já produz nessa província 700 mil barris-dia, que, antes no pós-sal, levou-se 31 anos para produzir 500 mil barris-dia – é um crime contra o futuro do nosso povo. Denunciamos essas forças da “casa grande” como os maiores operadores desse esquema entreguista. Nas tabelas ao lado seguem informações sobre o desempenho da Petrobras e dos efeitos expansivos de seus investimentos na economia brasileira, comparando-os entre períodos históricos. *1 Esses recursos viabilizam diversas parcerias com as universidades brasileiras. Particularmente com a UFRJ, que em associação com o Centro de Pesquisa da Petrobras (CENPES) e outras operadoras criaram o Rio de Janeiro, o maior complexo inovativo da América Latina. *2 Estima-se em 300 mil trabalhadores indiretos até o ano passado nesse complexo naval. As consequências da operação Lava Jato já estão afetando esse inédito ciclo de crescimento. *3 Setor de óleo e gás emprega mais de um milhão de pessoas no Brasil. Elevou o PIB em 0,7% – 1999 2,2% – 2013 Elevou a indústria nacional em 3,1% – 1999 10% – 2013 Correspondiam em relação a todos outros investimentos feitos no país 4,5% – 1999 13% – 2013 A participação do setor de óleo e gás no PIB do país 2% – 2000 13% – 2014 Expansão do conteúdo local elevou-se de 48% – 2003 60% – 2010 É esse extraordinário patrimônio brasileiro e de sua magnífica capacidade indutora à atividade produtiva no país que está sob ameaça. Nenhuma nação no mundo, desenvolvida ou em desenvolvimento como a nossa, abre mão de tê-la ou controlá-la. Formação bruta de capital fixo elevou-se de 3% – 2000 13% – 2014 Os maus feitores 40 mil diretos – 2013 237 mil terceirizados (2013) 9,3% – 2003 18,7 – 2006 US$ 160 milhões (20012003) US$ 1,243 milhões (20112013)*1 US$ 1,7 bi – 2002 US$ 21,7 bilhões – 2012 Geração de empregos*3 Representa das compras nacionais (máquinas e equipamentos) Recursos para ciência, tecnologia e inovação Exportação de petróleo Encomendas à indústria naval 62 navios (20062009) 97 entre navios e plataformas (2009-2010) 2mil – 2000 85 mil – 2014*2 e Empregos Há quase um ano a Petrobras está submetida a um grande processo investigativo. Um forte esquema de corrupção que funcionava havia anos, dentro e fora da empresa, foi desbaratado. Alguns poucos gestores, tecnocratas corruptos, detentores de ilhas de poder no sistema Petrobras, se locupletaram de recursos públicos. A classe trabalhadora, em particular os 86 mil, entre petroleiras e petroleiros, exigem a mais rigorosa apuração e condenação dos culpados. No entanto, sabemos separar o joio do trigo e não faremos coro com aqueles que historicamente foram e continuam como seus inimigos. O PSDB, juntamente com seus aliados internos e de fora do país, se aproveita dessa circunstância e em conluio com a grande mídia desencadeiam uma intensa campanha que visa a desmoralizar e fragilizar a instituição Petrobras. É a velha estratégia que busca criar um ambiente favorável aos seus intentos privatistas. Não à toa o senador Aloysio Nunes, PSDB de São Paulo e candidato a vice na chapa de Aécio Neves, apresentou 23 Ed. 135 – Março/Abril 2015 para identificar o inimigo principal da nação neste o Projeto de Lei nº 417-2014 requerendo alterar o momento. atual marco regulatório do petróleo. Não admitiremos que os interesses alheios ao Essa iniciativa desnuda os reais interesses desse nosso povo, em particular das consórcio oposicionista liderado trabalhadoras e dos trabalhapor Fernando Henrique Cardodores, determinem uma agenso. Eles estão longe de represenda política regressiva no país. O tar os valores éticos e morais, Brasil precisa é de mais avanços pois seu passado os condena. Na e não de retrocessos. verdade conspiram para transConsideramos que está na ferir o controle das estratégicas ordem do dia a articulação de reservas do pré-sal às grandes uma ampla frente democrática petrolíferas norte-americanas. progressista que, nucleada pela Repudiamos também, como esquerda, galvanize os moviparte dessa empreitada política, Repudiamos, como mentos sociais, a intelectualidaa fragilização de uma boa parte parte dessa empreitada de, a cultura, partidos políticos da cadeia produtiva, inviabilie amplas lideranças populares. zando, sobretudo, as grandes política, a fragilização Uma coalizão patriótica para liempresas da construção do país, de uma boa parte derar a resistência e impor uma ameaçando os 500 mil empregos contraofensiva. que elas detêm. Um bilhete preda cadeia produtiva, As entidades sindicais namiado para as estrangeiras que inviabilizando, cionais que representamos são já se alvoroçam. sobretudo, as partes integrantes desse esforço. Estão embandeiradas na deA disputa política é o grandes empresas da fesa do mandato da presidenta cerne da questão construção do país, Dilma Rousseff e da legalidade constitucional. Na defesa da inEm seu conjunto, essa ofenameaçando os 500 tegridade do sistema Petrobras, siva contra a Petrobras e a indúsmil empregos que elas da engenharia nacional e dos ditria nacional é uma expressão reitos sociais. Participam da luta detêm. Um bilhete da polarização política pós-eleipor uma reforma política demotoral, na qual a direita consecupremiado para as crática – fim do financiamento tivamente derrotada, insiste em estrangeiras que já se eleitoral pelas empresas – e pela não aceitar o veredito popular regulação da mídia. que reelegeu a presidenta Dilma alvoroçam Convictos dessa direção e Rousseff. unificados em torno dessas banNessa direção, para eles, vale deiras principais, potencializatudo, inclusive quebrar a ordem remos a resistência popular, ultrapassaremos essa constitucional. Não se importam com interrupção desafiadora travessia e retomaremos as condições dos enormes efeitos multiplicadores e indutores para o crescimento econômico, o fortalecimento da da atividade petrolífera para o país – aqui demonssoberania nacional e os direitos sociais. trados. Desprezam o retrocesso que geraria para o Brasil, comprometendo os destinos dos empregos, VENCEREMOS! da educação, da saúde, da ciência e a tecnologia. É uma repetição trágica de sua vocação, de seu DNA. * Adilson Araújo, presidente nacional da A direita renega o papel da Petrobras nesse processo. Temos lado A classe trabalhadora brasileira não está alheia a essa disputa, pelo contrário, é partícipe histórica dela e exerce seu protagonismo no curso dessa batalha atual. Quem enfrentou a ditadura e o neoliberalismo tucano acumulou forças e experiências o suficiente 24 Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). Divanilton Pereira, secretário de relações internacionais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). José Maria Rangel, coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP). Fontes: PETROBRAS – DIEESE-FUP Economia 25 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Experiências da austeridade econômica Renildo Souza* Reuters Trabalhadores fazem greve e manifestações contra a política de austeridade imposta pela União Europeia A crise econômica na Europa oferece exemplos importantes para se entender e debater os rumos da economia brasileira. Mas desde já é possível apontar que depois da derrota eleitoral de outubro de 2014, os partidos de oposição, a mídia e os agentes do mercado financeiro no Brasil querem a revanche para impor seu projeto neoliberal, em contradição com os interesses democráticos, nacionais e populares. A economia – seja pelos desafios de sua conjuntura concreta e imediata, seja pela retórica da interpretação catastrofista – é instrumentalizada para tentar desestabilizar o governo Dilma 26 A economia é, efetivamente, uma arma decisiva dessa guerra política. Nesse sentido, no Brasil, hoje, a crítica, indispensável, de setores progressistas a alguns aspectos das mudanças de política econômica e à proposta de ajuste fiscal não pode perder de vista as duras circunstâncias da luta política em curso, em torno da legitimidade de Dilma Rousseff na Presidência da República. A crítica deve servir à busca de uma nova política que contribua, simultaneamente, para a recuperação do crescimento econômico e para a defesa, na sociedade, do governo Dilma. A austeridade econômica, através de contração fiscal, privatizações e desestruturação neoliberal do mercado de trabalho, foi recomendada, imposta e concretizada em diversos países, principalmente na Europa, em meio à crise global desencadeada em 2007-2008. Decorrido um prazo razoável, é possível verificar os saldos dessa experiência. Por exemplo, a Grécia, depois de cinco anos de aplicação da receita de austeridade e privatizações, colheu a piora acumulada da produção e do desemprego, alastrando miséria em sua população trabalhadora: velhos, com redução ou cancelamento dos proventos das aposentadorias; jovens sem qualquer perspectiva de emprego; crianças sem escola; população sem assistência à saúde. Então, qual é o impacto desses fatos sobre os discursos e os atos dos círculos dominantes, internacionalmente, no âmbito das instituições e do poder político e na esfera financeira? Metodologicamente, as provas e as evidências oferecidas pelos resultados Economia das políticas de austeridade deveriam ser confrontadas com as promessas e expectativas antecipadas pelos seus defensores. Se o problema é o desajuste fiscal assim imaginado, então com a adoção das medidas de austeridade dever-se-ia obter a solução de equilíbrio das contas públicas. Contudo, ao que se assiste? Em vez de diminuir o peso fiscal sobre os diversos países, as medidas de austeridade têm impulsionando a recessão e a queda da arrecadação tributária, além de, em alguns momentos no passado, registrar-se picos recordes das taxas de juros impostas pelos credores para a aceitação de rolagem de dívida pública de países como Grécia, Espanha e Portugal, agravando-se a crise. Assim, o gráfico abaixo mostra o aumento, em vez da diminuição, do tamanho do endividamento público de países europeus, em contraste com as promessas dos programas de austeridade fiscal. Grécia: austeridade ou renascimento Depois da vitória e posse do novo governo, liderado pelo partido de esquerda Syriza, foram retomadas as negociações entre a Grécia e a chamada Troika (Banco Central Europeu, BCE; União Europeia, UE; e Fundo Monetário Internacional, FMI). Durante a campanha eleitoral, os novos governantes anunciaram a exigência de cancelamento (ou redução) da dívida externa grega. Denunciou-se a inviabilidade de pagamento. Condenaram-se os resultados econômicos e sociais gerais e desastrosos das políticas de austeridade aplicadas nos últimos Níveis da dívida como porcentagem do PIB (2008-2013) Fonte: Oxfam, 2013, p. 18. 27 Ed. 135 – Março/Abril 2015 cinco anos. Relembrava-se ainda o episódio do pero afrouxamento monetário do BCE, os custos das dão da dívida da Alemanha em 1953. Na Grécia, dívidas serão esmagados, facilitando os encaminhaas políticas de austeridade, aplicadas desde 2009, mentos da dívida grega. O BCE fixou em -0,2% sua aumentaram, em vez de diminuir, a crise da dívitaxa básica de juros, desde setembro de 2014. Como da. Assim, hoje a dívida alcançou 165% do Produto início de uma futura guerra cambial no mundo, os Interno Bruto (PIB). O forte recuo do PIB, nos úlbancos centrais da Suíça, Suécia e Dinamarca, neste timos anos expressou-se, inversamente, como auprimeiro trimestre de 2015, baixaram os juros para mento do indicador dívida/PIB. taxas negativas, a fim de evitar a valorização de suas Agora, nas novas negociações, algumas parcemoedas, em face da massiva emissão monetária do las de pagamento tiveram sua cobrança adiada por BCE. As taxas negativas de juros estão se alastranquatro meses. Em contrapartida, a Troika insiste em do pelo sistema bancário europeu diante da deflação demonstrações concretas do novo governo em tordos preços e da estagnação econômica. no de aumento de impostos, combate à evasão fisEntretanto, em quaisquer circunstâncias, haverá cal, manutenção das privatizações e das reformas sempre a oposição da Alemanha e dos mercados fitrabalhistas realizadas. O novo governo não poderá nanceiros a qualquer flexibilização substancial nas atender a exigências de superávit negociações com os gregos. Arguprimário em proporções que agramentar-se-á sobre o efeito demonsvem ainda mais a recessão. Na detração, o mal exemplo, para outros A Grécia evitou o claração da União Europeia sobre devedores. Citarão o risco moral. Esplano do governo o acordo provisório de fevereiro de te risco é uma noção da ortodoxia 2015, com a Grécia, consta uma econômica que consiste no “incenanterior de triplicar novidade: “As instituições [as partivo a endividar-se, com grandes o superávit primário tes signatárias] tomarão em conta riscos, porque se sabe que não será as circunstâncias econômicas em obrigado a pagar”, ou melhor: é innos próximos anos. 2015 para o nível da meta do sucentivo ao descumprimento de conEm síntese, no perávit primário”. No acordo de tratos, sem sanções. O risco moral primeiro round, 2012, a meta de superávit era de também diz respeito à assunção de 4,5% do PIB. Agora, a Grécia evielevados riscos privados, confiando o novo governo tou o plano do governo anterior de no socorro governamental: privaticonseguiu bloquear triplicar o superávit primário nos zação de ganhos garantida pela sopróximos anos. Em síntese, no pricialização de prejuízos. novas medidas meiro round, o novo governo conde austeridade seguiu negociar e bloquear novas e manteve o Espanha: flagelo do medidas de austeridade e manteve desemprego o financiamento da sua economia. financiamento da sua Em meados deste ano, ocorrerão economia Havia déficit público na Espaas negociações mais importantes e nha? Não. Em 2007, o país exibia decisivas. um superávit de 1,9% do PIB. E a Talvez o novo governo da Grédívida pública, era explosiva? Novamente, não. A cia poderá, em perspectiva, dispor do começo da relação dívida/PIB era de modestos 36,3%. Mas a recuperação econômica da Europa, a partir do próviragem foi brutal em 2009: o país registrou 11,2% ximo ano, 2016, sobretudo em função das resposdo PIB como déficit, enquanto a dívida também tas aos novos estímulos monetários do BCE. Essa cresceu, embora relativamente pouco, para 53,9%. E expectativa poderá ter já, imediatamente, um efeito as medidas de austeridade resolveram algum problepolítico favorável à Grécia. No mês de março deste ma? Não. A partir de 2010, a austeridade só contriano, o BCE afinal assumiu seu papel de emprestador buiu para piorar tudo, inclusive as contas públicas. A de última instância, com o programa de injeção de despesa com juros da dívida pública alcançou 3,43% liquidez na economia (QE: quantitative easing), addo PIB em 2013, ou seja, 38 bilhões de euros, enquirindo títulos de dívidas governamentais e outros quanto a folha de salários para todos os funcionários bônus, que totalizarão 1,1 trilhão de euros ao longo do governo central foi de 33,3 bilhões de euros (SEN; do tempo programado. Depois de anos de relutância, CARRETERO, 2013). o BCE decidiu seguir os exemplos do Federal ReserO governo social-democrata do PSOE (Partido ve System (Fed, banco central dos Estados Unidos), Socialista Operário Espanhol) inicialmente adodo Banco da Inglaterra e do Banco do Japão. Com 28 Economia Videoplastika Manifestação em setembro de 2012 no Palácio de São Bento, em Lisboa, contra a troika e a política de austeridade tou políticas anticíclicas no enfrentamento da crise. Todavia, a partir do segundo trimestre de 2010, os governantes aceitaram as pressões da Troika e passaram a adotar medidas de austeridade, como redução de salários de funcionários públicos e congelamento de aposentadorias. Em novembro de 2011, o parlamento estabeleceu, na Constituição, regras de limitação da dívida e do déficit do setor público. Nesse mesmo mês, o PSOE foi punido pelas urnas e a direita, o Partido Popular (PP), assumiu o governo. A austeridade, então, foi radicalizada. Além do agravamento do arrocho fiscal, foram implementadas reformas neoliberais no mercado de trabalho, na esfera financeira e na administração pública. O começo da recuperação em 2009 foi abortado com os cortes orçamentários, em 2010. O setor mais afetado pelas medidas recessivas tem sido a indústria, com queda da produção desde o final de 2011. Essa relação estreita entre a austeridade e o desempenho recessivo da indústria é um alerta para o Brasil, onde a produção manufatureira há anos tem estagnado e declinado. O investimento na Espanha interrompeu seu crescimento desde o terceiro trimestre de 2010 e tem caído a partir de 2012. O desemprego alastrou-se e tornou-se um flagelo na Espanha. Entre 2008 e 2012, foram eliminados 3,8 milhões de postos de trabalho. A taxa de desemprego registrou o recorde histórico de 27,2% no primeiro trimestre de 2013. Em 2012 e 2013, foram demitidos 290 mil funcionários públicos. As vítimas do desemprego de longa duração, por mais de um ano, são 56% de todos os sem emprego. O governo tem diminuído os valores do seguro desemprego e dificultado o acesso a esse benefício. Desde 2010 até junho de 2013, o salário mínimo, descontada a inflação, caiu 6,1% (SEN; CARRETERO, 2013). Crise em Portugal: com progressistas e conservadores A experiência portuguesa está carregada de lições do cruzamento entre economia e política. O sociólogo português Paulo Pedroso (2014, p. 2) observa que, a partir do impacto da crise global sobre Portugal, em 2008, sucederam-se dois governos do Partido Socialista e o atual, de centro-direita, com correspondentes três estratégias distintas: primeiro (2008), apoio ao setor financeiro; depois (2009), tentativas 29 Ed. 135 – Março/Abril 2015 de alívio para problemas econômicos e sociais; e, por vens subiu de 13,3% para 34,3% entre 2008 e 2013. A fim (a partir de 2010), arrocho fiscal. austeridade atingiu todos os setores, a exemplo das Sob o ataque da direita às medidas anticíclicas, reduções nas verbas para a saúde pública. no contexto de aprofundamento da crise, a margem A privatização vem de longe, desde a década de da nova vitória eleitoral do Partido Socialista, em 1980. Depois de 2010, foram privatizadas empresas outubro de 2009, foi muito restrita. O novo governo de serviços públicos, energia, transporte e de indúsera minoritário e, diferentemente de seu discurso na tria manufatureira. Ademais, a adesão às Parcerias campanha eleitoral, propôs um orçamento, baseaPúblico-Privadas (PPPs) tem aumentado substando na austeridade defendida pela oposição, avalia cialmente os gastos públicos, diferentemente das Pedroso. Assim, foram adotadas políticas crescenexpectativas favoráveis às PPPs. temente recessivas: 1) em março de 2010, o assim chamado Programa de Estabilidade e Crescimento Caminho diante da austeridade (PEC 1); 2) o PEC 2 em maio de 2010; e 3) o PEC 3 em 2011. A Islândia, palco de experimentos extremados de Em março de 2011, um novo programa (PEC 4) liberalização financeira, sofreu tremendo impacto da foi rejeitado pelo parlamento, o gocrise global e em 2008 o seu sisteverno renunciou, houve eleições e ma bancário quebrou. A economia a direita assumiu o poder político, entrou em recessão e o desempreaté hoje. O gabinete direitista, forgo atingiu 11,9%. Mas em plebisA Islândia, palco mado pelo Partido Social Democito a população decidiu recusar de experimentos crático e pelo Partido do Centro as receitas da austeridade. Foram extremados de Democrático Social, aprofundou as impostos controles sobre os fluxos medidas de austeridade do Memode capitais e regulação da esfera filiberalização rando de Entendimento, assinado nanceira. E daí, o que ocorreu? A financeira, sofreu entre Portugal e a Troika. Assim, o Islândia cometeu suicídio? Desde país foi empurrado para a recessão. 2011, a economia recuperou-se e tremendo impacto A fragilidade econômica geral a taxa de desemprego oscila entre da crise global e em de Portugal já era patente antes 3% e 4%. Todavia, é claro, a Islân2008 o seu sistema da crise. Irrompido o colapso india é tão pequena, sua economia é tão limitada, que serve de escassa ternacional, ele teve de aderir às bancário quebrou. comparação com economias maiodiretrizes da União Europeia. O Mas em plebiscito a res e infinitamente mais complecaráter pró-cíclico das políticas de xas como a brasileira. austeridade constrangeu a demanpopulação decidiu Depois da pequena Islândia, da interna. Historicamente, Porrecusar as receitas o que dizer dos grandes, Estados tugal tem convivido com déficits Unidos e China? Em matéria de comerciais e por isso o apelo à únida austeridade déficit, os americanos têm pouco ca saída para o crescimento econôa dizer sobre austeridade, já que mico através das exportações não sua média histórica de déficit púé compatível com as condições de blico nos últimos 40 anos é superior a mais de 3% competitividade externa das empresas do país. do PIB. Em janeiro de 2009, o governo Obama criou O governo do primeiro-ministro Passos Coelho um plano de estímulos fiscais de US$ 775 bilhões tem conseguido impor reformas no Código do Trabapara recuperar a economia. Os Estados Unidos, polho, em alinhamento com as exigências da Troika. As tência imperialista, deram origem à crise de 2007negociações sindicais coletivas foram especialmente 2008, mantêm o seu sistema financeiro desregulado, atacadas. Foram reduzidos e cancelados muitos diespeculativo e gigantesco que constrange o desenreitos trabalhistas. O maior benefício para o desemvolvimento econômico soberano de muitas nações, pregado teve uma redução de 28% em seu valor, além e construíram uma sociedade com desigualdades de nova redução de 10% depois de seis meses sem de renda e riqueza abissais. Entretanto, cabe obseremprego. O corte é de 44% para o valor do seguro var os seus debates. No mês de fevereiro passado, desemprego para menores de 30 anos e que estejam ao apresentar suas ideias para o orçamento de 2016, na condição de desemprego de longa duração (um o presidente Barack Obama, nos seus dois últimos ano). Em 2013, menos de 15% da força de trabalho anos de mandato, com discurso voltado para a disera coberta por contratos coletivos. A taxa de desemputa eleitoral da sua sucessão, anunciou mudanças prego foi de 17% em 2013. Mas o desemprego dos jo- 30 Economia Iara Falcão - ABr Protesto contra austeridade em Montreal na política fiscal. Assim, em vez de cortes orçamentários, divulgou a proposta de imposto obrigatório de 14% sobre os lucros das empresas americanas no exterior e algum aumento de impostos para os ricos (a conferir). O governo chinês lançou em novembro de 2009 um pacote de estímulos fiscais de US$ 586 bilhões, cerca de 17% do seu PIB de 2007. Agora em 2015, o governo chinês tem tomado medidas para ampliar o crédito, baixar os juros e implementar novos projetos de infraestrutura (estradas, ferrovias, água e energia). E o déficit orçamentário? A meta do déficit fiscal de 2014 foi de 2,1% do PIB. Cogita-se reversão disso? Discute-se superávit? Nada disso. Especula-se que essa meta de déficit será, na prática, ampliada em 2015. A França, segunda maior economia da União Europeia, não consegue desvencilhar-se da sua trajetória de reiterados déficits fiscais elevados. Em 2006 e 2007, antes da crise global, ela tinha incorrido em um déficit dentro dos limites estabelecidos pela União Europeia, embora tenha descumprido isso sistematicamente nos anos anteriores, desde 2001. O governo Hollande, para tentar melhorar a arreca- dação, adotou algumas medidas de tributação sobre as grandes fortunas e heranças. A França não pode alinhar-se com a Alemanha, para aprofundar a austeridade, em face do elevado desemprego dos franceses, no contexto político de grave isolamento do governo e avanço da direita, com a Frente Nacional. Em 2014, novamente a França não conseguiu viabilizar seus compromissos de meta fiscal. A Comissão Europeia foi obrigada a suspender a multa contra ela e a “conceder-lhe” uma espécie de moratória para que o país consiga, em 2017, um déficit orçamentário abaixo do limite fixado para a União Europeia, ou seja, 3% do PIB. A França prometeu um corte orçamentário estrutural, no exercício de 2014, desconsiderando flutuações conjunturais, em 0,3%, mas só conseguiu 0,1%. Falácias da austeridade A direita, sempre, desde os ataques do reacionário Thomas Malthus à assistência das Leis dos Pobres na Inglaterra no século XIX até os dias de hoje, defende a austeridade econômica como revigoramento moral. Mas o desemprego, a pobreza e as desigualdades 31 Ed. 135 – Março/Abril 2015 provocadas pelas políticas de austeridade abatem a honra e a dignidade das suas vítimas, os rejeitados e excluídos, os humilhados e ofendidos. Por isso, Robert Shiller, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2013, critica as declarações do primeiro-ministro da Inglaterra, David Cameron, de que a austeridade cria indivíduos independentes, livres, afirmativos, proativos. Para Shiller, em vez da austeridade, “a coisa importante é adotar qualquer tipo de estímulo fiscal que aumente a criação de empregos e ponha os desempregados de volta ao trabalho”. A austeridade é caracterizada por quatro falácias, denuncia o economista francês Robert Boyer (2012, p. 21). O diagnóstico de que a crise decorre da irresponsabilidade dos gastos públicos, em vez das bolhas especulativas da finança privada, é a primeira falácia. A segunda consiste na crença de que as contrações fiscais conduzirão no longo prazo a taxas de juros menores, atratividade de investimentos, melhoria na balança comercial, evitando-se a suposta inócua substituição do gasto privado pela despesa pública do keyenesianismo no curto prazo. A terceira é recomendar que os demais países, como Grécia e Portugal, tenham o mesmo desempenho da Alemanha, desconsiderando as diferenças tecnológicas, produtivas, financeiras e institucionais. A quarta falácia é a crença no transbordamento dos resultados supostamente positivos da austeridade em um país sobre as nações vizinhas. Os defensores das políticas de austeridade afirmam que as medidas fiscais expansionistas simplesmente deslocam o gasto privado. Troca-se o dispêndio privado pelo público, sem qualquer efeito sobre a totalidade do gasto no país. Por isso, a renda agregada não se altera. Este é o argumento que ficou conhecido como crowding out, ou seja, deslocamento do setor privado. Mas, na verdade, com recessão e desemprego, o gasto público (na falta de dispêndios privados, inclusive o investimento das empresas) gera mais atividade e ocupação. Dessa forma, há ampliação do gasto e, por conseguinte, da renda, no âmbito agregado. Além disso, no caso de aumentos da dívida pública, com a economia em desemprego, esses empréstimos tomados pelo governo, utilizados para gastos públicos, não deslocam os investimentos privados realmente em declínio. O argumento da chamada equivalência ricardiana é uma alusão à hipótese do economista clássico David Ricardo de que os contribuintes podem reduzir seus gastos por causa da perspectiva de aumento de impostos, se o governo aumentar a dívida pública. Famosos e ultraconservadores economistas dos Estados Unidos, desde os anos 1970, têm exagerado absurdamente a hipótese da equivalência ricardia- 32 na. Eles insistem na ineficácia dos gastos governamentais, resultantes do aumento da dívida pública. O que o governo acrescentaria de gasto na economia seria diminuído, em proporções equivalentes, pelo setor privado. Para esses conservadores, as pessoas decidiriam poupar, em vez de gastar, para pagar os esperados aumentos de impostos, decorrentes das necessidades advindas da elevação da dívida pública. Cabe ainda observar que os gastos públicos em saúde, educação, pesquisa e infraestrutura econômica (transportes, energia etc.) têm forte impacto na redução de custos e elevação da produtividade, favorecendo o aumento do produto e da renda. É claro que os programas de privatização subtraíram do Estado importantes instrumentos para seu planejamento e ação. Estamos falando aqui das empresas estatais, que poderiam ser mobilizadas para investimentos, inovação tecnológica e exportações. * Renildo Souza é bacharel e mestre em Ciências Econômicas e doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde atualmente é professor, com dedicação exclusiva, na Faculdade de Economia Referências bibliográficas BOYER, Robert. “Las cuatro falacias de las políticas de austeridad contemporáneas: el legado keynesiano perdido”. In: Revista de Trabajo, ano 8, número 10, jul.dez. De 2012. KRUGMAN, Paul. “Lo que ha conseguido Grecia”. In: El País, 28 de fevereiro de 2015. Disponível em: http://economia.elpais.com/economia/2015/02/27/ actualidad/1425038281_290126.html. OXFAM International. La trampa de la austeridad, setembro de 2013. PEDROSO, Paulo. Portugal and the Global Crisis. The impact of austerity on the economy, the social model and the performance of the state. Berlin Friedrich-EbertStiftung, abril de 2014. 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É preciso desestabilizá-los ao ponto da capitulação para provar que não há alternativa. Recuos estratégicos e consciência alerta da luta classista são os sinais apontados à esquerda 33 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Maquiavel prevê que “dificilmente é derrotado aquele que sabe reconhecer as suas próprias forças e as do inimigo”; Sun Tzu acrescenta que “é preciso sempre comparar cuidadosamente o seu exército com aquele a ser enfrentado para determinar em que as forças são superiores e em que são inferiores” (BONATATE, Luigi. A Guerra, Estação Liberdade, 2001, p. 72). A balada pela crise capitalista global, a economia mundial continua a se degradar, em direção contrária à ideia de “recuperação” difundida pelo establishment americano e repetida por seus papagaios mundo afora. São estimativas sombrias do FMI e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para 2015, feitas em outubro e novembro de 2014, que, como sabemos, sempre estão a serviço dos banqueiros e ricaços. Vão no sentido contrário ao do discurso otimista que até então prevalecia com a ideia da “retomada” após 2009. Note-se que se denomina Herança, nuvens e incertezas o relatório de outubro passado do FMI, onde se lê que a hipótese mais admitida agora é de uma economia internacional poder continuar enfrentando um período prolongado de baixo crescimento. Como analisam agudamente Maryse Farhi e Daniela Prates, as designações do estágio atual na crise da economia mundial por economistas vinculados integralmente ao neoliberalismo são emblemáticas: estamos diante de um “novo normal” (Mohamed El-Erian, ex-chefe da Pacific Investment Management, PIMCO, maior gestora de recursos do mundo), de uma “estagnação secular” (Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA), ou vivenciamos uma “nova mediocridade” (Cristine Lagarde, atual diretora-gerente Na análise percuciente do FMI). Tais conceitos “continua(e pioneira) de Yao rão, por muito tempo, sendo denominações utilizadas para descrever Yang, prestigiado reitor a evolução da economia mundial”, da Escola Nacional de à medida que não se vislumbre alteração de rumos [1]. Desenvolvimento e Mas são evidentes as implicadiretor do Centro para ções da resposta norte-americana a Reforma Econômica à grande crise e a seu declínio da condição de potência hegemônica. da China (Universidade Repassá-la à periferia do capitalisde Pequim), (...), o mo para que nações e trabalhadores paguem a conta é seu objetivo. mundo inteiro se Em matéria geoeconômica, os encontra assolado por EUA continuam a se beneficiar da forças deflacionárias; sua moeda, cuja valorização, ou não, depende de sua política moe se a China entrar no netária e cambial, onde sua própria turbilhão, não haveria taxa de juros também pode determinar seu comando socomo “desta vez” seus bre a política cambial nos paíparceiros comerciais a ses que não possuem moeda conversível – caso do Brasil e socorrerem da imensa maioria dos países do globo. Ou seja: a chamada hierarquia (das moedas) do sistema monetário internacional restringe (ao máximo, mas não impede) a capacidade de outros países praticarem uma política econômica independente! China luta contra deflação [2] Ademais, um novo fenômeno sublinha a continui- 34 Federal Reserve dade da gravidade da crise. Trata-se da marcha de uma deflação nas principais economias do planeta. Na análise percuciente (e pioneira) de Yao Yang, prestigiado reitor da Escola Nacional de Desenvolvimento e diretor do Centro para a Reforma Econômica da China (Universidade de Pequim), e segundo assinalara (“A China consegue evitar a deflação?”, Valor Econômico, 27-01-2015), o mundo inteiro se encontra assolado por forças deflacionárias; e se a China entrar no turbilhão, não haveria como “desta Janet Yellen (à dir.) admitiu que a “recessão de 2007-2009” deixou “cicatrizes duradouras vez” seus parceiros comernas famílias estadunidenses mais pobres que ainda têm que se recuperar depois de mais ciais a socorrerem. O problede cinco anos” de anunciada recuperação oficial da economia ma crucial para o governo da China, portanto, é se ela poderá safar-se da deflação “por conta própria”, diz ele. Para Rodríguez, a chamada “recuperação norteYang argumenta ainda que, apesar da atual de-americana” está mais no aumento dos principais saceleração da economia chinesa ter sido induzida índices da bolsa de valores de Nova Iorque e menos por políticas econômicas nacional, nos dois últimos na melhoria substantiva das condições de vida da anos o governo chinês “promoveu um aperto da popopulação, intensa precarização do trabalho, delítica monetária e da política fiscal na esperança de semprego, queda dos salários. “Inclusive, na esfera neutralizar os efeitos adversos do grande pacote de financeira” – afirma ele –, “surgiram novas barreiestímulos econômicos lançado como resposta à crise ras para a acumulação de capital. Se é certo que o financeira mundial de 2008”. índice Standard & Poors (que cotiza as ações das 500 Ora, no último dia 28 de fevereiro o BC chinês maiores empresas dos EUA) continua registrando anunciou novo corte, de 0,25% na taxa de juros, aumentos, a acumulação de lucros por ação e diviexatamente para evitar desaceleração maior de sua dendos é cada vez menor”. economia (e a deflação), ainda que ano passado a De outro ângulo, o marxista britânico Michael poderosa economia chinesa tenha registrado cresciRoberts assinala que mesmo a presidenta do Fed, mento de 7,4% e projetado cerca de 7% do PIB (ProJanet Yellen, foi obrigada a admitir que a “recessão duto Interno Bruto) para este ano. de 2007-2009” deixou “cicatrizes duradouras nas famílias estadunidenses mais pobres que ainda têm Deflação nos EUA? que se recuperar depois de mais de cinco anos”, de anunciada recuperação oficial da economia! [4]. Isso mesmo! Na mesma direção vão os EUA: a inflação norte-americana soma mais de trinta meses Novo governo Dilma: “concessão” não abaixo de 2%, o objetivo do Federal Reserve (Fed, é “capitulação” Banco Central dos EUA). Até agora, não existem indícios de um aumento do nível dos preços. Ao con“Aquele que souber quando pode lutar e quando trário, a deflação (queda de preços) se transformou não pode lutar será vitorioso” (TZU, Sun & SUN, Pin. em uma ameaça real na ainda economia de maior A arte da guerra. Edição Completa, Martins Fontes, tamanho: os preços do consumo ficaram em apenas 2010, p.40). 0,4% em dezembro de 2014, sua maior queda desde Junto às alterações recentes da política monetáo final de 2008. Em termos anuais, a inflação dimiria do Banco Central Europeu – em amplo sentido nuiu 0,8% ao se colocar em 1,3% em novembro pasde desvalorização do euro e consequente valorização sado [3]. e crescimento da especulação nos países periféricos 35 Ed. 135 – Março/Abril 2015 – a deterioração das condições macroeconômicas no mento econômico médio pífio; da forte polarização Brasil se intensificou. A depauperada situação ecoeleitoral presidencial; do constatar da atual (e nefasnômica dos EUA, a estagnação do Japão e a eurota) divisão e desorientação claras no comando do PT depressão (Michael Roberts) descartam um papel [7].(Importa ainda recordar que a presidenta Dilma importante às exportações brasileiras, em cuja pauta enfrentou eleições presidenciais com dois ex-presipersiste o grande peso das commodities. dentes de seu partido, o PT, militantes em São Paulo, Com um déficit nas contas externas (conta corpresos, injustamente!) rente do balanço de pagamentos), crescente de cerAo lado do processo crescente de desindustrialica de mais de US$ 90 bilhões (2014), e apesar das zação do país, agora mesmo vivenciamos uma dereservas internacionais volumosas (cerca de US$ 380 terioração das transações correntes no balanço de bilhões), uma redução da taxa de juros para inverpagamentos (contas externas), aliado a um cenário são da política monetária poderia levar à redução de internacional que deve ainda considerar (para além entrada de capitais, e à deterioração dessas mesmas da crise e novas “bolhas financeiras” para todo o lareservas, ainda que parte delas correspondente à indo) [8] o crescimento contínuo do desemprego em versão especulativa. De outra parte e em relação ao escala mundial (OIT); a estimativa de crescimento quadro fiscal, a emissão de novo econômico negativo na Rússia [9] endividamento público, tentado em este ano; a marcha de desestabiliRejeitamos 2013, poderia de fato implicar mazação na Venezuela etc. enfaticamente a nipulação para rebaixamento por Pertinente relembrar nossa ex“agências de risco” da oligarquia periência recente: bem ao invés do posição que acha financeira para novos empréstimos “espetáculo de crescimento” proque “Dilma capitulou externos, com novas implicações na metido pelo ex-presidente Lula no recomposição do buraco na conta início de seu governo, a recessão foi ao mercado corrente [5]. Mais que evidente que clara no primeiro trimestre de 2003 financeiro”. A nosso a política anunciada pelo novo e or(-1,1%) e no segundo (-0,23%), todoxo ministro da Fazenda agravaapesar de o resultado anual do PIB juízo, tais pontos rá a situação social do país. ter sido 1,1%. Conforme ainda o de vista carregam Nessa aparente prescrição de IBGE-Seade, o desemprego naqueforte dosagem de retrocessos, rejeitamos a ideia dile ano atingiu por volta de 20% da fundida em setores de esquerda PEA (População Economicamente economicismo, de que existe um Brasil “pós-neoAtiva) na Grande São Paulo. Ora, incompreensão e liberal”: as decisões tomadas de a “humanidade” sabe que a média sentido regressivo demonstram do crescimento dos governos de Luprecipitação cabalmente a imensa bobagem exla ultrapassou os 4%! Mais ainda: pressa por essa opinião. Além de as conquistas sociais das políticas tudo dogmática – vez que risca do dicionário a papúblicas dos governos de Lula constituíram-se num lavra transição e a mobilidade de certas conquistas avanço reconhecido internacionalmente, numa época num país historicamente subdesenvolvido –, essa de regressão civilizatória indiscutível. formulação quer esconder, por exemplo, a situação Por suposto, sempre estivemos lutando contra animalesca dos presídios superlotados do Brasil, os retrocessos e ataques aos direitos dos trabalhaagora mesmo especialistas em gerar decapitações, dores, o que também fizemos desde (uma espécie seguidamente! Ora, a nossa situação social – cujos de consentimento impositivo) a Carta aos Brasileiêxitos dos 12 anos são inegáveis – continua explosiros, até a sua crítica aberta. A análise dita “Dilma va, onde as desigualdades sociais podem ser vistas, capitulou” não passa de completa ingenuidade em em outro exemplo, na diferença da renda per capita matéria de luta de classes, inteiramente esquemátido Brasil versus a da Coreia do Sul [6]. ca. Luta de classes implica concessões em variados Rejeitamos enfaticamente a posição que acha momentos em que elas se estabelecem; os recuos que “Dilma capitulou ao mercado financeiro”; assim temporários obrigam a reconhecer que nelas não como a que de pronto já anuncia uma “viragem neohá ascensão permanente – completa ilusão; que liberal” do governo Dilma. A nosso juízo, tais pontos são muitas vezes imperiosas e necessárias variadas de vista carregam forte dosagem de economicismo, alianças (“instáveis, inconsequentes e vacilantes”, incompreensão e precipitação frente aos resultados LENIN, 1920), ou até mesmo termos que sofrer de político-ideológicos do quadro real de forças, de um derrotas – para nós reveses também mais ou menos Congresso Nacional mais conservador; de um crescitemporários. 36 Economia Certas interpretações se aninham na ideia do “fim da história”, ou a decretam quando mal começaram as batalhas. Assim, mesmo hoje tendo que enfrentar um cenário externo real bem diferente do de Lula, então de evolução favorável ao crescimento econômico, parece óbvio repetir que a história está em aberto, como sempre esteve, por isso também a conduta tática correta (ou a mais ajustada possível) é no sentido de principalizar a defesa do governo Dilma e exercer daí (e a partir daí) o comando da crítica a retrocessos, e da luta de massas e dos trabalhadores – esse o fator decisivo. Política no comando, nenhuma trégua ao golpismo! Portanto, a questão nodal no Brasil hoje é: política no comando para preservar as principais conquistas do ciclo político iniciado por Lula e Dilma, bem como pôr no horizonte a continuidade dos avanços reclamados na última campanha eleitoral. Repetindo, lutando contra os retrocessos. Fora disso uma derrota severa pode advir, ainda que pareçam inevitáveis certas concessões neste quadro dado. E como se sabe “concessão” e “capitulação” são categorias muito diferentes – particularmente na terminologia da guerra. Como dissertou Mao Tse-tung: “Epistemologicamente falando, a fonte de todas as opiniões errôneas sobre a guerra radica nas tendências idealistas e mecanicistas”. (...) As pessoas... se satisfazem com um discurso infundado e puramente subjetivo, baseando-se em um só aspecto ou manifestação temporária” [10]. Claríssima para nós a manipulação farsesca e hipócrita dos esquemas de corrupção na Petrobras, estatal querida pelo povo e decisiva grande empresa para a nação. A amplificação midiática dos interesses burgueses no doentio antipetismo é absolutamente indisfarçável – o que implica atacar a esquerda como um todo. A propósito, correntes da direita neoliberal como a do senador José Serra (PSDB) e o jornal O Globo (em editorial) defenderam abertamente a privatização da Petrobras, assim revelando a estratégia que utiliza a campanha moralista. Assim, a campanha claramente golpista da direita neoliberal brasileira e seus aliados forâneos contra o mandato da presidenta Dilma Rousseff é a mais pura manifestação da compreensão deles sobre o que é luta de classes. Visam com clareza a objetivos internacionais, serviçais do imperialismo (bloqueio da integração latino-americana; desarticulação BRICS etc.); e notadamente nacional: interrupção do ciclo de 12 anos que conquistamos, inobstante a pressão furiosa do capital financeiro internacional e nacional e do jogo bruto do imperialismo. E contra tal campanha estão se insurgindo os trabalhadores, os patriotas e democratas – os verdadeiros construtores do Brasil – para que organizemos e passemos à contraofensiva! A unidade da esquerda e estes setores tornaram-se questão decisiva para levar adiante a luta pela emancipação nacional e social. *Sérgio Barroso é médico e doutorando em Economia Social e do Trabalho (Unicamp), além de membro do Comitê Central do PCdoB. É autor de A grande crise capitalista Global 2007-2013: gênese,conexões e tendências e Desenvolvimento: Ideias para um Projeto Nacional, ambos pela Editora Anita Garibaldi Notas [1] Ver: “Perspectivas das economias avançadas”, de Fhari e Prates. In: Plataforma Social, 22 de fevereiro de 2015. [2] A definição tradicional da depressão econômica mundial envolve fundamentalmente: a) uma queda severa do crescimento do produto; b) elevado desemprego; c) movimentos deflacionários (queda acentuada nos preços). Cada depressão “submerge” numa outra e singular situação – não se repete, mas as determinações e características centrais são recorrentes. Ou seja: as crises sistêmicas do capitalismo e os fenômenos sociais (e também as evoluções políticas) que as acompanham. [3] Ver o importante artigo “O fantasma da deflação norte-americana” (Carta Maior, 10 de fevereiro de 2015), do economista mexicano Ariel Noyola Rodríguez. [4] “Dónde está la recuperación económica?”, de M. Roberts. In: SinPermiso, 28 de setembro de 2014. [5] Cf. “Memorando sobre a conjuntura brasileira”, de J. C. Assis, indispensável reflexão sobre a situação nacional. Em: http://jornalggn.com.br/blog/alex-prado/memorando-sobre-a-conjuntura-brasileira [6] Em 1960 a República Popular da Coreia era metade da nossa; o que praticamente se igualou em 1970. Em 2012 Coreia do Sul e o Brasil registravam: US$ 32.400 versus US$ 11.875 em 2012. [7] Em: “Dilma e Nixon”, o sociólogo A. Almeida mostra pesquisa onde de 79 deputados e senadores do PT, 40 são contra a proposta de ajuste fiscal enviada por Dilma. Constatando que 2015 “será um ano muito difícil”, para Almeida a presidente é insubstituível na comunicação com a opinião pública e o parlamento. Ver: http:// www.valor.com.br/cultura/3939762/dilma-e-nixon [8] Essa é a opinião do norte-americano Robert Shiller, prêmio Nobel de economia; do economista sul-coreano, de Cambridge (Inglaterra) Ha-Joon Chang; e do ex-economista-chefe do BIS (Banco de Compensações Internacionais), o canadense William White. De acordo com White, “Os mercados de ações estão em níveis recordes de alta. Bônus livres de risco estão em níveis recordes de baixa. (...) Há uma grande possibilidade de problemas à frente por causa desses acontecimentos” (Valor Econômico, 21 de julho de 2014). [9] A economia russa cresceu 0,4% em 2014, e deve negativar entre 3 e 4% do PIB em 2015 (FMI); a inflação de alimentos atinge 22,8% ao mês atualmente. [10] Ver: “Escritos militares selecionados”, de Mao. In: GREENE, R. & ELFFERS, J. Las 33 estrategias de la guerra. Oceano, 2007, p.186. 37 Ed. 135 – Março/Abril 2015 O golpe dos golpistas e a Nos dias 13 e 15 de março, o Brasil viu desfilar por suas ruas dois projetos antagônicos, cujas raízes se estendem ao logo da história. Enquanto no dia 13 o campo democrático e progressista empunhou as bandeiras da legalidade democrática, da garantia dos direitos trabalhistas e sociais e da defesa da Petrobras, a direita, no dia 15, deu uma demonstração de força propagando o golpismo em grandes manifestações. Alguns pronunciamentos, de ambos os lados, expressam a luta política histórica que se trava no país U Osvaldo Bertolino* m marciano que tivesse chegado à Terra pelo Brasil no dia 15 de março para estudar a humanidade certamente anotaria em sua agenda que política é uma das coisas ruins que se inventaram por aqui. Afinal, ele viu desfilar pelas 38 ruas do país grupos com os baixos instintos desencadeados, abarrotados de atitudes sórdidas, a boca crispada pelo ódio soltando os maiores palavrões da língua portuguesa e os olhos turvados de rancor. A aparência do triste espetáculo não definiu bem o que estava em jogo, mas, examinado com mais precisão, Brasil pôde-se constatar a sua essência — a natureza exata da luta de classes, o campo preciso em que ela se exerce e os seus componentes históricos. Inicialmente, é bom tomar nota de algumas trovoadas dos dois principais próceres da direita na atualidade logo em seguida às manifestações: Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso (FHC). O derrotado candidato presidencial, falando em nome das lideranças dos partidos direitistas, declarou que é essencial a união das oposições, como no dia 15, para avaliar “a gravíssima crise na qual está mergulhado o país”. No mesmo tom, o ex-presidente tucano disse que é preciso “apertar o cerco” à presidenta da República, Dilma Rousseff, e responsabilizar também o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo que “aconteceu na Petrobras”. Outro registro digno de nota são os dados do perfil dos manifestantes captados pela pesquisa do instituto Datafolha, principalmente o elevado número de 82% de eleitores de Aécio Neves (76% do total dos manifestantes tinham curso superior e 68% renda igual ou superior a 5 salários mínimos). Com essas anotações, fica mais fácil identificar a cor ideológica das bandeiras agitadas nas manifestações (defesa explícita do abuso de autoridade no curso da “Operação Lava Jato” mal traduzida como “luta contra Paulo Pinto/ Fotos Públicas resposta democrática a corrupção”, crítica aos programas sociais e rompimento da legalidade democrática), pista essencial para se entender o que o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira definiu, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, como ódio de classes de cima para baixo. Essa fotografia fica ainda mais nítida quando posta ao lado das imagens das manifestações de dois dias antes, organizadas pelas centrais sindicais e por outros movimentos sociais. Embora com críticas duras às ações da área econômica do governo, a defesa da Petrobras, da Reforma Política e da democracia foram pontos que contrastaram fortemente com as bandeiras do dia 15. Adilson Araújo, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), diz que as manifestações do dia 13 defenderam essencialmente a governabilidade e o direito constitucional. “A classe trabalhadora compreende que é necessário ganhar as ruas. Nós temos, sim, o compromisso de disputar, neste Congresso mais conservador, uma agenda positiva que permita fazer com que o Brasil dê continuidade ao ciclo mudancista iniciado por Lula”, afirmou. O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Wagner Freitas, reforçou que a defesa da legalidade democrática foi o ponto central dos pronunciamentos dos trabalhadores. “A eleição já aca- 39 Ed. 135 – Março/Abril 2015 bou. Temos um processo de desenvolvimento imporconquiste corações e mentes da maioria dos brasitante para o Brasil”, disse ele. João Pedro Stédile, leiros. A grande dificuldade é transformar essas teum dos coordenadores do Movimento dos Sem-Terra ses em propostas políticas, uma vez que os partidos (MST), foi além ao dizer que a tese do impeachment que fazem parte do campo conservador são notórias é algo ilegítimo, ilegal. “Eles são burros, a direita é expressões da corrupção. Isso não significa, no enburra, porque ao levantar a bandeira do impeachment tanto, que essa tática da direita esteja ultrapassada; ela dá para a esquerda o dever de defender o legalisalguns setores da população têm marcas profundas mo. Se a bandeira do impeachment aumentar, temos dos anos e anos de propaganda anticomunista. que ir para todas as praças e assembleias do Brasil No Brasil, a história republicana está marcada defender a legalidade, a Constituição brasileira”, pelo desrespeito da direita à organização do regime diagnosticou. democrático. Diante das adversidades, o recurso ao A tentativa da direita de vincular Dilma à golpismo tem sido recorrente, passando por cima do corrupção na Petrobras para gerar pretextos ao recruprincípio de que o direito se fundamenta em relações descimento da ofensiva contra o governo foi criticada sociais e surge como garantia para a convivência potambém pela presidenta da União Nacional dos Eslítica civilizada. “O PCdoB (Partido Comunista do tudantes (UNE), Vic Barros. “Não Brasil) sempre mostrou que estaconcordamos que essa investigação mos diante de uma grande ameaA luta “contra a seja instrumentalizada por setores ça golpista. Por isso, devemos deconservadores que querem privatifender a democracia e o mandato corrupção” e a zar a Petrobras e usá-la para desesde Dilma Rousseff, assim como os exploração do tabilizar a democracia brasileira”, direitos trabalhistas, e combater a conservadorismo de disse ela, acrescentando que os dicorrupção com uma Reforma Políreitos sociais devem ser preservatica democrática, levando em consetores da população dos. “Nós fomos às ruas e conquista o sistema de financiamento de para incentivar o tamos essa vitória. Agora seguimos campanhas”, diz Renato Rabelo, em frente por mais direitos para presidente do Partido. ódio “antipetista” garantir os 10% do PIB (Produto Nas manifestações do dia 15, — derivação do Interno Bruto) para a educação e essa característica esteve presente, para aprovar uma reforma uniao passo que no dia 13 os partidos anticomunismo— versitária democrática em nosso e as entidades dos movimentos têm sido país”, afirmou. sociais apareceram com fisionoinsuficientes para As fotografias dos dias 13 e 15, mias bem marcadas. Os setores portanto, revelam um cenário de progressistas entendem que esses viabilizar um projeto fundo com dois polos históricos meios democráticos são essenque conquiste brasileiros, com traços nítidos de ciais para que as massas populares luta de classes. Afora a vulgarizaaprendam as técnicas do poder. corações e mentes ção desse conceito, uma tentativa Com eles, a ocupação de espaços da maioria dos de criar a ideia de que entre ricos na esfera política do país deixa de brasileiros e pobres existe apenas a disputa ser um fenômeno exclusivamente para conservar ou adquirir o que palaciano, de cúpula. No período se considera um direito, ele é uma iniciado com Lula presidente, houlupa de precisão sobre a disputa política, mostrando ve uma ascensão dessa prática — um dos principais sua feição adquirida no processo que reelegeu Dilma motivadores do ódio “antipetista”. Rousseff. O que se vê, no primeiro plano, é a ofensiva Essa dicotomia ficou mais visível no Brasil após a da direita como uma ameaça em desenvolvimento, Revolução de 1930, quando a direita adotou abertamas com limitações para criar um movimento sufimente o bonapartismo como método de luta política. cientemente amplo para galvanizar a nação e subA explicação plausível para isso são os avanços da inmetê-la às suas premissas. dustrialização do país, que passou a mobilizar mais Contudo, “a luta contra a corrupção” e a explorecursos humanos e técnicos. Consequentemenração do conservadorismo de setores da população te, a dinâmica capital-força de trabalho formou na para incentivar o ódio “antipetista” — derivação sociedade uma consciência política mais elevada; e do anticomunismo historicamente disseminado no também uma tendência ditatorial conservadora que país —, na tentativa de ampliar seu escopo político, aparece e reaparece continuadamente. Um dos motêm sido insuficientes para viabilizar um projeto que tes da direita, nesse jogo, é a propagação da tese de 40 Brasil José Cruz-ABr Entrevista de Dilma no dia dezesseis de março de 2015 .Após as manifestações, os esforços do governo para mostrar uma agenda positiva são ignorados pela mídia que os partidos políticos são destituídos de conteúdo ideológico, embora frequentemente se estabeleçam exceções — como no caso do Partido Comunista do Brasil. Essa ideia, claro, exagera a realidade, como esclareceu Friedrich Engels no prefácio ao livro A luta de Classes na França, de Karl Marx: “A ironia da história põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se chamam, vão a pique com a legalidade criada por eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon Barrot (líder político do governo de Luiz Bonaparte): ‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.” A intenção da direita, com essa tese, é passar a impressão de que os partidos brasileiros são sacos de gato nas mãos de negociadores profissionais, que o presidente só consegue governar comprando votos — em suma, que o sistema político brasileiro simplesmente não funciona. Há deformações horrendas, é verdade, que poderiam ser corrigidas em uma Reforma Polícia democrática, mas, no mundo das verdades, as coisas são bem diferentes. Os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, autores do livro Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional, realizaram um extenso estudo das relações entre o presidente e o Congresso desde a promulgação da Constituição de 1988; concluíram que os partidos políticos brasileiros são disciplinados. Na média, 90% dos deputados votam rigorosamente de acordo com a orientação partidária. Embora presidencialista, o sistema brasileiro guarda muita semelhança com os parlamentarismos europeus: nos dois casos o Executivo controla a agenda política e comanda o processo de criação de leis no Congresso. A verdade é que os partidos são ligados a grupos de interesses e, não por acaso, recebem tratamentos diferenciados dos meios de comunicação. Nas manifestações essa constatação ficou nítida; a cobertura da mídia no dia 13 foi morna, enquanto no 15 ela escancarou o apoio às bandeiras da direita. “Grande aparato midiático e econômico, em campanha há mais de 2 meses, inflou a mobilização contra o governo de Dilma Rousseff. Grupos das camadas da população que desde a campanha de 2014 se colocaram raivosamente contra o ciclo político iniciado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2003 e continuado por Dilma vieram às ruas destilando ódio, preconceitos e intolerância fascistizantes”, diagnosticou Renato Rabelo. Em meio ao mar de lágrimas de crocodilo que se formou com as manifestações do dia 15 contra o fictício “mar de lama” no país, a presidenta Dil- 41 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Fotos: Agência Brasil Após o fim de semana de manifestações, setores progressistas continuaram com agenda de mobilização pela reforma política ma anunciou um pacote anticorrupção enviado ao do setor produtivo, buscando, inclusive, ampliá-la”, Congresso Nacional e lançado oficialmente dia 18. diz a nota. Uma das mais importantes medidas é a que prevê São ações essenciais, porque os problemas poa tipificação do crime de “caixa 2” nas campanhas líticos do país não são, aparentemente, algo que se eleitorais e a elaboração de um Projeto de Lei que possa resolver com o tempo. Na teoria, a atuação institui a obrigatoriedade de ficha limpa para todos constante e paciente da democracia — com eleios servidores públicos dos poderes Executivo, Legisções, separação dos poderes e exercício da cidadania lativo e Judiciário. — vai, pouco a pouco, limpando a vida política, deA iniciativa não foi recebida com gentis muito senvolvendo um verdadeiro espírito público e sepaobrigado pela direita por ser um remédio amargo rando o joio do trigo. Contudo, já se passaram trinta para ela. O pacote contém ainda uma Proposta de anos desde o último presidente militar e trinta e seis Emenda à Constituição (PEC) para possibilitar o conanos desde que o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi fisco de bens oriundos de atividade revogado — tempo mais que de socriminosa, improbidade e enriquebra para se aprender como funcioA direita, com seu cimento ilícito. Se o seu trâmite for na uma democracia —, e o que se bem trabalhado politicamente, o conseguiu de concreto é a realidaaparato midiático, resultado será de grande valia para de contraditória que existe hoje: de tenta emparedar a democracia brasileira. E obrigaria um lado, um governo apoiado peDilma inflando o a oposição a dar tiros nos pés toda las forças progressistas e, de outro, vez que se posicionasse contra ele. um condomínio de direita que luta “caso Petrobras” e Esse é um ponto que o goverpara golpear o progresso social. ignorando outros no deve olhar com atenção, na Na mídia brasileira, a teoria do avaliação de Renato Rabelo, que, tempo como fator para aperfeiçoar ralos de escândalos em nota, propôs a construção de a democracia funciona ao contrário: muito maiores — “uma frente ampla com todas as com o passar dos anos as coisas pioforças possíveis do campo demoram. Se há algo com o qual se pode como o sistema crático e patriótico, interessadas contar com cem por cento de certede financiamentos na defesa da democracia, da ecoza no Brasil de hoje é a capacidade privados de nomia nacional e da retomada do midiática de pôr em circulação, cacrescimento”. Seria uma iniciativa da vez mais e com intervalos cada campanhas eleitorais que se constituiria, também, pela vez menores, alguma “denúncia” ação constante da presidenta Dilestrondosa. É uma ofensiva sem ma, apoiada em um núcleo político precedentes. E o fazem de modo plural “para pactuar uma recomposição da base pounilateral, monopolista. Os grupos que dominam com lítica que assegure ao governo maioria no Congresso poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil Nacional”. “De igual modo, cabe à presidenta liderar pretendem controlar, ao mesmo tempo, o trabalho a reaglutinação da base social que apoiou sua reedos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicaleição, nomeadamente trabalhadores e empresários ção, a produção cultural, as informações prestadas 42 TEATRO DO ABSURDO: faixa em inglês pedindo “intervenção militar” revela o caráter da direita por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal dos cidadãos e as ações do Ministério Público. A direita, com seu aparato midiático, tenta emparedar Dilma inflando o “caso Petrobras” e ignorando outros ralos de escândalos muito maiores — como o sistema de financiamentos privados de campanhas eleitorais. A resposta a essa ofensiva pode vir da frente ampla proposta por Renato Rabelo, levantando “bandeiras que respondam aos anseios mais vivos e sentidos por todos aqueles que têm compromisso com o Brasil e lutam por mais conquistas: defesa da democracia, da legalidade, do mandato legítimo e constitucional da presidenta Dilma; defesa da Petrobras, da economia e da engenharia nacional; combate à corrupção, fim do financiamento empresarial das campanhas; e pela retomada do crescimento econômico do país e garantia dos direitos sociais e trabalhistas”. Se houver essa compreensão costurando as hostes governistas, pode estar começando talvez o capítulo mais decisivo de toda essa triste história de recrudescimento dos ataques golpistas. Com a reeleição da presidenta, o Brasil sinalizou que, apesar das duras realidades econômicas e sociais, continuará andando na direção mais acertada para transformar-se em um país melhor, derrotando um projeto de governo que prescreve exatamente aquilo que se recomendaria para mandar o país de volta ao seu lamentável passado. Em um cenário assim, o componente político conta muito, mas é preciso observar também o peso da economia. A mídia tem martelado sem parar que o país caminha inexoravelmente para o precipício, jogando nos largos ombros do governo a responsabilidade exclusiva pelos efeitos da crise mundial. Com essa informação, não se pode fazer vistas grossas para o poderio de envenenamento de amplos setores da sociedade dos pelotões raivosos da mídia. É Já se passaram trinta anos desde o último presidente militar e trinta e seis anos desde que o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi revogado — tempo mais que de sobra para se aprender como funciona uma democracia bom lembrar que estamos assistindo a uma espécie de refilmagem do cenário de ampliação dos setores médios da sociedade iniciado no período do governo do presidente Juscelino Kubitscheck que serviram de massa de manobra para os golpistas de 1964. Outro aspecto parecido foram as quedas bruscas do PIB no governo João Goulart. A paralisia econômica que está exaurindo as energias do país, portanto, é um sério desafio a ser enfrentado. Problemas que o governo não consegue solucionar agora tendem a continuar sem solução se não for gerada energia política para tanto. Hoje, com a captura de largos setores da opinião pública pela sequência de lances espetaculares da “Operação Lava Jato”, a bola está com o Congresso. O Executivo perdeu a posse de bola por não ter formulado uma agenda para os primeiros dias do segundo mandato de Dilma. E cometeu o erro de deixar escapar o melhor momento para ações que impulsionassem as mudanças em andamento no país: imediatamente após a abertura das urnas. Mas ainda há um terreno fértil para iniciativas nesse sentido. Munidos de um visto temporário para o mundo da ética, os personagens que falam pela direita só podem levar a opinião pública a uma conclusão: se eles estão contra, é porque o governo é bom. A tentativa de negar à presidenta Dilma o direito de governar tem sido, desde o início, uma campanha sem ideias e sem argumentos. Além e acima disso, deixa duas constatações que também vale a pena anotar: ela é de fato uma campanha golpista e o governo tem totais condições de recuperar forças para dar continuidade à aplicação do seu projeto estratégico. * Osvaldo Bertolino é jornalista e editor do Portal Grabois 43 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Reforma Política, cláusula de barreira e a Constituição Federal Orlando Silva e Wladimyr Camargos* A existência de partidos políticos que defendam bandeiras das minorias e representem visões antagônicas e não conformem maioria é própria das sociedades de alta complexidade, como a brasileira. Tentar restringir a participação política destas agremiações de menor sufrágio com cláusulas de barreira é, no mínimo, uma tendência reducionista 44 M Brasil ais uma vez está em discussão na em específico, a leitura mais aligeirada tendia à imCâmara dos Deputados uma propossibilidade de se reformar o sistema eleitoral para posta de reforma política com clara a adoção da “cláusula de desempenho” sem a devida orientação para que se restrinja a previsão do instituto no texto constitucional. Esta representação parlamentar de parsuposição, ou interpretação incorreta da posição do tidos políticos nos âmbitos nacional, regional e loSTF na ADI já mencionada acima, é justamente o cal. O principal texto em debate na comissão espeponto de apoio encontrado pelos defensores das rescial criada para analisar o tema foi elaborado pelo trições partidárias que se tenta implementar através ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e apresenda reforma política em trâmite na Câmara dos Detado através da PEC 352-A, de 2013. Dentre outros putados. A saída jurídica encontrada por estes paraspectos, propõe-se emendar a Constituição Federal lamentares seria emendar a Constituição Federal, de para inclusão de pontos afeitos ao instituto denomimodo a garantir a não interferência do Supremo na nado “cláusula de barreira”. “vontade do legislador”. A proposição se divide em Há nesta concepção, todavia, Em 2006, o STF julgou duas travas ao funcionamento uma clara opção por se contipartidário e à representação parnuar a desrespeitar nossa Carta uma Ação Direta de lamentar: (1) a vedação de acesfundamental. A ementa do acórInconstitucionalidade so ao financiamento público de dão que resultou do julgamento campanha, hoje existente através da ação de inconstitucionaliproposta pelo do “fundo partidário”, além do dade proposta pelo PCdoB não PCdoB contrária a direito à chamada “propaganda faz qualquer menção ao art. 17 eleitoral gratuita” em rádios e da Constituição Federal (CF). dispositivos da Lei dos TVs a partidos que não tenham Cinge-se apenas a proclamar a Partidos Políticos, que alcançado sufrágio mínimo de incompatibilidade entre o texto criava mecanismos 5% dos votos válidos para a Câconstitucional e lei que “afaste mara dos Deputados, distribuío funcionamento parlamentar e de constrição ao dos em ao menos 1/3 dos estados reduz, substancialmente, o temfuncionamento onde tiverem recebido o piso de po de propaganda partidária gra3% do total em cada um; e (2) a tuita e a participação no rateio partidário e de proibição de se fazer representar do Fundo Partidário”, em razão representação na Câmara dos Deputados, nas da gradação de votos obtidos peparlamentar através da assembleias estaduais e nas câla agremiação partidária. maras municipais e do Distrito O próprio voto condutor do chamada “cláusula de Federal quando o partido político julgamento, proferido pelo midesempenho” não tiver obtido o mínimo de 5% nistro Marco Aurélio, declarou dos votos válidos para a casa para inconstitucionalidade da lei lamentar respectiva. muito mais baseado em prinEm 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) julcípios constitucionais do que propriamente no que gou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proconsta no art. 17 da CF. Buscou, assim, justificar sua posta pelo PCdoB (ADI 1351-3/2007) contrária a disposição por considerar como desrespeitados os funpositivos da Lei nº 9.096, de 1995 (Lei dos Partidos damentos da própria República, localizados no inPolíticos), que criava mecanismos de constrição ao ciso V e no parágrafo único do art. 1º da CF, quais funcionamento partidário e de representação parlasejam: o pluralismo político e a soberania popular. mentar através do instituto conhecido por “cláusula Posicionou-se também o magistrado pela repulsa à de desempenho” – para muitos, mera sinonímia da criação de partidos de primeira e segunda classes, “cláusula de barreira”. Por unanimidade, os memo que seria direta ofensa ao princípio da igualdade, bros do STF acompanharam a orientação do relator, resguardado pela Constituição em seu art. 5º, caput. ministro Marco Aurélio Mello, declarando a inconsEm seu voto, o ministro Marco Aurélio frisou titucionalidade dos pontos da Lei dos Partidos Políainda a desarmonia entre a cláusula de desempenho ticos que criavam as regras de restrição às agremiae o sistema principiológico que é resguardado pela ções partidárias. Constituição Federal de 1988 Para muitos, a posição do STF teria sido baseada Resumindo, surge com extravagância maior inna simples regra da supremacia da Constituição, ou terpretar-se os preceitos constitucionais a ponto de da hierarquia das normas. Em se tratando do caso esvaziar-se o pluripartidarismo, cerceando, por meio 45 Ed. 135 – Março/Abril 2015 de atos que se mostram pobres em razoabilidade e o instituto da cláusula de barreira per se, insurgiu-se exorbitantes em concepção de forças, a atuação descontra a forma como ele havia sido aprovado através te ou daquele partido político (1). da Lei dos Partidos Políticos de 1995: Conforme já mencionado anteriormente, a deci“Realmente, a fórmula, ainda que compartilhesão do STF se deu por unanimidade dos ministros mos do pensamento político, da teleologia quanto presentes, sendo que todos, sem exceção, basearam à necessidade de governabilidade – esse é um dos seus votos em princípios constitucionais considepensamentos, um ‘leitmotiv’, desse tipo de fórmula –, rados como cláusulas pétreas, senão vejamos os é evidente que aqui há um comprometimento da próseguintes exemplos: ministro Gilmar Mendes: art. pria cláusula democrática. Não tenho, portanto, ne1º, caput – cláusula democrática, e art. 5º, caput – nhuma dúvida quanto à inconstitucionalidade dessa igualdade; ministro Ricardo Lewandowski: art. 1º, V chamada cláusula de barreira à brasileira”. – pluralismo político, art. 5º, caput – igualdade, e art. Seria o caso de se arguir se a aprovação pelo Con5º, IV e IX – liberdade de expresgresso Nacional de um texto modisão; ministra Cármen Lúcia: art. ficativo da Constituição Federal, no 1º, caput – cláusula democrática, sentido de nela introduzir a cláusuA decisão do art. 1º, V – pluralismo político; la de barreira, ou de desempenho, Supremo Tribunal e ministro Eros Grau: art. 1º, V – não seria um ato tido como inconspluralismo político, art. 5º, caput titucional. Não é mero exercício de Federal contrária – igualdade e art. 5º, XVII, XVIII e sofisma afirmar que sim. É possível à cláusula de XIX– direito de associação. o controle constitucional pelo JudiVale a pena também registrar ciário sobre as próprias emendas à barreira se deu por algumas passagens escolhidas, dos Constituição. Nessa linha, há jurisunanimidade dos votos dos ministros que declararam prudência do STF que declara a tese ministros presentes, a inconstitucionalidade da cláusula da inconstitucionalidade de normas de desempenho. A ministra Cármen constitucionais: sendo que todos, Lúcia enfatizou a incompatibilidade “O STF já assentou o entendisem exceção, deste instituto com a própria fundamento de que é admissível a ação mentação republicana de nossa nadireta de inconstitucionalidade de basearam seus ção, exposta no art. 1º da CF: emenda constitucional, quando se votos em princípios “(...) essa cláusula fere enormealega, na inicial, que esta contraria constitucionais mente a Constituição, não apenas princípios imutáveis ou as chamano artigo 1º; fere no caput do artidas cláusulas pétreas da Constituiconsiderados como go 1º: o Estado não é democrático ção originária (art. 60, § 4º, da CF). cláusulas pétreas quando eu voto, e o meu eleito já Precedente: ADI 939 (RTJ 151/755)» entra sabendo não poder ter a par(ADI 1.946-MC, relator ministro ticipação que eu queria que ele tiSydney Sanches, julgamento em vesse”. 29-4-1999, Plenário, DJ de 14-9-2001.) Esta foi a mesma linha seguida pelo ministro Eros Se o precedente acima reforça a imutabilidade das Grau: cláusulas pétreas, também há que se verificar que o “Uma lei tão adversa à totalidade que a Constituiponto fulcral do julgamento do STF sobre a adoção ção é, tão adversa a esta totalidade que o mesmo parda cláusula de desempenho em 2006 encontra-se, cotido político pelo qual poderá ter sido eleito o Chefe mo se viu, na constatação de que sua existência fere do Poder Executivo será, sob a incidência de suas rede morte os princípios constitucionais da soberania gras, menos representativo do que os demais partidos popular, do pluripartidarismo, da liberdade de assono âmbito interno do Parlamento. ciação e da livre manifestação. Mais do que isso, seria Múltipla e desabridamente inconstitucional, esuma verdadeira afronta à preservação dos preceitos sa lei afronta o princípio da igualdade de chances ou fundamentais que protegem a igualdade jurídica, a oportunidades, corolário do princípio da igualdade. isonomia constitucional, a “igualdade de chances”. Pois é evidente que seria inútil assegurar-se a igualEstes são fundamentos tão essenciais ao Estado dade de condições na disputa eleitoral se não se asseDemocrático de Direito, à democracia liberal, que gurasse a igualdade de condições no exercício de seus foram resguardados pelo constituinte de 1988 como mandatos pelos eleitos.” imutáveis, não sendo passíveis, consequentemente, E, finalmente, a posição do ministro Gilmar Mende serem retirados ou modificados via emenda consdes que, apesar de não demonstrar contrariedade com titucional. Trata-se da tese já exposta pelo STF de que 46 Brasil Plenário do STF. Supremo foi unânime na rejeição da cláusula de desempenho não cabe ao constituinte derivado (parlamentares eleitos já sob a égide de um novo regime constitucional) contrariar a vontade do constituinte originário, ou, em nosso caso, aquele que serviu à Assembleia Constituinte instalada em 1987, naquilo que se considera como o núcleo duro constitucional. Este é um debate político e jurídico de tal modo tão arraigado à cultura liberal que surgiu justamente com a própria construção do Estado constitucional norte-americano no final do século XVIII. Refratários à ideia de que uma maioria facciosa de ocasião pudesse vir a desvirtuar a vontade dos “pais fundadores” dos Estados Unidos da América, os delegados à Convenção da Filadélfia de 1787 concluíram por um modelo de rigidez constitucional. A possibilidade de emenda à Constituição Estadunidense é resguardada por um processo complexo e tortuoso, sujeito à formação de amplas maiorias e ratificações pelos estados que compõem a União. O maior expoente dentre os “pais fundadores”, acerca do debate entre a restrição dos ímpetos da maioria pós-constitucional, foi James Madison. Logo após a Convenção da Filadélfia, iniciou-se um período de grande luta política e debates em torno da ratificação da constituição pelos estados confederados. Os defensores de uma República federativa, dentre eles Madison, em confronto com os que propugnavam por uma mera confederação, publicaram vários artigos, depois reunidos em uma coletânea intitulada Os Federalistas. No chamado “Federalista nº 10”, Madison discutia o direito ao qual o cons- tituinte originário de Filadélfia teria de vincular as gerações vindouras contra a opressão da maioria sobre os direitos assegurados às minorias. É como se já imaginasse as precipitações que no futuro poderiam se canalizar para a ameaça à integridade da União, à soberania nacional dos EUA e à própria constitucionalização da federação que se pretendia ver criada. A solução apontada por Madison naquele momento foi a adoção de mecanismos de filtragem da representação popular. O filósofo norueguês Jon Elster alcunhou esta forma de preservação dos valores originais da nação como “pré-compromisso constitucional”. Em seu livro Ulisses Liberto, este autor compara a situação de um pré-compromisso constitucional à alegoria em torno de Ulisses, na Odisseia, quando ordenou aos marujos que o atassem ao mastro do barco e pusessem cera em seus ouvidos para que não fosse encantado pelo “canto das sereias”. Em outras palavras, o constituinte originário impôs ao constituinte derivado formas de controle para que as maiorias de ocasião não pudessem, perante o “canto das sereias”, submeter as minorias e desvirtuar a essência da constituição da nação. Ainda que a historiografia tenda a apontar a defesa empreendida por Madison e demais federalistas como elitista e protetiva de seus interesses de classes contra as maiorias não proprietárias, a Revolução Norte-Americana deixou como indiscutível legado os fundamentos universais à proteção jurídica à existência e representação de minorias políticas. Isto, 47 Ed.Ed. 135133 – Março/Abril – Nov/Dez 2014 2015 Em 1988, com a redemocratização do país, o sepultamento do bipartidarismo criado pela ditadura militar e o consenso em torno da necessária adoção de mecanismos de controle da maioria em seus impulsos eliminatórios dos direitos das minorias, houve ampla previsão pela nova Constituição de mecanismos de prevenção à opressão política aliado ainda ao controle de constitucionalidade também formulado na fase de consolidação da nação estadunidense, foi incorporado à tradição constitucional brasileira. Em 1988, com a redemocratização do país, o sepultamento do bipartidarismo criado pela ditadura militar e o consenso em torno da necessária adoção de mecanismos de controle da maioria em seus impulsos eliminatórios dos direitos das minorias, houve ampla previsão pela nova Constituição de mecanismos de prevenção à opressão política por grupos majoritários contra os de menor representação. A existência de partidos políticos que representem visões antagônicas e não conformem maioria é própria das sociedades de alta complexidade, como a brasileira. Tentar justificar a vedação de funcionamento parlamentar e ao acesso aos mecanismos públicos de financiamento e divulgação de atividades partidárias às agremiações de menor sufrágio como panaceia para a resolução de problemas da baixa representatividade de partidos majoritários e malversação de recursos públicos é, no mínimo, uma tendência reducionista. Não se resolvem problemas próprios da contemporaneidade meramente na tentativa de redução da complexidade que nos cerca. A vida em sociedade continuará complexa e a forma plúrima de representação social, mormente através do pluripartidarismo que marca a história da democracia brasileira, é meio avançado de se enfrentar os dilemas que nos são apresentados. A postura pela “exclusão do outro” representa ameaça à democracia. 4848 Há que se recordar que a proibição de registro e funcionamento do Partido Comunista do Brasil no passado se deu através de manobras jurídicas. A proteção dada pela Constituição Federal atual à organização e plena representatividade dos partidos políticos assenta-se na reação do constituinte de 1988 justamente a este tipo de desmando, de golpe branco, resguardando como cláusulas pétreas constitucionais os direitos de as minorias poderem também algum dia se constituírem em maioria. * Orlando Silva é deputado federal e presidente do Comitê Regional do PCdoB em São Paulo. Wladimyr Camargos é advogado, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás e doutorando em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília Nota (1) As citações referentes à ADI 1351-3/2007 podem ser encontradas na publicação eletrônica da íntegra do respectivo acórdão, disponível em: h t t p : / / r e d i r. s t f . j u s . b r / p a g i n a d o r p u b / p a g i n a d o r. jsp?docTP=AC&docID=416150 Referências Bibliográficas CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. 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Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. 49 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Maranhão é palco de comemoração nacional dos 93 anos do PCdoB Cezar Xavier* Com uma concorrida sessão solene, a Assembleia Legislativa do Maranhão comemorou, na manhã do último dia 23 de março, os 93 anos de fundação do Partido Comunista do Brasil, fundado em 25 de março de 1922. A solenidade teve caráter nacional e contou com a presença do governador Flávio Dino (PCdoB) 50 PCdoB P roposta pelo deputado Othelino Em defesa da democracia e da Neto (PCdoB), a abertura da sesliberdade são solene, realizada no Plenário Deputado Nagib Haickel, foi feiEm seu discurso (veja a íntegra nas páginas 47 ta pelo presidente da Assembleia a 49), o presidente nacional do Partido Comunista Legislativa, deputado Humberto do Brasil, Renato Rabelo, fez um relato de lances Coutinho (PDT), que fez saudação a todos os premarcantes da história do PCdoB e acentuou a imsentes, dentre os quais o vice-governador Carlos portância de Flávio Dino ter sido eleito governador Brandão (PSDB), o presidente nacional do Partido pelo povo maranhense. “Foi além do Maranhão esta Comunista do Brasil, Renato Ravitória”, ressaltou ele. belo, os deputados federais Jan“O PCdoB esteve sempre em podira Feghali (PCdoB-RJ), Orlando sição central de acirradas lutas poSilva (PCdoB-SP) e Wadson Ribeilíticas em defesa da soberania naro (PCdoB-MG), a presidente da cional, da democracia e da justiça União Nacional dos Estudantes, social”, destacou Rabelo. Conforme Vick Barros, e o prefeito de Contaafirmou, nestes 30 anos de legaligem (MG), Carlim Moura, dentre dade, o PCdoB ocupou o “posto de outros convidados especiais. combate empunhando bandeiras Realizado com o Plenário comavançadas na busca e realização do pletamente lotado, o evento connovo Projeto de Desenvolvimento Nestes 30 anos tou também com a presença do Nacional, caminho indicado pelo prefeito de São Luís, Edivaldo nosso Programa para o avanço civide legalidade, o Holanda Júnior (PTC), do senalizacional em nosso país, no rumo PCdoB ocupou o dor Roberto Rocha (PSB), e dos da edificação de uma sociedade sodeputados federais do Maranhão cialista”, apontou. “posto de combate Rubens Júnior (PCdoB), Weverton O dirigente nacional lembrou empunhando Rocha (PDT) e Waldir Maranhão ainda dos militantes que lutaram bandeiras avançadas (PP), vice-presidente da Câmara contra a opressão dos governos didos Deputados. tatoriais no Brasil, onde comunistas na busca e realização O deputado Othelino Neto disforam presos, torturados e assassido novo Projeto de se que tomou a iniciativa de propor nados por terem lutado bravamente a realização da sessão solene, em pela reconquista das liberdades poDesenvolvimento São Luís, pelo fato histórico de o líticas e dos direitos do povo. Nacional, caminho primeiro governador do PCdoB ter Em breve passagem, Renato fez sido eleito no Maranhão. “O PCdoB indicado pelo nosso menção ao momento atual e ressalé um partido de lutas históricas, tou a nítida compreensão dos coPrograma para o sempre ligadas às boas causas do munistas dos fatos do passado e de avanço civilizacional Brasil e do mundo, daí a importânque é preciso neste momento “unir cia de se celebrar esta data no Maforças e mobilizar o povo na luta em nosso país, no ranhão, em homenagem à demodurante a qual muitos pagaram rumo da edificação cracia e à liberdade em nosso País”, com sua própria vida, para termos declarou. hoje um país livre com a conquisde uma sociedade Enquanto aproxima-se de um ta da democracia”. “Nesta hora, o socialista”, destacou século de existência no Brasil, daPartido converge sua atenção políRenato Rabelo ta celebrada em 25 de março, o ato tica no sentido da defesa da demonacional ressalta o simbolismo pecracia, que se concretiza na defesa los 30 anos de legalidade ininterdo legítimo mandato constituciorupta, desde a redemocratização nal da presidenta Dilma Rousseff. do país em 1985, com protagonismo dos comunisAssim, o PCdoB propõe, diante da ofensiva golpista tas nesta trajetória. Biografias dos “guerreiros” brae reacionária, liderada pelo consórcio oposicionista, a sileiros que fizeram parte da história do PCdoB ao constituição de uma frente ampla com todas as forças longo destes 93 anos e da bravura e honra dos que possíveis do campo democrático e patriótico, intereslutaram pela legalidade do partido foram lembrasadas em assegurar a democracia, a defesa da econodas por todos. mia nacional e a retomada do crescimento”. 51 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Renato agradeceu pela presença das lideranças presentes no ato e parabenizou oficialmente a conquista pelos comunistas maranhenses do governo do estado: “Essa expressiva vitória alcançada, tendo o camarada Flávio Dino à frente de ampla aliança política, teve repercussão na opinião pública em geral, em especial nas forças progressistas e democráticas do país. Essa experiência tem decisiva importância para o PCdoB pelo compromisso assumido de promover o desenvolvimento do Maranhão com justiça social, como parte integrante do novo projeto nacional de desenvolvimento”, destacou o presidente nacional. No mesmo tom, a deputada Jandira Feghali, líder do PCdoB na Câmara Federal, frisou em seu pronunciamento que a eleição de Flávio Dino para o governo do estado “foi uma vitória do Maranhão e foi, também, uma vitória do Brasil”. Ao proferir o discurso de encerramento da solenidade, o governador Flávio Dino fez referência a diversos episódios que marcaram a história do PCdoB e frisou que a mudança ocorrida no Maranhão não terá retrocesso. “A vitória eleitoral de 5 de outubro passado foi só um passo. Agora, estamos diante do maior desafio das nossas vidas. Estamos diante, acima de tudo, do maior desafio da História do nosso estado”. O governador comemorou a fase mais longa da legalidade do Partido Comunista e citou os principais momentos de bravura das lideranças que viveram “perseguições, pressões e injustiças” nestes 93 anos de história. O governador citou ainda, desde 1922 aos dias atuais, fatos históricos que honram o nome de guerreiros e heróis comunistas, como exemplos para serem seguidos pelas atuais gerações. Como comunista, Flávio Dino destacou os eventos que tantos outros lutadores sociais protagonizaram na história do país, antes desta geração, como Prestes e sua Coluna, os que fizeram a Semana de Arte Moderna em 1922, os que participaram da Revolução de 1930, os que compuseram a ANL, os que foram daqui do Brasil combater na Segunda Guerra Mundial na Europa, a bancada comunista eleita em 1946 e cassada em 1947, os que lutaram pelo “Petróleo é Nosso”, os trabalhistas que lutaram pela manutenção do mandato de Getúlio Vargas em 1954, o esforço da era JK pelo desenvolvimentismo do Brasil, a luta pelas reformas de base, principalmente a agrária, durante o governo João Goulart, nos anos 1960, aqueles que criaram o CPC da UNE, Ferreira Goulart à frente. Ao mencionar os que resistiram ao golpe militar de 1964 e o combateram, inclusive, pela coragem da luta armada, “porque cumpriram o seu dever”, o governador lembrou “os heróis da Guerrilha do Araguaia, que atuaram aqui no Maranhão, na região tocantina – Porto Franco, Imperatriz, entre 52 outros municípios daquela região de nosso estado”. “O PCdoB lutou, durante os anos 70, pela criação de uma frente política democrática para acabar a ditadura, ao lado de Ulysses Guimarães, na luta pela anistia, pelas diretas já. Temos muito orgulho da história do PCdoB”, diz ele, ressaltando que toda vez que os comunistas podem atuar livremente, o país avança; mas toda vez que a atuação dos comunistas é cerceada, o país retrocede, revelando a importância da democracia para o povo. No Maranhão, Flávio Dino avalia que, além de participar do governo e do parlamento, o PCdoB não se descuida de estar inserido na luta dos movimentos sociais, da juventude, sindical, da luta de ideias. A luta de ideias traz luzes quando se está diante da crise, como ocorre na atualidade com o avanço do golpismo da direita. Isso revela uma dimensão concreta no Maranhão, de acordo com ele, quando o mais importante é governar bem e melhorar a vida do povo. Para o governador comunista um princípio inegociável de seu governo é a mudança. “Aos que dizem que nada vai mudar no Maranhão, digo que não haverá retrocesso! Não mais haverá oligarquia. Falamos isso com ternura, com sorriso nos lábios. O nosso partido, o PCdoB, não tem sectarismo; é um partido de braços abertos, que respeita a oposição; mas não abre mão de princípios: governar para os mais pobres, dizendo aos que não têm esperança, que o governo trabalha, ouve, dialoga... Um governo de participação popular”, enfatizou. Flávio Dino citou as realizações deste governo recente ao lançar um conjunto de medidas que garantem a transparência na gestão pública do estado, como o Portal da Transparência. Outros princípios que movem a governança no Maranhão, conforme apontou ele, são a honestidade e o respeito ao dinheiro público, com imediata apuração de ilegalidades pela justiça e máxima eficiência, com trabalho contínuo. “A população tem pressa, o governo tem sentido de urgência. Lutamos para que as mudanças aconteçam agora”. Flávio Dino contou que cogitou-se, entre as forças políticas que o apoiavam, que ele deveria filiar-se a um partido maior para disputar a eleição. Segundo ele, Renato Rabelo foi decisivo para uma candidatura orgulhosa de ser comunista, ao explicar a necessidade de “enxergar a política com um olhar em águas profundas, na profundidade da política”. “Sair do partido para ser candidato por outro seria renunciar a mim mesmo. É o melhor partido para fazer o debate com o anticomunismo, o anticomunismo mais estreito. Ajudamos o Brasil a dar um passo adiante, com um governo do Partido Comunista e com quatro deputados estaduais e um deputado federal”, comemorou. PCdoB ÍNTEGRA DO DISCURSO DE RENATO RABELO 93 anos: Partido Comunista do Brasil, uma exigência histórica! O Partido Comunista do Brasil comemora seus 93 anos de existência interrupta e 30 anos de legalidade desde a redemocratização de 1985 posicionado onde sempre esteve ao longo de sua longa trajetória: no centro de acirradas lutas políticas em defesa da soberania nacional, da democracia e da justiça social. Nestes 30 anos de legalidade o PCdoB se manteve no posto de combate empunhando bandeiras avançadas na busca e realização de novo Projeto de Desenvolvimento Nacional, caminho indicado pelo nosso Programa para o avanço civilizacional em nosso País, no rumo da edificação de uma sociedade superior – a sociedade socialista. Em janeiro de 1985, chegavam ao fim mais de 20 anos de regime militar. Esta foi uma épica vitória da resistência pela democracia do povo brasileiro para a qual o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) muito contribuiu. Centenas de seus militantes foram presos, torturados e assassinados por terem lutado bravamente pela reconquista das liberdades políticas e dos direitos do povo. Dezenas deles ainda se encontram desaparecidos, sem um túmulo no qual se possa colocar uma flor. No dia 23 de maio de 1985, a Comissão pela Legalidade do PCdoB, tendo à frente o histórico dirigente João Amazonas, encaminhou o pedido de seu registro ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na prática, isso significava que o Partido passava a ser legal, depois de 38 anos de vida clandestina. Depois de uma grande campanha nacional, que envolveu toda a militância e amigos, chegou-se à cifra de 60 mil membros, conquistando-se assim o registro definitivo. Sedes de comitês partidários foram abertas nas principais cidades brasileiras. O PCdoB estava legal! Este o sinal mais eloquente de que a redemocratização se descortinava. O Partido Comunista sempre foi um termômetro na história recente do Brasil para medir o grau de restrição à democracia – primeiro a ser proscrito – e de abertura política – último a ser legalizado. Daí em diante o PCdoB vem se dedicando em preservar e ampliar a democracia conquistada com tanto sacrifício, colocando-a efetivamente a serviço da emancipação do povo brasileiro. O PCdoB logo se envolveu inteiramente na campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte – outra candente e nuclear reivindicação dos comunistas. Na Constituinte de 1988, elegeu uma pequena, mas combativa, bancada parlamentar. Ao lado de outros deputados progressistas, conseguiu incluir na 53 Ed. 135 – Março/Abril 2015 nossa Carta Magna vários artigos que ampliavam a democracia, a soberania e os direitos populares. Destacam-se conquistas que asseguram e ampliam direitos sociais e trabalhistas, tributos progressivos e a defesa da economia nacional. Pelo seu ineditismo, entre suas conquistas está o voto aos 16 anos. Bandeira levantada pela então recém-criada União da Juventude Socialista (UJS), dirigida pelos comunistas. Com isso, o Partido Comunista do Brasil se destacou diante de todas as organizações políticas atuais no Brasil como a única que participou de todos os processos constituintes de 1934, 1946 e 1988. O avanço democrático e maior organização da esquerda e das forças progressistas permitiram ao PCdoB defender e se empenhar por uma alternativa política mais avançada, pois a Nova República havia envelhecido prematuramente e se afastado de seus objetivos democráticos iniciais. Já no 7º Congresso – primeiro na legalidade, realizado em maio de 1988 –, o Partido defendeu a formação de “um amplo e combativo movimento democrático e popular”. Essa nova linha lhe permitiria o estabelecimento de alianças políticas e eleitorais com setores de esquerda. Um esforço que culminaria na constituição da Frente Brasil Popular para disputar a primeira eleição direta para presidente após o golpe militar de 1964. Assim, o PCdoB teve um papel decisivo na construção da frente política que levou Lula ao segundo turno na eleição presidencial de 1989. É a partir do final da década de 1980 que começava a se abrir um novo período de ofensiva dos setores conservadores, que se alinhavam sob a bandeira do neoliberalismo. Tendência que já vinha se impondo em outras partes do mundo. Por isso, o PCdoB advogou a constituição de uma ampla frente de caráter antineoliberal. Colocou-se na linha de frente contra as privatizações de grandes estatais, a desnacionalização da nossa economia, a retirada de direitos dos trabalhadores e as medidas restritivas à democracia. Movimento que cresceu e galvanizou amplos setores sociais. No final da década de 1980, diante da crise e dos reveses do modelo socialista implantado na URSS e no Leste Europeu, ao contrário de outros partidos comunistas que sucumbiram às pressões do vendaval anticomunista que se irrompeu, o PCdoB resistiu mantendo sua fisionomia, símbolos e convicções revolucionárias socialistas. É nossa convicção que a Revolução na Rússia marcou profundamente o século XX, deixou extraordinário legado para os trabalhadores e a humanidade. Os comunistas são herdeiros de toda a história desse magno empreendimento revolucionário do século passado. Mas, diante desses novos desa- 54 fios históricos eram exigidas respostas dos comunistas. A realidade demonstrava que o socialismo, como nova formação política, econômica e social, iniciava seus primeiros passos na cena da história. Muito ainda está por vir. O PCdoB se debruçou para estudar os acertos e erros daquelas experiências. O resultado foi o trabalho sucessivo e intenso de elaboração num grande esforço teórico e programático moldado na visão de uma nova luta pelo socialismo, condizente com a fase atual do curso geopolítico e de desenvolvimento político, econômico, social e cultural que vive o país e suas melhores tradições. Esses temas candentes culminaram na realização do 8º Congresso do PCdoB, em 1992, tornando-se um marco histórico para orientação contemporânea do Partido. Resultou no novo Programa de 2009 do PCdoB que reafirmou o objetivo socialista e o caminho para alcançá-lo nas condições próprias do Brasil. Na década de 1990, sobretudo nos governos de Fernando Henrique Cardoso, o ideário dominante neoliberal é aplicado com radicalidade, provocando grandes consequências com retrocessos sociais, políticos e na autonomia da economia nacional. Novamente, o PCdoB se colocou à frente da luta, ao lado de outras correntes políticas progressistas. Defendeu a formação de uma ampla frente política e social que tivesse como núcleo a esquerda. Alguns momentos marcantes desse processo foram: a constituição do Fórum Nacional de Lutas, que uniu partidos oposicionistas e entidades do movimento social; e a Marcha dos 100 mil, ocorrida em Brasília em 1999. O Partido também jogou papel destacado na elaboração do Manifesto em Defesa do Brasil, da democracia e do trabalho (2000). O esforço de unidade e ampla mobilização das forças democráticas e antineoliberais garantiu a histórica vitória de Lula em 2002. Pela primeira vez em nossa história um presidente vindo do movimento operário e popular, de um partido de esquerda, em aliança com forças democráticas e populares, chegou ao governo da República. A eleição de Lula representou mais do que uma simples mudança de governo. Ela abriu outro ciclo político no país, criando melhores condições para a aplicação de um projeto nacional mais avançado e dirigido por forças políticas vinculadas aos trabalhadores e às camadas populares. O centro da orientação dos comunistas passou a ser “atuar pelo êxito do governo Lula na condução das mudanças que consistem no aprofundamento da democracia e a na adoção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, voltado para a defesa da soberania do país e do progresso social”. PCdoB Nesse período da sua história os comunistas passaram a exercer pela primeira vez funções de maior responsabilidade no Executivo federal, assumindo durante esses anos diversos cargos como ministro do esporte, ministro da secretaria de relações institucionais da presidência da República, agora como ministro de ciência, tecnologia e Inovação, Secretaria Executiva do ministério da ciência e tecnologia, a presidência da FINEP, a presidência da Agência Nacional de Petróleo, a presidência da Agência Nacional de Cinema, na EMBRATUR e em cargos expressivos em outros ministérios e em secretarias nacionais. É nesse período que o PCdoB afirmou e desenvolveu suas tarefas fundamentais: no sentido da acumulação maior de forças articulou persistentemente a formação de bancadas parlamentares combativas com a participação na luta dos movimentos sociais e a luta de ideias. Desde os governos do presidente Lula e continuado pela presidenta Dilma grandes e significativas têm sido as mudanças e conquistas sociais, políticas e do desenvolvimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, e de política externa soberana e integração solidária do Continente. Nesse novo ciclo político tem sido extensa e dura a luta entre o neoliberalismo que persiste, centro dominante do capitalismo atual, e o novo desenvolvimento nacional que emerge e tenta se afirmar. Tal situação se reflete no plano político: os dois governos Lula, o primeiro governo Dilma se passaram diante de persistente enfrentamento da oposição neoliberal conservadora. Agora, no começo do segundo governo Dilma o enfrentamento recrudesce, tentando paralisá-lo e desestabilizá-lo, a qualquer custo, fora da legalidade institucional. O PCdoB forjado na sua longa experiência — na qual pagou custoso tributo à conquista da liberdade, dos direitos do povo e da soberania nacional — tem nítida compreensão de que hoje é preciso unir forças e mobilizar o povo em defesa das conquistas alcançadas desde 2002. Nesta hora o Partido converge sua atenção política no sentido da defesa da democracia, que se concretiza na defesa do legítimo mandato constitucional da presidenta Dilma Rousseff. Assim, o PCdoB propõe, diante da ofensiva golpista e reacionária, liderada pelo consórcio oposicionista, a constituição de uma frente ampla com todas as forças possíveis do campo democrático e patriótico, interessadas em assegurar a democracia, a defesa da economia nacional e da retomada do crescimento. Para isso, do nosso ponto de vista, temos asseverado a defesa do mandato legítimo da presidenta Dilma; a defesa da maior empresa do Brasil, a Petrobras, da economia e da engenharia nacional, exigindo a li- sura na apuração, condenação e punição exemplar dos envolvidos nos ilícitos praticados e na prática de propinas na investigação em curso; o combate à corrupção, o fim do financiamento empresarial das campanhas, parte substancial na luta por uma reforma política democrática; e pela retomada do crescimento econômico do país e a garantia dos direitos sociais e trabalhistas. Igualmente acentuamos ser necessário, para reverter a situação atual adversa, fortalecer o papel de um bloco político e social de esquerda no âmbito da Frente Ampla. Esse é o passo necessário para descortinar o caminho da etapa atual, das exigências do aprofundamento das mudanças, da realização das reformas democráticas estruturais e enfrentar maiores desafios. Nesta comemoração dos 93 anos do PCdoB, nesta sessão solene da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão, com a presença de muitas lideranças nacionais do Partido no Congresso Nacional, no movimento sindical, da juventude e de entidades sociais é a forma merecida e reconhecida de destacar o grande feito, inédito, em toda extensa trajetória do PCdoB: da eleição do seu primeiro governador de Estado. Essa expressiva vitória alcançada, tendo o camarada Flávio Dino à frente de ampla aliança política, teve repercussão na opinião pública em geral, em especial nas forças progressistas e democráticas do país. Essa experiência tem decisiva importância para o PCdoB pelo compromisso assumido de promover o desenvolvimento do Maranhão com justiça social, como parte integrante do novo projeto nacional de desenvolvimento. Ao saudarmos os 93 anos do Partido Comunista do Brasil, seus dirigentes e militantes estão diante de maior e elevada responsabilidade perante o povo e a nação brasileira. Nessa longa caminhada o PCdoB manteve sua coerência e permanência mantendo e desenvolvendo sua linha revolucionária, consolidando-se como um partido comunista contemporâneo, procurando se empenhar plenamente para elevação política dos trabalhadores e do povo. Por sua extensa trajetória de mais de nove décadas o Partido Comunista do Brasil é uma prova de que sua existência é uma exigência histórica. O PCdoB continua sua luta para elevar crescentemente sua capacidade para desempenhar um papel mais relevante no curso político atual e nos grandes embates pela emancipação política e social do povo brasileiro. Viva o PCdoB, Partido do presente, voltado para o futuro! Viva os 93 anos do Partido Comunista do Brasil! São Luís, 23 de março de 2015. RENATO RABELO 55 Ed. 135 – Março/Abril 2015 A participação institucional dos comunistas Márvia Scárdua* Em meio à crise política que atinge a aliança governista, o PCdoB tem uma avaliação positiva de sua opção pela atuação institucional, desde a redemocratização. Tem garantido avanços nas políticas públicas progressistas, promovido um reforço ofensivo contra a oposição, nos momentos em que o PT recua para a defensiva, e protagonizado grandes momentos como a realização da Copa do Mundo e a derrota da velha oligarquia no Maranhão O s estudos sobre a participação dos comunistas na frente institucional ainda têm pouca acumulação no campo da elaboração, da análise crítica e histórica. As elaborações acadêmicas costumam ser genéricas sobre a atuação dos comunistas, particularmente do PCdoB. Parte dos analistas costuma formular críticas superficiais e dentro de uma perspectiva de luta política. Não há, portanto, uma acumulação teórica mais elaborada sobre esse fenômeno político. Desde a luta pela democratização no Brasil, quando a atuação ainda estava sob a legenda do PMDB e, depois, com a legalidade em 1985, o PCdoB teve quadros políticos atuando em governos, mas ainda não havia definido essa frente como ação concreta de acumulação de forças. Tivemos a experiência de elegermos em 1985, Luiz Caetano prefeito de Camaçari (BA). Ao longo da construção democrática e de vitórias de forças progressistas em cidades e estados, nossa militância passou a dar contribuições participando pontualmente de espaços de governos. Foi a partir de uma decisão histórica do 9º Congresso (1997) que o Partido passou a orientar a ação política a ocupar espaços governamentais. 56 Nosso desafio, desde a redemocratização, é o de superar um Estado baseado nos princípios conservadores, mais acentuadamente sob a orientação do neoliberalismo. E construir um projeto verdadeiramente democrático e popular. Vencemos as eleições de 2002 elegendo Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República e daí por diante obtivemos novas vitórias políticas e de acumulação de forças. Após a vitória de Lula e a coalizão de esquerda que tinha o PT como principal partido, levantou-se o debate interno no PCdoB sobre qual papel caberia aos comunistas nessa nova fase política. A 9ª Conferência Nacional realizada em 2003 avaliou se deveriam assumir a responsabilidade de ocupar o primeiro escalão do governo, mesmo sendo força minoritária nessa aliança política. Embora o Partido tivesse sido crítico das medidas macroeconômicas do início do governo, declarou apoio aos esforços para prioridade no combate à fome e à pobreza, na defesa da soberania nacional com a nova política externa e o diálogo com os movimentos sociais. Nessa condição decidiu participar do governo e contribuir na condução política para um projeto de caráter popular. Passados 12 anos de governo petista com o apoio dos comunistas, a quarta vitória consecutiva desse PCdoB campo político nos impõe avaliar nossa atuação e nossa acumulação de forças. Sobretudo neste início de segundo mandato de Dilma Rousseff quando as forças conservadoras atuam na ofensiva, e parte da oposição articula abertamente a tentativa de impedir o governo progressista. Nos últimos anos, os comunistas também se tornaram alvo de críticas e de disputas políticas numa reação agressiva da burguesia – que busca desgastar a implantação de um projeto nacional de desenvolvimento –, e sobretudo dos setores que têm maior interesse no retorno da agenda neoliberal. Particularmente os meios de comunicação de influência liberal, os de maior circulação e abrangência, travam uma luta ideológica contra o governo do qual participamos e, em especial, tentam nos atingir por não suportarem a ascensão e influência de nossas opiniões políticas. Nessa circunstância histórica cabe fazer uma avaliação crítica sobre a atuação política dos comunistas na frente institucional. A participação institucional diante da estrutura capitalista de Estado é um paradoxo, mas possível de ser superado a partir da compreensão sobre as mudanças necessárias para fazer avançar a condição de vida do povo e criar condições de substituir essas estruturas por outra que possibilite o desenvolvimento Flávio Dino é a esperança da melhora do Índice de e a soberania nacional. A consciência de que Desenvolvimento Humano de um estado dominado por décadas a intervenção do poder público ainda permapor uma oligarquia familiar nece restrita diante das interpretações legais, da estrutura burocrática criada para atender às deoutras. Com isso, adquiriu um conjunto de elemenmandas do poder econômico, a disputa de ideias na tos e aprendizagens para aperfeiçoar essa frente de sociedade sobre a validade dos programas e projetos atuação de relevância crescente, superando o atraso e a pressão política das classes dominantes atuando nessa participação e destacando-se na elaboração de nos partidos de oposição, entre os aliados temporápolíticas públicas de conquistas para o povo. rios, na grande mídia e até em parte do Judiciário, Competência, honestidade, zelo e rigor com o são elementos coercitivos para o avanço das parcelas patrimônio público são as condutas cultivadas pemenos favorecidas e da consciência de classes na solos comunistas que exercem responsabilidades de ciedade. governo. Sua diretriz de atuação na administração Para uma avaliação inicial da atuação dos comupública é jamais voltar as costas ao povo, e sim gonistas é possível identificá-la como positiva nesse vernar com a participação dele, respeitar e incentivar período de governos progressistas – avaliação debasuas lutas e movimentos; governar para dar respostida no 13º Congresso do PCdoB em 2013: tas aos problemas e dilemas do presente, para elevar “As participações institucionais assumidas nos de forma imediata a qualidade de vida da populaplanos federal, estadual e municipal se ampliaram. ção. Mas cada realização está associada ao rumo e O PCdoB alcançou, com isso, nova dimensão na ao caminho traçado em seu Programa Socialista.” aproximação com a maioria do povo e em sua iden(TESES, 13º Congresso do PCdoB, 2013: 20). tidade partidária. No governo federal, o Partido, por A importância de se abrir o debate sobre a atuação meio de quadros destacados, deu contribuições em institucional se deve ao fim de um ciclo de atuações áreas estratégicas para o país e para o povo, como em espaços públicos, como no Esporte e a expecesporte, ciência e tecnologia, petróleo, cultura, entre tativa no novo governo Dilma Rousseff da atuação 57 Ed. 135 – Março/Abril 2015 58 AgBr MCSP em áreas onde já existem acúmulos e experiência e o novo desafio diante do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Nossa participação no Ministério do Esporte possibilitou conquistas importantes. O desenvolvimento de políticas públicas para o setor, com ações governamentais e marcos Orlando Silva, no Ministério, Aldo Rebelo protagonizou com serenidade a realização da institucionais que possibilitou conquistas importantes Copa do Mundo, sob boicote cerrado da mídia colocaram o esporte em outro patamar manifestantes, mesmo sem uma de desenvolvimento. A democratiAlém de colocarmos unidade em torno de qual crítica e zação do debate e das ações com o qual reivindicação, a principal exenvolvimento direto de atletas, dirio esporte na agenda pressão era “contra tudo o que está gentes, profissionais da área, gestonacional como um aí”. A Copa do Mundo passou a ser res públicos e privados, jornalistas e alvo de crítica, sobretudo nos meios meios de comunicação, intelectuais instrumento de de comunicação e se criou um clie centros de conhecimento, polítiinclusão através ma de tensão e a expectativa de nocos e outras instituições públicas vos protestos durante o evento. para formular, criticar, apresentar de programas O resultado foi a realização bem demandas e elaborar coletivamente sociais expansivos feita de uma das maiores atividades intervenções que contribuíram para em todo o Brasil, esportivas vistas no mundo, com a modernização do esporte. uma organização elogiada em geOs ministros Orlando Silva e atuamos para ral, uma recepção calorosa como é Aldo Rebelo foram os condutores fortalecer o esporte próprio do povo brasileiro e um giro desse processo de modernização do econômico que justificou os invesesporte brasileiro. Além de colocarde alto rendimento timentos feitos para melhorar as mos o esporte na agenda nacional desenvolvendo estruturas envolvidas na realização como um instrumento de inclusão atletas para do evento. Tivemos legados imporatravés de programas sociais extantes em transporte aeroviário, pansivos em todo o Brasil, atuamos competições estádios, hotelaria e sistema comupara fortalecer o esporte de alto internacionais nicacional. Algumas obras urbanas rendimento desenvolvendo atletas foram entregues para melhorar a para competições internacionais, vida dos brasileiros. A maioria dos possibilitamos ampliar recursos púestrangeiros que estiveram aqui disse através de pesblicos diretos e mecanismos de captação de novas quisas ter gostado do Brasil e pretende voltar. A crítica fontes de financiamento privados através da lei de à não entrega de parte do legado, principalmente de incentivo ao esporte, da reorganização das dívidas infraestrutura viária, é válida, mas deve ser considedos clubes, hoje principais formadores de atletas, rado que parte está em construção e será entregue e avançamos na economia do esporte. a responsabilidade pelos atrasos e o cancelamento se Destaque para essa avaliação foi a realização da deve a governos estaduais e municipais, responsáveis Copa do Mundo, que se transformou em alvo de pelos projetos, licitações e execuções das obras. As disputa política na tentativa de desgastar o governo denúncias feitas sobre desapropriações de casas para Dilma Rousseff. construção e reformas se demonstraram superdimenA partir das manifestações de junho de 2013, o sionadas e na maioria das vezes não corresponderam governo federal passou a ser alvo das críticas dos PCdoB Netun Lima-Divulgação CineBH Outra importante tarefa foi nossa atuação na Secretaria Nacional da Juventude, frente social em que os comunistas têm tradição e força. A partir da participação no Conselho Nacional de Juventude foi consolidada a aprovação do Estatuto da Juventude. No Congresso Nacional a relatora foi a deputada Manuela D’Ávila (PCdoB/RS). O Estatuto da Juventude é um importante instrumento legal para garantir direitos, um marco importante que se consolida enquanto política de Estado. No mesmo patamar de importância, também ajudamos na aprovação da PEC da juventude e na elaboração e aprovação O fortalecimento do audiovisual brasileiro deve-se ao esforço de Manoel do Plano Nacional de Juventude. Rangel na Ancine Também houve contribuições importantes dos comunistas nas frentes de Cultura, com a verdade, e as que se realizaram pelos responEducação, Saúde, Igualdade Racial, Mulheres e sáveis das obras aparentemente seguiram critérios leCiência e Tecnologia. Nessas áreas houve destacada gais e com diálogo com a sociedade. atuação no diálogo com a sociedade e dos movimenNa Agência Nacional do Petróleo (ANP), a atuatos sociais através dos conselhos e das conferências ção dos comunistas foi marcada pela defesa da sonacionais. A democracia é uma das marcas mais imberania, seguindo uma linha política de tradição em portantes do governo Dilma Rousseff. defesa das riquezas nacionais. Ainda que sob presOs exemplos citados, diante de muitos outros essões privadas e interesses multinacionais, a atuação paços institucionais de que participamos em esferas nessa agência reguladora foi da manutenção do conmunicipais, estaduais e federal, demonstram que partrole dessa riqueza estratégica pelo Estado. ticipar de governos foi uma ação de caráter estratégico, A partir das novas descobertas de campos petromesmo diante de um Estado organizado para atender líferos na camada do pré-sal dos mares de demaràs classes dominantes, demarcando campo político e cação territorial brasileira, o marco regulatório da buscando alternativas a favor do Brasil e do nosso povo. exploração se fez necessário. A opinião do PCdoB, Os desafios da frente institucional após as eleiatravés do engenheiro Haroldo Lima, foi de preserções de 2014 e o início do novo governo Dilma Rouvação dos interesses nacionais. sseff são como enfrentar a redução do nosso espaço A atuação na Agência Nacional de Cinema parlamentar federal, a vitória histórica do comunista (Ancine) teve como principal legado a elaboração e Flávio Dino no Maranhão e a alteração do espaço do regulamentação de uma nova lei para o audiovisual, primeiro escalão do governo federal. determinando uma nova grade de programação nas A redução no número de cadeiras parlamentatevês e nos cinemas com conteúdos brasileiros, uma res de 15 para 10 deputados – mesmo com a posse modificação a favor da obrigatoriedade de transmisimediata de três suplentes, com uma bancada de 13 são de conteúdo nacional – ultrapassando uma visão aguerridos deputados e deputadas e a redução de subdesenvolvida de prevalecer a transmissão de condois para uma senadora – significou uma perda imteúdo estrangeiro. portante para o PCdoB. O resultado negativo não tem Essa medida teve dois efeitos correlatos: O deum único fator, mas múltiplas questões relacionadas senvolvimento da produção cultural audiovisual geàs realidades locais de disputa política. Um elemento nuinamente brasileira que possibilita mostrarmos político central pode ter sido o quadro acirrado de mais a nossa cultura e a chance de o povo se identidisputa com forte reação das forças conservadoras. ficar mais com o que assiste. A medida impactou na Vitória importante que se destaca pela resistência indústria cultural nacional ampliando a produção de política foi a eleição do ex-ministro Orlando Silva, programas e o aumento do emprego para toda a rede que retoma sua trajetória após ter sofrido fortes atade trabalhadores do setor. A reação contra a medida ques das classes dominantes, destacadamente dos foi grande, sobretudo das operadoras de tevê e cameios de comunicação, no episódio do seu afastanais multinacionais que atuam no Brasil. mento do Ministério do Esporte. As acusações con- 59 Ed. 135 – Março/Abril 2015 tra ele se demonstraram casuísticas, PCdoB no governo federal é uma infundadas e utilizadas pela exclusimudança qualitativa e os desafios Os comunistas va disputa política. parecem ser maiores diante das se constituem Outro resultado importante foimensas dificuldades que o Brasil ram as ampliações das cadeiras nas ainda tem nessa área. Estamos dinuma força real Assembleias Legislativas elegendo retamente ligados aos rumos do deda sociedade, 25 deputados estaduais em 17 essenvolvimento nacional. tados. Esse resultado possibilita um É neste contexto que se justamente num fortalecimento do Partido de forma encontram as condições de acuperíodo de intensa descentralizada e uma ampla ação mulação de forças dos comunistas disputa política política local. em âmbito federal. Os comunistas A mais importante conquista dos se constituem numa força real da entre forças comunistas, no entanto, foi a eleição sociedade, justamente num períoprogressistas e de Flávio Dino para o governo do Mado de intensa disputa política entre ranhão. Essa vitória tem duplo sentiforças progressistas e reacionárias. reacionárias do: ter elegido o primeiro governador A principal tarefa dos comuniscomunista na história do Brasil e a tas está na luta pela superação da vitória em um estado periférico, com extraordinárias orientação neoliberal e na formação de um Estado dificuldades sociais e dominado por uma oligarquia com estrutura e organização que sirvam para um poderosa. A eleição de Dino tem um sentido histórico projeto popular e democrático capaz de ir além das importante, semelhante à de Lula em 2002, porque políticas de governo, implantando uma estrutura sórepresentou a participação da corrente política brasilida de transformação histórica. leira mais radical nas propostas de mudanças. A vitória dos comunistas no Maranhão foi possí* Márvia Scárdua é assistente social especializada em Democracia Participativa, República e vel pela capacidade e liderança de um quadro como Movimentos Sociais pela Universidade Federal de Flávio Dino, pela ousadia política, capaz de driblar Minas Gerais. Foi diretora da executiva nacional todas as tentativas de cooptação e destruição proda UNE e membro do Conselho Nacional de movidas pelas oligarquias locais e de organizar uma Juventude. Representou a juventude Brasileira ampla união de forças políticas que pudessem enna Reunião Especializada de Juventude (REJ) no frentar o que há de mais atrasado no Brasil. Mercado Comum do Sul (Mercosul). Foi diretora de Entre as perdas consistentes no Parlamento FePolíticas Públicas da Fundação Maurício Grabois. deral e a conquista do governo do Maranhão, podeOrganizadora dos livros Políticas Públicas para mos dizer que os comunistas brasileiros acumularam um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento força estratégica para transformar o Brasil. A opção e Governar para um Novo Projeto Nacional de é o Socialismo e para alcançarmos essa mudança Desenvolvimento. extraordinária é preciso acumular forças. Eis uma oportunidade: mostrar ao Brasil que os comunistas com inventividade, capacidade e compromisso com Referências bibliográficas o povo são capazes de oferecer condições de desenvolvimento e progresso. PCdoB. União do Povo Contra o Neoliberalismo. O maior desafio institucional que os comunistas Documento do 9º Congresso do Partido Comunista do têm pela frente é construir sua trajetória no MinisBrasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 1ª edição. 1998. tério da Ciência Tecnologia e Inovação, com Aldo ______. Resolução Final da 9ª Conferência Nacional do PCdoB, em: www.vermelho.org.br/biblioteca. Rebelo conduzido à nova tarefa. A presidente Dilma ______. Nação Forte. Rumo ao Socialismo. Documento de Rousseff afirmou que seu governo tem entre seus Resoluções do 12º Congresso do Partido Comunista do principais desafios a questão da inovação. Os comuBrasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 1ª edição. 2010. nistas estão no centro dos desafios do novo gover______. Avançar nas Mudanças. Documento do 13º no. A capacidade política, afeito às novas ideias e o Congresso do Partido Comunista do Brasil. São Paulo: diálogo são características de Aldo Rebelo. A orienAnita Garibaldi, 1ª edição. 2014. tação da construção de um Novo Projeto Nacional RABELO, Renato. Ideias e Rumos. São Paulo: Anita Garibaldi, 1ª edição. 2009. de Desenvolvimento, matriz política do PCdoB, está SCÁRDUA, Márvia (org.). Governar para um Novo Projeto diretamente ligada a essa nova posição. Nacional de Desenvolvimento. São Paulo: Anita Garibaldi, A Ciência, Tecnologia e Inovação são estratégi1ª edição. 2012. cas para o desenvolvimento do Brasil. A posição do 60 Teoria Pós-modernidade, globalização e crise dos partidos políticos 1 Antônio Levino* No âmbito do senso comum está amplamente difundida a ideia de que, no contexto da pós-modernidade, a emergência dos movimentos sociais teria provocado uma elevação da sua relevância em detrimento do modo tradicional de ação política pela via das organizações partidárias. Na verdade, esta é uma questão antiga que remonta aos primórdios do capitalismo, época na qual se inaugurou um vigoroso embate ideológico entre a burguesia emergente e a nascente classe operária, que então dava os primeiros passos rumo à construção de um projeto próprio de sociedade. Na atualidade, o crescente debate sobre o tema guarda uma estreita relação com a crise do pensamento ocidental e a reformulação da teoria marxista. 61 Ed. 135 – Março/Abril 2015 1. Pós-modernidade e crise da representação partidária o qual as agremiações sindicais já eram instrumentos de luta suficientes. Na verdade, tanto num extremo quanto noutro da contenda havia equívocos. Isso porque, se para os Muito se discute sobre as formas tradicionais de orgasindicalistas o movimento era tudo e o objetivo nada, nização terem perdido a capacidade de representar os quespara os militantes partidários, o objetivo era tudo e o tionamentos e defender os interesses coletivos da sociedade. movimento nada. Essa contradição foi sendo superaá nos primeiros congressos mundiais da aos poucos, à medida que parcelas cada vez maiodo movimento operário, a necessidares de trabalhadores iam se convencendo de que, para de de uma organização revolucionáalém das reivindicações corporativas, era necessário ria dos trabalhadores se constituiu ser consequente na disputa pelo poder enquanto os numa das principais polêmicas. Desativistas partidários se convenciam de que a luta por de então, o assunto transmutou, mas nunca saiu de reformas contribuía para a elevação do nível de conspauta sendo a crise atual de representatividade dos ciência de classe do proletariado alimentando, assim, partidos políticos o momento de maior acirramento a perspectiva revolucionária da disputa pelo poder. A da contradição estabelecida entre as correntes que se jornada de trabalho de oito horas diárias e o descanformaram em torno do tema. so remunerado semanal são exemplos de conquistas No alvorecer do capitalismo, o pensamento conacumuladas na longa trajetória do movimento opeservador procurava difundir a ideia de que os partidos rário que chegou até a “tomar o céu de assalto”, chejá existentes correspondiam plenamente aos interesgando ao poder pela via revolucionária. Se a história ses de toda a sociedade, ao mesmo tempo em que os finalmente deu razão a Marx não caberia indagar o trabalhadores acreditavam que as que teria levado a crise dos partidos organizações sindicais bastavam políticos como forma de organizacomo instrumento de mobilizações ção/representação dos trabalhadoPensam alguns de massa para a conquista dos seus res? que o nível atual direitos. Desde então, Marx alertaPensam alguns que o nível atual va que era impossível a existência de complexidade atingido pela sode complexidade de um partido sem classe ou que ciedade produziu novos padrões de atingido pela representasse todas as classes. Anrelações sociais, diante das quais os tes de tudo, afirmava que os parsociedade produziu partidos foram perdendo a capatidos políticos eram organizações cidade de formular respostas que novos padrões de historicamente determinadas, que atendam aos interesses da maioria relações sociais, respondiam às aspirações de poder enquanto as outras formas de ordos segmentos que representavam. ganização passaram a desenvolver diante das quais Daí a impossibilidade de satisfazer mecanismos de mobilização mais os partidos interesses antagônicos. eficientes e bem mais identificados Coube justamente a Marx e Encom as aspirações da sociedade ciforam perdendo gels formularem a síntese da necesvil. Nesse quadro, as Organizações a capacidade de sidade histórica de um partido revoNão Governamentais (ONG) reprelucionário, realizada no Manifesto do formular respostas sentam bem a crença amplamenPartido Comunista, no qual sustentate difundida de que a globalização ram a tese de que somente dispontransformou o planeta numa grando do próprio partido a classe operária poderia consde aldeia onde o Estado e a sociedade se interpenetruir uma nova sociedade baseada na justiça social. tram tornando anacrônicas as ideias de classe e conEra esta a utopia que animava as grandes lutas daflito de classes bem como de pregação da necessidade quela época. A proposta marxista consistia numa artido proletariado de pugnar pelo poder. culação estratégica entre os movimentos trabalhistas Os partidos são de fato inócuos numa realidade liderados pelos sindicatos e os objetivos revolucionáem que a consciência de classe e a perspectiva do porios anunciados pelos partidos. Assim, enquanto essa der se esvaem na busca incessante do possível como acepção era assimilada, gradativamente foram supese estivessem realizando o ideal. Esta é uma realidade radas as limitações do “Cartismo”, um movimento em que se propõe abraçar a radicalidade democrática que pregava a união dos trabalhadores em torno de como um fim e não mais como um meio, substituinuma plataforma unitária (uma carta de princípios), do as formas tradicionais de atuação e/ou organização assim como as limitações do “Trade-unionismo” para pela recomendação geral de se “pensar globalmente J 62 Teoria e agir localmente”, renunciando à perspectiva de intervenção política revolucionária. O problema é que as ONGs restringem sua eficiência mobilizadora às questões temáticas sem ter como finalidade a alteração do poder de mando. Mesmo assim, atuando ligadas em redes ou isoladas em pequenos nichos aumentaram a sua influência ao se identificarem com a defesa das bandeiras negligenciadas pelos partidos políticos, que se ocuparam cada vez mais com a luta pelo poder deixando de lado a micropolítica do cotidiano. Junho de 2013: presença de militantes partidários incomodou parte dos manifestantes 2. Pós-modernidade, marxismo e revolução Quando foi que os partidos perderam a noção de que os meios e os fins se coadunam tal qual ensinava Marx? Num excelente artigo publicado na revista Monthly Review, de julho de 1995, traduzido e republicado pela Crítica Marxista (vol.1, nº 1 de 1996), Ellen Meiksins Wood lança luzes sobre o confronto entre o marxismo e a agenda pós-moderna promovendo um resgate histórico das crises econômicas do capitalismo e sua repercussão política. A autora começa por identificar um pessimismo na cultura de nossos dias, que tem raízes no período que antecede a Primeira Guerra Mundial, descrito por Oswald Spengler, em 1918, como um momento em que se deu o declínio do Ocidente e a passagem para a pós-modernidade. Spengler anunciou o fim da civilização ocidental e seus valores dominantes ressaltando que, na sua época, os vínculos e tradições que uniram a sociedade estavam se decompondo. Os laços cotidianos de solidariedade se desagregavam juntamente com unidade de pensamento e cultura. Para ele, a civilização do Ocidente passava do outono do iluminismo ou esclarecimento para o inverno do individualismo e niilismo cultural. Spengler escreveu sobre o declínio do Ocidente durante a Primeira Guerra, porém, as suas ideias foram fortemente recuperadas no pós-Segunda Guerra quando, em 1959, Wriht Mills anunciava o fim da idade moderna e a sua substituição por um período pós-moderno, no qual toda a perspectiva histórica que caracterizava a cultura ocidental deixava de ser relevante. Mills pro- clamava que o Liberalismo e o Socialismo – ideologias fundadas na fé iluminista do progresso unificado da razão e da liberdade – haviam falido como explicações do mundo e de nós mesmos. Só restava concluir, então, que Marx estava ultrapassado. Ellen Meiksins Wood arriscou um palpite sobre por que Spengler e Mills se tornaram pessimistas. A conjuntura política entre Spengler (1918) e Wrigt Mills (1959) fora marcada por uma catastrófica história de depressão, guerra e genocídio, seguida da promessa de prosperidade material do Welfare State. Na explicação de Wood, a época de Spengler excedeu os piores temores da humanidade e a de Mills suas mais visionárias esperanças. Spengler escreveu num tempo de guerra, revoluções e difusão da democracia de massas que ameaçavam as classes dominantes. Mills escreveu na calmaria dos anos 1950, na maré montante da prosperidade capitalista e clima de apatia política. Mills ensinava estudantes que, mesmo vivendo sob a guerra fria e ameaça nuclear, podiam aspirar por um futuro material particularmente brilhante. A era de ouro do capitalismo começava a convencer acadêmicos de que problemas da sociedade ocidental tinham sido solucionados. Preponderavam as condições de harmonia social e de que a realização do progresso do iluminismo estava próxima de ser concluída. Nada melhor era possível, necessário ou desejável e, diante desse quadro, era difícil perceber a outra América que não participava do banquete. Segundo Meiksins Wood, a morte do otimismo de Mills resultava, ao mesmo tempo, do sucesso e do fracasso. Os objetivos do iluminismo, por um lado, tinham sido efetivamente alcançados na forma da racio- 63 Ed. 135 – Março/Abril 2015 nalização da organização social e política, no progresso têmica e suas leis de movimento, mas somente tipos científico e tecnológico inconcebível ao mais otimista diferentes de poder, opressão, identidade e discurso. sonhador iluminista e na difusão do ensino universal No entendimento de Wood, rejeitam-se as antigas nas sociedades ocidentais avançadas. Por outro lado, grandes narrativas como conceitos iluministas de proesses avanços não fizeram aumentar a racionalidade gresso e qualquer ideia de causalidade histórica intesubstantiva dos seres humanos. A ligível e toda ideia de fazer história. racionalização, burocracia e tecnoloPara os pós-modernos, só existiriam É preciso gia moderna restringiram mais que diferenças anárquicas desconectadas aumentaram a liberdade humana, e inexplicáveis, conclui. Pela primeicompreender que o uma vez que a racionalidade sem rera vez se teria produzido uma teopessimismo político lação com liberdade produzia Robôs ria de mudança de época histórica Felizes que se adaptavam a organizabaseada na negação da história – o tem origem numa ções gigantescas e avassaladoras soque pode ter gerado um paradoxo na visão otimista da bre as quais não se exercia controle pós-modernidade marcada por uma prosperidade e algum. Robôs Felizes seriam pessoas negação da história associada ao pesa quem não se podia atribuir anseio simismo político. Se não há sistemas das possibilidades de liberdade ou desejos de razão. na história suscetíveis a uma análise capitalistas que A teoria social do século XX se causal não se pode aspirar por algum ocupava do pessimismo e da alienatipo de oposição unificada, nem peestão presentes nos ção. O florescimento do capitalismo la emancipação humana geral, nem traços que marcam do bem-estar e do consumo de maspela contestação ao capitalismo do as atitudes póssas levou a classe operária a deixar tipo socialista. O máximo pelo que se de ser força de oposição enquanto pode aspirar é um conjunto de resis-modernas atuais certas vertentes marxistas elevaram tências particulares e separadas. os estudantes e intelectuais à condiÉ preciso compreender, no enção de agentes da “revolução cultural”. Há muitas setanto, que o pessimismo político tem origem numa melhanças entre a época de Mills e a nossa. Nos temvisão otimista da prosperidade e das possibilidades capos atuais em que o conservadorismo eufórico chega pitalistas que estão presentes nos traços que marcam a proclamar o fim da história e o triunfo definitivo do as atitudes pós-modernas atuais. Vive-se, hoje, um pecapitalismo, a esquerda fala em fim da era da pós-moríodo que se assemelha à época de ouro do capitalismo, dernidade, repetindo o argumento de Mills, quando no qual o consumismo adquire uma multiplicidade de decreta a segunda morte dos valores do iluminismo. padrões que levam à proliferação de estilos de vida, e Seguindo os argumentos de Wood, a visão de declínio também não se reconhece mais a crise estrutural no de época levaria à convicção de uma ruptura radical capitalismo nem se assimila qualquer impacto dela. Os com o passado e com tudo o que já foi dito. É preciso pós-modernos acreditam que não se pode transformar renegar a história e o fato de que todas as rupturas do nem sequer entender o sistema, e uma vez que não poséculo XX têm a marca da crise do capitalismo, o sistedem criticar o sistema nem se opor a ele, relaxam e ma das mil mortes. aproveitam. Teóricos sabem que nem tudo está bem, Para Meiksins Wood, os novos pós-modernos insismas não buscam entender a pobreza e o trabalho insetem na “diferença” e na natureza fragmentada da reaguro. Para Mills, o problema central de sua época era lidade e do conhecimento humano. São insensíveis à que não se podia esperar que robôs felizes ansiassem história e aos apelos reacionários daqueles que atacam por liberdade e razão, já os pós-modernos atuais conos valores do iluminismo proclamando o irracionalissideram valores do iluminismo como o próprio problemo. Teorias anteriores ainda se baseavam em alguma ma. A pós-modernidade revela a submissão derrotista concepção particular de história. Wood esclarece que, à força incontrolável do capital e a rendição e exaltação para Mills, a análise histórica no âmbito do iluminisao consumismo. Se Mills sustentava visão elitista de mo ressaltava o espaço de liberdade humana de forque trabalhadores estavam sujeitos a virar robôs deimular opções assumindo como amplos os limites da xando aos estudantes e intelectuais o papel da realizapossibilidade histórica – antítese das concepções pósção de levantes, hoje, os intelectuais são a própria cons-modernas atuais. Já os pós-modernos negam a exisciência teórica do robô feliz. Como não são compatíveis tência de conexões estruturais e a própria possibilidaas expectativas de Robôs Felizes e Críticos Sociais, ainde causal. Estruturas e causas foram substituídas por da é possível sonhar com um futuro diverso. fragmentos e contingências. Não existiria uma coisa O fato é que o modismo pós-moderno repete o chamada sistema social com sua própria unidade sistema do derrotismo, mas convence porque responde 64 Teoria às condições reais do mundo contemporâneo. A esquerda pós-moderna, por exemplo, não enfrenta o capitalismo e se apresenta como pós-marxista ou pós-estruturalista buscando enfatizar os temas da hora com ênfase na linguagem, na cultura e no “discurso” em contraponto às preocupações “economicistas” e da economia política, ou seja, cedendo ao argumento de que a linguagem é tudo o que podemos conhecer sobre o mundo, já que não temos acesso a nenhuma outra realidade. A esquerda chega a rejeitar o conhecimento “totalizante” e dos valores “universalistas”, incluindo: concepções ocidentais de racionalidade, ideias gerais de igualdade liberal ou socialista e a concepção marxista de emancipação humana. A moda ditada é a da ênfase na “diferença” e em identidades particulares e diversas como gênero, raça, etnicidade. As identidades são tomadas como variáveis incertas e frágeis, dificultando a consciência baseada na solidariedade e nas ações coletivas fundadas na “identidade” social comum ou de classe – o que termina por exaltar o repúdio às “grandes” narrativas como ideias de progresso incluindo a teoria marxista de história. Meiksins Wood afirma que o marxismo é contestado por privilegiar o modo de produção, determinante histórico e classe em contraposição à identidade, ou então determinantes econômicos e materiais em contraposição à construção discursiva da realidade. O pós-modernismo se resume na ênfase da natureza fragmentada do mundo e do conhecimento humano e na impossibilidade de qualquer política emancipatória baseada em algum tipo de visão “totalizante”. A própria crítica ao capitalismo está excluída, pois não se pode dizer que o capitalismo exista enquanto sistema totalizante. Se a política, no sentido tradicional do termo (poderes abrangentes de classe e/ou Estado ou a oposição a estes), está eliminada, toma lugar a “política de identidade” ou a do pessoal enquanto político. Em resumo, a pós-modernidade é caracterizada por um ceticismo epistemológico e profundo derrotismo político, entretanto é preciso reconhecer a superação de noções tradicionais de progresso fundado no ideal iluminista e admitir a emergência de identidades diversas da classe social e o ressurgimento de “identidades” nacionalistas. Também é necessário perceber as mudanças estruturais no interior da própria classe operária e suas divisões raciais e sexuais e reconhecer a importância da linguagem e cultura no mundo dominado pelos símbolos da comunicação de massas e pela superestrada da informação. Correto seria oferecer explicações históricas para essas questões ao invés de apenas se submeter a elas adaptando-se ideologicamente. É preciso desafiar os limites impostos à ação de resistência e responder ao mundo atual como críticos e não como robôs felizes. Existe uma aliança entre o triunfalismo capitalista e o pessimismo socialista. A vitória da direita reflete na esquerda como uma aguda contração das aspirações socialistas. A esquerda precisa, portanto, realizar uma crítica ao capitalismo e não se entregar às resistências locais e particulares. “Não se trata apenas de saber como agir contra o capitalismo, mas de pensar contra ele”, reflete Ellen Meiksins Wood. * Antônio Levino é doutor em Saúde Pública, médico, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), pesquisador da Fiocruz, membro do Comitê Central e presidente municipal do PCdoB em Manaus/AM. NOTA 1 : Na construção deste texto fez-se uso livre das ideias contidas no artigo “Em defesa da história: o marxismo e a agenda pós-moderna” (tradução de João Roberto Martins Filho). In: revista Crítica Marxista, vol. 1, nº 3, 1996. Os conceitos sobre partidos políticos foram consultados no Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. 5ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1993. A segunda parte deste artigo será publicada na edição 136 (maio/junho) de Princípios, mas a íntegra do texto já está disponível no site da revista: www.revistaprincipios.com.br Notas (1) ARBEX JR., José. Terrorismo: um legado da história, 9 de outubro de 2001, 3 páginas – que circulou na Internet em língua espanhola, sem maiores referências. (2) Aos que queiram conferir essa passagem bíblica, podem fazê-lo em Juízes, capítulo 16, versículos 23 a 31, p. 323. Bíblia, tradução de Almeida. São Paulo: Vida, 1981. (3) Editorial da Revista Carta Capital, edição 833 de 21-01-2015, p. 1418, de Mino Carta. (4) SAFATLE, Vladimir. Carta Capital, edição citada, p. 27. (5) MAIEROVITCH, Wálter Fanganiello. Carta Capital, edição citada, p. 19. (6) CARTA, Gianni. “Morre por mim, França”. In: Carta Capital, edição citada, p. 20-23. https://bouamamas.wordpress. (7) BOUAMAMA, Said. In: com/2015/01/11/lattentat-contre-charlie-hebdo-loccultation-politique-et-mediatique-des-causes-des-consequences-et-des-enjeux/ de 25-01-2015. (8) Blog Moon of Alabama, de 7 de janeiro de 2015 http://www.moonofalabama.org/2015/01/charlie-hebdo-the-chickens-come-home-to-roost.html#comments (9) Artigo de Tony Cartalucci, publicado em http://landdestroyer.blogspot.ca/2015/01/france-armed-terrorists-that-struck.html de 12 de janeiro de 2015. (10) BERNABUCCI, Cláudio. “A palavra do estadista solitário”. In: Carta Capital, edição citada, p. 24-26. (11) Artigo publicado em 8 de janeiro de 2015 em http://vineyardsaker. blogspot.com.br/2015/01/i-am-not-charlie.html (12) Artigo de Wayne Madson, obtido em http://www.strategic-culture. org/news/2015/01/11/curtain-rises-another-act-continual-global-war-terror-play.html publicado no dia 21 de janeiro de 2015. 65 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Pequena história de um século da Grande Revolução de Outubro Bernardo Joffily* Combatentes que vão e voltam do front na Guerra dos Bálcãs, que a Internacional julgava um crime Princípios publica nesta edição o segundo artigo da série de textos sobre a Revolução Russa, que completará 100 anos em 2017. Escrita pelo jornalista Bernardo Joffily, a série de textos procura contribuir com o debate sobre o significado e as lições deste que foi um dos principais acontecimentos da história contemporânea. No artigo desta edição, ainda focado no período anterior à grande Revolução de Outubro, Joffily aborda importantes episódios que, a partir da eclosão da primeira guerra mundial, contribuíram para fortalecer o movimento revolucionário na Rússia 66 História Soldados russos festejam a Revolução de Fevereiro, crendo que escapariam em breve da guerra A Grande Guerra, traição social-democrata, Revolução de Fevereiro, sovietes Grande Guerra de 1914-1918 (só mais tarde batizada de Primeira Guerra Mundial) envolveu 60 milhões de soldados, dos quais 14 milhões russos. Esmerou-se em inovações mortíferas da indústria bélica – a aviação de combate, os tanques e, claro, as armas químicas, artefatos de destruição em massa banidos como crimes de guerra pelo Protocolo de Genebra (1925). Seus horrores inspiraram o romance-testemunho-denúncia Nada de novo no front, do ex-combatente alemão Erich Maria Remarque (1898-1970) – que em 1933 teria seus livros queimados pelo Terceiro Reich. A carnificina custou perto de 10 milhões de vidas – um terço delas no Império Russo. E foi a responsável direta pelas duas revoluções russas de 1917, a de Fevereiro e a de Outubro. Entre as baixas fatais da Grande Guerra está a Internacional Operária (ou Internacional Socialista, ou Segunda Internacional). A associação operária marxista fora fundada no Congresso de Paris, em 1889, por delegados de vinte países, numa iniciativa de Friedrich Engels. Morreu em 1916, trucidada ingloriamente nas trincheiras. Esplendor e miséria da Segunda Internacional A Segunda Internacional fora o berço dos partidos operários de massas e, em grande medida, formatara o paradigma dos partidos políticos da modernidade. Forjara marcos de dimensões históricas como o 1º de Maio – como Dia Internacional de Luta da Classe Trabalhadora – e do 8 de Março – Dia Internacional da Mulher. Fincara na arena política do planeta a bandeira vermelha da classe trabalhadora e do marxismo (já que a Primeira Internacional, liderada por Karl Marx em 1864-1872, fora apenas um ensaio pioneiro). Mas a Internacional Socialista fora se deixando acomodar pelo período de paz e normalidade insti- 67 Ed. 135 – Março/Abril 2015 tucional em que vivia e progredia. Desde a Guerra Franco-Alemã de 1870 (que aliás servira de estopim à Comuna de Paris) a Europa não conhecia conflitos bélicos, confinados na periferia colonial e semicolonial. O capitalismo vivia uma fase de orgulhosa expansão, e com ele crescia a classe operária. As eleições se sucediam ordeiramente e a cada uma delas subia a votação nos partidos operários social-democratas filiados à Internacional. Lênin desembarca na Estação Finlândia de Petrogrado e discursa à Nessa quadra relatimultidão: “Viva a Revolução Socialista! vamente pacífica, fora prosperando também o oportunismo nas filas marconflagração mundial), a Internacional proclamou que xistas. Entrara em cena o revisionismo – tendência a os operários de todos os países consideravam um crirenegar a essência revolucionária me atirar uns contra os outros para do marxismo, mantendo-o apenas aumentar os lucros dos capitalistas. Os bolcheviques formalmente. A revolução ia se esMas quando o conflito mundial russos foram a vanecendo como uma piedosa utoeclodiu, os social-democratas em pia, ou o resultado de uma paulasua grande maioria esqueceram principal exceção tina marcha de eleição em eleição. o compromisso internacionalista. (...), combatendo O social-democrata alemão Eduard Com muito raras e honrosas exceBernstein (1850-1932), fundador ções, mais do que depressa votaram com firmeza a guerra do “socialismo evolucionista” e deos créditos de guerra e se juntaram que acusavam de cano dos revisionistas, pregava que à “sua” burguesia no esforço bélico. imperialista de “o movimento é tudo, o objetivo Essa atitude foi um golpe de final, nada”. morte na Segunda Internacional. rapina. No início, Para começar, ela quebrava a espinão foi fácil: a Bancarrota da Segunda nha da unidade dos partidos filiados, Internacional que passaram exatamente a atirar histeria “patriótica” uns contra os outros, pela “causa” embriagou parte da Com seu paroxismo de horrodas “pátrias” da Tríplice Entente res, infâmia, cobiça, e hipocrisia, a (Inglaterra, França, Rússia) ou dos classe trabalhadora Grande Guerra trocou a fase de deImpérios Centrais (Alemanha, Áussenvolvimento pacífico por outra, tria-Hungria, Turquia). Além disso, adversa para as crenças gradualistas. Abria-se uma ela contradizia princípios solenemente proclamados e crise revolucionária. Soava a hora da verdade para gerou na associação uma barafunda de contradições. a consistência revolucionária dos social-democratas. Uma ala direita aderiu abertamente ao “socialA guerra não foi algo inesperado. Havia anos seu chauvinismo” (o termo deriva de Nicolas Chauvin, odor empestava o ambiente. E era público o comprofigura lendária na França do século 19, símbolo misso antibelicista da Segunda Internacional. Já em burlesco de um ultranacionalismo cego e xenófobo); 1910, uma resolução do seu Congresso de Copenhaoutra, inclusive Karl Kautsky (1854-1938), líder da gue obrigava os socialistas a votarem nos parlamentos poderosa cidadela social-democrata alemã, tentou contra os créditos de guerra. No Congresso da Basileia, equilibrar-se numa posição centrista; não votou nos durante a guerra dos Bálcãs (1912, um prenúncio da créditos de guerra, nem contra, preferindo a abstenção. 68 História A atitude dos bolcheviques: “Guerra à guerra”! Os bolcheviques russos foram a principal exceção (junto com os deputados socialistas da Sérvia, os búlgaros “estreitos”, opostos aos “amplos”, e um único deputado da numerosa bancada social-democrata alemã, Karl Liebknecht [1971-1919]), combatendo com firmeza a guerra que acusavam de imperialista de rapina. No início, não foi fácil: a histeria “patriótica” embriagou parte da classe trabalhadora, que nos primeiros dias, participou de manifestações pela guerra. Agitadores que o Partido enviou ao front, para denunciar a guerra, chegaram a ser linchados por massas de soldados que viam neles traidores a soldo dos “bárbaros prussianos”. Mesmo assim o Partido Bolchevique empunhou sem vacilações a bandeira da luta contra a guerra. Ele lançou as palavras de ordem de “transformar a guerra imperialista em guerra civil” e “pela derrota do próprio governo na guerra imperialista”. Sua bancada na Du- ma (Parlamento) se opôs aos créditos de guerra e por isso foi deportada para a Sibéria. O Partido organizou o boicote operário aos “Comitês da Indústria de Guerra”, pregou a confraternização entre os combatentes das trincheiras e criou células bolcheviques entre soldados e marinheiros, inclusive no poderoso complexo fortificado de Kronstadt que guarnecia Petrogrado. Lênin desenvolveu do exílio gigantesco trabalho para fundamentar a linha bolchevique. Datam dessa época obras como A bancarrota da Segunda Internacional, O socialismo e a guerra e O imperialismo, fase suprema do capitalismo. Esta última, em especial, desvenda os mecanismos econômicos que engendraram a guerra, com a passagem do sistema burguês ao estágio dos grandes monopólios financeiros em luta pela partilha do mundo. A Revolução de Fevereiro derruba o czarismo O ardor patrioteiro arrefeceu em todos os países à medida que a guerra exibia seus horrores e sua real Passeata bolchevique de julho de 1917; a faixa diz: “Abaixo os ministros do capitalismo. Todo poder aos sovietes.” 69 Ed. 135 – Março/Abril 2015 natureza. Na Rússia a desilusão foi especialmente forcipe George Lvov (1861-1925) e, após julho, pelo te, devido ao trabalho bolchevique, mas também às deputado social-revolucionário de direita Alexander sucessivas derrotas militares do czarismo frente à AleKerensky (1881-1970). Do lado oposto estavam os manha, que ocupou a Polônia e parte do Báltico. EnSovietes de Operários e Soldados, que se propagaquanto os bens de consumo escasseavam, até na caram por todo o país e eram ao mesmo tempo um pital e em Moscou, a família imperial permanecia sob instrumento da revolução e um órgão de poder, uma influência do sinistro monge Grigori Rasputin (1869ditadura do proletariado e dos camponeses. 1916); o ministro da Guerra Vladimir Sukhomlinov Essa oposição, por sua vez, também continha duera preso por espionagem pró-alemã; e a burguesia biedades. O Soviete de Petrogrado avalisou o Governo conspirava para substituir o czar por Provisório, pois no início era doseu irmão caçula Miguel Romanov. minado por social-revolucionários A ebulição revolucionária ree mencheviques – os bolcheviques A Revolução tornou, tal como em 1905, mas tinham apenas dois de seus 14 diridesbaratou o com três marcantes diferenças. Os gentes. O bolchevismo também era bolcheviques já contavam com um minoritário no Soviete de Moscou, aparato repressivo partido próprio, livres da incômoda prevalecendo apenas em uma ou czarista e garantiu, coabitação com os mencheviques. outra cidade menor, como IvanoO czarismo fora isolado, encurravo-Vosnessensk e Krasnoiarsk. O pela primeira vez lado, desmoralizado. E não era só Partido Bolchevique era ainda um na Rússia, ampla a Rússia que se convulsionava, a partido de quadros, com 40 mil a 45 guerra derrubaria igualmente os mil membros. liberdade de Impérios Alemão, Austro-Húngaro A Revolução desbaratou o apaimprensa, reunião, e Otomano. rato repressivo czarista e garantiu, manifestação e O ano de 1917 começou com pela primeira vez na Rússia, ampla uma greve de um terço dos operáliberdade de imprensa, reunião, organização rios de Moscou. Em 18 de fevereiro manifestação e organização. Em cruzaram os braços os operários da cinco dias, o Pravda voltou a circucolossal usina Putilov, em Petrolar. Os perseguidos pela autocracia grado. Dia 23 (8 de março no calendário gregoriano), voltaram a Petersburgo e à ação política aberta. Joas operárias da capital, sob liderança bolchevique, sef Stálin (1879-1953), Jakob Sverdlov (1885-1919) saíram à rua contra a fome, a guerra e o czarismo, e e Lev Kamenev (1883-1936) deixaram o degredo com apoio de uma greve na cidade. A greve geral foi na Sibéria, Leon Trótsky (1879-1940) e Nicolai Buganhando contornos de insurreição, operários tomakharin (1888-1938), o exílio em Nova Iorque. Lêvam para si as armas da polícia. No dia 25 uma Comnin, e vinte outros exilados russos na Suíça, após panhia militar em Pavlovsk abriu fogo, não contra complicadas negociações com Berlim, regressaram os grevistas mas para defendê-los da cavalaria que no “trem blindado” alemão, com um único vagão e os atacava. status extraterritorial – o que valeu-lhe não poucas No dia 27 os soldados sublevados saltaram de 10 acusações de “agente do kaiser”. mil para 60 mil. Os presos políticos foram libertados, “Teses de Abril”: “Cinzenta é a teoria, generais e ministros czaristas presos. A revolução meu amigo”... dominou por completo Petrogrado. Uma multidão invadiu a sede da Duma; à tarde, uma assembleia O “trem blindado” chegou na Estação Finlândia de criou o Soviete de Operários e Soldados. O czar tenPetrogrado quase meia noite de 3 (15) de abril, mas tou fugir da capital, mas seu trem foi forçado a retromilhares de operários e soldados o esperavam. Falanceder; ele abdicou e a seguir foi preso. do de cima de um carro blinado, Lênin fez seu primeiA dualidade de poderes ro discurso após o longo exílio. E surpreendeu a todos ao terminar com um “Viva a revolução socialista!”. A Revolução de Fevereiro foi fulminante rapidez Até ali era consenso que a revolução na Rússia e pouco cruenta, mas criou uma situação dúbia e tinha caráter não socialista, mas democrático-burinstável. Havia uma dualidade de poderes, um origuês, visando ao fim da autocracia, à república, à enginal e confuso entrelaçamento. De um lado, estatrega da terra aos camponeses, à jornada de oito hova o Governo Provisório, poder da burguesia e dos ras. Lênin argumentou que a Revolução de Fevereiro latifundiários aburguesados, encabeçado pelo prínjá cumprira essa etapa, ainda que de modo precário e 70 História incompleto. Tratava-se agora de seguir adiante, com os operários e camponeses pobres, por uma república dos Sovietes. Ele desenvolveu a ideia nas famosas Teses de abril, escritas ainda no trem e apresentadas horas após chegada. “A peculiaridade do momento atual na Rússia consiste na passagem da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o necessário grau de consciência e organização, à sua segunda etapa, que colocará o poder nas mãos do proletariado e dos camponeses mais pobres”, diz o texto. E contestou os que se apegavam à visão anterior com versos do Fausto de Goethe (1808): “Cinzenta é a teoria, meu amigo, mas eternamente verde a árvore da vida”. As Teses analisam a dualidade de poderes. Rejeitam “qualquer apoio ao Governo Provisório”. Mas não pregam sua derrubada imediata, e sim um trabalho “paciente, sistemático, tenaz”, “enquanto estivermos em minoria”. E lançam já a célebre palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”. Propõem ainda a mudança do nome do Partido, de Bolchevique para Comunista, e a fundação de uma nova Internacional, comunista. As massas aderem às palavras de ordem bolcheviques Nessa linha, o Partido lançou-se à conquista da maioria nos Sovietes, nos sindicatos e comissões de fábrica. O Governo Provisório, uma coalizão de partidos burgueses com os social-revolucionários e mencheviques, não se atrevia a efetivar as transformações exigidas pela Revolução. Em vez de tirar a Rússia da guerra, lançou em 18 de junho (1º de julho) nova ofensiva militar, que terminou em novo fracasso. Nesse mesmo dia, 400 mil trabalhadores marchavam em Petersburgo sob as palavras de ordem bolcheviques, “Abaixo a guerra!”, “Abaixo os 10 ministros capitalistas!” e “Todo Poder aos Sovietes!”. Em julho o governo desferiu uma ofensiva repressiva. Lênin chegou a ter decretada sua prisão por “alta traição”; teve que cair em rigorosa clandestinidade, oculto numa choça na Finlândia (na época parte da Rússia). Ali escreveu o livro O Estado e a revolução – apaixonada e meticulosa defesa do conceito marxista da ditadura do proletariado, “cem vezes mais democrática que a mais democrática democracia burguesa”, com base nas lições da Comuna de Paris e prenunciando a república soviética em gestação. Em julho agosto reuniu-se o 6º Congresso do Partido Bolchevique – na clandestinidade e sem Lênin, por razões de segurança. Os filiados já somavam 240 mil. A influência de massas crescia. Na avaliação do informe político, apresentado por Stálin, “o período pacífico da revolução terminou; começou o período não pacífico, um período de choques e explosões”. O 6º Congresso admitiu o pedido de ingresso no Partido de Trotsky e do pequeno grupo independente onde ele se abrigara, os Mejraiontsi, um e outro oriundos de uma posição centrista na polêmica bolcheviques x mencheviques. Fracassa a Kornilovada, bolchevismo conquista os Sovietes Em 25 de agosto sobreveio a Kornilovada: o general cossaco Lavr Kornilov (1870-1918), recém-promovido por Kerensky a comandante-em-chefe do exército russo, marchou sobre a capital com os cavalarianos da “Divisão Selvagem”, decidido a “acabar com Emblema usado os Sovietes” e “salvar a pelos seguidores pátria” com uma ditadudo general Kornilov ra militar. Era também um ultimato ao Governo Provisório, que, após muitos titubeios, buscou apoio dos bolcheviques. Os bolcheviques chamaram à resistência armada. Em poucos dias, multiplicaram-se os efetivos da Guarda Vermelha, milícia operária ativa desde Fevereiro. Unidades revolucionárias do Exército e da Marinha acorreram para defender a capital junto com os operários. Em cinco dias a Kornilovada chegou a um retumbante fracasso. Os soldados cossacos a abandonaram. Kornilov foi preso, com 7 mil correligionários, antes de disparar um só tiro. Os bolcheviques, triunfantes, deixaram a clandestinidade imposta em julho. No dia seguinte ao fim da Kornilovada, o Soviete de Petrogrado passou-se para as posições bolcheviques. Seus dirigentes mencheviques e social-democratas abandonaram os postos e uma direção bolchevique presidida por Trotsky assumiu. Dias depois o Soviete de Moscou seguiu o mesmo caminho. Estava preparada a cena para o Outubro vermelho. * Bernardo Joffily é jornalista, tradutor, colaborador de Princípios e autor do Atlas Histórico IstoÉ Brasil 500 anos 71 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Vietnã: guerra, revolução e desenvolvimento Paulo Fagundes Visentini* Cidade de Ho Chi Minh, retrato de desenvolvimento pleno A Guerra do Vietnã representa um verdadeiro ícone da história contemporânea, independentemente da preferência política do observador. Ela é especial porque culminou com a derrota militar da maior superpotência por uma nação agrária de pequenas dimensões. Mas o país não foi apenas palco de uma guerra: o povo vietnamita foi protagonista de uma longa e árdua revolução social e de libertação nacional. Ao longo desse caminho, derrotou também outras potências, mas sofreu enorme destruição, um pesado embargo político-econômico internacional e perdeu seu maior aliado com o fim da Guerra Fria. E, ainda assim, hoje é um país soberano e em pleno desenvolvimento 72 História H á exatos 40 anos, os tanques do então Vietnã do Norte e os guerrilheiros sul-vietnamitas irrompiam no palácio presidencial do general Van Thieu, em Saigon (atual Ho Chi Minh), derrubando os imensos portões gradeados. Os últimos americanos e a elite do regime neocolonial vencido embarcavam em helicópteros no telhado da Embaixada, desesperados, rumo aos porta-aviões. E o general-presidente deixava o país com dois aviões carregados: um com seus parentes e amigos mais próximos, outro repleto de reservas de ouro do Banco Central. Era o fim de uma longa e violenta guerra e a reunificação da nação vietnamita. Nacionalismo, comunismo e antifascismo: a resistência O Vietnã foi gradualmente dominado pela França na segunda metade do século XIX, juntamente com seus vizinhos – Laos e Camboja –, formando a colônia da Indochina. As revoltas tradicionais fracassaram e a terra dos revoltosos foi confiscada e entregue a grandes empresas agrícolas francesas, especialmente para a produção de borracha (seringais) e aos colaboracionistas que adotavam o catolicismo (inclusive o alfabeto latino foi introduzido). Assim, houve a formação de um proletariado rural e urbano (portos, transportes, indústrias de transformação, mineração e plantations). Uma pequena burguesia no setor de serviços também foi formada, mas a burguesia compradora era uma classe irrelevante devido às limitações impostas pelos franceses, que dominavam os grandes negócios. A mobilização de trabalhadores na Primeira Guerra Mundial, a influência da Revolução Soviética, o impacto econômico da Grande Depressão e a queda da França frente aos alemães tiveram forte impacto político no Vietnã. A Primeira Guerra e a Depressão geraram mobilização social e política, reprimida pelos franceses, mas a Internacional Comunista contribuiu para formar quadros destacados, como Ho Chi Minh, que tratou de adaptar o marxismo às condições asiáticas, em particular vietnamitas. Assim, nacionalismo e socialismo se tornavam instrumentos de luta anticolonial. Na década de 1930 houve diversos levantes camponeses, como os Sovietes de Nge Tinh, reprimidos com rigor pelas autoridades. Com a queda de Paris, em 1940, foi implantado na França o Regime fascista de Vichy, que controlava as colônias. Assim, o movimento anticolonial vietnamita se transformou, também, em movimento antifascista, sobretudo quando os franceses autorizaram que o Japão Tropas comemoram vitória do Viet Minh em Hanoi, 1954 ocupasse militarmente o país, para dali atacar as colônias inglesas. Pequenos destacamentos guerrilheiros do Viet Minh (a frente liderada pelos comunistas) atacaram unidades isoladas e foram caçados pelas forças franco-nipônicas. Mas em março de 1945 o Japão desarmou os franceses e promoveu uma pseudoindependência com o imperador Bao Dai. Mas o tempo corria e o Viet Minh, aproveitando o vácuo criado com a iminente derrota do Japão, conseguiu implantar a República Democrática do Vietnã em agosto de 1945. A luta de libertação nacional antifrancesa (1945-1954) Os franceses, que não reconheceram a independência, decidiram reocupar o país em 1946, quando já tinham força para passar à ofensiva. Depois de combates desiguais, o Viet Minh se retirou das cidades e passou à guerrilha. Comandos, hospitais, depósitos, escolas, pequenas fábricas de armas e gráficas foram criados em santuários nas montanhas. Os combatentes agrupados em três categorias: tropas de combate nacionais permanentes (os “capacetes duros”), guerrilheiros regionais (que se transformaram em camponeses quando necessário) e as milícias de autodefesa das aldeias, compostas por camponeses. A destruição permanente de vias de comunicação e ataques a pequenas guarnições forçaram os franceses a deslocar continuamente suas tropas, deixando outras áreas desguarnecidas, que eram atacadas. Logo, a guerrilha controlava grande parte do país, obrigando os franceses a mobilizar mais recursos e a trocar de tática, situação que se agravaria com a vitória da Revolução Chinesa em 1949 (constituindo uma base de apoio ao Viet Minh). 73 Ed. 135 – Março/Abril 2015 estudantes, minorias e outras forças que protestavam contra a violência e a corrupção do regime. No norte, a República Democrática do Vietnã implantava o socialismo com a reforma agrária, socialização dos meios de produção, início da industrialização (com apoio dos países socialistas) e projetos de educação e saúde. Todavia, logo eles teriam que se envolver na crescente guerra civil do sul, o que permitiu aos guerrilheiros (agora organizados como Viet Cong) lograr avanços. O regime de Diem começava a sofrer derrotas no campo e violentas manifestações nas cidades, levando os americanos a se preocuparem com a cegueira do seu aliado. Em 1963, Washington, cada vez mais envolvida no Vietnã, orquestrou sua derrubada pela CIA e alguns generais. Seguem-se dois anos de turbulência até que o general Nguyen Van Thieu assumiu e Para Giap, a questão os americanos partiram para a escalada: em 1965 havia 25 mil solera como enfrentar dados e em 1968, 600 mil. Em 1965 um gigantesco os americanos iniciaram os bompoder de fogo bardeios sistemáticos ao Vietnã do Norte e os marines desembarcaram sobre um território em Da Nang, escoltados por tanestreito, sem a ques e sobrevoados por centenas de helicópteros, com holofotes ilumiprofundidade nando e ruídos amplificados, como estratégica com que num filme para aterrorizar os vietcontaram soviéticos namitas. A tática francesa foi entrincheirar-se e atrair os vietnamitas para um combate aberto. Mas como as grandes cidades não foram atacadas, resolveram então criar um ponto fortificado na distante fronteira montanhosa com o Laos, em Dien Bien Phu. Mas ali o general Vo Nguyen Giap, o grande estrategista militar do Viet Minh, resolveu enfrentar o adversário e, ao cabo de algum tempo, os franceses foram cercados e espetacularmente derrotados. A França não tinha como continuar a guerra e aceitou negociações em Genebra, em 1954, num pacto firmado por todos os representados, menos pelos Estados Unidos. O país ficaria temporariamente dividido na altura do paralelo 17, com o Viet Minh concentrando suas forças ao norte e os elementos católicos, pró-franceses e do imperador Bao Dai ao sul, até a realização de eleições, prevista para dois anos depois. A divisão: socialismo no norte e Guerra Civil no sul (1954-65) Os EUA (recém-“empatados” na Coreia), que já apoiavam os franceses, decidiram tomar a questão em suas mãos e criaram a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE, um pacto militar) e apoiaram a tomada do poder no sul por Diem (católico), e chineses. A derrubando o imperador Bao Dai e A Guerra Revolucionária resposta foi a tática proclamando a República do Vietcontra os EUA e o Regime nã. Ao mesmo tempo, lançaram o neocolonial (1965-1975) da Guerra Popular, projeto Vietnã Livre, um plano de com ataques à ajuda em dinheiro, armas e assesO objetivo americano era uma sores militares. Quando chegou a guerra clássica geograficamente retaguarda do época da eleição, em 1956, Diem limitada. Para Giap, a questão era inimigo se negou, argumentando que seu como enfrentar um gigantesco poregime não havia participado da der de fogo sobre um território esConferência de Paz e os EUA, cinicamente, alegaram treito, sem a profundidade estratégica com que connão ter firmado o acordo. taram soviéticos e chineses. A resposta foi a tática da Como o Viet Minh era uma força no sul, Diem Guerra Popular, com ataques à retaguarda do inimipassou à repressão em massa, se apoiando num rego, fazendo com que a frente de combate estivesse gime corrupto em que sua família ocupava quase em qualquer lugar. Além disso, técnicas de guerra todos os cargos relevantes, e os católicos (10% da psicológica foram empregadas com sucesso contra população) os demais. Inclusive no exército, fundaos invasores. mentalmente budista, quase todos os oficiais eram O poder de foco americano não tinha onde focar católicos. Logo Diem enfrentava também budistas, e se perdia, as baixas eram numerosas, a lógica viet- 74 História namita não era compreendida e logo a moral do exército decaiu perigosamente, com uso de drogas e insubordinação. O regime sul-vietnamita consumia cada vez mais recursos. Num esforço derradeiro, os americanos jogavam napalm nas aldeias, o desfolhante agente laranja (uma arma química) nas florestas e aumentavam os bombardeios e massacres. Mas no Ano Novo Lunar de 1968, o Viet Cong lançou ataques simultâneos contra todos os objetivos inimigos no Vietnã do Sul (a Ofensiva do Tet). Ficou claro para todo o mundo: a Jovem estende uma flor contra as baionetas em frente do Pentágono, durante guerra não poderia ser vencida e os protesto contra a guerra do Vietnã. Washington, EUA, 1967 americanos buscaram se retirar. Para tanto, tentaram se aproxiUnificação: um socialismo cercado mar da China e a retirar parte de suas tropas, mas (1975-1991) aumentando a ajuda. Segundo um general americano, “um marine custa o mesmo que 18 soldados sulO sul foi libertado e, formalmente em 1976, foi vietnamitas, cujos cadáveres não geram problemas unificado com o norte, originando a República Sopolíticos”. Estava se referindo ao gigantesco movicialista do Vietnã. Enfim a paz? Não. O norte era somento antiguerra que sacudia as cidades americacialista e iniciou a reconstrução, mas o sul, além de nas. Em 1973, a maior parte se retirou do Vietnã, arrasado, estava desestruturado. Os campos foram esmas assessores permaneciam e o poder de fogo do vaziados pela guerra e Saigon era uma favela gigante, sul foi reforçado. Mas no início de 1975 o Viet Cong com prostitutas, traficantes e criminosos, especuladoe os norte-vietnamitas iniciaram uma série de ações res, ex-soldados do sul, órfãos, viúvas e inválidos. Era que, em semanas, levaram ao completo colapso do necessário realizar a Revolução Nacional Democrática Regime de Saigon. e Popular antes de implantar o socialismo. Quando o governo nacionalizou o comércio especulativo, dominado pelos Hoa (chineses), eles saíram em dezenas de barcos para Hong Kong, servindo de pretexto para sanções da China e dos Estados Unidos. Em 1977, o Vietnã entrou na ONU, mas passou a sofrer forte embargo econômico e político. No Camboja (Kampuchea), a Revolução caiu nas mãos de um grupo de influência maoísta que, instigado pela China e pelos EUA, promovia choques armados na fronteira vietnamita. A bizarra experiência de “ruralização” dos retrógrados Khmers Vermelhos gerou mortandade na população e refugiados, que foram organizados pelo Vietnã e, em dezembro de 1978, junto com eles, entrou no Camboja e expulsou Pol Pot para a fronteira da Tailândia (onde era apoiado pelo Ocidente). Tal ação, plenamente justificada por razões humanitárias, diplomáticas e estratégicas, gerou duas consequências terríveis. Primeiro, o Vietnã teve de proteger o novo governo cambojano com 120 mil soldados por uma década – o que teve um custo político e econômico terrível. Em segundo lugar, Deng Xiao Mapa ilustra ataques da Ofensiva do Tet, lançada pelos Ping disse ao presidente Carter que iria “dar uma norte-vietnamitas contra as forças americanas em 1968 75 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Ho Chi Minh (d.) e Deng Xiaoping (e.) lição ao Vietnã” e, em fevereiro de 1979, invadiu o vizinho, numa guerra inter-socialista. Seiscentos mil soldados chineses lutaram por um mês e tiveram de se retirar com 60 mil baixas (números idênticos aos dos americanos). O Vietnã derrotava a terceira grande potência, mas ao preço de um estrangulamento econômico nos anos 1980. Doi Moi: um socialismo reformado (1991-2015) No final da década, com a Perestroika de Gorbachev, o Vietnã retirou seus soldados do Camboja em 1989 e procurou reformar sua economia, pois a ajuda soviética era cada vez menor. E, logo, a URSS desintegrou-se e até a China foi ameaçada pela contrarrevolução. Hanói e Pequim normalizaram as relações em 1992 e em 1995 o Vietnã passou a integrar a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) e restabeleceu relações com os EUA. E ainda era o único país asiático a não ter recebido indenizações de guerra do Japão. Experiências de reforma, para a implantação de um socialismo de mercado ao estilo chinês, já vinham ocorrendo desde os anos 1980. Agora, elas amadureciam e recebiam a denominação de Doi Moi, com o Estado controlando as áreas estratégicas, apoio ao camponês e zonas econômicas para atrair investimento estrangeiro. A estratégia comporta riscos, mas os negócios de mercado ficaram em Ho Chi Minh (ex-Saigon), enquanto o poder político e a indústria pesada permaneceram em Hanói. A carência de arroz deu lugar à sua exportação, bem como de manufaturados. O Tigre de terceira geração cresce como a China, mas busca manter sua autonomia em relação a ela. Rivalidades geopolíticas históricas no Mar da China Meridional são apontadas pela mídia ocidental como tensões militares – um exagero de quem quer criar discór- 76 dia, enquanto os problemas são resolvidos do “jeito asiático”. O Vietnã, o Estado pivô da Indochina – nove décadas após sua força política dirigente ter iniciado a resistência ao fascismo, oito após triunfar sobre os japoneses, sete depois de expulsar os franceses e quatro após derrotar os EUA e ter impedido uma invasão chinesa, quase três depois de perder o apoio e ver desaparecer a potência protetora soviética –, enfrenta satisfatoriamente os desafios da globalização e mantém seu regime socialista (de mercado). A independência e a soberania nacional foram atingidas, o país mantém um regime de sua escolha e segue como uma nação com uma forte cultura e identidade própria. Se o desenvolvimento e a prosperidade ainda não foram plenamente atingidos, é forçoso reconhecer que a nação logrou avanços, sobreviveu a terríveis experiências e se localiza no centro da região de maior crescimento econômico mundial no início do século XXI, plenamente nela inserida. Sua história nacional se tornou uma importante referência para a ascensão da região e para o avanço da humanidade. O povo do pequeno Vietnã realizou uma grande e difícil revolução, que teve impacto mundial, ao derrotar e enfraquecer os Estados Unidos, ao motivar dezenas de povos que, na mesma época, lutavam pela emancipação nacional e pela revolução social. Numa época onde até a esquerda evitava a palavra Socialismo, o Vietnã assim se definiu até em sua denominação oficial, sob a direção do Partido Comunista. Nenhum detrator teve coragem de atacar a figura do líder Ho Chi Minh, um homem calmo e terno, firme e inspirador, mesmo em meio à tempestade da guerra. Mas aos que não gostam de política, o povo vietnamita os brinda com a imagem de camponeses simples, armados com a vontade, brutalizados e despedaçados, lutando de forma desigual contra a maior máquina militar que o planeta já conheceu, e vencendo. No museu da guerra de Ho Chi Minh, em Saigon, duas coisas impressionam: as fotos e objetos (que falam por si) e os visitantes estrangeiros (que calam por si). Turistas americanos são recebidos com cordialidade e entram sorridentes e excitados. Ao longo das salas eles observam a guerra que travaram e desconhecem, e vão diminuindo os ruídos. Na saída estão silenciosos, sérios e cabisbaixos. Chocados consigo mesmos e envergonhados. * Paulo Fagundes Visentini é historiador e professor titular de Relações Internacionais na UFRGS. Autor do livro A Revolução Vietnamita (Editora da UNESP) [email protected] História Refugiados coreanos da guerra em 1950 COREIA: da luta antijaponesa à libertação em 1945 (1ª Parte) Raul Carrion* Em 2015, completam-se 70 anos da vitória do povo coreano contra o Japão e os 65 anos do início da “Guerra de Libertação” contra os Estados Unidos, quando pela primeira vez o imperialismo ianque foi derrotado em campos de batalha. Este é o primeiro de três artigos que farão um retrospecto da história da Coreia em sua luta pela libertação nacional e pelo socialismo 77 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Um mural de Kim Il-sung discursando em Pyongyang A transformação da Coreia em colônia japonesa A sa da Coreia, em troca do apoio japonês à ocupação norte-americana das Filipinas (Pacto Secreto Taft-Katsura). O Tratado de Ulsa – imposto pelo Japão através das armas em 1905 – e o Tratado Coreano-Japonês de Anexação, de 1910, consumaram a transformação da Coreia em colônia japonesa. A partir de então, usando de brutal violência, os japoneses impuseram o seu domínio sobre a Coreia, apoderaram-se de suas terras e riquezas, reprimiram sua língua e cultura, exploraram cruelmente o seu povo. Em 1925, havia mais de 400 mil japoneses instalados na Coreia. Em 1942, 80% das florestas e 25% presença humana na península coreana data de 300.000 anos atrás. Sua primeira civilização – Joson Antiga – existiu três mil anos, até 108 a.C. Em 277 a.C., surgiu o primeiro Estado feudal da Coreia. No início do século V d.C., o Estado de Koguryo dominava um território de 2.400 km, de leste a oeste, e de 2.000 km, de norte a sul. Pyongyang era a sua capital. Em 918, o rei Wangkon estabeleceu a dinastia Koryo, unificando pela primeira vez a nação coreana. Ela durou até 1392, quando surgiu a dinastia feudal Joson, o último Estado feudal da Coreia, subjugado no início do século XX pelo Império Japonês. Já em 1876, o Japão havia imposto ao decadente Estado feudal coreano o Tratado de Kanghwado, reduzindo a Coreia a uma semicolônia. A guerra sino-japonesa de 1904-1905 e a guerra russo-japonesa de 1904-1905 – quando a China e a Rússia foram derrotadas pelo Japão – criaram as condições para o total domínio nipônico sobre a Coreia. Coreanos fuzilados por arrancar trilhos em protesto pelo confisco de terras sem Nessa ocasião, os Estados Unipagamento pelos japoneses dos apoiaram a ocupação japone- 78 História Pontos. Kim Il Sung foi eleito o seu presidente. A derrota do imperialismo japonês e a ocupação do Sul da Coreia pelos EUA das terras cultivadas e a quase totalidade das indústrias estavam em suas mãos. Os primeiros anos da luta contra a dominação japonesa AP Photo Os coreanos nunca aceitaram o domínio japonês. Já em 1908, o movimento Voluntários Antijaponeses chegou a abarcar 70 mil guerrilheiros, mas acabou derrotado em 1910. Todas as rebeliões que se seguiram foram brutalmente esmagadas pelos japoneses. Em 1919, surgiu o Movimento do Exército Independentista, que retomou a resistência armada aos japoneses. Em outubro de 1926, o jovem Kim Il Sung fundou a União para Derrotar o Imperialismo (UDI), tendo como meta derrotar o imperialismo japonês, alcançar a independência da Coreia e construir o socialismo e o comunismo. Em julho de 1930, Kim Il Sung criou a Associação de Camaradas Konsol, que viria a ser o embrião do futuro Partido do Trabalho da Coreia. Em abril de 1932, teve início a Guerrilha Popular Antijaponesa, que logo se expandiu para diversas regiões, inclusive a Manchúria. Em março de 1934, a guerrilha transformou-se no Exército Revolucionário Popular da Coreia (ERPC). Nas áreas liberadas, foram sendo organizados Governos Revolucionários Populares, unindo todas as forças antijaponesas. Em maio de 1936, constituiu-se a Associação para a Restauração da Pátria (ARP) – primeira organização permanente da frente única nacional antijaponesa na Coreia – e foi aprovado o seu Programa de Dez Ao final da Segunda Grande Guerra, após a rendição alemã, em 8 de maio de 1945, prosseguiu a luta contra o Japão, que continuava ocupando inúmeros países do Pacífico, entre eles a Coreia. Em 8 de agosto, sob a direção de Kim Il Sung, o ERPC iniciou a sua ofensiva geral contra os japoneses. Em 9 de agosto, a URSS declarou guerra ao Japão e atacou as tropas japonesas na Manchúria e na Coreia. Nas principais cidades e regiões, a população sublevou-se. A situação tornou-se insustentável para os japoneses. Nesse momento, os EUA, sem necessidade – pois o Japão já negociava sua rendição – lançaram duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 300 mil pessoas, quase todos civis. Em 15 de agosto, o Japão assinou sua rendição. O ERPC e demais lideranças patrióticas constituíram Comitês Populares em toda a Coreia que, reunidos em Seul, proclamaram em 6 de setembro de 1945 a República Popular da Coreia. Desrespeitando a autodeterminação do povo coreano, no dia 8 de setembro, os Estados Unidos – MacArthur no cais de Inchon em setembro de 1950. 79 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Americanos cruzam com refugiados coreanos da guerra alegando um acordo com a URSS – ocuparam com suas tropas todo o Sul da Coreia, até o paralelo 38, inclusive Seul. A seguir, dissolveram os Comitês Populares e prenderam em massa os seus membros. Segundo o historiador norte-americano Bruce Comings, “a informação interna estadunidense acerca de prisioneiros políticos sob a ocupação dos EUA dava 21.458 pessoas na prisão em 1947, e 17.000 em agosto de 1945; dois anos depois, 30.000 supostos comunistas estavam nos cárceres de Rhee e os processos dos suspeitos de comunismo constituíam 80% de todos os casos judiciais. Uma série de ‘Campos de Tutela’ alojavam esses prisioneiros adicionais (...) a embaixada dos EUA estimava que 70.000 pessoas encontravam-se nesses campos” (1). O primeiro comunicado do general Douglas MacArthur, comandante das tropas norte-americanas, não deixou dúvidas quanto ao caráter da ocupação militar: “como comandante em chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos no Pacífico, exerço através das mesmas o controle militar sobre o Sul da Coreia, desde o paralelo 38, e sobre a sua população. (...) Devem ser respeitadas todas as minhas ordens e as ditadas sob a minha autoridade. Os atos de resistência às forças de ocupação ou qualquer ação que possa obstaculizar a tranquilidade pública e a segurança serão castigadas com energia. Durante o meu controle militar o inglês será o idioma oficial” (2). Em seu informe sobre os três primeiros meses de ocupação, o general Hodge afirmou: “[existe] um crescente ressentimento em relação a todos os estadunidenses na área (...) cada dia que passa em meio a essa situação torna a nossa posição na Coreia mais insustentável e diminui nossa decrescente popularidade (...) a palavra pró-estadunidense é associada a pró-japonês, traidor nacional e colaboracionista” (3). 80 Após negarem ao povo coreano o direito à autodeterminação, os militares estadunidenses – diante das dificuldades em formar um governo pró-americano no Sul da Coreia – foram buscar nos EUA Syngman Rhee (um septuagenário que lá vivia havia 37 anos) e o impuseram, no início de 1946, como presidente de um fictício Conselho Democrático Representativo, que tinha como principal sustentáculo os antigos colaboracionistas pró-japoneses. Pouco depois, uma série de greves e passeatas – reivindicando melhores salários e direitos trabalhistas – tomou a cidade de Seul. Em um ato dos grevistas, a polícia foi autorizada a atirar na multidão, matando 41 trabalhadores. Em seguida, centenas de grevistas foram presos, torturados e condenados à pena de morte. A ocupação norte-americana e o seu apoio aos que haviam colaborado com a ocupação japonesa geraram uma forte repulsa do povo sul-coreano: “Os torturadores e os integrantes de esquadrões da morte, que até bem pouco haviam sido um dos braços do domínio estrangeiro, estavam de volta, circulando pelas ruas com armamento norte-americano, radiotransmissores e jipes.” (4) No outono de 1946, uma rebelião massiva espalhou-se por quatro províncias. Fortemente reprimidos, os rebeldes iniciaram uma guerrilha que se manteve ativa até 1949. Em outubro de 1948, ocorreu uma importante rebelião no porto de Yosu, sufocada ao custo de mais de 2.000 mortos e 3.000 presos. Na ilha de Cheju a resistência foi sufocada depois de terem sido mortos 60 mil pessoas, terem fugido para o Japão outras 40 mil e terem sido destruídas cerca de 40 mil casas. Das 400 aldeias existentes, só restaram 170. História A reconstrução na Coreia no Norte coreanos haviam sido alfabetizados e o analfabetismo foi definitivamente erradicado no país. Em 10 de agosto de 1946, foi assinado o “Decreto Enquanto isso, no Norte, as tropas russas ali esde nacionalização de indústrias, transportes, comunicações, tacionadas respeitaram o governo surgido dos Comibancos etc.”, pertencentes a japoneses, pró-japoneses tês Populares e constituído logo após a vitória contra e traidores da nação, que tiveram os seus bens exos japoneses. propriados, sem direito a qualquer indenização. Os Em 10 de outubro de 1945, Kim Il Sung fundou capitalistas patriotas e pequenos o Partido Comunista da Coreia do Nore médios empresários tiveram os te, que em fins de agosto de 1946 seus bens respeitados. uniu-se ao Partido Neodemocrático Em 10 de agosto de Em 3 de novembro de 1946, foda Coreia, constituindo o Partido do 1946, foi assinado ram realizadas as primeiras eleições Trabalho da Coreia do Norte (PTCN). democráticas da Coreia, em 5.000 Em 8 de fevereiro de 1946, tendo o “Decreto de anos de existência. Apesar da campor base os Comitês Populares formanacionalização panha que os setores reacionários dos em todo o país, foi constituído fizeram pelo boicote às eleições ou de indústrias, o Comitê Popular Provisório da Coreia pelo voto contra o Partido do Trado Norte – com a tarefa de levar transportes, balho, 99,6% foram às urnas e 96% adiante a revolução democrática, comunicações, votaram a favor das transformações anti-imperialista e antifeudal –, o em andamento: “Nas eleições ao Coqual elegeu Kim Il Sung como seu bancos etc.”, mitê Nacional Popular de novembro de presidente. pertencentes 1946 o PDC obteve 351 representantes, Em 5 de março – sob o lema o Chongu-dang 253 e o PTCN 1.102; fo“a terra pertence aos camponeses a japoneses, ram eleitos, ainda, 1.753 representantes que a trabalham” –, foi editada a pró-japoneses postulados como apartidários” (5). Em Lei da Reforma Agrária na Coreia do fevereiro de 1947, foram instalae traidores da Norte, que confiscou as terras de dos a Assembleia Popular e o Comitê japoneses, pró-japoneses, traidonação, que tiveram Popular da Coreia do Norte, tendo por res da nação e latifundiários, e as os seus bens presidente Kim Il Sung. Em seguida distribuiu para 725 mil famílias foram realizadas as eleições para os camponesas sem terra ou com expropriados, sem Comitês Populares de cantão e de pouca terra. O regime permitiu aos direito a qualquer comuna e constituídos os seus órex-latifundiários que desejassem gãos locais de poder. trabalhar a terra se mudarem para indenização Em 8 de fevereiro de 1948, o anprovíncias vizinhas, onde lhes era tigo ERPC transformou-se oficialconcedida a mesma quantidade de mente no Exército Popular da Coreia. terra que aos demais agricultores. Os camponeses Fruto de todas essas transformações políticas, obtiveram terras que podiam ser transmitidas aos sociais e econômicas, a produção industrial aumenseus filhos, mas não podiam ser compradas ou ventou 3,4 vezes entre 1946 e 1949, e a produção para didas no mercado. Foi criado o imposto único agrío consumo cresceu 2,9 vezes. Houve um início de cola em espécie, tendo sido abolido o velho sistema diversificação industrial. No ano de 1949, a indúsde entrega obrigatória de cereais e os impostos sotria nacionalizada era responsável por 91% da probre a terra e a renda. dução e as cooperativas e o Estado controlavam 57% Em 24 de junho foi promulgada a “Lei do Trabado comércio. Na agricultura, surgiram as primeiras lho para os operários e empregados da Coreia do Norte”, cooperativas agrícolas e artesanais e um incipiente estabelecendo a jornada de 8 horas e a proibição do setor estatal, formado por granjas experimentais e trabalho às crianças. No dia 30 de julho, foi assinada estações de máquinas e tratores. a “Lei da igualdade de direitos do homem e da mulher na Segundo Cumings, “72% das crianças frequentavam Coreia do Norte”. a escola primária, comparadas com os 42% de 1944; cerca Seguiram-se diversas outras medidas para demode 40 mil escolas para adultos em todo o país brindavam cratizar as esferas judicial, fiscal, cultural e educacioalfabetização básica a operários e camponeses. Informação nal. Foi estabelecido o ensino gratuito e obrigatório estadunidense (...) mostra a produção de lingotes de ferro e deflagrada uma grande campanha de alfabetização subindo de 6.000 toneladas em 1947 a 166.000 em 1949, que, só em 1946, criou mais de 16 mil escolas para a produção de barras de aço subir de 46.000 toneladas a adultos. No início de 1949, mais de 2,3 milhões de 81 Ed. 135 – Março/Abril 2015 rechaçou as eleições em separado no Sul, exigiu a imediata retirada das tropas soviéticas e norte-americanas e defendeu a realização de eleições conjuntas para criar um governo unificado de toda a Coreia. Desrespeitando a vontade do povo coreano, a dita “comissão” realizou, em maio de 1948, eleições frauOs EUA bloqueiam a reunificação e dulentas no Sul. Essas eleições: “foram vergonhosas. autodeterminação da Coreia Os bandos terroristas assolaram a população; nas seis semanas anteriores foram cometidos quase 600 assassinatos políApesar de ter sido acertado na Conferência de ticos. É claro que ganhou a direita e a comissão internacioMinistros de Relações Exteriores de Moscou – em nal considerou o seu triunfo como legítimo e ‘democrático’. dezembro de 1945 – que a URSS e (...) A divisão ficou consagrada” (9). os Estados Unidos buscariam criar Segundo Bruce Cuming, “praum governo provisório unificado e ticamente todos os políticos e partidos Em 1948, tropas que no prazo de cinco anos se retipolíticos de expressão, à direita de Rhee, soviéticas rariam da Coreia, os Estados Unise negaram a participar nas eleições, abandonaram a dos passaram a trabalhar pela diviincluindo a Kim Kyu-sik, um peculiar são definitiva do país, no contexto centrista coreano, e a Kim Ku, um hoCoreia em respeito da “Guerra Fria”. mem situado, provavelmente, à direita à autodeterminação Além de dissolverem pela força de Syngman Rhee” (10). os Comitês Populares e reprimirem Como era de esperar, Syngman coreana e os que defendiam a reunificação da Rhee obteve ampla maioria e assuconclamaram os Coreia, criaram e armaram um pomiu a presidência. Poucos dias deEstados Unidos deroso exército no Sul – sem pospois, em 15 de agosto de 1948, sob suir qualquer mandato para tanto. os auspícios do general MacArthur, a fazer o mesmo. Não satisfeitos, propuseram, em foi proclamada a República da CoEsses, porém, se setembro de 1947, que a questão reia, dividindo de forma definitiva da Coreia – que era um assunto a a península. MacArthur ameaçou: negaram a fazê-lo ser resolvido entre as duas potên“Esta barreira [o paralelo 38] deve ser e só se retiraram cias ocupantes, a URSS e os EUA derrubada e o será. Nada poderá impe– fosse para a alçada da ONU, sem dir que o vosso povo logre a unidade em da Coreia em 30 de ingerência do Conselho de Seguliberdade” (11). julho de 1949 rança (onde a URSS poderia exerCom a posse de Syngman Rhee, cer o direito de veto). Moscou se chegou ao fim o governo militar de opôs, mas os EUA – que naquela ocupação, mas não a presença miépoca manejavam as Nações Unidas ao seu bel pralitar e a tutela dos EUA sobre o governo do Sul da zer – conseguiram aprovar a proposta. Assim, foi Coreia. Segundo Vitorino: “seguindo as orientações de formada a Comissão Temporária das Nações Unidas sobre Washington (...) Rhee governou a Coreia do Sul em Estaa Coreia, que convocou “eleições gerais” no país, o do de terror e perseguição. (...) Em 1949, o governo de Rhee que não foi aceito nem pela URSS, nem pelos normantinha em cárcere 36 mil prisioneiros políticos e um saldo te-coreanos, que não permitiram que essa comissão de mortes de mais de 100 mil pessoas” (12). fantoche dos Estados Unidos desenvolvesse as suas O próprio presidente Truman teve de confessar atividades no Norte da Coreia. a conivência dos Estados Unidos com esses crimes: Em resposta às maquinações dos EUA, realizou“Syngman Rhee (...) rodeou-se de homens reacionários (...) -se “em Pyongyang, entre 19 e 23 de abril de 1948, a Cone, quando o fim do governo militar lhe deixou as mãos liferência Conjunta de Representantes de Partidos Políticos e vres para atuar impunemente contra seus inimigos polítiOrganizações Sociais da Coreia do Norte e do Sul – na qual cos, adotou métodos policialescos para impedir a liberdade compareceram 695 representantes de 56 partidos e organide expressão. (...) Entretanto, não tínhamos outro remédio zações, abarcando mais de 10 milhões de coreanos” (7). senão apoiá-lo” (13). A própria imprensa norte-americana foi obrigada a Relatando a repressão política na Coreia do Sul, reconhecer que “na Conferência de Pyongyang todas as sustentada pelos EUA, Mário Giordano afirma: organizações de direita e de esquerda estiveram representa“Syngman Rhee foi reeleito presidente em 1952 e, novamendas, com exceção de três organizações dirigidas por Syngte, em 1956, exercendo poderes ditatoriais para manter-se no man Rhee, Kim Song Su etc.” (8). Essa Conferência governo até 1960, quando teve como sucessor o general Park 97.000, (...) superior à produção japonesa de 1944 (...); a produção industrial subiu 39,6% em 1949(...). O resultado desse esforço extraordinário (...) foi que desde 1940 até meados dos anos 1960 (...) a Coreia do Norte cresceu de maneira muito mais rápida que o Sul.” (6). 82 História Chung Hee, que assume o poder em maio de 1961, após um golpe militar. Park foi reeleito em 1967 e em 1971, mas em 1979 foi assassinado pelo chefe dos Serviços Secretos. Sobe ao poder Choi Kiu Ha, que é deposto pelos militares em 1980. Segue-se a presidência do General Chum Doo Hwan (19801988), caracterizada por repressões políticas” (14). Como se pode ver, não é de hoje que os EUA impõem e apoiam em todo o mundo ditaduras sem qualquer compromisso com a democracia... Com respaldo norte-americano, o Sul prepara a invasão armada do Norte Em resposta às eleições fraudulentas realizadas no Sul, o Norte organizou, em 25 de agosto de 1948, eleições diretas para a Assembleia Popular Suprema. Devido ao regime de terror implantado por Syngman Rhee, a única alternativa para a indicação dos representantes do Sul na Assembleia Popular foi a indicação clandestina de delegados que, reunidos em Haeju, elegeram os seus deputados. Assim, em 9 de setembro de 1948 – um mês após a criação da República da Coreia no Sul –, foi constituída no Norte a República Democrática Popular da Coreia (RPDC) e Kim Il Sung foi eleito o seu Chefe de Estado. Pouco depois, as tropas soviéticas abandonaram a Coreia em respeito à autodeterminação coreana e conclamaram os Estados Unidos a fazer o mesmo. Esses, porém, se negaram a fazê-lo e só se retiraram da Coreia em 30 de julho de 1949, quase um ano depois. Segundo Bruce Cumings, “Os estadunidenses não podiam retirar suas tropas com tanta facilidade, pois estavam preocupados pela viabilidade do regime no Sul, por suas tendências ditatoriais e por suas intenções (declaradas a todo o momento) de marchar em direção ao Norte. Mas muito mais relevante que isso era a crescente importância que a Coreia adquiria para a política mundial estadunidense como parte de uma nova estratégia dual de contenção do comunismo e revitalização da economia industrial do Japão” (15). Em fevereiro de 1949, falando à Assembleia Nacional, Syngman Rhee afirmou que caso não conseguisse anexar a Coreia do Norte com a ajuda da “Comissão da ONU sobre a Coreia” o “Exército de Defesa Nacional (...) deverá necessariamente marchar sobre a Coreia do Norte” (16). E, em 9 de março, o seu ministro do Interior, Yun Chi Yong, afirmou “que a República da Coreia recupere pela força a terra perdida que é a Coreia do Norte é a única via para reunificar o Norte e o Sul da Coreia” (17). Em resposta a essas ameaças, em junho de 1949 realizou-se em Pyongyang um encontro para constituir a “Frente Democrática pela Reunificação da Pátria” que conclamou a reunificação da Coreia pela via pacífica. A FDRP apresentou seis pontos para viabilizar essa reunificação pacífica: “1) A reunificação da Pátria deve ser realizada pelo próprio povo coreano; 2) as tropas dos EUA devem se retirar imediatamente da Coreia do Sul; 3) a ‘Comissão da ONU sobre a Coreia’, organismo ilegal, deve retirar-se sem tardança; 4) efetuar simultaneamente, em setembro de 1949, em todo o território da Coreia do Norte e do Sul, eleições para um órgão legislativo unificado; 5) assegurar a legalidade e a liberdade em suas atividades aos partidos políticos e organizações sociais democráticas; 6) o órgão legislativo supremo, surgido das eleições gerais, deve adotar uma Constituição e formar, sobre essa base, um governo” (18). Em julho de 1949, logo após a publicação do projeto de reunificação pacífica da FDRP, em resposta, o ministro da Defesa da Coreia do Sul, Sin Song Mo, ameaçou: “Nosso Exército de Defesa Nacional (...) tem a convicção e a força para ocupar completamente, não importa quando, em um dia, Pyongyang e, mesmo, Wonsan ao Norte, se a ordem for dada” (19). A Coreia do Sul – respaldada pelos EUA – preparava-se febrilmente para agredir o Norte. * Raul Carrion é historiador e presidente da seção gaúcha da Fundação Maurício Grabois. No PCdoB desde 1969, foi vereador de Porto Alegre por dois mandatos e eleito duas vezes deputado estadual. Notas (1) CUMINGS, Bruce. El Lugar de Corea en El sol – Una historia moderna. Córdoba: Comunic-arte Editorial, 2004, p. 245. (2) GARCIA ALVAREZ, Raul I. & PARDILLO GOMEZ, Mayra. Corea Sí. Pyongyang, 1992, p. 115. (3) CUMINGS, Idem, p. 219. (4) FRIEDRICH, Jörg. Yalu – à beira da terceira guerra mundial. Rio de Janeiro, 2011, p. 188. (5) CUMINGS, Idem, p. 251. (6) CUMINGS, Idem, p. 478-479. (7) DIVERSOS. História de las actividades revolucionarias del Presidente Kim Il Sung. Pyongyang, 2012, p. 227. (8) JO AM & NA CHOL GANG. Corea en El Siglo XX. Pyongyang, 2002, p. 98. (9) TRIAS, Vivian. Historia del imperialismo norte-americano-2. La hegemonía: 1919-1963. Buenos Aires, 1977, p. 224. (10) CUMINGS, Idem, p. 233. (11) HOROWITZ, D. Estados Unidos Frente a la Revolución Mundial (de Yalta al Vietnam). Barcelona, 1968, p. 147. (12) VITORINO, William. Guerra na Coreia – A origem de um conflito. São Paulo, 2010, p. 59. (13) ZENTNER, Christian. Grandes Guerras de nuestro tiempo – Las Guerras de la Postguerra (I). Barcelona, 1980, p. 70. (14) GIORDANO, Mário Curtis. História do Século XX. Aparecida (SP), 2012, p. 572. (15) CUMINGS, Idem, p. 231. (16) HO JONG HO, KANG SOK HUI & PAK THAE HO. L’impérialisme US, provocateur de la guerre de Corée. Pyongyang, 1993, p. 85. (17) Idem, p. 85. (18) Idem, p. 88. (19) Idem, p. 89. 83 Ed. 135 – Março/Abril 2015 1975 Suzana Keniger Lisboa, Milke Valdemar Keniger, Luiz Eurico Tejera Lisboa 1975 Omar Dario Mestoy, Mario Alfredo Amestoy 2006 Suzana Keniger Lisboa, Milke Valdemar Keniger 2006 Mario Alfredo Amestoy Imagens de uma América mutilada A exposição fotográfica que já atravessou o continente, emocionando ao provocar o debate sobre desaparecidos políticos em regimes ditatoriais sul-americanos, volta a São Paulo. Ausenc’as, do fotógrafo argentino Gustavo Germano (1964-) vai até o dia 12 de julho retratando a ausência de entes queridos em 12 famílias de vítimas da ditadura militar no Brasil (1964-1985). São pares fotográficos, em que a primeira imagem vem do álbum original da família no início da ditadura, contraposta à imagem de Germano, 30 anos depois, na mesma pose, evidenciando a ausência do desaparecido político. A ideia simples, mas contundente, ressalta a saudade e tristeza que marcam estas famílias. Momen- 84 tos cotidianos de felicidade familiar – brincadeiras, passeios, almoços… – são congelados no tempo no esplendor da completude e felicidade dos personagens. Nas melancólicas imagens atuais, além do vazio, perde-se o sorriso, como uma cicatriz que marca cada família amputada. O fotógrafo perdeu o irmão Eduardo, de 18 anos, mas resolveu começar a retratar essas perdas, depois de voltar à sua terra natal e observar como o desaparecimento de conhecidos afetou tantas famílias vizinhas. Como a Operação Condor foi uma articulação de ditaduras que cobriu todo o continente na repressão a militantes de esquerda, Germano segue fotografando as marcas da ditadura em famílias de vários países. Entre as “ausências” reveladas na exposição está a do comunista brasileiro João Carlos Haas Sobrinho, memória 1975 2006 “La Tortuga Alegre”. Rio Uruguay. Entre Rios 1970 2012 “La Tortuga Alegre”. Rio Uruguay. Entre Rios Letícia Margarita Oliva, Orlando René Mendez Alex de Paula Xavier Pereira 1970 2012 Llara Xavier Pereira, Luiz Xavir Pereira 1947 Luiz Afonso Linck, João Carlos Haas Sobrinho, Llara Xavier Pereira 2012 Luiz Afonso Linck, Roberto Luiz Haas, Delmar Antonio Linck Roberto Luiz Haas, Delmar Antonio Linck formado em medicina em Porto Alegre no ano de 1964. Ficou conhecido como doutor Juca, atuando no Araguaia. Seu último contato com a família foi em 1968. Depois disso, apenas em 1979, com o início da abertura política, os familiares começaram a ter conhecimento de seu envolvimento com o movimento de esquerda, por meio de comunicados que começaram a ser divulgados sobre a Guerrilha do Araguaia. Acredita-se que ele tenha morrido em um combate com soldados, juntamente com outros dois guerrilheiros. Ele teria sido enterrado em Xambioá, segundo relatos, mas o Exército sempre negou sua morte. Até hoje, a família de João, como conta sua irmã Sônia Maria Haas, ao jornal O Estado de S. Paulo, continua a busca pelos restos mortais do médico. A primeira fotografia data de 1947 e João está com um de seus seis irmãos, o Roberto, e dois primos. Para que a imagem fosse refeita no ano passado, essas pessoas precisaram se reencontrar e Sônia diz que foi uma experiência muito importante. Para ela, o trabalho do fotógrafo «amplia o nosso grito de socorro”. Há ainda fotografias de militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), como Ana Rosa Kucinski, o advogado Luiz Almeida Araújo e Luiz Eurico Tejero Lisboa, Iuri Xavier Pereira, Alex de Paula Xavier Pereira, entre outros seis exemplos. A abertura da exposição ocorre no dia 28 de março, sábado, a partir das 11h, prosseguindo até 12 de julho de 2015. O Memorial da Resistência de São Paulo fica no Largo General Osório, 66 – Luz. 85 Ed.Ed. 135133 – Março/Abril – Nov/Dez 2014 2015 Guernica, 1937. Óleo sobre tela, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Estudos da obra estarão na exposição em São Paulo Picasso e a modernidade espanhola no CCBB-SP Mazé Leite* Cerca de 90 obras do artista espanhol estão expostas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em São Paulo A exposição mostrará um pouco do caminho de Picasso como artista, até chegar à realização de Guernica, e à sua relação com outros artistas da arte moderna espanhola, como Gris, Miró, Dalí, Domínguez e Tàpies, entre outros presentes na mostra. Mas os holofotes principais dela focarão especialmente as obras de um dos grandes mestres da arte do século XX, Pablo Picasso. Essa exposição foi organizada e realizada em colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Ela foi realizada anteriormente na Fondazione Palazzo Strozzi, em 86 Florença, Itália, até o mês de janeiro deste ano. Depois de São Paulo, ela seguirá para o Rio de Janeiro – também no CCBB –, e poderá ser visitada entre 24 de junho e 7 de setembro. Ao todo, serão apresentados 90 trabalhos – metade deles de autoria do mestre cubista. Entre os quadros de Picasso que integram a mostra, estão Cabeça de Mulher (1910), Busto e Paleta (1925), Retrato de Dora Maar (1939) e O Pintor e a Modelo (1963). A arte moderna espanhola mostra a sensibilidade artística dos espanhóis e sua forma especial de ver o mundo, como resquícios de uma visão barroca que vem de muito longe. Isto também encontramos no cultura Foto: Joaquin Cortés/Román Lores Picasso pintando Guernica panha, para piorar, o fascismo de Francisco Franco criou um mundo de terror para os espanhóis, milhares dos quais tiveram de fugir de seu país para não morrer, de morte matada ou de fome. Muitos vieram para o Brasil. Na minha última viagem à Madri, em 2013, voltei no avião ao lado de uma senhora espanhola que beirava os 90 anos de idade. Veio conversando comigo durante as 10 horas de viagem do voo, me contando coisas dos tempos de Franco, o fascista. Entre outras coisas, ela me disse: “Era tudo uma loucura! Os vizinhos, os parentes, as pessoas que a gente conhecia começaram a nos dar medo. Você não podia usar uma correntinha de ouro no pescoço. Teu vizinho ou teu parente te roubava para comprar comida! Em casa, um pão teria que durar vários dias. Minha mãe partia um pequeno pedaço para cada filho, e muitas vezes ela mesma ficava sem o pedaço dela. Meu pai saía atrás de trabalho e não tinha. Todo mundo vivia de cabeça baixa, a gente falava pouco. O medo era geral. A gente ouvia tiros pelas ruas, andava se esgueirando nas calçadas… Meu pai foi preso duas vezes, suspeito de ser comunista.” Por isso, assim como milhares de espanhóis, ela – de quem esqueci o nome – veio morar no Brasil, para onde estava voltando das férias, para visitar umas amigas. Sozinha, e com quase 90 anos. “O Brasil é o país que tem o melhor povo do mundo”, afirmou ela. Na exposição do CCBB, o público também poderá ver estudos e esboços que resultaram na obra prima Guernica, um painel que Picasso pintou em 1937, e que representa as atrocidades cometidas pelas ações da direita fascista e nazista durante a Guerra Civil Es- cinema de Luiz Buñuel e Pedro Almodóvar. Qualquer um de nós que tenha tido acesso às criações artísticas espanholas consegue identificar uma linha que unifica desde Velázquez ao próprio Almodóvar, e de Francisco Goya a Picasso. É uma maneira de fazer arte como expressão que beira o drama, nunca se identificando com o que seria uma visão mais lógica e racional. Não existem medidas lineares na alma espanhola. O próprio Velázquez não obedecia a regras vindas “de fora” e se concentrou em seu próprio jeito de pintar, com pinceladas certeiras e livres. Pintava o rei Felipe, mas também os aleijados, os deformados da Corte. Mesmo as tentativas cubistas de Picasso tinham uma razão de ser que vinham do fundo de um artista muito bem informado sobre seu mundo: estraçalhado por uma Europa em frangalhos que em menos de 30 anos passou por duas guerras sanguinolentas. Picasso atravessou diversas circunstâncias históricas, socioeconômicas e políticas que o faziam se redefinir gradualmente como artista. Naquele período a relação com a realidade era difícil: homens matando homens, milhões morrendo na guerra, de fome por causa da guerra, de doenças por causa da guerra. As vidas de todos reviradas. Na EsO pintor e a modelo - 1963, Picasso 87 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Busto e Paleta, 1925 - Picasso panhola, que durou de 1936 a 1939. O painel, de 3,49 metros de altura por 7,76 metros de comprimento expõe os horrores causados pelos aviões da força aérea alemã nazista contra a população da pequena cidade de Guernica. Aliados do general Franco, os alemães fizeram deste ataque um treino para posteriores ações contra os aliados. Foram lançados 300 quilos de bombas contra o povo da pequena cidade dos bascos. Em 2001, parei diante deste painel durante umas duas horas, dentro do Museu Reina Sofia, onde ele se encontra, em Madri. Minha alma chorava. Aqueles corpos despedaçados, desesperados, e aquele cavalo em agonia me mostravam um mundo em que não vivi, mas que nunca deve ser esquecido, para que esse horror não mais se repita. Mas me levava também a lembrar do horror da ditadura militar no Brasil – que vivi! – que assassinou, torturou e perseguiu centenas de pessoas como eu. Quando vi Guernica, para minha sorte, ele já não estava mais protegido por vidro blindado e eu pude vê-lo frente a frente. Do lado esquerdo do quadro, junto com uma mãe gritando de dor com seu filho no colo, aparece a cabeça de um bovino. Seria a representação do antigo Minotauro, criatura mítica – da antiga mitologia grega –, um ser com a cabeça de um touro e o corpo de um homem, ou seja, oscilando entre o humano e o bestial. Picasso já tinha feito, no começo da década de 1930, uma série de estudos sobre a saga do minotauro, relacionando-o com as famosas Touradas do seu país. E ele acabou colocando a imagem do monstro como parte de sua representação da tragédia do povo de Guernica. O quadro parece uma constelação de relações nem sempre apreensíveis. No meio dele, há um cavalo que relincha sobre corpos esquartejados. Picasso era comunista, o cavalo representava o povo: 88 Retrato de Dora Maar, 1939 - Picasso mesmo com a cabeça cortada, e com uma expressão de dor, mas não de derrota, o cavalo luta. Acima de sua cabeça, uma luz se acende e um braço estendido apresenta uma lamparina acesa. Por todo lado, corpos esfacelados. Mas há luz, há esperança. Esta é a grande mensagem de Picasso. Esta exposição do CCBB, portanto, será uma boa oportunidade para ver de perto as obras deste artista espanhol, além dos outros, e, em especial, seus estudos para a Guernica. Tomara que mais uma vez 400 mil pessoas façam fila para ver uma grande exposição, como o fizeram para ver Ron Mueck. E que a arte dos espanhóis sirva para despertar reflexões sobre os momentos em que vivemos nos dias atuais: momentos “peligrosos”, em que forças bestiais subterrâneas resolveram colocar a cabeça para fora… No mundo, e no Brasil. * Mazé Leite é artista plástica, faz parte do Ateliê Contraponto de Arte Figurativa e é membro da Fundação Maurício Grabois – Seção São Paulo. Serviço Evento: Picasso e a Modernidade Espanhola – Obras da Coleção do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía Data: De 25 de março a 8 de junho de 2015, das 9h às 21h Local: Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo – Rua Álvares Penteado, 112 – Centro, São Paulo – (11) 3113-3651/3652 Entrada franca homenagem Arte “subversiva” de Abelardo da Hora em exposição Cezar Xavier* Maior artista expressionista brasileiro, o ativista cultural comunista pernambucano morto em 2014 recebe homenagem póstuma em mostra com 101 obras, entre esculturas, desenhos, pinturas e maquetes de projetos finalizados ou ainda por fazer. Em entrevista à Princípios, seu filho destaca as inúmeras violências sofridas pela família conforme os governos ditatoriais se sucediam, aprisionando e torturando o artista por sua militância em favor de uma arte e de uma cultura que chegasse ao povo A Caixa Cultural São Paulo inaugura no dia 7 de março, sábado, às 11 horas, a mostra individual de Abelardo da Hora (1924-2014), com 101 obras que trazem ao público a faceta inquieta e generosa do artista pernambucano. Dentre as esculturas, os desenhos, pinturas e maquetes destacam-se os bronzes Menino de Mocambo, de 1969 e A Fome e o Brado, de 1947, a série de 22 desenhos de bico de pena de 1962 e o poema Meninos do Recife, além da maquete e fotos da polêmica Torre de Iluminação Cinética, instalada na Praça da Torre, no Recife, em 1961 e destruída pelo regime militar em 1964. Em entrevista a Princípios, Abelardo da Hora Filho explica que a escolha das obras foi limitada pelas condições logísticas da Caixa Cultural, que não poderiam ser de grande porte, volume ou peso, características de uma grande parte das esculturas. Apesar disso, ele garante que a exposição é impressionante pelo alcance do acervo e comovente pela temática. Conhecido e admirado pelo temperamento ao mesmo tempo generoso e irreverente, o artista e ativista cultural celebrizou-se internacionalmente a partir dos anos 1960 com obras de temática social que denunciavam a miséria brasileira e a exclusão, sendo considerado pela crítica especializada o maior escultor expressionista do Brasil. Foi essa veia política que fez com que Abelardo fosse perseguido durante o período da ditadura militar. Integrante do então clandestino Partido 89 Ed. 135 – Março/Abril 2015 Durante os anos de 1957 e 1958 expôs em vários países. Possui obras nos acervos de museus como MASP em São Paulo, no MAC/USP em São Paulo, no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro, entre outros espaços na Bahia, na Paraíba, em Pernambuco, no EuroMuseu, além de prédios e praças públicas, museus, galerias e espaços de arte nos Estados Unidos, China e Argentina. Lançou, em 1962, o álbum de desenhos Meninos do Recife e em 1967, a coleção de desenhos Danças brasileiras de Carnaval, na Galeria Mirante das Artes, em São Paulo. Segundo o filho, sua preocupação social, tanto na arte, como na vida, nunca foi abandonada, embora também seja famoso pelas musas do amor que esculpiu. O Instituto Abelardo da Hora realiza, com dificuldades, um trabalho educativo para crianças e adolescentes de Recife que visa à educação para a arte. Integrante do então clandestino Partido Comunista desde 1948, Abelardo e sua família conheceram a prisão, a tortura e perseguição do regime de exceção que sobreveio ao golpe Série Danças Brasileiras de Carnaval, 1965 e 66 (10 desenhos a bico de pena) civil-militar de 1964. A cada Ato Institucional baixado pelos Comunista, o artista contava que havia sido preso militares, e sob quaismais de 70 vezes. Abelardinho conta que, desde o quer outros pretextos, cancelamento do Salão Nacional de Belas Artes do o artista “subversivo” Rio de Janeiro, pelo presidente Eurico Gaspar Duera preso, contabilitra, em 1945, seu pai se envolveu numa contestação zando mais de 70 prique começou a torná-lo um subversivo para os gosões desde 1947 quanvernos. O concurso existia desde os tempos do imdo fazia propaganda pério, e seu cancelamento foi uma grande decepção política em comício do para o pernambucano, que tinha todas as chances Partido. de vencê-lo aquele ano. O filho relata que, Idealizou e criou com Hélio Feijó e outros, a Sodesde os primeiros ciedade de Arte Moderna do Recife (SAMR) e, em problemas políticos, 1952, fundou o Atelier Coletivo da SAMR do qual foi ainda na década de professor e diretor. Foi também um dos idealizadores 1940, Abelardo era do Movimento de Cultura Popular (MCP), criado na tratado como vagagestão do então governador de Pernambuco, Miguel bundo, como todo Arraes, entre 1960 e 1962. Esse movimento refletia artista era visto pelas um sentido altamente engajado e seu objetivo era elites atrasadas da“ampliar a politização das massas, despertando-as quele tempo. Para a para a luta social”, conforme preconizavam seus família, segundo ele, participantes, entre os quais o célebre educador PauTorre de Iluminação Cinética, foi uma vida muito lo Freire, o escritor Ariano Suassuna, entre outros 1961 (foto de jornal) difícil, só compensaintelectuais. 90 Exposição da pelo otimismo e personalidade dinâmica e carismática do pai. Abelardinho lembra de como os amigos de pelada e papagaio se afastaram dele, como se tivesse uma doença, conforme o pai era considerado um subversivo, pouco depois de ter ocupado o cargo de secretário de Cultura do Recife. A família não tem imagens fotográfica de infância, pois a cada prisão, a polícia destruía e queimava tudo. A obra Meninos do Recife foi queimada em praça pública, junto com a obra do educador Paulo Freire. Vendo a situação difícil do artista após o golpe, Pietro Maria e Lina Bo Bardi sensibilizam-se e acolhem Abelardo e família em São Paulo, onde passa a trabalhar na extinta TV Tupi, a partir de 1964. Cheio de saudade de sua terra, ele retorna ao Recife em 1968, dedicando-se à pesca enquanto cursa A Fome e o Brado, a Faculdade de Direito 1947 (bronze, 135 x 60 x 30 cm) de Olinda. Nos anos 1970 volta a trabalhar em seu estúdio. Ao morrer, no ano passado, o artista deixou um busto do camarada Gregório Bezerra inconcluso, sem poder vê-lo instalado na praça Casa Forte, onde ele foi arrastado e deixado em carne viva para a população ver. Abelardinho lamenta que o pai não tenha visto o busto ser colocado ali, embora haja um esforço da Comissão da Verdade local para isso, com forte resistência dos moradores do bairro nobre recifense. À época da tortura escandalosa de Bezerra, ambos ficaram presos na mesma cela minúscula, que não permitia nem sentar, nem deitar com conforto. Outra obra que deve resgatar aquele período é a reconstrução da Torre de Iluminação Cinética. A obra era como um móbile gigante que ao ser tocada pelo vento, se movia, criando imagens, que os militares identificavam como sendo o ícone comunista da foice e o martelo. Abelardo deixou o Partido Comunista à época do golpe, por considerar que o enfrentamento aos militares deveria ser pela luta armada, embora fosse quase impossível para ele continuar militando sem risco de morte. Mas, segundo o filho, ele nunca se afastou dos camaradas e dos seus ideais, apenas se desencantando com a militância orgânica. Cezar Xavier é jornalista e editor executivo do Portal Grabois. Serviço Mostra: Abelardo da Hora 90 anos: Vida e Arte Abertura: 7 de março, sábado, às 11 horas, prosseguindo até 10 de maio de 2015. Local: CAIXA Cultural São Paulo Endereço: Praça da Sé, 111 – Centro – São Paulo - SP O busto inacabado de Gregório Bezerra, ainda úmido Entrada: franca 91 Ed. 134 – Jan/Fev 2015 Getúlio: biografia de um grande e polêmico presidente Carlos Rogério Carvalho Nunes* Lira Neto no lançamento da biografia em São Paulo Ler a biografia do presidente Vargas na atualidade é mergulhar na história do Brasil do século 20. É, também, acompanhar os meandros das disputas políticas que fizeram o Brasil se modernizar e avançar S ão consolidados 922 artigos, em lei, que asseguram direitos do trabalho, protegendo o trabalhador e a trabalhadora. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi aprovada em 1943 pelo presidente Getúlio Vargas. As relações e os conflitos do mundo do trabalho, que antes eram tratados como “questão de polícia”, estavam então regulamentadas em normas e regras como legislação trabalhista. A entrada em vigor, no Brasil, da CLT ocorreu em um cenário internacional da Segunda Grande Guerra Mundial e sob o Estado Novo – uma ditadura que perseguiu democratas e comunistas –, sob a presidência de Getúlio Vargas. A elaboração, discussão e aprovação da CLT é parte de surpreendente, polêmica e atualíssima bio- 92 grafia do presidente Getúlio Vargas, feita pelo biógrafo e jornalista Lira Neto. A obra é composta de três volumes: Dos anos de formação à conquista do poder: 1882-1930; Do governo Provisório à ditadura do Estado Novo: 1930-1945; e De volta pela consagração popular ao suicídio: 1945-1954 Cearense de Fortaleza, o autor Lira Neto já escreveu sobre outros personagens importantes da vida política nacional. São de sua autoria: O inimigo do rei: Uma biografia de José de Alencar; Castello: A marcha para a ditadura (do presidente Castello Branco); e Padre Cícero. O primeiro dos três livros que integram a biografia de Getúlio relata desde o nascimento de Getúlio Dornelles Vargas, em 1882, até o ano de 1930; um espaço de 48 anos, mais da metade de seus 72 anos de vida. É filho de um general da guerra do Paraguai RESENHA – Manoel do Nascimento Vargas – e de Cândida Dornelles Vargas, filha de próspero estancieiro da região. Forma-se em Direito na Faculdade de Direito de Ouro Preto (MG), à época, capital mineira. Serve o Exército no 6º Batalhão de Infantaria em São Borja, onde galga a patente de segundo-sargento. Era leitor assíduo do fundador do positivismo Auguste Comte. Entra efetivamente na vida política através do Partido Republicano do Rio Grande do Sul (PRR). Torna-se herdeiro político de Júlio de Castilho e Borges de Medeiros, ambos sob a égide do positivismo comtiano. É eleito deputado estadual, em 1909. Casa-se com Darcy Sarmanho; ela com 15 anos e ele com 29. Fato irônico e trágico para a política tradicional gaúcha, em 1923, é a eleição para a recondução para o quinto (sic) mandato consecutivo do presidente estadual (equivalente ao governador estadual de hoje) Borges de Medeiros. Em 1923, Getúlio Vargas faz parte da comissão de apuração de votos. A comissão fica constrangida em dar a má notícia, ao presidente estadual, de sua insuficiência de votos para a recondução. Antes da comissão se pronunciar, Borges de Medeiros surpreende a todos e antecipa festiva saudação: “Já sei, vieram me dar os parabéns pela nossa retumbante vitória”. A comissão não contraria o eminente líder e retorna à Assembleia para “refazer as contas”. Dia seguinte, lógico, Borges de Medeiros é reeleito com grande maioria. A década de 1920 é marcada pela efervescência nos quartéis, com o tenentismo, e pela Coluna Prestes. Na época Getúlio Vargas é eleito deputado federal, em 1923; em seguida, torna-se ministro da Fazenda do presidente Washington Luís (1926-27), e presidente (governador) do Rio Grande do Sul, em 1928. Em meio à crise que se agrava no país, no final da década de 1920, o governista Getúlio Vargas inicia contatos com os líderes tenentistas, como o capitão Siqueira Campos, sobrevivente do massacre do Forte de Copacabana, de 1922. A eleição presidencial de 1930 coloca Getúlio Vargas na oposição e, então, lança-se candidato à Presidência da República, tendo como candidato a vice o paraibano João Pessoa. As eleições, mais uma vez, são fraudadas. Julio Prestes, candidato governista, obteve 1,091 milhão de votos, enquanto o oposicionista Getúlio Vargas computa 742 mil votos. É sob esse ambiente político de crise que surge a revolução de 1930, tendo à frente Getúlio Vargas. A ascensão de Vargas se dá com seus elevados instintos de habilidade, oportunidade e talento. Segundo o biógrafo, acrescente-se também a dissimulação, o estratagema e a prudência, que tornariam Getúlio Vargas líder da Revolução de 1930. Assim encerra-se o primeiro volume da biografia. No segundo volume, o presidente Vargas, como chefe do governo provisório, tinha sob seu comando um país economicamente arrasado, devido à crise mundial e a seus rebatimentos internos, como a queda brutal dos preços do café, reduzidas reservas cambiais e alta dívida externa. No campo social, o país estava muito atrasado. Havia pouco menos de 41 anos, havia saído do regime escravista e com um ex-presidente deposto que berrava que a “questão social era um caso de polícia”. Motivado economicamente pela falência do mercado cafeeiro, pela crise mundial, o empresariado paulista reage ao governo provisório de Getúlio Vargas. Sob a égide do conservador jornal O Estado de S. Paulo, de propriedade de Júlio Mesquita Filho, a sociedade paulista contesta a legitimidade do governo Vargas. O propalado movimento constitucionalista de 9 de julho de 1932 representa verdadeiramente uma desforra das velhas oligarquias cafeeiras apeadas do poder em 1930. Em meio à Constituinte de 1934 e à eleição indireta do presidente Vargas, surge, em janeiro de 1935, a Aliança Nacional Libertadora (ALN). Um movimento popular de resistência à Lei de Segurança Nacional. A ALN teve notória participação de militares simpatizantes do Tenentismo. Em novembro de 1935, é deflagrada a insurreição comunista; levante com base apenas nos setores militares, tem os estados de Pernambuco e Rio de Janeiro como focos. Mas é o Rio Grande do Norte que registra mais adesão popular. A repressão getulista foi forte, contra os insurgentes. O governo Vargas caminha para um regime fascista e, em 1937, instaura a ditadura do Estado Novo, em que persegue, oprime, tortura e assassina milhares de democratas e comunistas. Apesar de vários intelectuais, jornalistas 93 Ed. 134 – Jan/Fev 2015 e artistas serem presos, na verdade, foi uma verdadeira caça aos comunistas. Os membros do Partido Comunista foram as maiores vítimas da insanidade facista que norteou Getúlio Vargas no período. Nesse período, estoura a Segunda Guerra Mundial e o governo Vargas é favorável aos países nazifascistas. Esse movimento ideológico também se processa no governo estadonovista de Vargas. O presidente soube barganhar ora com um ora com outro país envolvido na guerra, para trazer investimentos ao Brasil. Ao fim, sai um acordo com os norte-americanos que prevê, entre várias cláusulas, expressivo aporte financeiro para a construção de uma usina siderúrgica brasileira. O fim do Estado Novo estava chegando. Vem a vitória das forças aliadas tendo como lideranças vitoriosas a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos da América (EUA). O presidente Vargas inclina-se às aspirações trabalhistas e se distancia de setores ultraconservadores que já não apoiavam mais o Estado Novo. Como tentativa de permanecer no poder, Getúlio Vargas incentiva e participa de manifestações populares e trabalhistas. Essas manifestações tinham apoio popular devido à legislação de proteção ao trabalho: a CLT. O movimento é batizado como “queremos Getúlio”, ou queremismo. O ambiente internacional de democracia, com o fim da Segunda Guerra Mundial, atinge o governo Vargas. Dois grandes partidos são inicialmente formados: o Partido Social Democrático (PSD), que congrega os principais interventores do período do Estado Novo; e a União Democrática Nacional (UDN), uma frente antigetulista. Em seguida, o próprio Getúlio Vargas incentiva a criação do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), formado por lideranças sindicais. A deposição de Getúlio Vargas em 1945, é, na verdade, um golpe branco. Todo o ministério de Vargas, sob pressão dos militares, pressiona o presidente à renúncia, o que ocorre de fato. O terceiro volume vai desde sua reclusão, após a renúncia, em 1945, até seu suicídio, já como presidente, em 1954. Em São Borja (RS), Getúlio acompanha o cenário político nacional. Acompanha e influencia, pois os 15 anos de poder máximo no Brasil não são me- 94 nosprezados. Há o temor de que a possível vitória da UDN, nas eleições de 1945, resulte na retirada do conjunto de leis aprovadas no período Vargas. A aliança PSD e PTB, construída para impedir tal retrocesso, principalmente para preservar a legislação trabalhista conquistada, se consolida. O acordo é fechado e o PSD e PTB lançam o general Eurico Gaspar Dutra para presidente, que ganha a eleição com 3,2 milhões de votos, contra 2 milhões de votos do udenista Eduardo Gomes e 569 mil votos dados ao comunista Iedo Fiúza. Já para a eleição da bancada constituinte, o PSD fica com 185 cadeiras; a UDN, com 89; o PTB, com 23; e o PCB, com 16, entre os maiores partidos. Getúlio se elege como senador pelo Rio Grande do Sul. Nota de importante valor no arquivo pessoal de Getúlio Vargas diz respeito à sua preocupação, e do PTB, com a crescente influência do PCB nas organizações operárias, disputando hegemonia com o PTB na área sindical. O governo Dutra não vai bem. Implanta uma política desastrosa de abertura de mercado às importações e elevação das taxas de câmbio. Concomitantemente, o PCB é cassado, em 1947. A recém-fundada Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB), sob direção dos comunistas, sofre intervenção federal. Nesse momento, entra em cena um personagem lúgubre que perseguirá Getúlio Vargas até sua morte: Carlos Lacerda. Conservador, opositor ferrenho de Getúlio Vargas e jornalista, é dele a frase de ataque a Getúlio: “O Sr. Getúlio Vargas senador não deve ser candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Dono do jornal carioca Tribuna da Imprensa, faz desse órgão de comunicação seu palanque de oposição a Getúlio Vargas. Em outubro de 1950, Getúlio Vargas é eleito presidente do Brasil, com 3.849.040 votos. Eduardo Gomes, da UDN, obtém 2.342.384 votos; e Cristiano Machado, candidato oficial do governo, pelo PSD, obtém 1.697.193 votos, entre os principais candidatos. Vale ressaltar que a maioria dos órgãos de imprensa apoia o udenista Eduardo Gomes. Após a vitória, o presidente Vargas compõe um ministério eclético, composto por representantes dos três maiores partidos da época: PSD, UDN e PTB. Vargas nomeia um grupo de assessores econômicos RESENHA ligados à Presidência com o objetivo de elaborar estudos e projetos de infraestrutura nas áreas de energia, transporte e industrialização. Esse grupo fica conhecido como os “boêmios cívicos”, pois mantinham as luzes acesas até altas horas da madrugada, trabalhando. O presidente Vargas queria um documento programático e nacionalista com industrialização planejada e intervenção governamental. No governo do presidente Vargas é criada a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), em 3 de outubro de 1953. De difícil aprovação, as negociações no Congresso Nacional para a criação duram dois anos e meio. O presidente Vargas avança também na área trabalhista. Concede aumento ao salário-mínimo, com índice de 300%, para o ano de 1952. Não obstante essa correção salarial, o movimento sindical brasileiro faz lutas importantes. Nessa época, a histórica Greve dos 300 mil é realizada por diversas categorias, em São Paulo, em 1953. Sob a presidência de Getúlio Vargas, é criado o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) (mais tarde transformado em Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES), com a função de elaborar de grandes projetos estratégicos e ser indutor da política de industrialização. Estava cada vez mais difícil para o presidente Vargas, nos últimos dois anos de seu governo, obter boa articulação parlamentar. Aos poucos, o governo encontrava-se no isolamento político. Em 1953, o presidente faz nova composição ministerial; agrega a maioria das pastas para a UDN e o PSD. No PTB, seu partido, o presidente Vargas abriga o Ministério do Trabalho. Nomeia o jovem João Goulart presidente da sigla. Concomitantemente à mudança ministerial, o presidente Vargas sofre violentos e brutais ataques da imprensa. Eram diuturnos os ataques dos jornais Diários Associados, de Assis Chateaubriand; do rádio e jornal O Globo, de Roberto Marinho; da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda; dentre outros. Mesmo sob ataques da mídia conservadora o presidente Vargas avança nas realizações desenvolvimentistas no Brasil. Sob sua gestão são criadas a Usina de Paulo Afonso; a Refinaria de Cubatão; a segunda Usina Siderúrgica de Volta Redonda; ampliada a Vale do Rio Doce; e fundado o Banco do Nordeste do Brasil (BNB). A Petrobras é a empresa que mais sofre ataque conservador. O Diário da Noite publica que o monopólio é um capricho caro. O Correio da Manhã classifica a iniciativa da Petrobras como uma “aventura de nacionalistas rasteiros”, e de que é uma “experiência sujeita a fracassar”. E preveem o fracasso dentro de um ano, no máximo. Outra frente conservadora contra o presidente Vargas vem do setor militar. As críticas de parte da oficialidade, principalmente o autocomando, falam desde um cenário político de “perigoso ambiente de intranquilidade”, até de um “comunismo solerte sempre à espreita”. Diante das pressões, o presidente Vargas muda os Ministérios da Guerra e do Trabalho. Em vão, pois continua sob ataque ferrenho de opositores. Em 1º de maio de 1954, eleva o valor do salário mínimo em 100%. Mais uma vez recebe adjetivos e epítetos demolidores da imprensa reacionária: “protetor de ladrões”, “desonrado inepto”, “corruptor e abjeto”, são os mais pronunciados contra o presidente. Acontecimento curioso ocorre quando o presidente Vargas faz uma aparição pública no Hipódromo da Gávea, para assistir ao Grande Prêmio Brasil de turfe, em 1º de agosto de 1954, evento que, na época do Estado Novo, frequentava com assiduidade. Mas, naquele dia, porém, recebe uma estrondeante vaia. Em agosto, ocorrem lances mais extraordinários, e o lance fatal. O mais importante é o assassinato do major Rubens Florentino Vaz, que era escolta do jornalista Carlos Lacerda. O crime teria sido a mando de Gregório Fortunato, guarda-costas do presidente Vargas. Os indícios trazem provas a respeito da hipótese. Esse episódio deflagra uma crise fatal no governo Vargas. Setores militares pressionam o presidente a renunciar ao mandato. A imprensa conservadora liga diretamente o crime do major à responsabilidade presidencial. Em 24 de agosto de 1954, poucas horas depois de última reunião ministerial, o presidente Vargas suicida-se. Carlos Rogério de Carvalho Nunes é assistente Social, mestre em Serviço Social e pesquisador do núcleo de Estudos e Pesquisas em Movimentos Sociais — NEMOS/PUC—SP. Secretário de Políticas Sociais da CTB Nacional 95 www.revistaprincipios.com.br Princípios é uma publicação bimestral da Editora e Livraria Anita Ltda. CNPJ: 96.337.019/0001-05 Registrada no ISSN sob o nº 1415788-8 Fundador: João Amazonas (1912–2002) Editor: Adalberto Monteiro Editor executivo: Cláudio Gonzalez (MTb 28961/SP) Comissão Editorial: Adalberto Monteiro, Aloísio Sérgio Barroso, Augusto César Buonicore, Cláudio Gonzalez, Fábio Palácio de Azevedo, José Carlos Ruy, Osvaldo Bertolino e Pedro de Oliveira. 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