Ed.135 Mar-Abr 2015 - Revista Principios

Transcrição

Ed.135 Mar-Abr 2015 - Revista Principios
1
Ed. 135 – Março/Abril 2015
2
Editorial
Petrobras é alvo de pesado ataque
dos entreguistas e do imperialismo
Marcelo Piu / Agência O Globo
E
coa pelo país o lema “Defender a Petrobras é defender o Brasil!”, uma versão atual da clássica palavra de ordem
“O petróleo é nosso!”. Ela revela a alma dessa empresa-símbolo da soberania nacional. O
conceito de patriotismo contido na frase vem
dos primórdios da luta pelo petróleo, quando
Monteiro Lobato se empenhou em mostrar ao
povo a “força mágica do maravilhoso sangue
negro da terra”. Ficaram explícitas, desde então, concepções distintas, bem caracterizadas
como sendo ou patrióticas ou entreguistas. E,
com o sentimento de defesa dos interesses da
nação forjado pela compreensão da importância estratégica do petróleo, a Petrobras resistiu
bravamente aos ataques dos entreguistas.
A lei do monopólio estatal do petróleo, aprovada
em 1953, já nasceu sob o fogo da direita, mas todas
as tentativas de atingir a Petrobras foram firmemente
rechaçadas pelas forças patrióticas, formadas por uma
ampla frente englobando basicamente trabalhadores,
intelectuais e correntes políticas democráticas. A empresa sofreu um ataque agressivo da ditadura militar
com os “contratos de risco” e, na primeira ofensiva do
projeto neoliberal, durante o governo do presidente
Fernando Collor de Mello, chegou a entrar na lista do
“Programa Nacional de Desestatização”.
O ponto crítico dessa ofensiva se deu no governo
do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), que
proclamou o monopólio estatal do petróleo como uma
“página virada” na história do Brasil após a aprovação
da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de
1995. A chamada Lei do Petróleo, aprovada em 6 de
agosto de 1997, conferiu legalidade ao entreguismo e
foi a consumação parcial de um sonho dos magnatas
dos trustes privados internacionais, que sempre cobiçaram as imensas reservas petrolíferas brasileiras.
Contudo, o campo patriótico e democrático conseguiu
barrar a privatização da Petrobras.
Os governos do ex-presidente Lula e da presidenta
Dilma Rousseff proporcionaram uma trajetória virtuosa na estatal. A descoberta do pré-sal foi um grande feito da engenharia nacional e da Petrobras, e atiçou a cobiça dos trustes, que manipulam o mercado
internacional de petróleo e dão suportes às variadas
formas de guerras de rapina, da comercial à militar,
passando pela midiática.
Nas investidas contra a empresa, os entreguistas
sempre usaram pretextos. Na atualidade, manipulam
à exaustão as investigações da Operação Lava Jato
que desbaratou um esquema empresarial criminoso
de pagamento de propinas que atuava a partir de contratos feitos com a Petrobras.
A mal disfarçada campanha de denúncias de “corrupção” na estatal foi explicitamente desmascarada
quando os senadores tucanos Aloysio Nunes e José
Serra apresentaram projetos de lei propondo o fim regime de partilha e a retirada de autonomia da Petrobras sobre o petróleo brasileiro. Ficaram escancaradas
com esses dois projetos as reais intenções da oposição
neoliberal: enfraquecer a Petrobras para, de um modo
ou de outro, privatizá-la, tendo como primeiro lance a
entrega da riqueza do pré-sal às multinacionais.
Os corruptos de dentro e de fora da Petrobras devem ser punidos na forma da lei, não cabe dúvida.
Mas a defesa da empresa e do petróleo brasileiro não
pode ser deixada para segundo plano, como têm se
manifestado os trabalhadores, os intelectuais progressistas, as correntes políticas patrióticas e a Frente
Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras, recentemente constituída na Câmara dos Deputados. Como
em outras ocasiões, esses setores democráticos estão
se levantando em defesa da soberania nacional. Em
seu apoio, cumpre dar consequência à ideia de uma
frente ampla para assegurar a democracia e os interesses do povo.
Adalberto Monteiro
Editor
1
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Capa
Defesa da Petrobras, na defesa do Brasil
Haroldo Lima...................................................................
4
Petrobras: uma vida sob o cerco da direita
Osvaldo Bertolino......................................................
10
4
Ataque à Petrobras – Nova ofensiva, velhos argumentos!
Davidson Magalhães, Luiza Erundina,
Afonso Florence..........................................................
16
À LUTA!
Adilson Araújo, Divanilton Pereira e
José Maria Rangel.......................................................
20
Economia
26
Experiências da austeridade econômica
Renildo Souza.............................................................
26
Crise sistêmica, política e luta de classes
no Brasil
Sergio Barroso............................................................
33
Brasil
O golpe dos golpistas e a resposta
democrática
Osvaldo Bertolino......................................................
38
38
Reforma Política, cláusula de barreira e a
Constituição Federal
Orlando Silva e Wladimyr Camargos.........................
44
PCdoB
Maranhão é palco de comemoração nacional dos
93 anos do PCdoB
Cezar Xavier................................................................
50
Íntegra do discurso de Renato Rabelo
93 anos: Partido Comunista do Brasil,
uma exigência histórica!......................................................
53
A participação institucional dos comunistas
Márvia Scárdua...........................................................
56
50
2
Sumário
61
Teoria
Pós-modernidade, globalização e crise dos
partidos políticos
Antônio Levino............................................................
61
História
Pequena história de um século da Grande
Revolução de Outubro
Bernardo Joffily..........................................................
66
Vietnã: guerra, revolução e
desenvolvimento
Paulo Fagundes Visentini.............................................
72
Coreia: da luta antijaponesa à libertação
em 1945 (1ª Parte)
Raul Carrion...............................................................
77
Memória
Imagens de uma América mutilada
Cezar Xavier................................................................
66
84
Cultura
Picasso e a modernidade espanhola
no CCBB-SP
Mazé Leite....................................................................
86
Homenagem
Arte “subversiva” de Abelardo da Hora em
exposição
Cezar Xavier................................................................
77
89
Resenha
Getúlio: biografia de um grande e polêmico
presidente
Carlos Rogério Carvalho Nunes.................................
92
84
89
3
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Defesa da Petrobras,
na defesa do Brasil
Haroldo Lima*
Marcelo Camargo - Agência Brasil
Movimentos sociais e trabalhadores se erguem em defesa da estatal e da riqueza do pré-sal
As forças vivas da Nação não devem se deixar enganar.
Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de toque dos
interesses nacionais no Brasil. A punição aos que, dentro e
fora da estatal, comprovadamente participaram do esquema
da corrupção, deve ser feita, exemplarmente. O que não
pode é essa punição ser associada a enfraquecimento da
estatal, nem a sua privatização, nem ao fim da partilha,
nem a manobras que visam transformar em reserva das
multinacionais o mercado brasileiro de grandes obras
4
Capa
O
Brasil enfrenta dificuldades nesse inía empresa, de acabar com o regime de partilha no
cio de 2015. Variados são os problepré-sal. Tudo era preparado para se levantar depois a
mas que enfrenta.
privatização da companhia.
Sua economia sofre com a crise
É nesse momento que o povo vai às ruas em 24
internacional do capitalismo, iniciaestados do país, em 13 de março passado, vergastanda em 2008/9 e ainda não debelada. A
do o golpismo, clamando pelo fim de financiamento
produção local foi atingida. Os consumidores interempresarial às campanhas eleitorais e reafirmando a
nacionais reduziram suas compras, o valor de seus
Petrobras como vital para o desenvolvimento indeprodutos caiu, suas exportações diminuíram.
pendente do Brasil.
A persistência entre nós de formas neoliberais
adotadas em época anterior
1) Uma história de
agravou a situação. Tudo conameaças debeladas
tinua submetido ao objetivo da
formação de um “superávit priTem sido assim a história da
mário”, que no ano passado foi
Petrobras. Em diversos momende 53 bilhões de dólares, dos
tos de sua vida, golpes contra sua
maiores do mundo, inflexivelexistência foram urdidos e tentamente garantido para pagar endos, sua privatização requerida.
cargos financeiros. Os serviços
Mas o povo atento, tudo debelava.
públicos padecem, a indústria
Em agosto de 1958, o próprio
retroage, o desenvolvimento beisecretário de Estado norte-amera a estagnação.
ricano John Foster Dulles, em
Nesse meio tempo, um imvisita ao Brasil, pressionou o gopressionante surto de corrupção
verno de Juscelino para desestafoi descoberto na Petrobras, enbilizar a estatal. O general Lott,
volvendo gente de dentro e de
então ministro da Guerra, deu a
fora da empresa.
resposta merecida: “A Petrobras é
Ademais, nos últimos 7 meintocável”.
ses, uma contínua queda de preNa Revisão Constitucional de
1993/94, outra tentativa foi feita.
ços do petróleo gravou países
Tem sido assim a
O passo inicial era desgastar a
exportadores do óleo e pôs em
história da Petrobras.
imagem da estatal. A revista Vealerta os que têm grandes invesEm diversos momentos
ja, em sua edição de 30 de março
timentos à vista, como o Brasil.
de 1994, publicou uma enorme
Traficando com todos esses
de sua vida, golpes
reportagem, de dez páginas, preproblemas, setores reacionários
contra sua existência
nhe de mentiras e difamações
da oposição, mancomunados
contra a empresa. A resistência,
com a grande mídia conservaforam urdidos
nas ruas e no Parlamento, detodora, urdiram um plano para
e tentados, sua
nou a torpe pretensão.
acabar com o modelo de desenEm 1995, o presidente FHC
volvimento com inclusão social
privatização requerida.
encaminhou ao Congresso projeem vigor no Brasil. Tratava-se de
Mas o povo atento, tudo
to abrindo ao mercado o acesso
responsabilizar Dilma por tudo
debelava
a atividades petrolíferas até ende ruim que tem acontecido no
tão exclusivas da Petrobras. Era o
país, que sabia de todas as falcafim do monopólio. Sabia-se que,
truas existentes e, assim, agitar
em seguida, viria a privatização da empresa. Parirresponsavelmente a ideia do seu impeachment. Era
lamentares nacionalistas articularam uma emenda,
um plano nitidamente golpista.
assinada pelo senador Ronaldo Cunha Lima, relator
Usando essa tormenta para desgastar a Petrodo projeto que punha fim ao monopólio, admitindo
bras, a direita e a grande mídia reacionária inflaram
acabar com este, mas proibindo a privatização da Peos problemas e começaram a apresentar a Petrobras
trobras. O governo rejeitou a emenda. Patenteou-se
como uma empresa-problema. Inacreditável. O vaque o objetivo era a privatização da empresa.
lor de mercado da estatal foi depreciado, e logo coMas a resistência recrudesceu. Com o apoio do
meçou a se especular sobre a retirada da Petrobras
presidente do Senado, a base parlamentar naciode setores “onde nunca deveria estar”, de “fatiar”
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Ed. 135 – Março/Abril 2015
nalista obstruía a votação da quebra do monopólio,
alertando que, se isso fosse votado, o próximo passo
seria a privatização da Petrobras. O presidente FHC
encaminhou, então, ao Senado, uma carta, datada
de 9 de agosto de 1995, na qual assumia o compromisso de não promover a privatização da estatal. A
trama para impor um mercado aberto sem estatal
malogrou, e em seu lugar ficou um mercado aberto
com forte presença estatal.
Nas eleições que levaram Lula e Dilma à presidência da República, de 2002 para cá, esses candidatos fizeram a defesa da Petrobras e das estatais
estratégicas, o que empolgou o eleitorado e reforçou
suas vitórias.
Quando hoje vemos o Estado brasileiro com
o controle acionário da Petrobras, Furnas, Itaipu,
Chesf, Tucuruí, Banco do Brasil, Caixa, BNDES, Correios etc. temos que ressaltar que isto foi fruto de
muita luta. Diversas dessas estatais já estiveram na
lista das privatizáveis.
2) Velho esquema corrupto é
desmantelado
O cerco que agora fazem à Petrobras usa como
pretexto a descoberta do esquema corrupto que agia
na empresa.
De saída afaste-se a ideia de que a corrupção
grassou na Petrobras por ser ela uma estatal. Há
pouco, a americana Enron, das maiores energéticas
do mundo, e que era uma empresa privada, faliu, em
meio a escândalos escabrosos.
Agora, o inglês The Guardian e outros mostraram
que o maior banco em ativos do mundo, o HSBC,
através de sua filial na Suíça, ajudou 106.000 clientes a “sonegar impostos no valor de US$120 bilhões,
entre 1988 e 2007”. Noticia-se que 4,8 mil cidadãos
brasileiros faziam parte do esquema, com contas que
Depoimentos na CPI indicam que arranjo criminoso na estatal
começou no governo FHC
6
movimentaram R$20bilhões, provocando uma evasão de divisas muito maior que a corrupção havida
na Petrobras, o que estranhamente não merece destaque na grande mídia brasileira.
Pelo que disse um dos detratores do esquema
corrupto, a corrupção descoberta funcionava há 18
anos. Era um velho arranjo criminoso, da época dos
governos de FHC, que teria crescido após 2003, já no
governo Lula.
De todo modo, a situação criada por esse esquema
é deplorável. Três ex-diretores da Petrobras e mais de
20 dirigentes de empreiteiras foram presos. Só um
funcionário concordou em devolver R$225 milhões.
Admite-se que o total de desvios, a ser confirmado,
pode ultrapassar os 2,5 bilhões de reais. A Petrobras
não conseguiu apresentar Balanço auditado, e perdeu seu “grau de investimento”. Nos EUA, foram
abertas 11 ações contra ela, o que só foi possível porque, em agosto de 2000, no período de FHC, mais de
108 milhões de ações da empresa foram vendidas na
Bolsa de Nova York. E assim a Petrobras ficou submetida à legislação americana.
Divulgou-se que 23 empresas brasileiras relacionaram-se com o esquema corrupto. A Diretoria da
Petrobras suspendeu relações com todas elas. A legislação veda a possibilidade de empresas, consideradas
“inidôneas”, firmar contrato com entidade pública.
3) Punir os corruptos, salvaguardar a
Petrobras e as empresas nacionais
Entre as 23 empresas citadas, estão as maiores
companhias nacionais de engenharia e construção
pesada. Se forem excluídas do mercado, estaríamos
entregando, graciosamente, toda a engenharia de
grandes projetos e a construção pesada no Brasil a
empresas estrangeiras. Os interesses nacionais teriam
sido rudemente golpeados. E passaríamos a ideia ingênua e abobalhada de que julgamos os empresários
brasileiros corruptos e os estrangeiros honestos!
Punir os culpados, ex-diretores ou não da Petrobras e dessas grandes empresas privadas, é interesse
de todos. Salvaguardar a estatal petroleira e as grandes empresas nacionais de engenharia e construção
pesada, onde atuam dezenas de milhares de técnicos
e trabalhadores, competentes e honestos, responde
aos interesses nacionais.
Resolver a questão dessas grandes empresas é
desafio para homens de Estado, não para delegados ou promotores. Há problemas penais, mas há
problemas nacionais. E os primeiros não podem
se sobrepor aos segundos. A Advocacia Geral da
União já estuda a questão, procurando solucioná-la
através de “acordos de leniência”, que combatam a
Capa
corrupção, punam os corruptos
e estabeleçam condições para a
continuidade das empresas.
4) A persistente queda
dos preços do petróleo
A grande mídia
oligopolizada, de
arraigada tradição
entreguista e golpista,
ocupou logo seu
lugar na trama,
sintonizando-se com
os grupos estrangeiros
hegemônicos nos
negócios do petróleo.
Assumiu a tarefa
de desacreditar
e desmoralizar a
Petrobras junto aos
brasileiros
A partir de meados de 2014,
fato de grande importância começa a ocorrer: a persistente
queda do preço do petróleo. Este
fenômeno, que a todos impacta,
alterou significativamente o comércio com o petróleo. A cotação
do óleo, em junho do ano passado, esteve em US$112 / barril;
em outubro estava em US$90 /
barril e chegou a US$45 /barril
no meio de janeiro de 2015. Uma
queda de cerca de 60% em seis
ou sete meses.
Diversas são as causas desse
acontecimento. Mas o fator
decisivo foi o aumento da
produção nos Estados Unidos do shale gas e do shale
oil, a partir de novas tecnologias. Eles, os EEUU, que
são os maiores consumidores do planeta – 21 milhões
de barris/dia – e que importavam 60% do que consumiam, diminuíram drasticamente suas importações.
A Organização dos Países
Exportadores do Petróleo,
que em situações parecidas,
há 30 anos, reduzia sua produção para sustentar o preço do óleo, desta vez manteve sua produção, e o preço do óleo desabou.
Os efeitos do preço baixo do hidrocarboneto são
variados. Em curto prazo, exceto para os países exportadores de petróleo, há benefícios para a economia mundial. Em longo prazo, todos os projetos que
envolvam grandes investimentos são prejudicados.
Repercussão especialmente negativa ocorre para o meio ambiente, pois que, nas condições atuais,
todas as fontes alternativas mais limpas de energia
só conseguem concorrer com o petróleo recebendo
subvenções e porque o combustível fóssil é caro. Se
ele se torna barato – petróleo abaixo de US$50/barril
– não há energia alternativa que consiga concorrer
com o mesmo.
A Petrobras, que estava comprando petróleo caro e vendendo
gasolina barata, imediatamente
melhorou seu caixa, passando a
comprar petróleo a preço reduzido.
Mas a Petrobras não é uma
mera compradora de petróleo,
é uma grande produtora e tem
reservas e projetos grandiosos,
especialmente no pré-sal. O custo do óleo permanecendo abaixo
dos US$45 pode tornar menos
atraente, ou mesmo não atraente, o próprio pré-sal.
5) Forças reacionárias
usam os problemas para
atacar a empresa
A queda do preço do petróleo
atingiu a Petrobras no mesmo
instante em que investigações revelavam o vulto a que
chegara a corrupção na empresa.
O lamentável é que os
detratores da companhia,
quando perceberam o impacto negativo que esses
dois fatores tinham sobre
ela, ao invés de protegê-la,
separando o “o joio do trigo”, pondo, de um lado, os
corruptos, de outro, a empresa, resolveram lançar
outra investida difamatória
contra a Petrobras e tentar
dela se apoderar.
A grande mídia oligopolizada, de arraigada tradição entreguista e golpista,
ocupou logo seu lugar na trama, sintonizando-se
com os grupos estrangeiros hegemônicos nos negócios do petróleo. Assumiu a tarefa de desacreditar e
desmoralizar a Petrobras junto aos brasileiros.
Passou a construir uma imagem grotesca e surreal da Petrobras. Omitia dados importantes, exacerbava fatos fora do contexto, generalizava situações
localizadas.
O produto final de tudo isso era uma mentira,
divulgada para empulhar o povo. E mentem, como
diria um poeta popular anônimo, “de corpo e alma,
completamente/ mas mentem, sobretudo, impunemente”.
7
Ed. 135 – Março/Abril 2015
6) Alquimia ao avesso: transformar a
Petrobras em seu inverso
em 13º lugar; na lista divulgada pela mesma revista,
em maio de 2014, a estatal brasileira pulou para o
9º lugar;
4 - segundo a agência Reuters, no primeiro seTrês objetivos passaram a ser perseguidos: apremestre de 2014, a Petrobras era a segunda maior
sentar a Petrobras como um covil de bandidos, como
produtora de petróleo do mundo, entre as petroleiuma petroleira ineficiente e como uma empresa que
ras de capital aberto; a primeira era a ExxonMobil,
perdeu seu valor.
norte-americana;
O covil de bandidos ficava su5 - segundo a agência Reuters,
postamente “demonstrado” com
A Petrobras é
no terceiro trimestre de 2014, a
a prisão de três diretores e de
ExxonMobil perdeu sua condição
mais alguns funcionários. A ignouma petroleira
de maior produtora de petróleo
miniosa marca de bandido, aprogigante em escala
entre as companhias de capital
priada para um número restrito
aberto do mundo; passou para o
de maus funcionários, de repenmundial. Detém das
segundo lugar; a líder mundial
te parecia se estender aos 86 mil
maiores reservas
passou a ser a Petrobras;
trabalhadores da empresa, postos
petrolíferas do
6 - nesse terceiro trimestre
em suspeição. O corpo técnico da
de
2014,
a produção de petróleo
companhia, dos maiores e mais
mundo. Como todas
da Petrobras foi de 2,209 miqualificados do mundo, desapaas suas congêneres,
lhões de barris/dia; a da Exxonrecia do noticiário. A sua capaciMobil foi de 2,065 milhões de
dade de ação ficava tolhida, pois
enfrenta os efeitos
barris/dia;
que todo trabalho se desenvolvia
da queda do preço
7 - as produções somadas de
debaixo de um clima generalizainternacional do
óleo e gás colocavam, no início
do de “caça às bruxas”.
de 2015, a Petrobras em quarta
A ineficiência da petroleira
petróleo, observa
posição no ranking mundial;
era algo tão difícil de ser dea evolução desse
8 - no dia 16 de dezembro de
monstrada quanto a quadratu2014,
na província do pré-sal, a
ra do círculo. O melhor era esproblema e está
Petrobras produziu 700 mil barconder os dados reais e praticar
segura de que seus
ris/dia, um recorde, e em 21 de
o rasteiro jornalismo de omitir
dezembro, bateu outro recorde,
para iludir. E as notícias fundagrandes projetos
o da produção diária de 2,3 mimentais foram jogadas para as
serão viabilizados
lhões de bep;
pontas das páginas da grande
9 - a Petrobras Biocombustíimprensa, só merecendo destaveis, subsidiária da companhia, teve um crescimento
que nos blogs e portais independentes, que não se
de 17% em 2014 na produção de etanol, chegando a
curvaram a esse procedimento canhestro. Assim,
1,3 bilhão de litros.
foram obscurecidas que:
1 - Até setembro de 2014, em todo o mundo, só
duas empresas de capital aberto aumentaram sua
produção de petróleo, a Petrobras e a americana ConocoPhillips; a Conoco aumentou de 0,4%, a Petrobras de 3,3%;
2 - na situação em que os preços do petróleo
caíram pela metade, era de se esperar uma queda
equivalente na arrecadação de royalties. Os prejuízos para os estados e municípios seriam enormes. O
aumento da produção amenizou esse prejuízo. Em
janeiro deste ano, a arrecadação de royalties caiu
apenas 10,3%, comparado com o ano passado, segundo a ANP;
3 - em novembro de 2013, fazendo uma combinação de critérios, a revista Forbes divulgou a lista
das maiores petroleiras do mundo: a Petrobras ficou
8
Por último, vale observar que o valor de mercado
da Petrobras, bombardeada diuturnamente por noticiário faccioso, caiu continuamente.
Mas o valor que caiu foi o de mercado, o valor na
Bolsa, que reflete mais as perspectivas de curto prazo
da empresa. Ele se comporta como o “capital fictício” de que falou Marx, e flutua com tal autonomia
que “reforça a ilusão de que é um verdadeiro capital
ao lado do capital que representa…” (Marx). Mas
não é o capital real da empresa, não representa seu
valor efetivo, os incontáveis ativos da companhia.
Assinala como os investidores estão apreciando a
empresa naquele momento. E neste sentido, sua
queda foi grande.
Em março de 2011, após a oferta pública do
pré-sal, o valor de mercado da Petrobras chegou a
Capa
R$413,5 bilhões, o maior da América Latina. Em 31
de janeiro de 2014, caiu para R$184 bilhões; em 13
de outubro de 2014, voltou a ser o maior da América Latina, R$278,4 bilhões. Ao encerrar o ano de
2014, em 27 de dezembro, foi a R$139,2 bi.
Detalhe: um ano antes, em 2013, a empresa faturou R$370 bilhões!
7) Com o respaldo do povo, a
Petrobras seguirá em frente
A Petrobras é uma petroleira gigante em escala
mundial. Detém das maiores reservas petrolíferas
do mundo. Como todas as suas congêneres, enfrenta os efeitos da queda do preço internacional
do petróleo, observa a evolução desse problema e
está segura de que seus grandes projetos serão viabilizados.
No período recente, sofreu duro golpe pela ação
do referido esquema corrupto que por anos a saqueou, mas que está sendo extirpado.
A Petrobras vê-se, de qualquer forma, acossada
por uma campanha torpe que tenta sufocá-la, desacreditá-la, para fomentar sua privatização.
Ao mesmo tempo, forças interessadas em abrir
espaços para as multinacionais no pré-sal, movimentam-se para acabar com uma das maiores conquistas
do Brasil nos últimos tempos, a partilha da produção
nessa província, e já apresentaram no Senado o Projeto de Lei nº 417/2014, de autoria do Líder do PSDB
Aloysio Nunes, para pôr fim à partilha.
As forças vivas da Nação não devem se deixar
enganar. Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de
toque dos interesses nacionais no Brasil.
A punição aos que, dentro e fora da estatal, comprovadamente participaram do esquema da corrupção, deve ser feita, exemplarmente.
O que não pode é essa punição ser associada a
enfraquecimento da estatal, nem a sua privatização,
nem ao fim da partilha, nem a manobras que visam
tornar o mercado brasileiro de grandes obras, reserva das multinacionais.
O Brasil mais uma vez vencerá.
* Haroldo Lima é consultor de petróleo, ex-diretor
geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás
Natural e Biocombustíveis, ex-deputado federal e
é do Comitê Central do PCdoB.
As forças vivas da Nação não devem se deixar enganar. Ontem, como hoje, a Petrobras é pedra de toque dos interesses nacionais
9
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Petrobras: uma vida sob
o cerco da direita
Osvaldo Bertolino*
Getúlio Vargas apresentou o projeto da criação da Petrobras no final de 1951. Em 3 de outubro
de 1953, foi aprovada a lei n° 2004 que criou a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras)
Desde 1953, quando foi criada, a Petrobras enfrenta o cerco
da direita. A empresa nasceu como consequência da batalha
pelo controle estatal do petróleo, condição fundamental para
a defesa da soberania nacional. E, por ter esse simbolismo,
nunca foi aceita pelas forças conservadoras, devidamente
caracterizadas como entreguistas. Os recentes ataques à
estatal, agora mais intensos por conta do pré-sal, são apenas
o capítulo mais recente dessa história
O
que está por trás dos arroubos dos
patriotas de ocasião e raivosos publicistas da direita que se “indignam” com a profusão de denúncias
envolvendo a Petrobras? A batalha
mundial pelo petróleo é a resposta óbvia, mas em
torno dela existem outros interesses igualmente
estratégicos. A principal é a união do Brasil com
10
seus vizinhos, cujo exemplo mais significativo se dá
na área de energia, que historicamente representou um dos maiores motivos de integração entre os
povos. A União Europeia, para citar um exemplo
recente, começou a surgir em 1951 com a criação
da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço. Inicialmente, a preocupação básica era o suprimento
de energia.
Capa
No caso da América do Sul, há um fator que fave montanhas, a convicção rompe o seio da terra e
cilita essa integração: os países da região, excetuanarranca de lá os seus tesouros. Não sei, concluí em
do Brasil e Chile, têm mais energia do que necesuma das minhas pregações, que sacrifício eu não fasitam. Não há nada mais natural do que vender o
ça para ver meu país arrancado à miséria crônica e
excedente a quem precise. Para que esse comércio
elevado ao poder e à riqueza pela força mágica do
ocorra, contudo, são necessárias obras gigantescas,
maravilhoso sangue negro da terra”, asseverou.
que tendem a consolidar a ligação entre os países.
Impulsionado por essa ideia, Monteiro Lobato
Só o gasoduto entre Brasil e Bolívia, para se ter uma
escreveu cartas ao presidente Getúlio Vargas exponbase, custou mais de US$ 2 bido o que considerava a verdade
lhões. Ninguém faria uma obra
sobre o problema do petróleo
desse porte se não fosse para ter
no Brasil, que lhe renderia uma
uma relação de longo prazo. Esprisão. “O petróleo! Nunca o prosa ideia, no entanto, sempre enblema teve tanta importância;
frentou forte oposição dos intee se com a maior energia e urresses que dominam a economia
gência o senhor não toma a si a
mundial; a indústria do petróleo,
solução do caso, arrepender-se-á
que nasceu no final do século
amargamente um dia, e deixará
XIX, por ser fonte constante de
de assinalar a sua passagem periqueza se tornou desde cedo eslo governo com a realização da
sencialmente monopolista.
‘grande coisa’. Eu vivi demais
No Brasil, a luta pela soberaesse assunto. No livro O escândania energética é antiga. A confirlo do petróleo denunciei à nação o
mação da existência de petróleo
crime que se cometia contra ela
no país foi uma vitória das forças
(...). Doutor Getúlio, pelo amor
patrióticas e progressistas, que
de Deus, ponha de lado a sua
sempre demarcaram campo com
displicência e ouça a voz de Jeos entreguistas. O escritor Monremias. Medite por si mesmo no
teiro Lobato disse em seu livro O
que está se passando. Tenho cerescândalo do petróleo, de 1936, que
teza de que se assim o fizer, tuO escritor Monteiro
existiam duas visões geológicas:
do mudará e o pobre Brasil não
uma paga para “engazopar” o púserá
crucificado mais uma vez”,
Lobato disse em seu
blico, outra para o uso interno dos
escreveu.
livro O escândalo do
trustes. Até então, escreveu ele, o
Mais de treze anos depois, em
Brasil vivia em regime de com3 de outubro de 1953, o segundo
petróleo, de 1936, que
partimentos estanques. A imengoverno Vargas instituiu a lei do
existiam duas visões
sa extensão territorial do país e a
monopólio estatal do petróleo.
geológicas: uma paga
falta de bons transportes fizeram
Nesse ínterim, amadureceu no
os brasileiros serem regionais.
país a consciência de que o separa “engazopar” o
Nasciam e morriam em um destor energético — especialmenpúblico, outra para o
ses compartimentos e quando alte a indústria do petróleo — é
guém desejava viajar corria para
peça-chave do desenvolvimento
uso interno dos trustes
a Europa. As coisas começavam a
econômico e social. Tanto que o
mudar graça ao petróleo; o brasiProjeto de Lei que criou o monoleiro já circulava mais, de automóvel ou de avião, e espólio atingiu amplo consenso, apesar das pressões
tava descobrindo o Brasil rapidamente. O país estava
dos interesses internacionais já no momento da vose transformando em uma grande coisa.
tação no Congresso Nacional.
Aquele homenzinho de grossas sobrancelhas perA decisão brasileira de nacionalizar suas reservas
corria o país, de Norte a Sul e de Leste a Oeste, prefoi uma resposta aos propósitos dos monopólios que
gando patriotismo. “Não temos petróleo? Falta-lhe
se formaram com a história do imperialismo do sé(ao governo) em olhos o que lhe sobra em traidoculo XIX e do início do século XX. Eram tempos de
res vendidos aos interesses estrangeiros”, escreveu.
partilhas de mercados, de guerras mundiais, de moMas, afirmou, “havemos de dar olhos ao Brasil”.
dificações nas correlações de forças e de soberanias
“Havemos de obrigá-lo a ver, a convencer-se da exisnacionais ameaçadas. Na América Latina, território
tência do gigantesco lençol subterrâneo. Se a fé mohistoricamente cobiçado pelos norte-americanos, o
11
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Campanha a favor do monopólio estatal do petróleo
México nacionalizou seu petróleo em 1938 e a Arportanto, brotou em plena batalha mundial pelas regentina já explorava suas jazidas na década de 1940.
servas petrolíferas. Era uma questão que requeria a
Chile e Bolívia encaminhavam-se para o monopólio
união do povo brasileiro e um governo minimamendo Estado.
te comprometido com a independência nacional.
A formação do bloco socialista tirou do campo
Apoiada na tenacidade dos pioneiros — como Monde visão dos grupos privados importantes reservas
teiro Lobato —, e fortalecida pelo esclarecimento das
mundiais — um dos quatro maiores lençóis de pecampanhas do Partido Comunista do Brasil, a palatróleo, o do Mar Cáspio, passou para as mãos dos povra de ordem “O Petróleo é Nosso!” abriu caminho
vos soviéticos. O drama do petróleo
entre todas as barragens e emerentrava em uma fase nova, margiu como um grande movimento
cada pelo avanço da democracia
popular em defesa da soberania
Além da mobilização
contra o imperialismo. Já naquela
nacional.
popular e das
época, as concessões abarcavam
Além da mobilização popular
regiões imensas.
e
das
denúncias na tribuna do
denúncias na tribuna
Uma companhia norte-ameriCongresso Nacional, os comudo Congresso
cana era concessionária de toda
nistas apresentaram três projea Abissínia — hoje Etiópia. Na
tos sobre o petróleo. De autoria
Nacional, os
Arábia Saudita, metade do país
do deputado Carlos Marighella,
comunistas
estava nas mãos de outras duas
o primeiro — subscrito por Mauapresentaram três
empresas dos Estados Unidos.
rício Grabois, Gregório BezerEm 1945, o Paraguai outorgou a
ra, Henrique Oest, José Maria
projetos
uma petrolífera norte-americana
Crispim, Jorge Amado, Abílio
sobre o petróleo. Um
concessões que compreendiam
Fernandes e Diógenes Arruda
dois terços do seu território. Na
Câmara — dizia que “as jazidas
deles dizia que “as
Venezuela, regiões imensas foram
de petróleo e gases naturais exisjazidas de petróleo
entregues às companhias norte-atentes no território nacional pere gases naturais
mericanas e inglesas. Os Estados
tencem à União, a título de doUnidos controlavam mais de 80%
mínio privado imprescindível”.
existentes no território
do petróleo do mundo capitalista,
Ou seja: só brasileiros poderiam
nacional pertencem
cerca de 70% de toda a produção
pesquisar e lavrar petróleo e gás.
mundial. Em muitos países, como
O segundo — não há registro
à União, a título de
a Venezuela, populações miseráconhecido de subscrição — decladomínio privado
veis vegetavam em torno de poços
rava de utilidade pública o abasriquíssimos.
tecimento nacional de petróleo.
imprescindível”
A luta pelo petróleo nacional,
Isto é: a produção, importação,
12
Capa
exportação, refino, transporte, construção de oleoduto, distribuição e comércio seriam exclusividade de
empresas de capital nacional, com 51% das ações em
poder do Estado.
O terceiro projeto de Marighella — subscrito por
Maurício Grabois, Diógenes Arruda Câmara, João
Amazonas, Henrique Oest, Gregório Bezerra, Gervásio Azevedo, Jorge Amado e Abílio Fernandes —
criava o Instituto Nacional do Petróleo, entidade autárquica com ampla competência. Além destes três
projetos, Abílio Fernandes apresentou outro, em nome da bancada comunista, regulamentando a aplicação dos artigos 152 e 153 da Constituição de 1946,
relativos às minas e demais riquezas do subsolo.
Segundo o projeto, “os decretos de concessões de
petróleo e de autorizações de lavra” seriam “conferidos exclusivamente a brasileiros ou sociedades organizadas no país”. As propostas pararam na Comissão de Constituição e Justiça e o assunto passou a
ser monopolizado por uma nova legislação que seria
enviada ao Congresso pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. A concretização do monopólio estatal do
petróleo, contudo, só viria no segundo governo do
presidente Getúlio Vargas, eleito em 1950.
Ao longo dos debates, ficou evidenciada a importância da “batalha pelas reservas”. O deputado
comunista Pedro Pomar disse na tribuna da Câmara que o problema fundamental do Brasil era produzir petróleo para o consumo doméstico e assegurar reservas para qualquer emergência. Segundo
Pomar, os brasileiros não podiam ficar à mercê da
política agressiva e provocadora de guerra dos norte-americanos.
Desde cedo, portanto, os defensores da posse do
petróleo pelo Estado compreenderam a importância
dessa bandeira para o desenvolvimento nacional e a
defesa da soberania do país. O petróleo é a base principal da economia e do poder do Estado nacional.
Por ter essa importância, os entreguistas brasileiros
nunca aceitaram a Petrobras.
Nos anos 1940-1950, as ações para impedir a posse estatal do petróleo tinham muito a ver com o desdobramento do dramático episódio conhecido como
“Guerra do Chaco”, tramada pela Standard Oil. No
seu final, o Brasil assinou os “Tratados de 1938” pelos quais ganhou uma região para pesquisar petróleo. O governo brasileiro havia construído a estrada
de ferro Corumbá-Santa Cruz de la Sierra e recebeu
a “área de estudo” como pagamento. O acordo seria
desfeito em 1955, quando o governo do presidente
Café Filho devolveu a área ao governo boliviano, que
seria repassada à Standard Oil.
No caminho estava o pai dos neoliberais brasileiros, Eugênio Gudin, ministro da Fazenda. Ele se re-
Cartaz da III Convenção Nacional de Defesa do Petróleo,
promovida pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo
e da Economia Nacional (Cedpen). Rio de Janeiro, 5 de
julho de 1952.
cusou a liberar os recursos necessários já aprovados
no Congresso e destinados ao reinício das atividades
do Conselho Nacional do Petróleo na região sub-andina boliviana. A mídia, que no Brasil combatia ferozmente o monopólio estatal do petróleo, saudou a
atitude de Gudin como um gesto de “coragem e bom
senso”. Em La Paz, o procedimento foi o mesmo.
Festejaram, assim, o entreguismo brasileiro-boliviano, na pessoa de Gudin.
O alvo era a Petrobras, que surgia como desmentido aos que só acreditavam nas maravilhas da iniciativa privada. Os monopólios privados sabiam que
a estatal era a solução certa para o problema do petróleo brasileiro e que seria a base econômico-financeira do desenvolvimento nacional. Foi assim que
começou a primeira campanha contra a Petrobras.
No início da década de 1960, no entanto, o monopólio estatal foi reforçado com a incorporação da
importação de petróleo e da distribuição de derivados. A integração de todas as fases da indústria petrolífera — exploração, produção, transporte, refino
e distribuição — no regime de monopólio permitiu
ao país controlar a totalidade do seu petróleo. O setor evoluía em um ambiente iluminado pelo debate
democrático e parecia intocável, apesar do assédio
incessante das multinacionais.
13
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Com a chegada do regime golpista de 1964,
foram criadas as condições para a volta dos
ataques privatistas. Já em 1965, a ditadura
militar promulgou três decretos-lei: um que
restituiu as refinarias estatizadas aos seus antigos proprietários e outros dois que retiraram
a petroquímica e o xisto do monopólio estatal.
Em 1970, contrariando a essência da lei
que instituiu o monopólio, a direção da Petrobras, cumprindo decisão do governo, reduziu
o esforço exploratório, o que comprometeria o
objetivo de atingir a autossuficiência nacional.
“A autossuficiência no campo do petróleo, por
mais desejável que seja, não é a missão de base da empresa”, declarou o então presidente
Petroleiros debatem os rumos do movimento de greve durante a
da Petrobras, general Ernesto Geisel.
assembleia, em Campinas, São Paulo - 1983
Ao mesmo tempo, a ditadura flertava com
as multinacionais do setor. O primeiro resultado foi a associação da Petrobras à Mobil Oil e à
fissionais, os parlamentares e todos os setores sociais
National Iranian Oil Company para formar a Hordo país para que retomemos juntos a luta: pela abolimoz Petroleum Company, com atuação no Irã. Em
ção dos contratos de risco; pela restauração integral
outubro de 1975, Geisel, agora
do monopólio estatal do petróleo
presidente da República, disse
através da Petrobras; pelo conO governo Lula
que as empresas multinacionais
trole da população sobre os reestavam autorizadas a explorar
cursos minerais e energéticos.”
interrompeu
petróleo no Brasil, anunciando a
De 1977 a 1988, foram assio processo de
adoção, pelo governo brasileiro,
nados 243 “contratos de riscos”,
dos “contratos de risco”.
que resultaram em 79 poços
esfacelamento
Quatro anos depois, em deperfurados, em uma área de 1,5
que estava sendo
zembro de 1979, um telex da
milhão de quilômetros quadraPresidência da República deterpreparado pelos
dos (superior à dos territórios da
minou à Petrobras a criação das
Inglaterra, Itália, Japão, Suíça,
tucanos para vender a
condições necessárias à particiGrécia e Portugal juntos), e inPetrobras. A partir de
pação das multinacionais tamvestimentos de US$ 1,25 bilhão,
bém na fase de produção. O obdos quais ingressaram no país
então, salva do balcão
jetivo era tornar os “contratos
US$ 350 milhões. Um resultade privatrizações, a
de risco” mais atrativos. No endo pífio. A Petrobras, no mesmo
tanto, o país entrara na fase de
período, aplicou US$ 26 bilhões,
empresa cresceu e
lutas pela redemocratização e
perfurou 8.203 poços e descoalcançou resultados
a decisão da ditadura provocou
briu os campos gigantescos de
fantásticos para o
protestos.
Marlin, Albacora e Barracuda —
Em manifesto de 28 de fealém de outros localizados onde
Brasil
vereiro de 1980, os sindipetros
vigoraram “contratos de risco”,
(sindicatos de petroleiros) disnas áreas Sul-Tubarão, Estrela do
seram: “Estamos levantando
Mar, Coral e Caravela.
a bandeira do ‘Petróleo é nosso!’, não pelo simples
No governo do presidente Fernando Collor de
prazer de uma nova luta, mas pela vontade de preMello, surgiu a proposta do “Emendão”, uma tenservar tudo o que foi conquistado com suor e sangue
tativa de alterar a Constituição pela qual ele jurou
de nosso povo.”
fidelidade, que incluía a possibilidade de quebra do
Uma resolução das associações de geólogos de almonopólio estatal do petróleo. O coordenador do
guns estados e da Sociedade Brasileira de Geologia,
Programa Nacional de Desestatização e presidente
dizia: “Conclamamos todos os colegas, principaldo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
mente aqueles que trabalham na Petrobras e outras
e Social (BNDES), Eduardo Modiano, disse que era
empresas públicas, os sindicatos e associações propossível reverter a tendência majoritária no Con-
14
Capa
Com a descoberta do pré-sal,
a condição estratégica da
Petrobras como esteio da
soberania nacional foi elevada
a um patamar nunca imaginado
gresso Nacional contra a privatização da Petrobras.
“Isso depende de emenda constitucional, mas acho
que parlamentares e sociedade se sensibilizarão com
o sucesso do programa de privatização e, aí, será viável a privatização da Petrobras”, declarou. A proposta recebeu, de pronto, o apoio do ministro do Planejamento, Paulo Haddad.
A ideia seria enterrada pelo presidente Itamar
Franco, que declarou, em reunião com representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE), que a
Petrobras e a Companhia Vale do Rio Doce não seriam privatizadas. “Enquanto eu for presidente essas estatais não serão privatizadas”, declarou. Contudo, quando Fernando Henrique Cardoso (FHC)
assumiu o Ministério da Fazenda o assunto voltou
à baila. “Esse assunto (a privatização da Petrobras)
depende do Congresso, porque trata da questão do
monopólio”, afirmou.
No governo FHC, a ideia de privatizar a Petrobras
surgiu oficialmente em 1996 quando Luis Carlos
Mendonça de Barros, então presidente do BNDES —
um tucano de alta plumagem —, desceu do muro
para colocar o guizo no pescoço do gato. Era uma
voz que deveria ser levada a sério; ele foi um daqueles baluartes da tribo que ajudava a manter no exílio
gente como FHC e José Serra. A privatização não se
concretizou, mas a aprovação da Emenda Constitucional nº 9, em 9 de novembro de 1995, quebrou o
monopólio estatal e iniciou o processo de abertura
da indústria petrolífera e gasífera no Brasil.
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva interrompeu o processo de esfacelamento que estava sendo preparado pelos tucanos para vender a
Petrobras, de acordo com José Sérgio Gabrielli, que
assumiu a presidência da estatal. “A Petrobras estava sendo dividida em partes, estava em processo
de esfacelamento. Eu acho que a empresa teria sido vendida se nós não tivéssemos interrompido esse
processo”, disse ele. A Petrobras só alcançou tantos
resultados (autossuficiência em petróleo, anunciada
em 21 de abril de 2006) porque não foi parar no “balcão das privatizações”, destacou.
Lula falou sobre a sensação de presenciar essa
conquista da estatal. “Eu acredito que ser brasileiro,
conhecer a história da Petrobras e viver o 21 abril de
2006 como eu vivi, eu acho que é uma dádiva de Deus”,
afirmou. O presidente lembrou as críticas que a estatal
enfrentou no decorrer de sua história. “Eu sei que a
Petrobras desde 1953, com o decreto de Getúlio Vargas,
foi vítima de críticas daqueles pessimistas que gostam
de criticar tudo, daquele mesmo que disse que a Petrobras não ia dar certo”, comentou. Com a descoberta do
pré-sal, a condição estratégica da Petrobras como esteio
da soberania nacional foi elevada a um patamar nunca
imaginado e ainda não totalmente dimensionado.
* Osvaldo Bertolino é jornalista, escritor, editor
do portal Grabois. São de sua autoria, entre outras
obras, as biografias de Maurício Grabois, Pedro
Pomar e Carlos Danielli
15
Ed. 135 – Março/Abril 2015
ATAQUE À PETROBRAS
Nova ofensiva, velhos argumentos!
Davidson Magalhães, Luiza Erundina, Afonso Florence*
Com 210 deputados e 42 senadores, foi criada em março a Frente
Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras. Princípios publica a
seguir artigo de três integrantes desta frente no qual defendem a
estatal e apresentam argumentos contra as propostas da direita
neoliberal que pretendem enfraquecer a empresa com o objetivo
de privatizá-la
A
o longo da sua trajetória, dos primeiros poços de produção à vanguarda
tecnológica da exploração de petróleo
e gás em águas profundas, até atingir
a camada do pré-sal, ela só tem acumulado êxitos, configurando-se num símbolo da excelência técnica e gerencial dos brasileiros.
A Petrobras alcançou no ano de 2014 o título de
maior produtora de petróleo entre as companhias de
capital aberto, situando-se atualmente entre as dez
maiores petroleiras do mundo. Este vitorioso itinerário consolidou-a numa posição estratégica na economia do país, representando hoje 15% dos investimentos e 10% do nosso Produto Interno Bruto (PIB).
Por outro lado, devido às suas conquistas e performance, aliadas à descoberta e prospecção no présal, a estatal sempre esteve na mira de interesses escusos, alvo de ataques e tentativas de privatização.
No passado recente, exemplos não nos faltam.
No dia seguinte ao Natal do ano 2000, o Brasil foi
surpreendido por uma notícia capciosa: o presidente da Petrobras, Henri Philippe Reichstul, anunciava
16
que a empresa mudaria seu nome comercial para Petrobrax. A pseudo justificativa do governo de FHC
(PSDB) seria para “unificar a marca e facilitar seu
processo de internacionalização”. Esta tentativa de
caminhar rumo à privatização e desnacionalização
da companhia foi desmascarada e o governo FHC foi
obrigado a recuar.
Quase quinze anos depois, no último dia 25 de
fevereiro, se valendo da crise e turbulência no setor, resultante da operação Lava Jato, o senador José Serra (PSDB) recolocou em cena a velha política
privatista e antinacional. Com argumentos toscos,
que demonstram o completo desconhecimento da
realidade da indústria petrolífera mundial e suas
tendências, além de transvestir-se de cordeiro para
disfarçar a fome de lobo faminto.
Desmontar para privatizar
A fala do senador tucano foi emblemática. Disse
ele: “A Petrobras tem que ser refundada. Mudar radicalmente os métodos de gestão, profissionalizar dire-
Capa
Fotos: http://wenceslaujr.blogspot.com.br
No último dia 24 de março foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Petrobras, na Câmara dos Deputados
toria, conselho administrativo e rever as tarefas que
exerce. Sua função essencial é explorar e produzir
petróleo. No Brasil, a Petrobras diversificou demais e
foi muito além do necessário (...). Hoje, ela atua na
distribuição de combustíveis no varejo, nas áreas de
petroquímica, fertilizantes, refinarias, meteu-se em
ser sócia de empresa para fabricar plataformas e investiu até em etanol (...). O que dá prejuízo precisa
ser enxugado. Vendido, concedido ou extinto”.
Por diversos motivos merece resposta esta cantilena tucana, pois propõe a venda dos ativos de refino
e distribuição para fazer caixa e financiar a produção de óleo. Como se essa fosse a solução redentora
das atuais dificuldades da Petrobras. Um absurdo,
oriundo de quem não sabe o que diz.
Desconsidera por completo a natureza e especificidade dessa indústria que, definitivamente, não
se trata de uma indústria qualquer. Não por acaso,
em quase todos os países, a maior empresa é sempre
uma petroleira. Por fim, petróleo é energia e base da
química moderna; sem ele, não há soberania para
um país de proporções continentais como o Brasil.
O senador também desconhece conceitos técnicos básicos do mercado, como, por exemplo, o “custo de transação”, ou, que o valor, para ser gerado,
necessita ser extraído e realizado, daí o porquê de
a integração de atividades tornar-se imprescindível
para a sobrevivência e o crescimento da Petrobras.
Durante a década de 1990 o objetivo do governo
foi “enxugar a Petrobras” para, em seguida, vendê-la ao melhor preço. Foi o pior momento da história
da estatal, iniciado na curta presidência de Collor e
implementado pelo presidente FHC ao longo de seus
dois mandatos.
Além dos baixos indicadores de extração, produção e refino, registraram-se naquele período três
cenários negativos que afetaram o
desempenho da companhia, direta
ou indiretamente.
Primeiro, coincidiu com o desamparo governamental que originou as dificuldades da indústria
química brasileira que, apesar de tudo, resistiu e hoje se mantém como a
sexta maior do mundo, graças à base construída anteriormente, porque
nada foi feito no período tucano.
Em segundo lugar, houve uma
sensível deterioração da qualidade
dos combustíveis automotivos. Em
1999, por exemplo, 20% de cada litro de gasolina vendido na cidade
Depois de enfraquecer e tentar vender a Petrobras durante o governo FHC, agora
tucanos como o senador José Serra (PSDB-SP) querem entregar a riqueza do
de São Paulo estavam fora dos papetróleo brasileiro para grandes petrolíferas estrangeiras
drões técnicos para o consumo.
17
Ed. 135 – Março/Abril 2015
E, finalmente, ocorreu a deterioração das condições de segurança operacional na Petrobras, entre
1999 e 2002. Resultou em dois naufrágios, com numerosos óbitos e dois acidentes ambientais que se
tornaram os piores dos anais da companhia.
Do poço à bomba
Há outras questões determinantes afeitas ao tema.
Nos últimos dez anos, entre as dez maiores empresas petroleiras mundiais de capital aberto, somente
uma optou por abandonar o refino e a venda de derivados para se concentrar em E&P (exploração e produção). Todas as demais são integradas, assim como
as maiores empresas do setor controladas pelo Estado.
As “majors”, “super majors” e grandes estatais
produzem do “poço de petróleo à bomba de gasolina”.
Apenas as independentes norte-americanas e as médias empresas petroleiras, espalhadas pelas diversas
bacias sedimentares produtoras no mundo, não dispõem de meios para refinar o que produzem; justamente, porque não têm caixa para fazê-lo. Será que
todas elas estão erradas e só a ConocoPhilips acertou?
A despeito da notória incapacidade dos economistas para prever o preço do petróleo, o capital petrolífero não costuma errar suas estratégias e seus
cenários. Esso, Shell, Total e BP são empresas centenárias, sobreviveram a inúmeras crises. Pemex,
Aranco, Petrochina, Statoil, Ecopetrol e Petrobras,
pelo lado das estatais, em pouco mais de meio século, apoiadas em uma crescente capacidade de refino
e distribuição, se içaram como as maiores competidoras, num oligopólio antes dominado pelas “sete
irmãs”. Embora incapazes de saber qual será o preço
futuro, todas elas entenderam que o preço do petróleo é cíclico; na verdade, profundamente cíclico.
Para sobreviver aos ciclos e, a despeito deles, continuar a crescer, o capital se aproveita de outra especificidade da indústria: não se abastece carro com
petróleo. Depois de achado e extraído, é preciso transportá-lo, refiná-lo, armazenar seus derivados e distribuí-los, para somente depois chegar ao seu uso final.
A cada etapa, gera-se valor. A coordenação de
uma série complexa de atividades diferentes é que
permite a transformação do mineral num fluxo quase contínuo de produção. É a integração das partes
que permite à petroleira se apropriar do valor gerado ao longo de toda a cadeia produtiva. E o somatório final não é pequeno. Ajudadas pelo aumento de
preço, como na última década, jamais as petroleiras
lucraram tanto. E não foi diferente para as estatais.
A integração do poço à bomba, além disso, permite proteger-se durante as baixas. As petroleiras
aprenderam muito cedo que, quando o petróleo está
18
com preço vil, ela ganha
na venda de seus derivados (que são muitos)
e na sua transformação
química. Não é à toa que
todas as grandes empresas do setor têm refinarias, meios de transporte
e distribuição próprios.
Além disso, Esso,
Chevron, Shell, BP e Total também dispõem de
importantes plantas petroquímicas. O mesmo
acontece nas grandes
estatais e, em particular,
na China e no Oriente.
É fácil entender a lógica
da petroleira: a perda à
montante será compensada pelo ganho à jusante. Em particular, com matéria-prima barata, o refino e a petroquímica geram
enormes lucros. Basta ver o que aconteceu nos últimos anos nos EUA: um quarto de seu crescimento se
deveu ao barateamento do gás natural e excesso de
condensado decorrente.
Avançar na crise
O movimento de queda recente nos preços do
petróleo já era sentido pelas grandes petroleiras. A
reestruturação em curso será profunda e, como nas
baixas anteriores, o resultado será uma concentração maior, com o desaparecimento dos competidores
mais fracos e menores.
Aquele capital petrolífero, que depende apenas
da produção de um ou dois campos, que está na
fronteira da tecnologia, que produz não convencionalmente, ou que não tem como valorizar seu petróleo, seja refinando, seja transformando-o em produtos de base para a petroquímica, será o primeiro a
ser afetado. Os oportunistas e as empresas gigantes
saberão aproveitar a ocasião de liquidação dos ativos
para fortalecer suas posições.
Uma onda de fusões e aquisições se avizinha e,
pelo visto, quer que a Petrobras esteja do lado das
perdedoras e vendedoras. Os vencedores serão sempre os mesmos. Aqueles que, há mais de um século,
são capazes de desenhar uma estratégia contracorrente e avançar em tempos de crise.
Desfazer-se do refino e distribuição, a esta altura,
seria um erro estratégico primário jamais visto. Seria
também entregar um ativo construído em mais de
meio século a um preço necessariamente baixo.
Capa
As maiores empresas
petroleiras mundiais de
capital aberto produzem do
“poço de petróleo à bomba
de gasolina”
a sucessivos ciclos econômicos em razão da inação
de suas elites. A indústria petrolífera do Brasil, com
a Petrobras à frente, e o pré-sal criam uma nova e
grande oportunidade de se mudar a história, mas,
pelo visto, parte da elite (por desconhecimento, ou
má fé) ainda não se deu conta de que já estamos no
Pior é permitir que, por
século XXI.
vias tortas, o capital exterOs neoliberais capitaneados pelos tucanos são
no – o único que teria conungidos pela grande mídia a paladinos da moralidadição de adquirir as instade. Mesmo se recusando a assinar a CPI do HSBC, da
lações – assuma ativos que
privataria, da aprovação da reeleição de FHC, denhoje fazem a Petrobras ser
tre outras, e tendo diversas lideranças de destaque
a maior distribuidora de
nacional com seus nomes elencados em escândalo.
combustíveis automotivos
A pretexto de combater o deplorável esquema de
do país, fornecedora da
corrupção instalado na companhia há cerca de vinte
quarta (ou quinta) maior
anos, segundo um dos detratores, retomam a ofensifrota de veículos no munva contra a Petrobras e os interesses nacionais.
do e sexta maior petroquíEsta nova ofensiva ocorre com fortes reflexos no
mica. É bom lembrar que
Brasil, num contexto de crise econômica internacioo Brasil ainda importa dois
nal, de instabilidade política e de investida conservaterços dos fertilizantes que utiliza em sua agricultura.
dora. Tentam impor uma agenda social regressiva e
Um campo ainda a ser potencializado entre as múltide fragilização da companhia e do seu prestígio em
plas vertentes do mercado.
razão da operação Lava Jato. O
rebaixamento da Petrobras no
A energia do país
ranking do grau de investimento
Na condição de
é mais um fator agravante, geum “quase” Estado
Mesmo sob fogo cerrado, a
rando importantes entraves ao
Petrobras acumulou em 2014
extrativo-exportador,
financiamento dos seus investidestacados êxitos operacionais.
mentos. Os interesses antinaciopor cinco séculos, o
A produção de petróleo e gás
nais buscam paralisar a Petropaís esteve submetido
alcançou a marca histórica de
bras com sérias consequências
2,670 milhões de barris equivapara a empresa e o país.
a sucessivos ciclos
lentes/dia; o pré-sal produziu em
As forças nacionais e demoeconômicos em razão
média 666 mil barris de petrócráticas precisam retomar a inileo/dia; a capacidade de procesciativa política. Reafirmar nosso
da inação de suas
samento de óleo aumentou em
compromisso com a soberania
elites. A indústria
500 mil barris/dia; a produção
popular e o respeito e preservapetrolífera do Brasil,
de etanol cresceu 17%, atingindo
ção dos bens públicos. Combater
1,3 bilhão de litros. Em setembro
e punir corruptos e corruptores.
com a Petrobras à
de 2014 a Petrobras tornou-se a
E, prioritariamente, articular
frente, e o pré-sal
maior produtora mundial de peamplas mobilizações em defesa
tróleo dentre as empresas de cada Petrobras e a sua integralidacriam uma nova e
pital aberto, superando a Exxonde, uma empresa cuja energia é
grande oportunidade
Mobil (Esso).
decisiva na luta por um projeto
Restringir-se à exportação de
de se mudar a história
nacional de desenvolvimento
óleo bruto e não valorizar a crescom soberania, inclusão social e
cente produção é um retrocesso
participação popular.
histórico, um absurdo em termos de política industrial e um crime contra o patrimônio nacional. Do
* Luiza Erundina é deputada federal (PSB) por São
pau-brasil ao café, passando pelo ouro, o açúcar e a
Paulo, ex-prefeita da cidade de São Paulo. Davidson
borracha, o Brasil sempre esteve condenado à perifeMagalhães é deputado federal (PCdoB) pela Bahia,
ria, exportando produtos com baixo valor agregado.
ex-presidente da Bahiagás. Afonso Florence é
Na condição de um “quase” Estado extrativo-exdeputado federal (PT) pela Bahia, 3° vice-líder do
portador, por cinco séculos, o país esteve submetido
PT e ex-ministro do Desenvolvimento Agrário.
19
Ed. 135 – Março/Abril 2015
À LUTA!
Adilson Araújo, Divanilton Pereira e José Maria Rangel*
A disputa política no Brasil atingiu alturas perigosas. Graves
ameaças pairam sobre o país. Uma classe dominante apátrida,
liderada por Washington, patrocina a instabilidade constitucional,
promove o ódio de classe e, mais uma vez, opera para tentar
entregar a Petrobras e o pré-sal ao capital estrangeiro.
Diante dos atuais acontecimentos políticos no Brasil recorremos
a um rápido exame da atual geopolítica, particularmente de seus
vínculos com a atividade petrolífera. Um exercício necessário
para melhor identificar as questões de fundo que norteiam a
ação política da direita brasileira em conluio com a grande mídia
20
Capa
V
ivemos um tempo de transição para
uma multipolaridade no mundo, no
qual novos centros políticos e produtivos exercem importante protagonismo. Uma disputa geopolítica
entre o estágio anterior, unipolarizado pelos EUA e aliados, e uma nova conformação
entre as nações em desenvolvimento, destacadamente as do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e
África do Sul).
Um cenário que reproduz tensões e incertezas, e
que sob os efeitos da crise capitalista em curso faz
também intensificar o acirramento da concorrência
intercapitalista e os conflitos políticos.
O petróleo na política
Não é segredo que a geopolítica tem uma forte
relação com a atividade petrolífera. Sejam os países
exportadores ou grandes consumidores desse combustível fóssil, suas economias dependem das flutuações da oferta e dos preços do petróleo.
A principal locomotiva econômica do mundo
hoje, a China, é a maior consumidora de energia do
mundo – responde por 19% da demanda mundial,
com tendência de ser a maior importadora de petróleo nos próximos anos. Atualmente importa 59%
de suas necessidades.
Para garantir o seu desenvolvimento e o espaço
na nova geopolítica, promove uma grande ofensiva
para garantir sua segurança energética. Incluindo
inúmeras parcerias, aquisições e contratos em vários
continentes do mundo, inclusive com as reservas do
pré-sal do Brasil.
A Rússia, após o desmonte de um período privatista no setor, retomou com Putin o controle público sobre o petróleo e gás. Para isso, alterou a legislação e adotou mecanismos que retirou o poder
das petroleiras ocidentais. No entanto, pelo seu
papel na quadra internacional e em função de sua
fortíssima dependência das receitas do petróleo, o
país sofre os efeitos de um dumping que tem provocado uma queda significativa no preço do barril
do petróleo. É evidente que o enfraquecimento do
governo russo (um dos pilares do BRICS), assim
como da Venezuela, interessa sobremaneira aos
EUA, que cotidianamente impõem novas sanções
aos dois países.
21
Ed. 135 – Março/Abril 2015
A estratégia dos EUA
com soberania energética. Um invejável e disputado
status que atrai a sanha dos grandes conglomerados
internacionais, sobretudo a dos EUA.
Os EUA são os maiores consumidores de petróleo
Diante disso, o então presidente Luiz Inácio Lula
do mundo (21 milhões de barris-dia) e há pouco imda Silva aprovou a estratégica legislação para a exportavam 60% da demanda interna. Recentemente
ploração da província no pré-sal. Nela estabeleceu-se
esse percentual teve uma redução significativa em
o regime de partilha, a Petrobras como operadora
função da utilização das novas tecnologias na exploúnica e o Fundo Social. São partes-chave, pois delas
ração do shale gas e do shale oil. No entanto, contiviabilizam-se a fiança para um
nuam com um importante grau
Novo Projeto Nacional de Desende dependência externa. E para
volvimento, no qual as questões
assegurar o controle sobre suas
Só uma elite liberal,
estruturantes como a educação,
fontes externas eles já demonscomo a brasileira,
a ciência, a tecnologia, a saúde e
traram do que são capazes – ina indústria nacional se destacam.
vadiram o Iraque, o Afeganistão,
insiste em
Os derrotados até hoje conspibombardearam a Líbia, semeiam
desmantelar um
ram contra essa conquista.
a guerra em todo o Oriente Médio – e não hesitam também,
patrimônio nacional,
Petrobras: velhos e
através de suas grandes petroleidesnacionalizar
novos desafios
ras, de auferirem os mesmos oba legislação petrolífera
jetivos patrocinando legislações
A Petrobras como meio preantinacionais ou privatizações a
atual e entregar a
ponderante dessa atividade mais
seu favor.
exploração
uma vez está diante de grandes
Não restam dúvidas de que
desafios. Desde que surgiu eno controle sobre as reservas e a
do pré-sal às
frenta cotidianamente seus adprodução mundial de petróleo
multinacionais. É um
versários históricos, aqueles que
está no centro da agenda e das
afirmaram que não havia petróleo
disputas geopolíticas, sobretudo
despropósito
no Brasil e que este não teria canessa fase de transição da ordem
sem similaridade
pacidade para produzi-lo. Os meseconômica e política mundial.
mundo afora
mos que, sob a liderança de FerNessa realidade de explosivas
nando Henrique Cardoso/PSDB,
tensões os países não abrem mão
tentaram privatizá-la.
de suas reservas, ao contrário,
Atualmente ela busca superar os efeitos de um
ampliam outros domínios e reforçam suas empresas
perverso esquema de corrupção, somente hoje dese legislações.
coberto, e o grave impacto da redução do preço do
No Brasil, bem como na Venezuela e Argentina,
barril do petróleo. Essa nova circunstância exige
uma classe dominante vocacionada historicamente
um enfrentamento combinado, pois sob o pretexto
para o entreguismo, insiste mais uma vez em desde combate à corrupção, os históricos entreguistas
mantelar a espinha dorsal dessa atividade, a estaestão na ofensiva política contra a empresa mais
tal Petrobras. As circunstâncias pelas quais passa a
uma vez.
GESTÃO da Petrobras – que deve ser enfrentada com
Só uma elite liberal, como a brasileira, insiste em
todo rigor – não justifica a colossal campanha para
desmantelar um patrimônio nacional, desnacionalisua desmoralização.
zar a legislação petrolífera atual e entregar a exploração do pré-sal às multinacionais. É um despropóO Brasil, o pré-sal e a Petrobras
sito sem similaridade mundo afora.
Fragilizar uma empresa do porte da Petrobras –
O Brasil com suas potencialidades naturais,
que mesmo com as revisões em curso, é detentora
imenso mercado consumidor e uma economia diverdo maior programa de investimento de uma empresificada, integra o importante bloco político-econôsa ocidental (US$ 220,6 bilhões entre 2014 e 2018);
mico do BRICS e exerce nele um papel de grande
conquistou ano passado, entre as companhias de carelevância.
pital aberto, a condição de maior produtora de petróE um fator que potencializou essa sua condição
leo no mundo (2 milhões e 661 mil barris-dia); tem
foram as descobertas no pré-sal, uma das mais imum índice de sucesso exploratório de 75% no pós-sal
portantes em todo o mundo na última década. Um
e de 100% no pré-sal; terá suas atuais reservas de
cenário que projeta o país a se tornar uma nação
22
Capa
Números da Petrobras/
Variáveis
2002
2013
Valor de mercado (31 de
dezembro)
R$ 54 bilhões
R$ 215
bilhões
Lucro Líquido anual
R$ 8,1 bilhões
R$ 23,5
bilhões
Investimentos realizados
R$ 18,8 bilhões
R$ 104,4
bilhões
Número de trabalhadores
próprios
46 mil
86 mil
Produção de óleo no Brasil
(barris/dia)
1,5 milhões
2,5 milhões
Reservas provadas (barris)
11 bilhões
16 bilhões
Venda de derivados (barris/
dia)
1,6 bilhões
2,1 bilhões
Investimentos da Petrobras
%
ano
%
ano
15,6 bilhões dobradas em 2022; apenas 8 anos após
a descoberta do pré-sal, já produz nessa província
700 mil barris-dia, que, antes no pós-sal, levou-se 31
anos para produzir 500 mil barris-dia – é um crime
contra o futuro do nosso povo.
Denunciamos essas forças da “casa grande” como
os maiores operadores desse esquema entreguista.
Nas tabelas ao lado seguem informações sobre o
desempenho da Petrobras e dos efeitos expansivos
de seus investimentos na economia brasileira, comparando-os entre períodos históricos.
*1 Esses recursos viabilizam diversas parcerias
com as universidades brasileiras. Particularmente
com a UFRJ, que em associação com o Centro de
Pesquisa da Petrobras (CENPES) e outras operadoras criaram o Rio de Janeiro, o maior complexo inovativo da América Latina.
*2 Estima-se em 300 mil trabalhadores indiretos
até o ano passado nesse complexo naval. As consequências da operação Lava Jato já estão afetando esse inédito ciclo de crescimento.
*3 Setor de óleo e gás emprega mais de um milhão de pessoas no Brasil.
Elevou o PIB em
0,7% –
1999
2,2% – 2013
Elevou a indústria nacional em
3,1% –
1999
10% – 2013
Correspondiam em relação a
todos outros investimentos
feitos no país
4,5% –
1999
13% – 2013
A participação do setor de óleo
e gás no PIB do país
2% –
2000
13% – 2014
Expansão do conteúdo local
elevou-se de
48% –
2003
60% – 2010
É esse extraordinário patrimônio brasileiro e de sua
magnífica capacidade indutora à atividade produtiva
no país que está sob ameaça. Nenhuma nação no
mundo, desenvolvida ou em desenvolvimento como
a nossa, abre mão de tê-la ou controlá-la.
Formação bruta de capital fixo
elevou-se de
3% –
2000
13% – 2014
Os maus feitores
40 mil
diretos –
2013
237 mil
terceirizados
(2013)
9,3% –
2003
18,7 – 2006
US$ 160
milhões
(20012003)
US$ 1,243
milhões
(20112013)*1
US$ 1,7 bi
– 2002
US$ 21,7
bilhões –
2012
Geração de empregos*3
Representa das compras nacionais (máquinas e equipamentos)
Recursos para ciência, tecnologia e inovação
Exportação de petróleo
Encomendas à indústria naval
62 navios
(20062009)
97 entre
navios e
plataformas
(2009-2010)
2mil –
2000
85 mil –
2014*2
e
Empregos
Há quase um ano a Petrobras está submetida a
um grande processo investigativo. Um forte esquema de corrupção que funcionava havia anos, dentro
e fora da empresa, foi desbaratado. Alguns poucos
gestores, tecnocratas corruptos, detentores de ilhas
de poder no sistema Petrobras, se locupletaram de
recursos públicos.
A classe trabalhadora, em particular os 86 mil,
entre petroleiras e petroleiros, exigem a mais rigorosa apuração e condenação dos culpados.
No entanto, sabemos separar o joio do trigo e não
faremos coro com aqueles que historicamente foram
e continuam como seus inimigos. O PSDB, juntamente com seus aliados internos e de fora do país, se aproveita dessa circunstância e em conluio com a grande
mídia desencadeiam uma intensa campanha que visa
a desmoralizar e fragilizar a instituição Petrobras.
É a velha estratégia que busca criar um ambiente favorável aos seus intentos privatistas. Não à toa
o senador Aloysio Nunes, PSDB de São Paulo e candidato a vice na chapa de Aécio Neves, apresentou
23
Ed. 135 – Março/Abril 2015
para identificar o inimigo principal da nação neste
o Projeto de Lei nº 417-2014 requerendo alterar o
momento.
atual marco regulatório do petróleo.
Não admitiremos que os interesses alheios ao
Essa iniciativa desnuda os reais interesses desse
nosso povo, em particular das
consórcio oposicionista liderado
trabalhadoras e dos trabalhapor Fernando Henrique Cardodores, determinem uma agenso. Eles estão longe de represenda política regressiva no país. O
tar os valores éticos e morais,
Brasil precisa é de mais avanços
pois seu passado os condena. Na
e não de retrocessos.
verdade conspiram para transConsideramos que está na
ferir o controle das estratégicas
ordem do dia a articulação de
reservas do pré-sal às grandes
uma ampla frente democrática
petrolíferas norte-americanas.
progressista que, nucleada pela
Repudiamos também, como
esquerda, galvanize os moviparte dessa empreitada política,
Repudiamos, como
mentos sociais, a intelectualidaa fragilização de uma boa parte
parte dessa empreitada
de, a cultura, partidos políticos
da cadeia produtiva, inviabilie amplas lideranças populares.
zando, sobretudo, as grandes
política, a fragilização
Uma coalizão patriótica para liempresas da construção do país,
de uma boa parte
derar a resistência e impor uma
ameaçando os 500 mil empregos
contraofensiva.
que elas detêm. Um bilhete preda cadeia produtiva,
As entidades sindicais namiado para as estrangeiras que
inviabilizando,
cionais que representamos são
já se alvoroçam.
sobretudo, as
partes integrantes desse esforço.
Estão embandeiradas na deA disputa política é o
grandes empresas da
fesa do mandato da presidenta
cerne da questão
construção do país,
Dilma Rousseff e da legalidade
constitucional. Na defesa da inEm seu conjunto, essa ofenameaçando os 500
tegridade do sistema Petrobras,
siva contra a Petrobras e a indúsmil empregos que elas
da engenharia nacional e dos ditria nacional é uma expressão
reitos sociais. Participam da luta
detêm. Um bilhete
da polarização política pós-eleipor uma reforma política demotoral, na qual a direita consecupremiado para as
crática – fim do financiamento
tivamente derrotada, insiste em
estrangeiras que já se
eleitoral pelas empresas – e pela
não aceitar o veredito popular
regulação da mídia.
que reelegeu a presidenta Dilma
alvoroçam
Convictos dessa direção e
Rousseff.
unificados em torno dessas banNessa direção, para eles, vale
deiras principais, potencializatudo, inclusive quebrar a ordem
remos a resistência popular, ultrapassaremos essa
constitucional. Não se importam com interrupção
desafiadora travessia e retomaremos as condições
dos enormes efeitos multiplicadores e indutores
para o crescimento econômico, o fortalecimento da
da atividade petrolífera para o país – aqui demonssoberania nacional e os direitos sociais.
trados. Desprezam o retrocesso que geraria para o
Brasil, comprometendo os destinos dos empregos,
VENCEREMOS!
da educação, da saúde, da ciência e a tecnologia. É
uma repetição trágica de sua vocação, de seu DNA.
* Adilson Araújo, presidente nacional da
A direita renega o papel da Petrobras nesse processo.
Temos lado
A classe trabalhadora brasileira não está alheia
a essa disputa, pelo contrário, é partícipe histórica
dela e exerce seu protagonismo no curso dessa batalha atual.
Quem enfrentou a ditadura e o neoliberalismo
tucano acumulou forças e experiências o suficiente
24
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil (CTB). Divanilton Pereira,
secretário de relações internacionais da
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras
do Brasil (CTB). José Maria Rangel,
coordenador da Federação Única dos
Petroleiros (FUP).
Fontes: PETROBRAS – DIEESE-FUP
Economia
25
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Experiências da
austeridade econômica
Renildo Souza*
Reuters
Trabalhadores fazem greve e manifestações contra a política de austeridade imposta pela União Europeia
A crise econômica na Europa oferece exemplos importantes
para se entender e debater os rumos da economia brasileira.
Mas desde já é possível apontar que depois da derrota
eleitoral de outubro de 2014, os partidos de oposição, a
mídia e os agentes do mercado financeiro no Brasil querem a
revanche para impor seu projeto neoliberal, em contradição
com os interesses democráticos, nacionais e populares. A
economia – seja pelos desafios de sua conjuntura concreta e
imediata, seja pela retórica da interpretação catastrofista – é
instrumentalizada para tentar desestabilizar o governo Dilma
26
A
economia é, efetivamente, uma arma
decisiva dessa guerra política. Nesse sentido, no Brasil, hoje, a crítica,
indispensável, de setores progressistas a alguns aspectos das mudanças
de política econômica e à proposta de ajuste fiscal
não pode perder de vista as duras circunstâncias da
luta política em curso, em torno da legitimidade de
Dilma Rousseff na Presidência da República. A crítica deve servir à busca de uma nova política que
contribua, simultaneamente, para a recuperação do
crescimento econômico e para a defesa, na sociedade, do governo Dilma.
A austeridade econômica, através de contração
fiscal, privatizações e desestruturação neoliberal do
mercado de trabalho, foi recomendada, imposta e
concretizada em diversos países, principalmente na
Europa, em meio à crise global desencadeada em
2007-2008. Decorrido um prazo razoável, é possível
verificar os saldos dessa experiência. Por exemplo, a
Grécia, depois de cinco anos de aplicação da receita
de austeridade e privatizações, colheu a piora acumulada da produção e do desemprego, alastrando
miséria em sua população trabalhadora: velhos, com
redução ou cancelamento dos proventos das aposentadorias; jovens sem qualquer perspectiva de emprego; crianças sem escola; população sem assistência à
saúde. Então, qual é o impacto desses fatos sobre os
discursos e os atos dos círculos dominantes, internacionalmente, no âmbito das instituições e do poder
político e na esfera financeira? Metodologicamente,
as provas e as evidências oferecidas pelos resultados
Economia
das políticas de austeridade deveriam ser confrontadas com as promessas e expectativas antecipadas
pelos seus defensores.
Se o problema é o desajuste fiscal assim imaginado, então com a adoção das medidas de austeridade dever-se-ia obter a solução de equilíbrio das
contas públicas. Contudo, ao que se assiste? Em vez
de diminuir o peso fiscal sobre os diversos países,
as medidas de austeridade têm impulsionando a recessão e a queda da arrecadação tributária, além de,
em alguns momentos no passado, registrar-se picos
recordes das taxas de juros impostas pelos credores
para a aceitação de rolagem de dívida pública de países como Grécia, Espanha e Portugal, agravando-se
a crise. Assim, o gráfico abaixo mostra o aumento,
em vez da diminuição, do tamanho do endividamento público de países europeus, em contraste com as
promessas dos programas de austeridade fiscal.
Grécia: austeridade ou renascimento
Depois da vitória e posse do novo governo, liderado pelo partido de esquerda Syriza, foram retomadas as negociações entre a Grécia e a chamada
Troika (Banco Central Europeu, BCE; União Europeia, UE; e Fundo Monetário Internacional, FMI).
Durante a campanha eleitoral, os novos governantes anunciaram a exigência de cancelamento (ou
redução) da dívida externa grega. Denunciou-se a
inviabilidade de pagamento. Condenaram-se os resultados econômicos e sociais gerais e desastrosos
das políticas de austeridade aplicadas nos últimos
Níveis da dívida como porcentagem do PIB (2008-2013)
Fonte: Oxfam, 2013, p. 18.
27
Ed. 135 – Março/Abril 2015
cinco anos. Relembrava-se ainda o episódio do pero afrouxamento monetário do BCE, os custos das
dão da dívida da Alemanha em 1953. Na Grécia,
dívidas serão esmagados, facilitando os encaminhaas políticas de austeridade, aplicadas desde 2009,
mentos da dívida grega. O BCE fixou em -0,2% sua
aumentaram, em vez de diminuir, a crise da dívitaxa básica de juros, desde setembro de 2014. Como
da. Assim, hoje a dívida alcançou 165% do Produto
início de uma futura guerra cambial no mundo, os
Interno Bruto (PIB). O forte recuo do PIB, nos úlbancos centrais da Suíça, Suécia e Dinamarca, neste
timos anos expressou-se, inversamente, como auprimeiro trimestre de 2015, baixaram os juros para
mento do indicador dívida/PIB.
taxas negativas, a fim de evitar a valorização de suas
Agora, nas novas negociações, algumas parcemoedas, em face da massiva emissão monetária do
las de pagamento tiveram sua cobrança adiada por
BCE. As taxas negativas de juros estão se alastranquatro meses. Em contrapartida, a Troika insiste em
do pelo sistema bancário europeu diante da deflação
demonstrações concretas do novo governo em tordos preços e da estagnação econômica.
no de aumento de impostos, combate à evasão fisEntretanto, em quaisquer circunstâncias, haverá
cal, manutenção das privatizações e das reformas
sempre a oposição da Alemanha e dos mercados fitrabalhistas realizadas. O novo governo não poderá
nanceiros a qualquer flexibilização substancial nas
atender a exigências de superávit
negociações com os gregos. Arguprimário em proporções que agramentar-se-á sobre o efeito demonsvem ainda mais a recessão. Na detração, o mal exemplo, para outros
A Grécia evitou o
claração da União Europeia sobre
devedores. Citarão o risco moral. Esplano do governo
o acordo provisório de fevereiro de
te risco é uma noção da ortodoxia
2015, com a Grécia, consta uma
econômica que consiste no “incenanterior de triplicar
novidade: “As instituições [as partivo a endividar-se, com grandes
o superávit primário
tes signatárias] tomarão em conta
riscos, porque se sabe que não será
as circunstâncias econômicas em
obrigado a pagar”, ou melhor: é innos próximos anos.
2015 para o nível da meta do sucentivo ao descumprimento de conEm síntese, no
perávit primário”. No acordo de
tratos, sem sanções. O risco moral
primeiro round,
2012, a meta de superávit era de
também diz respeito à assunção de
4,5% do PIB. Agora, a Grécia evielevados riscos privados, confiando
o novo governo
tou o plano do governo anterior de
no socorro governamental: privaticonseguiu bloquear
triplicar o superávit primário nos
zação de ganhos garantida pela sopróximos anos. Em síntese, no pricialização de prejuízos.
novas medidas
meiro round, o novo governo conde austeridade
seguiu negociar e bloquear novas
e manteve o
Espanha: flagelo do
medidas de austeridade e manteve
desemprego
o financiamento da sua economia.
financiamento da sua
Em meados deste ano, ocorrerão
economia
Havia déficit público na Espaas negociações mais importantes e
nha? Não. Em 2007, o país exibia
decisivas.
um superávit de 1,9% do PIB. E a
Talvez o novo governo da Grédívida pública, era explosiva? Novamente, não. A
cia poderá, em perspectiva, dispor do começo da
relação dívida/PIB era de modestos 36,3%. Mas a
recuperação econômica da Europa, a partir do próviragem foi brutal em 2009: o país registrou 11,2%
ximo ano, 2016, sobretudo em função das resposdo PIB como déficit, enquanto a dívida também
tas aos novos estímulos monetários do BCE. Essa
cresceu, embora relativamente pouco, para 53,9%. E
expectativa poderá ter já, imediatamente, um efeito
as medidas de austeridade resolveram algum problepolítico favorável à Grécia. No mês de março deste
ma? Não. A partir de 2010, a austeridade só contriano, o BCE afinal assumiu seu papel de emprestador
buiu para piorar tudo, inclusive as contas públicas. A
de última instância, com o programa de injeção de
despesa com juros da dívida pública alcançou 3,43%
liquidez na economia (QE: quantitative easing), addo PIB em 2013, ou seja, 38 bilhões de euros, enquirindo títulos de dívidas governamentais e outros
quanto a folha de salários para todos os funcionários
bônus, que totalizarão 1,1 trilhão de euros ao longo
do governo central foi de 33,3 bilhões de euros (SEN;
do tempo programado. Depois de anos de relutância,
CARRETERO, 2013).
o BCE decidiu seguir os exemplos do Federal ReserO governo social-democrata do PSOE (Partido
ve System (Fed, banco central dos Estados Unidos),
Socialista Operário Espanhol) inicialmente adodo Banco da Inglaterra e do Banco do Japão. Com
28
Economia
Videoplastika
Manifestação em setembro de 2012 no Palácio de São Bento, em Lisboa, contra a troika e a política de austeridade
tou políticas anticíclicas no enfrentamento da crise. Todavia, a partir do segundo trimestre de 2010,
os governantes aceitaram as pressões da Troika e
passaram a adotar medidas de austeridade, como redução de salários de funcionários públicos
e congelamento de aposentadorias. Em novembro
de 2011, o parlamento estabeleceu, na Constituição, regras de limitação da dívida e do déficit
do setor público. Nesse mesmo mês, o PSOE foi
punido pelas urnas e a direita, o Partido Popular
(PP), assumiu o governo. A austeridade, então,
foi radicalizada. Além do agravamento do arrocho
fiscal, foram implementadas reformas neoliberais
no mercado de trabalho, na esfera financeira e na
administração pública.
O começo da recuperação em 2009 foi abortado com os cortes orçamentários, em 2010. O setor
mais afetado pelas medidas recessivas tem sido a
indústria, com queda da produção desde o final de
2011. Essa relação estreita entre a austeridade e o
desempenho recessivo da indústria é um alerta para o Brasil, onde a produção manufatureira há anos
tem estagnado e declinado. O investimento na Espanha interrompeu seu crescimento desde o terceiro
trimestre de 2010 e tem caído a partir de 2012.
O desemprego alastrou-se e tornou-se um flagelo na Espanha. Entre 2008 e 2012, foram eliminados 3,8 milhões de postos de trabalho. A taxa de
desemprego registrou o recorde histórico de 27,2%
no primeiro trimestre de 2013. Em 2012 e 2013,
foram demitidos 290 mil funcionários públicos.
As vítimas do desemprego de longa duração, por
mais de um ano, são 56% de todos os sem emprego. O governo tem diminuído os valores do seguro
desemprego e dificultado o acesso a esse benefício.
Desde 2010 até junho de 2013, o salário mínimo,
descontada a inflação, caiu 6,1% (SEN; CARRETERO, 2013).
Crise em Portugal: com progressistas e
conservadores
A experiência portuguesa está carregada de lições
do cruzamento entre economia e política. O sociólogo português Paulo Pedroso (2014, p. 2) observa que,
a partir do impacto da crise global sobre Portugal,
em 2008, sucederam-se dois governos do Partido Socialista e o atual, de centro-direita, com correspondentes três estratégias distintas: primeiro (2008),
apoio ao setor financeiro; depois (2009), tentativas
29
Ed. 135 – Março/Abril 2015
de alívio para problemas econômicos e sociais; e, por
vens subiu de 13,3% para 34,3% entre 2008 e 2013. A
fim (a partir de 2010), arrocho fiscal.
austeridade atingiu todos os setores, a exemplo das
Sob o ataque da direita às medidas anticíclicas,
reduções nas verbas para a saúde pública.
no contexto de aprofundamento da crise, a margem
A privatização vem de longe, desde a década de
da nova vitória eleitoral do Partido Socialista, em
1980. Depois de 2010, foram privatizadas empresas
outubro de 2009, foi muito restrita. O novo governo
de serviços públicos, energia, transporte e de indúsera minoritário e, diferentemente de seu discurso na
tria manufatureira. Ademais, a adesão às Parcerias
campanha eleitoral, propôs um orçamento, baseaPúblico-Privadas (PPPs) tem aumentado substando na austeridade defendida pela oposição, avalia
cialmente os gastos públicos, diferentemente das
Pedroso. Assim, foram adotadas políticas crescenexpectativas favoráveis às PPPs.
temente recessivas: 1) em março de 2010, o assim
chamado Programa de Estabilidade e Crescimento
Caminho diante da austeridade
(PEC 1); 2) o PEC 2 em maio de 2010; e 3) o PEC 3
em 2011.
A Islândia, palco de experimentos extremados de
Em março de 2011, um novo programa (PEC 4)
liberalização financeira, sofreu tremendo impacto da
foi rejeitado pelo parlamento, o gocrise global e em 2008 o seu sisteverno renunciou, houve eleições e
ma bancário quebrou. A economia
a direita assumiu o poder político,
entrou em recessão e o desempreaté hoje. O gabinete direitista, forgo atingiu 11,9%. Mas em plebisA Islândia, palco
mado pelo Partido Social Democito a população decidiu recusar
de experimentos
crático e pelo Partido do Centro
as receitas da austeridade. Foram
extremados de
Democrático Social, aprofundou as
impostos controles sobre os fluxos
medidas de austeridade do Memode capitais e regulação da esfera filiberalização
rando de Entendimento, assinado
nanceira. E daí, o que ocorreu? A
financeira, sofreu
entre Portugal e a Troika. Assim, o
Islândia cometeu suicídio? Desde
país foi empurrado para a recessão.
2011, a economia recuperou-se e
tremendo impacto
A fragilidade econômica geral
a taxa de desemprego oscila entre
da crise global e em
de Portugal já era patente antes
3% e 4%. Todavia, é claro, a Islân2008 o seu sistema
da crise. Irrompido o colapso india é tão pequena, sua economia é
tão limitada, que serve de escassa
ternacional, ele teve de aderir às
bancário quebrou.
comparação com economias maiodiretrizes da União Europeia. O
Mas em plebiscito a
res e infinitamente mais complecaráter pró-cíclico das políticas de
xas como a brasileira.
austeridade constrangeu a demanpopulação decidiu
Depois da pequena Islândia,
da interna. Historicamente, Porrecusar as receitas
o que dizer dos grandes, Estados
tugal tem convivido com déficits
Unidos e China? Em matéria de
comerciais e por isso o apelo à únida austeridade
déficit, os americanos têm pouco
ca saída para o crescimento econôa dizer sobre austeridade, já que
mico através das exportações não
sua média histórica de déficit púé compatível com as condições de
blico nos últimos 40 anos é superior a mais de 3%
competitividade externa das empresas do país.
do PIB. Em janeiro de 2009, o governo Obama criou
O governo do primeiro-ministro Passos Coelho
um plano de estímulos fiscais de US$ 775 bilhões
tem conseguido impor reformas no Código do Trabapara recuperar a economia. Os Estados Unidos, polho, em alinhamento com as exigências da Troika. As
tência imperialista, deram origem à crise de 2007negociações sindicais coletivas foram especialmente
2008, mantêm o seu sistema financeiro desregulado,
atacadas. Foram reduzidos e cancelados muitos diespeculativo e gigantesco que constrange o desenreitos trabalhistas. O maior benefício para o desemvolvimento econômico soberano de muitas nações,
pregado teve uma redução de 28% em seu valor, além
e construíram uma sociedade com desigualdades
de nova redução de 10% depois de seis meses sem
de renda e riqueza abissais. Entretanto, cabe obseremprego. O corte é de 44% para o valor do seguro
var os seus debates. No mês de fevereiro passado,
desemprego para menores de 30 anos e que estejam
ao apresentar suas ideias para o orçamento de 2016,
na condição de desemprego de longa duração (um
o presidente Barack Obama, nos seus dois últimos
ano). Em 2013, menos de 15% da força de trabalho
anos de mandato, com discurso voltado para a disera coberta por contratos coletivos. A taxa de desemputa eleitoral da sua sucessão, anunciou mudanças
prego foi de 17% em 2013. Mas o desemprego dos jo-
30
Economia
Iara Falcão - ABr
Protesto contra austeridade em Montreal
na política fiscal. Assim, em vez de cortes orçamentários, divulgou a proposta de imposto obrigatório
de 14% sobre os lucros das empresas americanas no
exterior e algum aumento de impostos para os ricos
(a conferir).
O governo chinês lançou em novembro de 2009
um pacote de estímulos fiscais de US$ 586 bilhões,
cerca de 17% do seu PIB de 2007. Agora em 2015, o
governo chinês tem tomado medidas para ampliar
o crédito, baixar os juros e implementar novos projetos de infraestrutura (estradas, ferrovias, água e
energia). E o déficit orçamentário? A meta do déficit
fiscal de 2014 foi de 2,1% do PIB. Cogita-se reversão
disso? Discute-se superávit? Nada disso. Especula-se
que essa meta de déficit será, na prática, ampliada
em 2015.
A França, segunda maior economia da União Europeia, não consegue desvencilhar-se da sua trajetória de reiterados déficits fiscais elevados. Em 2006
e 2007, antes da crise global, ela tinha incorrido
em um déficit dentro dos limites estabelecidos pela União Europeia, embora tenha descumprido isso
sistematicamente nos anos anteriores, desde 2001.
O governo Hollande, para tentar melhorar a arreca-
dação, adotou algumas medidas de tributação sobre
as grandes fortunas e heranças. A França não pode
alinhar-se com a Alemanha, para aprofundar a austeridade, em face do elevado desemprego dos franceses, no contexto político de grave isolamento do
governo e avanço da direita, com a Frente Nacional.
Em 2014, novamente a França não conseguiu
viabilizar seus compromissos de meta fiscal. A Comissão Europeia foi obrigada a suspender a multa
contra ela e a “conceder-lhe” uma espécie de moratória para que o país consiga, em 2017, um déficit
orçamentário abaixo do limite fixado para a União
Europeia, ou seja, 3% do PIB. A França prometeu um
corte orçamentário estrutural, no exercício de 2014,
desconsiderando flutuações conjunturais, em 0,3%,
mas só conseguiu 0,1%.
Falácias da austeridade
A direita, sempre, desde os ataques do reacionário
Thomas Malthus à assistência das Leis dos Pobres na
Inglaterra no século XIX até os dias de hoje, defende
a austeridade econômica como revigoramento moral. Mas o desemprego, a pobreza e as desigualdades
31
Ed. 135 – Março/Abril 2015
provocadas pelas políticas de austeridade abatem a
honra e a dignidade das suas vítimas, os rejeitados e
excluídos, os humilhados e ofendidos. Por isso, Robert Shiller, ganhador do prêmio Nobel de Economia
em 2013, critica as declarações do primeiro-ministro
da Inglaterra, David Cameron, de que a austeridade
cria indivíduos independentes, livres, afirmativos,
proativos. Para Shiller, em vez da austeridade, “a
coisa importante é adotar qualquer tipo de estímulo
fiscal que aumente a criação de empregos e ponha os
desempregados de volta ao trabalho”.
A austeridade é caracterizada por quatro falácias,
denuncia o economista francês Robert Boyer (2012,
p. 21). O diagnóstico de que a crise decorre da irresponsabilidade dos gastos públicos, em vez das bolhas especulativas da finança privada, é a primeira
falácia. A segunda consiste na crença de que as contrações fiscais conduzirão no longo prazo a taxas de
juros menores, atratividade de investimentos, melhoria na balança comercial, evitando-se a suposta
inócua substituição do gasto privado pela despesa
pública do keyenesianismo no curto prazo. A terceira é recomendar que os demais países, como Grécia
e Portugal, tenham o mesmo desempenho da Alemanha, desconsiderando as diferenças tecnológicas,
produtivas, financeiras e institucionais. A quarta falácia é a crença no transbordamento dos resultados
supostamente positivos da austeridade em um país
sobre as nações vizinhas.
Os defensores das políticas de austeridade afirmam que as medidas fiscais expansionistas simplesmente deslocam o gasto privado. Troca-se o
dispêndio privado pelo público, sem qualquer efeito
sobre a totalidade do gasto no país. Por isso, a renda
agregada não se altera. Este é o argumento que ficou
conhecido como crowding out, ou seja, deslocamento
do setor privado. Mas, na verdade, com recessão e
desemprego, o gasto público (na falta de dispêndios
privados, inclusive o investimento das empresas)
gera mais atividade e ocupação. Dessa forma, há
ampliação do gasto e, por conseguinte, da renda, no
âmbito agregado. Além disso, no caso de aumentos
da dívida pública, com a economia em desemprego,
esses empréstimos tomados pelo governo, utilizados
para gastos públicos, não deslocam os investimentos
privados realmente em declínio.
O argumento da chamada equivalência ricardiana é uma alusão à hipótese do economista clássico
David Ricardo de que os contribuintes podem reduzir seus gastos por causa da perspectiva de aumento
de impostos, se o governo aumentar a dívida pública. Famosos e ultraconservadores economistas dos
Estados Unidos, desde os anos 1970, têm exagerado
absurdamente a hipótese da equivalência ricardia-
32
na. Eles insistem na ineficácia dos gastos governamentais, resultantes do aumento da dívida pública.
O que o governo acrescentaria de gasto na economia
seria diminuído, em proporções equivalentes, pelo
setor privado. Para esses conservadores, as pessoas
decidiriam poupar, em vez de gastar, para pagar os
esperados aumentos de impostos, decorrentes das
necessidades advindas da elevação da dívida pública.
Cabe ainda observar que os gastos públicos em
saúde, educação, pesquisa e infraestrutura econômica (transportes, energia etc.) têm forte impacto
na redução de custos e elevação da produtividade,
favorecendo o aumento do produto e da renda. É
claro que os programas de privatização subtraíram
do Estado importantes instrumentos para seu planejamento e ação. Estamos falando aqui das empresas
estatais, que poderiam ser mobilizadas para investimentos, inovação tecnológica e exportações.
* Renildo Souza é bacharel e mestre em Ciências
Econômicas e doutor em Administração pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde
atualmente é professor, com dedicação exclusiva,
na Faculdade de Economia
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de austeridad contemporáneas: el legado keynesiano
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europa.eu/en/press/press-releases/2015/02/150220eurogroup-statement-greece/.
Economia
Crise sistêmica, política e
luta de classes no Brasil
Sergio Barroso*
Causada pelos países centrais do capitalismo, que continuam
tentando se recuperar às custas da periferia, a crise econômica
estrutural chega aos países que vinham resistindo com políticas
heterodoxas. Atingir indiretamente esses governos que se
opunham à hegemonia EUA/Europa é pouco para o imperialismo.
É preciso desestabilizá-los ao ponto da capitulação para provar
que não há alternativa. Recuos estratégicos e consciência alerta
da luta classista são os sinais apontados à esquerda
33
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Maquiavel prevê que “dificilmente
é derrotado aquele que sabe
reconhecer as suas próprias forças e
as do inimigo”; Sun Tzu acrescenta
que “é preciso sempre comparar
cuidadosamente o seu exército
com aquele a ser enfrentado para
determinar em que as forças são
superiores e em que são inferiores”
(BONATATE, Luigi. A Guerra, Estação
Liberdade, 2001, p. 72).
A
balada pela crise
capitalista global,
a economia mundial continua a
se degradar, em
direção contrária à ideia de “recuperação” difundida pelo establishment americano e repetida
por seus papagaios mundo afora.
São estimativas sombrias do
FMI e da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para 2015, feitas
em outubro e novembro de 2014,
que, como sabemos, sempre estão a serviço dos banqueiros e
ricaços. Vão no sentido contrário
ao do discurso otimista que até
então prevalecia com a ideia da
“retomada” após 2009.
Note-se que se denomina Herança, nuvens e incertezas o relatório de outubro passado do FMI, onde se lê
que a hipótese mais admitida agora é de uma economia internacional poder continuar enfrentando um
período prolongado de baixo crescimento.
Como analisam agudamente Maryse Farhi e Daniela Prates, as designações do estágio atual na crise
da economia mundial por economistas vinculados integralmente ao neoliberalismo são emblemáticas: estamos diante de um “novo normal” (Mohamed El-Erian, ex-chefe da Pacific Investment Management, PIMCO,
maior gestora de recursos do mundo), de uma “estagnação secular” (Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA), ou vivenciamos
uma “nova mediocridade” (Cristine Lagarde, atual diretora-gerente
Na análise percuciente
do FMI). Tais conceitos “continua(e pioneira) de Yao
rão, por muito tempo, sendo denominações utilizadas para descrever
Yang, prestigiado reitor
a evolução da economia mundial”,
da Escola Nacional de
à medida que não se vislumbre alteração de rumos [1].
Desenvolvimento e
Mas são evidentes as implicadiretor do Centro para
ções da resposta norte-americana
a Reforma Econômica
à grande crise e a seu declínio da
condição de potência hegemônica.
da China (Universidade
Repassá-la à periferia do capitalisde Pequim), (...), o
mo para que nações e trabalhadores paguem a conta é seu objetivo.
mundo inteiro se
Em matéria geoeconômica, os
encontra assolado por
EUA continuam a se beneficiar da
forças deflacionárias;
sua moeda, cuja valorização, ou
não, depende de sua política moe se a China entrar no
netária e cambial, onde sua própria
turbilhão, não haveria
taxa de juros também pode
determinar seu comando socomo “desta vez” seus
bre a política cambial nos paíparceiros comerciais a
ses que não possuem moeda
conversível – caso do Brasil e
socorrerem
da imensa maioria dos países
do globo. Ou seja: a chamada
hierarquia (das moedas) do
sistema monetário internacional restringe (ao máximo,
mas não impede) a capacidade de outros países praticarem uma política econômica
independente!
China luta contra
deflação [2]
Ademais, um novo fenômeno sublinha a continui-
34
Federal Reserve
dade da gravidade da crise.
Trata-se da marcha de uma
deflação nas principais economias do planeta.
Na análise percuciente
(e pioneira) de Yao Yang,
prestigiado reitor da Escola
Nacional de Desenvolvimento e diretor do Centro para
a Reforma Econômica da
China (Universidade de Pequim), e segundo assinalara
(“A China consegue evitar a
deflação?”, Valor Econômico,
27-01-2015), o mundo inteiro se encontra assolado por
forças deflacionárias; e se a
China entrar no turbilhão,
não haveria como “desta
Janet Yellen (à dir.) admitiu que a “recessão de 2007-2009” deixou “cicatrizes duradouras
vez” seus parceiros comernas famílias estadunidenses mais pobres que ainda têm que se recuperar depois de mais
ciais a socorrerem. O problede cinco anos” de anunciada recuperação oficial da economia
ma crucial para o governo da
China, portanto, é se ela poderá safar-se da deflação “por conta própria”, diz ele.
Para Rodríguez, a chamada “recuperação norteYang argumenta ainda que, apesar da atual de-americana” está mais no aumento dos principais
saceleração da economia chinesa ter sido induzida
índices da bolsa de valores de Nova Iorque e menos
por políticas econômicas nacional, nos dois últimos
na melhoria substantiva das condições de vida da
anos o governo chinês “promoveu um aperto da popopulação, intensa precarização do trabalho, delítica monetária e da política fiscal na esperança de
semprego, queda dos salários. “Inclusive, na esfera
neutralizar os efeitos adversos do grande pacote de
financeira” – afirma ele –, “surgiram novas barreiestímulos econômicos lançado como resposta à crise
ras para a acumulação de capital. Se é certo que o
financeira mundial de 2008”.
índice Standard & Poors (que cotiza as ações das 500
Ora, no último dia 28 de fevereiro o BC chinês
maiores empresas dos EUA) continua registrando
anunciou novo corte, de 0,25% na taxa de juros,
aumentos, a acumulação de lucros por ação e diviexatamente para evitar desaceleração maior de sua
dendos é cada vez menor”.
economia (e a deflação), ainda que ano passado a
De outro ângulo, o marxista britânico Michael
poderosa economia chinesa tenha registrado cresciRoberts assinala que mesmo a presidenta do Fed,
mento de 7,4% e projetado cerca de 7% do PIB (ProJanet Yellen, foi obrigada a admitir que a “recessão
duto Interno Bruto) para este ano.
de 2007-2009” deixou “cicatrizes duradouras nas
famílias estadunidenses mais pobres que ainda têm
Deflação nos EUA?
que se recuperar depois de mais de cinco anos”, de
anunciada recuperação oficial da economia! [4].
Isso mesmo! Na mesma direção vão os EUA: a
inflação norte-americana soma mais de trinta meses
Novo governo Dilma: “concessão” não
abaixo de 2%, o objetivo do Federal Reserve (Fed,
é “capitulação”
Banco Central dos EUA). Até agora, não existem indícios de um aumento do nível dos preços. Ao con“Aquele que souber quando pode lutar e quando
trário, a deflação (queda de preços) se transformou
não pode lutar será vitorioso” (TZU, Sun & SUN, Pin.
em uma ameaça real na ainda economia de maior
A arte da guerra. Edição Completa, Martins Fontes,
tamanho: os preços do consumo ficaram em apenas
2010, p.40).
0,4% em dezembro de 2014, sua maior queda desde
Junto às alterações recentes da política monetáo final de 2008. Em termos anuais, a inflação dimiria do Banco Central Europeu – em amplo sentido
nuiu 0,8% ao se colocar em 1,3% em novembro pasde desvalorização do euro e consequente valorização
sado [3].
e crescimento da especulação nos países periféricos
35
Ed. 135 – Março/Abril 2015
– a deterioração das condições macroeconômicas no
mento econômico médio pífio; da forte polarização
Brasil se intensificou. A depauperada situação ecoeleitoral presidencial; do constatar da atual (e nefasnômica dos EUA, a estagnação do Japão e a eurota) divisão e desorientação claras no comando do PT
depressão (Michael Roberts) descartam um papel
[7].(Importa ainda recordar que a presidenta Dilma
importante às exportações brasileiras, em cuja pauta
enfrentou eleições presidenciais com dois ex-presipersiste o grande peso das commodities.
dentes de seu partido, o PT, militantes em São Paulo,
Com um déficit nas contas externas (conta corpresos, injustamente!)
rente do balanço de pagamentos), crescente de cerAo lado do processo crescente de desindustrialica de mais de US$ 90 bilhões (2014), e apesar das
zação do país, agora mesmo vivenciamos uma dereservas internacionais volumosas (cerca de US$ 380
terioração das transações correntes no balanço de
bilhões), uma redução da taxa de juros para inverpagamentos (contas externas), aliado a um cenário
são da política monetária poderia levar à redução de
internacional que deve ainda considerar (para além
entrada de capitais, e à deterioração dessas mesmas
da crise e novas “bolhas financeiras” para todo o lareservas, ainda que parte delas correspondente à indo) [8] o crescimento contínuo do desemprego em
versão especulativa. De outra parte e em relação ao
escala mundial (OIT); a estimativa de crescimento
quadro fiscal, a emissão de novo
econômico negativo na Rússia [9]
endividamento público, tentado em
este ano; a marcha de desestabiliRejeitamos
2013, poderia de fato implicar mazação na Venezuela etc.
enfaticamente a
nipulação para rebaixamento por
Pertinente relembrar nossa ex“agências de risco” da oligarquia
periência
recente: bem ao invés do
posição que acha
financeira para novos empréstimos
“espetáculo de crescimento” proque “Dilma capitulou
externos, com novas implicações na
metido pelo ex-presidente Lula no
recomposição do buraco na conta
início de seu governo, a recessão foi
ao mercado
corrente [5]. Mais que evidente que
clara no primeiro trimestre de 2003
financeiro”. A nosso
a política anunciada pelo novo e or(-1,1%) e no segundo (-0,23%),
todoxo ministro da Fazenda agravaapesar de o resultado anual do PIB
juízo, tais pontos
rá a situação social do país.
ter sido 1,1%. Conforme ainda o
de vista carregam
Nessa aparente prescrição de
IBGE-Seade, o desemprego naqueforte dosagem de
retrocessos, rejeitamos a ideia dile ano atingiu por volta de 20% da
fundida em setores de esquerda
PEA (População Economicamente
economicismo,
de que existe um Brasil “pós-neoAtiva) na Grande São Paulo. Ora,
incompreensão e
liberal”: as decisões tomadas de
a “humanidade” sabe que a média
sentido regressivo demonstram
do crescimento dos governos de Luprecipitação
cabalmente a imensa bobagem exla ultrapassou os 4%! Mais ainda:
pressa por essa opinião. Além de
as conquistas sociais das políticas
tudo dogmática – vez que risca do dicionário a papúblicas dos governos de Lula constituíram-se num
lavra transição e a mobilidade de certas conquistas
avanço reconhecido internacionalmente, numa época
num país historicamente subdesenvolvido –, essa
de regressão civilizatória indiscutível.
formulação quer esconder, por exemplo, a situação
Por suposto, sempre estivemos lutando contra
animalesca dos presídios superlotados do Brasil,
os retrocessos e ataques aos direitos dos trabalhaagora mesmo especialistas em gerar decapitações,
dores, o que também fizemos desde (uma espécie
seguidamente! Ora, a nossa situação social – cujos
de consentimento impositivo) a Carta aos Brasileiêxitos dos 12 anos são inegáveis – continua explosiros, até a sua crítica aberta. A análise dita “Dilma
va, onde as desigualdades sociais podem ser vistas,
capitulou” não passa de completa ingenuidade em
em outro exemplo, na diferença da renda per capita
matéria de luta de classes, inteiramente esquemátido Brasil versus a da Coreia do Sul [6].
ca. Luta de classes implica concessões em variados
Rejeitamos enfaticamente a posição que acha
momentos em que elas se estabelecem; os recuos
que “Dilma capitulou ao mercado financeiro”; assim
temporários obrigam a reconhecer que nelas não
como a que de pronto já anuncia uma “viragem neohá ascensão permanente – completa ilusão; que
liberal” do governo Dilma. A nosso juízo, tais pontos
são muitas vezes imperiosas e necessárias variadas
de vista carregam forte dosagem de economicismo,
alianças (“instáveis, inconsequentes e vacilantes”,
incompreensão e precipitação frente aos resultados
LENIN, 1920), ou até mesmo termos que sofrer de
político-ideológicos do quadro real de forças, de um
derrotas – para nós reveses também mais ou menos
Congresso Nacional mais conservador; de um crescitemporários.
36
Economia
Certas interpretações se aninham na ideia do
“fim da história”, ou a decretam quando mal começaram as batalhas. Assim, mesmo hoje tendo que
enfrentar um cenário externo real bem diferente do
de Lula, então de evolução favorável ao crescimento
econômico, parece óbvio repetir que a história está
em aberto, como sempre esteve, por isso também a
conduta tática correta (ou a mais ajustada possível)
é no sentido de principalizar a defesa do governo Dilma e exercer daí (e a partir daí) o comando da crítica
a retrocessos, e da luta de massas e dos trabalhadores – esse o fator decisivo.
Política no comando, nenhuma trégua
ao golpismo!
Portanto, a questão nodal no Brasil hoje é: política no comando para preservar as principais conquistas do ciclo político iniciado por Lula e Dilma, bem
como pôr no horizonte a continuidade dos avanços
reclamados na última campanha eleitoral. Repetindo, lutando contra os retrocessos. Fora disso uma
derrota severa pode advir, ainda que pareçam inevitáveis certas concessões neste quadro dado. E como
se sabe “concessão” e “capitulação” são categorias
muito diferentes – particularmente na terminologia
da guerra. Como dissertou Mao Tse-tung:
“Epistemologicamente falando, a fonte de todas as opiniões errôneas sobre a guerra radica nas tendências idealistas e mecanicistas”. (...) As pessoas... se satisfazem com um
discurso infundado e puramente subjetivo, baseando-se em
um só aspecto ou manifestação temporária” [10].
Claríssima para nós a manipulação farsesca e
hipócrita dos esquemas de corrupção na Petrobras,
estatal querida pelo povo e decisiva grande empresa
para a nação. A amplificação midiática dos interesses
burgueses no doentio antipetismo é absolutamente
indisfarçável – o que implica atacar a esquerda como
um todo. A propósito, correntes da direita neoliberal
como a do senador José Serra (PSDB) e o jornal O
Globo (em editorial) defenderam abertamente a privatização da Petrobras, assim revelando a estratégia
que utiliza a campanha moralista.
Assim, a campanha claramente golpista da direita neoliberal brasileira e seus aliados forâneos contra
o mandato da presidenta Dilma Rousseff é a mais
pura manifestação da compreensão deles sobre o que
é luta de classes. Visam com clareza a objetivos internacionais, serviçais do imperialismo (bloqueio da
integração latino-americana; desarticulação BRICS
etc.); e notadamente nacional: interrupção do ciclo
de 12 anos que conquistamos, inobstante a pressão
furiosa do capital financeiro internacional e nacional
e do jogo bruto do imperialismo.
E contra tal campanha estão se insurgindo os trabalhadores, os patriotas e democratas – os verdadeiros construtores do Brasil – para que organizemos e
passemos à contraofensiva! A unidade da esquerda e
estes setores tornaram-se questão decisiva para levar
adiante a luta pela emancipação nacional e social.
*Sérgio Barroso é médico e doutorando em
Economia Social e do Trabalho (Unicamp), além
de membro do Comitê Central do PCdoB. É autor
de A grande crise capitalista Global 2007-2013:
gênese,conexões e tendências e Desenvolvimento:
Ideias para um Projeto Nacional, ambos pela
Editora Anita Garibaldi
Notas
[1] Ver: “Perspectivas das economias avançadas”, de Fhari e Prates. In: Plataforma Social, 22 de fevereiro de 2015.
[2] A definição tradicional da depressão econômica mundial envolve fundamentalmente: a) uma queda severa do crescimento do
produto; b) elevado desemprego; c) movimentos deflacionários
(queda acentuada nos preços). Cada depressão “submerge” numa
outra e singular situação – não se repete, mas as determinações
e características centrais são recorrentes. Ou seja: as crises sistêmicas do capitalismo e os fenômenos sociais (e também as evoluções políticas) que as acompanham.
[3] Ver o importante artigo “O fantasma da deflação norte-americana” (Carta Maior, 10 de fevereiro de 2015), do economista mexicano Ariel Noyola Rodríguez.
[4] “Dónde está la recuperación económica?”, de M. Roberts. In:
SinPermiso, 28 de setembro de 2014.
[5] Cf. “Memorando sobre a conjuntura brasileira”, de J. C. Assis,
indispensável reflexão sobre a situação nacional. Em: http://jornalggn.com.br/blog/alex-prado/memorando-sobre-a-conjuntura-brasileira
[6] Em 1960 a República Popular da Coreia era metade da nossa;
o que praticamente se igualou em 1970. Em 2012 Coreia do Sul
e o Brasil registravam: US$ 32.400 versus US$ 11.875 em 2012.
[7] Em: “Dilma e Nixon”, o sociólogo A. Almeida mostra pesquisa
onde de 79 deputados e senadores do PT, 40 são contra a proposta
de ajuste fiscal enviada por Dilma. Constatando que 2015 “será
um ano muito difícil”, para Almeida a presidente é insubstituível
na comunicação com a opinião pública e o parlamento. Ver: http://
www.valor.com.br/cultura/3939762/dilma-e-nixon
[8] Essa é a opinião do norte-americano Robert Shiller, prêmio Nobel de economia; do economista sul-coreano, de Cambridge (Inglaterra) Ha-Joon Chang; e do ex-economista-chefe do BIS (Banco
de Compensações Internacionais), o canadense William White.
De acordo com White, “Os mercados de ações estão em níveis
recordes de alta. Bônus livres de risco estão em níveis recordes
de baixa. (...) Há uma grande possibilidade de problemas à frente
por causa desses acontecimentos” (Valor Econômico, 21 de julho
de 2014).
[9] A economia russa cresceu 0,4% em 2014, e deve negativar entre 3 e 4% do PIB em 2015 (FMI); a inflação de alimentos atinge
22,8% ao mês atualmente.
[10] Ver: “Escritos militares selecionados”, de Mao. In: GREENE, R.
& ELFFERS, J. Las 33 estrategias de la guerra. Oceano, 2007, p.186.
37
Ed. 135 – Março/Abril 2015
O golpe dos golpistas e a
Nos dias 13 e 15 de março, o Brasil viu desfilar por suas
ruas dois projetos antagônicos, cujas raízes se estendem ao
logo da história. Enquanto no dia 13 o campo democrático
e progressista empunhou as bandeiras da legalidade
democrática, da garantia dos direitos trabalhistas e sociais
e da defesa da Petrobras, a direita, no dia 15, deu uma
demonstração de força propagando o golpismo em grandes
manifestações. Alguns pronunciamentos, de ambos os lados,
expressam a luta política histórica que se trava no país
U
Osvaldo Bertolino*
m marciano que tivesse chegado à
Terra pelo Brasil no dia 15 de março
para estudar a humanidade certamente anotaria em sua agenda que
política é uma das coisas ruins que
se inventaram por aqui. Afinal, ele viu desfilar pelas
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ruas do país grupos com os baixos instintos desencadeados, abarrotados de atitudes sórdidas, a boca
crispada pelo ódio soltando os maiores palavrões da
língua portuguesa e os olhos turvados de rancor. A
aparência do triste espetáculo não definiu bem o que
estava em jogo, mas, examinado com mais precisão,
Brasil
pôde-se constatar a sua essência — a natureza exata
da luta de classes, o campo preciso em que ela se
exerce e os seus componentes históricos.
Inicialmente, é bom tomar nota de algumas trovoadas dos dois principais próceres da direita na
atualidade logo em seguida às manifestações: Aécio Neves e Fernando Henrique Cardoso (FHC). O
derrotado candidato presidencial, falando em nome
das lideranças dos partidos direitistas, declarou que
é essencial a união das oposições, como no dia 15,
para avaliar “a gravíssima crise na qual está mergulhado o país”. No mesmo tom, o ex-presidente tucano disse que é preciso “apertar o cerco” à presidenta
da República, Dilma Rousseff, e responsabilizar também o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo
que “aconteceu na Petrobras”.
Outro registro digno de nota são os dados do perfil dos manifestantes captados pela pesquisa do instituto Datafolha, principalmente o elevado número
de 82% de eleitores de Aécio Neves (76% do total dos
manifestantes tinham curso superior e 68% renda
igual ou superior a 5 salários mínimos). Com essas
anotações, fica mais fácil identificar a cor ideológica
das bandeiras agitadas nas manifestações (defesa
explícita do abuso de autoridade no curso da “Operação Lava Jato” mal traduzida como “luta contra
Paulo Pinto/ Fotos Públicas
resposta democrática
a corrupção”, crítica aos programas sociais e rompimento da legalidade democrática), pista essencial
para se entender o que o economista Luiz Carlos
Bresser-Pereira definiu, em entrevista ao jornal Folha
de S. Paulo, como ódio de classes de cima para baixo.
Essa fotografia fica ainda mais nítida quando
posta ao lado das imagens das manifestações de dois
dias antes, organizadas pelas centrais sindicais e por
outros movimentos sociais. Embora com críticas duras às ações da área econômica do governo, a defesa
da Petrobras, da Reforma Política e da democracia
foram pontos que contrastaram fortemente com as
bandeiras do dia 15. Adilson Araújo, presidente da
Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), diz que as manifestações do dia 13 defenderam essencialmente a governabilidade e o direito
constitucional. “A classe trabalhadora compreende
que é necessário ganhar as ruas. Nós temos, sim,
o compromisso de disputar, neste Congresso mais
conservador, uma agenda positiva que permita fazer
com que o Brasil dê continuidade ao ciclo mudancista iniciado por Lula”, afirmou.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Wagner Freitas, reforçou que a defesa da
legalidade democrática foi o ponto central dos pronunciamentos dos trabalhadores. “A eleição já aca-
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bou. Temos um processo de desenvolvimento imporconquiste corações e mentes da maioria dos brasitante para o Brasil”, disse ele. João Pedro Stédile,
leiros. A grande dificuldade é transformar essas teum dos coordenadores do Movimento dos Sem-Terra
ses em propostas políticas, uma vez que os partidos
(MST), foi além ao dizer que a tese do impeachment
que fazem parte do campo conservador são notórias
é algo ilegítimo, ilegal. “Eles são burros, a direita é
expressões da corrupção. Isso não significa, no enburra, porque ao levantar a bandeira do impeachment
tanto, que essa tática da direita esteja ultrapassada;
ela dá para a esquerda o dever de defender o legalisalguns setores da população têm marcas profundas
mo. Se a bandeira do impeachment aumentar, temos
dos anos e anos de propaganda anticomunista.
que ir para todas as praças e assembleias do Brasil
No Brasil, a história republicana está marcada
defender a legalidade, a Constituição brasileira”,
pelo desrespeito da direita à organização do regime
diagnosticou.
democrático. Diante das adversidades, o recurso ao
A tentativa da direita de vincular Dilma à
golpismo tem sido recorrente, passando por cima do
corrupção na Petrobras para gerar pretextos ao recruprincípio de que o direito se fundamenta em relações
descimento da ofensiva contra o governo foi criticada
sociais e surge como garantia para a convivência potambém pela presidenta da União Nacional dos Eslítica civilizada. “O PCdoB (Partido Comunista do
tudantes (UNE), Vic Barros. “Não
Brasil) sempre mostrou que estaconcordamos que essa investigação
mos diante de uma grande ameaA luta “contra a
seja instrumentalizada por setores
ça golpista. Por isso, devemos deconservadores que querem privatifender a democracia e o mandato
corrupção” e a
zar a Petrobras e usá-la para desesde Dilma Rousseff, assim como os
exploração do
tabilizar a democracia brasileira”,
direitos trabalhistas, e combater a
conservadorismo de
disse ela, acrescentando que os dicorrupção com uma Reforma Políreitos sociais devem ser preservatica democrática, levando em consetores da população
dos. “Nós fomos às ruas e conquista o sistema de financiamento de
para incentivar o
tamos essa vitória. Agora seguimos
campanhas”, diz Renato Rabelo,
em frente por mais direitos para
presidente do Partido.
ódio “antipetista”
garantir os 10% do PIB (Produto
Nas manifestações do dia 15,
— derivação do
Interno Bruto) para a educação e
essa característica esteve presente,
para aprovar uma reforma uniao passo que no dia 13 os partidos
anticomunismo—
versitária democrática em nosso
e as entidades dos movimentos
têm sido
país”, afirmou.
sociais apareceram com fisionoinsuficientes para
As fotografias dos dias 13 e 15,
mias bem marcadas. Os setores
portanto, revelam um cenário de
progressistas entendem que esses
viabilizar um projeto
fundo com dois polos históricos
meios democráticos são essenque conquiste
brasileiros, com traços nítidos de
ciais para que as massas populares
luta de classes. Afora a vulgarizaaprendam as técnicas do poder.
corações e mentes
ção desse conceito, uma tentativa
Com eles, a ocupação de espaços
da maioria dos
de criar a ideia de que entre ricos
na esfera política do país deixa de
brasileiros
e pobres existe apenas a disputa
ser um fenômeno exclusivamente
para conservar ou adquirir o que
palaciano, de cúpula. No período
se considera um direito, ele é uma
iniciado com Lula presidente, houlupa de precisão sobre a disputa política, mostrando
ve uma ascensão dessa prática — um dos principais
sua feição adquirida no processo que reelegeu Dilma
motivadores do ódio “antipetista”.
Rousseff. O que se vê, no primeiro plano, é a ofensiva
Essa dicotomia ficou mais visível no Brasil após a
da direita como uma ameaça em desenvolvimento,
Revolução de 1930, quando a direita adotou abertamas com limitações para criar um movimento sufimente o bonapartismo como método de luta política.
cientemente amplo para galvanizar a nação e subA explicação plausível para isso são os avanços da inmetê-la às suas premissas.
dustrialização do país, que passou a mobilizar mais
Contudo, “a luta contra a corrupção” e a explorecursos humanos e técnicos. Consequentemenração do conservadorismo de setores da população
te, a dinâmica capital-força de trabalho formou na
para incentivar o ódio “antipetista” — derivação
sociedade uma consciência política mais elevada; e
do anticomunismo historicamente disseminado no
também uma tendência ditatorial conservadora que
país —, na tentativa de ampliar seu escopo político,
aparece e reaparece continuadamente. Um dos motêm sido insuficientes para viabilizar um projeto que
tes da direita, nesse jogo, é a propagação da tese de
40
Brasil
José Cruz-ABr
Entrevista de Dilma no dia dezesseis de
março de 2015 .Após as manifestações,
os esforços do governo para mostrar uma
agenda positiva são ignorados pela mídia
que os partidos políticos são destituídos de conteúdo
ideológico, embora frequentemente se estabeleçam
exceções — como no caso do Partido Comunista do
Brasil.
Essa ideia, claro, exagera a realidade, como esclareceu Friedrich Engels no prefácio ao livro A luta de
Classes na França, de Karl Marx: “A ironia da história
põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘revoltosos’, prosperamos muito mais com
os meios legais do que com os meios ilegais e a subversão. Os partidos da ordem, como eles mesmos se
chamam, vão a pique com a legalidade criada por
eles mesmos. Exclamam desesperados, como Odilon
Barrot (líder político do governo de Luiz Bonaparte):
‘La legalité nous tue’ (A legalidade nos mata), enquanto nós ganhamos, com essa legalidade, músculos vigorosos e faces coradas. E parece que fomos tocados
pelo sopro da eterna juventude e, se não somos tão
loucos para nos deixarmos arrastar ao combate de
rua simplesmente para satisfazê-los, não terão afinal
outro caminho senão romper eles mesmos com a legalidade que lhe és tão fatal.”
A intenção da direita, com essa tese, é passar a
impressão de que os partidos brasileiros são sacos de
gato nas mãos de negociadores profissionais, que o
presidente só consegue governar comprando votos
— em suma, que o sistema político brasileiro simplesmente não funciona. Há deformações horrendas, é verdade, que poderiam ser corrigidas em uma
Reforma Polícia democrática, mas, no mundo das
verdades, as coisas são bem diferentes.
Os cientistas políticos Fernando Limongi e Argelina Figueiredo, autores do livro Executivo e Legislativo
na Nova Ordem Constitucional, realizaram um extenso
estudo das relações entre o presidente e o Congresso
desde a promulgação da Constituição de 1988; concluíram que os partidos políticos brasileiros são disciplinados. Na média, 90% dos deputados votam rigorosamente de acordo com a orientação partidária.
Embora presidencialista, o sistema brasileiro guarda
muita semelhança com os parlamentarismos europeus: nos dois casos o Executivo controla a agenda
política e comanda o processo de criação de leis no
Congresso.
A verdade é que os partidos são ligados a grupos
de interesses e, não por acaso, recebem tratamentos
diferenciados dos meios de comunicação. Nas manifestações essa constatação ficou nítida; a cobertura
da mídia no dia 13 foi morna, enquanto no 15 ela
escancarou o apoio às bandeiras da direita. “Grande aparato midiático e econômico, em campanha
há mais de 2 meses, inflou a mobilização contra o
governo de Dilma Rousseff. Grupos das camadas da
população que desde a campanha de 2014 se colocaram raivosamente contra o ciclo político iniciado por
Luiz Inácio Lula da Silva em 2003 e continuado por
Dilma vieram às ruas destilando ódio, preconceitos
e intolerância fascistizantes”, diagnosticou Renato
Rabelo.
Em meio ao mar de lágrimas de crocodilo que
se formou com as manifestações do dia 15 contra
o fictício “mar de lama” no país, a presidenta Dil-
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Fotos: Agência Brasil
Após o fim de semana de manifestações, setores progressistas continuaram com agenda de mobilização pela reforma política
ma anunciou um pacote anticorrupção enviado ao
do setor produtivo, buscando, inclusive, ampliá-la”,
Congresso Nacional e lançado oficialmente dia 18.
diz a nota.
Uma das mais importantes medidas é a que prevê
São ações essenciais, porque os problemas poa tipificação do crime de “caixa 2” nas campanhas
líticos do país não são, aparentemente, algo que se
eleitorais e a elaboração de um Projeto de Lei que
possa resolver com o tempo. Na teoria, a atuação
institui a obrigatoriedade de ficha limpa para todos
constante e paciente da democracia — com eleios servidores públicos dos poderes Executivo, Legisções, separação dos poderes e exercício da cidadania
lativo e Judiciário.
— vai, pouco a pouco, limpando a vida política, deA iniciativa não foi recebida com gentis muito
senvolvendo um verdadeiro espírito público e sepaobrigado pela direita por ser um remédio amargo
rando o joio do trigo. Contudo, já se passaram trinta
para ela. O pacote contém ainda uma Proposta de
anos desde o último presidente militar e trinta e seis
Emenda à Constituição (PEC) para possibilitar o conanos desde que o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi
fisco de bens oriundos de atividade
revogado — tempo mais que de socriminosa, improbidade e enriquebra para se aprender como funcioA direita, com seu
cimento ilícito. Se o seu trâmite for
na uma democracia —, e o que se
bem trabalhado politicamente, o
conseguiu de concreto é a realidaaparato midiático,
resultado será de grande valia para
de contraditória que existe hoje: de
tenta emparedar
a democracia brasileira. E obrigaria
um lado, um governo apoiado peDilma inflando o
a oposição a dar tiros nos pés toda
las forças progressistas e, de outro,
vez que se posicionasse contra ele.
um condomínio de direita que luta
“caso Petrobras” e
Esse é um ponto que o goverpara golpear o progresso social.
ignorando outros
no deve olhar com atenção, na
Na mídia brasileira, a teoria do
avaliação de Renato Rabelo, que,
tempo
como fator para aperfeiçoar
ralos de escândalos
em nota, propôs a construção de
a democracia funciona ao contrário:
muito maiores —
“uma frente ampla com todas as
com o passar dos anos as coisas pioforças possíveis do campo demoram. Se há algo com o qual se pode
como o sistema
crático e patriótico, interessadas
contar com cem por cento de certede financiamentos
na defesa da democracia, da ecoza no Brasil de hoje é a capacidade
privados de
nomia nacional e da retomada do
midiática de pôr em circulação, cacrescimento”. Seria uma iniciativa
da vez mais e com intervalos cada
campanhas eleitorais
que se constituiria, também, pela
vez menores, alguma “denúncia”
ação constante da presidenta Dilestrondosa. É uma ofensiva sem
ma, apoiada em um núcleo político
precedentes. E o fazem de modo
plural “para pactuar uma recomposição da base pounilateral, monopolista. Os grupos que dominam com
lítica que assegure ao governo maioria no Congresso
poderes ditatoriais a liberdade de expressão no Brasil
Nacional”. “De igual modo, cabe à presidenta liderar
pretendem controlar, ao mesmo tempo, o trabalho
a reaglutinação da base social que apoiou sua reedos jornalistas, os meios audiovisuais de comunicaleição, nomeadamente trabalhadores e empresários
ção, a produção cultural, as informações prestadas
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TEATRO DO ABSURDO: faixa em inglês pedindo “intervenção militar” revela o caráter da direita
por funcionários federais, os sigilos bancário e fiscal
dos cidadãos e as ações do Ministério Público.
A direita, com seu aparato midiático, tenta emparedar Dilma inflando o “caso Petrobras” e ignorando
outros ralos de escândalos muito maiores — como o
sistema de financiamentos privados de campanhas
eleitorais. A resposta a essa ofensiva pode vir da frente ampla proposta por Renato Rabelo, levantando
“bandeiras que respondam aos anseios mais vivos e
sentidos por todos aqueles que têm compromisso com
o Brasil e lutam por mais conquistas: defesa da democracia, da legalidade, do mandato legítimo e constitucional da presidenta Dilma; defesa da Petrobras, da
economia e da engenharia nacional; combate à corrupção, fim do financiamento empresarial das campanhas; e pela retomada do crescimento econômico
do país e garantia dos direitos sociais e trabalhistas”.
Se houver essa compreensão costurando as
hostes governistas, pode estar começando talvez
o capítulo mais decisivo de toda essa triste história de recrudescimento dos ataques golpistas. Com
a reeleição da presidenta, o Brasil sinalizou que,
apesar das duras realidades econômicas e sociais,
continuará andando na direção mais acertada para
transformar-se em um país melhor, derrotando um
projeto de governo que prescreve exatamente aquilo que se recomendaria para mandar o país de volta
ao seu lamentável passado.
Em um cenário assim, o componente político
conta muito, mas é preciso observar também o peso
da economia. A mídia tem martelado sem parar que
o país caminha inexoravelmente para o precipício,
jogando nos largos ombros do governo a responsabilidade exclusiva pelos efeitos da crise mundial. Com
essa informação, não se pode fazer vistas grossas
para o poderio de envenenamento de amplos setores da sociedade dos pelotões raivosos da mídia. É
Já se passaram
trinta anos desde o
último presidente
militar e trinta e seis
anos desde que o
Ato Institucional
nº 5 (AI-5) foi
revogado — tempo
mais que de sobra
para se aprender
como funciona uma
democracia
bom lembrar que estamos assistindo a uma espécie
de refilmagem do cenário de ampliação dos setores
médios da sociedade iniciado no período do governo
do presidente Juscelino Kubitscheck que serviram
de massa de manobra para os golpistas de 1964.
Outro aspecto parecido foram as quedas bruscas do
PIB no governo João Goulart.
A paralisia econômica que está exaurindo as
energias do país, portanto, é um sério desafio a ser
enfrentado. Problemas que o governo não consegue
solucionar agora tendem a continuar sem solução se
não for gerada energia política para tanto. Hoje, com
a captura de largos setores da opinião pública pela
sequência de lances espetaculares da “Operação Lava Jato”, a bola está com o Congresso. O Executivo
perdeu a posse de bola por não ter formulado uma
agenda para os primeiros dias do segundo mandato de Dilma. E cometeu o erro de deixar escapar o
melhor momento para ações que impulsionassem as
mudanças em andamento no país: imediatamente
após a abertura das urnas.
Mas ainda há um terreno fértil para iniciativas
nesse sentido. Munidos de um visto temporário
para o mundo da ética, os personagens que falam
pela direita só podem levar a opinião pública a uma
conclusão: se eles estão contra, é porque o governo
é bom. A tentativa de negar à presidenta Dilma o
direito de governar tem sido, desde o início, uma
campanha sem ideias e sem argumentos. Além e
acima disso, deixa duas constatações que também
vale a pena anotar: ela é de fato uma campanha
golpista e o governo tem totais condições de recuperar forças para dar continuidade à aplicação do
seu projeto estratégico.
* Osvaldo Bertolino é jornalista e editor do Portal
Grabois
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Reforma Política,
cláusula de barreira e a
Constituição Federal
Orlando Silva e Wladimyr Camargos*
A existência de partidos políticos que defendam
bandeiras das minorias e representem visões
antagônicas e não conformem maioria é própria das
sociedades de alta complexidade, como a brasileira.
Tentar restringir a participação política destas
agremiações de menor sufrágio com cláusulas de
barreira é, no mínimo, uma tendência reducionista
44
M
Brasil
ais uma vez está em discussão na
em específico, a leitura mais aligeirada tendia à imCâmara dos Deputados uma propossibilidade de se reformar o sistema eleitoral para
posta de reforma política com clara
a adoção da “cláusula de desempenho” sem a devida
orientação para que se restrinja a
previsão do instituto no texto constitucional. Esta
representação parlamentar de parsuposição, ou interpretação incorreta da posição do
tidos políticos nos âmbitos nacional, regional e loSTF na ADI já mencionada acima, é justamente o
cal. O principal texto em debate na comissão espeponto de apoio encontrado pelos defensores das rescial criada para analisar o tema foi elaborado pelo
trições partidárias que se tenta implementar através
ex-deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP) e apresenda reforma política em trâmite na Câmara dos Detado através da PEC 352-A, de 2013. Dentre outros
putados. A saída jurídica encontrada por estes paraspectos, propõe-se emendar a Constituição Federal
lamentares seria emendar a Constituição Federal, de
para inclusão de pontos afeitos ao instituto denomimodo a garantir a não interferência do Supremo na
nado “cláusula de barreira”.
“vontade do legislador”.
A proposição se divide em
Há nesta concepção, todavia,
Em 2006, o STF julgou
duas travas ao funcionamento
uma clara opção por se contipartidário e à representação parnuar a desrespeitar nossa Carta
uma Ação Direta de
lamentar: (1) a vedação de acesfundamental. A ementa do acórInconstitucionalidade
so ao financiamento público de
dão que resultou do julgamento
campanha, hoje existente através
da ação de inconstitucionaliproposta pelo
do “fundo partidário”, além do
dade proposta pelo PCdoB não
PCdoB contrária a
direito à chamada “propaganda
faz qualquer menção ao art. 17
eleitoral gratuita” em rádios e
da Constituição Federal (CF).
dispositivos da Lei dos
TVs a partidos que não tenham
Cinge-se apenas a proclamar a
Partidos Políticos, que
alcançado sufrágio mínimo de
incompatibilidade entre o texto
criava mecanismos
5% dos votos válidos para a Câconstitucional e lei que “afaste
mara dos Deputados, distribuío funcionamento parlamentar e
de constrição ao
dos em ao menos 1/3 dos estados
reduz, substancialmente, o temfuncionamento
onde tiverem recebido o piso de
po de propaganda partidária gra3% do total em cada um; e (2) a
tuita e a participação no rateio
partidário e de
proibição de se fazer representar
do Fundo Partidário”, em razão
representação
na Câmara dos Deputados, nas
da gradação de votos obtidos peparlamentar através da
assembleias estaduais e nas câla agremiação partidária.
maras municipais e do Distrito
O próprio voto condutor do
chamada “cláusula de
Federal quando o partido político
julgamento, proferido pelo midesempenho”
não tiver obtido o mínimo de 5%
nistro Marco Aurélio, declarou
dos votos válidos para a casa para inconstitucionalidade da lei
lamentar respectiva.
muito mais baseado em prinEm 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) julcípios constitucionais do que propriamente no que
gou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade proconsta no art. 17 da CF. Buscou, assim, justificar sua
posta pelo PCdoB (ADI 1351-3/2007) contrária a disposição por considerar como desrespeitados os funpositivos da Lei nº 9.096, de 1995 (Lei dos Partidos
damentos da própria República, localizados no inPolíticos), que criava mecanismos de constrição ao
ciso V e no parágrafo único do art. 1º da CF, quais
funcionamento partidário e de representação parlasejam: o pluralismo político e a soberania popular.
mentar através do instituto conhecido por “cláusula
Posicionou-se também o magistrado pela repulsa à
de desempenho” – para muitos, mera sinonímia da
criação de partidos de primeira e segunda classes,
“cláusula de barreira”. Por unanimidade, os memo que seria direta ofensa ao princípio da igualdade,
bros do STF acompanharam a orientação do relator,
resguardado pela Constituição em seu art. 5º, caput.
ministro Marco Aurélio Mello, declarando a inconsEm seu voto, o ministro Marco Aurélio frisou
titucionalidade dos pontos da Lei dos Partidos Políainda a desarmonia entre a cláusula de desempenho
ticos que criavam as regras de restrição às agremiae o sistema principiológico que é resguardado pela
ções partidárias.
Constituição Federal de 1988
Para muitos, a posição do STF teria sido baseada
Resumindo, surge com extravagância maior inna simples regra da supremacia da Constituição, ou
terpretar-se os preceitos constitucionais a ponto de
da hierarquia das normas. Em se tratando do caso
esvaziar-se o pluripartidarismo, cerceando, por meio
45
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de atos que se mostram pobres em razoabilidade e
o instituto da cláusula de barreira per se, insurgiu-se
exorbitantes em concepção de forças, a atuação descontra a forma como ele havia sido aprovado através
te ou daquele partido político (1).
da Lei dos Partidos Políticos de 1995:
Conforme já mencionado anteriormente, a deci“Realmente, a fórmula, ainda que compartilhesão do STF se deu por unanimidade dos ministros
mos do pensamento político, da teleologia quanto
presentes, sendo que todos, sem exceção, basearam
à necessidade de governabilidade – esse é um dos
seus votos em princípios constitucionais considepensamentos, um ‘leitmotiv’, desse tipo de fórmula –,
rados como cláusulas pétreas, senão vejamos os
é evidente que aqui há um comprometimento da próseguintes exemplos: ministro Gilmar Mendes: art.
pria cláusula democrática. Não tenho, portanto, ne1º, caput – cláusula democrática, e art. 5º, caput –
nhuma dúvida quanto à inconstitucionalidade dessa
igualdade; ministro Ricardo Lewandowski: art. 1º, V
chamada cláusula de barreira à brasileira”.
– pluralismo político, art. 5º, caput – igualdade, e art.
Seria o caso de se arguir se a aprovação pelo Con5º, IV e IX – liberdade de expresgresso Nacional de um texto modisão; ministra Cármen Lúcia: art.
ficativo da Constituição Federal, no
1º, caput – cláusula democrática,
sentido de nela introduzir a cláusuA decisão do
art. 1º, V – pluralismo político;
la de barreira, ou de desempenho,
Supremo Tribunal
e ministro Eros Grau: art. 1º, V –
não seria um ato tido como inconspluralismo político, art. 5º, caput
titucional. Não é mero exercício de
Federal contrária
– igualdade e art. 5º, XVII, XVIII e
sofisma afirmar que sim. É possível
à cláusula de
XIX– direito de associação.
o controle constitucional pelo JudiVale a pena também registrar
ciário sobre as próprias emendas à
barreira se deu por
algumas passagens escolhidas, dos
Constituição. Nessa linha, há jurisunanimidade dos
votos dos ministros que declararam
prudência do STF que declara a tese
ministros presentes,
a inconstitucionalidade da cláusula
da inconstitucionalidade de normas
de desempenho. A ministra Cármen
constitucionais:
sendo que todos,
Lúcia enfatizou a incompatibilidade
“O STF já assentou o entendisem exceção,
deste instituto com a própria fundamento de que é admissível a ação
mentação republicana de nossa nadireta de inconstitucionalidade de
basearam seus
ção, exposta no art. 1º da CF:
emenda constitucional, quando se
votos em princípios
“(...) essa cláusula fere enormealega, na inicial, que esta contraria
constitucionais
mente a Constituição, não apenas
princípios imutáveis ou as chamano artigo 1º; fere no caput do artidas cláusulas pétreas da Constituiconsiderados como
go 1º: o Estado não é democrático
ção originária (art. 60, § 4º, da CF).
cláusulas pétreas
quando eu voto, e o meu eleito já
Precedente: ADI 939 (RTJ 151/755)»
entra sabendo não poder ter a par(ADI 1.946-MC, relator ministro
ticipação que eu queria que ele tiSydney Sanches, julgamento em
vesse”.
29-4-1999, Plenário, DJ de 14-9-2001.)
Esta foi a mesma linha seguida pelo ministro Eros
Se o precedente acima reforça a imutabilidade das
Grau:
cláusulas pétreas, também há que se verificar que o
“Uma lei tão adversa à totalidade que a Constituiponto fulcral do julgamento do STF sobre a adoção
ção é, tão adversa a esta totalidade que o mesmo parda cláusula de desempenho em 2006 encontra-se, cotido político pelo qual poderá ter sido eleito o Chefe
mo se viu, na constatação de que sua existência fere
do Poder Executivo será, sob a incidência de suas rede morte os princípios constitucionais da soberania
gras, menos representativo do que os demais partidos
popular, do pluripartidarismo, da liberdade de assono âmbito interno do Parlamento.
ciação e da livre manifestação. Mais do que isso, seria
Múltipla e desabridamente inconstitucional, esuma verdadeira afronta à preservação dos preceitos
sa lei afronta o princípio da igualdade de chances ou
fundamentais que protegem a igualdade jurídica, a
oportunidades, corolário do princípio da igualdade.
isonomia constitucional, a “igualdade de chances”.
Pois é evidente que seria inútil assegurar-se a igualEstes são fundamentos tão essenciais ao Estado
dade de condições na disputa eleitoral se não se asseDemocrático de Direito, à democracia liberal, que
gurasse a igualdade de condições no exercício de seus
foram resguardados pelo constituinte de 1988 como
mandatos pelos eleitos.”
imutáveis, não sendo passíveis, consequentemente,
E, finalmente, a posição do ministro Gilmar Mende serem retirados ou modificados via emenda consdes que, apesar de não demonstrar contrariedade com
titucional. Trata-se da tese já exposta pelo STF de que
46
Brasil
Plenário do STF. Supremo foi unânime na rejeição da cláusula de desempenho
não cabe ao constituinte derivado (parlamentares
eleitos já sob a égide de um novo regime constitucional) contrariar a vontade do constituinte originário,
ou, em nosso caso, aquele que serviu à Assembleia
Constituinte instalada em 1987, naquilo que se considera como o núcleo duro constitucional.
Este é um debate político e jurídico de tal modo
tão arraigado à cultura liberal que surgiu justamente com a própria construção do Estado constitucional
norte-americano no final do século XVIII. Refratários
à ideia de que uma maioria facciosa de ocasião pudesse vir a desvirtuar a vontade dos “pais fundadores” dos Estados Unidos da América, os delegados à
Convenção da Filadélfia de 1787 concluíram por um
modelo de rigidez constitucional. A possibilidade de
emenda à Constituição Estadunidense é resguardada
por um processo complexo e tortuoso, sujeito à formação de amplas maiorias e ratificações pelos estados
que compõem a União.
O maior expoente dentre os “pais fundadores”,
acerca do debate entre a restrição dos ímpetos da
maioria pós-constitucional, foi James Madison. Logo após a Convenção da Filadélfia, iniciou-se um
período de grande luta política e debates em torno
da ratificação da constituição pelos estados confederados. Os defensores de uma República federativa,
dentre eles Madison, em confronto com os que propugnavam por uma mera confederação, publicaram
vários artigos, depois reunidos em uma coletânea
intitulada Os Federalistas. No chamado “Federalista
nº 10”, Madison discutia o direito ao qual o cons-
tituinte originário de Filadélfia teria de vincular as
gerações vindouras contra a opressão da maioria sobre os direitos assegurados às minorias. É como se já
imaginasse as precipitações que no futuro poderiam
se canalizar para a ameaça à integridade da União, à
soberania nacional dos EUA e à própria constitucionalização da federação que se pretendia ver criada.
A solução apontada por Madison naquele momento
foi a adoção de mecanismos de filtragem da representação popular.
O filósofo norueguês Jon Elster alcunhou esta
forma de preservação dos valores originais da nação
como “pré-compromisso constitucional”. Em seu livro Ulisses Liberto, este autor compara a situação de
um pré-compromisso constitucional à alegoria em
torno de Ulisses, na Odisseia, quando ordenou aos
marujos que o atassem ao mastro do barco e pusessem cera em seus ouvidos para que não fosse encantado pelo “canto das sereias”. Em outras palavras, o constituinte originário impôs ao constituinte
derivado formas de controle para que as maiorias
de ocasião não pudessem, perante o “canto das sereias”, submeter as minorias e desvirtuar a essência
da constituição da nação.
Ainda que a historiografia tenda a apontar a defesa empreendida por Madison e demais federalistas
como elitista e protetiva de seus interesses de classes contra as maiorias não proprietárias, a Revolução
Norte-Americana deixou como indiscutível legado os
fundamentos universais à proteção jurídica à existência e representação de minorias políticas. Isto,
47
Ed.Ed.
135133
– Março/Abril
– Nov/Dez 2014
2015
Em 1988, com a
redemocratização
do país, o
sepultamento do
bipartidarismo
criado pela
ditadura militar
e o consenso
em torno da
necessária adoção
de mecanismos de
controle da maioria
em seus impulsos
eliminatórios
dos direitos das
minorias, houve
ampla previsão pela
nova Constituição
de mecanismos
de prevenção à
opressão política
aliado ainda ao controle
de constitucionalidade
também formulado na
fase de consolidação da
nação estadunidense, foi
incorporado à tradição
constitucional brasileira.
Em 1988, com a redemocratização do país, o
sepultamento do bipartidarismo criado pela ditadura militar e o consenso
em torno da necessária
adoção de mecanismos
de controle da maioria
em seus impulsos eliminatórios dos direitos das minorias, houve ampla
previsão pela nova Constituição de mecanismos de
prevenção à opressão política por grupos majoritários contra os de menor representação.
A existência de partidos políticos que representem
visões antagônicas e não conformem maioria é própria das sociedades de alta complexidade, como a brasileira. Tentar justificar a vedação de funcionamento
parlamentar e ao acesso aos mecanismos públicos de
financiamento e divulgação de atividades partidárias
às agremiações de menor sufrágio como panaceia para
a resolução de problemas da baixa representatividade
de partidos majoritários e malversação de recursos
públicos é, no mínimo, uma tendência reducionista.
Não se resolvem problemas próprios da contemporaneidade meramente na tentativa de redução da
complexidade que nos cerca. A vida em sociedade
continuará complexa e a forma plúrima de representação social, mormente através do pluripartidarismo que marca a história da democracia brasileira,
é meio avançado de se enfrentar os dilemas que nos
são apresentados. A postura pela “exclusão do outro”
representa ameaça à democracia.
4848
Há que se recordar que
a proibição de registro e
funcionamento do Partido
Comunista do Brasil no passado se deu através de manobras jurídicas. A proteção
dada pela Constituição Federal atual à organização e
plena representatividade dos
parti­dos políticos assenta-se
na reação do constituinte
de 1988 justamente a este
tipo de desmando, de golpe
branco, resguardando como
cláusulas pétreas constitucionais os direitos de as minorias poderem também algum dia se constituírem em maioria.
* Orlando Silva é deputado federal e presidente
do Comitê Regional do PCdoB em São Paulo.
Wladimyr Camargos é advogado, professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal de
Goiás e doutorando em Direito Constitucional
pela Universidade de Brasília
Nota
(1) As citações referentes à ADI 1351-3/2007 podem ser encontradas na publicação eletrônica da íntegra do respectivo acórdão,
disponível em:
h t t p : / / r e d i r. s t f . j u s . b r / p a g i n a d o r p u b / p a g i n a d o r.
jsp?docTP=AC&docID=416150
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da Constituição. 7ª ed. Coimbra, Portugal: Almedina,
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de Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: UNESP, 2009.
HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de
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Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2002.
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EUA: Yale University, 2005.
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ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito
Constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto
com revisão técnica de Maria Fernanda Salcedo Repolês.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
49
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Maranhão é palco de
comemoração nacional
dos 93 anos do PCdoB
Cezar Xavier*
Com uma concorrida sessão solene, a Assembleia
Legislativa do Maranhão comemorou, na manhã
do último dia 23 de março, os 93 anos de
fundação do Partido Comunista do Brasil,
fundado em 25 de março de 1922. A
solenidade teve caráter nacional e contou
com a presença do governador Flávio Dino (PCdoB)
50
PCdoB
P
roposta pelo deputado Othelino
Em defesa da democracia e da
Neto (PCdoB), a abertura da sesliberdade
são solene, realizada no Plenário
Deputado Nagib Haickel, foi feiEm seu discurso (veja a íntegra nas páginas 47
ta pelo presidente da Assembleia
a 49), o presidente nacional do Partido Comunista
Legislativa, deputado Humberto
do Brasil, Renato Rabelo, fez um relato de lances
Coutinho (PDT), que fez saudação a todos os premarcantes da história do PCdoB e acentuou a imsentes, dentre os quais o vice-governador Carlos
portância de Flávio Dino ter sido eleito governador
Brandão (PSDB), o presidente nacional do Partido
pelo povo maranhense. “Foi além do Maranhão esta
Comunista do Brasil, Renato Ravitória”, ressaltou ele.
belo, os deputados federais Jan“O PCdoB esteve sempre em podira Feghali (PCdoB-RJ), Orlando
sição central de acirradas lutas poSilva (PCdoB-SP) e Wadson Ribeilíticas em defesa da soberania naro (PCdoB-MG), a presidente da
cional, da democracia e da justiça
União Nacional dos Estudantes,
social”, destacou Rabelo. Conforme
Vick Barros, e o prefeito de Contaafirmou, nestes 30 anos de legaligem (MG), Carlim Moura, dentre
dade, o PCdoB ocupou o “posto de
outros convidados especiais.
combate empunhando bandeiras
Realizado com o Plenário comavançadas na busca e realização do
pletamente lotado, o evento connovo Projeto de Desenvolvimento
Nestes 30 anos
tou também com a presença do
Nacional, caminho indicado pelo
prefeito de São Luís, Edivaldo
nosso Programa para o avanço civide legalidade, o
Holanda Júnior (PTC), do senalizacional em nosso país, no rumo
PCdoB ocupou o
dor Roberto Rocha (PSB), e dos
da edificação de uma sociedade sodeputados federais do Maranhão
cialista”, apontou.
“posto de combate
Rubens Júnior (PCdoB), Weverton
O dirigente nacional lembrou
empunhando
Rocha (PDT) e Waldir Maranhão
ainda dos militantes que lutaram
bandeiras avançadas
(PP), vice-presidente da Câmara
contra a opressão dos governos didos Deputados.
tatoriais no Brasil, onde comunistas
na busca e realização
O deputado Othelino Neto disforam presos, torturados e assassido novo Projeto de
se que tomou a iniciativa de propor
nados por terem lutado bravamente
a realização da sessão solene, em
pela reconquista das liberdades poDesenvolvimento
São Luís, pelo fato histórico de o
líticas e dos direitos do povo.
Nacional, caminho
primeiro governador do PCdoB ter
Em breve passagem, Renato fez
sido eleito no Maranhão. “O PCdoB
indicado pelo nosso
menção ao momento atual e ressalé um partido de lutas históricas,
tou a nítida compreensão dos coPrograma para o
sempre ligadas às boas causas do
munistas dos fatos do passado e de
avanço civilizacional
Brasil e do mundo, daí a importânque é preciso neste momento “unir
cia de se celebrar esta data no Maforças e mobilizar o povo na luta
em nosso país, no
ranhão, em homenagem à demodurante a qual muitos pagaram
rumo da edificação
cracia e à liberdade em nosso País”,
com sua própria vida, para termos
declarou.
hoje um país livre com a conquisde uma sociedade
Enquanto aproxima-se de um
ta da democracia”. “Nesta hora, o
socialista”, destacou
século de existência no Brasil, daPartido converge sua atenção políRenato Rabelo
ta celebrada em 25 de março, o ato
tica no sentido da defesa da demonacional ressalta o simbolismo pecracia, que se concretiza na defesa
los 30 anos de legalidade ininterdo legítimo mandato constituciorupta, desde a redemocratização
nal da presidenta Dilma Rousseff.
do país em 1985, com protagonismo dos comunisAssim, o PCdoB propõe, diante da ofensiva golpista
tas nesta trajetória. Biografias dos “guerreiros” brae reacionária, liderada pelo consórcio oposicionista, a
sileiros que fizeram parte da história do PCdoB ao
constituição de uma frente ampla com todas as forças
longo destes 93 anos e da bravura e honra dos que
possíveis do campo democrático e patriótico, intereslutaram pela legalidade do partido foram lembrasadas em assegurar a democracia, a defesa da econodas por todos.
mia nacional e a retomada do crescimento”.
51
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Renato agradeceu pela presença das lideranças
presentes no ato e parabenizou oficialmente a conquista pelos comunistas maranhenses do governo do
estado: “Essa expressiva vitória alcançada, tendo o
camarada Flávio Dino à frente de ampla aliança política, teve repercussão na opinião pública em geral,
em especial nas forças progressistas e democráticas
do país. Essa experiência tem decisiva importância
para o PCdoB pelo compromisso assumido de promover o desenvolvimento do Maranhão com justiça social, como parte integrante do novo projeto nacional
de desenvolvimento”, destacou o presidente nacional.
No mesmo tom, a deputada Jandira Feghali, líder
do PCdoB na Câmara Federal, frisou em seu pronunciamento que a eleição de Flávio Dino para o governo do estado “foi uma vitória do Maranhão e foi,
também, uma vitória do Brasil”.
Ao proferir o discurso de encerramento da solenidade, o governador Flávio Dino fez referência a diversos episódios que marcaram a história do PCdoB e
frisou que a mudança ocorrida no Maranhão não terá
retrocesso. “A vitória eleitoral de 5 de outubro passado foi só um passo. Agora, estamos diante do maior
desafio das nossas vidas. Estamos diante, acima de
tudo, do maior desafio da História do nosso estado”.
O governador comemorou a fase mais longa da
legalidade do Partido Comunista e citou os principais
momentos de bravura das lideranças que viveram
“perseguições, pressões e injustiças” nestes 93 anos
de história. O governador citou ainda, desde 1922
aos dias atuais, fatos históricos que honram o nome
de guerreiros e heróis comunistas, como exemplos
para serem seguidos pelas atuais gerações.
Como comunista, Flávio Dino destacou os eventos que tantos outros lutadores sociais protagonizaram na história do país, antes desta geração, como
Prestes e sua Coluna, os que fizeram a Semana de
Arte Moderna em 1922, os que participaram da Revolução de 1930, os que compuseram a ANL, os que
foram daqui do Brasil combater na Segunda Guerra
Mundial na Europa, a bancada comunista eleita em
1946 e cassada em 1947, os que lutaram pelo “Petróleo é Nosso”, os trabalhistas que lutaram pela manutenção do mandato de Getúlio Vargas em 1954, o
esforço da era JK pelo desenvolvimentismo do Brasil, a luta pelas reformas de base, principalmente a
agrária, durante o governo João Goulart, nos anos
1960, aqueles que criaram o CPC da UNE, Ferreira
Goulart à frente. Ao mencionar os que resistiram ao
golpe militar de 1964 e o combateram, inclusive, pela
coragem da luta armada, “porque cumpriram o seu
dever”, o governador lembrou “os heróis da Guerrilha do Araguaia, que atuaram aqui no Maranhão,
na região tocantina – Porto Franco, Imperatriz, entre
52
outros municípios daquela região de nosso estado”.
“O PCdoB lutou, durante os anos 70, pela criação de uma frente política democrática para acabar a
ditadura, ao lado de Ulysses Guimarães, na luta pela anistia, pelas diretas já. Temos muito orgulho da
história do PCdoB”, diz ele, ressaltando que toda vez
que os comunistas podem atuar livremente, o país
avança; mas toda vez que a atuação dos comunistas
é cerceada, o país retrocede, revelando a importância
da democracia para o povo.
No Maranhão, Flávio Dino avalia que, além de
participar do governo e do parlamento, o PCdoB não
se descuida de estar inserido na luta dos movimentos sociais, da juventude, sindical, da luta de ideias.
A luta de ideias traz luzes quando se está diante da
crise, como ocorre na atualidade com o avanço do
golpismo da direita. Isso revela uma dimensão concreta no Maranhão, de acordo com ele, quando o
mais importante é governar bem e melhorar a vida
do povo. Para o governador comunista um princípio
inegociável de seu governo é a mudança. “Aos que
dizem que nada vai mudar no Maranhão, digo que
não haverá retrocesso! Não mais haverá oligarquia.
Falamos isso com ternura, com sorriso nos lábios. O
nosso partido, o PCdoB, não tem sectarismo; é um
partido de braços abertos, que respeita a oposição;
mas não abre mão de princípios: governar para os
mais pobres, dizendo aos que não têm esperança,
que o governo trabalha, ouve, dialoga... Um governo
de participação popular”, enfatizou.
Flávio Dino citou as realizações deste governo
recente ao lançar um conjunto de medidas que garantem a transparência na gestão pública do estado,
como o Portal da Transparência. Outros princípios
que movem a governança no Maranhão, conforme
apontou ele, são a honestidade e o respeito ao dinheiro público, com imediata apuração de ilegalidades pela justiça e máxima eficiência, com trabalho
contínuo. “A população tem pressa, o governo tem
sentido de urgência. Lutamos para que as mudanças
aconteçam agora”.
Flávio Dino contou que cogitou-se, entre as forças políticas que o apoiavam, que ele deveria filiar-se
a um partido maior para disputar a eleição. Segundo
ele, Renato Rabelo foi decisivo para uma candidatura
orgulhosa de ser comunista, ao explicar a necessidade
de “enxergar a política com um olhar em águas profundas, na profundidade da política”. “Sair do partido
para ser candidato por outro seria renunciar a mim
mesmo. É o melhor partido para fazer o debate com o
anticomunismo, o anticomunismo mais estreito. Ajudamos o Brasil a dar um passo adiante, com um governo do Partido Comunista e com quatro deputados
estaduais e um deputado federal”, comemorou.
PCdoB
ÍNTEGRA DO DISCURSO DE RENATO RABELO
93 anos: Partido Comunista do Brasil,
uma exigência histórica!
O
Partido Comunista do Brasil comemora seus
93 anos de existência interrupta e 30 anos
de legalidade desde a redemocratização de
1985 posicionado onde sempre esteve ao longo de
sua longa trajetória: no centro de acirradas lutas políticas em defesa da soberania nacional, da democracia e da justiça social. Nestes 30 anos de legalidade o
PCdoB se manteve no posto de combate empunhando
bandeiras avançadas na busca e realização de novo
Projeto de Desenvolvimento Nacional, caminho indicado pelo nosso Programa para o avanço civilizacional
em nosso País, no rumo da edificação de uma sociedade superior – a sociedade socialista.
Em janeiro de 1985, chegavam ao fim mais de 20
anos de regime militar. Esta foi uma épica vitória da
resistência pela democracia do povo brasileiro para
a qual o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) muito
contribuiu. Centenas de seus militantes foram presos,
torturados e assassinados por terem lutado bravamente pela reconquista das liberdades políticas e dos
direitos do povo. Dezenas deles ainda se encontram
desaparecidos, sem um túmulo no qual se possa colocar uma flor.
No dia 23 de maio de 1985, a Comissão pela Legalidade do PCdoB, tendo à frente o histórico dirigente
João Amazonas, encaminhou o pedido de seu registro
ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Na prática, isso
significava que o Partido passava a ser legal, depois
de 38 anos de vida clandestina.
Depois de uma grande campanha nacional, que envolveu toda a militância e amigos, chegou-se à cifra
de 60 mil membros, conquistando-se assim o registro
definitivo. Sedes de comitês partidários foram abertas
nas principais cidades brasileiras. O PCdoB estava legal! Este o sinal mais eloquente de que a redemocratização se descortinava. O Partido Comunista sempre
foi um termômetro na história recente do Brasil para
medir o grau de restrição à democracia – primeiro a
ser proscrito – e de abertura política – último a ser legalizado.
Daí em diante o PCdoB vem se dedicando em preservar e ampliar a democracia conquistada com tanto sacrifício, colocando-a efetivamente a serviço da
emancipação do povo brasileiro.
O PCdoB logo se envolveu inteiramente na campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte
– outra candente e nuclear reivindicação dos comunistas. Na Constituinte de 1988, elegeu uma pequena, mas combativa, bancada parlamentar. Ao lado de
outros deputados progressistas, conseguiu incluir na
53
Ed. 135 – Março/Abril 2015
nossa Carta Magna vários artigos que ampliavam a democracia, a soberania e os direitos populares. Destacam-se conquistas que asseguram e ampliam direitos
sociais e trabalhistas, tributos progressivos e a defesa
da economia nacional. Pelo seu ineditismo, entre suas
conquistas está o voto aos 16 anos. Bandeira levantada pela então recém-criada União da Juventude Socialista (UJS), dirigida pelos comunistas. Com isso, o Partido Comunista do Brasil se destacou diante de todas
as organizações políticas atuais no Brasil como a única
que participou de todos os processos constituintes de
1934, 1946 e 1988.
O avanço democrático e maior organização da
esquerda e das forças progressistas permitiram ao
PCdoB defender e se empenhar por uma alternativa
política mais avançada, pois a Nova República havia
envelhecido prematuramente e se afastado de seus
objetivos democráticos iniciais. Já no 7º Congresso
– primeiro na legalidade, realizado em maio de 1988
–, o Partido defendeu a formação de “um amplo e
combativo movimento democrático e popular”. Essa
nova linha lhe permitiria o estabelecimento de alianças políticas e eleitorais com setores de esquerda.
Um esforço que culminaria na constituição da Frente
Brasil Popular para disputar a primeira eleição direta
para presidente após o golpe militar de 1964. Assim, o
PCdoB teve um papel decisivo na construção da frente
política que levou Lula ao segundo turno na eleição
presidencial de 1989.
É a partir do final da década de 1980 que
começava a se abrir um novo período de ofensiva
dos setores conservadores, que se alinhavam sob a
bandeira do neoliberalismo. Tendência que já vinha
se impondo em outras partes do mundo. Por isso, o
PCdoB advogou a constituição de uma ampla frente
de caráter antineoliberal. Colocou-se na linha de
frente contra as privatizações de grandes estatais, a
desnacionalização da nossa economia, a retirada de
direitos dos trabalhadores e as medidas restritivas
à democracia. Movimento que cresceu e galvanizou
amplos setores sociais.
No final da década de 1980, diante da crise e dos
reveses do modelo socialista implantado na URSS
e no Leste Europeu, ao contrário de outros partidos
comunistas que sucumbiram às pressões do vendaval anticomunista que se irrompeu, o PCdoB resistiu
mantendo sua fisionomia, símbolos e convicções revolucionárias socialistas. É nossa convicção que a Revolução na Rússia marcou profundamente o século XX,
deixou extraordinário legado para os trabalhadores e
a humanidade. Os comunistas são herdeiros de toda
a história desse magno empreendimento revolucionário do século passado. Mas, diante desses novos desa-
54
fios históricos eram exigidas respostas dos comunistas. A realidade demonstrava que o socialismo, como
nova formação política, econômica e social, iniciava
seus primeiros passos na cena da história. Muito ainda
está por vir.
O PCdoB se debruçou para estudar os acertos e
erros daquelas experiências. O resultado foi o trabalho sucessivo e intenso de elaboração num grande
esforço teórico e programático moldado na visão de
uma nova luta pelo socialismo, condizente com a fase atual do curso geopolítico e de desenvolvimento
político, econômico, social e cultural que vive o país e
suas melhores tradições. Esses temas candentes culminaram na realização do 8º Congresso do PCdoB, em
1992, tornando-se um marco histórico para orientação contemporânea do Partido. Resultou no novo Programa de 2009 do PCdoB que reafirmou o objetivo
socialista e o caminho para alcançá-lo nas condições
próprias do Brasil.
Na década de 1990, sobretudo nos governos de
Fernando Henrique Cardoso, o ideário dominante neoliberal é aplicado com radicalidade, provocando grandes consequências com retrocessos sociais, políticos
e na autonomia da economia nacional. Novamente, o
PCdoB se colocou à frente da luta, ao lado de outras
correntes políticas progressistas. Defendeu a formação de uma ampla frente política e social que tivesse
como núcleo a esquerda. Alguns momentos marcantes desse processo foram: a constituição do Fórum
Nacional de Lutas, que uniu partidos oposicionistas e
entidades do movimento social; e a Marcha dos 100
mil, ocorrida em Brasília em 1999. O Partido também
jogou papel destacado na elaboração do Manifesto em
Defesa do Brasil, da democracia e do trabalho (2000).
O esforço de unidade e ampla mobilização das forças democráticas e antineoliberais garantiu a histórica vitória de Lula em 2002. Pela primeira vez em nossa
história um presidente vindo do movimento operário
e popular, de um partido de esquerda, em aliança com
forças democráticas e populares, chegou ao governo
da República.
A eleição de Lula representou mais do que uma
simples mudança de governo. Ela abriu outro ciclo
político no país, criando melhores condições para a
aplicação de um projeto nacional mais avançado e
dirigido por forças políticas vinculadas aos trabalhadores e às camadas populares. O centro da orientação dos comunistas passou a ser “atuar pelo êxito
do governo Lula na condução das mudanças que
consistem no aprofundamento da democracia e a na
adoção de um Projeto Nacional de Desenvolvimento, voltado para a defesa da soberania do país e do
progresso social”.
PCdoB
Nesse período da sua história os comunistas passaram a exercer pela primeira vez funções de maior
responsabilidade no Executivo federal, assumindo
durante esses anos diversos cargos como ministro do
esporte, ministro da secretaria de relações institucionais da presidência da República, agora como ministro
de ciência, tecnologia e Inovação, Secretaria Executiva
do ministério da ciência e tecnologia, a presidência
da FINEP, a presidência da Agência Nacional de Petróleo, a presidência da Agência Nacional de Cinema, na
EMBRATUR e em cargos expressivos em outros ministérios e em secretarias nacionais.
É nesse período que o PCdoB afirmou e desenvolveu
suas tarefas fundamentais: no sentido da acumulação
maior de forças articulou persistentemente a
formação de bancadas parlamentares combativas com
a participação na luta dos movimentos sociais e a luta
de ideias.
Desde os governos do presidente Lula e continuado pela presidenta Dilma grandes e significativas têm
sido as mudanças e conquistas sociais, políticas e do
desenvolvimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, e de política externa soberana e
integração solidária do Continente. Nesse novo ciclo
político tem sido extensa e dura a luta entre o neoliberalismo que persiste, centro dominante do capitalismo atual, e o novo desenvolvimento nacional que
emerge e tenta se afirmar. Tal situação se reflete no
plano político: os dois governos Lula, o primeiro governo Dilma se passaram diante de persistente enfrentamento da oposição neoliberal conservadora. Agora, no
começo do segundo governo Dilma o enfrentamento
recrudesce, tentando paralisá-lo e desestabilizá-lo, a
qualquer custo, fora da legalidade institucional.
O PCdoB forjado na sua longa experiência — na
qual pagou custoso tributo à conquista da liberdade,
dos direitos do povo e da soberania nacional — tem
nítida compreensão de que hoje é preciso unir forças
e mobilizar o povo em defesa das conquistas alcançadas desde 2002. Nesta hora o Partido converge sua
atenção política no sentido da defesa da democracia, que se concretiza na defesa do legítimo mandato
constitucional da presidenta Dilma Rousseff. Assim, o
PCdoB propõe, diante da ofensiva golpista e reacionária, liderada pelo consórcio oposicionista, a constituição de uma frente ampla com todas as forças possíveis
do campo democrático e patriótico, interessadas em
assegurar a democracia, a defesa da economia nacional e da retomada do crescimento.
Para isso, do nosso ponto de vista, temos asseverado a defesa do mandato legítimo da presidenta Dilma; a defesa da maior empresa do Brasil, a Petrobras,
da economia e da engenharia nacional, exigindo a li-
sura na apuração, condenação e punição exemplar dos
envolvidos nos ilícitos praticados e na prática de propinas na investigação em curso; o combate à corrupção,
o fim do financiamento empresarial das campanhas,
parte substancial na luta por uma reforma política democrática; e pela retomada do crescimento econômico
do país e a garantia dos direitos sociais e trabalhistas.
Igualmente acentuamos ser necessário, para reverter a situação atual adversa, fortalecer o papel de um
bloco político e social de esquerda no âmbito da Frente Ampla. Esse é o passo necessário para descortinar o
caminho da etapa atual, das exigências do aprofundamento das mudanças, da realização das reformas democráticas estruturais e enfrentar maiores desafios.
Nesta comemoração dos 93 anos do PCdoB, nesta sessão solene da Assembleia Legislativa do Estado
do Maranhão, com a presença de muitas lideranças
nacionais do Partido no Congresso Nacional, no movimento sindical, da juventude e de entidades sociais é
a forma merecida e reconhecida de destacar o grande
feito, inédito, em toda extensa trajetória do PCdoB: da
eleição do seu primeiro governador de Estado. Essa
expressiva vitória alcançada, tendo o camarada Flávio Dino à frente de ampla aliança política, teve repercussão na opinião pública em geral, em especial
nas forças progressistas e democráticas do país. Essa
experiência tem decisiva importância para o PCdoB
pelo compromisso assumido de promover o desenvolvimento do Maranhão com justiça social, como parte
integrante do novo projeto nacional de desenvolvimento.
Ao saudarmos os 93 anos do Partido Comunista
do Brasil, seus dirigentes e militantes estão diante
de maior e elevada responsabilidade perante o povo
e a nação brasileira. Nessa longa caminhada o PCdoB
manteve sua coerência e permanência mantendo e
desenvolvendo sua linha revolucionária, consolidando-se como um partido comunista contemporâneo,
procurando se empenhar plenamente para elevação
política dos trabalhadores e do povo.
Por sua extensa trajetória de mais de nove décadas
o Partido Comunista do Brasil é uma prova de que sua
existência é uma exigência histórica. O PCdoB continua sua luta para elevar crescentemente sua capacidade para desempenhar um papel mais relevante no
curso político atual e nos grandes embates pela emancipação política e social do povo brasileiro.
Viva o PCdoB, Partido do presente, voltado para o
futuro!
Viva os 93 anos do Partido Comunista do Brasil!
São Luís, 23 de março de 2015.
RENATO RABELO
55
Ed. 135 – Março/Abril 2015
A participação institucional
dos comunistas
Márvia Scárdua*
Em meio à crise política que atinge a aliança
governista, o PCdoB tem uma avaliação positiva
de sua opção pela atuação institucional, desde
a redemocratização. Tem garantido avanços nas
políticas públicas progressistas, promovido um
reforço ofensivo contra a oposição, nos momentos
em que o PT recua para a defensiva, e protagonizado
grandes momentos como a realização da Copa do
Mundo e a derrota da velha oligarquia no Maranhão
O
s estudos sobre a participação dos
comunistas na frente institucional
ainda têm pouca acumulação no
campo da elaboração, da análise
crítica e histórica. As elaborações
acadêmicas costumam ser genéricas sobre a atuação
dos comunistas, particularmente do PCdoB. Parte
dos analistas costuma formular críticas superficiais
e dentro de uma perspectiva de luta política. Não há,
portanto, uma acumulação teórica mais elaborada
sobre esse fenômeno político.
Desde a luta pela democratização no Brasil, quando a atuação ainda estava sob a legenda do PMDB
e, depois, com a legalidade em 1985, o PCdoB teve
quadros políticos atuando em governos, mas ainda
não havia definido essa frente como ação concreta
de acumulação de forças. Tivemos a experiência de
elegermos em 1985, Luiz Caetano prefeito de Camaçari (BA). Ao longo da construção democrática e de
vitórias de forças progressistas em cidades e estados,
nossa militância passou a dar contribuições participando pontualmente de espaços de governos. Foi
a partir de uma decisão histórica do 9º Congresso
(1997) que o Partido passou a orientar a ação política
a ocupar espaços governamentais.
56
Nosso desafio, desde a redemocratização, é o de
superar um Estado baseado nos princípios conservadores, mais acentuadamente sob a orientação do
neoliberalismo. E construir um projeto verdadeiramente democrático e popular. Vencemos as eleições
de 2002 elegendo Luiz Inácio Lula da Silva presidente da República e daí por diante obtivemos novas vitórias políticas e de acumulação de forças.
Após a vitória de Lula e a coalizão de esquerda
que tinha o PT como principal partido, levantou-se o
debate interno no PCdoB sobre qual papel caberia aos
comunistas nessa nova fase política. A 9ª Conferência Nacional realizada em 2003 avaliou se deveriam
assumir a responsabilidade de ocupar o primeiro escalão do governo, mesmo sendo força minoritária
nessa aliança política. Embora o Partido tivesse sido
crítico das medidas macroeconômicas do início do
governo, declarou apoio aos esforços para prioridade
no combate à fome e à pobreza, na defesa da soberania nacional com a nova política externa e o diálogo
com os movimentos sociais. Nessa condição decidiu
participar do governo e contribuir na condução política para um projeto de caráter popular.
Passados 12 anos de governo petista com o apoio
dos comunistas, a quarta vitória consecutiva desse
PCdoB
campo político nos impõe avaliar nossa atuação e nossa acumulação de forças. Sobretudo neste início de segundo mandato de Dilma Rousseff quando as forças conservadoras
atuam na ofensiva, e parte da oposição articula abertamente a tentativa de impedir o governo progressista.
Nos últimos anos, os comunistas também
se tornaram alvo de críticas e de disputas políticas numa reação agressiva da burguesia
– que busca desgastar a implantação de um
projeto nacional de desenvolvimento –, e sobretudo dos setores que têm maior interesse
no retorno da agenda neoliberal. Particularmente os meios de comunicação de influência
liberal, os de maior circulação e abrangência,
travam uma luta ideológica contra o governo
do qual participamos e, em especial, tentam
nos atingir por não suportarem a ascensão e
influência de nossas opiniões políticas.
Nessa circunstância histórica cabe fazer
uma avaliação crítica sobre a atuação política
dos comunistas na frente institucional.
A participação institucional diante da estrutura capitalista de Estado é um paradoxo,
mas possível de ser superado a partir da compreensão sobre as mudanças necessárias para fazer avançar a condição de vida do povo e
criar condições de substituir essas estruturas
por outra que possibilite o desenvolvimento
Flávio Dino é a esperança da melhora do Índice de
e a soberania nacional. A consciência de que
Desenvolvimento Humano de um estado dominado por décadas
a intervenção do poder público ainda permapor uma oligarquia familiar
nece restrita diante das interpretações legais,
da estrutura burocrática criada para atender às deoutras. Com isso, adquiriu um conjunto de elemenmandas do poder econômico, a disputa de ideias na
tos e aprendizagens para aperfeiçoar essa frente de
sociedade sobre a validade dos programas e projetos
atuação de relevância crescente, superando o atraso
e a pressão política das classes dominantes atuando
nessa participação e destacando-se na elaboração de
nos partidos de oposição, entre os aliados temporápolíticas públicas de conquistas para o povo.
rios, na grande mídia e até em parte do Judiciário,
Competência, honestidade, zelo e rigor com o
são elementos coercitivos para o avanço das parcelas
patrimônio público são as condutas cultivadas pemenos favorecidas e da consciência de classes na solos comunistas que exercem responsabilidades de
ciedade.
governo. Sua diretriz de atuação na administração
Para uma avaliação inicial da atuação dos comupública é jamais voltar as costas ao povo, e sim gonistas é possível identificá-la como positiva nesse
vernar com a participação dele, respeitar e incentivar
período de governos progressistas – avaliação debasuas lutas e movimentos; governar para dar respostida no 13º Congresso do PCdoB em 2013:
tas aos problemas e dilemas do presente, para elevar
“As participações institucionais assumidas nos
de forma imediata a qualidade de vida da populaplanos federal, estadual e municipal se ampliaram.
ção. Mas cada realização está associada ao rumo e
O PCdoB alcançou, com isso, nova dimensão na
ao caminho traçado em seu Programa Socialista.”
aproximação com a maioria do povo e em sua iden(TESES, 13º Congresso do PCdoB, 2013: 20).
tidade partidária. No governo federal, o Partido, por
A importância de se abrir o debate sobre a atuação
meio de quadros destacados, deu contribuições em
institucional se deve ao fim de um ciclo de atuações
áreas estratégicas para o país e para o povo, como
em espaços públicos, como no Esporte e a expecesporte, ciência e tecnologia, petróleo, cultura, entre
tativa no novo governo Dilma Rousseff da atuação
57
Ed. 135 – Março/Abril 2015
58
AgBr MCSP
em áreas onde já
existem acúmulos
e experiência e o
novo desafio diante do Ministério da
Ciência, Tecnologia
e Inovação.
Nossa participação no Ministério do
Esporte possibilitou
conquistas importantes. O desenvolvimento de políticas
públicas para o setor,
com ações governamentais e marcos
Orlando Silva, no Ministério,
Aldo Rebelo protagonizou com serenidade a realização da
institucionais que
possibilitou conquistas importantes Copa do Mundo, sob boicote cerrado da mídia
colocaram o esporte
em outro patamar
manifestantes, mesmo sem uma
de desenvolvimento. A democratiAlém de colocarmos
unidade em torno de qual crítica e
zação do debate e das ações com o
qual reivindicação, a principal exenvolvimento direto de atletas, dirio esporte na agenda
pressão era “contra tudo o que está
gentes, profissionais da área, gestonacional como um
aí”. A Copa do Mundo passou a ser
res públicos e privados, jornalistas e
alvo de crítica, sobretudo nos meios
meios de comunicação, intelectuais
instrumento de
de comunicação e se criou um clie centros de conhecimento, polítiinclusão através
ma de tensão e a expectativa de nocos e outras instituições públicas
vos protestos durante o evento.
para formular, criticar, apresentar
de programas
O resultado foi a realização bem
demandas e elaborar coletivamente
sociais expansivos
feita de uma das maiores atividades
intervenções que contribuíram para
em todo o Brasil,
esportivas vistas no mundo, com
a modernização do esporte.
uma organização elogiada em geOs ministros Orlando Silva e
atuamos para
ral, uma recepção calorosa como é
Aldo Rebelo foram os condutores
fortalecer o esporte
próprio do povo brasileiro e um giro
desse processo de modernização do
econômico que justificou os invesesporte brasileiro. Além de colocarde alto rendimento
timentos feitos para melhorar as
mos o esporte na agenda nacional
desenvolvendo
estruturas envolvidas na realização
como um instrumento de inclusão
atletas para
do evento. Tivemos legados imporatravés de programas sociais extantes em transporte aeroviário,
pansivos em todo o Brasil, atuamos
competições
estádios, hotelaria e sistema comupara fortalecer o esporte de alto
internacionais
nicacional. Algumas obras urbanas
rendimento desenvolvendo atletas
foram entregues para melhorar a
para competições internacionais,
vida dos brasileiros. A maioria dos
possibilitamos ampliar recursos púestrangeiros que estiveram aqui disse através de pesblicos diretos e mecanismos de captação de novas
quisas ter gostado do Brasil e pretende voltar. A crítica
fontes de financiamento privados através da lei de
à não entrega de parte do legado, principalmente de
incentivo ao esporte, da reorganização das dívidas
infraestrutura viária, é válida, mas deve ser considedos clubes, hoje principais formadores de atletas,
rado que parte está em construção e será entregue e
avançamos na economia do esporte.
a responsabilidade pelos atrasos e o cancelamento se
Destaque para essa avaliação foi a realização da
deve a governos estaduais e municipais, responsáveis
Copa do Mundo, que se transformou em alvo de
pelos projetos, licitações e execuções das obras. As
disputa política na tentativa de desgastar o governo
denúncias feitas sobre desapropriações de casas para
Dilma Rousseff.
construção e reformas se demonstraram superdimenA partir das manifestações de junho de 2013, o
sionadas e na maioria das vezes não corresponderam
governo federal passou a ser alvo das críticas dos
PCdoB
Netun Lima-Divulgação CineBH
Outra importante tarefa foi nossa
atuação na Secretaria Nacional da Juventude, frente social em que os comunistas têm tradição e força. A partir da
participação no Conselho Nacional de
Juventude foi consolidada a aprovação
do Estatuto da Juventude. No Congresso Nacional a relatora foi a deputada
Manuela D’Ávila (PCdoB/RS). O Estatuto da Juventude é um importante
instrumento legal para garantir direitos, um marco importante que se consolida enquanto política de Estado. No
mesmo patamar de importância, também ajudamos na aprovação da PEC da
juventude e na elaboração e aprovação
O fortalecimento do audiovisual brasileiro deve-se ao esforço de Manoel
do Plano Nacional de Juventude.
Rangel na Ancine
Também houve contribuições importantes dos comunistas nas frentes de Cultura,
com a verdade, e as que se realizaram pelos responEducação, Saúde, Igualdade Racial, Mulheres e
sáveis das obras aparentemente seguiram critérios leCiência e Tecnologia. Nessas áreas houve destacada
gais e com diálogo com a sociedade.
atuação no diálogo com a sociedade e dos movimenNa Agência Nacional do Petróleo (ANP), a atuatos sociais através dos conselhos e das conferências
ção dos comunistas foi marcada pela defesa da sonacionais. A democracia é uma das marcas mais imberania, seguindo uma linha política de tradição em
portantes do governo Dilma Rousseff.
defesa das riquezas nacionais. Ainda que sob presOs exemplos citados, diante de muitos outros essões privadas e interesses multinacionais, a atuação
paços institucionais de que participamos em esferas
nessa agência reguladora foi da manutenção do conmunicipais, estaduais e federal, demonstram que partrole dessa riqueza estratégica pelo Estado.
ticipar de governos foi uma ação de caráter estratégico,
A partir das novas descobertas de campos petromesmo diante de um Estado organizado para atender
líferos na camada do pré-sal dos mares de demaràs classes dominantes, demarcando campo político e
cação territorial brasileira, o marco regulatório da
buscando alternativas a favor do Brasil e do nosso povo.
exploração se fez necessário. A opinião do PCdoB,
Os desafios da frente institucional após as eleiatravés do engenheiro Haroldo Lima, foi de preserções de 2014 e o início do novo governo Dilma Rouvação dos interesses nacionais.
sseff são como enfrentar a redução do nosso espaço
A atuação na Agência Nacional de Cinema
parlamentar federal, a vitória histórica do comunista
(Ancine) teve como principal legado a elaboração e
Flávio Dino no Maranhão e a alteração do espaço do
regulamentação de uma nova lei para o audiovisual,
primeiro escalão do governo federal.
determinando uma nova grade de programação nas
A redução no número de cadeiras parlamentatevês e nos cinemas com conteúdos brasileiros, uma
res de 15 para 10 deputados – mesmo com a posse
modificação a favor da obrigatoriedade de transmisimediata de três suplentes, com uma bancada de 13
são de conteúdo nacional – ultrapassando uma visão
aguerridos deputados e deputadas e a redução de
subdesenvolvida de prevalecer a transmissão de condois para uma senadora – significou uma perda imteúdo estrangeiro.
portante para o PCdoB. O resultado negativo não tem
Essa medida teve dois efeitos correlatos: O deum único fator, mas múltiplas questões relacionadas
senvolvimento da produção cultural audiovisual geàs realidades locais de disputa política. Um elemento
nuinamente brasileira que possibilita mostrarmos
político central pode ter sido o quadro acirrado de
mais a nossa cultura e a chance de o povo se identidisputa com forte reação das forças conservadoras.
ficar mais com o que assiste. A medida impactou na
Vitória importante que se destaca pela resistência
indústria cultural nacional ampliando a produção de
política foi a eleição do ex-ministro Orlando Silva,
programas e o aumento do emprego para toda a rede
que retoma sua trajetória após ter sofrido fortes atade trabalhadores do setor. A reação contra a medida
ques das classes dominantes, destacadamente dos
foi grande, sobretudo das operadoras de tevê e cameios de comunicação, no episódio do seu afastanais multinacionais que atuam no Brasil.
mento do Ministério do Esporte. As acusações con-
59
Ed. 135 – Março/Abril 2015
tra ele se demonstraram casuísticas,
PCdoB no governo federal é uma
infundadas e utilizadas pela exclusimudança qualitativa e os desafios
Os comunistas
va disputa política.
parecem ser maiores diante das
se constituem
Outro resultado importante foimensas dificuldades que o Brasil
ram as ampliações das cadeiras nas
ainda tem nessa área. Estamos dinuma força real
Assembleias Legislativas elegendo
retamente ligados aos rumos do deda sociedade,
25 deputados estaduais em 17 essenvolvimento nacional.
tados. Esse resultado possibilita um
É neste contexto que se
justamente num
fortalecimento do Partido de forma
encontram as condições de acuperíodo de intensa
descentralizada e uma ampla ação
mulação de forças dos comunistas
disputa política
política local.
em âmbito federal. Os comunistas
A mais importante conquista dos
se constituem numa força real da
entre forças
comunistas, no entanto, foi a eleição
sociedade, justamente num períoprogressistas e
de Flávio Dino para o governo do Mado de intensa disputa política entre
ranhão. Essa vitória tem duplo sentiforças progressistas e reacionárias.
reacionárias
do: ter elegido o primeiro governador
A principal tarefa dos comuniscomunista na história do Brasil e a
tas está na luta pela superação da
vitória em um estado periférico, com extraordinárias
orientação neoliberal e na formação de um Estado
dificuldades sociais e dominado por uma oligarquia
com estrutura e organização que sirvam para um
poderosa. A eleição de Dino tem um sentido histórico
projeto popular e democrático capaz de ir além das
importante, semelhante à de Lula em 2002, porque
políticas de governo, implantando uma estrutura sórepresentou a participação da corrente política brasilida de transformação histórica.
leira mais radical nas propostas de mudanças.
A vitória dos comunistas no Maranhão foi possí* Márvia Scárdua é assistente social especializada
em Democracia Participativa, República e
vel pela capacidade e liderança de um quadro como
Movimentos Sociais pela Universidade Federal de
Flávio Dino, pela ousadia política, capaz de driblar
Minas Gerais. Foi diretora da executiva nacional
todas as tentativas de cooptação e destruição proda UNE e membro do Conselho Nacional de
movidas pelas oligarquias locais e de organizar uma
Juventude. Representou a juventude Brasileira
ampla união de forças políticas que pudessem enna Reunião Especializada de Juventude (REJ) no
frentar o que há de mais atrasado no Brasil.
Mercado Comum do Sul (Mercosul). Foi diretora de
Entre as perdas consistentes no Parlamento FePolíticas Públicas da Fundação Maurício Grabois.
deral e a conquista do governo do Maranhão, podeOrganizadora dos livros Políticas Públicas para
mos dizer que os comunistas brasileiros acumularam
um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento
força estratégica para transformar o Brasil. A opção
e Governar para um Novo Projeto Nacional de
é o Socialismo e para alcançarmos essa mudança
Desenvolvimento.
extraordinária é preciso acumular forças. Eis uma
oportunidade: mostrar ao Brasil que os comunistas
com inventividade, capacidade e compromisso com
Referências bibliográficas
o povo são capazes de oferecer condições de desenvolvimento e progresso.
PCdoB. União do Povo Contra o Neoliberalismo.
O maior desafio institucional que os comunistas
Documento do 9º Congresso do Partido Comunista do
têm pela frente é construir sua trajetória no MinisBrasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 1ª edição. 1998.
tério da Ciência Tecnologia e Inovação, com Aldo
______. Resolução Final da 9ª Conferência Nacional do
PCdoB, em: www.vermelho.org.br/biblioteca.
Rebelo conduzido à nova tarefa. A presidente Dilma
______. Nação Forte. Rumo ao Socialismo. Documento de
Rousseff afirmou que seu governo tem entre seus
Resoluções do 12º Congresso do Partido Comunista do
principais desafios a questão da inovação. Os comuBrasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 1ª edição. 2010.
nistas estão no centro dos desafios do novo gover______. Avançar nas Mudanças. Documento do 13º
no. A capacidade política, afeito às novas ideias e o
Congresso do Partido Comunista do Brasil. São Paulo:
diálogo são características de Aldo Rebelo. A orienAnita Garibaldi, 1ª edição. 2014.
tação da construção de um Novo Projeto Nacional
RABELO, Renato. Ideias e Rumos. São Paulo: Anita
Garibaldi, 1ª edição. 2009.
de Desenvolvimento, matriz política do PCdoB, está
SCÁRDUA, Márvia (org.). Governar para um Novo Projeto
diretamente ligada a essa nova posição.
Nacional de Desenvolvimento. São Paulo: Anita Garibaldi,
A Ciência, Tecnologia e Inovação são estratégi1ª edição. 2012.
cas para o desenvolvimento do Brasil. A posição do
60
Teoria
Pós-modernidade,
globalização e crise dos
partidos políticos
1
Antônio Levino*
No âmbito do senso comum está amplamente difundida a
ideia de que, no contexto da pós-modernidade, a emergência
dos movimentos sociais teria provocado uma elevação da sua
relevância em detrimento do modo tradicional de ação política
pela via das organizações partidárias. Na verdade, esta é uma
questão antiga que remonta aos primórdios do capitalismo,
época na qual se inaugurou um vigoroso embate ideológico
entre a burguesia emergente e a nascente classe operária, que
então dava os primeiros passos rumo à construção de um projeto
próprio de sociedade. Na atualidade, o crescente debate sobre
o tema guarda uma estreita relação com a crise do pensamento
ocidental e a reformulação da teoria marxista.
61
Ed. 135 – Março/Abril 2015
1. Pós-modernidade e crise da
representação partidária
o qual as agremiações sindicais já eram instrumentos
de luta suficientes.
Na verdade, tanto num extremo quanto noutro
da contenda havia equívocos. Isso porque, se para os
Muito se discute sobre as formas tradicionais de orgasindicalistas o movimento era tudo e o objetivo nada,
nização terem perdido a capacidade de representar os quespara os militantes partidários, o objetivo era tudo e o
tionamentos e defender os interesses coletivos da sociedade.
movimento nada. Essa contradição foi sendo superaá nos primeiros congressos mundiais
da aos poucos, à medida que parcelas cada vez maiodo movimento operário, a necessidares de trabalhadores iam se convencendo de que, para
de de uma organização revolucionáalém das reivindicações corporativas, era necessário
ria dos trabalhadores se constituiu
ser consequente na disputa pelo poder enquanto os
numa das principais polêmicas. Desativistas partidários se convenciam de que a luta por
de então, o assunto transmutou, mas nunca saiu de
reformas contribuía para a elevação do nível de conspauta sendo a crise atual de representatividade dos
ciência de classe do proletariado alimentando, assim,
partidos políticos o momento de maior acirramento
a perspectiva revolucionária da disputa pelo poder. A
da contradição estabelecida entre as correntes que se
jornada de trabalho de oito horas diárias e o descanformaram em torno do tema.
so remunerado semanal são exemplos de conquistas
No alvorecer do capitalismo, o pensamento conacumuladas na longa trajetória do movimento opeservador procurava difundir a ideia de que os partidos
rário que chegou até a “tomar o céu de assalto”, chejá existentes correspondiam plenamente aos interesgando ao poder pela via revolucionária. Se a história
ses de toda a sociedade, ao mesmo tempo em que os
finalmente deu razão a Marx não caberia indagar o
trabalhadores acreditavam que as
que teria levado a crise dos partidos
organizações sindicais bastavam
políticos como forma de organizacomo instrumento de mobilizações
ção/representação dos trabalhadoPensam alguns
de massa para a conquista dos seus
res?
que o nível atual
direitos. Desde então, Marx alertaPensam alguns que o nível atual
va que era impossível a existência
de complexidade atingido pela sode complexidade
de um partido sem classe ou que
ciedade produziu novos padrões de
atingido pela
representasse todas as classes. Anrelações sociais, diante das quais os
tes de tudo, afirmava que os parsociedade produziu
partidos foram perdendo a capatidos políticos eram organizações
cidade de formular respostas que
novos padrões de
historicamente determinadas, que
atendam aos interesses da maioria
relações sociais,
respondiam às aspirações de poder
enquanto as outras formas de ordos segmentos que representavam.
ganização passaram a desenvolver
diante das quais
Daí a impossibilidade de satisfazer
mecanismos de mobilização mais
os partidos
interesses antagônicos.
eficientes e bem mais identificados
Coube justamente a Marx e Encom as aspirações da sociedade ciforam perdendo
gels formularem a síntese da necesvil. Nesse quadro, as Organizações
a capacidade de
sidade histórica de um partido revoNão Governamentais (ONG) reprelucionário, realizada no Manifesto do
formular respostas
sentam bem a crença amplamenPartido Comunista, no qual sustentate difundida de que a globalização
ram a tese de que somente dispontransformou o planeta numa grando do próprio partido a classe operária poderia consde aldeia onde o Estado e a sociedade se interpenetruir uma nova sociedade baseada na justiça social.
tram tornando anacrônicas as ideias de classe e conEra esta a utopia que animava as grandes lutas daflito de classes bem como de pregação da necessidade
quela época. A proposta marxista consistia numa artido proletariado de pugnar pelo poder.
culação estratégica entre os movimentos trabalhistas
Os partidos são de fato inócuos numa realidade
liderados pelos sindicatos e os objetivos revolucionáem que a consciência de classe e a perspectiva do porios anunciados pelos partidos. Assim, enquanto essa
der se esvaem na busca incessante do possível como
acepção era assimilada, gradativamente foram supese estivessem realizando o ideal. Esta é uma realidade
radas as limitações do “Cartismo”, um movimento
em que se propõe abraçar a radicalidade democrática
que pregava a união dos trabalhadores em torno de
como um fim e não mais como um meio, substituinuma plataforma unitária (uma carta de princípios),
do as formas tradicionais de atuação e/ou organização
assim como as limitações do “Trade-unionismo” para
pela recomendação geral de se “pensar globalmente
J
62
Teoria
e agir localmente”, renunciando à perspectiva de
intervenção política revolucionária. O problema é
que as ONGs restringem
sua eficiência mobilizadora às questões temáticas
sem ter como finalidade
a alteração do poder de
mando. Mesmo assim,
atuando ligadas em redes
ou isoladas em pequenos
nichos aumentaram a sua
influência ao se identificarem com a defesa das
bandeiras negligenciadas
pelos partidos políticos,
que se ocuparam cada vez
mais com a luta pelo poder
deixando de lado a micropolítica do cotidiano.
Junho de 2013: presença de militantes partidários incomodou parte dos manifestantes
2. Pós-modernidade, marxismo e
revolução
Quando foi que os partidos perderam a noção de que os
meios e os fins se coadunam tal qual ensinava Marx?
Num excelente artigo publicado na revista Monthly
Review, de julho de 1995, traduzido e republicado pela
Crítica Marxista (vol.1, nº 1 de 1996), Ellen Meiksins
Wood lança luzes sobre o confronto entre o marxismo e a agenda pós-moderna promovendo um resgate
histórico das crises econômicas do capitalismo e sua
repercussão política. A autora começa por identificar
um pessimismo na cultura de nossos dias, que tem
raízes no período que antecede a Primeira Guerra
Mundial, descrito por Oswald Spengler, em 1918, como um momento em que se deu o declínio do Ocidente e a passagem para a pós-modernidade.
Spengler anunciou o fim da civilização ocidental
e seus valores dominantes ressaltando que, na sua
época, os vínculos e tradições que uniram a sociedade
estavam se decompondo. Os laços cotidianos de solidariedade se desagregavam juntamente com unidade de
pensamento e cultura. Para ele, a civilização do Ocidente passava do outono do iluminismo ou esclarecimento
para o inverno do individualismo e niilismo cultural.
Spengler escreveu sobre o declínio do Ocidente durante a Primeira Guerra, porém, as suas ideias foram fortemente recuperadas no pós-Segunda Guerra quando,
em 1959, Wriht Mills anunciava o fim da idade moderna e a sua substituição por um período pós-moderno,
no qual toda a perspectiva histórica que caracterizava
a cultura ocidental deixava de ser relevante. Mills pro-
clamava que o Liberalismo e o Socialismo – ideologias
fundadas na fé iluminista do progresso unificado da
razão e da liberdade – haviam falido como explicações
do mundo e de nós mesmos. Só restava concluir, então,
que Marx estava ultrapassado.
Ellen Meiksins Wood arriscou um palpite sobre por
que Spengler e Mills se tornaram pessimistas. A conjuntura política entre Spengler (1918) e Wrigt Mills
(1959) fora marcada por uma catastrófica história de
depressão, guerra e genocídio, seguida da promessa de
prosperidade material do Welfare State. Na explicação
de Wood, a época de Spengler excedeu os piores temores da humanidade e a de Mills suas mais visionárias
esperanças. Spengler escreveu num tempo de guerra,
revoluções e difusão da democracia de massas que
ameaçavam as classes dominantes. Mills escreveu na
calmaria dos anos 1950, na maré montante da prosperidade capitalista e clima de apatia política.
Mills ensinava estudantes que, mesmo vivendo
sob a guerra fria e ameaça nuclear, podiam aspirar
por um futuro material particularmente brilhante.
A era de ouro do capitalismo começava a convencer
acadêmicos de que problemas da sociedade ocidental
tinham sido solucionados. Preponderavam as condições de harmonia social e de que a realização do progresso do iluminismo estava próxima de ser concluída. Nada melhor era possível, necessário ou desejável
e, diante desse quadro, era difícil perceber a outra
América que não participava do banquete.
Segundo Meiksins Wood, a morte do otimismo
de Mills resultava, ao mesmo tempo, do sucesso e do
fracasso. Os objetivos do iluminismo, por um lado, tinham sido efetivamente alcançados na forma da racio-
63
Ed. 135 – Março/Abril 2015
nalização da organização social e política, no progresso
têmica e suas leis de movimento, mas somente tipos
científico e tecnológico inconcebível ao mais otimista
diferentes de poder, opressão, identidade e discurso.
sonhador iluminista e na difusão do ensino universal
No entendimento de Wood, rejeitam-se as antigas
nas sociedades ocidentais avançadas. Por outro lado,
grandes narrativas como conceitos iluministas de proesses avanços não fizeram aumentar a racionalidade
gresso e qualquer ideia de causalidade histórica intesubstantiva dos seres humanos. A
ligível e toda ideia de fazer história.
racionalização, burocracia e tecnoloPara os pós-modernos, só existiriam
É preciso
gia moderna restringiram mais que
diferenças anárquicas desconectadas
aumentaram a liberdade humana,
e inexplicáveis, conclui. Pela primeicompreender que o
uma vez que a racionalidade sem rera vez se teria produzido uma teopessimismo político
lação com liberdade produzia Robôs
ria de mudança de época histórica
Felizes que se adaptavam a organizabaseada na negação da história – o
tem origem numa
ções gigantescas e avassaladoras soque pode ter gerado um paradoxo na
visão otimista da
bre as quais não se exercia controle
pós-modernidade marcada por uma
prosperidade e
algum. Robôs Felizes seriam pessoas
negação da história associada ao pesa quem não se podia atribuir anseio
simismo político. Se não há sistemas
das possibilidades
de liberdade ou desejos de razão.
na história suscetíveis a uma análise
capitalistas que
A teoria social do século XX se
causal não se pode aspirar por algum
ocupava do pessimismo e da alienatipo de oposição unificada, nem peestão presentes nos
ção. O florescimento do capitalismo
la emancipação humana geral, nem
traços que marcam
do bem-estar e do consumo de maspela contestação ao capitalismo do
as atitudes póssas levou a classe operária a deixar
tipo socialista. O máximo pelo que se
de ser força de oposição enquanto
pode aspirar é um conjunto de resis-modernas atuais
certas vertentes marxistas elevaram
tências particulares e separadas.
os estudantes e intelectuais à condiÉ preciso compreender, no enção de agentes da “revolução cultural”. Há muitas setanto, que o pessimismo político tem origem numa
melhanças entre a época de Mills e a nossa. Nos temvisão otimista da prosperidade e das possibilidades capos atuais em que o conservadorismo eufórico chega
pitalistas que estão presentes nos traços que marcam
a proclamar o fim da história e o triunfo definitivo do
as atitudes pós-modernas atuais. Vive-se, hoje, um pecapitalismo, a esquerda fala em fim da era da pós-moríodo que se assemelha à época de ouro do capitalismo,
dernidade, repetindo o argumento de Mills, quando
no qual o consumismo adquire uma multiplicidade de
decreta a segunda morte dos valores do iluminismo.
padrões que levam à proliferação de estilos de vida, e
Seguindo os argumentos de Wood, a visão de declínio
também não se reconhece mais a crise estrutural no
de época levaria à convicção de uma ruptura radical
capitalismo nem se assimila qualquer impacto dela. Os
com o passado e com tudo o que já foi dito. É preciso
pós-modernos acreditam que não se pode transformar
renegar a história e o fato de que todas as rupturas do
nem sequer entender o sistema, e uma vez que não poséculo XX têm a marca da crise do capitalismo, o sistedem criticar o sistema nem se opor a ele, relaxam e
ma das mil mortes.
aproveitam. Teóricos sabem que nem tudo está bem,
Para Meiksins Wood, os novos pós-modernos insismas não buscam entender a pobreza e o trabalho insetem na “diferença” e na natureza fragmentada da reaguro. Para Mills, o problema central de sua época era
lidade e do conhecimento humano. São insensíveis à
que não se podia esperar que robôs felizes ansiassem
história e aos apelos reacionários daqueles que atacam
por liberdade e razão, já os pós-modernos atuais conos valores do iluminismo proclamando o irracionalissideram valores do iluminismo como o próprio problemo. Teorias anteriores ainda se baseavam em alguma
ma. A pós-modernidade revela a submissão derrotista
concepção particular de história. Wood esclarece que,
à força incontrolável do capital e a rendição e exaltação
para Mills, a análise histórica no âmbito do iluminisao consumismo. Se Mills sustentava visão elitista de
mo ressaltava o espaço de liberdade humana de forque trabalhadores estavam sujeitos a virar robôs deimular opções assumindo como amplos os limites da
xando aos estudantes e intelectuais o papel da realizapossibilidade histórica – antítese das concepções pósção de levantes, hoje, os intelectuais são a própria cons-modernas atuais. Já os pós-modernos negam a exisciência teórica do robô feliz. Como não são compatíveis
tência de conexões estruturais e a própria possibilidaas expectativas de Robôs Felizes e Críticos Sociais, ainde causal. Estruturas e causas foram substituídas por
da é possível sonhar com um futuro diverso.
fragmentos e contingências. Não existiria uma coisa
O fato é que o modismo pós-moderno repete o
chamada sistema social com sua própria unidade sistema do derrotismo, mas convence porque responde
64
Teoria
às condições reais do mundo contemporâneo. A esquerda pós-moderna, por exemplo, não enfrenta o
capitalismo e se apresenta como pós-marxista ou pós-estruturalista buscando enfatizar os temas da hora
com ênfase na linguagem, na cultura e no “discurso”
em contraponto às preocupações “economicistas” e
da economia política, ou seja, cedendo ao argumento
de que a linguagem é tudo o que podemos conhecer
sobre o mundo, já que não temos acesso a nenhuma
outra realidade. A esquerda chega a rejeitar o conhecimento “totalizante” e dos valores “universalistas”,
incluindo: concepções ocidentais de racionalidade,
ideias gerais de igualdade liberal ou socialista e a concepção marxista de emancipação humana. A moda
ditada é a da ênfase na “diferença” e em identidades
particulares e diversas como gênero, raça, etnicidade.
As identidades são tomadas como variáveis incertas
e frágeis, dificultando a consciência baseada na solidariedade e nas ações coletivas fundadas na “identidade” social comum ou de classe – o que termina por
exaltar o repúdio às “grandes” narrativas como ideias
de progresso incluindo a teoria marxista de história.
Meiksins Wood afirma que o marxismo é contestado por privilegiar o modo de produção, determinante histórico e classe em contraposição à identidade,
ou então determinantes econômicos e materiais em
contraposição à construção discursiva da realidade.
O pós-modernismo se resume na ênfase da natureza
fragmentada do mundo e do conhecimento humano
e na impossibilidade de qualquer política emancipatória baseada em algum tipo de visão “totalizante”. A
própria crítica ao capitalismo está excluída, pois não se
pode dizer que o capitalismo exista enquanto sistema
totalizante. Se a política, no sentido tradicional do termo (poderes abrangentes de classe e/ou Estado ou a
oposição a estes), está eliminada, toma lugar a “política de identidade” ou a do pessoal enquanto político.
Em resumo, a pós-modernidade é caracterizada por
um ceticismo epistemológico e profundo derrotismo
político, entretanto é preciso reconhecer a superação de
noções tradicionais de progresso fundado no ideal iluminista e admitir a emergência de identidades diversas
da classe social e o ressurgimento de “identidades” nacionalistas. Também é necessário perceber as mudanças estruturais no interior da própria classe operária e
suas divisões raciais e sexuais e reconhecer a importância da linguagem e cultura no mundo dominado pelos
símbolos da comunicação de massas e pela superestrada da informação. Correto seria oferecer explicações
históricas para essas questões ao invés de apenas se
submeter a elas adaptando-se ideologicamente. É preciso desafiar os limites impostos à ação de resistência
e responder ao mundo atual como críticos e não como
robôs felizes. Existe uma aliança entre o triunfalismo
capitalista e o pessimismo socialista. A vitória da direita reflete na esquerda como uma aguda contração das
aspirações socialistas. A esquerda precisa, portanto,
realizar uma crítica ao capitalismo e não se entregar às
resistências locais e particulares. “Não se trata apenas
de saber como agir contra o capitalismo, mas de pensar
contra ele”, reflete Ellen Meiksins Wood.
* Antônio Levino é doutor em Saúde Pública,
médico, professor da Universidade Federal
do Amazonas (Ufam), pesquisador da Fiocruz,
membro do Comitê Central e presidente
municipal do PCdoB em Manaus/AM.
NOTA 1 : Na construção deste texto fez-se uso
livre das ideias contidas no artigo “Em defesa da
história: o marxismo e a agenda pós-moderna”
(tradução de João Roberto Martins Filho). In:
revista Crítica Marxista, vol. 1, nº 3, 1996.
Os conceitos sobre partidos políticos foram
consultados no Dicionário de Política, de Norberto
Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino.
5ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1993.
A segunda parte deste artigo será
publicada na edição 136 (maio/junho) de
Princípios, mas a íntegra do texto já está
disponível no site da revista:
www.revistaprincipios.com.br
Notas
(1) ARBEX JR., José. Terrorismo: um legado da história, 9 de outubro de
2001, 3 páginas – que circulou na Internet em língua espanhola, sem
maiores referências.
(2) Aos que queiram conferir essa passagem bíblica, podem fazê-lo em
Juízes, capítulo 16, versículos 23 a 31, p. 323. Bíblia, tradução de Almeida.
São Paulo: Vida, 1981.
(3) Editorial da Revista Carta Capital, edição 833 de 21-01-2015, p. 1418, de Mino Carta.
(4) SAFATLE, Vladimir. Carta Capital, edição citada, p. 27.
(5) MAIEROVITCH, Wálter Fanganiello. Carta Capital, edição citada, p. 19.
(6) CARTA, Gianni. “Morre por mim, França”. In: Carta Capital, edição citada, p. 20-23.
https://bouamamas.wordpress.
(7)
BOUAMAMA,
Said.
In:
com/2015/01/11/lattentat-contre-charlie-hebdo-loccultation-politique-et-mediatique-des-causes-des-consequences-et-des-enjeux/
de 25-01-2015.
(8) Blog Moon of Alabama, de 7 de janeiro de 2015 http://www.moonofalabama.org/2015/01/charlie-hebdo-the-chickens-come-home-to-roost.html#comments
(9) Artigo de Tony Cartalucci, publicado em http://landdestroyer.blogspot.ca/2015/01/france-armed-terrorists-that-struck.html de 12 de
janeiro de 2015.
(10) BERNABUCCI, Cláudio. “A palavra do estadista solitário”. In: Carta Capital, edição citada, p. 24-26.
(11) Artigo publicado em 8 de janeiro de 2015 em http://vineyardsaker.
blogspot.com.br/2015/01/i-am-not-charlie.html
(12) Artigo de Wayne Madson, obtido em http://www.strategic-culture.
org/news/2015/01/11/curtain-rises-another-act-continual-global-war-terror-play.html publicado no dia 21 de janeiro de 2015.
65
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Pequena história de
um século da Grande
Revolução de Outubro
Bernardo Joffily*
Combatentes que vão e voltam do front na Guerra dos Bálcãs, que a Internacional julgava um crime
Princípios publica nesta edição o segundo artigo
da série de textos sobre a Revolução Russa, que
completará 100 anos em 2017. Escrita pelo jornalista
Bernardo Joffily, a série de textos procura contribuir
com o debate sobre o significado e as lições deste
que foi um dos principais acontecimentos da história
contemporânea. No artigo desta edição, ainda focado
no período anterior à grande Revolução de Outubro,
Joffily aborda importantes episódios que, a partir da
eclosão da primeira guerra mundial, contribuíram para
fortalecer o movimento revolucionário na Rússia
66
História
Soldados russos festejam
a Revolução de Fevereiro,
crendo que escapariam em
breve da guerra
A
Grande Guerra, traição social-democrata,
Revolução de Fevereiro, sovietes
Grande Guerra de 1914-1918 (só
mais tarde batizada de Primeira
Guerra Mundial) envolveu 60 milhões de soldados, dos quais 14 milhões russos. Esmerou-se em inovações mortíferas da indústria bélica
– a aviação de combate, os tanques e, claro, as armas
químicas, artefatos de destruição em massa banidos
como crimes de guerra pelo Protocolo de Genebra
(1925). Seus horrores inspiraram o romance-testemunho-denúncia Nada de novo no front, do ex-combatente
alemão Erich Maria Remarque (1898-1970) – que em
1933 teria seus livros queimados pelo Terceiro Reich.
A carnificina custou perto de 10 milhões de vidas
– um terço delas no Império Russo. E foi a responsável direta pelas duas revoluções russas de 1917, a
de Fevereiro e a de Outubro.
Entre as baixas fatais da Grande Guerra está a
Internacional Operária (ou Internacional Socialista,
ou Segunda Internacional). A associação operária
marxista fora fundada no Congresso de Paris, em
1889, por delegados de vinte países, numa iniciativa
de Friedrich Engels. Morreu em 1916, trucidada ingloriamente nas trincheiras.
Esplendor e miséria da Segunda
Internacional
A Segunda Internacional fora o berço dos partidos
operários de massas e, em grande medida, formatara
o paradigma dos partidos políticos da modernidade.
Forjara marcos de dimensões históricas como o 1º de
Maio – como Dia Internacional de Luta da Classe Trabalhadora – e do 8 de Março – Dia Internacional da
Mulher. Fincara na arena política do planeta a bandeira vermelha da classe trabalhadora e do marxismo (já
que a Primeira Internacional, liderada por Karl Marx
em 1864-1872, fora apenas um ensaio pioneiro).
Mas a Internacional Socialista fora se deixando
acomodar pelo período de paz e normalidade insti-
67
Ed. 135 – Março/Abril 2015
tucional em que vivia
e progredia. Desde a
Guerra Franco-Alemã
de 1870 (que aliás servira de estopim à Comuna de Paris) a Europa
não conhecia conflitos
bélicos, confinados na
periferia colonial e semicolonial. O capitalismo vivia uma fase de
orgulhosa expansão, e
com ele crescia a classe
operária. As eleições se
sucediam ordeiramente
e a cada uma delas subia a votação nos partidos operários social-democratas filiados à
Internacional.
Lênin desembarca na Estação Finlândia de Petrogrado e discursa à
Nessa quadra relatimultidão: “Viva a Revolução Socialista!
vamente pacífica, fora
prosperando também o oportunismo nas filas marconflagração mundial), a Internacional proclamou que
xistas. Entrara em cena o revisionismo – tendência a
os operários de todos os países consideravam um crirenegar a essência revolucionária
me atirar uns contra os outros para
do marxismo, mantendo-o apenas
aumentar os lucros dos capitalistas.
Os bolcheviques
formalmente. A revolução ia se esMas quando o conflito mundial
russos foram a
vanecendo como uma piedosa utoeclodiu, os social-democratas em
pia, ou o resultado de uma paulasua grande maioria esqueceram
principal exceção
tina marcha de eleição em eleição.
o compromisso internacionalista.
(...), combatendo
O social-democrata alemão Eduard
Com muito raras e honrosas exceBernstein (1850-1932), fundador
ções, mais do que depressa votaram
com firmeza a guerra
do “socialismo evolucionista” e deos créditos de guerra e se juntaram
que acusavam de
cano dos revisionistas, pregava que
à “sua” burguesia no esforço bélico.
imperialista de
“o movimento é tudo, o objetivo
Essa atitude foi um golpe de
final, nada”.
morte
na Segunda Internacional.
rapina. No início,
Para começar, ela quebrava a espinão foi fácil: a
Bancarrota da Segunda
nha da unidade dos partidos filiados,
Internacional
que passaram exatamente a atirar
histeria “patriótica”
uns contra os outros, pela “causa”
embriagou parte da
Com seu paroxismo de horrodas “pátrias” da Tríplice Entente
res, infâmia, cobiça, e hipocrisia, a
(Inglaterra, França, Rússia) ou dos
classe trabalhadora
Grande Guerra trocou a fase de deImpérios Centrais (Alemanha, Áussenvolvimento pacífico por outra,
tria-Hungria, Turquia). Além disso,
adversa para as crenças gradualistas. Abria-se uma
ela contradizia princípios solenemente proclamados e
crise revolucionária. Soava a hora da verdade para
gerou na associação uma barafunda de contradições.
a consistência revolucionária dos social-democratas.
Uma ala direita aderiu abertamente ao “socialA guerra não foi algo inesperado. Havia anos seu
chauvinismo” (o termo deriva de Nicolas Chauvin,
odor empestava o ambiente. E era público o comprofigura lendária na França do século 19, símbolo
misso antibelicista da Segunda Internacional. Já em
burlesco de um ultranacionalismo cego e xenófobo);
1910, uma resolução do seu Congresso de Copenhaoutra, inclusive Karl Kautsky (1854-1938), líder da
gue obrigava os socialistas a votarem nos parlamentos
poderosa cidadela social-democrata alemã, tentou
contra os créditos de guerra. No Congresso da Basileia,
equilibrar-se numa posição centrista; não votou nos
durante a guerra dos Bálcãs (1912, um prenúncio da
créditos de guerra, nem contra, preferindo a abstenção.
68
História
A atitude dos bolcheviques: “Guerra à
guerra”!
Os bolcheviques russos foram a principal exceção
(junto com os deputados socialistas da Sérvia, os búlgaros “estreitos”, opostos aos “amplos”, e um único
deputado da numerosa bancada social-democrata
alemã, Karl Liebknecht [1971-1919]), combatendo
com firmeza a guerra que acusavam de imperialista
de rapina. No início, não foi fácil: a histeria “patriótica” embriagou parte da classe trabalhadora, que
nos primeiros dias, participou de manifestações pela
guerra. Agitadores que o Partido enviou ao front, para denunciar a guerra, chegaram a ser linchados por
massas de soldados que viam neles traidores a soldo
dos “bárbaros prussianos”.
Mesmo assim o Partido Bolchevique empunhou
sem vacilações a bandeira da luta contra a guerra. Ele
lançou as palavras de ordem de “transformar a guerra
imperialista em guerra civil” e “pela derrota do próprio
governo na guerra imperialista”. Sua bancada na Du-
ma (Parlamento) se opôs aos créditos de guerra e por
isso foi deportada para a Sibéria. O Partido organizou
o boicote operário aos “Comitês da Indústria de Guerra”, pregou a confraternização entre os combatentes
das trincheiras e criou células bolcheviques entre soldados e marinheiros, inclusive no poderoso complexo
fortificado de Kronstadt que guarnecia Petrogrado.
Lênin desenvolveu do exílio gigantesco trabalho para fundamentar a linha bolchevique. Datam dessa época
obras como A bancarrota da Segunda Internacional, O socialismo e a guerra e O imperialismo, fase suprema do capitalismo.
Esta última, em especial, desvenda os mecanismos econômicos que engendraram a guerra, com a passagem
do sistema burguês ao estágio dos grandes monopólios
financeiros em luta pela partilha do mundo.
A Revolução de Fevereiro derruba o
czarismo
O ardor patrioteiro arrefeceu em todos os países à
medida que a guerra exibia seus horrores e sua real
Passeata bolchevique de julho de 1917; a faixa diz: “Abaixo os ministros do capitalismo. Todo poder aos sovietes.”
69
Ed. 135 – Março/Abril 2015
natureza. Na Rússia a desilusão foi especialmente forcipe George Lvov (1861-1925) e, após julho, pelo
te, devido ao trabalho bolchevique, mas também às
deputado social-revolucionário de direita Alexander
sucessivas derrotas militares do czarismo frente à AleKerensky (1881-1970). Do lado oposto estavam os
manha, que ocupou a Polônia e parte do Báltico. EnSovietes de Operários e Soldados, que se propagaquanto os bens de consumo escasseavam, até na caram por todo o país e eram ao mesmo tempo um
pital e em Moscou, a família imperial permanecia sob
instrumento da revolução e um órgão de poder, uma
influência do sinistro monge Grigori Rasputin (1869ditadura do proletariado e dos camponeses.
1916); o ministro da Guerra Vladimir Sukhomlinov
Essa oposição, por sua vez, também continha duera preso por espionagem pró-alemã; e a burguesia
biedades. O Soviete de Petrogrado avalisou o Governo
conspirava para substituir o czar por
Provisório, pois no início era doseu irmão caçula Miguel Romanov.
minado por social-revolucionários
A ebulição revolucionária ree mencheviques – os bolcheviques
A Revolução
tornou, tal como em 1905, mas
tinham apenas dois de seus 14 diridesbaratou o
com três marcantes diferenças. Os
gentes. O bolchevismo também era
bolcheviques já contavam com um
minoritário no Soviete de Moscou,
aparato repressivo
partido próprio, livres da incômoda
prevalecendo apenas em uma ou
czarista e garantiu,
coabitação com os mencheviques.
outra cidade menor, como IvanoO czarismo fora isolado, encurravo-Vosnessensk e Krasnoiarsk. O
pela primeira vez
lado, desmoralizado. E não era só
Partido Bolchevique era ainda um
na Rússia, ampla
a Rússia que se convulsionava, a
partido de quadros, com 40 mil a 45
guerra derrubaria igualmente os
mil membros.
liberdade de
Impérios Alemão, Austro-Húngaro
A Revolução desbaratou o apaimprensa, reunião,
e Otomano.
rato repressivo czarista e garantiu,
manifestação e
O ano de 1917 começou com
pela primeira vez na Rússia, ampla
uma greve de um terço dos operáliberdade de imprensa, reunião,
organização
rios de Moscou. Em 18 de fevereiro
manifestação e organização. Em
cruzaram os braços os operários da
cinco dias, o Pravda voltou a circucolossal usina Putilov, em Petrolar. Os perseguidos pela autocracia
grado. Dia 23 (8 de março no calendário gregoriano),
voltaram a Petersburgo e à ação política aberta. Joas operárias da capital, sob liderança bolchevique,
sef Stálin (1879-1953), Jakob Sverdlov (1885-1919)
saíram à rua contra a fome, a guerra e o czarismo, e
e Lev Kamenev (1883-1936) deixaram o degredo
com apoio de uma greve na cidade. A greve geral foi
na Sibéria, Leon Trótsky (1879-1940) e Nicolai Buganhando contornos de insurreição, operários tomakharin (1888-1938), o exílio em Nova Iorque. Lêvam para si as armas da polícia. No dia 25 uma Comnin, e vinte outros exilados russos na Suíça, após
panhia militar em Pavlovsk abriu fogo, não contra
complicadas negociações com Berlim, regressaram
os grevistas mas para defendê-los da cavalaria que
no “trem blindado” alemão, com um único vagão e
os atacava.
status extraterritorial – o que valeu-lhe não poucas
No dia 27 os soldados sublevados saltaram de 10
acusações de “agente do kaiser”.
mil para 60 mil. Os presos políticos foram libertados,
“Teses de Abril”: “Cinzenta é a teoria,
generais e ministros czaristas presos. A revolução
meu amigo”...
dominou por completo Petrogrado. Uma multidão
invadiu a sede da Duma; à tarde, uma assembleia
O “trem blindado” chegou na Estação Finlândia de
criou o Soviete de Operários e Soldados. O czar tenPetrogrado quase meia noite de 3 (15) de abril, mas
tou fugir da capital, mas seu trem foi forçado a retromilhares de operários e soldados o esperavam. Falanceder; ele abdicou e a seguir foi preso.
do de cima de um carro blinado, Lênin fez seu primeiA dualidade de poderes
ro discurso após o longo exílio. E surpreendeu a todos
ao terminar com um “Viva a revolução socialista!”.
A Revolução de Fevereiro foi fulminante rapidez
Até ali era consenso que a revolução na Rússia
e pouco cruenta, mas criou uma situação dúbia e
tinha caráter não socialista, mas democrático-burinstável. Havia uma dualidade de poderes, um origuês, visando ao fim da autocracia, à república, à enginal e confuso entrelaçamento. De um lado, estatrega da terra aos camponeses, à jornada de oito hova o Governo Provisório, poder da burguesia e dos
ras. Lênin argumentou que a Revolução de Fevereiro
latifundiários aburguesados, encabeçado pelo prínjá cumprira essa etapa, ainda que de modo precário e
70
História
incompleto. Tratava-se agora de seguir adiante, com
os operários e camponeses pobres, por uma república dos Sovietes.
Ele desenvolveu a ideia nas famosas Teses de abril,
escritas ainda no trem e apresentadas horas após
chegada. “A peculiaridade do momento atual na
Rússia consiste na passagem da primeira etapa da
revolução, que deu o poder à burguesia por faltar ao
proletariado o necessário grau de consciência e organização, à sua segunda etapa, que colocará
o poder nas mãos do proletariado e dos
camponeses mais pobres”, diz o texto.
E contestou os que se apegavam à
visão anterior com versos do Fausto de Goethe (1808): “Cinzenta é
a teoria, meu amigo, mas eternamente verde a árvore da vida”.
As Teses analisam a dualidade
de poderes. Rejeitam “qualquer
apoio ao Governo Provisório”. Mas
não pregam sua derrubada imediata,
e sim um trabalho “paciente, sistemático, tenaz”, “enquanto estivermos em
minoria”. E lançam já a célebre palavra
de ordem “Todo poder aos Sovietes!”. Propõem ainda a mudança do nome do Partido,
de Bolchevique para Comunista, e a fundação
de uma nova Internacional, comunista.
As massas aderem às palavras de
ordem bolcheviques
Nessa linha, o Partido lançou-se à conquista da
maioria nos Sovietes, nos sindicatos e comissões
de fábrica. O Governo Provisório, uma coalizão de
partidos burgueses com os social-revolucionários e
mencheviques, não se atrevia a efetivar as transformações exigidas pela Revolução. Em vez de tirar a
Rússia da guerra, lançou em 18 de junho (1º de julho) nova ofensiva militar, que terminou em novo
fracasso. Nesse mesmo dia, 400 mil trabalhadores
marchavam em Petersburgo sob as palavras de ordem bolcheviques, “Abaixo a guerra!”, “Abaixo os 10
ministros capitalistas!” e “Todo Poder aos Sovietes!”.
Em julho o governo desferiu uma ofensiva repressiva. Lênin chegou a ter decretada sua prisão por “alta
traição”; teve que cair em rigorosa clandestinidade,
oculto numa choça na Finlândia (na época parte da
Rússia). Ali escreveu o livro O Estado e a revolução –
apaixonada e meticulosa defesa do conceito marxista
da ditadura do proletariado, “cem vezes mais democrática que a mais democrática democracia burguesa”, com base nas lições da Comuna de Paris e prenunciando a república soviética em gestação.
Em julho agosto reuniu-se o 6º Congresso do Partido Bolchevique – na clandestinidade e sem Lênin,
por razões de segurança. Os filiados já somavam 240
mil. A influência de massas crescia. Na avaliação do
informe político, apresentado por Stálin, “o período
pacífico da revolução terminou; começou o período
não pacífico, um período de choques e explosões”. O
6º Congresso admitiu o pedido de ingresso no Partido de Trotsky e do pequeno grupo independente onde ele se abrigara, os Mejraiontsi, um e outro
oriundos de uma posição centrista na polêmica bolcheviques x mencheviques.
Fracassa a Kornilovada,
bolchevismo conquista os
Sovietes
Em 25 de agosto sobreveio a
Kornilovada: o general cossaco Lavr
Kornilov (1870-1918), recém-promovido por Kerensky a comandante-em-chefe do exército russo,
marchou sobre a capital com os cavalarianos da “Divisão Selvagem”,
decidido a “acabar com
Emblema usado
os Sovietes” e “salvar a
pelos seguidores
pátria” com uma ditadudo general Kornilov
ra militar. Era também
um ultimato ao Governo
Provisório, que, após muitos titubeios, buscou apoio
dos bolcheviques.
Os bolcheviques chamaram à resistência armada. Em poucos dias, multiplicaram-se os efetivos da
Guarda Vermelha, milícia operária ativa desde Fevereiro. Unidades revolucionárias do Exército e da
Marinha acorreram para defender a capital junto
com os operários. Em cinco dias a Kornilovada chegou a um retumbante fracasso. Os soldados cossacos
a abandonaram. Kornilov foi preso, com 7 mil correligionários, antes de disparar um só tiro. Os bolcheviques, triunfantes, deixaram a clandestinidade
imposta em julho.
No dia seguinte ao fim da Kornilovada, o Soviete de Petrogrado passou-se para as posições
bolcheviques. Seus dirigentes mencheviques e social-democratas abandonaram os postos e uma direção bolchevique presidida por Trotsky assumiu.
Dias depois o Soviete de Moscou seguiu o mesmo
caminho. Estava preparada a cena para o Outubro
vermelho.
* Bernardo Joffily é jornalista, tradutor,
colaborador de Princípios e autor do Atlas
Histórico IstoÉ Brasil 500 anos
71
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Vietnã: guerra, revolução e
desenvolvimento
Paulo Fagundes Visentini*
Cidade de Ho Chi Minh, retrato
de desenvolvimento pleno
A Guerra do Vietnã representa um verdadeiro ícone da história
contemporânea, independentemente da preferência política do
observador. Ela é especial porque culminou com a derrota militar
da maior superpotência por uma nação agrária de pequenas
dimensões. Mas o país não foi apenas palco de uma guerra: o
povo vietnamita foi protagonista de uma longa e árdua revolução
social e de libertação nacional. Ao longo desse caminho, derrotou
também outras potências, mas sofreu enorme destruição, um
pesado embargo político-econômico internacional e perdeu seu
maior aliado com o fim da Guerra Fria. E, ainda assim, hoje é um
país soberano e em pleno desenvolvimento
72
História
H
á exatos 40 anos, os tanques do então Vietnã do Norte e os guerrilheiros
sul-vietnamitas irrompiam no palácio
presidencial do general Van Thieu, em
Saigon (atual Ho Chi Minh), derrubando os imensos portões gradeados. Os últimos
americanos e a elite do regime neocolonial vencido
embarcavam em helicópteros no telhado da Embaixada, desesperados, rumo aos porta-aviões. E o
general-presidente deixava o país com dois aviões
carregados: um com seus parentes e amigos mais
próximos, outro repleto de reservas de ouro do Banco Central. Era o fim de uma longa e violenta guerra
e a reunificação da nação vietnamita.
Nacionalismo, comunismo e
antifascismo: a resistência
O Vietnã foi gradualmente dominado pela França na segunda metade do século XIX, juntamente
com seus vizinhos – Laos e Camboja –, formando a
colônia da Indochina. As revoltas tradicionais fracassaram e a terra dos revoltosos foi confiscada e
entregue a grandes empresas agrícolas francesas, especialmente para a produção de borracha (seringais)
e aos colaboracionistas que adotavam o catolicismo
(inclusive o alfabeto latino foi introduzido). Assim,
houve a formação de um proletariado rural e urbano
(portos, transportes, indústrias de transformação,
mineração e plantations). Uma pequena burguesia no
setor de serviços também foi formada, mas a burguesia compradora era uma classe irrelevante devido às limitações impostas pelos franceses, que dominavam
os grandes negócios.
A mobilização de trabalhadores na Primeira
Guerra Mundial, a influência da Revolução Soviética, o impacto econômico da Grande Depressão e
a queda da França frente aos alemães tiveram forte impacto político no Vietnã. A Primeira Guerra e
a Depressão geraram mobilização social e política,
reprimida pelos franceses, mas a Internacional Comunista contribuiu para formar quadros destacados,
como Ho Chi Minh, que tratou de adaptar o marxismo às condições asiáticas, em particular vietnamitas. Assim, nacionalismo e socialismo se tornavam
instrumentos de luta anticolonial.
Na década de 1930 houve diversos levantes camponeses, como os Sovietes de Nge Tinh, reprimidos
com rigor pelas autoridades. Com a queda de Paris, em 1940, foi implantado na França o Regime
fascista de Vichy, que controlava as colônias. Assim,
o movimento anticolonial vietnamita se transformou, também, em movimento antifascista, sobretudo quando os franceses autorizaram que o Japão
Tropas comemoram vitória do Viet Minh em Hanoi, 1954
ocupasse militarmente o país, para dali atacar as
colônias inglesas. Pequenos destacamentos guerrilheiros do Viet Minh (a frente liderada pelos comunistas) atacaram unidades isoladas e foram caçados pelas forças franco-nipônicas. Mas em março
de 1945 o Japão desarmou os franceses e promoveu
uma pseudoindependência com o imperador Bao
Dai. Mas o tempo corria e o Viet Minh, aproveitando o vácuo criado com a iminente derrota do Japão,
conseguiu implantar a República Democrática do
Vietnã em agosto de 1945.
A luta de libertação nacional
antifrancesa (1945-1954)
Os franceses, que não reconheceram a independência, decidiram reocupar o país em 1946, quando
já tinham força para passar à ofensiva. Depois de
combates desiguais, o Viet Minh se retirou das cidades e passou à guerrilha. Comandos, hospitais, depósitos, escolas, pequenas fábricas de armas e gráficas foram criados em santuários nas montanhas. Os
combatentes agrupados em três categorias: tropas de
combate nacionais permanentes (os “capacetes duros”), guerrilheiros regionais (que se transformaram
em camponeses quando necessário) e as milícias de
autodefesa das aldeias, compostas por camponeses.
A destruição permanente de vias de comunicação
e ataques a pequenas guarnições forçaram os franceses a deslocar continuamente suas tropas, deixando outras áreas desguarnecidas, que eram atacadas.
Logo, a guerrilha controlava grande parte do país,
obrigando os franceses a mobilizar mais recursos e
a trocar de tática, situação que se agravaria com a
vitória da Revolução Chinesa em 1949 (constituindo
uma base de apoio ao Viet Minh).
73
Ed. 135 – Março/Abril 2015
estudantes, minorias e outras forças que protestavam contra a violência e a corrupção do regime.
No norte, a República Democrática do Vietnã
implantava o socialismo com a reforma agrária, socialização dos meios de produção, início da industrialização (com apoio dos países
socialistas) e projetos de educação
e saúde. Todavia, logo eles teriam
que se envolver na crescente guerra civil do sul, o que permitiu aos
guerrilheiros (agora organizados
como Viet Cong) lograr avanços. O
regime de Diem começava a sofrer
derrotas no campo e violentas manifestações nas cidades, levando os
americanos a se preocuparem com
a cegueira do seu aliado.
Em 1963, Washington, cada
vez mais envolvida no Vietnã, orquestrou sua derrubada pela CIA
e alguns generais. Seguem-se dois
anos de turbulência até que o general Nguyen Van Thieu assumiu e
Para Giap, a questão
os americanos partiram para a escalada: em 1965 havia 25 mil solera como enfrentar
dados e em 1968, 600 mil. Em 1965
um gigantesco
os americanos iniciaram os bompoder de fogo
bardeios sistemáticos ao Vietnã do
Norte e os marines desembarcaram
sobre um território
em Da Nang, escoltados por tanestreito, sem a
ques e sobrevoados por centenas de
helicópteros, com holofotes ilumiprofundidade
nando e ruídos amplificados, como
estratégica com que
num filme para aterrorizar os vietcontaram soviéticos
namitas.
A tática francesa foi entrincheirar-se e atrair os
vietnamitas para um combate aberto. Mas como as
grandes cidades não foram atacadas, resolveram então criar um ponto fortificado na distante fronteira
montanhosa com o Laos, em Dien Bien Phu. Mas
ali o general Vo Nguyen Giap, o
grande estrategista militar do Viet
Minh, resolveu enfrentar o adversário e, ao cabo de algum tempo, os
franceses foram cercados e espetacularmente derrotados. A França
não tinha como continuar a guerra
e aceitou negociações em Genebra,
em 1954, num pacto firmado por
todos os representados, menos pelos Estados Unidos. O país ficaria
temporariamente dividido na altura
do paralelo 17, com o Viet Minh
concentrando suas forças ao norte e os elementos católicos, pró-franceses e do imperador Bao Dai
ao sul, até a realização de eleições,
prevista para dois anos depois.
A divisão: socialismo no
norte e Guerra Civil no
sul (1954-65)
Os
EUA
(recém-“empatados” na Coreia), que já apoiavam
os franceses, decidiram tomar a
questão em suas mãos e criaram
a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE, um pacto
militar) e apoiaram a tomada do
poder no sul por Diem (católico),
e chineses. A
derrubando o imperador Bao Dai e
A Guerra Revolucionária
resposta foi a tática
proclamando a República do Vietcontra os EUA e o Regime
nã. Ao mesmo tempo, lançaram o
neocolonial (1965-1975)
da Guerra Popular,
projeto Vietnã Livre, um plano de
com ataques à
ajuda em dinheiro, armas e assesO objetivo americano era uma
sores militares. Quando chegou a
guerra clássica geograficamente
retaguarda do
época da eleição, em 1956, Diem
limitada. Para Giap, a questão era
inimigo
se negou, argumentando que seu
como enfrentar um gigantesco poregime não havia participado da
der de fogo sobre um território esConferência de Paz e os EUA, cinicamente, alegaram
treito, sem a profundidade estratégica com que connão ter firmado o acordo.
taram soviéticos e chineses. A resposta foi a tática da
Como o Viet Minh era uma força no sul, Diem
Guerra Popular, com ataques à retaguarda do inimipassou à repressão em massa, se apoiando num rego, fazendo com que a frente de combate estivesse
gime corrupto em que sua família ocupava quase
em qualquer lugar. Além disso, técnicas de guerra
todos os cargos relevantes, e os católicos (10% da
psicológica foram empregadas com sucesso contra
população) os demais. Inclusive no exército, fundaos invasores.
mentalmente budista, quase todos os oficiais eram
O poder de foco americano não tinha onde focar
católicos. Logo Diem enfrentava também budistas,
e se perdia, as baixas eram numerosas, a lógica viet-
74
História
namita não era compreendida e
logo a moral do exército decaiu perigosamente, com uso de drogas e
insubordinação. O regime sul-vietnamita consumia cada vez mais
recursos. Num esforço derradeiro,
os americanos jogavam napalm
nas aldeias, o desfolhante agente
laranja (uma arma química) nas
florestas e aumentavam os bombardeios e massacres. Mas no Ano
Novo Lunar de 1968, o Viet Cong
lançou ataques simultâneos contra todos os objetivos inimigos no
Vietnã do Sul (a Ofensiva do Tet).
Ficou claro para todo o mundo: a
Jovem estende uma flor contra as baionetas em frente do Pentágono, durante
guerra não poderia ser vencida e os
protesto contra a guerra do Vietnã. Washington, EUA, 1967
americanos buscaram se retirar.
Para tanto, tentaram se aproxiUnificação: um socialismo cercado
mar da China e a retirar parte de suas tropas, mas
(1975-1991)
aumentando a ajuda. Segundo um general americano, “um marine custa o mesmo que 18 soldados sulO sul foi libertado e, formalmente em 1976, foi
vietnamitas, cujos cadáveres não geram problemas
unificado com o norte, originando a República Sopolíticos”. Estava se referindo ao gigantesco movicialista do Vietnã. Enfim a paz? Não. O norte era somento antiguerra que sacudia as cidades americacialista e iniciou a reconstrução, mas o sul, além de
nas. Em 1973, a maior parte se retirou do Vietnã,
arrasado, estava desestruturado. Os campos foram esmas assessores permaneciam e o poder de fogo do
vaziados pela guerra e Saigon era uma favela gigante,
sul foi reforçado. Mas no início de 1975 o Viet Cong
com prostitutas, traficantes e criminosos, especuladoe os norte-vietnamitas iniciaram uma série de ações
res, ex-soldados do sul, órfãos, viúvas e inválidos. Era
que, em semanas, levaram ao completo colapso do
necessário realizar a Revolução Nacional Democrática
Regime de Saigon.
e Popular antes de implantar o socialismo.
Quando o governo nacionalizou o comércio especulativo, dominado pelos Hoa (chineses), eles saíram
em dezenas de barcos para Hong Kong, servindo de
pretexto para sanções da China e dos Estados Unidos. Em 1977, o Vietnã entrou na ONU, mas passou
a sofrer forte embargo econômico e político. No Camboja (Kampuchea), a Revolução caiu nas mãos de um
grupo de influência maoísta que, instigado pela China
e pelos EUA, promovia choques armados na fronteira vietnamita. A bizarra experiência de “ruralização”
dos retrógrados Khmers Vermelhos gerou mortandade na população e refugiados, que foram organizados
pelo Vietnã e, em dezembro de 1978, junto com eles,
entrou no Camboja e expulsou Pol Pot para a fronteira
da Tailândia (onde era apoiado pelo Ocidente).
Tal ação, plenamente justificada por razões humanitárias, diplomáticas e estratégicas, gerou duas
consequências terríveis. Primeiro, o Vietnã teve de
proteger o novo governo cambojano com 120 mil soldados por uma década – o que teve um custo político
e econômico terrível. Em segundo lugar, Deng Xiao
Mapa ilustra ataques da Ofensiva do Tet, lançada pelos
Ping disse ao presidente Carter que iria “dar uma
norte-vietnamitas contra as forças americanas em 1968
75
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Ho Chi Minh (d.) e Deng Xiaoping (e.)
lição ao Vietnã” e, em fevereiro de 1979, invadiu o
vizinho, numa guerra inter-socialista. Seiscentos mil
soldados chineses lutaram por um mês e tiveram de
se retirar com 60 mil baixas (números idênticos aos
dos americanos). O Vietnã derrotava a terceira grande potência, mas ao preço de um estrangulamento
econômico nos anos 1980.
Doi Moi: um socialismo reformado
(1991-2015)
No final da década, com a Perestroika de Gorbachev, o Vietnã retirou seus soldados do Camboja em
1989 e procurou reformar sua economia, pois a ajuda
soviética era cada vez menor. E, logo, a URSS desintegrou-se e até a China foi ameaçada pela contrarrevolução. Hanói e Pequim normalizaram as relações
em 1992 e em 1995 o Vietnã passou a integrar a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)
e restabeleceu relações com os EUA. E ainda era o
único país asiático a não ter recebido indenizações
de guerra do Japão.
Experiências de reforma, para a implantação de
um socialismo de mercado ao estilo chinês, já vinham ocorrendo desde os anos 1980. Agora, elas
amadureciam e recebiam a denominação de Doi
Moi, com o Estado controlando as áreas estratégicas,
apoio ao camponês e zonas econômicas para atrair
investimento estrangeiro. A estratégia comporta riscos, mas os negócios de mercado ficaram em Ho Chi
Minh (ex-Saigon), enquanto o poder político e a indústria pesada permaneceram em Hanói.
A carência de arroz deu lugar à sua exportação,
bem como de manufaturados. O Tigre de terceira
geração cresce como a China, mas busca manter
sua autonomia em relação a ela. Rivalidades geopolíticas históricas no Mar da China Meridional
são apontadas pela mídia ocidental como tensões
militares – um exagero de quem quer criar discór-
76
dia, enquanto os problemas são resolvidos do “jeito
asiático”.
O Vietnã, o Estado pivô da Indochina – nove décadas após sua força política dirigente ter iniciado
a resistência ao fascismo, oito após triunfar sobre
os japoneses, sete depois de expulsar os franceses e
quatro após derrotar os EUA e ter impedido uma invasão chinesa, quase três depois de perder o apoio e
ver desaparecer a potência protetora soviética –, enfrenta satisfatoriamente os desafios da globalização
e mantém seu regime socialista (de mercado).
A independência e a soberania nacional foram
atingidas, o país mantém um regime de sua escolha
e segue como uma nação com uma forte cultura e
identidade própria. Se o desenvolvimento e a prosperidade ainda não foram plenamente atingidos,
é forçoso reconhecer que a nação logrou avanços,
sobreviveu a terríveis experiências e se localiza no
centro da região de maior crescimento econômico
mundial no início do século XXI, plenamente nela
inserida. Sua história nacional se tornou uma importante referência para a ascensão da região e para
o avanço da humanidade.
O povo do pequeno Vietnã realizou uma grande e
difícil revolução, que teve impacto mundial, ao derrotar e enfraquecer os Estados Unidos, ao motivar
dezenas de povos que, na mesma época, lutavam
pela emancipação nacional e pela revolução social.
Numa época onde até a esquerda evitava a palavra
Socialismo, o Vietnã assim se definiu até em sua denominação oficial, sob a direção do Partido Comunista. Nenhum detrator teve coragem de atacar a
figura do líder Ho Chi Minh, um homem calmo e
terno, firme e inspirador, mesmo em meio à tempestade da guerra.
Mas aos que não gostam de política, o povo
vietnamita os brinda com a imagem de camponeses simples, armados com a vontade, brutalizados
e despedaçados, lutando de forma desigual contra
a maior máquina militar que o planeta já conheceu,
e vencendo. No museu da guerra de Ho Chi Minh,
em Saigon, duas coisas impressionam: as fotos e
objetos (que falam por si) e os visitantes estrangeiros
(que calam por si). Turistas americanos são recebidos
com cordialidade e entram sorridentes e excitados.
Ao longo das salas eles observam a guerra que travaram e desconhecem, e vão diminuindo os ruídos.
Na saída estão silenciosos, sérios e cabisbaixos.
Chocados consigo mesmos e envergonhados.
* Paulo Fagundes Visentini é historiador e
professor titular de Relações Internacionais na
UFRGS. Autor do livro A Revolução Vietnamita
(Editora da UNESP) [email protected]
História
Refugiados coreanos da
guerra em 1950
COREIA:
da luta antijaponesa à
libertação em 1945
(1ª Parte)
Raul Carrion*
Em 2015, completam-se 70 anos da vitória do povo
coreano contra o Japão e os 65 anos do início da “Guerra
de Libertação” contra os Estados Unidos, quando pela
primeira vez o imperialismo ianque foi derrotado em
campos de batalha. Este é o primeiro de três artigos que
farão um retrospecto da história da Coreia em sua luta
pela libertação nacional e pelo socialismo
77
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Um mural de Kim Il-sung discursando em Pyongyang
A transformação da Coreia em colônia
japonesa
A
sa da Coreia, em troca do apoio japonês à ocupação
norte-americana das Filipinas (Pacto Secreto Taft-Katsura). O Tratado de Ulsa – imposto pelo Japão através
das armas em 1905 – e o Tratado Coreano-Japonês de
Anexação, de 1910, consumaram a transformação da
Coreia em colônia japonesa.
A partir de então, usando de brutal violência, os
japoneses impuseram o seu domínio sobre a Coreia,
apoderaram-se de suas terras e riquezas, reprimiram
sua língua e cultura, exploraram cruelmente o seu
povo. Em 1925, havia mais de 400 mil japoneses instalados na Coreia. Em 1942, 80% das florestas e 25%
presença humana na península coreana data de 300.000 anos atrás.
Sua primeira civilização – Joson Antiga – existiu três mil anos, até 108
a.C. Em 277 a.C., surgiu o primeiro
Estado feudal da Coreia. No início do século V d.C.,
o Estado de Koguryo dominava um território de 2.400
km, de leste a oeste, e de 2.000 km, de norte a sul.
Pyongyang era a sua capital. Em 918, o rei Wangkon
estabeleceu a dinastia Koryo, unificando pela primeira vez a nação
coreana. Ela durou até 1392, quando surgiu a dinastia feudal Joson,
o último Estado feudal da Coreia,
subjugado no início do século XX
pelo Império Japonês.
Já em 1876, o Japão havia imposto ao decadente Estado feudal
coreano o Tratado de Kanghwado,
reduzindo a Coreia a uma semicolônia. A guerra sino-japonesa de
1904-1905 e a guerra russo-japonesa
de 1904-1905 – quando a China e a
Rússia foram derrotadas pelo Japão
– criaram as condições para o total
domínio nipônico sobre a Coreia.
Coreanos fuzilados por arrancar trilhos em protesto pelo confisco de terras sem
Nessa ocasião, os Estados Unipagamento pelos japoneses
dos apoiaram a ocupação japone-
78
História
Pontos. Kim Il Sung foi eleito o seu
presidente.
A derrota do
imperialismo japonês
e a ocupação do Sul da
Coreia pelos EUA
das terras cultivadas e a quase totalidade das indústrias estavam em suas mãos.
Os primeiros anos da luta contra a
dominação japonesa
AP Photo
Os coreanos nunca aceitaram o domínio japonês.
Já em 1908, o movimento Voluntários Antijaponeses
chegou a abarcar 70 mil guerrilheiros, mas acabou
derrotado em 1910. Todas as rebeliões que se seguiram foram brutalmente esmagadas pelos japoneses.
Em 1919, surgiu o Movimento do Exército Independentista, que retomou a resistência armada aos japoneses.
Em outubro de 1926, o jovem Kim Il Sung fundou a União para Derrotar o Imperialismo (UDI), tendo
como meta derrotar o imperialismo japonês, alcançar a independência da Coreia e construir o socialismo e o comunismo. Em julho de 1930, Kim Il Sung
criou a Associação de Camaradas Konsol, que viria a ser
o embrião do futuro Partido do Trabalho da Coreia.
Em abril de 1932, teve início a Guerrilha Popular
Antijaponesa, que logo se expandiu para diversas regiões, inclusive a Manchúria. Em março de 1934, a
guerrilha transformou-se no Exército Revolucionário
Popular da Coreia (ERPC). Nas áreas liberadas, foram
sendo organizados Governos Revolucionários Populares,
unindo todas as forças antijaponesas.
Em maio de 1936, constituiu-se a Associação para
a Restauração da Pátria (ARP) – primeira organização
permanente da frente única nacional antijaponesa na Coreia – e foi aprovado o seu Programa de Dez
Ao final da Segunda Grande
Guerra, após a rendição alemã, em
8 de maio de 1945, prosseguiu a
luta contra o Japão, que continuava ocupando inúmeros países do
Pacífico, entre eles a Coreia. Em 8
de agosto, sob a direção de Kim Il
Sung, o ERPC iniciou a sua ofensiva geral contra os japoneses. Em 9
de agosto, a URSS declarou guerra
ao Japão e atacou as tropas japonesas na Manchúria e na Coreia.
Nas principais cidades e regiões, a
população sublevou-se. A situação
tornou-se insustentável para os japoneses.
Nesse momento, os EUA, sem necessidade – pois
o Japão já negociava sua rendição – lançaram duas
bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, matando mais de 300 mil pessoas, quase todos civis. Em
15 de agosto, o Japão assinou sua rendição. O ERPC
e demais lideranças patrióticas constituíram Comitês
Populares em toda a Coreia que, reunidos em Seul,
proclamaram em 6 de setembro de 1945 a República
Popular da Coreia.
Desrespeitando a autodeterminação do povo coreano, no dia 8 de setembro, os Estados Unidos –
MacArthur no cais de Inchon em setembro de 1950.
79
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Americanos cruzam
com refugiados
coreanos da guerra
alegando um acordo com a URSS – ocuparam com
suas tropas todo o Sul da Coreia, até o paralelo 38,
inclusive Seul. A seguir, dissolveram os Comitês Populares e prenderam em massa os seus membros.
Segundo o historiador norte-americano Bruce Comings, “a informação interna estadunidense acerca de
prisioneiros políticos sob a ocupação dos EUA dava 21.458
pessoas na prisão em 1947, e 17.000 em agosto de 1945;
dois anos depois, 30.000 supostos comunistas estavam nos
cárceres de Rhee e os processos dos suspeitos de comunismo
constituíam 80% de todos os casos judiciais. Uma série de
‘Campos de Tutela’ alojavam esses prisioneiros adicionais
(...) a embaixada dos EUA estimava que 70.000 pessoas
encontravam-se nesses campos” (1).
O primeiro comunicado do general Douglas
MacArthur, comandante das tropas norte-americanas, não deixou dúvidas quanto ao caráter da ocupação militar: “como comandante em chefe das Forças
Armadas dos Estados Unidos no Pacífico, exerço através das
mesmas o controle militar sobre o Sul da Coreia, desde o
paralelo 38, e sobre a sua população. (...) Devem ser respeitadas todas as minhas ordens e as ditadas sob a minha
autoridade. Os atos de resistência às forças de ocupação ou
qualquer ação que possa obstaculizar a tranquilidade pública e a segurança serão castigadas com energia. Durante
o meu controle militar o inglês será o idioma oficial” (2).
Em seu informe sobre os três primeiros meses
de ocupação, o general Hodge afirmou: “[existe] um
crescente ressentimento em relação a todos os estadunidenses na área (...) cada dia que passa em meio a essa situação
torna a nossa posição na Coreia mais insustentável e diminui nossa decrescente popularidade (...) a palavra pró-estadunidense é associada a pró-japonês, traidor nacional e
colaboracionista” (3).
80
Após negarem ao povo coreano o direito à autodeterminação, os militares estadunidenses – diante
das dificuldades em formar um governo pró-americano no Sul da Coreia – foram buscar nos EUA Syngman Rhee (um septuagenário que lá vivia havia 37
anos) e o impuseram, no início de 1946, como presidente de um fictício Conselho Democrático Representativo, que tinha como principal sustentáculo os antigos
colaboracionistas pró-japoneses.
Pouco depois, uma série de greves e passeatas –
reivindicando melhores salários e direitos trabalhistas – tomou a cidade de Seul. Em um ato dos grevistas, a polícia foi autorizada a atirar na multidão,
matando 41 trabalhadores. Em seguida, centenas de
grevistas foram presos, torturados e condenados à
pena de morte.
A ocupação norte-americana e o seu apoio aos
que haviam colaborado com a ocupação japonesa
geraram uma forte repulsa do povo sul-coreano: “Os
torturadores e os integrantes de esquadrões da morte, que até
bem pouco haviam sido um dos braços do domínio estrangeiro, estavam de volta, circulando pelas ruas com armamento norte-americano, radiotransmissores e jipes.” (4)
No outono de 1946, uma rebelião massiva espalhou-se por quatro províncias. Fortemente reprimidos, os rebeldes iniciaram uma guerrilha que
se manteve ativa até 1949. Em outubro de 1948,
ocorreu uma importante rebelião no porto de Yosu,
sufocada ao custo de mais de 2.000 mortos e 3.000
presos. Na ilha de Cheju a resistência foi sufocada
depois de terem sido mortos 60 mil pessoas, terem
fugido para o Japão outras 40 mil e terem sido destruídas cerca de 40 mil casas. Das 400 aldeias existentes, só restaram 170.
História
A reconstrução na Coreia no Norte
coreanos haviam sido alfabetizados e o analfabetismo foi definitivamente erradicado no país.
Em 10 de agosto de 1946, foi assinado o “Decreto
Enquanto isso, no Norte, as tropas russas ali esde nacionalização de indústrias, transportes, comunicações,
tacionadas respeitaram o governo surgido dos Comibancos etc.”, pertencentes a japoneses, pró-japoneses
tês Populares e constituído logo após a vitória contra
e traidores da nação, que tiveram os seus bens exos japoneses.
propriados, sem direito a qualquer indenização. Os
Em 10 de outubro de 1945, Kim Il Sung fundou
capitalistas patriotas e pequenos
o Partido Comunista da Coreia do Nore médios empresários tiveram os
te, que em fins de agosto de 1946
seus bens respeitados.
uniu-se ao Partido Neodemocrático
Em 10 de agosto de
Em 3 de novembro de 1946, foda Coreia, constituindo o Partido do
1946, foi assinado
ram realizadas as primeiras eleições
Trabalho da Coreia do Norte (PTCN).
democráticas da Coreia, em 5.000
Em 8 de fevereiro de 1946, tendo
o “Decreto de
anos de existência. Apesar da campor base os Comitês Populares formanacionalização
panha que os setores reacionários
dos em todo o país, foi constituído
fizeram pelo boicote às eleições ou
de indústrias,
o Comitê Popular Provisório da Coreia
pelo voto contra o Partido do Trado Norte – com a tarefa de levar
transportes,
balho, 99,6% foram às urnas e 96%
adiante a revolução democrática,
comunicações,
votaram a favor das transformações
anti-imperialista e antifeudal –, o
em andamento: “Nas eleições ao Coqual elegeu Kim Il Sung como seu
bancos etc.”,
mitê Nacional Popular de novembro de
presidente.
pertencentes
1946 o PDC obteve 351 representantes,
Em 5 de março – sob o lema
o Chongu-dang 253 e o PTCN 1.102; fo“a terra pertence aos camponeses
a japoneses,
ram eleitos, ainda, 1.753 representantes
que a trabalham” –, foi editada a
pró-japoneses
postulados como apartidários” (5). Em
Lei da Reforma Agrária na Coreia do
fevereiro de 1947, foram instalae traidores da
Norte, que confiscou as terras de
dos a Assembleia Popular e o Comitê
japoneses, pró-japoneses, traidonação, que tiveram
Popular da Coreia do Norte, tendo por
res da nação e latifundiários, e as
os seus bens
presidente Kim Il Sung. Em seguida
distribuiu para 725 mil famílias
foram realizadas as eleições para os
camponesas sem terra ou com
expropriados, sem
Comitês Populares de cantão e de
pouca terra. O regime permitiu aos
direito a qualquer
comuna e constituídos os seus órex-latifundiários que desejassem
gãos locais de poder.
trabalhar a terra se mudarem para
indenização
Em 8 de fevereiro de 1948, o anprovíncias vizinhas, onde lhes era
tigo ERPC transformou-se oficialconcedida a mesma quantidade de
mente no Exército Popular da Coreia.
terra que aos demais agricultores. Os camponeses
Fruto de todas essas transformações políticas,
obtiveram terras que podiam ser transmitidas aos
sociais e econômicas, a produção industrial aumenseus filhos, mas não podiam ser compradas ou ventou 3,4 vezes entre 1946 e 1949, e a produção para
didas no mercado. Foi criado o imposto único agrío consumo cresceu 2,9 vezes. Houve um início de
cola em espécie, tendo sido abolido o velho sistema
diversificação industrial. No ano de 1949, a indúsde entrega obrigatória de cereais e os impostos sotria nacionalizada era responsável por 91% da probre a terra e a renda.
dução e as cooperativas e o Estado controlavam 57%
Em 24 de junho foi promulgada a “Lei do Trabado comércio. Na agricultura, surgiram as primeiras
lho para os operários e empregados da Coreia do Norte”,
cooperativas agrícolas e artesanais e um incipiente
estabelecendo a jornada de 8 horas e a proibição do
setor estatal, formado por granjas experimentais e
trabalho às crianças. No dia 30 de julho, foi assinada
estações de máquinas e tratores.
a “Lei da igualdade de direitos do homem e da mulher na
Segundo Cumings, “72% das crianças frequentavam
Coreia do Norte”.
a escola primária, comparadas com os 42% de 1944; cerca
Seguiram-se diversas outras medidas para demode 40 mil escolas para adultos em todo o país brindavam
cratizar as esferas judicial, fiscal, cultural e educacioalfabetização básica a operários e camponeses. Informação
nal. Foi estabelecido o ensino gratuito e obrigatório
estadunidense (...) mostra a produção de lingotes de ferro
e deflagrada uma grande campanha de alfabetização
subindo de 6.000 toneladas em 1947 a 166.000 em 1949,
que, só em 1946, criou mais de 16 mil escolas para
a produção de barras de aço subir de 46.000 toneladas a
adultos. No início de 1949, mais de 2,3 milhões de
81
Ed. 135 – Março/Abril 2015
rechaçou as eleições em separado no Sul, exigiu a
imediata retirada das tropas soviéticas e norte-americanas e defendeu a realização de eleições conjuntas
para criar um governo unificado de toda a Coreia.
Desrespeitando a vontade do povo coreano, a dita
“comissão” realizou, em maio de 1948, eleições frauOs EUA bloqueiam a reunificação e
dulentas no Sul. Essas eleições: “foram vergonhosas.
autodeterminação da Coreia
Os bandos terroristas assolaram a população; nas seis semanas anteriores foram cometidos quase 600 assassinatos políApesar de ter sido acertado na Conferência de
ticos. É claro que ganhou a direita e a comissão internacioMinistros de Relações Exteriores de Moscou – em
nal considerou o seu triunfo como legítimo e ‘democrático’.
dezembro de 1945 – que a URSS e
(...) A divisão ficou consagrada” (9).
os Estados Unidos buscariam criar
Segundo Bruce Cuming, “praum governo provisório unificado e
ticamente todos os políticos e partidos
Em 1948, tropas
que no prazo de cinco anos se retipolíticos de expressão, à direita de Rhee,
soviéticas
rariam da Coreia, os Estados Unise negaram a participar nas eleições,
abandonaram a
dos passaram a trabalhar pela diviincluindo a Kim Kyu-sik, um peculiar
são definitiva do país, no contexto
centrista coreano, e a Kim Ku, um hoCoreia em respeito
da “Guerra Fria”.
mem situado, provavelmente, à direita
à autodeterminação
Além de dissolverem pela força
de Syngman Rhee” (10).
os Comitês Populares e reprimirem
Como era de esperar, Syngman
coreana e
os que defendiam a reunificação da
Rhee obteve ampla maioria e assuconclamaram os
Coreia, criaram e armaram um pomiu a presidência. Poucos dias deEstados Unidos
deroso exército no Sul – sem pospois, em 15 de agosto de 1948, sob
suir qualquer mandato para tanto.
os auspícios do general MacArthur,
a fazer o mesmo.
Não satisfeitos, propuseram, em
foi proclamada a República da CoEsses, porém, se
setembro de 1947, que a questão
reia, dividindo de forma definitiva
da Coreia – que era um assunto a
a península. MacArthur ameaçou:
negaram a fazê-lo
ser resolvido entre as duas potên“Esta barreira [o paralelo 38] deve ser
e só se retiraram
cias ocupantes, a URSS e os EUA
derrubada e o será. Nada poderá impe– fosse para a alçada da ONU, sem
dir que o vosso povo logre a unidade em
da Coreia em 30 de
ingerência do Conselho de Seguliberdade” (11).
julho de 1949
rança (onde a URSS poderia exerCom a posse de Syngman Rhee,
cer o direito de veto). Moscou se
chegou ao fim o governo militar de
opôs, mas os EUA – que naquela
ocupação, mas não a presença miépoca manejavam as Nações Unidas ao seu bel pralitar e a tutela dos EUA sobre o governo do Sul da
zer – conseguiram aprovar a proposta. Assim, foi
Coreia. Segundo Vitorino: “seguindo as orientações de
formada a Comissão Temporária das Nações Unidas sobre
Washington (...) Rhee governou a Coreia do Sul em Estaa Coreia, que convocou “eleições gerais” no país, o
do de terror e perseguição. (...) Em 1949, o governo de Rhee
que não foi aceito nem pela URSS, nem pelos normantinha em cárcere 36 mil prisioneiros políticos e um saldo
te-coreanos, que não permitiram que essa comissão
de mortes de mais de 100 mil pessoas” (12).
fantoche dos Estados Unidos desenvolvesse as suas
O próprio presidente Truman teve de confessar
atividades no Norte da Coreia.
a conivência dos Estados Unidos com esses crimes:
Em resposta às maquinações dos EUA, realizou“Syngman Rhee (...) rodeou-se de homens reacionários (...)
-se “em Pyongyang, entre 19 e 23 de abril de 1948, a Cone, quando o fim do governo militar lhe deixou as mãos liferência Conjunta de Representantes de Partidos Políticos e
vres para atuar impunemente contra seus inimigos polítiOrganizações Sociais da Coreia do Norte e do Sul – na qual
cos, adotou métodos policialescos para impedir a liberdade
compareceram 695 representantes de 56 partidos e organide expressão. (...) Entretanto, não tínhamos outro remédio
zações, abarcando mais de 10 milhões de coreanos” (7).
senão apoiá-lo” (13).
A própria imprensa norte-americana foi obrigada a
Relatando a repressão política na Coreia do Sul,
reconhecer que “na Conferência de Pyongyang todas as
sustentada pelos EUA, Mário Giordano afirma:
organizações de direita e de esquerda estiveram representa“Syngman Rhee foi reeleito presidente em 1952 e, novamendas, com exceção de três organizações dirigidas por Syngte, em 1956, exercendo poderes ditatoriais para manter-se no
man Rhee, Kim Song Su etc.” (8). Essa Conferência
governo até 1960, quando teve como sucessor o general Park
97.000, (...) superior à produção japonesa de 1944 (...); a
produção industrial subiu 39,6% em 1949(...). O resultado
desse esforço extraordinário (...) foi que desde 1940 até meados dos anos 1960 (...) a Coreia do Norte cresceu de maneira
muito mais rápida que o Sul.” (6).
82
História
Chung Hee, que assume o poder em maio de 1961, após um
golpe militar. Park foi reeleito em 1967 e em 1971, mas em
1979 foi assassinado pelo chefe dos Serviços Secretos. Sobe ao
poder Choi Kiu Ha, que é deposto pelos militares em 1980.
Segue-se a presidência do General Chum Doo Hwan (19801988), caracterizada por repressões políticas” (14).
Como se pode ver, não é de hoje que os EUA impõem e apoiam em todo o mundo ditaduras sem
qualquer compromisso com a democracia...
Com respaldo norte-americano, o Sul
prepara a invasão armada do Norte
Em resposta às eleições fraudulentas realizadas
no Sul, o Norte organizou, em 25 de agosto de 1948,
eleições diretas para a Assembleia Popular Suprema.
Devido ao regime de terror implantado por Syngman Rhee, a única alternativa para a indicação dos
representantes do Sul na Assembleia Popular foi a
indicação clandestina de delegados que, reunidos
em Haeju, elegeram os seus deputados. Assim, em
9 de setembro de 1948 – um mês após a criação da
República da Coreia no Sul –, foi constituída no Norte a
República Democrática Popular da Coreia (RPDC) e Kim
Il Sung foi eleito o seu Chefe de Estado.
Pouco depois, as tropas soviéticas abandonaram
a Coreia em respeito à autodeterminação coreana e
conclamaram os Estados Unidos a fazer o mesmo. Esses, porém, se negaram a fazê-lo e só se retiraram da
Coreia em 30 de julho de 1949, quase um ano depois.
Segundo Bruce Cumings, “Os estadunidenses não podiam retirar suas tropas com tanta facilidade, pois estavam
preocupados pela viabilidade do regime no Sul, por suas tendências ditatoriais e por suas intenções (declaradas a todo o
momento) de marchar em direção ao Norte. Mas muito mais
relevante que isso era a crescente importância que a Coreia
adquiria para a política mundial estadunidense como parte
de uma nova estratégia dual de contenção do comunismo e
revitalização da economia industrial do Japão” (15).
Em fevereiro de 1949, falando à Assembleia Nacional, Syngman Rhee afirmou que caso não conseguisse
anexar a Coreia do Norte com a ajuda da “Comissão
da ONU sobre a Coreia” o “Exército de Defesa Nacional
(...) deverá necessariamente marchar sobre a Coreia do Norte” (16). E, em 9 de março, o seu ministro do Interior,
Yun Chi Yong, afirmou “que a República da Coreia recupere pela força a terra perdida que é a Coreia do Norte é a única
via para reunificar o Norte e o Sul da Coreia” (17).
Em resposta a essas ameaças, em junho de 1949
realizou-se em Pyongyang um encontro para constituir a “Frente Democrática pela Reunificação da Pátria”
que conclamou a reunificação da Coreia pela via pacífica. A FDRP apresentou seis pontos para viabilizar
essa reunificação pacífica: “1) A reunificação da Pátria
deve ser realizada pelo próprio povo coreano; 2) as tropas dos
EUA devem se retirar imediatamente da Coreia do Sul; 3) a
‘Comissão da ONU sobre a Coreia’, organismo ilegal, deve
retirar-se sem tardança; 4) efetuar simultaneamente, em setembro de 1949, em todo o território da Coreia do Norte e do
Sul, eleições para um órgão legislativo unificado; 5) assegurar a legalidade e a liberdade em suas atividades aos partidos
políticos e organizações sociais democráticas; 6) o órgão legislativo supremo, surgido das eleições gerais, deve adotar uma
Constituição e formar, sobre essa base, um governo” (18).
Em julho de 1949, logo após a publicação do projeto de reunificação pacífica da FDRP, em resposta, o
ministro da Defesa da Coreia do Sul, Sin Song Mo,
ameaçou: “Nosso Exército de Defesa Nacional (...) tem a
convicção e a força para ocupar completamente, não importa quando, em um dia, Pyongyang e, mesmo, Wonsan ao
Norte, se a ordem for dada” (19).
A Coreia do Sul – respaldada pelos EUA – preparava-se febrilmente para agredir o Norte.
* Raul Carrion é historiador e presidente da seção
gaúcha da Fundação Maurício Grabois. No PCdoB
desde 1969, foi vereador de Porto Alegre por dois
mandatos e eleito duas vezes deputado estadual.
Notas
(1) CUMINGS, Bruce. El Lugar de Corea en El sol – Una historia moderna. Córdoba: Comunic-arte Editorial, 2004, p. 245.
(2) GARCIA ALVAREZ, Raul I. & PARDILLO GOMEZ, Mayra. Corea Sí.
Pyongyang, 1992, p. 115.
(3) CUMINGS, Idem, p. 219.
(4) FRIEDRICH, Jörg. Yalu – à beira da terceira guerra mundial. Rio
de Janeiro, 2011, p. 188.
(5) CUMINGS, Idem, p. 251.
(6) CUMINGS, Idem, p. 478-479.
(7) DIVERSOS. História de las actividades revolucionarias del Presidente Kim Il Sung. Pyongyang, 2012, p. 227.
(8) JO AM & NA CHOL GANG. Corea en El Siglo XX. Pyongyang, 2002,
p. 98.
(9) TRIAS, Vivian. Historia del imperialismo norte-americano-2. La
hegemonía: 1919-1963. Buenos Aires, 1977, p. 224.
(10) CUMINGS, Idem, p. 233.
(11) HOROWITZ, D. Estados Unidos Frente a la Revolución Mundial
(de Yalta al Vietnam). Barcelona, 1968, p. 147.
(12) VITORINO, William. Guerra na Coreia – A origem de um conflito.
São Paulo, 2010, p. 59.
(13) ZENTNER, Christian. Grandes Guerras de nuestro tiempo – Las
Guerras de la Postguerra (I). Barcelona, 1980, p. 70.
(14) GIORDANO, Mário Curtis. História do Século XX. Aparecida (SP),
2012, p. 572.
(15) CUMINGS, Idem, p. 231.
(16) HO JONG HO, KANG SOK HUI & PAK THAE HO. L’impérialisme
US, provocateur de la guerre de Corée. Pyongyang, 1993, p. 85.
(17) Idem, p. 85.
(18) Idem, p. 88.
(19) Idem, p. 89.
83
Ed. 135 – Março/Abril 2015
1975
Suzana Keniger Lisboa, Milke Valdemar Keniger, Luiz Eurico Tejera Lisboa
1975
Omar Dario Mestoy, Mario Alfredo Amestoy
2006
Suzana Keniger Lisboa, Milke Valdemar Keniger
2006
Mario Alfredo Amestoy
Imagens de uma América
mutilada
A
exposição fotográfica que já atravessou o continente, emocionando ao
provocar o debate sobre desaparecidos políticos em regimes ditatoriais
sul-americanos, volta a São Paulo.
Ausenc’as, do fotógrafo argentino Gustavo Germano
(1964-) vai até o dia 12 de julho retratando a ausência de entes queridos em 12 famílias de vítimas da
ditadura militar no Brasil (1964-1985).
São pares fotográficos, em que a primeira imagem vem do álbum original da família no início da
ditadura, contraposta à imagem de Germano, 30
anos depois, na mesma pose, evidenciando a ausência do desaparecido político.
A ideia simples, mas contundente, ressalta a saudade e tristeza que marcam estas famílias. Momen-
84
tos cotidianos de felicidade familiar – brincadeiras,
passeios, almoços… – são congelados no tempo no
esplendor da completude e felicidade dos personagens. Nas melancólicas imagens atuais, além do vazio, perde-se o sorriso, como uma cicatriz que marca
cada família amputada.
O fotógrafo perdeu o irmão Eduardo, de 18 anos,
mas resolveu começar a retratar essas perdas, depois
de voltar à sua terra natal e observar como o desaparecimento de conhecidos afetou tantas famílias vizinhas.
Como a Operação Condor foi uma articulação de ditaduras que cobriu todo o continente na repressão a
militantes de esquerda, Germano segue fotografando
as marcas da ditadura em famílias de vários países.
Entre as “ausências” reveladas na exposição está
a do comunista brasileiro João Carlos Haas Sobrinho,
memória
1975
2006
“La Tortuga Alegre”. Rio Uruguay. Entre Rios
1970
2012
“La Tortuga Alegre”. Rio Uruguay. Entre Rios
Letícia Margarita Oliva, Orlando René Mendez
Alex de Paula Xavier Pereira
1970
2012
Llara Xavier Pereira, Luiz Xavir Pereira
1947
Luiz Afonso Linck, João Carlos Haas Sobrinho,
Llara Xavier Pereira
2012
Luiz Afonso Linck, Roberto Luiz Haas, Delmar Antonio Linck
Roberto Luiz Haas, Delmar Antonio Linck
formado em medicina em Porto Alegre no ano de 1964.
Ficou conhecido como doutor Juca, atuando no Araguaia. Seu último contato com a família foi em 1968.
Depois disso, apenas em 1979, com o início da
abertura política, os familiares começaram a ter conhecimento de seu envolvimento com o movimento
de esquerda, por meio de comunicados que começaram a ser divulgados sobre a Guerrilha do Araguaia.
Acredita-se que ele tenha morrido em um combate
com soldados, juntamente com outros dois guerrilheiros. Ele teria sido enterrado em Xambioá, segundo relatos, mas o Exército sempre negou sua morte.
Até hoje, a família de João, como conta sua irmã
Sônia Maria Haas, ao jornal O Estado de S. Paulo, continua a busca pelos restos mortais do médico. A primeira fotografia data de 1947 e João está com um de
seus seis irmãos, o Roberto, e dois primos. Para que
a imagem fosse refeita no ano passado, essas pessoas
precisaram se reencontrar e Sônia diz que foi uma
experiência muito importante. Para ela, o trabalho
do fotógrafo «amplia o nosso grito de socorro”.
Há ainda fotografias de militantes da Aliança Libertadora Nacional (ALN), como Ana Rosa Kucinski,
o advogado Luiz Almeida Araújo e Luiz Eurico Tejero
Lisboa, Iuri Xavier Pereira, Alex de Paula Xavier Pereira, entre outros seis exemplos.
A abertura da exposição ocorre no dia 28 de março, sábado, a partir das 11h, prosseguindo até 12 de
julho de 2015.
O Memorial da Resistência de São Paulo fica
no Largo General Osório, 66 – Luz.
85
Ed.Ed.
135133
– Março/Abril
– Nov/Dez 2014
2015
Guernica, 1937. Óleo sobre tela, Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Estudos da obra estarão na exposição em São Paulo
Picasso e a modernidade
espanhola no CCBB-SP
Mazé Leite*
Cerca de 90 obras do artista espanhol estão expostas no
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em São Paulo
A
exposição mostrará um pouco do
caminho de Picasso como artista,
até chegar à realização de Guernica,
e à sua relação com outros artistas
da arte moderna espanhola, como
Gris, Miró, Dalí, Domínguez e Tàpies, entre outros
presentes na mostra. Mas os holofotes principais dela focarão especialmente as obras de um dos grandes
mestres da arte do século XX, Pablo Picasso.
Essa exposição foi organizada e realizada em
colaboração com o Museo Nacional Centro de Arte
Reina Sofía e a Fundación Mapfre. Ela foi realizada
anteriormente na Fondazione Palazzo Strozzi, em
86
Florença, Itália, até o mês de janeiro deste ano. Depois de São Paulo, ela seguirá para o Rio de Janeiro
– também no CCBB –, e poderá ser visitada entre
24 de junho e 7 de setembro. Ao todo, serão apresentados 90 trabalhos – metade deles de autoria do
mestre cubista. Entre os quadros de Picasso que integram a mostra, estão Cabeça de Mulher (1910), Busto
e Paleta (1925), Retrato de Dora Maar (1939) e O Pintor
e a Modelo (1963).
A arte moderna espanhola mostra a sensibilidade
artística dos espanhóis e sua forma especial de ver o
mundo, como resquícios de uma visão barroca que
vem de muito longe. Isto também encontramos no
cultura
Foto: Joaquin Cortés/Román Lores
Picasso pintando Guernica
panha, para piorar, o fascismo de Francisco Franco
criou um mundo de terror para os espanhóis, milhares dos quais tiveram de fugir de seu país para não
morrer, de morte matada ou de fome. Muitos vieram
para o Brasil.
Na minha última viagem à Madri, em 2013, voltei
no avião ao lado de uma senhora espanhola que beirava os 90 anos de idade. Veio conversando comigo
durante as 10 horas de viagem do voo, me contando
coisas dos tempos de Franco, o fascista. Entre outras coisas, ela me disse: “Era tudo uma loucura! Os
vizinhos, os parentes, as pessoas que a gente conhecia começaram a nos dar medo. Você não podia usar
uma correntinha de ouro no pescoço. Teu vizinho ou
teu parente te roubava para comprar comida! Em casa, um pão teria que durar vários dias. Minha mãe
partia um pequeno pedaço para cada filho, e muitas
vezes ela mesma ficava sem o pedaço dela. Meu pai
saía atrás de trabalho e não tinha. Todo mundo vivia de cabeça baixa, a gente falava pouco. O medo
era geral. A gente ouvia tiros pelas ruas, andava se
esgueirando nas calçadas… Meu pai foi preso duas
vezes, suspeito de ser comunista.” Por isso, assim como milhares de espanhóis, ela – de quem esqueci o
nome – veio morar no Brasil, para onde estava voltando das férias, para visitar umas amigas. Sozinha,
e com quase 90 anos. “O Brasil é o país que tem o
melhor povo do mundo”, afirmou ela.
Na exposição do CCBB, o público também poderá
ver estudos e esboços que resultaram na obra prima
Guernica, um painel que Picasso pintou em 1937, e
que representa as atrocidades cometidas pelas ações
da direita fascista e nazista durante a Guerra Civil Es-
cinema de Luiz Buñuel e Pedro Almodóvar. Qualquer
um de nós que tenha tido acesso às criações artísticas espanholas consegue identificar uma linha que
unifica desde Velázquez ao próprio Almodóvar, e de
Francisco Goya a Picasso.
É uma maneira de fazer arte como expressão que
beira o drama, nunca se identificando com o que
seria uma visão mais lógica e racional. Não
existem medidas lineares na alma espanhola.
O próprio Velázquez não obedecia a regras
vindas “de fora” e se concentrou em seu próprio jeito de pintar, com pinceladas certeiras
e livres. Pintava o rei Felipe, mas também os
aleijados, os deformados da Corte. Mesmo as
tentativas cubistas de Picasso tinham uma
razão de ser que vinham do fundo de um artista muito bem informado sobre seu mundo: estraçalhado por uma Europa em frangalhos que em menos de 30 anos passou por
duas guerras sanguinolentas. Picasso atravessou diversas circunstâncias históricas,
socioeconômicas e políticas que o faziam se
redefinir gradualmente como artista.
Naquele período a relação com a realidade era difícil: homens matando homens,
milhões morrendo na guerra, de fome por
causa da guerra, de doenças por causa da
guerra. As vidas de todos reviradas. Na EsO pintor e a modelo - 1963, Picasso
87
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Busto e Paleta, 1925 - Picasso
panhola, que durou de 1936 a 1939. O painel, de 3,49
metros de altura por 7,76 metros de comprimento expõe os horrores causados pelos aviões da força aérea
alemã nazista contra a população da pequena cidade
de Guernica. Aliados do general Franco, os alemães
fizeram deste ataque um treino para posteriores ações
contra os aliados. Foram lançados 300 quilos de bombas contra o povo da pequena cidade dos bascos.
Em 2001, parei diante deste painel durante umas
duas horas, dentro do Museu Reina Sofia, onde ele se
encontra, em Madri. Minha alma chorava. Aqueles
corpos despedaçados, desesperados, e aquele cavalo
em agonia me mostravam um mundo em que não
vivi, mas que nunca deve ser esquecido, para que
esse horror não mais se repita. Mas me levava também a lembrar do horror da ditadura militar no Brasil – que vivi! – que assassinou, torturou e perseguiu
centenas de pessoas como eu. Quando vi Guernica,
para minha sorte, ele já não estava mais protegido
por vidro blindado e eu pude vê-lo frente a frente.
Do lado esquerdo do quadro, junto com uma mãe
gritando de dor com seu filho no colo, aparece a cabeça
de um bovino. Seria a representação do antigo Minotauro, criatura mítica – da antiga mitologia grega –, um
ser com a cabeça de um touro e o corpo de um homem,
ou seja, oscilando entre o humano e o bestial. Picasso
já tinha feito, no começo da década de 1930, uma série
de estudos sobre a saga do minotauro, relacionando-o
com as famosas Touradas do seu país. E ele acabou colocando a imagem do monstro como parte de sua representação da tragédia do povo de Guernica.
O quadro parece uma constelação de relações
nem sempre apreensíveis. No meio dele, há um
cavalo que relincha sobre corpos esquartejados. Picasso era comunista, o cavalo representava o povo:
88
Retrato de Dora Maar, 1939 - Picasso
mesmo com a cabeça cortada, e com uma expressão
de dor, mas não de derrota, o cavalo luta. Acima de
sua cabeça, uma luz se acende e um braço estendido
apresenta uma lamparina acesa. Por todo lado, corpos esfacelados. Mas há luz, há esperança. Esta é a
grande mensagem de Picasso.
Esta exposição do CCBB, portanto, será uma boa
oportunidade para ver de perto as obras deste artista espanhol, além dos outros, e, em especial, seus
estudos para a Guernica. Tomara que mais uma vez
400 mil pessoas façam fila para ver uma grande exposição, como o fizeram para ver Ron Mueck. E que
a arte dos espanhóis sirva para despertar reflexões
sobre os momentos em que vivemos nos dias atuais:
momentos “peligrosos”, em que forças bestiais subterrâneas resolveram colocar a cabeça para fora…
No mundo, e no Brasil.
* Mazé Leite é artista plástica, faz parte do Ateliê
Contraponto de Arte Figurativa e é membro da
Fundação Maurício Grabois – Seção São Paulo.
Serviço
Evento: Picasso e a Modernidade Espanhola –
Obras da Coleção do Museo Nacional Centro de
Arte Reina Sofía
Data: De 25 de março a 8 de junho de 2015,
das 9h às 21h
Local: Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo – Rua Álvares Penteado, 112 – Centro, São
Paulo – (11) 3113-3651/3652
Entrada franca
homenagem
Arte “subversiva” de Abelardo
da Hora em exposição
Cezar Xavier*
Maior artista expressionista brasileiro, o ativista
cultural comunista pernambucano morto em 2014
recebe homenagem póstuma em mostra com
101 obras, entre esculturas, desenhos, pinturas
e maquetes de projetos finalizados ou ainda por
fazer. Em entrevista à Princípios, seu filho destaca as
inúmeras violências sofridas pela família conforme
os governos ditatoriais se sucediam, aprisionando e
torturando o artista por sua militância em favor de
uma arte e de uma cultura que chegasse ao povo
A
Caixa Cultural São Paulo inaugura no
dia 7 de março, sábado, às 11 horas,
a mostra individual de Abelardo da
Hora (1924-2014), com 101 obras que
trazem ao público a faceta inquieta e
generosa do artista pernambucano.
Dentre as esculturas, os desenhos, pinturas e maquetes destacam-se os bronzes Menino de Mocambo,
de 1969 e A Fome e o Brado, de 1947, a série de 22
desenhos de bico de pena de 1962 e o poema Meninos
do Recife, além da maquete e fotos da polêmica Torre
de Iluminação Cinética, instalada na Praça da Torre,
no Recife, em 1961 e destruída pelo regime militar
em 1964.
Em entrevista a Princípios, Abelardo da Hora
Filho explica que a escolha das obras foi limitada
pelas condições logísticas da Caixa Cultural, que
não poderiam ser de grande porte, volume ou peso,
características de uma grande parte das esculturas.
Apesar disso, ele garante que a exposição é impressionante pelo alcance do acervo e comovente pela
temática.
Conhecido e admirado pelo temperamento ao
mesmo tempo generoso e irreverente, o artista e
ativista cultural celebrizou-se internacionalmente
a partir dos anos 1960 com obras de temática social que denunciavam a miséria brasileira e a exclusão, sendo considerado pela crítica especializada o
maior escultor expressionista do Brasil.
Foi essa veia política que fez com que Abelardo fosse perseguido durante o período da ditadura militar. Integrante do então clandestino Partido
89
Ed. 135 – Março/Abril 2015
Durante os anos de 1957 e 1958
expôs em vários países. Possui obras
nos acervos de museus como MASP
em São Paulo, no MAC/USP em São
Paulo, no Museu Nacional de Belas
Artes no Rio de Janeiro, entre outros
espaços na Bahia, na Paraíba, em Pernambuco, no EuroMuseu, além de
prédios e praças públicas, museus,
galerias e espaços de arte nos Estados
Unidos, China e Argentina.
Lançou, em 1962, o álbum de desenhos Meninos do Recife e em 1967, a
coleção de desenhos Danças brasileiras
de Carnaval, na Galeria Mirante das
Artes, em São Paulo. Segundo o filho,
sua preocupação social, tanto na arte,
como na vida, nunca foi abandonada,
embora também seja famoso pelas
musas do amor que esculpiu. O Instituto Abelardo da Hora realiza, com
dificuldades, um trabalho educativo
para crianças e adolescentes de Recife
que visa à educação para a arte.
Integrante do então clandestino
Partido Comunista desde 1948, Abelardo e sua família conheceram a prisão, a tortura e perseguição do regime de exceção que sobreveio ao golpe
Série Danças Brasileiras de Carnaval, 1965 e 66 (10 desenhos a bico de pena)
civil-militar de 1964. A cada Ato Institucional baixado pelos
Comunista, o artista contava que havia sido preso
militares, e sob quaismais de 70 vezes. Abelardinho conta que, desde o
quer outros pretextos,
cancelamento do Salão Nacional de Belas Artes do
o artista “subversivo”
Rio de Janeiro, pelo presidente Eurico Gaspar Duera preso, contabilitra, em 1945, seu pai se envolveu numa contestação
zando mais de 70 prique começou a torná-lo um subversivo para os gosões desde 1947 quanvernos. O concurso existia desde os tempos do imdo fazia propaganda
pério, e seu cancelamento foi uma grande decepção
política em comício do
para o pernambucano, que tinha todas as chances
Partido.
de vencê-lo aquele ano.
O filho relata que,
Idealizou e criou com Hélio Feijó e outros, a Sodesde os primeiros
ciedade de Arte Moderna do Recife (SAMR) e, em
problemas políticos,
1952, fundou o Atelier Coletivo da SAMR do qual foi
ainda na década de
professor e diretor. Foi também um dos idealizadores
1940, Abelardo era
do Movimento de Cultura Popular (MCP), criado na
tratado como vagagestão do então governador de Pernambuco, Miguel
bundo, como todo
Arraes, entre 1960 e 1962. Esse movimento refletia
artista era visto pelas
um sentido altamente engajado e seu objetivo era
elites atrasadas da“ampliar a politização das massas, despertando-as
quele tempo. Para a
para a luta social”, conforme preconizavam seus
família, segundo ele,
participantes, entre os quais o célebre educador PauTorre de Iluminação Cinética,
foi uma vida muito
lo Freire, o escritor Ariano Suassuna, entre outros
1961 (foto de jornal)
difícil, só compensaintelectuais.
90
Exposição
da pelo otimismo e personalidade dinâmica e carismática do pai. Abelardinho lembra
de como os amigos de pelada e papagaio se
afastaram dele, como se tivesse uma doença,
conforme o pai era considerado um subversivo, pouco depois de ter ocupado
o cargo de secretário de Cultura do
Recife. A família não tem imagens
fotográfica de infância, pois a cada prisão, a polícia destruía
e queimava tudo. A obra
Meninos do Recife foi queimada em praça pública,
junto com a obra do educador Paulo Freire.
Vendo a situação
difícil do artista após
o golpe, Pietro Maria e
Lina Bo Bardi sensibilizam-se e acolhem
Abelardo e família em
São Paulo, onde passa
a trabalhar na extinta TV Tupi, a partir de
1964. Cheio de saudade de sua terra, ele
retorna ao Recife em
1968, dedicando-se à
pesca enquanto cursa
A Fome e o Brado,
a Faculdade de Direito
1947 (bronze, 135 x 60 x 30 cm)
de Olinda. Nos anos 1970 volta a trabalhar
em seu estúdio.
Ao morrer, no ano passado, o artista
deixou um busto do camarada Gregório
Bezerra inconcluso, sem poder vê-lo instalado na praça Casa Forte, onde ele foi
arrastado e deixado em carne viva para
a população ver. Abelardinho lamenta
que o pai não tenha visto o busto ser
colocado ali, embora haja um esforço
da Comissão da Verdade local para
isso, com forte resistência dos moradores do bairro nobre recifense.
À época da tortura escandalosa de
Bezerra, ambos ficaram presos na
mesma cela minúscula, que não
permitia nem sentar, nem deitar
com conforto.
Outra obra que deve resgatar aquele período é a
reconstrução da Torre de
Iluminação Cinética. A obra
era como um móbile gigante que ao ser tocada pelo vento, se movia, criando
imagens, que os militares
identificavam como sendo
o ícone comunista da foice
e o martelo.
Abelardo deixou o Partido
Comunista à época do golpe, por considerar que o enfrentamento aos militares deveria
ser pela luta armada, embora fosse quase impossível para ele continuar militando sem risco de morte.
Mas, segundo o filho, ele nunca se afastou dos camaradas e dos seus ideais, apenas se desencantando
com a militância orgânica.
Cezar Xavier é jornalista e editor executivo do
Portal Grabois.
Serviço
Mostra: Abelardo da Hora 90 anos: Vida e Arte
Abertura: 7 de março, sábado, às 11 horas,
prosseguindo até 10 de maio de 2015.
Local: CAIXA Cultural São Paulo
Endereço: Praça da Sé, 111 – Centro – São
Paulo - SP
O busto inacabado de Gregório Bezerra, ainda úmido
Entrada: franca
91
Ed. 134 – Jan/Fev 2015
Getúlio: biografia de um
grande e polêmico presidente
Carlos Rogério Carvalho Nunes*
Lira Neto no
lançamento da
biografia em
São Paulo
Ler a biografia do presidente Vargas na atualidade é mergulhar
na história do Brasil do século 20. É, também, acompanhar
os meandros das disputas políticas que fizeram o Brasil se
modernizar e avançar
S
ão consolidados 922 artigos, em lei,
que asseguram direitos do trabalho,
protegendo o trabalhador e a trabalhadora. A Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT) foi aprovada em
1943 pelo presidente Getúlio Vargas.
As relações e os conflitos do mundo do trabalho, que
antes eram tratados como “questão de polícia”, estavam então regulamentadas em normas e regras
como legislação trabalhista. A entrada em vigor, no
Brasil, da CLT ocorreu em um cenário internacional
da Segunda Grande Guerra Mundial e sob o Estado
Novo – uma ditadura que perseguiu democratas e
comunistas –, sob a presidência de Getúlio Vargas.
A elaboração, discussão e aprovação da CLT é
parte de surpreendente, polêmica e atualíssima bio-
92
grafia do presidente Getúlio Vargas, feita pelo biógrafo e jornalista Lira Neto. A obra é composta de
três volumes: Dos anos de formação à conquista do poder:
1882-1930; Do governo Provisório à ditadura do Estado
Novo: 1930-1945; e De volta pela consagração popular ao
suicídio: 1945-1954
Cearense de Fortaleza, o autor Lira Neto já escreveu sobre outros personagens importantes da vida
política nacional. São de sua autoria: O inimigo do rei:
Uma biografia de José de Alencar; Castello: A marcha para a
ditadura (do presidente Castello Branco); e Padre Cícero.
O primeiro dos três livros que integram a biografia de Getúlio relata desde o nascimento de Getúlio
Dornelles Vargas, em 1882, até o ano de 1930; um
espaço de 48 anos, mais da metade de seus 72 anos
de vida. É filho de um general da guerra do Paraguai
RESENHA
– Manoel do Nascimento Vargas – e de Cândida Dornelles Vargas, filha de próspero estancieiro da região.
Forma-se em Direito na Faculdade de Direito de
Ouro Preto (MG), à época, capital mineira. Serve o
Exército no 6º Batalhão de Infantaria em São Borja,
onde galga a patente de segundo-sargento. Era leitor
assíduo do fundador do positivismo Auguste Comte.
Entra efetivamente na vida política através do
Partido Republicano do Rio Grande do Sul (PRR).
Torna-se herdeiro político de Júlio de Castilho e
Borges de Medeiros, ambos sob a égide do positivismo comtiano. É eleito deputado estadual, em 1909.
Casa-se com Darcy Sarmanho; ela com 15 anos e
ele com 29.
Fato irônico e trágico para a
política tradicional gaúcha, em
1923, é a eleição para a recondução para o quinto (sic) mandato consecutivo do presidente
estadual (equivalente ao governador estadual de hoje) Borges
de Medeiros. Em 1923, Getúlio
Vargas faz parte da comissão de
apuração de votos. A comissão
fica constrangida em dar a má
notícia, ao presidente estadual,
de sua insuficiência de votos
para a recondução. Antes da comissão se pronunciar, Borges de
Medeiros surpreende a todos e
antecipa festiva saudação: “Já
sei, vieram me dar os parabéns
pela nossa retumbante vitória”.
A comissão não contraria o eminente líder e retorna à Assembleia para “refazer as contas”.
Dia seguinte, lógico, Borges de Medeiros é reeleito
com grande maioria.
A década de 1920 é marcada pela efervescência
nos quartéis, com o tenentismo, e pela Coluna Prestes. Na época Getúlio Vargas é eleito deputado federal,
em 1923; em seguida, torna-se ministro da Fazenda
do presidente Washington Luís (1926-27), e presidente (governador) do Rio Grande do Sul, em 1928.
Em meio à crise que se agrava no país, no final
da década de 1920, o governista Getúlio Vargas inicia contatos com os líderes tenentistas, como o capitão Siqueira Campos, sobrevivente do massacre do
Forte de Copacabana, de 1922. A eleição presidencial de 1930 coloca Getúlio Vargas na oposição e, então, lança-se candidato à Presidência da República,
tendo como candidato a vice o paraibano João Pessoa. As eleições, mais uma vez, são fraudadas. Julio
Prestes, candidato governista, obteve 1,091 milhão
de votos, enquanto o oposicionista Getúlio Vargas
computa 742 mil votos. É sob esse ambiente político
de crise que surge a revolução de 1930, tendo à frente Getúlio Vargas.
A ascensão de Vargas se dá com seus elevados
instintos de habilidade, oportunidade e talento. Segundo o biógrafo, acrescente-se também a dissimulação, o estratagema e a prudência, que tornariam
Getúlio Vargas líder da Revolução de 1930.
Assim encerra-se o primeiro volume da biografia.
No segundo volume, o presidente Vargas, como
chefe do governo provisório, tinha sob seu comando um país economicamente arrasado, devido à crise mundial e a seus rebatimentos internos, como a
queda brutal dos preços do café,
reduzidas reservas cambiais e alta
dívida externa. No campo social, o
país estava muito atrasado. Havia
pouco menos de 41 anos, havia
saído do regime escravista e com
um ex-presidente deposto que
berrava que a “questão social era
um caso de polícia”.
Motivado
economicamente
pela falência do mercado cafeeiro,
pela crise mundial, o empresariado paulista reage ao governo provisório de Getúlio Vargas. Sob a
égide do conservador jornal O Estado de S. Paulo, de propriedade de
Júlio Mesquita Filho, a sociedade
paulista contesta a legitimidade
do governo Vargas. O propalado
movimento
constitucionalista
de 9 de julho de 1932 representa
verdadeiramente uma desforra
das velhas oligarquias cafeeiras apeadas do poder em
1930.
Em meio à Constituinte de 1934 e à eleição indireta do presidente Vargas, surge, em janeiro de
1935, a Aliança Nacional Libertadora (ALN). Um
movimento popular de resistência à Lei de Segurança Nacional. A ALN teve notória participação de
militares simpatizantes do Tenentismo. Em novembro de 1935, é deflagrada a insurreição comunista;
levante com base apenas nos setores militares, tem
os estados de Pernambuco e Rio de Janeiro como
focos. Mas é o Rio Grande do Norte que registra
mais adesão popular. A repressão getulista foi forte,
contra os insurgentes. O governo Vargas caminha
para um regime fascista e, em 1937, instaura a ditadura do Estado Novo, em que persegue, oprime,
tortura e assassina milhares de democratas e comunistas. Apesar de vários intelectuais, jornalistas
93
Ed. 134 – Jan/Fev 2015
e artistas serem presos, na verdade, foi uma verdadeira caça aos comunistas. Os membros do Partido
Comunista foram as maiores vítimas da insanidade
facista que norteou Getúlio Vargas no período.
Nesse período, estoura a Segunda Guerra Mundial e o governo Vargas é favorável aos países nazifascistas. Esse movimento ideológico também se
processa no governo estadonovista de Vargas. O
presidente soube barganhar ora com um ora com
outro país envolvido na guerra, para trazer investimentos ao Brasil. Ao fim, sai um
acordo com os norte-americanos
que prevê, entre várias cláusulas,
expressivo aporte financeiro para
a construção de uma usina siderúrgica brasileira.
O fim do Estado Novo estava
chegando. Vem a vitória das forças aliadas tendo como lideranças
vitoriosas a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS)
e os Estados Unidos da América
(EUA). O presidente Vargas inclina-se às aspirações trabalhistas e
se distancia de setores ultraconservadores que já não apoiavam
mais o Estado Novo. Como tentativa de permanecer no poder, Getúlio Vargas incentiva e participa
de manifestações populares e trabalhistas. Essas manifestações tinham apoio popular devido à legislação de proteção ao trabalho:
a CLT. O movimento é batizado como “queremos
Getúlio”, ou queremismo.
O ambiente internacional de democracia, com
o fim da Segunda Guerra Mundial, atinge o governo Vargas. Dois grandes partidos são inicialmente formados: o Partido Social Democrático (PSD),
que congrega os principais interventores do período do Estado Novo; e a União Democrática Nacional (UDN), uma frente antigetulista. Em seguida, o
próprio Getúlio Vargas incentiva a criação do Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), formado por lideranças
sindicais.
A deposição de Getúlio Vargas em 1945, é, na verdade, um golpe branco. Todo o ministério de Vargas,
sob pressão dos militares, pressiona o presidente à
renúncia, o que ocorre de fato.
O terceiro volume vai desde sua reclusão, após a
renúncia, em 1945, até seu suicídio, já como presidente, em 1954.
Em São Borja (RS), Getúlio acompanha o cenário político nacional. Acompanha e influencia, pois
os 15 anos de poder máximo no Brasil não são me-
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nosprezados. Há o temor de que a possível vitória
da UDN, nas eleições de 1945, resulte na retirada
do conjunto de leis aprovadas no período Vargas.
A aliança PSD e PTB, construída para impedir tal
retrocesso, principalmente para preservar a legislação trabalhista conquistada, se consolida. O acordo
é fechado e o PSD e PTB lançam o general Eurico
Gaspar Dutra para presidente, que ganha a eleição
com 3,2 milhões de votos, contra 2 milhões de votos
do udenista Eduardo Gomes e 569 mil votos dados
ao comunista Iedo Fiúza. Já para a
eleição da bancada constituinte, o
PSD fica com 185 cadeiras; a UDN,
com 89; o PTB, com 23; e o PCB,
com 16, entre os maiores partidos.
Getúlio se elege como senador pelo
Rio Grande do Sul.
Nota de importante valor no arquivo pessoal de Getúlio Vargas diz
respeito à sua preocupação, e do
PTB, com a crescente influência do
PCB nas organizações operárias,
disputando hegemonia com o PTB
na área sindical.
O governo Dutra não vai bem.
Implanta uma política desastrosa de abertura de mercado às importações e elevação das taxas de
câmbio. Concomitantemente, o
PCB é cassado, em 1947. A recém-fundada Confederação dos Trabalhadores do Brasil
(CTB), sob direção dos comunistas, sofre intervenção federal.
Nesse momento, entra em cena um personagem
lúgubre que perseguirá Getúlio Vargas até sua morte: Carlos Lacerda. Conservador, opositor ferrenho de
Getúlio Vargas e jornalista, é dele a frase de ataque a
Getúlio: “O Sr. Getúlio Vargas senador não deve ser
candidato. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não
deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar”. Dono do jornal
carioca Tribuna da Imprensa, faz desse órgão de comunicação seu palanque de oposição a Getúlio Vargas.
Em outubro de 1950, Getúlio Vargas é eleito presidente do Brasil, com 3.849.040 votos. Eduardo
Gomes, da UDN, obtém 2.342.384 votos; e Cristiano
Machado, candidato oficial do governo, pelo PSD,
obtém 1.697.193 votos, entre os principais candidatos. Vale ressaltar que a maioria dos órgãos de imprensa apoia o udenista Eduardo Gomes.
Após a vitória, o presidente Vargas compõe um
ministério eclético, composto por representantes dos
três maiores partidos da época: PSD, UDN e PTB.
Vargas nomeia um grupo de assessores econômicos
RESENHA
ligados à Presidência com o objetivo de elaborar estudos e projetos de infraestrutura nas áreas de energia, transporte e industrialização. Esse grupo fica
conhecido como os “boêmios cívicos”, pois mantinham as luzes acesas até altas horas da madrugada,
trabalhando. O presidente Vargas queria um documento programático e nacionalista com industrialização planejada e intervenção governamental.
No governo do presidente Vargas é criada a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), em 3 de outubro de
1953. De difícil aprovação, as negociações no Congresso Nacional para
a criação duram dois anos e meio.
O presidente Vargas avança
também na área trabalhista. Concede aumento ao salário-mínimo,
com índice de 300%, para o ano de
1952. Não obstante essa correção
salarial, o movimento sindical brasileiro faz lutas importantes. Nessa
época, a histórica Greve dos 300 mil
é realizada por diversas categorias,
em São Paulo, em 1953.
Sob a presidência de Getúlio
Vargas, é criado o Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico
(BNDE) (mais tarde transformado em Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social,
BNDES), com a função de elaborar
de grandes projetos estratégicos e ser indutor da política de industrialização.
Estava cada vez mais difícil para o presidente
Vargas, nos últimos dois anos de seu governo, obter
boa articulação parlamentar. Aos poucos, o governo
encontrava-se no isolamento político. Em 1953, o
presidente faz nova composição ministerial; agrega
a maioria das pastas para a UDN e o PSD. No PTB,
seu partido, o presidente Vargas abriga o Ministério
do Trabalho. Nomeia o jovem João Goulart presidente da sigla.
Concomitantemente à mudança ministerial, o
presidente Vargas sofre violentos e brutais ataques
da imprensa. Eram diuturnos os ataques dos jornais Diários Associados, de Assis Chateaubriand; do
rádio e jornal O Globo, de Roberto Marinho; da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda; dentre outros.
Mesmo sob ataques da mídia conservadora o presidente Vargas avança nas realizações desenvolvimentistas no Brasil. Sob sua gestão são criadas a
Usina de Paulo Afonso; a Refinaria de Cubatão; a
segunda Usina Siderúrgica de Volta Redonda; ampliada a Vale do Rio Doce; e fundado o Banco do
Nordeste do Brasil (BNB).
A Petrobras é a empresa que mais sofre ataque
conservador. O Diário da Noite publica que o monopólio é um capricho caro. O Correio da Manhã classifica a iniciativa da Petrobras como uma “aventura
de nacionalistas rasteiros”, e de que é uma “experiência sujeita a fracassar”. E preveem o fracasso
dentro de um ano, no máximo.
Outra frente conservadora contra o presidente
Vargas vem do setor militar. As críticas de parte da
oficialidade, principalmente o autocomando, falam
desde um cenário político de “perigoso ambiente de intranquilidade”, até de um “comunismo solerte sempre à espreita”.
Diante das pressões, o presidente Vargas muda os Ministérios
da Guerra e do Trabalho. Em vão,
pois continua sob ataque ferrenho
de opositores. Em 1º de maio de
1954, eleva o valor do salário mínimo em 100%. Mais uma vez recebe
adjetivos e epítetos demolidores
da imprensa reacionária: “protetor
de ladrões”, “desonrado inepto”,
“corruptor e abjeto”, são os mais
pronunciados contra o presidente.
Acontecimento curioso ocorre
quando o presidente Vargas faz
uma aparição pública no Hipódromo da Gávea, para assistir ao Grande Prêmio Brasil de turfe, em 1º de agosto de 1954,
evento que, na época do Estado Novo, frequentava
com assiduidade. Mas, naquele dia, porém, recebe
uma estrondeante vaia.
Em agosto, ocorrem lances mais extraordinários, e o lance fatal. O mais importante é o assassinato do major Rubens Florentino Vaz, que era
escolta do jornalista Carlos Lacerda. O crime teria
sido a mando de Gregório Fortunato, guarda-costas do presidente Vargas. Os indícios trazem provas a respeito da hipótese. Esse episódio deflagra
uma crise fatal no governo Vargas. Setores militares
pressionam o presidente a renunciar ao mandato. A
imprensa conservadora liga diretamente o crime do
major à responsabilidade presidencial.
Em 24 de agosto de 1954, poucas horas depois
de última reunião ministerial, o presidente Vargas
suicida-se.
Carlos Rogério de Carvalho Nunes é assistente
Social, mestre em Serviço Social e pesquisador
do núcleo de Estudos e Pesquisas em Movimentos
Sociais — NEMOS/PUC—SP. Secretário de
Políticas Sociais da CTB Nacional
95
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