sobre.VIVE.ntes - Petcom - Universidade Federal da Bahia

Transcrição

sobre.VIVE.ntes - Petcom - Universidade Federal da Bahia
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
sobre.VIVE.ntes
texto_imagem_espaço
POR ANA PAULA BONI
ORIENTADOR: MAURÍCIO TAVARES
Memória do trabalho de
conclusão de curso de
graduação em jornalismo
Julho de 2005
Salvador, Bahia
ÍNDICE
1. Agradecimentos
3
2. Resumo
4
3. Apresentação
5
4. A História [memória de texto]
12
4.1 Um Perfil
12
4.2 Novo Jornalismo
15
4.3 Parênteses sobre Jornalismo Gonzo
21
4.4 Passo-a-passo do Perfil
24
4.4.1 Escolha do Personagem
24
4.4.2 Abordagem
26
4.4.3 Entrevista
28
4.4.4 Texto [escrita e edição]
30
5. O Clique [memória de fotografia]
33
5.1 Antes de Chegar Lá
33
5.2 Fotojornalismo
34
5.3 Técnica
37
5.3.1 O Filme
37
5.3.2 A Lente
39
5.3.3 A Posição da Câmera
40
5.3.4 A Fotometria
40
5.3.5 Recursos Artificiais
41
5.3.6 Recorte
41
5.4 Johannes Vermeer
43
6. A Instalação [memória da exposição]
6.1 Descrição Técnica
44
46
7. Um Capítulo à Parte
49
8. Bibliografia
54
9. Anexos [perfis na íntegra e editados]
57
2
AGRADECIMENTOS
Há dois anos todo mundo que convive comigo ouve falar de meu projeto de fim de curso.
Muita gente me deu força para me adiantar logo e me formar, outros tantos iluminaram meu
caminho profissional e me fizeram mudar de projeto, além de melhorá-lo aqui e ali. Se for
citar os nomes, corro o risco de deixar alguém de fora. Fica, então, um grandioso abraço
para todo mundo da Facom, do Jornal A Tarde, do Teresa de Lisieux, da Folha de S.Paulo,
os tantos amigos de Salvador e de São Paulo, pai, mãe, irmãos. Valeu pela paciência de
tanto ouvir eu falar sobre este projeto de fim de curso.
3
RESUMO
O projeto sobre.VIVE.ntes trata de um projeto para exposição que reúne texto, imagem e
espaço. São fotografias de personagens das ruas com seus perfis [histórias de vida]
expostos atrás das placas das fotos, que serão instaladas em formato de círculo. A seguir,
explico como cheguei à idéia em três memórias descritivas: uma para os textos, uma para as
fotografias e uma para a instalação. Os perfis [na íntegra e editados] vão em anexo neste
bloco. À parte segue o portfólio com as fotos, o texto de apresentação da exposição e os
perfis editados. O portfólio serve como objeto para que o projeto seja apresentado para
diretores de galerias.
4
APRESENTAÇÃO
Eram quase 23h de uma quarta-feira de agosto de 2004, mais de oito museus e galerias
percorridos em menos de cinco dias que havia chegado a São Paulo. Estava na cidade para
fazer o último teste para a seleção da próxima turma de trainees da Folha de S.Paulo. Minha
cabeça era um turbilhão de novidades. Nunca havia visitado São Paulo, mundo de
entretenimento escorrendo pelo ladrão. Se em Salvador me esbaldava em exposições
diversas [principalmente de fotografia, paixão], não deixaria de rodar a capital paulista atrás
de novidades. Caso não passasse no teste, talvez não voltasse à cidade tão cedo.
Na quarta-feira a que me refiro, cheguei na casa da amiga que me hospedava para sair
novamente. Havia acabado de comprar um livro de uma exposição fotográfica que Walter
Carvalho1 havia realizado no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro. Folheava o livro
entretida, mas com pressa. Tinha de me arrumar para sair. Porém estava atordoada com
tanta informação que havia recebido naqueles últimos dias _principalmente naquela quartafeira, em que visitei o Centro Cultural Banco do Brasil e o Conjunto Cultural da Caixa,
ambos no centro de São Paulo_ que acabei ficando no sofá, como que em êxtase,
paralisada. Passando a limpo na cabeça tudo que havia acontecido comigo naqueles últimos
dias.
Todas as galerias visitadas traziam exposições de fotografia. Além disso, na minha mão
aquele livro de Walter Carvalho me inspirava. Idéias saltitantes e várias questões que não
tinham, até então, respostas: passaria no teste para a Folha? Moraria em São Paulo? E meu
projeto da faculdade? Como faria uma série de reportagens sobre o bairro de Alagados, na
periferia de Salvador?
Esse projeto sobre Alagados já era o segundo a que me dedicava na faculdade num espaço
de um ano e meio, enquanto não conseguia me formar. Antes, a idéia era uma série de
1
Diretor de fotografia de cinema, trabalhou nos filmes Madame Satã (2002), Abril Despedaçado (2001),
Lavoura Arcaica (2001), Central do Brasil (1998), entre outros
5
reportagens sobre o bairro Dois de Julho nos idos da década de 50 e 60, quando o bairro
abrigava a efervescência e boemia intelectual de Salvador. A idéia foi rejeitada tão logo se
desenhava, em fins do ano de 2003, porque, trabalhando no Caderno Dez!, suplemento
juvenil do Jornal A Tarde, em Salvador, queria me envolver com algo, digamos, social.
Como o caderno dava atenção a temas como educação, cidadania e tinha olhos e mãos
quase “ongueiros”, sentia que esse trabalho despertado em mim não poderia ser
desperdiçado. Não que me sentisse na obrigação de fazer um projeto que tivesse cara de
ONG [Organização Não-Governamental], mas porque gostava da questão social e queria
me envolver com grupos que desenvolvessem trabalhos desse tipo.
Foi nesse período, mais ou menos em janeiro de 2004, que mudei meu projeto para uma
série de reportagens sobre o bairro de Alagados. O recorte era o desenvolvimento da
comunidade através de atividades culturais, sem a ajuda do governo.
Após pesquisar em jornais sobre a história do bairro, fiz, em abril, duas visitas ao local.
Nessa época, passei a tarde conversando com pessoas que tinham trabalho de educação e
cultura [artesanato, música, teatro] voltado para a população local. Uma senhora [carioca,
havia estudado o método Paulo Freyre, chegou a Salvador quando Alagados era mal e mal
habitado, na década de 70] me mostrou o trabalho de sua ONG, que já tinha 25 anos de
existência e mudava a cara do bairro.
Fiquei apaixonada pela idéia de escrever sobre a história do bairro e havia achado a fonte
certa para me dar dados que talvez não conseguiria nos jornais da época. O problema é que
aqui [lá] estava eu em São Paulo, com novos projetos de vida e com chances de na nova
cidade me instalar, o que me faria mudar [de novo] o projeto de conclusão de curso de
graduação.
Eu fiquei envolvida pela idéia de fazer perfil de pessoas anônimas [o que viria
acompanhado por fotogafia] após ler, em abril de 2004, o livro “O Segredo de Joe Gould”,
do norte-americano Joseph Mitchell, um dos expoentes do chamado “new journalism”.
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Joe Gould era um médico formado em Harvard, nos Estados Unidos, que largou sua
carreira profissional e a família para viver como boêmio nas ruas de Nova York.
Mendigava nas ruas para conseguir os centavos suficientes para o café do dia. Gould,
maltrapilho que sobrevivia da bondade alheia, dizia saber falar a língua das gaivotas,
tendo inclusive traduzido poemas para o idioma. Era um poço de excentricidades.
Quando Joseph Mitchell se aproximou, descobriu que Gould escrevia uma tal de uma
história oral. Parecia ser uma espécie de histórias de vida de pessoas que conheceu
durante sua vida. Essa história oral a que Gould se referia em cada encontro com
Mitchell, e que gostaria de publicar, não existia. Esse era o segredo de Joe Gould.
Segundo João Moreira Salles, no posfácio de “O Segredo de Joe Gould” [2003], Gould
foi o personagem que Joseph Mitchell mais escutou. Chegou a ouvi-lo durante dez
horas seguidas. Começou a escutá-lo em 1938 e só parou em 1957, quando Gould
morreu
Depois que li “O Segredo...”, lembro-me de ter parado mais vezes para observar um senhor
maltrapilho que passava o dia na avenida Tancredo Neves, na frente do jornal A Tarde,
onde eu trabalhava à época.
Às vezes, esse senhor aparentava ter 60 anos de idade, às vezes parecia ter 40. Não dava,
pela capa de sujeira que o revestia, para saber ao certo quantos anos tinha. Esmirrado, tinha
cerca de 1,60m de altura, no máximo, e se camuflava com roupa e pele da cor do asfalto e
do muro cinza escuro onde sempre se encontrava.
Em São Paulo, na tal quarta-feira, tudo isso passava como um filme na minha cabeça.
Lembrei-me desse senhor que ficava em frente ao jornal A Tarde e de como, quando li
Mitchell, tive vontade de fazer seu perfil. Ele me uma despertava curiosidade imensa. Não
mendigava, não se mexia, parecia nem respirar sob a ávore encrustrada no muro de um
condomínio residencial defronte ao jornal.
Isso me inspirou a fazer o exercício da observação de pessoas na rua. Isso me despertou a
vontade de querer saber o que essas pessoas pensam da vida, o que fazem para sobreviver,
do que sentem saudade, se têm filhos, quais cidades conhecem, se tem onde dormir, o que
fizeram na juventude.
Todos os dias via esse senhor na avenida Tancredo Neves. Era intrigante. Ele nunca
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estendia a mão, nunca pedia nada a ninguém. De vez em quando estava com uma quentinha
de almoço dada por alguém. O mais engraçado é que tinha um olhar de lucidez, sobriedade,
orgulho, vontade de viver. Sei lá, uma dignidade que vinha não sei de onde. Na noite em
que comecei a desenhar este projeto em minha cabeça, em São Paulo, lembrei-me muito de
Joe Gould, personagem de Joseph Mitchell, e desse senhor que habitava meus pensamentos
por volta de quase dois anos, tempo em que trabalhei no jornal A Tarde.
Nesta quarta-feira a que me refiro, em São Paulo, pensei em como sempre fui apaixonada
por fotografia, em como meus amigos mais íntimos perguntavam porque eu não fazia algo
ligado a fotografia como projeto de fim de curso na faculdade. Para tanto, porém, teria de
abandonar outra paixão, a escrita.
No curto intervalo de meia hora nesta noite em que pensei no projeto, folheando o livro de
Walter Carvalho, simultaneamente tive a idéia de fazer um projeto que reunisse fotos e
textos. Era uma forma de dar voz a essas pessoas que gritavam nas ruas dentro de seu
mundo próprio _a gente, aqui do outro lado, não ouvia por estarmos fechados em nosso
próprio mundo.
O PROJETO
O estalo do projeto veio de uma só vez. Seria uma exposição de fotografias montadas em
círculo, com textos sobre a vida dos personagens fotografados atrás de cada placa, que
mediria 65 cm x 45 cm, todas em posição vertical. A posição dos rostos era o mesmo de
fotos 3 x 4, do busto para cima, olhos na câmera. Foto de documento. Foto de identidade.
Foto que identificasse aqueles sobreviventes urbanos anônimos.
O tamanho da ampliação foi pensada de forma intencional, para que o tamanho da cabeça
do fotografado ficasse um pouco maior que o tamanho da cabeça do espectador. Sentimento
de grandeza. Os olhos, também maiores, estariam em nível um pouco acima do nível dos
8
olhos do espectador. Não para que o espectador se sentisse diminuído ou amedrontado, mas
para que pudesse perceber no personagem um sentimento de grandeza, de orgulho, que foi
o que percebi ao longo das entrevistas.
A escolha dos personagens foi baseada nesse sentimento. Não queria fotografar mendigos,
mas trabalhadores. Pessoas que, já velhas e sem muito motivo por que ter esperança na
vida, continuavam suando a camisa para não perder a dignidade [talvez isso]. Pessoas que
geralmente despertam medo ou nojo ou compaixão ou nada, pois simplesmente não são
enxergadas por quem, na comum pressa de ir e vir e ganhar dinheiro e pensar em seu único
umbigo, não as notava.
Devido à importância que eu dava às histórias de vida, à origem de cada pessoa e de seu
suposto sofrimento, até que fosse feita a fotografia da pessoa conversávamos longamente;
eles foram, de fato, entrevistados. Eu, porém, também era entrevistada. Eles, quase que
unanimemente, queriam saber o porquê do meu interesse neles, de onde tinha vindo, porque
estava ali ouvindo suas [ricas] histórias de vida e o que faria com elas.
Nos primeiros momentos de conversa, descobria que alguma amargura ou indiferença à
vida que a aquela pessoa trazia se devia a alguma doença, ao fato de não ter recebido aquilo
a que tinha direito [como aposentadoria, seguro-desemprego], à falta de oportunidade
[quase uma constante em sua vida] ou à simples velhice. Se não tinha dinheiro pra comprar
uma buginganga qualquer para vender nas esquinas das ruas, então catava incessantemente
latinhas de alumínio, papelão, vidro, ferro para vender por alguns trocados e poder tomar o
café do dia.
Descobri meu interesse por essas pessoas ao longo do processo fotográfico. Sair às ruas em
busca de personagem para o projeto fizeram com que meu olho fosse ficando mais apurado
a cada entrevista. Antes, a aproximação era rápida e muitas vezes, ainda no início da
conversa, o interesse era apagado por algum detalhe no personagem que não me convencia
de que ele fosse bom o suficiente para um projeto em que eu queria mostrar, antes de tudo,
um olhar de sobrevivência com garra e dignidade. Sem choro nem lamúrias, sem querer
9
forçosamente despertar em mim um sentimento de compaixão.
Depois de dois personagens feitos [fotografados] e outros alguns desperdiçados, comecei a
entender que minha atividade primeira tinha de ser, obrigatoriamente, a longa observação.
Comecei a percorrer ruas do centro de São Paulo com o intuito de entender, por trás do
rosto de cada um que via, o que ele pensava e como ele pensava a vida. Acompanhava o
que fazia nas ruas e, só depois de ver que não se tratava de um mendigo, me aproximava.
A idéia de ter a foto em formato 3 x 4 também tem significado além da foto-identidade
[este que é o formato para brincar com o sentido do não-indigente, do “ser alguém”]. Penso
serem comuns as fotos de pessoas das ruas em jornais e revistas ou exposições. Os
fotógrafos sempre querendo reproduzir a pobreza, fazendo caber na imagem tudo à volta do
fotografado e que ele traz consigo: trouxas e sacos com roupa, algum cobertor, lixo e mais
um punhado de sujeira e pobreza.
Esse lugar-comum da reportagem fotográfica não era o que eu buscava. Se queria mostrar a
dignidade e a história de vida em olhar e palavras, então não gostaria de despertar no
espectador da exposição um sentimento de compaixão ao ver uma sacola de latinhas ou
uma sonda para urinar pendurada para fora da calça de um personagem. Tão e somente
gostaria que o espectador fosse preenchido pelo mesmo sentimento que eu tive durante todo
o processo de envolvimento com o personagem: essa pessoa nada me pede, a não ser que a
trate com respeito, como um “ser alguém”.
Esse “ser alguém” era quem me olhava sem desconfiança porque recebia respeito antes de
pedir. Que sabia que a falta de oportunidade, e não de dignidade, lhe deu aquela vida
ríspida. Se ele não sentia pena de si, e nem tinha motivo para isso, não era eu _nem os
espectadores da exposição_ que teriam de ter.
Fica, então, o sentimento de orgulho e respeito. Se antes o espectador passaria na rua com
medo ou nojo ou pena por esses personagens, a intenção era que, lendo um pouco sobre
eles e olhando-os nos olhos, como eles me olharam fixamente, ficasse o sentimento de
10
respeito por aquelas vidas. Vidas sofridas, daqueles crentes na própria sorte e na esperança
de adiar o dia de morrer.
11
A HISTÓRIA
UM PERFIL
A concepção da exposição fotográfica sobre.VIVE.ntes nasceu do pensamento simultâneo
em texto e fotografia. Não há uma separação do instante em que pensei em fazer uma
exposição de fotos e, depois, pensei em reunir textos no mesmo projeto. A idéia de as fotos
trazerem, em seu verso, textos com as histórias de vida de personagens é um complemento
àquele olhar das ruas, exposto nas fotos.
A proposta é justamente a de o espectador conhecer um pouco do outro mundo, o mundo
daqueles que vivem nas ruas e sobre o qual o espectador médio de uma exposição
fotográfica não está acostumado a pensar. As histórias de vida não conseguiriam se encerrar
apenas nos olhares das fotos.
Achei, simultaneamente quando pensei nas fotos, que o espectador deveria conhecer aquele
personagem. Se tem filho, se a mãe morreu, do que gosta, de onde veio, o que faz para
sobreviver, o que pensa do mundo. Assim, seres desconhecidos das ruas, por quem
passamos todos os dias, envolveriam o espectador com seus anseios e temores, com
experiências de vida a serem compartilhadas.
Se a exposição fosse apenas de fotografias, não conseguiria “contar histórias” dos
personagens e remeter o espectador ao mundo deles. E essa, então, não seria esta proposta
de exposição, e, sim, uma outra. Sem os textos, as fotos seriam um código múltiplo sobre o
qual cada espectador inventaria uma história diferente. Não se trata de um projeto de
exposição abstrata, mas, por outro lado, de cunho realista.
Não que a intenção seja a de podar a imaginação do espectador e fazer com que ele não
desenvolva sua criatividade a partir de quando vir as fotos. Porém acredito que o espectador
12
médio de uma exposição em galeria [que geralmente é oriundo da classe média ou alta,
camada formada de pessoas mais instruídas] não tem histórico em sua cabeça [salvo
algumas exceções] de relatos de vida das ruas, de onde poderia saltar sua imaginação. Com
fotos sem textos, o espectador criaria situações de vida para o fotografado que talvez não
condissesse com a história do fotografado. Isso porque o espectador, vindo da classe social
que vem, talvez não tenha bagagem imagética para criar histórias e tentar adivinhar, por
exemplo, por onde anda agora aquele personagem.
Com os textos, o espectador tem uma dica de como se desenrola a história do fotografado.
Porém não é uma história fechada. Não sabemos _o espectador nem mesmo eu_ o que vem
depois. Aí que entra a idéia de, já enlaçado pelo relato, o espectador cria, especula um fim
para ela, tentando adivinhar o que acontece depois dali, depois da última palavra do perfil
do fotografado.
A idéia de utilizar o realismo social para a construção dos perfis é [também] inspirada em
escritores brasileiros como Graciliano Ramos e Euclides da Cunha, que levaram jornalistas
a aplicar ao relato da realidade as técnicas narrativas que empregavam na ficção. Graciliano
Ramos é citado _com remissão ao livro “Vidas Secas”_ no tocante à narrativa de vidas
desgraçadas, que perambulam de sol a sol em busca de um lampejo de esperança para
continuar a viver.
Apesar de ficcionalmente, em “Vidas Secas” Graciliano descreve de forma realista a
história da família de Fabiano, sua mulher, o filho mais velho, o mais novo e a cachorra
Baleia. É fonte de inspiração para este trabalho a descrição realista sem enfado, sem
despertar compaixão de forma piegas, que Graciliano faz daquelas vidas sem rumo.
No que se refere a Euclides da Cunha, repórter que cobriu a Guerra de Canudos pelo jornal
“O Estado de S.Paulo”, cito-o mais à frente dentro do item Novo Jornalismo.
Além dos perfis escritos com história em aberto, de maneira que a fruição não seja limitada,
a intenção é dispor o perfil de um personagem atrás da foto de um outro. São histórias
13
individuais, mas que representam uma memória coletiva. Os relatos, excluindo-se os
detalhes de cada indivíduo, contam trajetórias de vida semelhantes, sobre aqueles que, por
falta de oportunidades, sobrevivem no limbo da sociedade. Também por isso os textos não
trarão o nome completo do personagem. Eles são um e todos ao mesmo tempo. São pessoas
com identidade própria, sim, mas identificá-los apenas com seu primeiro nome é uma
forma de estender sua história de modo que ela se torne coletiva. De forma que a exposição
contemple tantos outros Nilsons, Lúcias, Helios.
Texto, imagem e espaço. Perfis de sobre.VIVE.ntes em que texto, fotografia e instalação se
entrelaçam. Cada suporte responde ao outro de forma unificada. De acordo com esse
conceito, decorrem a escolha da edição do texto, do recorte da foto e da instalação em
círculo, em que o espectador é bombardeado numa espécie de centrífuga.
Para a elaboração do texto, como a inspiração foi o perfil de Joe Gould feito por Joseph
Mitchell, aentra-se no mundo do novo jornalismo [“new journalism”], corrente jornalísticaliterária norte-americana arremessada ao mundo nos idos da década de 60 do século
passado por nomes como Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese, John Hersey, Joseph
Mitchell, entre outros. Esse estilo narrativo é a linha norteadora da feitura dos perfis deste
projeto.
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NOVO JORNALISMO
A idéia era dar a descrição objetiva completa e um algo mais que os leitores
sempre tiveram de buscar nos romances e contos, ou seja, a vida subjetiva ou
emocional dos personagens
Tom Wolfe
O termo “new journalism” nasceu nos Estados Unidos no começo dos anos 60 do século
passado para designar uma nova corrente jornalística cujos repórteres recorriam a técnicas
da literatura de ficção para enriquecer suas reportagens. Como o próprio Tom Wolfe,
“criador” do termo, admite no início de seu livro “The New Journalism”, o movimento
jornalístico-literário do qual ele fez parte foi concebido de forma despretensiosa.
Duvido que muitos dos que irei citar neste trabalho tenham se aproximado do
jornalismo com a menor intenção de criar um novo jornalismo, um jornalismo melhor,
ou uma variedade ligeiramente evoluída. Sei que jamais sonharam que nada do que
escrevessem para jornais e revistas fosse causar tal estrago no mundo literário...
provocar pânico, roubar do romance o trono de maior dos gêneros literários, dotar a
literatura norte-americana de sua primeira orientação nova em meio século
O novo jornalismo [também traduzido no Brasil como jornalismo literário] surgia como
alternativa ao jornalismo objetivo e distanciado que caracterizava a imprensa norteamericana até então. Segundo Edvaldo Pereira Lima, em artigo escrito para “New
Journalism: A Reportagem como Criação Literária”, a idéia de “produzir reportagens de
profundidade caracterizadas pelo intenso mergulho do repórter na realidade” fazia com que
os dogmas do jornalismo convencional, que deixa pouca margem de autonomia para o
repórter, fossem quebrados.
Assim, o jornalismo literário, como Lima chama o novo jornalismo, é um jornalismo
narrativo, de autor. Diz ele:
[O novo jornalismo] busca expressar a realidade contando histórias, na maioria das
vezes com um foco centrado fortemente nas pessoas de carne e osso que dão vida aos
acontecimentos
15
Por um lado, o novo jornalismo assim nasceu para satisfazer uma vontade [necessidade]
que muitos jornalistas têm de sair do purgatório jornalístico da narrativa e escrever um
romance, assim alcançando o céu. Como diz Wolfe em seu ensaio sobre o novo jornalismo:
O Romance parecia o último daqueles fenomenais golpes de sorte, como encontrar
ouro ou extrair petróleo, graças aos quais um norte-americano, da noite para o dia, em
um abrir e fechar de olhos, podia transformar completamente seu destino
Assim entrariam no rol dos escolhidos, dos escritores, mesmo continuando a exercer o
papel de jornalista. Como o grupo dos ficcionistas estava a algumas léguas literárias de
distância dos repórteres _fazedores de reportagens cotidianas_, os jornalistas buscavam
incorporar técnicas da literatura em seu texto para que ele se diferenciasse do escrito
jornalístico convencional.
Para isso, os jornalistas “exercitavam incansavelmente o chamado mergulho em
profundidade no tema, que é um dos procedimentos requeridos pelo melhor do jornalismo
literário”, diz Matinas Suzuki Júnior no posfácio do livro “A Sangue Frio” [Companhia das
Letras].
A reportagem mais elaborada, com que o jornalista despendia mais tempo, foi o primeiro
passo para a diferenciação dos jornalistas norte-americanos que viriam fazer parte do
movimento “new journalism”. Era nessas reportagens que o repórter tinha maior
possibilidade de adentrar mais profundamente no acontecimento, conhecer mais e mais
histórias que o circundavam. Além disso, era nessa matéria que havia maior liberdade para
a narrativa se desenrolar fugindo um pouco da escrita seca e objetiva do jornalismo.
Nos anos em que trabalhou para o “Herald Tribune”, o próprio Tom Wolfe se incluía nesse
grupo de repórteres especialistas em grandes reportagens. A seu lado, também no “Herald”,
estava Jimmy Breslin; no “Times”, Gay Talese; além de outros nomes, que depois viriam a
ficar conhecidos como seguidores desse movimento jornalístico-literário.
16
André Czarnobai explica que o surgimento do termo “new journalism” apareceu pela
primeira vez associado a esses três nomes: Wolfe, Breslin e Talese. Em 1962, Gay Talese
publicou na “Esquire” uma reportagem sobre um lutador de boxe, onde recorria a técnicas
de conto [com descrição de cenas, diálogos e passagens explicativas] e fugia, assim, dos
padrões jornalísticos vigentes na época.
Algum tempo depois de Talese, diz Czarnobai, Breslin ganhou uma coluna no “Herald
Tribune”, onde pôde experimentar, ainda dentro da reportagem [porque Breslin continuou
entrevistando e apurando dados para ter material para sua coluna], uma maior liberdade
literária. Tom Wolfe teve sua chance de incursão nesse fazer jornalístico diferente em 1963,
com um artigo publicado na “Esquire” totalmente fora dos padrões de forma e conteúdo do
jornalismo convencional da época.
As técnicas de coleta de informação e de escrita então descobertas foram intensamente
utilizadas nesses primeiros anos da década de 60. Os textos traziam citações de diálogos e
caracterização dos personagens que os aproximavam da literatura, da ficção. Diz Wolfe
[apud Czarnobai]:
O novo jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é ficção. É, ou deveria ser,
tão verídico como a mais exata das reportagens, buscando uma verdade mais ampla
que a possível através da mera compilação de fatos comprováveis, o uso de citações. O
novo jornalismo permite, na verdade exige uma abordagem mais imaginativa da
reportagem e consente que o escritor se intrometa na narrativa se o desejar, conforme
acontece com freqüência, ou que assuma o papel de observador imparcial, como fazem
outros, inclusive eu
Ao time de Wolfe, Breslin e Talese, que logo ficaram conhecidos no jornalismo norteamericano por suas inovações narrativas, vieram se juntar Truman Capote, Norman Mailer,
Joseph Mitchell e tantos outros que trabalhavam ou faziam colaborações para jornais,
suplementos semanais ou revistas como o “Herald Tribune”, “Times”, “Life”, “The New
Yorker”, “Esquire”.
Ainda que, desse grupo, seja creditada a Wolfe a invenção do termo “new journalism”, o
próprio não o admite:
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Não tenho nem idéia de quem cunhou a expressão ‘new journalism’ nem de quando ela
foi cunhada. Seymor Krim me disse que a ouviu pela primeira vez em 1965, quando era
redator-chefe da “Nugget” e Peter Hamill o chamou para encomendar um artigo com
este título sobre gente como Jimmy Breslin e Gay Talese
O jornalista brasileiro Matinas Suzuki diz, no posfácio que escreveu para o livro
“Hiroshima” [Companhia das Letras], que o termo “new journalism” foi usado, pela
primeira vez, em 1887 por Mat Arnold para descrever o estilo vivo das reportagens que
W.T.Stead escrevia para a “Pall Mall Gazette”. Completa Suzuki:
São também citados como referências históricas do estilo híbrido os conceitos de
Lincoln Steffens (ele dizia querer fazer um novo tipo de jornalismo diário, “pessoal,
literário e imediato”) e de Hutchins Hapgood, para criar um jornalismo literário no
“Comercial Adviser”, e as reportagens experimentais que o veículo publicou no início
do século 20
Apesar de dizer que “Hiroshima lidera todas as listas de ‘melhor reportagem’ já escrita”
[somando 300 mil exemplares da revista “The New Yorker” de 31 de agosto de 1946 que se
esgotaram rapidamente], Suzuki afirma, no posfácio de “A Sangue Frio”, que este último,
publicado em 1965, foi “autopromovido pelo autor como o primeiro romance de nãoficção”.
Segundo Suzuki, essa foi uma das grandes sacadas de Harold Ross e Willian Shawn [o
fundador e o editor de “The New Yorker”, respectivamente], naquele início dos anos 60,
como também foi uma grande sacada da dupla ter percebido “que havia uma sedutora zona
cinzenta entre o jornalismo e a literatura _e ter feito dessa área de névoas um dos pilares
editoriais de uma publicação de periodicidade semanal”.
Foi principalmente para “The New Yorker” que colaboraram grandes nomes do movimento
novo jornalismo: Tom Wolfe, Truman Capote, John Hersey, Kenneth Tynan, Joseph
Mitchell.
De certo modo, esse movimento explodiu com sorte tantos dos editores _que viram naquele
estilo um novo caminho do jornalismo, que começou a agradar leitores daqueles idos de
18
60_ quanto dos jornalistas-escritores _que agarravam a oportunidade à sua frente. Isso não
quer dizer que foi a primeira vez que então se juntava técnicas da literatura ao jornalismo e,
assim, nascia o híbrido. Mas que foi a primeira vez que isso explodiu como movimento.
Escritores como Daniel Defoe, Charles Dickens, Ernst Hemingway e Jack London, citados
por Suzuki, estão entre os muitos que são lembrados tanto no campo da ficção como no da
história da imprensa. No Brasil, a referência maior é Euclides da Cunha.
Euclides da Cunha foi o enviado especial do jornal “O Estado de São Paulo” para cobrir a
Guerra de Canudos, que era encampada por Antônio Conselheiro em meados da década de
90 do século 19. As reportagens que Cunha escreveu sobre a guerra – que durou um ano e
mobilizou mais de dez mil soldados oriundos de 17 Estados e distribuídos em quatro
expedições militares – foram o embrião do livro “Os Sertões”. Estima-se que morreram
mais de 25 mil pessoas, culminando com a destruição total da cidade de Canudos (Bahia).
Também em meados do século 19, o inglês Charles Dickens unia o jornalismo à literatura e
escrevia romance de não-ficção para o jornal inglês Morning Chronicle, nos idos de 1835.
O norte-americano Ernest Hemingway começou a escrever aos 17 anos para o Kansas City
Star, onde começou sua carreira. Mais tarde, suas reportagens sobre a 1º Guerra Mundial e
sobre a Guerra Civil Espanhola, onde esteve como correspondente, lhe serviram de base
para os livros “Adeus às Armas” e “Por Quem os Sinos Dobram”.
Além disso, cita Edvaldo Pereira Lima, outros escritores de fora do novo jornalismo
influenciaram o movimento, como James Joyce [com referência a “Ulisses”] de quem Tom
Wolfe pegou emprestada a técnica do fluxo de consciência. Lima diz também que o
escritor, jornalista e professor universitário argentino Tomás Eloy Martinez aponta, em seu
artigo “Periodismo y Narración: Desafíos para el Siglo 21”, três pioneiros latinoamericanos no estilo híbrido de jornalismo e literatura: o cubano José Martí (1853-1895), o
mexicano Manuel Gutierrez Najéra (1859-1895) e o nicaragüense Rubén Darío (18671916). Completa Lima:
19
Já no século 20, na década dos 50, o colombiano Gabriel García Márquez começou a
se notabilizar como jornalista, antes de sua fama de escritor de ficção, com sua ótima
reportagem “Relato de Um Náufrago”. Na Espanha, pelo menos desde os anos 70,
profissionais de renome como Rosa Montero, Vásquez Montalbán, Francisco Umbral,
Manuel Vicent e Maruja Torres praticam uma modalidade particular de jornalismo
literário, que os espanhóis chamam de “periodismo informativo de creación”. No
Brasil, tivemos, nos anos 60 e 70, alguns anos de produção de grande qualidade na
revista “Realidade” e no “Jornal da Tarde” paulista
Como qualquer novo movimento, novas teorias, o novo jornalismo foi alvo de críticas,
assim como seus maiores expoentes, como Wolfe e Talese. Segundo Czarnobai, as
manifestações mais contundentes vieram das publicações mais conservadoras tanto da
esfera jornalística quanto da literária. O novo jornalismo era, então, classificado como
“forma bastarda” e como “parajornalismo”.
Isso não foi suficiente para abafar o movimento e logo a crítica teve de se calar diante das
grandes reportagens que eram publicadas na “The New Yorker”, “Esquire” e outros
veículos de comunicação similares. A própria publicação de “A Sangue Frio” [mesmo
autopromovido como primeiro romance de não-ficção, como já foi dito aqui] conferiu
legitimidade ao movimento e, também, devolveu o prestígio a Capote [romancista de vasta
reputação que àquela época havia caído no esquecimento do público]. Estava dada a
largada. Diz Lima:
A exuberância narrativa do “new journalism” norte-americano marcou época,
instigou corações e mentes a produzir reportagens de profundidade caracterizadas
pelo intenso mergulho na realidade
20
(Parênteses sobre jornalismo gonzo)
Por que falar de jornalismo gonzo se esse projeto não é focado nesse estilo de escrita? A
breve explicação que se segue é para mostrar porque desisti de ter o jornalismo gonzo como
norte para os perfis _justamente porque, nos primórdios desse projeto, cheguei a pensar
nisso.
O jornalismo gonzo, assim denominado pelo “pai” do estilo, Hunter S. Thompson, surgiu
quando ele, repórter de Kentucky que colaborava para revistas como a Rolling Stones e a
Playboy, recebeu uma pauta e verba da revista para que trabalhava para gastar com hotel e
alimentação durante a reportagem. Thompson quebrou o protocolo e gastou o dinheiro para
alugar carros conversíveis, apostar em cavalos e comprar drogas. O pior: entre chapado e
paranóico, simplesmente desiste da reportagem que lhe foi pautada e resolve passar o ano
com um bando de motoqueiros foras-da-lei.
Ao passar um ano, no lugar de não mais ser aceito como colaborador da revista, Thompson
volta para a redação com relatos do que viveu com os descontrolados motoqueiros. A
história que viveu _intensamente_ ao lado deles lhe rendeu o livro “Hell’s Angels: Medo e
Delírio Sobre Duas Rodas”: relato carregado de humor, ironia, gírias, palavrões e uma
narrativa na primeira pessoa do singular. É o autor como personagem da história,
vivenciando os episódios e contando sua própria experiência _ácida e frenética.
Esse tipo de escrita veio a ser caracterizado como lado B do new journalism. Ambos
utilizam fatos reais e [algumas] técnicas de literatura para a narrativa do texto, mas o
jornalismo gonzo de Thompson, diferentemente do novo jornalismo, traz o autor como
experimentador das sensações e centro de convergência do leitor. O “eu” em primeiro
lugar.
21
Segundo Pedro Doria, em artigo publicado no site NoMinimo, Thompson é o autor
“beatnik” da turma de novo jornalismo que se formou nas décadas de 50 e 60 do século 20,
e que trazia recursos narrativos da ficção para o texto jornalístico.
Quando pensei neste projeto, imaginei que os perfis seriam relatados de forma factual,
pontual no tempo, contando justamente o episódio do dia em que entrevistei o personagem.
Isso, pensava eu, levaria o autor para a história. Até porque eu acompanhei todos os
entrevistados pelo trajeto que eles faziam nas ruas, vivenciando com eles a rotina de ir de
rua em rua, catar lixo [quando esse era o caso], vivenciando a reação e a não-reação das
pessoas nas ruas e o humor do próprio entrevistado.
Porém o problema residia aí: levar-me ao texto _que no formato jornalismo gonzo é
caracterizado pelo relato na primeira pessoa do singular_ significava colocar-me também
como personagem da história e essa não era [não é] a intenção. Com o novo jornalismo,
mesmo relatando a história com recursos da ficção, seria preservada uma importante
característica jornalística da narração: a invisibilidade do repórter.
No novo jornalismo, o autor é onisciente, não precisa dizer que está na história para indicar
que sabe o que acontece e, por outro lado, conta o que se passou como na ficção, quando o
escritor sabe o que pensa o personagem. No caso dos perfis deste projeto, sabia o que
pensava o entrevistado exclusivamente pelo que me era relatado, como no jornalismo. Sem
ilações. Um trecho do artigo de Doria explica o argumento:
Jornalismo tem uma função que é contar o que se passa, facilitar ao leitor que
compreenda algo do cotidiano. No fim, não importam quais as ferramentas do
repórter, se escreve como se fosse um romance ou um conto, se prefere um estilo
tradicional, do tipo em que no primeiro parágrafo está listado o essencial da
informação. O importante é que seja tão exato quanto possível. Não se trata de
comprovar teses _e esta é uma falha comum a toda imprensa da qual,
honestamente, nenhum jornalista passa incólume pela carreira. Mas, no caso de
Hunter Thompson, esta parece sua meta: regurgitar pré-conceitos e forçar os fatos
sobre eles. Ele crê que dar uma idéia do clima é mais relevante que a exatidão
_assim descreve o “jornalismo gonzo”. Em tese parece até bonito, mas jornalismo
não é
22
Assim, Thompson rompe principalmente com a idéia de que o jornalista deve buscar uma
suposta objetividade. Ao contrário, suas “reportagens” são subjetivas, buscam sempre
relatar as experiências do autor em meio à vivência dos que seriam os personagens da
história.
Essa radicalização do novo jornalismo é o que Czarnobai chama de jornalismo gonzo como
o filho bastardo do new journalism. Segundo ele, o gonzo, que “prima pela total anarquia,
pelo sarcasmo e pelo exagero”, é a tradução, em meados da década de 60, mais aproximada
“dos ideais libertários da época”, momento de explosão da cultura beatnik e do movimento
hippie.
Sob esse rótulo, o jornalismo gonzo distingue-se, com características exclusivas e
inconfundíveis, do novo jornalismo. Legitima-se como gênero único e foge, a meu ver, dos
padrões-base do relato jornalístico, onde, ao menos, a realidade não pode ser distorcida e
recriada sob a ótica do autor-personagem como lhe convém.
23
PASSO-A-PASSO DO PERFIL
Seguem adiante as explicações do modo como foi feita a parte escrita do projeto, desde a
escolha da pessoa a ser fotografada até a edição dos textos, estes que foram escritos tendo
como foco a construção narrativa do novo jornalismo.
Para resumir o que já foi dito, as principais técnicas literárias aplicadas ao jornalismo
citadas por Tom Wolfe em “The New Journalism” são: a construção cena a cena, o uso de
diálogos [o que, arbitrariamente, não foi utilizado neste projeto], o ponto de vista na
terceira pessoa do singular e as descrições minuciosas de lugares, feições, objetos.
Segundo Czarnobai, a “intensa descrição de gestos, hábitos e outras particularidades dos
personagens não é gratuita e a sua função não se limita a enriquecer e enfeitar a narrativa.
Vem a ser mais um recurso que demanda uma pesquisa bastante atenta e reverte-se em
elementos que ajudam a aprofundar ainda mais o nível de informação que o leitor recebe
sobre determinado personagem”.
ESCOLHA DO PERSONAGEM
Antes de me aproximar da pessoa a ser entrevistada e fotografada, despendi tempo
observando-a. Andava ruas e ruas até achar alguém que eu pensava que poderia servir para
o projeto e, quando encontrava, gastava tempo a seguindo _discretamente_, “estudando”
suas reações às pessoas que passavam por ela nas ruas. Se não era um catador de lixo _que
geralmente não perde um minuto parado sem recolher latas e papelão_ e era alguém que,
sentado no chão, vendia alguma coisa, então eu ia e vinha na rua _ora do mesmo lado da
calçada, ora do lado oposto_ para observá-la.
Meu interesse maior era, primeiro, saber se aquela pessoa era um pedinte, alguém que
estendesse a mão para quem passava por elas. Devido a isso _como o interesse era ter
24
trabalhadores no projeto_, esperava ver a reação daquele diante de oito a dez pessoas que
passavam perto de si e que, de certa forma, lhe olhavam. Enquanto percebia que não se
tratava de um mendigo ou de uma pessoa com problemas mentais, observava como ela
reagia às pessoas de modo que eu pensasse sobre como iria abordá-la.
Minha preocupação com isso foi exarcebada depois das duas primeiras tentativas de
entrevistar alguém, ainda no fim do ano passado, pois abordei duas pessoas que não
serviram ao projeto, o que eu poderia ter percebido se tivesse observado suas reações por
mais tempo.
Uma dessas pessoas, apesar de estar catando lixo que venderia em um desses depósitos que
compram lata de alumínio e papelão, por vezes estendia a mão para algum transeunte.
Porém isso apenas foi percebido depois que eu já havia me aproximado e de ter iniciado
uma conversa.
A segunda pessoa a que me refiro acima foi uma mulher que catava lixo, tranqüila em sua
tarefa e alheia ao que a circundava. Depois que me aproximei, ela começou a gritar e a
xingar sem razão. Falava frases ininteligíveis.
Depois desses dois episódios, preocupei-me em observar mais longamente aqueles qe
achava que caberiam como personagens do projeto. Isso não excluiu o fato de eu ter tentado
entrevistar pessoas que percebi, no meio da conversa, não serem objeto do estudo. Isso
acontecia quando a pessoa se indispunha e não queria mais conversar, principalmente ao
saber do que se tratava o projeto. Alguns achavam que eu iria publicar sua história em
algum jornal e não toparam. De outros desisti por desinteresse pela história, achava que não
se encaixava no perfil.
De todo modo, a observação prévia _mesmo tendo sido de grande valia para que eu pudesse
eliminar dúvidas sobre o personagem antes mesmo de me aproximar_ não excluía a
ratificação da escolha após a abordagem e os primeiros momentos de conversa.
25
ABORDAGEM
Como forma de não assustar a pessoa a ser entrevistada e, assim, não receber um “não” de
imediato ao projeto, sempre começava a conversa como se eu fosse um transeunte em
busca de informações: sobre onde ficava uma rua, uma loja, uma farmácia ou coisa
parecida.
A partir daí começava a conversa de forma desinteressada, por vezes com curiosidade
despertada pelo sotaque da pessoa [quando via que ela era de fora de São Paulo],
perguntando de onde vinha, o que fazia com aquelas latinhas no saco [se esse era o caso],
mesmo que já soubesse a resposta.
Essa foi a forma que encontrei para que a pessoa se descontraísse e sentisse interesse pela
conversa. Por algum tempo, pelo menos por cerca de dez, 15 minutos, conversava sem
explicar o projeto.Acompanhava o personagem pelas ruas conversando sobre sua vida,
porque estava catando lixo, de onde vinha. Desse modo, eu também era entrevistada.
Eles tinham curiosidade em saber de onde eu vinha [notavam o sotaque diferente], queriam
saber o que eu estava fazendo em São Paulo. Muitos deles chegaram a me dizer o quão bom
era poder conversar com alguém, pois, pela vida que levavam, era difícil achar nas ruas
alguém que lhes desse atenção.
No momento que sentia que a pessoa estava envolvida pelo papo, contava-lhe o motivo
pelo qual estava ali, perguntando-lhe tantas coisas. Com sua autorização, sacava da bolsa
papéis para anotar alguns pontos da conversa, para poder me lembrar depois. Ainda assim
não falava que ia, mais tarde, tirar fotos suas [se ele assim permitisse]. Ficava com receio
de que falar da foto o inibiria e ele não se soltasse na conversa. Claro que isso dependia da
pessoa com quem estava conversando. Com alguns havia abertura para tão logo falar que,
após conversarmos, gostaria de fotografá-lo.
26
Com alguns personagens tive dificuldade para convencê-las a tirar a foto. Um deles,
Messias, topou conversar, mas quando lhe disse que gostaria de fotografá-lo, ele disse que
não, que não toparia. Era, no entanto, um relato que eu não gostaria de desperdiçar. Queria
muito ele no projeto. Fiquei durante longos dez, quase 15 minutos tentando convencê-lo,
explicando que eu seria rápida, que a foto não sairia em jornal _contra-argumentos para o
que ele dizia.
Ele, porém, dizia que não estava se sentindo bem naquele dia para tirar foto, disse-me que o
procurasse outro dia, que ele sempre estava naquela esquina aos sábados. Eu sabia que seria
difícil achá-lo novamente. Ele não tinha horário fixo. Tentei convencê-lo mais e mais,
porém já com medo de que ele se aborrecesse. E ele já demonstrava estar ficando
impaciente.
Em dado momento, quando eu já estava praticamente desistindo [desolada], ele comçeou a
fechar os dois últimos botões da camisa e pediu que eu fosse rápida. Disse-me apenas que
não tiraria o chapéu.
Esse foi o personagem mais difícil a ser fotografado. Outros, com quem também tive um
pouco de dificuldade, faziam um pouco de jogo duro [talvez por vergonha], um pouco de
charme para que eu insistisse. Dois deles, Nilson e José, faziam brincadeiras como se, de
tão feios, como diziam, minha máquina emperraria. Fato engraçado é que com Nilson
minha máquina realmente havia dado problema e eu não conseguia bater a foto. Momento
de descontração com ele.
De Lúcia, quase não consigo sua foto, mas apenas porque [percebi] estava envergonhada
com as pessoas que iam e vinham na calçada onde vendia seus panos de prato. Era horário
de saída do colégio a seu lado e ela me enrolou até ter pouca gente circulando por ali. Tirou
o lenço da cabeça e cedeu à foto.
Os outros não fizeram qualquer restrição ao pedido de foto. Um inclusive, Helio, que
encontrei três vezes na rua depois do dia de entrevistá-lo, cedeu a uma nova sessão de fotos.
27
As anteriores haviam saído muito escuras e eu tive sorte de encontrá-lo novamente [sobre
ele, ler mais adiante o Capítulo à Parte]. Após acabar o encontro com a pessoa, percebia
como surtia efeito o fato de levar a conversa de modo espontâneo e interativo, além de
pedir a foto apenas do meio para o fim da conversa.
Em uma conversa, em fevereiro deste ano, com o fotógrafo Eder Chiodetto, ex-editor de
fotografia da Folha de S.Paulo e autor do livro “O Lugar do Escritor” [Cosac & Naify], ele
contou que, até fazer as fotos dos escritores para uma reportagem [que depois se
transformou no livro], demorava bastante tempo até que a pessoa estivesse bem à vontade e
mal notasse sua presença.
Chiodetto contou que, com alguns dos personagens do livro, chegava a passar a tarde
conversando, depois saía da casa do escritor e voltava mais tarde, quando ele já estava
descontraído e não mais se incomodava com sua presença. Como não podia deixar para
fazer a foto em outra ocasião, fazia com que a fotografia não fosse objeto gerador de
estranheza justamente conversando longamente e se envolvendo também como
entrevistado, quebrando alguns padrões jornalísticos.
ENTREVISTA
O embate se trava no momento em que é preciso abandonar o conforto das
fórmulas engessadas nos manuais jornalísticos e ir ao mundo para viver o
presente, as situações sociais e o protagonismo humano. Inverter a relação
sujeito-objeto do técnico em informação de atualidade para a relação
sujeito-sujeito do mediador social, para além de ser um problema
epistemológico, é uma fogueira em que se queimam as certezas, as rotinas
profissionais, o ritmo mecânico do exercício jornalístico
Cremilda Medina [“A Arte de Tecer o Presente”, Summus]
Tendo em vista a relação sujeito-sujeito entre o entrevistador e o entrevistado, minha
preocupação durante a conversa com o personagem era que o papo “acontecesse” de forma
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espontânea e fluida, sem que a pessoa se sentisse interrogada _no sentido mais jornalístico
tradicional possível, quando a relação é unilateral. A intenção era que eu me envolvesse na
conversa de modo que o personagem também se sentisse o entrevistador. Com isso,
percebia que a pessoa não se sentia acuada com tantas perguntas e podia também ser ator,
sujeito da entrevista; e não apenas objeto.
Com esse “poder”, de uma certa forma o entrevistado era encorajado a falar mais e
espontaneamente. Em muitos momentos ficamos em silêncio, dando tempo ao entrevistado,
que acabava falando coisas que eu nem imaginava perguntar. Como diz Medina, em “A
Arte...”: “O gesto da arte em muito se afina com o gesto coletivo e, assim como na
literatura, a oratura traduz o ser humano”.
Pensando previamente nessa interação com o sujeito entrevistado, ia despida de um
questionário formulado. Não pensava em perguntas estas ou aquelas a fazer. Queria deixar
a pessoa falar de sua vida livremente e, com isso, imaginava que ela me contaria fatos
marcantes. Pensava que não podia encarar a entrevista como técnica jornalística ao pé da
letra, quando o repórter a usa muitas vezes de forma fria e pré-formulada. Diz Medina, em
“Entrevista: O Diálogo Possível” [Ática]:
Esta [entrevista] _fria nas relações entrevistado-entrevistador_ não atinge os limites
possíveis da inter-relação ou, em outras palavras, do diálogo. Se quisermos aplacar a
consciência profissional do jornalista, discuta-se a técnica da entrevista; se quisermos
trabalhar pela comunicação humana, proponha-se o diálogo
Dessa forma, com a interação sujeito-sujeito entre entrevistado e entrevistador, há a
humanização do contato. Medina diz:
Quando, em um desses raros momentos, ambos _entrevistado e entrevistador_ saem
“alterados” do encontro, a técnica foi ultrapassada pela “intimidade” entre o EU e o
TU. Tanto um como o outro se modificaram [...]. Ou seja, realizou-se o Diálogo
Possível
Quando o diálogo acontece, há a comunhão de uma “verdade” que ambos, entrevistador e
entrevistado, buscam seja sobre o próprio entrevistado ou sobre o problema. Nesse caso,
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com a interação da entrevista dando espaço para o personagem ser sujeito, a conversa fluía
também como reflexão e auto-conhecimento, e não apenas de forma mecânica. Havia fluxo
e refluxo, o que era retribuído por mim, entrevistador, e fazia, conseqüente e
continuamente, o diálogo acontecer de forma espontânea.
Além de desarmar o personagem [geralmente pessoas estão sempre “armadas” para
jornalistas, para entrevistadores], essa forma de conduzir a conversa inspirava confiança e
quebrava a barreira que faz com que o personagem encene uma “verdade” e crie situações,
ludibriando o entrevistador.
TEXTO
[ESCRITA E EDIÇÃO]
Com inspiração no novo jornalismo [nas técnicas literárias como já explicado lá atrás], os
perfis foram escritos na terceira pessoa do singular, com o mínimo ou quase a nulidade de
adjetivação, com descrição densa da história dos personagens e com atemporalidade. Cito
Capote por Suzuki, no posfácio de “A Sangue Frio”:
Acredito que, para a forma de romance de não-ficção ser inteiramente bem-sucedida, o
autor não deve aparecer na obra
Essa foi minha primeira preocupação na feitura dos perfis. Assim como no novo
jornalismo, o autor _estando a narrativa na terceira pessoa do singular_ torna-se onisciente.
Não precisa aparecer para dar voz aos pensamentos do personagem. Não que vá inventar o
que se passa na cabeça do entrevistado, mas tudo que escreve de forma que pareça
onisciente foi sabido da boca da própria pessoa.
Algumas descrições de cena ou de gestos, de certa forma, cabem à observação do autor.
Porém, quando sim, a utilização da ilação foi comedida, até por conta de eu não ter
acompanhado o personagem por dias e dias.
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A narrativa na terceira pessoa do singular _o que os norte-americanos do novo jornalismo
chamam de “third point of view” [Wolfe apud Medina, Ática]_ tira o escritor do foco da
história. É uma voz que mal se ouve. No entanto, não há como se negar sua presença, como
quando dá legitimidade a uma sentença do personagem, no momento em que ratifica uma
opinião que, dubiamente, pode ser sua e do entrevistado. Assim, nessas ocasiões, não
escrevia “diz fulano”. Sem essa “presença” da voz do personagem”, me apodero da frase,
pois lá estava quando ouvi. Não preciso dizer [como no jornalismo convencional] que ele
disse, pois é aqui que entra a suposta onisciência do autor dentro do novo jornalismo. Diz
Medina, em “A Arte...”:
Como podem ser regrados o estudioso e o tecelão da narrativa presentificada, se lidam
com os gestos tão desmesurados quanto incomensuráveis do humano ser? Esse
narrador que pratica a arte de tecer o presente, se não se entregar afetuosamente à
compreensão das visões de mundo, cedo frustrará o projeto de autoria. Se não se
acrescentar à excelência sociológica a arte de tecer os desejos coletivos e as
sabedorias intuitivas, a rede de sentidos não atingirá o tom maior da generosidade
Com isso, a narrativa torna-se uma arte de produzir sentidos. Dentro do padrão jornalístico,
nada se cria, nada é engrandecido por adjetivações. A história deve envolver o leitor por
sua grandeza, seus meandros, suas vicissitudes. Sobre a emoção que a história deve
transmitir, Medina diz em “Entrevista...”:
A história humana da matéria terá tanto apelo emocional quanto a ficção, o folhetim. E
é preciso resgatar essa energia que vem do próprio ser humano tomado como fonte de
informação para uma entrevista. A expressão dramática do real e do imaginário [...]
transborda emoção. Não aquela emoção fácil traduzida na adjetivação vulgar, gasta.
[...]. O parto da emoção terá de ser substantivo; a emoção deve passar por meio da
atmosfera narrativa, da penetração sutil nas entrelinhas do diálogo, nos silêncios, nos
ritmos de cada pessoa
Depois da narrativa na terceira pessoa do singular e da falta de adjetivação, vem a descrição
densa do, por assim dizer, sentimento de mundo do personagem. Não com a exatidão de
palavras que o próprio entrevistado declamou, fazendo com que o texto fosse escrito de
forma pontual. A idéia foi reconstruir o que ele falou que sentia, de modo que se tivesse um
perfil de uma história de vida, e não a narração de um dia na vida dele.
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Suzuki diz, no posfácio de “A Sangue Frio”, que “os bons jornalistas literários se dizem
menos interessados na exatidão das palavras e de suas entrevistas _como faz o jornalismo
rotineiro_ do que em vislumbrar os sentidos mais profundos mascarados pelas palavras dos
entrevistados. Eles pretendem traçar o perfil da ‘alma’ de seus personagens”.
Também por isso a idéia de atemporalidade, para que o perfil não seja, de todo, concebido
como factual. O que se reproduz não é apenas um fato, um ponto no tempo, mas uma
história contínua de vida, que, mesmo que tenha mudado, não mudou inteiramente a “alma”
do personagem. Por isso, o projeto se fixa em trazer histórias de vida, perfis de pessoas, e
não “perfis” de um acontecimento [como fazemos nós repórteres do jornalismo diário].
Com isso, exclui-se do texto uma tentativa de narrativa do fato de eu ter acompanhado o
personagem durante uma manhã ou uma tarde. Com o texto escrito sem deixar isso
explícito, a idéia de atemporalidade faz com que o leitor não saiba o que fiz, ou quantos
dias gastei para saber aquela história, e se concentre inteiramente no que conta aquele
personagem.
De certa maneira, algumas características _como a narrativa com verbo no presente [para
não distanciar demais a história do leitor] e um pouco de descrição da cena_ levam a uma
narrativa pontual, factual, mas isso é, de certa forma, “escondido” por a narrativa trazer
elementos que cortam a temporalidade, como a história de vida regressa do entrevistado.
Como tive que editar os perfis para fazê-los caber atrás da placa onde a fotografia será
impressa, acabei privilegiando o ponto de sua história que mais me chamou atenção, que
mais me marcou. No fim do projeto, seguem os textos na íntegra e em seu formato editado.
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O CLIQUE
ANTES DE CHEGAR LÁ
Fotografia em preto e branco sempre me despertou um sentimento de irrealidade, de
alguém-mito, fotos que representam algo que não existe porque não tem cor. Não a cor
natural da pele, do cabelo, do ser. Para mim, a fruição de fotos P&B sempre foi a de algo
que não existe, que está distante, que não posso tocar.
Mesmo que haja inúmeros exemplos de grandes fotógrafos que, com filme P&B fizeram e
fazem trabalhos belíssimos e tocantes, sempre achei que a foto em filme colorido se
aproximava mais do espectador por possuir as mesmas cores que ele enxerga todos os dias
nas ruas. É algo que acontece comigo. Como a intenção da exposição é que o espectador
"sinta" mais rápido o olhar e as histórias de vida dos personagens fotografados, imaginei
que o filme colorido tornaria mais real o personagem.
Essa solução foi escolhida preponderamente por exclusão. Imagens de grandes fotógrafos,
que possuem trabalho "social", como Pierre Fatumbi Verger e Sebastião Salgado, e outros
tantos que trabalham com retrato ["portrait"], primaram por fotografia P&B, o que sempre
chegou a mim como algo distante, como uma pessoa que não pudesse ser tocada. Não que
eu despreze a imagem em preto e branco nem que ache que ela destitui o personagem de
aura ou coisa parecida, mas porque acho que a foto colorida pode acrescentar o item
realidade de uma forma mais direta e certeira aos olhos do espectador.
Como se trata de uma exposição, e não de um livro, a velocidade de arrebatação deve ser
máxima. Como disse o fotógrafo Eder Chiodetto2, quando com ele conversei sobre meu
trabalho de fim de curso na faculdade: quando folheamos um livro de fotografia, somos
arrebatados aos poucos. Há muitos "rounds" possíveis para você, quando chegar à última
2
Ex-editor de fotografia do jornal Folha de S.Paulo, autor do livro “O Lugar do Escritor”
33
página, ter sido acertado por aquele conjunto de fotos. É um processo gradativo e mais
lento, já que um livro geralmente reúne mais de 50 páginas e muitas fotos. Em uma
exposição fotográfica, não. O espectador não pode [justamente pela falta de tempo e de
estrutura em uma galeria de exposições] ser tocado apenas após ver supostas 50 fotos. "Em
uma exposição, o espectador deve ser arrebatado logo no primeiro round", disse Chiodetto.
Para esse sentimento de arrebatação instantânea, fiz a escolha de quatro elementos: o filme,
a lente, a fotometria e a posição da câmera. Antes, porém, de seguir para o item Técnica,
uma pequena incursão sobre fotojornalismo.
FOTOJORNALISMO
"Nada mais solitário que um fotojornalista." Essa frase é de Edgar Moura, quando, em seu
livro "50 Anos Luz, Câmera e Ação", cita o trabalho de Sebastião Salgado.
Não há ninguém o esperando [o fotógrafo] no aeroporto, quando chega para
começar uma reportagem. Também ninguém vai lhe ajudar a tirar as
credenciais para fotografar as revoluções e as guerras. [...] O fotojornalismo
vive disso: viajar só e fotografar só
MOURA, pág. 233
O fotojornalista ou repórter fotográfico é isso tudo: repórter e fotógrafo. Como Sebastião
Salgado [em qualquer um de seus trabalhos, como em “Retratos de Crianças do Êxodo”,
2000], a mesma pessoa é quem investiga, entende o personagem e a cena e fotografa.
Diferentemente dos fotógrafos de algumas redações de meios de comunicação que,
munidos de câmera, lentes e pautas, vai em busca do clique. O resto do trabalho é com o
jornalista. O fotógrafo [pura e simplesmente fotógrafo] não traz uma bagagem textual para
fotografar o personagem já escolhido previamente pelo repórter.
Como fotojornalista, quando me aproximo de alguém para fotografá-lo, a conversaentrevista precede tudo. E para mim esse diálogo é tão importante quanto a fotografia.
Estão no mesmo patamar [até porque o trabalho se trata de uma exposição fotográfica e não
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uma exposição de textos], mas o acontecimento da foto depende do que vem antes: a
escolha do personagem através da entrevista, do diálogo. Não haveria fotografia se não
houvesse a escolha do personagem através de sua história de vida.
Não quero tratar aqui de fotografia do "instante mágico" de Henri Cartier-Bresson3. Se o
personagem posou para mim, parou para esperar o clique da foto, então já não posso mais
tratar a fotografia [todas estas aqui do projeto] como um instante no tempo que veio, se foi
e nunca mais voltará. Diz João Moreira Salles na introdução do livro “Walter Carvalho –
Fotógrafo”, do Instituto Moreira Salles:
Cartier-Bresson nos ensina que um fotógrafo pode produzir a convergência de linhas
simplesmente ao mover a cabeça uma fração de milímetros; pode modificar a
perspectiva com uma mera flexão de joelhos; pode chamar a atenção para um detalhe
dando um pequeno passo para frente ou para trás. No tipo de fotografia que CartierBresson pratica – a que é urgente, sem preparo, sem pose –, todas essas decisões são
instantâneas e ocorrem em sincronia com o ato de apertar o disparador
Diferentemente de Cartier-Bresson e seu instante mágico, minha inspiração foram Pierre
Verger e Sebastião Salgado.
“A sensação de que existia um vasto mundo não me saía da cabeça e o desejo de ir vêlo levava em direção a outros horizontes.” O francês Pierre Verger aprendeu a
fotografar aos 30 anos, em 1932, e, com a morte de sua mãe e o gosto por viagens,
muniu-se de uma Rolleiflex e decidiu encarar o mundo. Até 1946, foram 14 anos
consecutivos de viagens aos redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente das
fotografias que eram vendidas a jornais, agências e centros de pesquisa. Em 1946,
quando desembarcou na Bahia, Verger foi seduzido pela riqueza cultural e
hospitalidade, conheceu o candomblé, se tornou estudioso do culto aos orixás e, a partir
de então, com bolsa para estudar rituais na África, não mais parou de fazer a ponte
Salvador-Benin. Em 1953, Verger viveu seu “renascimento” no candomblé, recebendo
o nome de Fatumbi (“nascido de novo graças ao Ifá”). Nessa mesma época, Pierre
Fatumbi Verger começou a pesquisar e escrever sobre o universo que conhecia,
publicando artigos e livros. No fim dos anos 70, parou de fotografar e de viajar, criou a
Fundação Pierre Verger, na Bahia, em 1988, e, em fevereiro de 1996, faleceu.
Sebastião Salgado nasceu em Minas Gerais, em 1944, e começou a morar na França
quando iniciou doutorado em economia. Em 1973, quando decidiu levar a câmera
3
Fotógrafo francês, fundador da agência de fotos Magnum, Henri Cartier-Bresson ficou conhecido como o
fotógrafo do “momento decisivo” ou do “instante mágico”, o instante de uma situação em que todos os
elementos externos estão no lugar ideal. Cartier-Bresson desprezava fotografias arranjadas e cenários
artificiais, dizendo que os fotógrafos devem registrar sua imagem rápida e acuradamente. Falecido em agosto
de 2004, aos 95 anos, nos últimos 25 anos de sua vida afastou-se da fotografia para dedicar-se à pintura
35
fotográfica de sua esposa em uma viagem à África, resolveu trocar economia pela
fotografia. Trabalhou para agências cobrindo acontecimentos em todo o mundo,
principalmente na África. Em paralelo, passou a se dedicar a projetos de documentários
pessoais. A partir de suas viagens, como a povoados da América Latina e da África,
Salgado produziu livros e exposições com seus estudos sobre as diferentes culturas da
população rural, a resistência indígena e seus descendentes no México e no Brasil, a
vida de retirantes, refugiados e migrantes de 41 países, o fim do trabalho manual em
grande escala em 26 países etc. Atualmente, Salgado mora em Paris e continua
trabalhando na mesma linha que sempre seguiu de “fotografia engajada”.
Nas fotos de Verger e Salgado, há a marca de um trabalho etnográfico, de registro
antropológico que representa uma cultura e uma época. A antropologia é uma forma de
conhecimento sobre a diversidade cultural, a partir da busca de respostas para entendermos
o que somos a partir do espelho do “outro”. Dentro da antropologia, está o campo da
etnografia, que, segundo Lévi-Strauss, corresponde “aos primeiros estágios da pesquisa:
observação e descrição, trabalho de campo” [“Antropologia Estrutural”, pág. 377].
Para Strauss, a etnografia, a etnologia e a antropologia não constituem três disciplinas
diferentes ou três concepções diferentes do mesmo estudo, mas, sim, três etapas de uma
mesma pesquisa. A preferência por este ou aquele destes termos exprime somente uma
atenção predominante voltada para um tipo de pesquisa, que não poderia nunca ser
exclusivo dos dois outros. A etnografia corresponde aos primeiros estágios da pesquisa:
observação e descrição, que é o que constitui o trabalho de campo. A etnologia representa
um primeiro passo em direção à síntese; compreende a etnografia como seu passo
preliminar, e constitui seu prolongamento. A antropologia visa um conhecimento global do
homem, abrangendo seu objeto em toda sua extensão histórica e geográfica. Pode-se dizer
que existe entre a antropologia e a etnologia a mesma relação que se definiu entre a
etnologia e a etnografia.
Seguindo as definições de Strauss, um estudo que tem, por exemplo, como objeto um grupo
restrito, para que o autor tenha conseguido reunir a maior parte de sua informação graças a
uma experiência pessoal, constitui o próprio tipo do estudo etnográfico. Acredito que essa
tipificação esteja representada na reunião dos personagens deste trabalho, realizado através
da pesquisa de campo [observação e descrição].
36
Além do caráter etnográfico, o trabalho se distancia um pouco do fotojornalismo diário pela
ausência do momento instantâneo e único no tempo. Neste trabalho, os personagens, após a
entrevista _que os deixava à vontade para o momento do registro fotográfico_, paravam
diante da câmera e se deixavam ser fotografados.
Sem pressa, sem mudanças de expressão, sem mudança de atitude [não era, por exemplo,
uma fração de segundo, cuja cena nunca mais se repetiria, como o “momento decisivo” de
Cartier-Bresson]. Do lado de cá, nenhum pedido para que fosse mudada a expressão, a
pose. O único pedido era que me olhassem fundo nos olhos através da objetiva da câmera.
Um olhar expressivo que é o que se deseja transmitir ao espectador na exposição.
Quando realizava o projeto jornalístico para o suplemento Mais!, da Folha de S.Paulo, que
depois viria a tornar-se o livro “O Lugar do Escritor”, Eder Chiodetto conta que visitava os
escritores e passava longas horas conversando até que o personagem esquecia do real
motivo de sua visita, a fotografia. Às vezes saía no meio da tarde da casa do escritor e
voltava quando este já estava entretido em seu trabalho diário. Assim, ele conseguia
alcançar a intimidade relaxada do escritor, que já não mais se preocupava com sua
presença.
Minha preocupação com essa ausência de tensão por parte entrevistado, na hora da
fotografia, foi constante. Muitas das vezes, dependendo do personagem, conversava mais
de meia hora até dizer que o motivo do trabalho que estava realizando era o registro
fotográfico. Neste momento, o personagem já estava tão entretido na conversa que não
negava o pedido. Se houve algum personagem que negou a fotografia, teve a idéia
removida em alguns minutos.
TÉCNICA
O FILME
37
Entre os filmes específicos para retratos [usados em casamentos e festas], em que se
privilegia a tonalidade de pele, os mais usados entre profissionais, e de marcas mais
conhecidas, são o Reala, da Fujifilm, e o ProImage, da Kodak. Ambos possuem ISO 100,
que dão ao filme pouca sensibilidade à luz, mas possui uma granulação fina e permite
maior definição para os traços da pele.
Esses filmes são, inclusive, melhores para grandes ampliações porque o grão é pequeno.
Como o projeto foi realizado durante o dia, nas primeiras horas da manhã e últimas horas
da tarde [ler item Johannes Vermeer, à pág. 43], não tive problemas quanto à fotometria [ler
item à pág. 40].
O filme de ISO 100 foi escolhido também pelo fato de ser um filme "lento". E os filmes
mais lentos, de ISO baixo, têm a latitude de pose maior que a dos filmes rápidos. A latitude
de pose de um filme é como ele vai captar a gradação de luzes e cores da natureza, que são
bem captadas pelo olho humano, mas nem sempre são fielmente reproduzidas pelo filme
fotográfico.
Grosseiramente, latitude de pose são os elementos que cabem numa foto. São os elementos,
dos tons baixos aos tons mais altos, que cabem sem serem "apagados" por seus tons
intermediários [como quando o vestido branco da noiva se confunde com o branco das
nuvens logo atrás de si e a foto registra uma única massa branca e quase uniforme].
Segundo Edgar Moura4, porém, "mesmo os melhores filmes têm uma latitude de pose
insuficiente para traduzir em fotografia as imagens reais" [MOURA, pág. 171]. É como
tirar uma foto em que são enquadrados elementos com diferentes tons de uma mesma cor.
O olho é capaz de diferenciar os milhares de tons de azul de um céu sem nuvens em pleno
entardecer, mas poucos são os filmes que conseguem chegar a uma reprodução mais
próxima do que o olho viu. Os filmes profissionais de ISO 100, que têm baixa latitude de
pose, tentam chegar o mais próximo possível da realidade. Diz Edgar Moura:
4
MOURA, Edgar. “50 Anos Luz, Câmera e Ação”. Editora Senac São Paulo, 2001
38
O olho é o que existe para ver e o limite do que pode ser visto. Se existisse uma
câmera melhor do que o olho, ela seria desnecessária, pois, para ver suas imagens,
só teríamos o próprio olho. Não se poderia avaliar uma imagem melhor com um
olho pior. O olho, então, é a referência e o alvo. Os filmes são feitos para serem,
no limite, iguais ao olho. Quer dizer, para serem capazes de ver tantos detalhes na
sombra quanto o olho vê, e tantas diferenças entre branco e branco quanto vemos
nós. Não, não foi a natureza que se limitou a criar só essas cores e só esses
contrastes. Foi, de novo, e como em todas as coisas, o olho que se adaptou a ver o
que já existia antes dele. Para nós, o que o olho vê é o máximo que se pode ver, e é
isso que gostaríamos de ver nos filmes
A LENTE
A lente utilizada em todas as fotos foi uma 28-90 mm, com câmera Canon EOS 3000. Em
todas as fotos, a distância focal utilizada foi a 28 mm, por três motivos: quanto menor a
distância focal, maior o ângulo de visão [o que chamamos de lente grande angular]; maior é
a abertura do diafragma quanto menor a distância focal utilizada; e quanto menor a
distância focal maior a profundidade de campo.
A distância focal é a "distância que separa o centro da objetiva [focada no infinito] do plano
focal [local onde se encontra o filme]. Geralmente se estabelece a diferença entre as várias
objetivas por meio da distância focal. Por exemplo: uma objetiva de 50 e uma de 135 são
respectivamente objetivas de distância focal de 50 mm e de 135 mm", segundo o livro
"Fotógrafo: o Olhar, a Técnica e o Trabalho", organizado pela editora Senac Nacional, à
página 40.
A grande angular tem uma característica muito peculiar que é a de arredondar o campo de
visão e fazer caber o maior número de elementos ainda que o fotógrafo esteja a uma curta
distância do que vai ser fotografado. Isso significa que o elemento fotografado, de certa
maneira, tem suas proporções deformadas. Devido a isso, o rosto toma uma dimensão mais
incisiva, pelo personagem ter suas feições alteradas [o nariz parece ficar maior, e os olhos,
mais exaltados].
Devido à pequena distância focal da objetiva de 28, elementos muito próximos podem
39
parecer distantes de acordo com o foco. Isso é o que chamamos de profundidade de campo.
Maior é a profundidade de campo quanto menor a distância focal, diferentemente de
fotografias tiradas com teleobjetivas [objetivas de 200 mm, por exemplo], em que os
elementos são "achatados" num mesmo plano, parecem pertencer todos ao mesmo plano
devido ao foco uniforme.
Com a pequena distância focal e a maior profundidade de campo, um elemento focado pode
estar a alguns centímetros de distância do primeiro elemento desfocado a partir dele. O foco
pode estar no rosto do personagem e, logo atrás dele, a partir da orelha, por exemplo, os
elementos estarão desfocados: prédios, um ônibus que passa, um muro ou uma árvore em
que o personagem esteja encostado. Isso indica qual o assunto relevante da fotografia e leva
também o espectador a focar seu olhar.
A POSIÇÃO DA CÂMERA
Nas fotografias dos personagens, a câmera sempre esteve posicionada abaixo do nível dos
olhos do fotografado. A intenção é que, de acordo com a altura que as fotografias estejam
penduradas, os olhos do espectador estejam mais ou menos 15 cm abaixo do nível dos
olhos do personagem. Por isso as fotos tiradas de baixo para cima, para que o olhar do
fotografado esteja levemente deslocado para baixo, em direção aos olhos de quem as vê.
A intenção é de criar um clima em que o espectador possa sentir, através das fotos e das
histórias de vida dos personagens [contadas atrás das fotos], algo como um sentimento de
superioridade e orgulho naquele olhar, e não sinta pena ou compaixão por ele. O olhar
voltado levemente para baixo, como alguém que está olhando de um lugar superior,
desperta, inconscientemente, um sentimento de respeito. Para completar isso, os textos: os
personagens nada pedem, por nada choram, apenas querem ser vistos como "alguém". Sem
lamúrias, com dignidade.
40
A FOTOMETRIA
Quanto menor a distância focal maior será a abertura do diafragma, o que permite uma
maior entrada de luz e o ajuste para uma maior velocidade do obturador. Como o filme
utilizado é de ISO 100, chamado de filme lento porque tem pouca sensibilidade à luz do sol
e precisa de maior tempo de exposição, a regulagem é equilibrada para, com a maior
abertura do diafragma, não haver necessidade de uma velocidade de obturador tão baixa
que deixasse o filme ser borrado com pequenos movimento do personagem.
Em todas as fotos, a abertura de diafragma utilizada foi a de F 4.0 [o máximo conseguido
na objetiva 28-90 mm da marca Canon; uma lente "escura", infelizmente, por não permitir
uma maior abertura]. Com o diafragma sempre definido em F 4.0, a velocidade do
obturador variava de 1/60 segundo a 1/120 segundo, de acordo com a iluminação do local
onde o personagem era fotografado.
RECURSOS ARTIFICIAIS
Neste trabalho, não foram usados filtros, refletores, rebatedores, flash ou qualquer coisa que
pudesse afetar diretamente a iluminação natural. Também por isso escolhi fotografar nas
primeiras horas da manhã ou nas últimas da tarde, quando a luz “horizontal” iluminava
suficientemente o personagem. A ajuda de compensação de luz veio com a difusão natural
através das nuvens, uma sombra de árvore com chão reluzente iluminando por baixo etc.
Elementos das ruas e um pouco de sorte.
RECORTE
Quando abrimos o jornal em uma matéria sobre mendicância, pobreza, moradores de rua e
outros casos que se encaixam num mesmo grupo de "sofrimento" social, as fotografias
relacionadas a ela retratam mazelas e tantos componentes possíveis para mostrar a vida do
41
retratado. É comum a foto enquadrar o saco plástico em que o personagem carrega seus
pertences, um monte de papelão ou um cobertor dobrado a seu lado, que à noite vira seu
colchão/cama.
Isso se torna comum em matérias desse tipo, que sempre desperta em quem lê um
sentimento de compaixão, pena, rejeição ou medo. Medo da incerteza, do que pode, ao
longo dos anos, acontecer a sua vida [talvez jovem, bela e abonada].
A fotografia, ainda mais nesse tipo de perfil de personagem, é uma espécie de espelho.
Espelho que retrata um lado da vida que existe, sim, mas que talvez o leitor/espectador não
tivesse se dado conta de que era tão real e próxima da sua realidade. Por esse espelho de
vida parece decorrer uma espécie de compaixão e medo.
O primeiro sentimento é imediato, pois, por mais que o leitor/espectador não faça nem
possa fazer nada para minimizar as diferenças sociais, ele sente que aquele sujeito é alguém
que, talvez, não tenha tido as suas mesmas oportunidades de vida. O medo, porém, caminha
ao lado. Se o leitor/espectador sente pena porque o sujeito encontra-se numa situação de
vida desconfortável, o medo o arrebata porque ele não quer, nunca, estar na mesma situação
que o fotografado.
Como a intenção é que as fotografias passem um sentimento de orgulho e dignidade, não
medo ou compaixão, tirei esses elementos de cena. Hélio, um dos fotografados, carregava
uma sonda para urinar pelo lado de fora da calça. Se isso causava certo constrangimento a
mim, imaginei que o espectador também poderia ficar incomodado e desviar o foco de sua
atenção. O detalhamento da cena ou de objetos que o personagem carregava ficou para os
textos das histórias de cada um deles.
O foco tem de estar nos olhos do personagem, que "contam" algo, o que é completado pelas
textos atrás das fotos. Do mesmo jeito que a sonda de Hélio chamava atenção, também os
brinquedos de plástico que Messias arrumava espalhados no chão, ou mesmo o saco de lixo
preto que Ivanosca carregava com as latinhas de alumínio que juntava. Preferi cortar todos
42
esses elementos de cena para que a exposição com fotos em formato 3 x 4 fizesse sentido.
Olhos, sentimento e histórias. Com identidade.
JOHANNES VERMEER
Depois que Almendros5 ressuscitou Vermeer e a importância da cultura clássica,
européia, todo fotógrafo pegou carona na erudição do cubano [...] e passou a citar a
pintura e os pintores como influências no seu trabalho, em vez de citar os velhos
fotógrafos dos velhos filmes de Hollywood. Era o que faltava aos fotógrafos para se
equipararem à grande arte e saírem do gueto técnico, não-artístico
Edgar Moura [pág. 213]
Para Moura, o que interessa aos fotógrafos no estudo de pintores clássicos não é o processo
que estes usam para colorir uma superfície, mas como percebem o efeito da luz sobre os
objetos [MOURA, pág. 213]. Pintor holandês do século 17, Johannes Vermeer [1632-1675]
inventou a "luz de janela". Vermeer é o inventor da grande fonte de luz difusa natural, diz
Moura. Diferentemente de Leonardo Da Vinci, que se interessava pelo resultado dessa luz
difusa, Vermeer se interessava pela fonte dela. Diz Moura [pág. 216]:
É de uma janela aberta para o dia que vem toda a luz e toda a delizadeza. Vermeer
coloca seus modelos perto de uma janela e estuda o efeito dessa luz nos personagens e
no cenário. Repetidamente, infinitamente, sempre a mesma janela e a mesma luz. O
resultado é a delicadeza e a difusão
Como àquela época, século 17, não havia refletores, rebatedores, canhões de luz e outros
aparatos utilizados em estúdios de fotografia e de cinema, Vermeer "inventou" a janela
como a grande fonte de luz difusa: não era uma luz forte [de ataque] como a luz do sol sem
nuvens, mas também não era uma superdifusão como uma fotografia tirada em externa em
um dia com muitas nuvens.
5
Diretor de fotografia espanhol, Néstor Almendros se mudou para Cuba, onde passou maior parte da vida,
dividida também entre Nova York e Roma. Morreu em 1992 e deixou registrados trabalhos com cineastas
como Eric Rohmer, François Truffaut, Gerhard Schröder e Martin Scorsese, entre outros.
43
A luz difusa do sol com muitas nuvens não tem direção. Com o recorte da janela, a luz tem
apenas um canal por onde entrar e, por isso, tem direção, atacando apenas um lado do que
se quer fotografar. Isso causa constraste e, portanto, relevo ao objeto fotografado.
Fotografar à luz do dia, com nuvens, árvores ou outros elementos [como um muro, uma
parede, um chão mais claro] que minimamente direcionem o reflexo da luz ou possam
bloquear a luz indesejada [porque não poderia levar os personagens para serem
fotografados com a luz entrando pela janela da minha casa], é facilitado pelo fato de se
fotografar nas primeiras horas da manhã ou nas últimas horas da tarde. Assim, a luz é
horizontalizada e tem uma direção que causa menos sombras embaixo dos olhos e do
queixo que a luz das 11h às 15h causaria. Com essa luz, o fotografado seria o famoso "urso
panda", que tem a cara branca e dois discos pretos sob os olhos [MOURA, pág. 174].
44
A INSTALAÇÃO
Quando esse projeto foi pensado, a idéia de fazer uma exposição com textos veio ao mesmo
tempo da idéia de se fazer uma instalação não-convencional do material. Primeiro porque
não ficaria bem resolvido colocar fotos nas paredes de uma galeria [modo convencional] e
pendurar os perfis ao lado de cada uma delas. Queria que o espectador interagisse com a
exposição; que a maneira como ele “entrasse” naquele mundo de alguma forma rompesse
um padrão. Esse padrão a ser rompido é justamente aquele das exposições nas paredes.
Na exposição em paredes não há, depedendendo da exposição e da curadoria, uma célula
central que faça a convergência da expectativa, da atenção e do sentimento do espectador.
Pensando nisso, imaginei que uma exposição em círculo seria a solução para que os
personagens chamassem a atenção do espectador de forma igual.
A escolha do círculo, porém, não está somente ligada ao fator de convergência de atenção
do espectador. A idéia é também uma solução para os textos-perfis dos personagens _que
vão atrás de cada foto e ficam do lado de fora do círculo_ e também solução para a idéia de
coletivo [daquelas pessoas das ruas] que quero dar e da idéia de um certo acuamento do
espectador, que possivelmente ignora essas pessoas nas ruas. Dentro do círculo o
espectador não terá como não encará-las de frente, olhos nos olhos, e saber que elas estão
em toda parte: atrás, na frente, ao seu lado. Assim como nas ruas.
Não apenas dentro do círculo, mas queria também que o espectador fosse surpreendido
pelos personagens ao imaginar o que estaria lhe esperando antes de entrar no círculo. Para
isso, imaginei que a circunferência deveria ter o mínimo de espaço entre si. O espectador,
que não entraria no círculo por entre as fotos, terá no máximo 10 cm entre elas para,
chegando mais perto, poder espiar o que há lá dentro.
Com o estreito espaço entre as placas de foto, não é possível enxergar tudo o que está
dentro do círculo. O espectador é, então, compelido a entrar no espaço. Para entrar, é
45
necessário se abaixar levemente, pois as fotos, mesmo penduradas de modo que os olhos do
personagem esteja a 10 cm dos olhos de um homem com altura média de 1,70 m [então os
olhos estão a 1,80 m do chão], estarão com a parte inferior da placa da foto a 1,31 m de
altura do chão. Isso porque as fotos terão uma dimensão de 65 cm x 45 cm [ler descrição
técnica a seguir].
O fato de ter as fotos colocadas de maneira que o espectador não possa entrar por entre elas
e tenha de se abaixar é proposital para o sentimento de reverência que se quer criar. As
pessoas que estão nas fotos são aquelas para quem normalmente gente como o espectador
[classe média e alta, freqüentador de galerias de arte] não olha nas ruas. Gente pobre,
trabalhadora, catadora de lixo, que é facilmente identificada como mendigo. E esse público
é acostumado [claro que com todas as devidas exceções] a ignorar essas pessoas nas ruas.
Na exposição, cria-se a oportunidade de o espectador poder olhar essas pessoas nos olhos,
como talvez nunca tenha feito antes. Por isso, o fato de se abaixar para entrar no círculo é
como se o espectador tivesse prestando uma reverência. Ter de entrar de cabeça baixa para
aquelas pessoas que normalmente estão de cabeça baixa para elas nas ruas.
Atrás das fotos, os textos. A idéia é distribuir os perfis trocados entre os personagens. A
foto de Lúcia com o perfil de Ivanosca, a foto de Messias com o perfil de Helio, e mesmo a
foto de Maria de Lurdes atrás da foto de Rubens. Não há porque, com essa idéia de
coletivo, identificar que aquele fulano _que será chamado apenas pelo primeiro nome,
todos eles_ é o dono daquela história que está contada atrás de sua foto.
Os textos não trazem descrição física detalhada dos entrevistados. Uma ou outra dica é
lançada para o espectador, apenas para ele poder imaginar quem é aquele personagem. A
troca entre fotos e perfis é para ratificar a idéia de coletivo. Todos eles têm vidas parecidas.
Se não a história anterior, mas pelo menos o momento em que vivem hoje, nas ruas, se
assemelham entre si. As histórias, com trajetórias de vida parecidas, se encaixam em
qualquer um deles.
46
Não que com isso esteja sendo tirada de cada um deles sua identidade, sua individualidade
no mundo. A idéia é mostrar que, além deles, há aos montes Ivanoscas, Helios, Nelsons e
Lúcias nas ruas, com sentimentos e desejos parecidos. Ao não distinguir nenhum deles com
sobrenome e perfil devidamente impresso atrás de sua foto, eles são unidos em uma
coletividade. São fortalecidos em uma classe.
Descrição Técnica
Para que a idéia de reverência aos personagens seja ratificada, pensei em pendurar as fotos
de modo que os olhos dos fotografados estejam levemente acima do nível dos olhos de uma
pessoa que mede 1,70 m, altura média de um brasileiro. Assim, o espectador terá de
inclinar levemente a cabeça para cima para olhar nos olhos deles.
Isso ratifica também a idéia de orgulho e grandeza dos fotografados que, talvez pela
primeira vez, estarão olhando essas pessoas, os espectadores, de cima, do alto [todos eles
foram fotografados com a câmera um pouco abaixo do nível de seus olhos].
As fotos serão impressas em placas [possivelmente de PVC] de dimensão 65 cm [altura] x
45 cm [largura], fazendo jus à proporção de uma foto 3 x 4, de retrato. Os olhos do
personagem estarão a 1,80 m do chão, para estarem a 10 cm dos olhos de uma pessoa de
1,70 m. Assim, independentemente do pé direito [altura do chão ao teto de um espaço] da
galeria a serem expostas as fotos, a placa estará a 1,31 m do chão.
Esse cálculo foi obtido dividindo a placa da foto em quatro partes horizontais, sendo que,
de baixo para cima, os olhos se encontrassem na terceira faixa. Como 65 centímetros [altura
da placa] dividido por quatro faixas dá uma altura de 16,25 cm por faixa. Assim, os olhos
estarão a 48,75 cm do limite inferior da placa.
Se os olhos dos fotografados estarão a 1,80 m do chão, 180 cm menos 48,75 cm é igual a
1,31 cm, que é a altura em que deve ser alinhada a parte inferior da placa. Com um
47
espaçamento de 10 cm entre as fotos, cada uma com 45 cm de largura, o círculo com 20
fotos terá 11 metros. O diâmetro é igual a 3,5 m [cálculo feito com a fórmula L=2RT,
sendo L o comprimento do círculo e R o tamanho do raio. T é pi, que é igual a 3,1416]. O
tamanho do diâmetro é, assim, suficiente para o deslocamento de espectadores dentro do
círculo. Também não é tão grande para que não seja perdida a idéia de acuamento dos
espectadores.
Como se trata de um projeto para exposição, um plano que ainda será executado, foram
feitas 10 das 20 fotos necessárias para o círculo ter o tamanho indicado acima. Assim, as
outras fotos serão feitas após a idéia [cujo projeto será apresentado com 10 fotos] ser aceita
por uma galeria.
Os textos que irão atrás das fotos serão impressos com fonte Lucida Console, tamanho 55.
Alguns trechos mais interessantes dos perfis serão destacados com fonte um pouco maior,
tamanho 65 ou em negrito. Lucida Console foi escolhida porque lembra fonte com que é
impresso veículos de comunicação, dando idéia de jornalismo.
Além disso, é uma fonte com bom espaçamento entre as letras e não tem serifa [as
perninhas das letras como estas da Times New Roman], ambas características que facilitam
a leitura a uma certa distância. Os textos editados, em anexo neste projeto e no portfólio,
estão escritos com a fonte Lucida Console.
Como este projeto não é um plano para angariar patrocínio de empresas que possam
bancar a exposição, não há orçamento descrito. Este é um projeto para que um
diretor de galeria aprove a idéia e aceite levá-la à exposição em seu espaço.
48
UM CAPÍTULO À PARTE
[Esse capítulo não entra no projeto da exposição, mas relata o reencontro
com um dos entrevistados. Foi um personagem que muito me marcou e que
me fez, pela primeira vez, entrar na emergência de um hospital público para
ajudar um desconhecido]
Seu Hélio não resmungava. Demonstrava ser uma pessoa muito forte. Se lhe era oferecido
um café, queria pagar. Orgulho. Orgulho de um passado não muito distante em que era
empregado e tinha seus benefícios regrados todo mês. Mesmo sem isso, não se deixava ser
abarcado pela medicância. Morava em um barraco na zona sul da capital paulista, um bairro
chamado Valo Velho. Uma hora e 15 minutos de ônibus. Suficiente para fazê-lo querer
descer do coletivo para fumar, hábito que o acompanhava desde os 13 anos de idade. Nunca
teve problema por causa do cigarro, muito menos por causa de bebida, que era esporádica.
Não gostava muito de beber, dizia.
O que o incomodava, na verdade, era um problema na próstata, que o fez colocar uma
sonda na bexiga, por onde urinava, em 1998. Isso foi no mesmo ano em que se aposentou.
Era eletricista na Volkswagen. A sonda não resolvia todo o problema. Tinha que fazer um
exame na próstata, para ver se precisaria fazer cirurgia. Marcou exame para o dia 2 de
fevereiro, no Glicério, bairro onde tinha o posto de saúde que freqüentava, próximo da
Praça da Sé, centro de São Paulo. Como tomava remédios contra dor e para combater a
doença na próstata, ia com freqüência ao posto de saúde. Tentava conseguir o
antiinflamatório gratuitamente, mas era difícil. O remédio, que custava R$ 65, para tomar
durante uma semana, sempre estava em falta.
Doía ao urinar pela sonda. Dava para ver quando saía a urina. A sonda ficava do lado de for
a da calça surrada, mas limpa. O problema maior era quando entupia. Não, não muitas
vezes causou problemas por entupir. Mas, se entupia, ele precisava cortar a magueira para
conseguir urinar. Na quarta-feira, dia 16 de fevereiro, ele precisou cortar a sonda. Sem ter
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dinheiro para pagar o barraco, como ele chamava o espaço de quarto-cozinha-banheiro de
R$ 50 mensais, estava nas ruas do centro há mais de uma semana, contados no dia 21 de
fevereiro. Faltava remédio no posto de saúde. Sentia dores.
Conseguia urinar com a sonda cortada, mas as dores se acentuavam. Senhor franzino, de
1,64m, 54 kg, mas forte para carregar seu carrinho com latinhas de alumínio indo e vindo
nas ruas enladeiradas de Santa Cecília, Vila Buarque, centro de São Paulo. Não reclamava
nem pedia ajuda, sem demagogia ou sem despertar compaixão.
A fraqueza, em decorrência da infecção urinária que contraíra provavelmente no dia em que
cortou a sonda, porém, não o deixava com forças para empurrar o carrinho. Eram 8h do dia
21 de fevereiro e ele estava sentado próximo a um posto de gasolina distante uns 200
metros do galpão onde guardava, sem ter que pagar por isso, seu carrinho. Lauro era um
judeu que tinha um negócio de galões de água, com entrega em domicílio, no bairro de
Santa Cecília. Havia ajudado Helio. Comprou o carrinho que ele carregava para cima e para
baixo para ganhar uns trocados por cada quilo de latas que conseguia juntar. Também
deixava-o guardar o carrinho todos os dias no depósito, junto com os galões de 20 litros de
agua que vendia.
No dia 21 de fevereiro, um café foi bem-vindo na primeira padaria encontrada. Pela
primeira vez, ele pediu ajuda. Sabia que se chegasse na Santa Casa, conhecido hospital
Santa Isabel, que atendia pelo SUS e particular, demoraria quase um dia para ser atendido.
O hospital era bem ali no bairro Santa Cecília, uns 500 metros distantes da padaria onde
estava. Sua fraqueza e dores e vontade de deitar [porque nem se sentia bem sentado] era tão
grande que o trajeto foi gasto em quase meia hora. Passos lentos, chupava bandas de
laranja, dizia que era bom para aliviar as dores na bexiga que sentia. De quando em quando
levava as mãos à barriga.
Na padaria conseguiu pedir companhia para ser atendido no hospital, mesmo que fossem
avaliá-lo e dizer que “tinha isso, precisava tomar esse remédio, se sentisse dores, então esse
analgésico”. Tudo em voz seca e rápida, de médico que precisava atender a um paciente
50
que tinha convulsão no chão do pronto-socorro de atendimento SUS, ao lado de outras
tantas pessoas, velhas, pobres, jovens, negras, sujas, brancas, doentes, que vomitavam,
tinha pressão baixa, sentiam dores e precisavam de atenção. Seu Helio era sortudo, diziam
no hospital. Conseguiu, com lábia e vontade de ajudar alheias, ser atendido em meia hora.
Uma cadeira de rodas o ajudou a percorrer o subterrâneo do hospital para ir do prontoatendimento ao pronto-socorro. Sentia muitas dores. No pronto-socorro, onde os doentes
eram atendidos em caráter de emergência, ele poderia tomar, pelo menos, um remédio para
combater um pouco da dor.
Naquele dia, Helio não era como aqueles que tinham que adiar sua dor para sofrer diante de
um médico, talvez garoto de 25 anos recém-saído da faculdade [tão assustado quanto
qualquer um que entrasse ali pela primeira vez]. Sofrer e ser medicado, se remédio
houvesse, depois de enfrentar duas filas com, pelo menos, outras 70 pessoas que não
tinham dinheiro para calar a dor.
Tudo que Helio queria naquele momento era um remédio que aliviasse a dor e uma ajuda
de assistente social, que lhe arranjasse um lugar para ficar. Não estava mais recebendo
aposentadoria e não tinha como bancar seu barraco na zona sul. Desta vez, passados quase
30 dias do primeiro encontro, não estava tão limpo como sempre andava. Manchas de
sangue seco nas unhas. Pés limpos apesar de estar sempre de chinelos, mesmo se chuvesse.
Tênis dá muito chulé, ainda mais nessa época de chuvas, dizia.
A assistente social disse que o problema era que esses senhores de rua não obedeciam as
regras dos albergues e perdiam a hora regrada de voltar para dormir. E não podiam beber,
mas imagine, minha filha, que muitos ficam bêbados pelas ruas e esquecer que têm de
voltar às 17h, dizia. Era explicado que Helio não bebia. Fumava muito, mas não gostava de
beber. E era um senhor responsável, inteligente, sabia ler, escrever, tudo. Só estava
precisando de um lugar onde pudesse deitar e descansar. A dor o atacava e não o deixava
que ficasse nem sentado.
51
É, mas é difícil, você pode até tentar, mas só o médico pode encaminhar um pedido dele
aqui para a assistência social, dizia ela, sem dar muita importância. Recebia muitos pedidos
durante o dia, muitos negados, pois os abrigos da cidade estavam cheios, não recebiam
mais gente. Esquivava-se naquela porta-balcão, de onde se distanciava se alguém
maltrapilho encostasse demais. Medo de doença. Medo de doença que assolava todos
aqueles pacientes pedintes de saúde. Pobreza.
A ajuda que Helio procurou naquela manhã de café na padaria foi triplicada com a ajuda do
recepcionista, que o fez passar na frente de muitos outros que esperavam na fila; com a
ajuda da enfermeira que tirou sua pressão [“Pressão de ferro essa”], arranjou uma cadeira
de rodas quando o viu deitar no chão por não agüentar de tanta dor, que sorriu de
compaixão por saber que alguém o ajudava, que o levou até o pronto-socorro pelo
subterrâneo do hospital, o que economizou alguns minutos; e pela ajuda daquela menina da
farmácia do hospital que vendeu a caixa de antiinflamatório de R$ 20 por R$ 15, único
dinheiro que tinha consigo.
Depois de medicado e conseguido um pedido do médico para que a assistente social
procurasse um abrigo para Helio, lá vinha uma lista de telefones e endereços onde ele
poderia procurar um canto para ficar. Tinha até um endereço, que fez os olhos de Helio
brilharem, que o deixavam ficar durante o dia inteiro.
Um saco com laranjas, remédios [“Peraê que tenho um envelope de analgésico aqui na
bolsa”], papel com telefones e endereços e Helio ficou na sombra de uma árvore no pátio
do hospital. Com uma bancada de cimento de quase meio metro de largura, lá podia ficar
deitado por um tempo. O carrinho com latas e pertences [uma flanela, canivete, corrente e
cadeado para amarrar o carro em algum canto, talvez uma garrafa de água] havia ficado no
galpão de Lauro.
Lá estava até o dia 25 de fevereiro, sexta-feira da mesma semana em que tinha ido ao
hospital. Helio não havia voltado no galpão desde a segunda-feira. No hospital ele também
não estava. Não, não tem ninguém com esse nome internado aqui, viu senhora?, dizia a
52
recepcionista. Pensa-se besteira. Mas ainda havia a chance de ele estar em algum dos
albergues, cujos telefones ele havia guardado naquela segunda-feira. Não, não tinha
ninguém lá com esse nome. Não teve coragem de ligar para o instituto médico legal ou
cemitérios do centro da cidade e a única coisa com que ficou de Helio foi a dúvida sobre
sua vida. Ou morte.
53
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Memória de Texto
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56
ANEXOS
[em ordem cronológica de quando foram
feitos, seguem os perfis na íntegra e,
logo após cada um, sua versão editada]
57
Pedro Álvares, 50
[2.out.2004]
Pedro puxa sua carroça pelas ruas de São Paulo num mundo tão dele que parece não ouvir a
buzina dos carros que lhe seguem atrás no meio da nervosa avenida Paulista. Com quase
um metro e meio de largura _onde já chegou a carregar até 100 kg de entulho_, seu carro,
como chama, não cabe na calçada. Ele não tem pressa. Não pode parar de trabalhar. O
entulho que cata (ferro, alumínio, papelão) é sua única fonte de renda há mais ou menos um
ano. Esse é o tempo que está sem trabalhar, desde que seus documentos foram roubados.
Antes disso, Pedro, já foi auxiliar de limpeza em gráfica de jornal, trabalhou em
restaurante, foi empregado de serviços gerais na Prefeitura de São Paulo. Nessa época tinha
dinheiro. Em seu último emprego, quando era ajudante geral de um escritório, trabalhava
dois turnos, com dois cartões de ponto. Um para o horário comercial e outro para horas
extras. Sem mulher nem filhos, foi assim que conseguiu economizar dinheiro para visitar a
mãe há dois anos.
Sua mãe, com quase 80 anos, mora em Ribeira do Pombal, cidade do interior da Bahia a
uns 350 km de distância da capital. Foi de lá que Pedro, 50, filho mais velho entre os
quatro, saiu quando tinha 20 anos para tentar a vida em São Paulo. Durante todo esse
tempo, só se correspondeu com a mãe por meio de cartas. Por isso, quando lembra, sempre
agradece _não sabe a quem_ por ter completado a quarta série do primeiro grau. Mesmo
que tenha feito isso com mais de 20 anos.
As cartas que recebeu da mãe até hoje estão guardadas na casa do irmão Raul, que mora no
Jardim São Bento, extremo norte da capital paulista. É também lá que Pedro guarda
pertences como fotos, algumas roupas e o exíguo dinheiro que consegue economizar. Hoje
é mais difícil guardar os trocados. O que consegue durante o dia, que pode chegar a R$ 10,
é gasto só com comida. Sua moradia é sua carroça, que lhe custou R$ 170. Dinheiro grande,
58
como diz, para quem vive nas ruas. Ainda mais se pensar que só dão R$ 0,20 pelo quilo do
papelão; o quilo da latinha de alumínio até que chega, em lugares honestos, a R$ 3,50.
Por isso, Pedro não pára de andar para cima e para baixo. Só não consegue dinheiro quem
não quer trabalhar. Ele nunca ficou mais de um mês sem fazer qualquer coisa que lhe
rendesse dinheiro. Uma vez, quando ainda corria atrás de emprego com carteira assinada,
chegou a ficar quase um mês sem nada. Depois da última demissão, se acostumou com as
ruas. Acha que não pode perder mais tempo a essa altura da vida.
Com a correria, mal dá tempo de ir à casa do irmão, que mora do lado de lá do mundão,
como diz Pedro. Às vezes, conversa com ele por telefone. Não recebe sua ajuda para nada.
Diz que não precisa, que está tudo bem. Prefere adiar o socorro para um dia em que não
tenha mais saúde. É que Pedro tem uma inflamação nos olhos que vai e volta, o que o deixa
meio cego, vendo tudo embaçado, e com uma vermelhidão nas vistas o dia inteiro. Poluição
do ar. Lá na Baixada Santista, onde morou oito anos logo quando chegou a São Paulo, não
tinha nada disso. Diz que é por esse motivo que quem mora em Santos ou no Guarujá não
quer viver na capital.
Quando pensa nas cidades onde já morou _nos Estados da Bahia e de São Paulo_, Pedro
não gosta de fazer comparações com Ribeira do Pombal. Não gosta de sentir saudade.
Ficou lá atrás. É verdade que se assustou quando voltou lá 30 anos depois e viu como a
cidade cresceu muito. Mas ele acha que não cabe mais lá. Em sua cabeça, Ribeira do
Pombal virou o lugar guardado onde verá, um dia, a mãe ainda viva.
59
Pedro puxa sua carroça pelas ruas de São Paulo num mundo tão
dele que parece não ouvir a buzina dos carros que lhe seguem
atrás no meio da nervosa avenida Paulista. Com quase um metro
e
meio
de
largura,
seu
carro,
como
chama,
não
cabe
na
calçada. Não tem pressa. Não pode parar de trabalhar.
O lixo que
única fonte
o tempo que
lhe proteja
cata (ferro, alumínio, papelão) é sua
sua
de renda há mais ou menos um ano. Esse é
está morando em qualquer vão de loja que
da chuva à noite. É o tempo que está sem
trabalhar. Em seu último emprego, quando era ajudante geral
de
um
escritório,
trabalhava
dois
turnos.
Foi
assim
que
conseguiu economizar dinheiro para visitar a mãe há dois
anos. Ela, com quase 80 anos, mora em Ribeira do Pombal,
cidade da Bahia. Durante todo esse tempo, só se correspondeu
com a mãe por meio de cartas. Por isso, quando lembra,
sempre
sempre agradece _não sabe a quem_ por ter completado
a quarta série do primeiro grau. Mesmo que tenha
feito isso com mais de 20 anos. Hoje é mais difícil
guardar os trocados. O que consegue no dia, que pode chegar a
R$ 10, é gasto só com comida. Sua moradia é sua carroça, que
lhe custou R$ 170. Dinheiro grande, como diz, para quem vive
nas ruas. Ele nunca ficou mais de um mês sem fazer
qualquer coisa que lhe rendesse dinheiro. Sabe que
só não consegue dinheiro quem não quer trabalhar. Do
irmão, que mora em São Paulo, não recebe ajuda para nada. Diz
que não precisa, que está tudo bem. Prefere adiar o socorro
para um dia em que não tenha mais saúde. É que Pedro tem uma
inflamação nos olhos, o que o deixa vendo tudo embaçado.
Poluição do ar. Na Baixada Santista, onde morou oito anos,
não tinha nada disso. Quando pensa nas cidades onde já morou,
não gosta de fazer comparações com Ribeira do Pombal. Não
gosta
de
sentir
saudade.
Ficou
lá
atrás.
Em
sua
cabeça, Ribeira do Pombal virou o lugar guardado onde verá,
um dia de novo, a mãe ainda viva.
60
Messias, 94
[16.outubro.2004]
Messias limpa pacientemente cada um dos brinquedos que carrega para vender nas ruas.
Passa muito tempo limpando os objetos, às vezes duas ou três vezes todos eles, mesmo que
não consiga vender nenhum nas esquinas de travessas da avenida Paulista ou de ruas da
Vila Mariana, onde costuma ficar todos os dias.
Entretido na tarefa, parece ficar alheio ao que acontece à sua volta. Sentado no chão em um
canto de uma loja fechada aos sábados, numa travessa da Paulista, ele costuma ter seu
chapéu de vaqueiro enterrado na cabeça e esquecer do mundo. Esquecer dos “clientes”.
Não que faça isso porque não precisa de dinheiro. Aos 94 anos, ele ganha uma
aposentadoria de um salário mínimo, que mal dá para pagar o lugr onde vive num cortiço
em São Mateus _cidade da região metropolitana de São Paulo, na divisa com Santo André.
O quarto lhe custa R$ 100. Tirando mais umas poucas contas, os resto da aposentadoria não
dá para nada. Messias nunca foi pegar comida dada pelo governo. Por isso continua
trabalhando. O dinheiro que ganha com a venda dos aviões, tanques, bonecas,
caminhõezinhos que transportam refrigerante e outras bugingangas de plástico é só para
comer.
Às vezes consegue até 200% de lucro... quando vende algum. Compra os brinquedos na
galeria Pajé, um grande prédio-camelô que vende todo tipo de miudezas e inutilidades que
se possa imaginar. Fica na rua 25 de março, centro de São Paulo. Cada um, dependendo do
modelo, chega a sair a R$ 0,50. Vende por R$2, R$ 3. Quando alguma vem com uma peça
solta, Messias, agachado, se enterra ainda mais entre os joelhos, com o chapéu para a
frente, e se põe, com ar de engenheiro, a tentar descobrir de que lugar do objeto veio a peça.
61
Não tem pressa de nada. Parece estar pacientemente esperando algo acontecer, sem
ansiedade. O tempo que gasta olhando um a um todos os brinquedos é, para ele, uma
maneira de passas as horas, como sempre, solitário.
Messias não tem família. Tem três irmãos que nem sabe se estão vivos. A última vez que
teve contato com alguns deles foi na quarta e última vez que visitou a mãe em Mato
Grosso, onde nasceu e de onde saiu com 20 anos. Sua mãe morreu há mais de 60 anos. O
pai, ele nunca o viu. Messias é filho de mãe solteira, como costuma dizer. Parece passar a
limpo na cabeça todo mundo da família e sabe que não esquece _nem conseguiria
esquecer_ de uma pessoa. Uma filha. Funga o nariz.
Sua única filha, que mora no Rio de Janeiro, já lhe deu netos. Não sabe quantos. Não
lembra nem quando a viu pela última vez de tanto tempo que não vai ao Rio. Além do Rio,
ele conhece também o Paraná e o Rio Grande do Sul, onde morou muitos anos. Em Mato
Grosso ele era peão de fazenda. De correr atrás de gado selvagem.
Quando chegou a São Paulo, começou a trabalhar como metalúrgico, no bairro da Mooca.
Desde que se aposentou, para não morrer parado, está há 30 anos vendendo brinquedos de
plástico nas ruas. São Paulo, Mato Grosso, Paraná. Para Messias, vida de pobre é difícil em
qualquer lugar.
62
Messias
limpa
pacientemente
cada
um
dos
brinquedos
que
carrega para vender nas ruas. Passa muito tempo limpando os
objetos, mesmo que não consiga vender nenhum. Entretido na
tarefa, parece ficar alheio ao que acontece à sua volta.
Sentado no chão no canto de uma loja fechada aos
costuma
ter
seu
chapéu
de
vaqueiro
sábados,
enterrado na cabeça e esquece do mundo. Esquece dos
“clientes”. Não que faça isso porque não precisa de
dinheiro. Aos 94 anos, ganha uma aposentadoria de um salário
mínimo, que mal dá para pagar o lugar onde vive num cortiço
em São Mateus, na região metropolitana de São Paulo. O quarto
lhe custa R$ 100. Tirando outras poucas contas, os resto não
dá para nada. Por isso continua trabalhando. O
dinheiro
que ganha com a venda dos aviões, tanques, bonecas,
caminhõezinhos
caminhõezinhos que transportam refrigerante e outras
bugingangas de plástico é só para comer. Às vezes
consegue
até
200%
de
lucro...
quando
vende
algum.
Cada
brinquedo, dependendo do modelo, chega a comprar por R$ 0,50.
Vende por R$2, R$ 3. Quando algum vem com uma peça solta,
Messias, agachado, se enterra ainda mais entre os joelhos, e
se põe a tentar descobrir de onde veio a peça. Parece estar
pacientemente esperando algo acontecer. O tempo que
gasta olhando um a um todos os brinquedos é, para
passar
ele, uma maneira de pass
ar as horas, como sempre,
solitário. Messias não tem família. Tem três irmãos que nem
sabe se estão vivos. Teve contato com alguns deles na quarta
e última vez que visitou a mãe em Mato Grosso, onde nasceu e
de onde saiu com 20 anos. No mundo, tem apenas uma filha.
Funga o nariz ao lembrar. Sua única filha, que mora no Rio,
já lhe deu netos. Não sabe quantos. Não lembra nem quando
viu a filha pela última vez. Não tem noção do tempo.
Apenas sabe que está há 30 anos vendendo brinquedos
de plástico nas ruas de São Paulo.
63
Bolívar Átila, 60
[2.fevereiro.2005]
Não interessa em que lugar se encontre ou o que esteja fazendo, todos os dias Bolívar pára
tudo às 10h para sintonizar seu radinho de pilha. Minutos antes já está ansioso para o
programa de soul e blues que passa numa rádio de São Paulo. Sabe que sempre tem música
de Ray Charles.
Procura o aparelho malfadado na bolsa preta, cata uma pilha nova e impacienta-se até
conseguir sintonizar a rádio. O fone de ouvido também está todo arrebentado, mas ainda sai
som dali. Silêncio e um sorriso no rosto. É Ray Charles cantando. Bolívar sempre quis ser
igual a ele, mas seu plano não deu certo. Acha que seu pai desgraçou sua vida.
Quando novo, o pai tirou-o da escola, onde Bolívar tinha até aula de piano. Beatles, Nina
Simone, Clara Nunes, Chico Buarque, Bezerra da Silva. É dessa música que gosta. Seu pai,
sapateiro, tinha medo de que o filho fosse músico e não tivesse uma vida digna. Mas seu
pai era muito bravo, nervoso, e por isso Bolívar saiu de casa, onde morava em Franca, aos
13 anos.
Hoje, aos 60 anos, Bolívar está nas ruas. Dorme em qualquer lugar e sobrevive de bicos em
obras de construção civil e de catar entulho em lixo. Antes disso, foi sapateiro, ofício
aprendido com o pai, trabalhou como office-boy em escritórios. Passou muitos anos sendo
carroceiro, fazendo transporte de mudança, até que foi trabalhar em motel. Era segurança
de um desses cafofos do centro de São Paulo. Acha que nunca conseguiu coisa melhor
porque parou de estudar. Está na rua há oito anos, desde que ficou sem o emprego do motel.
Uma de suas irmãs, que mora em Santos, o abrigou por pouco tempo. Sua família de três
irmãos acha que ele deu para vagabundo e o rejeitam. Seu pai morreu. Sua mãe... acha que
ela mora com seu irmão _bem formado, gerente de empresa_ que mora em São José do Rio
Preto. O irmão diz que ela morreu, mas Bolívar prefere acreditar que estão escondendo-a
64
dele. Não gostam que ele vá lá porque ele é pobre. Da última vez que viu o irmão, há
muitos anos, contou nos dedos que ele tinha cinco carros, usados também por seus filhos.
Bolívar não tem filhos nem mulher. Quando trabalhou em motel, foi a época que mais teve
namorada. Tudo limpinha, como costuma dizer. De doença que sabe que tem, só uma ferida
nas costas. Quando era carroceiro, sofreu um acidente e caiu em um lugar onde havia fezes
de cavalo. Teve câncer de pele.
Por causa da ferida que ainda cicatrizando, Bolívar sempre lava a camisa, que fica suja pela
falta de curativo. Pendura uma corda na grade de algum prédio, onde deixa a roupa secar
depois de lavá-la na calçada com água que carrega numa garrafa de dois litros de
refrigerante. Senta ao lado e só sai dali depois do programa de soul e blues terminar.
65
Não interessa o que esteja fazendo, todos os dias Bolívar
pára tudo às 10h para sintonizar seu radinho. Minutos antes
já está ansioso para o programa de soul e blues que passa
numa rádio de São Paulo. Sabe que sempre tem música de Ray
Charles. Procura o aparelho malfadado na sacola e impacientase até conseguir sintonizar. Silêncio e um sorriso. Ray
Charles cantando. Bolívar sempre quis ser igual a
ele, mas seu plano não deu certo. Acha que seu pai
desgraçou sua vida. Quando novo, o pai tirou-o da escola,
onde tinha até aula de piano. Seu pai, sapateiro, tinha medo
de que o filho fosse músico e não tivesse uma vida digna.
Como seu pai era muito bravo, Bolívar saiu de casa, onde
morava em Franca, aos 13 anos. Hoje, aos 60, está nas ruas.
Dorme em qualquer lugar e sobrevive de bicos em obras de
construção e de catar lixo. Antes disso, foi sapateiro, como
o pai. Acha que nunca conseguiu coisa melhor porque
parou de estudar. Está na rua há oito anos, desde
que ficou desempregado. Uma de suas irmãs, que vive em
Santos, o abrigou por pouco tempo. Sua família de três irmãos
acha que ele deu para vagabundo e o rejeitam. Sua mãe... ele
acha que ela mora com seu irmão em São José do Rio Preto. O
irmão diz que a mãe morreu, mas Bolívar prefere
acreditar que estão escondendoescondendo-a dele. Não gostam
que ele vá lá porque é pobre. Da última vez
vez que viu
o irmão, contou nos dedos que ele tinha cinco
carros. De posse sua mesmo, Bolívar só tem o radinho, a
roupa do corpo e uma ferida nas costas. Em um acidente, caiu
onde havia fezes de cavalo. Teve câncer de pele. Por causa da
ferida que nunca cicatriza, sempre lava a camisa. Pendura
uma corda na grade de algum prédio, onde deixa a
roupa secar após laválavá-la na calçada com água que
carrega numa garrafa de dois litros de refrigerante.
Senta e só sai dali após o programa de soul acabar.
66
Ivanosca Barbosa, 59
[5.fevereiro.2005]
Há 15 anos, quando trabalhava como copeira, Ivanosca deslocou o braço direito e foi
afastada do emprego. Nunca mais voltou a trabalhar. Até hoje, o braço lhe dói quando faz
muito esforço. Por isso não recolhe o vidro que encontra nos sacos de lixo que abre nas ruas
atrás de latas de alumínio. Quando a dor é muito intensa, toma uma injeção no prontosocorro.
Na época que perdeu o emprego, entrou com pedido de seguridade no INSS e reclamou
aposentadoria ao governo. Espera a aposentadoria sair há oito anos, desde que tinha 51
anos. O valor que recebe do INSS nem chega a R$ 400. Como esse dinheiro é muito pouco
para viver, Ivanosca foi para as ruas do centro de São Paulo. O quilo da latinha é R$ 3,60,
mas ela não consegue catar muito mais que isso por dia. Dá pelo menos para comprar
cigarros.
Com o dinheiro do INSS, ajuda um pouco em casa, cujo aluguel de R$ 240 quem paga é
sua filha. Ivanosca mora há dois anos no apartamento de dois quartos, que fica na Lareira,
próximo ao terminal de ônibus Cachoeirinha, zona norte da cidade. Sua filha Neiara tem
quatro filhos e sobrevive de uma banca de churrasquinho que monta todas as noites na
calçada de uma rua da vizinhança onde mora.
Neiara, 36, não tem ajuda de seu ex-marido. Ivanosca também não. Saiu do Rio Grande do
Sul há 28 anos, trazendo a filha. Deixou outras três lá em Santa Vitória do Palmário, no
Chuí, divisa do Rio Grande do Sul com o Uruguai. Já em São Paulo teve outro filho. Hoje
ele teria 18 anos se não tivesse sido raptado na maternidade.
Ivanosca não pensa em saudade. Atualmente está preocupada com uma ação com que vai
entrar na Justiça contra a Previdência Social. Além disso, sabe que as filhas estão bem. A
última vez que as viu foi há dois anos, quando foi a Vitória do Palmário. Elas nunca a
67
visitaram em São Paulo. No Chuí, Ivanosca também três irmãos; dois estão em São Paulo,
os quais não vê há oito meses.
A parte que falta na família é sua mãe, que morreu quando ela tinha nove anos. Sem a mãe,
Ivanosca quis estudar em colégio interno. Foi quando saiu de lá, em 1965, com 20 anos,
que começou a fumar. Nunca mais parou. Assim que vende as latinhas de alumínio que
catou no dia, pára para comprar cigarros. Não é muito dinheiro.
Com o esforço que faz para carregar a sacola preta com as latas, parece que ali tem uns
cinco quilos. Mas não. O resto do peso são quatro sacos de meio quilo de doce tipo jujuba,
que ganha em uma confeitaria por onde passa, no centro de São Paulo. O doce estava havia
dois meses com prazo de validade vencido. Faz mal não, diz ela, ainda não deu tempo de
estragar tanto. Ivanosca ignora uma possível dor de barriga porque só fuma com jujuba na
boca. É, hoje, a única regalia a que se permite.
68
Há 15 anos, quando trabalhava como copeira, Ivanosca deslocou
o braço direito e foi afastada. Nunca mais teve emprego. Até
hoje, o braço lhe dói quando faz muito esforço. Por isso não
recolhe o vidro que encontra nos sacos de lixo que abre
delicadamente nas ruas atrás de latas de alumínio. Quando
perdeu o emprego, entrou com pedido de seguridade no
INSS e reclamou, aos 51 anos, aposentadoria. Espera
isso sair há oito anos. O valor do INSS nem chega a R$
400. Dinheiro pouco, Ivanosca foi para as ruas do centro de
São Paulo. Com o INSS, ajuda em casa, cujo aluguel de R$ 240
quem
paga
é
sua
filha.
Ivanosca
mora
há
dois
anos
num
apartamento de dois quartos na zona norte. Sua filha, que lhe
deu quatro netos, sobrevive de uma banca de churrasco que
monta à noite numa calçada perto de onde mora. Não tem ajuda
do ex-marido. Ivanosca também não. Saiu do Rio Grande do Sul
há 28 anos, trazendo a filha. Deixou outras três lá em Santa
Vitória do Palmário, no Chuí. Em São Paulo teve outro
filho, que teria 18 anos se não tivesse sido raptado
na maternidade. Ivanosca não pensa em saudade. Está
preocupada com a ação com que vai entrar na Justiça
contra a Previdência. Também prefere acreditar que as
filhas estão bem. A última vez que as viu foi há dois anos,
no Chuí. Lá não viu a mãe, que morreu quando tinha nove anos.
Sem a mãe, Ivanosca quis estudar em colégio interno. Quando
saiu de lá, com 20 anos, foi que começou a fumar. Nunca mais
parou. Assim que vende as latas, pára para comprar cigarros.
Não ganha muito dinheiro. Com o esforço que faz para carregar
a sacola preta, parece que ali havia 5 kg. Mas o resto do
peso são seis sacos de meio quilo de jujuba, que ganha numa
Estava havia dois meses com prazo de
validade vencido. Faz mal não, ainda não deu tempo
de estragar. Ivanosca ignora uma possível dor de
jujuba
barriga porque só fuma com j
ujuba na boca. É, hoje,
a única regalia a que se permite.
confeitaria.
69
Helio Carias, 54
[29.fevereiro.2005]
Dois meses atrás, Helio usava uma sonda para urinar. A operação para a colocação do tubo
foi feita devido a uma inflamação que teve na próstata, problema que o fazia tomar um
antiinflamatório todos os dias. A caixa com comprimidos, que dura sete dias, custa R$ 65.
Às vezes conseguia o remédio de graça em um posto de saúde do governo, mas esse tipo
vive em falta. Era muito dinheiro para quem tem direito a uma aposentadoria de um salário
mínimo e pagava aluguel de R$ 50 num barraco no Valo Velho, na zona sul de São Paulo.
Além do antiinflamatório, Helio tomava todos os dias analgésico para as dores fortes que
sentia. Nada disso dava para se comprar com o dinheiro que ganha com as latas de alumínio
que cata nas ruas. Há cinco anos, desde que se aposentou como eletricista da Volkswagen,
conseguia catar quase quatro quilos por dia, o que lhe dava R$ 10. Depois que colocou a
sonda, porém, o esforço não rendia nem dois quilos por dia.
Com a falta de dinheiro, Helio deixou de pagar o aluguel do barraco e passou a dormir nas
ruas. Sorri. Apenas porque, mesmo tendo de ir para as ruas, conseguiu fazer um novo
exame num hospital e o médico disse que ele não precisava mais da sonda. Helio tinha
medo de ter de tirar a próstata. Chegou a ir parar no hospital dia desses porque estava com
muitas dores na região da bexiga. Tomou uns remédios e, agora, queria se cuidar para isso
passar logo.
Não podia deixar de catar latas nas ruas. Até porque já não vê mais a cor do dinheiro da
aposentadoria. Quando vem, atrasa muito. Não sabe onde brigar por esse dinheiro e acaba
deixando isso para lá. Para ele, como já não tinha mais aluguel para pagar, os R$ 10 que
voltou a conseguir em um dia _depois que tirou a sonda_ era o suficiente para não passar
fome e poder comprar cigarros, vício que adquiriu com 13 anos de idade.
70
Hoje, aos 54, tem uma tosse que lhe ataca quase que de meia em meia hora. À noite, é pior.
Quando chegava no barraco, ficava acordado até tarde, quando fumava quase um maço de
cigarro. Durante o dia, a partir de quando saía de casa às 6h e ia para o centro da cidade, era
mais um inteiro. Há 30 anos, fuma dois maços por dia.
Em 1998, seu pulmão respondeu: princípio de tuberculose. Tinha acabado de se aposentar e
passou o ano inteiro no hospital. Foi a única vez que deixou de fumar, quando chegou a
pesar 48 quilos. Hoje, Helio pesa 55 quilos. Mede 1,64 m de altura. Por ser franzino, não
consegue carregar uma carroça _igual às muitas que há pelas ruas de São Paulo_ e catar
papelão nem outro tipo de entulho. Tem um carrinho de quase um metro de altura e meio de
largura, que o dono do galpão onde ele o guarda lhe deu.
Além do presente, guardar o carrinho de graça em seu galpão é a única ajuda que Helio
aceita dele. E de qualquer outra pessoa. Quando ficou muito doente, há dois meses,
ninguém nem conseguiu lhe ajudar porque Helio não dava notícias. Nem aparecia no
galpão. Essa ausência é a mesma que existe entre Helio e a família. Liga para o filho, que
mora em Bauru com sua ex-mulher, de quem se separou em 1985. O casamento durou
cinco anos. Depois que foi de Bauru, sua cidade natal, para São Paulo com 26 anos, Helio
voltou para lá depois de quatro anos e se casou.
De ir de quando em quando para a capital, arranjou um emprego como eletricista e largou a
família lá. O filho, hoje com 24, técnico em eletrônica, só foi a São Paulo uma vez. Ficou
doido quando entrou no metrô, não gosta de frio nem de poluição. Helio demorou para se
acostumar com o frio. Teve de entrar no agasalho, como costuma dizer. Hoje, depois de 20
anos seguidos em São Paulo, só tem medo do inverno que está por vir. O inverno que ele
pegará pela primeira vez morando nas ruas. A noite mais fria do inverno de 2004 bateu o
termômetro em 5º...
71
Dois
meses
atrás,
Helio
usava
uma
sonda
para
urinar.
A
operação para a colocação do tubo foi feita devido a uma
inflamação que teve na próstata, problema que o fazia tomar
antiinflamatório todos os dias. A caixa, para 7 dias, era R$
65. Às vezes conseguia de graça em um posto de saúde, mas
vive em falta. Era muito dinheiro para quem já pagava
aluguel de R$ 50 num barraco
Paulo. Não dava para comprar
ganha com as latas de alumínio
na zona sul de São
o remédio com o que
ruas.
que cata nas ru
as. Há
cinco anos, quando foi às ruas, conseguia catar quase 4 kg
por dia, o que lhe dava R$ 10. Depois que colocou a sonda,
porém, o esforço não rendia nem 2 kg por dia. Sem dinheiro,
Helio deixou de pagar o barraco e passou a dormir nas ruas.
Sorri. Conseguiu
Conseguiu fazer um novo exame e o médico lhe
disse que não precisava mais da sonda. Helio tinha
medo de ter de tirar a próstata. Para ele, como já não
tinha
mais
aluguel
para
pagar,
os
R$
10
que
voltou
a
conseguir em um dia, sem a sonda, era o suficiente para não
passar fome e poder comprar cigarros, vício que adquiriu aos
13 anos. Hoje, aos 54, tem uma tosse que lhe ataca
quase que de meia em meia hora. Há 30 anos, fuma
dois maços por dia. Em 1998, seu pulmão respondeu:
princípio de tuberculose. Passou um ano no hospital. Foi
a única vez que deixou de fumar, quando chegou a pesar 48 kg.
Hoje, pesa 55 kg. Por ser franzino, não consegue carregar uma
carroça. Tem um carrinho pequeno, que o dono do galpão onde
ele o guarda lhe deu. Além disso, guardar o carrinho em seu
galpão é a única ajuda que Helio aceita dele. E de qualquer
outra pessoa. Finge que não precisa de nada. Hoje, após 20
anos em São Paulo, só se preocupa com o inverno que
está por vir. O que ele pegará pela primeira vez
morando na rua. A dura lembrança
lembrança é a de que a noite
mais fria de 2004 bateu o termômetro em 5º.
72
Lúcia de Souza, 52
[11.maio.2005]
Sentada no chão de uma calçada a 100 metros de um colégio num bairro de classe média
alta de São Paulo _onde passam muitas mães para buscar seus filhos_, Lúcia vende panos
de prato há cinco anos. Seu neto, Bruno Kaike, que ela chama de filho, brinca ao lado com
uma arma de plástico que atira água. Ele não tem com quem ficar em casa. E Lúcia só vai
para a rua à tarde depois de buscá-lo na escola, onde cursa a 4ª série do ensino fundamental.
Com 52 anos, Lúcia paga R$ 100 de aluguel numa casa onde mora com Bruno, 7. Ele é
filho de sua única filha, mulher entre sete homens da família. Todos casados e com casa
para sustentar. Não ajudam Lúcia, mas ela, compreensiva, sabe que cada um tem de cuidar
de sua própria vida. E eles não têm, não têm como ajudá-la.
Em todo Dia das Mães, Natal, essas datas de festa, porém, lá estão em sua casa. Um
apartamento de dois quartos em Francisco Morato [cidade da Grande São Paulo, a 48 km ao
norte da capital], cuja dona a conhece há sete anos e entende quando ela atrasa o aluguel.
Tem dias que não vende, em algumas ruas da região central de São Paulo, nenhum de seus
panos com barra estampada e fita bordada, comprados por R$ 2 no Brás. Vende três por R$
10.
Na rua, as pessoas a cumprimentam sorrindo. Hábito adquirido de tanto vê-la por ali. Lúcia
sabe que uma pessoa que não fala palavrão e ganha seu dinheiro honesto é visto com bons
olhos pela vizinhança. Não a sua, da cidadezinha onde vizinhos se confundem com
parentes, mas daquela vizinhança de anéis grandes e dourados.
Aceita sorrisos e os retribui, mas não gosta que ninguém lhe dê dinheiro sem levar um pano
de prato. Convencida da sorte da vida, não pede nem rouba. Sabe que não sabe roubar. Se
soubesse, o que não combinaria com sua honra, iria presa. Afinal, pobre sempre vai preso.
73
Lúcia trabalhou como doméstica desde que chegou a São Paulo, há quase 20 anos. Veio de
Paranavaí, cidade a cerca de 500 km de Curitiba, onde morava com quem se casou aos 15
anos. Separada do marido, veio para São Paulo, onde já moravam seus pais. Uns dois anos
depois de sua chegada morreu sua mãe. Quando o pai morreu, anos depois, perdeu o
contato com suas duas únicas irmãs, mais novas. Sabe onde elas moram, mas elas não
sabem seu endereço.
Ela sente que não precisa das irmãs. Casada desde os 15 anos, morou distante dos pais, em
cidade onde fazia colheita de algodão todo ano. Não teve muito contato com elas. Quando
mudou de cidade, morou sempre em casa de família onde trabalhava. A última vez que viu
uma de suas irmãs foi quando sua única filha tinha dez meses. Hoje, ela tem 23 anos.
Nem no aperto, e ela sabe o quanto pobre passa aperto, procurou as irmãs. Lúcia não recebe
pensão, aposentadoria ou coisa parecida. Seu último marido, com quem casou já em São
Paulo, não a ajuda porque está morto. Lúcia ficou doente há alguns anos, pressão alta,
asma, problemas de circulação, inchaço nos pés. Não teve mais como trabalhar.
Morando numa cidade do interior, quando pequena, e tendo de sobreviver de safra nos
campos do extremo norte do Paraná, só estudou até o 3º ano do ensino fundamental. Foi o
suficiente para saber quanto dar de troco pela compra dos panos de prato. Produto, Lúcia
sabe, que sustenta sua casa e sua dignidade.
74
Sentada no chão de uma calçada
média alta de São Paulo, Lúcia
há cinco anos. Seu neto, Bruno,
num bairro de classe
vende panos de prato
que ela chama de filho,
brinca ao lado com uma arma de plástico que atira água. Ele
não tem com quem ficar em casa. E Lúcia só vai para a rua à
tarde depois de buscá-lo na escola. Com 52 anos, Lúcia paga
R$ 100 de aluguel numa casa onde mora com Bruno, 7. Ele é
filho
de
sua
única
filha,
mulher
entre
sete
homens
da
família. Todos casados e com casa para sustentar. Não ajudam
Lúcia, mas ela sabe que cada um tem de cuidar de sua própria
vida. Em todo Dia das Mães, Natal, essas datas de festa,
Um apartamento de dois
quartos em Francisco Morato, cidade da Grande São
Paulo, cuja dona a conhece há sete anos e entende
quando ela atrasa o aluguel. Tem dias que não vende
porém,
lá
estão
em
sua
casa.
nenhum de seus panos com barra estampada e fita bordada,
comprados por R$ 2 no Brás. Vende três por R$ 10. Na rua, as
pessoas a cumprimentam. Hábito adquirido de tanto vê-la por
ali. Aceita sorrisos e os retribui, mas não gosta que
ninguém lhe dê dinheiro sem levar um pano de prato.
Lúcia trabalhou como doméstica desde que chegou a São Paulo,
há 20 anos. Saiu de Paranavaí, cidade a 500 km de Curitiba,
onde morava com quem se casou aos 15 anos. Separada, foi para
São Paulo, onde já moravam seus pais. Dois anos após sua
chegada morreu sua mãe. Quando o pai morreu, perdeu o contato
com duas irmãs. A última vez que as viu foi quando sua filha
tinha dez meses. Hoje, ela tem 23 anos. Lúcia não recebe
pensão, aposentadoria ou coisa parecida. Seu último
marido, com quem casou já em São Paulo, não a ajuda
porque está morto. Lúcia ficou doente há alguns anos,
pressão alta, problemas de circulação. Não teve mais como
trabalhar. Tendo de sobreviver de safra de algodão, quando
pequena, só estudou até a 3º série. É o suficiente para saber
quanto dar de troco pela compra dos panos de prato.
75
José Carneiro da Silva, 53
[23.maio.2005]
José Carneiro, 53, trabalhou muitos anos para comprar o primeiro carro, um Escort Hobby
ano 1996. O carro custou R$ 3.000 de entrada, mais prestações que ainda vão se estender
por dois anos e meio. A única renda que tem, e que é gasta apenas em comida e nas
prestações do veículo, é tirada de entulho que cata nos lixos de prédios residenciais ou em
obras e que vende em ferros-velhos. Em dia bom, consegue uns R$ 25 por dia. Desde
novembro de 2004 está morando na rua, para onde foi logo depois que foi fechada a firma
de construção civil onde trabalhava, com carteira assinada, como encarregado de
eletricidade.
Mesmo dormindo nas ruas do centro da capital dentro do carrinho que o dono do ferrovelho lhe empresta, Carneiro, como gosta de ser chamado, não pensa em vender seu carro.
Não daria muito dinheiro, ele sabe. O carro é velho, está desvalorizado e não recebe
manutenção. Além disso, não acharia ninguém que quisesse assumir a dívida. Quem usa o
carro é seu filho mais velho, 20 anos, que trabalha e mora com a mãe e as duas irmãs, 18 e
13, em Francisco Moratto, cidade da região metropolitana de São Paulo.
Mesmo separado da mulher, quando Carneiro trabalhava na empresa de construção civil,
ele ajudava em casa e ainda morava com ela. Desde que a firma em que trabalhava fechou,
não consegue mais dar pensão para a mulher, mas ela consegue segurar a casa. Estão
separados há três anos, mas brigam e voltam o tempo todo, ainda teimando para ver o que
vai acontecer. Assim como ele, ela é pernambucana e tem o sangue quente.
Hoje é mais difícil os dois se verem. Carneiro visita os filhos de 15 em 15 dias. Geralmente
vai para lá no sábado de manhã e volta na madrugada de segunda-feira, para não perder
tempo de trabalho nas ruas. Não vive mais lá porque não consegue catar tanto entulho como
consegue em São Paulo. Quando perdeu o emprego, saiu de Francisco Moratto com um
carrinho que tinha, catando entulho em cada canto que encontrava. Vendeu o que catou no
76
caminho mesmo, até porque são xxx km de distância e o carrinho dele não era grande.
Hoje, usa um carrinho emprestado do ferro-velho onde vende o entulho que cata, pois
roubaram o dele assim que chegou à capital. A maioria dos depósitos tipo ferro-velho
emprestam carrinho, pois um desses, tipo uma carroça, com um metro de largura e uns três
de comprimento, custa R$ 240.
Carneiro nem chegou a pensar em procurar trabalho de novo quando chegou à capital
paulista. Tinha tantas dívidas que não dava tempo para achar emprego, que mal e mal
existe. Nem gente nova está conseguindo emprego. E ele não consegue ficar muito tempo
parado, senão endoidece. Apesar disso, profissão ele tem à vontade: a carteira de trabalho
marca que ele já trabalhou como soldador, serralheiro, ferreiro, pedreiro. Aprendeu as
funções de ferreiro quando morou em Santos, trabalhando na manutenção naval, assim que
chegou em 1976.
Saiu de Pernambuco com 24 anos, de uma cidadezinha chamada Pesqueira, a quatro horas
de ônibus da capital. Recife mesmo ele só conheceu durante uma madrugada em que
arranjou um bico para encaixotar pinha e voltar logo de manhã. Tem gente que é lá do
mato, que mora em cidade como Pesqueira, e diz que é de Recife. Carneiro não. Tem
orgulho de dizer que é da roça mesmo.
Antes de chegar a São Paulo, trabalhava em fazenda em sua cidade, para onde voltou em
1983, quando saiu de Santos porque havia brigado com sua primeira mulher, uma prima sua
também de Pernambuco. Com ela, tem uma filha de 25 anos, que mora no Guarujá. A
última vez que a viu foi em Francisco Moratto. Ela foi visitá-lo na casa de sua segunda
mulher, com quem Carneiro se casou quando voltou a São Paulo depois de três anos em
Pesqueira.
Lá em Pernambuco ele deixou o pai, vivo e lúcido em seus 85 anos, e cinco irmãos. Foram
14 filhos, ele é o terceiro mais velho. Cinco morreram recém-nascidos, os outros três
moram em São Paulo. Todos eles foram criados na roça e tiveram pouco acesso a estudos.
Carneiro nem chegou ao segundo ano do primeiro grau no colégio. Conseguiu aprender a
77
ler e a escrever sozinho quando, depois dos 18 anos trabalhando em fazendas na Paraíba,
escrevia saudades em cartas para a mãe.
Os estudos foram, porém, suficientes para fazê-lo se virar em todos esses anos, com ou sem
emprego garantido. Às vezes se atrapalha em uma conta de divisão que tem de fazer
quando vende o entulho, esforço que não precisava fazer quando era serralheiro ou
soldador. Ainda assim não pensa em procurar emprego, mesmo depois de pagar todas as
prestações de um carro que praticamente nunca dirigiu. Na idade dele não dá mais para
bater de porta em porta, esperando alguém lhe dar trabalho. E, para ele, catar entulho nas
ruas é independência.
78
José Carneiro, 53, trabalhou muitos anos para comprar em 2004
seu primeiro carro, um Escort Hobby ano 1996. O carro custou
R$
3.000
de
entrada,
mais
prestações
que
ainda
vão
se
estender por dois anos e meio. A única
única renda que tem, e
que é gasta apenas em comida e nas prestações do
veículo, é tirada do lixo que cata nas ruas. Em dia
bom, consegue R$ 25 por dia. Desde novembro de 2004 está nas
ruas, para onde foi logo depois que foi fechada a firma onde
trabalhava
como
encarregado
de
eletricidade.
Mesmo
de ser
dormindo na rua, Carneiro, como gosta
chamado, não pensa em vender seu Escort. Não daria
muito dinheiro. Além disso, não acharia ninguém que
quisesse assumir a dívida. Quem usa o carro é seu filho mais
velho, 20 anos, que trabalha e mora com a mãe e as duas
irmãs, 18 e 13, em Francisco Moratto, cidade da Grande São
Paulo.
Mesmo
separado
da
mulher,
quando
Carneiro
tinha
carteira assinada ajudava em casa e ainda morava com ela. Não
vive mais lá porque não consegue catar tanto lixo quanto em
São
Quando perdeu o emprego, foi para a
a pé, catando o lixo que encontrava no
Paulo.
capital
caminho. Nem chegou a pensar em procurar trabalho. Tem
tanta dívida que não podia perder tempo. Nem gente nova está
conseguindo emprego. É mais difícil ainda alguém que nem
chegou à 2ª série do 1º grau conseguir. Aprendeu a ler e a
escrever sozinho quando, com 18 anos, trabalhando na Paraíba,
Às vezes se
atrapalha em uma ou outra conta de divisão que tem
de fazer quando vende o lixo, esforço matemático que
não precisava fazer quando era serralheiro. Ainda
escrevia
saudades
em
cartas
para
a
mãe.
assim, mesmo após conseguir pagar todas as prestações de um
carro que praticamente nunca dirigiu, não pensa em procurar
emprego. Na idade dele não dá mais para bater de porta em
porta, esperando alguém lhe dar trabalho. E, para ele, catar
lixo nas ruas é independência.
79
Rubens Alonso da Silva, 50
[28.maio.2005]
Foram 24 anos de carteira de trabalho assinada e há cinco meses Rubens trabalha em
qualquer coisa que arranje pelas ruas do centro de São Paulo. Veio com 18 anos de
Instância, cidadezinha de Sergipe, onde trabalhava na roça do pai. Hoje com 50 anos, vive
de fazer bicos para construção civil. Nada que exija conhecimento técnico na área. O
trabalho, que chega a lhe render uns R$ 10 por dia, quando há serviço, é o de recolher
entulho das obras e vender em depósitos ou ferros-velhos.
Depois de um casamento de 13 anos com uma médica, desde 1997, quando se separou
porque a mulher achou uma foto de garota de programa em suas roupas, ele não tem mais a
companhia das filhas. As duas, Cíntia e Raquel, de 17 e 16 anos, que moram com a mãe em
Ribeirão Preto, não o vêem há esses oito anos. Só se falam por telefone, quando ligam para
a casa de uma irmã de Rubens, que mora ali no centro da capital.
Depois de se separar da mulher, em 1 ano e 2 meses não tinha mais onde morar e foi essa
irmã que lhe deu abrigo. Ficou lá por 1 ano e 8 meses, mas o marido dela não gostava que
Rubens bebesse e o mandou embora. Também não estaria nas ruas há cinco meses se, antes
disso, seu restaurante, que abriu em Pirituba assim que se separou da mulher, tivesse ido à
falência. Para abrir o negócio próprio, Rubens tinha umas economias de quando trabalhava
com carteira assinada antes de 1997 _mesmo tendo um FGTS que já somava R$ 5.800 e
que estava preso devido ao Plano Verão de quando Fernando Collor de Mello era
presidente da República. Como hoje não tinha mais documento algum, nem o CPF, não
pensava em ir, em algum lugar que não sabia onde, brigar por esse dinheiro.
O fundo de garantia foi acumulado durante o tempo em que Rubens trabalhou como técnico
em eletricidade, em contabilidade, em torneiro eletrônico, quando foi segurança de
empresas e de particulares _apesar de nem chegar a ter 1,70 m nem de ser robusto o
suficiente para o serviço. Mesmo só tendo o primeiro grau completo, ganhava muito bem
80
quando era segurança _serviço de risco. Eram R$ 600 na carteira e quase uns R$ 2.000 por
fora. Isso ia para o chamado caixa 2 que tinha em casa e escondia da mulher. Sei lá, nunca
sabia quando ia precisar desse dinheiro.
Quando se separou judicialmente, sua ex-mulher até tentou ajudá-lo, achando que ele
estava sem nada, mas ele não deixou. Mesmo hoje, sem realmente nada, não aceita que a
ex-mulher lhe mande um tostão. Só aceita ajuda com comida das irmãs quando não tem
nada para comer no dia. Dos 10 irmãos que Rubens tem, são três mulheres morando em São
Paulo.
Quando Rubens tinha emprego e morava com a ex-mulher, tirou duas dessas três irmãs das
ruas. Ajudou, deu abrigo. Na época era segurança em uma agência do Bradesco. Hoje elas
recusam sua presença, mas ele agradece a Deus por ter feito com elas o que era direito. Não
se arrepende mesmo quando pensa que uma delas acabou com seu restaurante. Uma vez,
quando esteve doente, uma irmã ficou um tempo à frente do negócio. A metida a
macumbeira desfalcou tudo e quando ele voltou estava cheio de dívidas.
Mesmo sem dinheiro e sem ter onde morar, o problema era que agora nem pode mais pedir
emprego, pois, depois que o restaurante faliu, teve o braço direito aleijado por dois tiros que
tomou na altura do ombro, quando salvou a filha de seu patrão de uma tentativa de
seqüestro. Era um bico como segurança em uma casa que ele fazia, o que lhe rendeu dois
pinos de aço encravados na pele. Não que isso o impeça hoje de carregar entulho, até
porque mora nas ruas com outros dois colegas, que sobrevivem dos mesmos bicos, e eles o
ajudam quando necessário.
São colegas de trabalho, amigos de cachaça. Quando um não tem pinga, o outro dá um
pouco. Rubens só fica bêbado se estiver com muita fome. Se estiver de barriga vazia, evita
beber. Nem pode ficar bêbado. Quem vive nas ruas não pode ficar fora de si. Tem de estar
lúcido, atento a qualquer coisa que possa lhe acontecer. E hoje só tem vontade de beber
quando pensa nas filhas e em seu pai, que morreu em 1986. Saudade... que dura quase o dia
inteiro.
81
Saiu de Instância porque sempre quis viver fora de casa. Tinha três irmãos já morando em
São Paulo. Era o segundo filho mais novo, muito querido pelo pai. Eles se davam tão bem
que, hoje, quando pensa nele, os olhos ficam marejados. Uma vez, quando foi visitar os
pais seis anos depois de estar morando longe, não contou que estava indo porque queria
fazer uma surpresa.
Entrou no bar do pai, pediu um refrigerante e cigarro. Depois de tanto tempo sem o ver, o
pai não o reconheceu. Rubens saiu de casa com cara de menino e voltava cheio de barba e
bigode. Na hora que chegou a conta do bar, disse que não pagaria. O pai, sem muito
pestanejar e achando que ele era um malandro qualquer, puxou um revólver calibre 38 do
balcão e disse para ele ir logo pagando a conta. Rubens perguntou se o velho não
reconhecia seu filho. O choro do pai, como em cena de cinema, onde só lá os homens
choram, é a lembrança mais forte que Rubens guarda de seu pai até hoje.
82
Foram 24 anos de carteira de trabalho assinada e há cinco
meses Rubens trabalha em qualquer coisa que arranje por onde
mora, nas ruas de São Paulo. Chegou à cidade com 18 anos
vindo de Instância, Sergipe, onde trabalhava na roça do pai.
Hoje com 50 anos, vive de fazer bicos para construção civil.
Nada que exija conhecimento técnico na área. O trabalho,
que lhe rende R$ 10 por dia, quando há serviço, é o
de recolher entulho das obras e vender em depósitos.
Após um casamento de 13 anos, desde 1997 ele não tem mais a
companhia de sua casa e das filhas, que moram com a mãe em
Ribeirão Preto. Só se falam por telefone, quando ligam para a
casa de uma irmã de Rubens. Depois
de se separar da
mulher, dentro de um ano não tinha mais onde morar e
foi essa irmã que lhe deu abrigo. Ficou lá por quase
dois anos, mas seu marido não gostava que Rubens
bebesse e o mandou embora. Também não estaria nas ruas
há cinco meses se, antes disso, seu restaurante, que abriu em
Pirituba
assim
falência.
Para
que
se
abrir
o
separou
da
negócio,
mulher,
tinha
tivesse
umas
quando trabalhava com carteira assinada antes
ido
economias
à
de
de 1997. O
fundo de garantia de R$ 5.800, que está retido, foi
acumulado quando Rubens
Rubens trabalhou como técnico em
eletricidade e quando foi segurança _apesar de não
ser robusto o suficiente para o serviço. Mesmo só
tendo o 1º grau completo, ganhava bem para um segurança sem
muita tensão diária. Eram R$ 600 na carteira e quase R$ 2.000
por fora. Hoje, mesmo sem nada, só aceita ajuda com comida
das irmãs quando não tem o que comer. Nem pode mais pedir
emprego. Depois que o restaurante faliu, teve o
braço direito aleijado por dois tiros, quando salvou
a filha de seu patrão de uma tentativa de
de seqüestro.
O bico como segurança, então tranqüilo, lhe rendeu dois pinos
de aço encravados na pele e a rotina de catar lixo.
83
Nilson Antônio dos Santos, 45
[31.maio.2005]
Tudo que Nilson queria hoje, aos 45 anos, era ter uma vida legal: uma casa, uma TV, um
vídeo-cassete, onde pudesse assistir aos filmes de que gosta. Para ver os desenhos animados
que passam na programação matinal. Queria poder ler os jornais do dia atualizados, notícias
de polícia e a página de esportes. Atualmente, morando há dez anos nas ruas de São Paulo,
só conseguia ler jornal velho. Encontrava os jornais e revistas nos lixos que apalpava para
ver se tinha latinha de alumínio. Nessa última década essa era sua fonte de renda.
O quilo da latinha é R$ 2,50. Já foi 3,50, mas cada dia mais está baixando o preço. Naquele
saco preto, havia 85 latas. Um quilo equivale a 68 latinhas, ele já estava craque na conta.
Aquele tanto não era tão pouco para um início de manhã. O bom da latinha é à noite,
quando os prédios residenciais colocam os sacos de lixo para fora, para serem recolhidos
pelo caminhão da prefeitura. Mas Nilson não deixa de catar pela manhã. É a quantidade que
completa os 2 kg que ele consegue em um dia.
Não dá para conseguir muito mais. Tem muita gente sem emprego, trabalhando nas ruas do
mesmo jeito que ele... E muita gente que já teve emprego um dia (quase remoto) na vida,
como ele. Até ir parar nas ruas, Nilson, que não tem mulher nem filhos, trabalhou como
ajudante em uma loja de departamentos. Descarregava caminhão com mercadoria à noite.
Também já foi office-boy e trabalhou muito tempo como ajudante de serviços em todo tipo
de empresa, de supermercado a escritório.
Desde os 18 anos, quando saiu da casa dos pais, em São José do Rio Preto, e durante muito
tempo Nilson morou em pensão. Mesmo pagando bem pouco por um quarto, quando ficou
sem emprego e não conseguia achar mais nada, foi morar nas ruas. Toma banho e troca de
roupa em uma casa de convivência da igreja São Luiz Gonzaga, que fica na avenida
Paulista. O pessoal que mora nas ruas não está tão desprotegido assim.
84
No abrigo dessa igreja _uma entre tantas do centro de São Paulo que ajudam moradores de
rua_ eles tomam café e almoçam todos os dias. Às vezes distribuem roupas usadas,
agasalhos. Lá no abrigo só não dá para dormir. O pior é que a Prefeitura de São Paulo está
acabando com os albergues noturnos, onde se pode passar a noite e sair depois do café das
6h da manhã. O prefeito não está dando e até está tirando o que os moradores de rua
tinham.
Muitos deles têm profissão. A maior parte de quem está na rua sobrevivendo de entulho são
trabalhadores, quem um dia foi mecânico, torneiro, serralheiro, office-boy, faxineira. Mas
Nilson sabe que, quando as pessoas passam por ele nas ruas, pensam que ele e os outros são
todos vagabundos, que não gostam de trabalhar. Há uns dez anos, São Paulo era sonho
dourado. Todo mundo viajava para arranjar emprego lá. Hoje é diferente, por isso esse
tanto de gente nas ruas, gente qualificada.
Assim como os que estão na rua também por falta de emprego, por falta de oportunidade,
Nilson sabe que catar latinha é um subemprego: R$ 3 ou R$ 4 por dia não dá nem um
salário mínimo por mês. Por isso ele acha que agora ele não é mais vivo. É um zumbi, um
morto-vivo. Essa vida que está levando não é vida.
Antes quando ele era vivo, andava limpo, de barba feita, roupa lavada, dormia em pensão.
Hoje vive de juntar alguns reais para comprar cachaça (custa R$ 1 a garrafa de 500 ml) e
cigarros. É vício. Às vezes é bom beber para escapar do mundo grande. Acha que é
hereditário, porque seu pai, hoje com 73 anos, bebia muito. Sua mãe, que morreu há 13
anos, costumava dizer: pai pinguço, filho pinguço.
Nilson é filho único. Saiu de casa e foi para São Paulo porque não se dava muito bem com
o pai. A última vez que o viu foi há quatro anos. Dessa vez, o pai, que havia parado de
beber, falou para Nilson que ou ele parava de beber ou ia morrer logo. Com a vida que leva,
grandes coisas viver mais, pensa ele.
85
Vivendo nas ruas, a única coisa que Nilson deseja é ter hoje um lugar para dormir, sem ter
de pagar por isso. Com o fim dos albergues noturnos da prefeitura se aproximando, restam
as casas de convivência 24h, onde se passa o dia inteiro, mas não se pode beber nem fumar.
É onde se tem de ler a Bíblia. Nilson sabe que seria hipocrisia ir para um lugar desses. Não
é religioso, não acredita em Deus. Atualmente, não acredita nem nele mesmo.
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Tudo que Nilson queria hoje, aos 45 anos, era ter uma TV,
para ver os desenhos da Turma da Mônica. Para ele, Maurício
de Sousa é um gênio. Conseguiu colocar os gibis para passar
nos programas matinais da televisão. Também queria poder ler
o jornal do dia. Morando há dez anos nas ruas de São Paulo,
só lê jornal velho. Encontra
jornais e revistas nos
lixos que apalpa para ver se tem lata de alumínio.
Nessa última década essa era sua fonte de renda. No
saco preto que carregava, havia 85 latas. Não era tão pouco
para um início de manhã. O bom da latinha é à noite, quando
os prédios colocam os sacos de lixo para fora. Mas Nilson não
deixa de catar pela manhã. É o que completa os 2 kg que ele
consegue em um dia. Não dá para conseguir muito mais.
Tem muita gente sem emprego, trabalhando nas ruas
como ele. Morando na rua, Nilson toma banho na casa de
convivência de uma igreja da avenida Paulista. No abrigo,
tomatoma
-se café e se almoça todos os dias. O pessoal
que mora nas ruas não está tão desprotegido. Mas
Nilson sabe que catar latinha é um subemprego: R$ 4 por dia
não dá nem um salário mínimo por mês. Por isso acha que não é
mais vivo. É um zumbi. Antes, quando era gente, andava limpo,
de barba feita. Hoje vive de juntar trocados para comprar
cachaça e cigarros. Às vezes é bom beber para escapar
do mundo grande. Até acha que é hereditário, porque
seu pai, hoje com 73 anos, bebia muito. Sua mãe, que
morreu
há
13
anos,
dizia:
pai
pinguço,
filho
pinguço.
A
última vez que viu o pai foi há quatro anos, quando ele lhe
disse que ou parava de beber ou ia morrer. Com a vida que
leva, grandes coisas viver mais. Nilson só queria não ter de
passar o dia na rua. Resta-lhe ir para abrigo de igreja, onde
se passa o dia, mas não se pode beber nem fumar. É onde se
tem de ler a Bíblia. Sabe que seria hipocrisia ir para um
lugar desses. Não é religioso, não acredita em Deus.
Atualmente, não acredita nem nele mesmo.
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Maria de Lurdes dos Santos, 50
[2.junho.2005]
Havia apenas duas semanas que Maria de Lurdes estava morando em um apartamento de
um prédio invadido no centro de São Paulo. Descobriu o lugar através de uma senhora que
ela conheceu na feira do rolo, num fim de semana desses. Mesmo sabendo que o imóvel
estava com processo correndo na Justiça, e que a qualquer momento um juiz poderia
conceder a reintegração de posse ao dono do local, essa solução era preferível a continuar
na favela onde morava.
O barraco na favela do Moinho, ali perto da avenida Rio Branco, no centro da capital, era
dela. Comprou com o pouco dinheiro que tinha, parcelado em 15 vezes, R$ 50 por mês.
Pelo menos não pagava água nem luz, devido aos “gatos”, às instalações ilegais feitas. Mas
se endividou muito na vizinhança, o que a obrigou a ir embora dali com os quatro filhos e
um neto.
Quando saiu do Recife, chegou a São Paulo, há apenas três anos, sem filho nenhum. Viajou
com uma amiga, a sogra de sua filha mais velha, pedindo carona na estrada durante dez dias
e dormindo de favor em albergue ou pensão na beira das rodovias. Só depois de quase um
ano, trabalhando como faxineira, conseguiu juntar dinheiro suficiente para mandar os filhos
de Recife de ônibus para São Paulo.
Sua amiga, sogra de Cláudia, a filha mais velha, voltou para o Recife poucos meses depois.
Só tinha ido para São Paulo, e esse também era o motivo de Lurdes, porque achou que
conseguiria ajuda de uma conhecida para participar do programa do Gugu, na televisão.
Depois descobriram que essa mulher, Neide, havia enganado elas e não conhecia ninguém
que pudesse ajudá-las a ir ao programa. Lurdes, 50, não tinha, naquele momento, como
voltar para o Recife e começou a trabalhar como faxineira, morando em um apartamento na
Freguesia do Ó. O emprego, sem carteira assinada, não durou muito tempo e Lurdes não
conseguia mais pagar o aluguel de R$ 190.
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Morando na favela com os quatro dos oito filhos (dois morreram, dois ficaram no
Nordeste), sem emprego ou seguro desemprego, começou a catar entulho nas ruas. Há
pouco mais de dois anos, ela recolhe papelão, alumínio, ferro, plástico, todo tipo de lixo
que possa ser reciclado. Tudo é vendido no ferro velho do homem que lhe empresta o
carrinho, puxado todos os dias por Lurdes, uma mulher de quase 1,70 m, braços fortes, uns
68 kg e muita vontade de trabalhar. Pela manhã sua filha Cláudia a ajuda a catar e puxar o
carrinho ladeira acima e abaixo. Lá pelas 11h, Cláudia vai para casa, um apartamento no
mesmo prédio invadido onde a mãe mora, para poder levar seu filho mais velho e um
sobrinho para a creche.
Lurdes continua sozinha durante a tarde, mesmo que isso lhe custe muitas dores. Ela tem
problema na coluna, sofre de pressão alta, possui uma hérnia na barriga. Há pouco tempo
ela ficou uma semana sem conseguir sair de casa para recolher entulho de tanta dor que
sentia na coluna. Os dias improdutivos lhe fazem muita, mas muita falta. Só ela e Cláudia
catam nas ruas. Com o carrinho cheio, com uns 30 kg de papelão mais uns 20 kg de outros
materiais, elas conseguem R$ 15. Dividem o dinheiro igualmente entre as duas. Esse valor
é possível de se conseguir de dois em dois dias, mas às vezes não conseguem esse dinheiro
nem em uma semana.
Tudo isso é o sustento de três filhos e um neto que moram com Lurdes, e para o sustento
dos quatro filhos de Cláudia, que tem 27 anos. O filho mais novo de Lurdes, de 15 anos,
que não estuda mais, é o único que trabalha e que pode ajudar em casa. Distribui panfletos
de propaganda nas ruas. Sua filha de 18 anos está grávida e agora não pode ajudá-la com a
carroça nas ruas. O de 23 anos está desempregado. Lurdes não recebe pensão ou qualquer
ajuda dos ex-maridos para criar os filhos.
Teve quatro filhos com o primeiro marido, com quem ficou quatro anos, e mais quatro
filhos com o marido com que foi casada por 17 anos. Teve um terceiro marido, com quem
ficou dez anos, mas, como não teve filho algum com este, não recebia ajuda sua para criar
os outros. Há 15 anos está separada e sustenta todos que estão com ela. Também não quer
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mais marido. Dá muito trabalho. Lurdes cansou de criar filho sem pai. Hoje, mesmo com os
filhos crescidos, só pensa no sofrimento que ainda passa para dar de comer a eles. Ela só
não alimenta dois filhos que moram em Aracaju, na casa do segundo marido que ficou para
eles. Saíram de Recife quando a mãe foi para São Paulo em busca de emprego. Lá em
Pernambuco, Lurdes tinha um bar perto da praia. O negócio foi à falência, pois ela se
endividou após a morte de uma das filhas e já não tinha mais nenhum dinheiro guardado de
quando era empregada.
Já trabalhou em olaria, em fábrica de suco de laranja, em casa de família, também já lavou
roupa cobrando o serviço pela trouxa. Sabe que é difícil arranjar emprego em qualquer
canto, mas ainda assim pensa em um dia voltar para aqueles terras lá do Norte. Sabe que lá
pode se virar em barraca de praia porque o verão dura o ano inteiro.
Luta todos os dias para tentar voltar para sua cidade, mas é difícil. Não dá para juntar
dinheiro com o pouco que consegue com entulho. Mas, ainda que fosse em São Paulo, seu
sonho de verdade é morar com os filhos em um lugar que fosse seu. Sem precisar achar que
sobrevive de favor. Depois de criar os tantos filhos com o próprio trabalho, não admitiria
hoje depender de alguém para ter o que comer.
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Havia apenas duas semanas que Maria de Lurdes estava morando
em um apartamento de um prédio invadido no centro de São
Paulo. Mesmo sabendo que a qualquer momento um juiz
poderia conceder a reintegração de posse ao dono do
local, essa solução era preferível
preferível a continuar na
favela onde morava. O barraco na favela do Moinho, no
centro, era dela. Comprou parcelado em 15 vezes, R$ 50 por
mês. Mas se endividou muito na vizinhança, o que a obrigou a
ir embora dali com os quatro filhos e um neto. Quando saiu de
Recife, há apenas três anos, chegou a São Paulo sem filho
algum. Viajou com uma amiga pedindo carona na estrada durante
dez
dias.
Só
depois
de
quase
um
ano,
trabalhando
como
faxineira, conseguiu juntar dinheiro para mandar os filhos de
Recife de ônibus para São Paulo. Sua amiga voltou para o
Recife poucos meses depois. Lurdes, 50, não tinha, à época,
O emprego de faxineira, sem carteira
assinada, não durou muito tempo e Lurdes não
conseguia mais pagar o aluguel de R$ 190. Foi morar
na favela
favela com os quatro dos oito filhos e, sem
emprego, começou a catar lixo nas ruas. Há pouco mais
como
voltar.
de dois anos, ela pega papelão, alumínio, ferro, plástico,
tudo que possa ser reciclado. Pela manhã sua filha a ajuda a
catar e a puxar o carrinho, mas às 11h vai para casa, no
mesmo prédio onde a mãe mora, para levar seu filho à creche.
Lurdes continua sozinha à tarde, mesmo que isso lhe
custe muitas dores. Ela tem problema na coluna,
sofre de pressão alta, possui uma hérnia na barriga.
Há pouco tempo ficou uma semana sem conseguir sair de casa de
tanta dor que sentia. Os dias improdutivos lhe fazem muita
falta. Com o carrinho cheio, com 30 kg de papelão, conseguem
R$ 15. Dividem igualmente, dinheiro que sustenta duas
casas com três pessoas em cada. Esse valor é possível
de
se
conseguir
de
dois
em
dois
dias,
mas
muitas
vezes
durante o mês não conseguem o tanto nem em uma semana.
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