Introdução - Amarc Brasil

Transcrição

Introdução - Amarc Brasil
Indice
03 Introdução
Tomadores de decisões globais
05
Direitos Civis e Garantias
Constitucionais violados
09
Influência do Estado
13
Regras antimonopólio
17
Acesso e participação de
estrangeiros e migrantes
21
Uso de verbas públicas
25
07 Regras do jogo
11 Gênero 1: Mulheres
2: Gays, lésbicas,
15 Gênero
bissexuais e transgêneros
19
Fiscalização
e inclusão da
23 Participação
população
27
Créditos
Introdução
As 4556 rádios comunitárias formam hoje o setor
mais dinâmico da radiodifusão brasileira. Cada ano
solicitam-se novas outorgas – O que mais é preciso
para ressaltar o enorme interesse de exercer o Direito
Humano à Comunicação no Ar? Em muitas aldeias
amazônicas, cidades no interior do sertão, vilas
de pescadores, centros históricos, comunidades e
periferias urbanas a população achou no rádio um
meio de comunicação acessível, prático e divertido
para sonorizar e organizar de forma participativa a
vida cotidiana. É nada menos que a exploração do
velho sonho do dramaturgo alemão Bertolt Brecht –
e não somente dele - de um aparelho de “duas caras”
onde o público pode falar também até o ponto de
confundir a própria distinção dos locutores. A rádio
comunitária se faz e se escuta em comunidade, uma
comunidade de radioaficionadas/os.
Fazer rádio comunitária é um sonho popular
realizado e o Brasil deveria estar orgulhoso de contar
com a maior paisagem de radiodifusão comunitária
no mundo. E também deveria se orgulhar das/
os suas/seus radialistas comunitárias/os que estão
dando vida a esse sonho além da “cama” pouco
confortável que se chama Lei 9612 e que regula o
funcionamento das rádios comunitárias.
Com esse conjunto de parágrafos no ano 1998 foi
costurado um “colchão” bastante estreito de 25
Watts que não permite compartilhar os conteúdos
dos programas com muitas pessoas. E mais, antes
disso, conseguir a permissão para comprar e usar
um colchão pode virar um pesadelo não de horas,
mas de anos. Pior ainda, quem se atreve de realizar
o seu sonho radiofônico sem esperar o último
carimbo pode ser acordado por um balde frio dos
fiscalizadores que regulam severamente a circulação
dos contos populares no ar, porque esqueceram que a
sua função é fazer voar o maior número de sonhos de
todas e todos ao invés de dar preferência aos donos
das camas kingsize.
Irônicos contos de fadas a parte e voltando a relatos
analíticos, como o Informe Anual da Comissão
Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) do
ano passado, fica claro que o uso compartilhado
das ondas hertzianas é marcado por muitos déficits
democráticos. A regulação da radiodifusão é um
tópico transversal nas recomendações do órgão, tanto
quanto a crítica da criminalização da livre expressão,
o uso de medidas penais desproporcionais, a
diferenciação no direito a veiculação de publicidade e
na restritiva distribuição de outorgas de frequências.
Enfim, temos muito a debater e mudar para
concretizar uma verdadeira liberdade de expressão
no rádio.
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Nas próximas páginas queremos dar uma olhada
ampla sobre a prática e os desafios da radiodifusão
comunitária no Brasil e em outros países.
Convidamos uma turma diversa de 11 autoras e
autores, entre elas e eles jornalistas, radialistas,
acadêmicos e advogadas. As suas abordagens
são originais, convidam-nos para conhecer a
radiodifusão comunitária de perto de um ângulo
tanto crítico como solidário. São expostos nos
textos como organizações internacionais e nacionais
influenciam sobre o acesso e o uso do espectro
eletromagnético, nos contam dos problemas
cotidianos das emissoras independentes no Brasil,
México e nos Estados Unidos para conseguir uma
outorga. E perguntam por que as rádios comunitárias
reproduzem a falta de interesse no esporte
feminino, não conseguem romper por completo
com tendências homofóbicas da imprensa e não
defendem com maior vigor o acesso de migrantes aos
ondas eletromagnéticos. E mais uma vez levantam
questionamentos sobre como a gente pode sair de
uma lógica que confunde a comunicação com um
negócio o que acaba com qualquer possibilidade
de compartilhar de uma maneira complementar
frequências, verbas e recursos entre todas as
emissoras.
Esperemos que nossa compilação estimule mais
debates e mais participação na democratização da
mídia brasileira, ajudando a entender melhor a
atual importância da radiodifusão comunitária. Boa
leitura.
Pedro Martins
Representante Nacional da AMARC Brasil
Tomadores de decisões globais
Como a União Internacional de
Telecomunicações (UIT) interfere
no que você ouve e assiste
por Rafael Diniz
A União Internacional de Telecomunicações (UIT) foi criada em
1865 como organização para intermediar a comunicação entre as
redes de telégrafo de diferentes países da Europa. O tempo passou,
o rádio foi inventado e a UIT começou a normatizar e regular as
ondas de rádio e telefonia em escala mundial. Foi incorporada
como agência (mais antiga) da Organização das Nações Unidas
(ONU), tendo 193 países filiados.
A banda hoje alocada para o rádio FM, por exemplo (88MHz –
108MHz), foi definida pela UIT. Assim como a faixa para rádio
AM, TV, WIFI e telefonia celular, sendo, portanto, a mais alta
instância do rádio no mundo. Fazem parte dessa organização
representantes dos 193 países e aproximadamente 700 outras
organizações, muitas dessas entidades são empresas e indústrias
ligadas ao setor de telecomunicações.
As reuniões e conferências nas quais a UIT toma as decisões sobre
novas regras e tratados que ditam o uso do rádio são realizadas
a portas fechadas, sem qualquer possibilidade da participação
ou acesso da sociedade civil ou de seus representantes. Somente
ministros de Estado, organizações representantes da indústria e
empresas do ramo das telecomunicações ‘multibiolionárias’ tomam
as decisões.
Um exemplo recente foi o lobby da 3GPP e AT&T para alocar a
banda dos 700MHz, hoje ocupada pelos canais de TV 51 ou 69,
para a telefonia móvel, em detrimento da recepção com qualidade
da TV aberta gratuita nos EUA. A plenária da UIT, de forma nada
surpreendente, cedeu ao lobby das empresas de telecomunicações,
abrindo caminho para o mesmo processo no Brasil. Aqui, em
terras tropicais, a realocação dos 700MHz irá prejudicar muito as
TVs públicas, que têm seus canais digitais alocados entre o 61 ao
69.
No caso do rádio digital, o lobby dos Estados Unidos na UIT
a favor de seu padrão, o HD Radio, conseguiu barrar o padrão
Digital Radio Mondiale por vários anos antes que conseguisse
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se tornar uma norma internacional reconhecida,
claramente defendendo os interesses comerciais de
empresas norte-americanas, e contrários a aceitação
do único padrão de rádio digital aberto que funciona
na faixa de AM e FM.
Não contente com o grande poder, a UIT vem
tentando há alguns anos incorporar a governança
da Internet, de forma a permitir um maior controle
sobre o tráfego na rede.
Num mundo onde o rádio pode ser universal,
permitindo-se mais emissores-receptores, onde
o acesso dinâmico ao espectro está à disposição
para seu compartilhamento entre todos e a
sociedade clama por mais voz e acesso aos meios
de comunicação, a UIT se mostra cada vez mais
uma entidade da ONU que oprime aqueles que
precisam ter acesso ao espectro radioelétrico para se
comunicar.
Rafael Diniz , estudante em informática na PUC-Rio, membro do
coletivo Saravá e DRM-Brasil, Brasil
“O rádio é o meio de comunicação que permite maior autonomia,
independência e liberdade nas comunicações e precisa de todo nosso esforço
para que mantenha essas características com sua migração para o digital.”
As regras do jogo
Rádios comunitárias X rádios
comerciais: regras de um jogo
injusto
por Ana Martina Rivas
Em novembro de 2013, os telefones no escritório do Prometheus
Radio Project, Philadelphia, Estados Unidos, não paravam
de tocar, com dezenas de chamadas por dia. Tinha chegado o
momento esperado por mais de 10 anos: candidatar-se para uma
licença de rádio de transmissão de baixa potência. Os aspirantes:
rádios comunitárias que atualmente transmitem com 100 watts de
potência com um intervalo de 3 a 8 quilômetros.
Tanto elas como o nosso projeto Prometheus começamos
como “rádio pirata”. Somente depois de 10 anos de brigas com
a Comissão Federal de Comunicações (FCC) e de lobby em
Washington DC, a FCC finalmente publicou no ano passado um
novo regulamento que inclui as rádios comunitárias de baixa
potência.
Vivo em um país onde grande parte do espectro de rádio é
controlada pelo monopólio Clear Channel e as opções de rádio
pública são dominadas pela National Public Radio, conservadores
de corrente liberal. Dessa forma, populações minoritárias como
camponeses, imigrantes, negros e de baixa renda são totalmente
marginalizadas quando se trata de meios de comunicação.
Durante o período de aplicação das licenças recebemos dezenas de
chamadas. E, contrário ao atual uso uniforme do espectro de rádio,
as ligações refletiram a diversidade do país.
Talvez tenhamos em nossas mãos uma ótima oportunidade para
diversificar a opinião pública nos Estados Unidos. Prometheus
tem lutado pelo acesso a rádios comunitárias e defende o potencial
deste meio como uma ferramenta para apoiar organizações de base
e populações minoritárias.
No entanto, no ano 2014, esses grupos ainda se encontram no
início de um longo caminho para construir as suas próprias
estações de rádio. As regras da FCC são muito rigorosas, e para
poderem ser aplicadas a essas frequências requere-se um estudo
de engenharia para verificar se as estações propostas não irão
interferir nas estações existentes. Além disso, os equipamentos
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possuem um custo muito alto, cerca de sete mil
dólares, pois precisam ser certificados pela FCC.
Soma-se ao montante ainda a mão-de-obra dos
engenheiros.
Uma vez que estas estações recebam suas licenças,
terão um prazo de 18 meses para entrar no ar em
conformidade com todas as normas e exigências da
FCC. Caso contrário, a autorização expira no final
do prazo, o que significa que estes grupos estão agora
na corrida contra o tempo para angariar fundos para
a aquisição destes equipamentos caros. O processo
de aplicação é altamente competitivo. Na baía de
São Francisco, por exemplo, existem cerca de 30
candidatos para a mesma frequência. Em alguns
casos, o processo de competição envolverá processos
judiciais excessivamente burocráticos.
É definitivamente o início de uma longa batalha
que está apenas começando para essas minorias
mal representadas ou ausentes nos meios de
comunicação. Estamos falando de algumas migalhas
do espectro radiofônico em um país que tem se
especializado no controle dos meios de comunicação
como uma estratégia para o controle da população.
E ainda por cima, este serviço de rádio de baixa
potência é considerado de segunda classe, o que
significa que a qualquer momento uma estação
comercial pode se mover para outra frequência ou
aumentar o seu poder. As rádios comunitárias em
muitos casos são obrigadas a transmitir com menos
potência para não interferir nas transmissões das
grandes rádios comerciais. O que é pior: na maioria
dos casos, uma rádio pode até mesmo perder sua
licença se prejudicar emissoras comerciais.
Como podem ver, as “minorias radiofônicas” têm
regras de jogo bastante difíceis para seguir e são
claramente representadas como populações de
segunda classe pela FCC.
Para mais informações sobre o trabalho do Projeto
Rádio Prometheus:
http://prometheusradio.org
Ana Martina Rivas trabalha no Prometheus Radio Project,
Philadelphia, Estados Unidos
“As grandes corporações apropriaram-se dos meios de comunicação,
construindo uma narrativa monopolista de censura da direita.”
Direitos Civis e Garantias Constitucionais violados
Vida de Gado
por Pamella Magno
As rádios comunitárias surgiram em regiões periféricas e operam
com baixa frequência em FM. São ferramentas de comunicação
extremamente importantes em suas áreas de atuação. Por seu
baixo alcance, tornam- se pontos de referência com tratamento
específico das questões locais, onde os ouvintes se apropriam
levantando pautas, divulgando eventos e fazendo a programação
em si. Logo, as rádios comunitárias (RCs) assumem um papel
de empoderamento, pois ninguém fala por elas, e mantêm uma
identidade local que leva ao sentimento de pertencimento,
reconhecimento do indivíduo por ele mesmo como cidadão
de direitos e deveres. Estamos falando do desenvolvimento
cognitivo deste indivíduo em várias vertentes, resultando em um
posicionamento político. O inciso III do Artigo 3 da Constituição
Federal (CF), que trata da redução de abismos das desigualdades
sociais e regionais, é o escopo das RCs.
Existe um grande aparato de leis para defesa da liberdade de
expressão. Como, por exemplo, o inciso IX do Artigo 5 da CF que
diz ‘é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença’.
Até aí tudo azul, beleza pura… Agora vamos à nossa realidade.
Rio de Janeiro, 03 de Maio de 2011.
Rádio Santa Marta, uma rádio comunitária localizada no bairro
de Botafogo é fechada e comunicadores comunitários são levados
para delegacia em operação da Polícia Federal e Anatel por não
possuírem autorização de funcionamento.
Campinas, 23 de Fevereiro de 2014.
Rádio Muda, uma rádio livre que funcionava há 30 anos no
campus da Universidade Estadual de Campinas é fechada em
operação do Ministério Público Federal (MPF) em conjunto com a
Anatel também por não possuir autorização.
O Ministério das Comunicações passou a emitir autorizações
provisórias (com duração de 10 anos) em 2003, porém sem
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transparência sobre a sua distribuição. Foi criado
um grupo de trabalho (GT) para apurar tais
informações e constatou-se mais de 40 mil processos
administrativos em atraso, sendo pouco mais de
quatro mil RCs. Havia delegações regionais que
foram fechadas, concentrando o local de recebimento
diretamente no Ministério das Comunicações,
em Brasília, com capacidade de recebimento e
apuração técnica de três mil pedidos por ano! Chega
a ser risível… faça as contas. Quem receberá tais
autorizações: oligopólios das grandes rádios ou as
rádios comunitárias? A maior parte destes processos
continuam parados. O próprio Ministério das
Comunicações reconhece a dificuldade na execução
dessas demandas.
Em contraponto, a fiscalização sobre esses
veículos de comunicação ‘clandestinos’ é eficaz e
rápida. Tratando de forma penal e não de forma
administrativa cidadãos que cometeram o crime de
se expressar. Sendo a morosidade deste Ministério
a real violação constitucional dos princípios de
eficiência e razoabilidade, que segue impune.
Existe um jogo político de interesses midiáticos como
pano de fundo. É o interesse privado sobrepondo
o público. O uso dos aparelhos do Estado para
criminalizar os comunicadores comunitários e
livres é uma afronta à sociedade democrática que
sonhamos.
Pamella Magno trabalha para o Jornal O Cidadão e no Pontão de
Cultura Digital da Eco UFRJ
“A a liberdade de expressão exercida através do uso de ferramentas de
comunicação traduz um ambiente de trocas de experiências, valores e
costumes. Tornando-se vital para a manutenção da interação cognitiva
humana.”
Gênero 1: Mulheres
O que não é visto, não existe
por Miriam Meda
“O futebol feminino, nem é futebol e nem feminino.” Com este tipo
de incentivo vindo das arquibancadas, a jogadora Sheila Jimenez
teve que marcar gols. Sheila era uma jogadora semi-profissional do
futebol espanhol, que deixou os gramados para se dedicar a área de
informática e telecomunicações num escritório em Madrid.
Eu também me lembro durante os campeonatos que cada vez que
uma companheira marcava um gol não faltavam homens gritando:
“Faça um Guaraná “. Para quem não se lembra, o Guaraná é um
refrigerante que em 2002 fez um comercial de extremo mau gosto.
A empresa veiculou um anúncio em que uma loira marcava um gol
e comemorava a marcação subindo a camisa e mostrando os seios.
Na Espanha, foi uma das publicidades mais denunciadas por ser
sexista.
Mas por que ainda existe essa visão do futebol feminino? Não só
no futebol, mas no esporte em geral. Mari Carmen Rodriguez,
diretora e apresentadora do programa de rádio Féminas, um
espaço inteiramente dedicado ao futebol feminino, da Rádio Ritmo
Getafe de Madrid, na Espanha, indigna-se ao lembrar do descaso
da imprensa em noticiar a conquista da nadadora espanhola
Mireia Belmonte. A atleta ganhou quatro medalhas de ouro e bateu
um novo recorde no campeonato europeu de natação e a mídia
não deu, sequer, uma nota de rodapé.
Que o futebol move massas, todos já sabem, mas o grande
problema na sociedade de hoje é que aquilo que não aparece na
mídia diretamente, não existe. Infelizmente, o caso de Mireia
não é o único. Como o esporte das mulheres nunca é notícia, de
fato não existe. Você pode estar perguntando se para os veículos
de comunicação é de fato rentável o suficiente dar a mesma
visibilidade do futebol masculino para o feminino. É uma pergunta
legítima, mas deixando de lado os termos econômicos, devemos
nos perguntar o que acontece com as televisões e rádios públicas,
cujo benefício mede-se no serviço público e não no lucro? E
então, o que acontece com as rádios e televisões comunitárias, cuja
missão declarada é precisamente dar voz aos que não têm voz?
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Analisando os programas de rádio dedicados ao
esporte feminino na Espanha, observamos que quase
podemos contar nos dedos de uma mão aqueles em
que de fato abrem um espaço para retratar a mulher
no esporte. Contamos com o Solo Deporte Femenino
(SDF) realizado pela Universidade Europeia de
Madrid, em colaboração com o Conselho de
Esportes; Aragón Deporte en Red. En femenino,
da Rádio Pública de Aragão, e um quadro para as
mulheres no programa Al primer toque da Onda
Cero. Se nos concentrarmos nas rádios livres e
comunitárias espanholas, podemos incluir Féminas e
alguns programas de esportes como Oye, ¿cómo van?
da Rádio Cegonha e El Cronómetro, de Xétar FM.
Como dissemos antes, “o que não aparece na mídia,
não existe.” E como podemos ver, esporte e futebol
das mulheres não aparecem nos meios públicos
de comunicação, nos privados comerciais e nem
nos meios de comunicação comunitários. Temos
que repensar o tipo de comunicação que fazemos a
partir da liberdade e de fato sermos livres nas rádios
alternativas e comunitárias sem copiar modelos
hegemônicos que pregam a exclusão por conta
do gênero. Precisamos criar os nossos próprios
programas de esportes, não só do futebol feminino,
mas de outras modalidades esportivas, em que todas
as pessoas, independentemente do sexo, sejam os
protagonistas.
Miriam Meda é integrante da Red de Medios Comunitarios
(ReMC) / Universidad Complutense, Madrid, Espanha
“O rádio e a mídia de maneira geral são ferramentas para exercer os direitos
humanos (liberdade de expressão, direito à comunicação, etc.), mas às vezes,
este aspecto é esquecido por interesses políticos e econômicos principalmente.”
Influência do Estado
E os Estados? Jogam a favor ou
contra a democratização da
radiodifusão?
por Javiera Diaz
Quando se fala de democracia, de radiodifusão e meios de
comunicação e informação, frequentemente sinaliza-se como uma
necessidade de que sejam os próprios Estados os responsáveis
por promover e assegurar o acesso à informação e à liberdade
de comunicação, regulando a distribuição equitativa do espectro
radioeléctrico e ampliando a criação de oportunidades de
participação não-comercial e democrática da sociedade civil nestes
espaços.
Estas ideias são amparados por vários organismos e convenções
internacionais, especialmente para a radiodifusão na América
Latina (AL). São relevantes os direitos consagrados na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (CADH), a Declaração de
Princípios da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) e as numerosas declarações e opiniões expressas pela
Corte Interamericana dos Direitos Humanos.
Especificamente o artigo 13 da Convenção Americana, exige que
os Estados garantam o direito universal de todos à “liberdade de
procurar, receber e transmitir informações”, independentemente
de fronteiras e meios. Os Estados também não podem “restringir
o direito à expressão por vias ou meios indiretos” através, por
exemplo, da restrição abusiva das radiofrequências.
Neste sentido, o Tribunal foi claro em afirmar que o artigo envolve
dois aspectos fundamentais do direito à liberdade de expressão,
“não só o direito de expressar pensamentos e ideias, mas também
o direito e a liberdade de adquiri-los e recebe-los” insistindo, por
sua vez, no papel principal dos meios de comunicação social para
garantir o livre exercício desses direitos, o que significa que os
Estados devem assumir um papel ativo para garantir a existência
de uma pluralidade de mídia e evitar monopólios.
Por sua vez, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de
Expressão da CIDH observa que a alocação de rádios deve levar
em conta critérios democráticos e que os Estados não podem usar
o seu poder e os recursos para proteger os interesses políticos e
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econômicos setoriais que resultam no uso de critérios
discriminatórios, os quais devem ser expressamente
proibidos pela lei.
Mas então, serão as regras do jogo por parte
do Estado, que se diz democrático, realmente
respeitadas? Como se sabe, durante os anos
em que os países latino-americanos foram
governados por regimes autoritários e ditatoriais
de corte fascista-militar, Direitos Humanos e,
especificamente, o direito à liberdade de expressão,
foram sistematicamente violados pelos governos
que controlavam as informações em conluio
com a grande mídia, perseguindo e brutalmente
suprimindo mídias e rádios comunitárias que
operavam em condições extremamente precárias,
sem qualquer proteção legal e na clandestinidade.
No entanto, esperava-se que após o restabelecimento
das instituições democráticas e a participação
dos Estados nas convenções internacionais sobre
o assunto, finalmente as Nações assumissem a
responsabilidade inalienável de respeitar e assegurar
a liberdade de expressão e comunicação como
direitos fundamentais.
Porém, a verdade é que se olharmos para o Estado
atual, vemos que não houve muito avanço da
época da ditadura para cá quando se trata de
democratização da comunicação. Os oligopólios
continuam atuando no setor da mídia, assim como
há 50 anos atrás. Ao mesmo tempo, as leis atuais
sobre a radiodifusão geralmente distinguem entre
rádios públicas, comerciais e não-comerciais ou
comunitárias, o que acentua a desigualdade na
distribuição das ondas. Além disso, muitos países
não eliminaram a perseguição penal às rádios que
não possuem amparo legal, o que abre margem para
a repressão e processos de criminalização das rádios
comunitárias e populares.
Em suma, apesar do progresso e da alteração
de várias leis oriundas do período ditatorial,
a maioria dos países não assumiu o seu papel
na democratização da radiodifusão e nem tem
melhorado a comunicação social. De acordo com
vários estudos, ao longo de 40 anos as políticas dos
Estados em torno do sistema de comunicação social
e de rádio têm sido orientadas no paradigma de
“desenvolvimento” – enquadrado na lógica capitalista
e neoliberal, em vez de garantir os direitos dos povos.
Isto significa que existe o privilégio dos interesses dos
grandes empresários da comunicação em perseguir
as estações que não se enquadram dentro dos
padrões estabelecidos pela legislação, sendo esta mais
preocupada com aspectos técnico-burocráticos do
que com a democratização da palavra. Infelizmente,
a prioridade está mais ligada à regulação dos
watts para os grandes veículos de comunicação
do que na distribuição equitativa do espectro de
radiofrequências.
Quando os Estados e as leis que regem a radiodifusão
não promovem direitos nem protegem um direito
humano, mas cuidam dos interesses de certos
setores empresariais dos meios de comunicação,
estamos diante de um Estado que procura manter
a precariedade no âmbito da comunicação
comunitária.
Mas nem tudo é dito neste jogo, as rádios que
promovem mudanças sociais e a democratização
da comunicação possuem apoio, pelo menos
discursivamente, de regulamentos e convenções
internacionais sobre direitos humanos. Lutar
para o pleno exercício desses direitos é, na minha
opinião, o horizonte de ação de todos nós que ainda
acreditamos em uma verdadeira transformação
social.
Javiera Díaz é psicóloga e investigadora social, Alemanha/Chile
“É importante a geração de espaços alternativos e democráticos de
comunicação através da construção coletiva do pensamento e da ação crítica.”
Gênero 2: gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros
A homossexualidade na
comunicação
por Markus Plate
Os meios de comunicação são um pouco como times de futebol.
Me digam, por favor, um craque de futebol que tenha saído do
armário? Thomas Hitzelsperger o ex-jogador da Alemanha, certo.
Ele com o seu outing virou tema da imprensa mundial, coisa que
nunca conseguiu durante a sua carreira ativa. E agora, me digam
mais um famoso jornalista gay. Certo, Anderson Cooper, nosso
inimigo mais querido da CNN, com a sua fisionomia séria e
seus lábios sempre malandros. A comunidade gay estadunidense
sempre suspeitou dele como um possível candidato nas suas
redes sociais de fofoca, ainda que (ou sobretudo porque) o
Sr. Cooper goste de se apresentar bastante macho e bastante
neoliberal. Porém, o que nos dizem esses casos particulares sobre
a porcentagem dos gays no futebol e na mídia? Estatisticamente
falando, nada.
Talvez ajude compartilhar um pouco da experiência pessoal.
Eu venho da bacia do Ruhr, uma região com muitas indústrias,
também chamada da cozinha de ferro da Alemanha – e por esse
fato, é uma das regiões do futebol no país com clubes conhecidos
mundialmente: Borussia Dortmund, Schalke 04 e Vfl Bochum.
Lógico que eu também jogava futebol desde pequeno – em
comparação com os parceiros e adversários canhotos quase
brasileiro: eu fui hábil com a bola e mais rápido que os demais.
Achei gatos vários dos jogadores nos times adversários. Achei, já
que estamos aqui entre os homens, igual num seminário, na cadeia
ou grupos de choque, que deveria rolar algo. Mas, rapidamente
aprendi que o mais gay que um jogador de futebol tem a oferecer
é a sua homofobia. Durante muito tempo, as únicas exceções eram
grupos ou associações gays de esporte.
Vou pular de times locais e alternativos de futebol à mídia
local e alternativa – e mais uma suposição: Entre os jornalistas
a porcentagem de gays deveria ser ainda muito maior do que
no meio de outras profissões. Presença na mídia, uma grande
variedade temática, muitas viagens, muito estresse, uma grande
responsabilidade pessoal – um trabalho feito para o homem gay
ou a mulher lésbica. É um fato: na grande mídia eu conheço
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um monte de profissionais gays ou lésbicas.
Apresentadores, cinegrafistas, correspondentes
de jornais, fotógrafas. Ou seja, tem muito mais
Anderson Coopers nesse mundo que Thomas
Hitzlspergers.
Porém, como se vê esse mundo jornalístico ao nível
local? Eu temo que se pareça bastante com o meu
time de futebol na bacia do Ruhr. Nos últimos 15
anos eu conheci dúzias de rádios comunitárias na
Europa e na América Latina. Por alguma razão, a
maioria dos homens acham-me heterossexual. Por
isso os colegas masculinos me incomodam sempre
com a pergunta: o que eu acho de tal mulher? A
minha resposta preferida: “Talvez eu ache você
mais interessante…”, já perturbou profundamente
diferentes militantes que se acham sensíveis ao
tema do gênero. Simplesmente não conseguem se
comportar diferente a um moleque macho de um
clube de futebol local.
Sem dúvida, muitos neste meio são mais civilizados.
E sem dúvida, depois de sair do armário numa
rádio comunitária não são desacreditados como
“veado” em público. Muitas vezes até existe um
interesse honesto na minha pessoa e até mesmo
desenvolveram-se verdadeiras amizades. Pensando
nisso, tenho que defender um pouco os homens
heterossexuais das rádios comunitárias. Eles
simplesmente carecem de uma presença gay. Porque
participam jornalistas lésbicas em muitos projetos,
mas raramente militantes gays. E quando participam
somente apresentam o seu programinha de arco-íris
– e muitas vezes nem aspiram mais.
Mas os tempos mudam. Há tempos que nas
metrópoles da América Latina e da Europa uma
geração jovem da diversidade sexual lutou para sair
do gueto e chegar no público. E essa luta alcançou
até mesmo as rádios comunitárias. Radio Onda
em Berlim, nosso projeto de rádio dedicado aos
movimentos sociais na América Latina durante
muitos anos foi dominado por lésbicas e gays. E isso
sem que os noss@s companheir@s heterossexuais
tivessem sofrido grandes feridas mentais.
Sempre faziamos mais do que somente discutir
se Anderson Cooper será 360 graus gay ou não.
Também sabemos filosofar sobre música punk
ou juntar argumentos contra megaprojetos de
mineração. Até mesmo sabemos jogar futebol. Eu,
por exemplo, uma vez marquei um gol legendário
– que assegurou uma vitória de 3 a 2 do meu time
de punkeiros contra a rígida juventude socialista
heterossexual durante a copa anual dos adolescentes
na minha cidade natal. Foi a primeira vez em cinco
anos que nós, os punkeiros, não tínhamos perdido
um jogo.
Markus Plate é jornalista radiofônico na ONG Voces Nuestras,
Costa Rica.
“Tanto na mídia como no esporte, podemos ver um forte processo de
mercantilização e uma concentração de propriedade. Estas duas tendências
vão acompanhadas e requerem uma regulação tanto da comunicação como do
esporte.”
Regras antimonopólio
“Pensamento único” no rádio
brasileiro
por Bruno Marinoni
Vamos conversar e todas as nossas conversas a partir de agora
têm a seguinte regra: eu falo e vocês todos só ouvem. Podem até
tentar falar, mas ninguém vai ouvir, pois só eu tenho caixa de som,
microfone e autorização. Esse é, grosso modo, o modelo básico
do monopólio da fala sob o capitalismo: domina a cultura (poder
ideológico) quem tem a propriedade dos meios de produção de
comunicação (poder econômico) e a anuência do Estado (poder
político).
Visando minorar esse problema de assimetria de poder e restrição
à liberdade de expressão, a lei brasileira prevê uma medida
“antimonopolista” para o rádio, regulamentada pelo artigo 12
do Decreto-Lei 236 de 1967. Cada entidade fica limitada a deter
apenas 4 outorgas locais de ondas médias (OM) e 6 de frequência
modulada (FM), 3 outorgas regionais de OM e 3 de ondas tropicais
(OT) (sendo no máximo 2 por estado), além de 2 outorgas
nacionais de OM e 2 de ondas curtas (OC). Ou seja, o combate ao
monopólio no rádio se dá pela restrição ao número de concessões
e permissões outorgadas pelo Estado a cada ente.
A medida liberal e formalista da arcaica lei de radiodifusão é
(pra dizer o mínimo) insuficiente e é possível perceber isso pelo
“pensamento único” que domina o conteúdo do rádio brasileiro já
há um longo tempo. Se ligarmos o receptor neste exato momento
em qualquer estação, com grande probabilidade, encontraremos
basicamente dois tipos de programação: a comercial e o
proselitismo religioso cristão. Ou seja, a diversidade ideológica
e cultural brasileira não tem lugar nas ondas eletromagnéticas,
indicando um sintoma de que a liberdade de expressão não
encontra vazão para se realizar na restrita democracia do Brasil
para os destituídos de poder econômico.
Além disso, a concentração da propriedade e de poder
midiático é mais complexa do que o indicado pelo modelo
simplificado apresentado no primeiro parágrafo. Os empresários
de comunicação (poder econômico) articulam entre si redes
oligopólicas (grupos de monopólios nacionais, regionais e locais)
17
que ultrapassam o rádio, envolvendo outros veículos,
em um fenômeno conhecido como “propriedade
cruzada”. O grupo Globo, por exemplo, segundo
levantamento feito em 2008 pela pesquisa “Donos da
Mídia”, controlava direta e indiretamente 52 rádios
AM, 76 FMs, 11 de ondas curtas, 105 emissoras de
TV, 33 jornais, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras
de TV paga.
mas a lei 9.612 de 1998, que institui o “serviço
de radiodifusão comunitárias”, e a normatização
aplicada pelo Ministério das Comunicações e pela
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel),
mais dificultam do que facilitam a estruturação
desses setores. Ficamos assim privados de
experimentar e fortalecer novas linguagens, estilos e
conteúdos.
Outra estratégia para burlar a lei tem sido a de
controlar as concessões por meio de entrepostos
familiares e pessoas “de confiança” que assumem o
controle das emissoras como verdadeiros “laranjas”,
apenas nominalmente. A prática efetiva de controlar
algumas rádios não se encontra assim nas mãos
daqueles que são legalmente responsáveis por
elas, mas de empresários que já possuem outras
concessões ou de políticos interessados em não
publicizar tal vínculo.
Da mesma forma, a política aplicada para o
desenvolvimento das rádios públicas, educativas,
universitárias e sem-fins-lucrativos tem sido
inexpressivas no país, excetuada talvez pelo caso da
Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e casos
isolados.
As iniciativas das rádios comunitárias, livres e
alternativas poderiam oferecer um contraponto a
esse modelo marcado pela extrema homogeneidade
e pelo “jeitinho empresarial de lidar com as regras”,
O fato é que, se a legislação brasileira continuar
combatendo a concentração apenas pelo número
de veículos (coisa que, ainda assim, faz mal),
desconsiderando a representatividade dos diversos
setores da sociedade e os diversos interesses da
população, teremos para sempre o monopólio do
“mais do mesmo” no rádio.
Bruno Marinoni é Repórter do Observatório do Direito à
Comunicação e colabora no coletivo Intervozes, Brasil
“Existe uma série de entraves que precisam ser superados para que a
comunicação e o lazer sejam tratados como direitos e não reproduzam
mecanismos de dominação.”
Fiscalização
Por uma comunicação plural
por Karina Quintanilha
Quando falamos em fiscalização das rádios comunitárias no
Brasil aparecem três figuras centrais: a Anatel, o Ministério das
Comunicações e a Polícia Federal. Esses órgãos são responsáveis
por verificar se o funcionamento das rádios está de acordo com a
legislação nacional.
Na prática, como veremos a seguir, esses órgãos públicos revelam
um viés político ao proteger prioritariamente os interesses
comerciais. A demora injustificada nos processos de outorga das
rádios comunitárias, além de ações violentas e repressoras contra
os comunicadores, demonstram esse desequilíbrio. E, ainda, o
recente anúncio da Anatel sobre a intensificação da fiscalização
contra as rádios comunitárias no período da Copa do Mundo a fim
de garantir o “padrão Fifa” na transmissão dos jogos reforça o que
está por trás da aparente neutralidade dos agentes reguladores da
comunicação no país.
A maioria dos critérios que devem ser observados pelas rádios
comunitárias estão previstos na Lei nº 9.612/1998, regulamentada
pelo Decreto 2.615 de 1998. Anatel e Ministério das Comunicações
podem fechar uma rádio ou suspender/arquivar o processo de
outorga quando a rádio não respeitar os seguintes requisitos:
funcionamento limitado a um único canal em frequência
modulada (FM), potência máxima de 25 Watts, proibição de
publicidade comercial, documentação em dia e cobertura restrita a
um raio de 1 quilômetro (km) a partir da antena transmissora. Tais
limitações geram uma enorme desigualdade no acesso às rádio
frequências pelas comunidades.
Por outro lado, as emissoras comerciais brasileiras não possuem
qualquer limite prévio de potência, atingindo milhares de watts
e gozando de maior celeridade nos processos de outorga, se
tornando verdadeiras “donas da mídia” ao ocupar a imensa
maioria do espaço reservado para o rádio e televisão.
Ainda, dados revelam uma eficiência muito maior dos órgãos
públicos para impor sanções às rádios comunitárias do que às
19
comerciais. Em resposta ao pedido de informação
feito pela Artigo19, a Anatel revelou que em 2010
foram fechadas 940 rádios, 363 com mais de 25 Watts
de potência e 449 de potência reduzida. Em 2011,
o total de rádios fechadas foi 698, 284 operando
com mais de 25 Watts e 333 com potência inferior.
Importante mencionar que 54% de todas as ações
judiciais propostas após o fechamento das rádios
comunitárias são de natureza penal.
Mesmo as rádios comunitárias que possuem outorga
continuam sob ataque do Estado: de acordo com
balanço publicado referente a 2012, o Ministério das
Comunicações aplicou 741 sanções (advertência,
multa ou suspensão) para emissoras de rádio e TV:
dessas, a maioria (377 ou 50,8% do total de casos)
teve como alvo as rádios comunitárias. Recente
tabela divulgada pelo Ministério das Comunicações
mostra que apenas nos três primeiros meses de 2014
o total de sanções administrativas chegou a 340, sendo
193 (57,7%) aplicadas às rádios comunitárias.
Ainda há que destacar aqui o papel repressivo da
Polícia Federal no fechamento de rádios comunitárias.
Em vários casos relatados pelos diretores dessas rádios,
constatou-se que os agentes sequer apresentam um
mandado de busca e apreensão ou documentação
pertinente durante as operações e agem de forma
violenta, causando danos aos equipamentos.
Diante desse quadro de profunda ausência de
compromisso do Estado brasileiro na promoção da
liberdade de expressão das comunidades conforme
as diretrizes internacionais, necessário fortalecer a
apropriação desse direito pelas comunidades a fim de
que possam cobrar e exigir maior igualdade no acesso
aos meios de comunicação.
Karina Quintanilha trabalha na ONG Artigo19, Brasil.
“Diante da imensa desigualdade no acesso aos meios de comunicação no
Brasil que geram um verdadeiro monopólio do direito à liberdade de
expressão, as rádios comunitárias e livres representam instrumentos
fundamentais para dar voz às demandas políticas e expressões culturais das
comunidades, além de ser um meio importante para viabilizar maior
participação popular através do pluralismo e diversidade de fontes de
informação e de conteúdo.”
Acesso e participação de estrangeiros e migrantes
Que viva la cumbia!
por Nils Brock
“O rádio chega a ser o sol espiritual do país, um grande mago
e bruxo” escreveu Velimir Khlebnikov no ano 1921. No sonho
do futurista russo a comunicação é total e vira um “canto
supernatural” na nação toda. “O rádio do futuro” é um ensaio
bonito, um desejo honesto, uma visão inocente. E o panfleto
demonstra que a ambigüidade da mídia radiofônica já estava
presente bem ao início, como analisa o filósofo (e antigo integrante
da Rádio Alice), Bifo: “como uma luz de amor e saber, e uma voz
de um poder todo poderoso”.
O que eu acho perturbador neste horizonte futurista também,
é a ligação techno-mítica que nacionaliza o rádio. Cada estrela
nacional precisa de um firmamento estranho para brilhar. Este
outro ou esta outra, no melhor caso, simplesmente não faz (e
nunca fará) parte de um projeto nacional, na pior das hipóteses,
será perseguido em nome da nação mesma – e muitas vezes o
grande mago é cúmplice. Não precisamos voltar até a Alemanha
Nazista onde através de baratos receptores de rádio, subvencionado
pelo Estado (os famosos Volksempfänger), @s futur@s assassin@s
foram educados a odiar e matar milhões de judeus, judias, cigan@s
e outr@s não-arianos.
Em Ruanda, um pequeno país da África, há apenas 20 anos atrás,
a rádio RTLM foi usada sistematicamente para semear o ódio,
ao estimular uma diferença étnica criada na época colonial entre
os Hutu e os Tutsi. “Matem a todos os inimigos” instigavam @s
locutor@s Hutu, enquanto comentavam jogos de futebol ou
anunciavam a próxima canção. E a torcida se mobilizou. Em
menos de três meses foram assassinados mais de um milhão de
Tutsi e tod@s que não compartilhavam do sonho radical de uma
nação Hutu pura.
Confesso que esses são exemplos extremos da ambigüidade
radiofônica. Porém, a humanidade sempre foi capaz de voltar ao
nível da barbárie num piscar de olhos. Por isso, a importância
de sempre recordar com memória poética: “eu é um outro”. E
esses outros e outras devem estar presentes nos estúdios de rádio
21
constantemente, para evitar delírios nacionais e
perigosos sonhos de pureza. A mestiçagem e a
diversidade antecedem e transcendem as epopéias
nacionais que são, históricamente faladas, nada mais
que anomalias.
Bom, vamos aterrissar no Brasil (por fim!) e falar
do trato d@s outr@s aqui. Tanto a Declaração
Universal de Direitos Humanos da ONU (Artigo
19) como a Declaração de Princípios sobre a
Liberdade de Expressão da OEA (Art. 6) e o Pacto
San José (Art.13) visam assegurar o direito de cada
ser humano para fazer mídia. Isso não significa
apenas falar como convidad@ ou conduzir um
programa, mas também poder organizar, em nosso
caso, a sua própria rádio. Esse direito é universal.
Pode ser reclamado individualmente, mas também
reconstituído como um direito coletivo (ex. Direitos
dos Povos Indígenas, Artigo 16). Porém, as leis
brasileiras – e infelizmente também projetos de leis
que querem democratizar a comunicação – não
protegem esse direito. Bem ao contrário. Somente
“brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez
anos” podem organizar rádios neste país. É estranho
que este gesto nacionalista seja compartilhado
também por muitas pessoas da esquerda. Porque
o que importa não é a origem de um@ radialista e
sim a finalidade pela qual el@ quer transmitir no
ar. Os Marinhos são 100% brasileiros, certo? Pelo
outro lado, bem intencionadas convicções antiimperialistas não deveriam na prática discriminar
um@ migrante ou um@ refugiad@ que quer
organizar uma rádio no Brasil.
Mas as leis não são o único problema. Os conceitos
também não se casam. “Mídia cidadã” parece
uma ideia bonita, mas ignora por completo que
implicitamente exclua todos os não-cidadãos que
estão de passagem ou moram sem o reconhecimento
do Estado no Brasil. Um conceito territorial da
radiodifusão comunitária é igualmente limitador,
porque contempla como usuári@s de um estúdio de
rádio somente @s morador@s de domicílios fixos
numa certa localidade. Isso é uma lógica de gueto e
em plena contradição com a liberdade de expressão.
O uso comum do espectro eletromagnético precisa
ser pensado de outra forma.
Uma onda no ar não reconhece fronteiras nacionais.
Por isso me choca a ideia de restringir o seu
uso através de passaportes. É um pensamento
profundamente antidemocrático. Não se explica a
necessidade dessa restrição no geral e muito menos
na área da comunicação comunitária, que segundo
um estudo do Conselho Europeu é “um fator
importante na coesão social […], particularmente
para comunidades de minorias étnicas, refugiados
e migrantes”. Sinto falta desta sensibilidade aqui no
Brasil.
Fala-se muito das precárias condições de trabalho
dos migrantes no Brasil. Por exemplo, a mídia
informa a respeito d@s bolivian@s que trabalham
em condições análogas à escravidão nas fábricas
de roupa em São Paulo, se ‘esquecendo’ de dizer
que, na verdade, não precisariam trabalhar na
clandestinidade, já que como integrantes do
MERCOSUL, @s bolivian@s têm o direito de ganhar
o seu salário num emprego digno no Brasil. A lei @s
protege. Mas não será que mais migrantes hispanofalantes conheceriam esse direito se tivéssem a
oportunidade de organizar a sua própria rádio? Pois
é, por enquanto @s estrangeir@s não podem aspirar
tanta liberdade para difundir notícias ou tocar uma
música nas ondas do Brasil. Que viva la cumbia!
Nils Brock trabalha como cooperante internacional na AMARC
Brasil
“Uma onda no ar não reconhece fronteiras nacionais. Por isso me choca a
ideia de restringir o seu uso através de passaportes. É um pensamento
profundamente antidemocrático.”
Participação e inclusão da população
O direito de ouvir e fazer rádio
por Polyester Kat
O rádio no México, assim como outros setores de
telecomunicações, é monopolizado por dois grandes monstros
desta indústria, as empresas comerciais Televisa e TV Azteca.
Porém, existem também cerca de 2.000 rádios comunitárias
em todo o território, o que é um número aproximado, pois a
grande maioria dessas rádios seguem sendo ilegais e por isso não
aparecem no censo da mídia.
Esta condição não é facilmente revogável porque historicamente
a lei foi escrita para favorecer uma concentração predominante
de gestão desses serviços. Hoje em dia, cerca de cinco famílias
controlam grande parte da mídia em todo o país.
Ao longo dos últimos 10 anos, dezenas de rádios comunitárias
foram atacadas, invadidas, desmontadas e, no pior dos casos, seus
membros e fundadores foram ameaçados, detidos e tiveram que
enfrentar processos penais injustos. Os principais argumentos
usados para criminalizar as rádios comunitárias são conhecidos e
pouco sustentáveis. É dito que:
a) a presença de transmissões sem a permissão do espectro de
rádio pode interferir em frequências de aeroportos, sinais de banda
civil e de serviços de emergência;
b) ao oferecerem espaços publicitários a possíveis patrocinadores,
as rádios “piratas” e “ilegais” produzem uma concorrência desleal;
c) rádios comunitárias divulgam música com direitos autorais e
mensagens “subversivas” por meio de suas frequências.
Estas justificativas dificilmente resistem a uma análise que coloca
a prova essas acusações. A maioria das rádios comunitárias no
México funciona por meio de transmissores de sinal FM com uma
potência entre 15 e 300 Watts. A eficácia de irradiação depende
inteiramente de sua posição geográfica, da altura da antena e do
número de edifícios e “sombras” que estão em torno da localização
do transmissor. Por isso, as chances de uma transmissão deste tipo
interferir em uma frequência comercial, nas quais usam-se pelo
menos 60 ou 100.000 Watts de potência, são muito baixas.
23
Outro erro grave é confundir os termos “pirata”,
“ilegal” e “comunitária”. “Ilegal” significa
simplesmente não ter uma licença, que é a condição
da maioria das rádios livres e comunitárias. O
processo para obter tal autorização é basicamente
um filtro rígido e até desconhece a própria existência
das rádios comunitárias ao chamá-las rádio com
permissão (“radios permisionadas”). Ao abrigo
deste regime, as rádios comprometem-se a cumprir
condições especificas, como ter um local fixo (que
muitas vezes envolve o pagamento de aluguel), usar
um equipamento técnico e radiofônico com certos
padrões, realizar caros estudos de espectrometria e
irradiação para saber qual é o seu alcance de sinal e a
que população chega.
Adicionalmente, rádios com permissão devem
renunciar a possibilidade de autofinanciarem-se,
porque esta figura proíbe a comercialização de
espaço publicitário, e requer a transmissão gratuita
de propaganda estatal e eleitoral. Até hoje, no México
menos de 20 rádios alcançaram o estado de uma
permissão, a maioria delas é afiliada à Associação
Mundial de Rádios Comunitárias (AMARC).
Atualmente debate-se no México uma reforma
da Lei de Radiodifusão e Telecomunicações. A lei
geral foi aprovada em um processo acelerado e
provocou debates acalorados sobre a sua eficácia
no combate aos monopólios e a concentração da
mídia. Protestaram as rádios comunitárias, a mídia
livre, alternativa, estudantes, jornalistas, radialistas
independentes, bem como AMARC México e a
Associação Mexicana de Direito à Informação
(AMEDI). Estes últimos elaboraram também uma
proposta concreta para as leis secundárias, que
já foram aprovadas, e vão ser discutidas de novo.
Nessa proposta é sugerida a divisão do espectro
eletromagnético para serviços radiofônicos em três,
como já foi estabelecido em outros modelos legais
da América Latina: um terço para o uso da mídia
comercial, um terço para o uso do Estado e um terço
para o uso de rádios e outros meios de comunicação
“sociais” que incluam as frequências sociaiscomunitárias e indígenas definidos como “interesse
público, emprestado de organizações sociais sem fins
lucrativos e destinados a satisfazer as necessidades
de uma ou várias comunidades, definidas estas como
grupos de pessoas com uma certa afinidade.”
Esta proposta liderada por AMARC e AMEDI
contém, por escrito, termos-chave que não
devem ser excluídos desta reforma, como o pleno
reconhecimento da radiodifusão comunitária. No
entanto, é necessário que o Estado comprometa-se
a parar de perseguir essas rádios e a fomentar as
condições para que elas possam auto-sustentar-se.
Além disso, um ponto que ainda gera intensos
debates é a pergunta, se realmente é necessário que
todas as rádios devam obter uma autorização antes
de transmitir. Muitos atores consideram que deveria
ser possível fazer rádio comunitária sem pedir
permissão, porque a comunicação não é um crime.
Sob essa perspetiva o novo quadro legal não deveria
ratificar o Estado como regulador do espectro de
rádio, mas atribuir a ele a tarefa de proteger as rádios
e a mídia comunitária contra a criminalização, ou
seja, evitar possíveis processos criminais abertos
contra seus membros.
Aqui na Rádio Zapote, uma rádio livre na Escola
Nacional de Antropologia e História (ENAH) da
Cidade do México, consideramos a mídia livre como
um movimento de emancipação social e cultural do
qual fazemos parte. Nós existimos autonomamente,
são as leis que não nos reconhecem. Nós não somos
legais ou ilegais, somos livres!
Polyester Kat é radialista da Rádio Zapote, D.F., México
“Não queremos colocar mais camisas, cores e crenças que nos levam da fé e
unidade coletiva até a discriminação, a intolerância e a imposição de grandes
interesses econômicos acima do bem-estar das pessoas e do respeito pelos
direitos humanos.mantenha essas características com sua migração para
o digital.” pelos direitos humanos.mantenha essas características com sua
migração para o digital.”
O uso de verbas públicas
Verba pública na privada!
por Pedro Martins
A discussão sobre verbas públicas para o rádio nos coloca diante
de alguns dilemas políticos importantes sobre a forma de lidar com
recursos destinados à comunicação, especialmente no rádio no
Brasil. A discussão passa antes pelo entendimento de que qualquer
concessão radiofônica trata-se da cessão de um bem público,
que pertence ao povo brasileiro (ou até à humanidade, para
rompermos nossas fronteiras), para que alguma forma coletiva
possa se expressar ali.
Se começarmos por aí, já damos de cara com uma concentração
imensa de canais nas mãos do setor empresarial. Em contrapartida,
vemos pouquíssimas rádios públicas e somente uma faixa por
cidade destinada às rádios comunitárias, que devem ser todas
sem fins de lucro e com gestão coletiva e participativa. Esta
disparidade e a falta de políticas públicas vai se refletir também na
forma de se pensar a distribuição de verba pública para o setor de
comunicação.
Com este alto grau de privatização do espectro eletromagnético
não é de se espantar que grande parte das verbas públicas sejam
destinadas às mãos dos empresários. Um dado que denuncia a
visão de investimento é a distribuição da verba de publicidade
dos órgãos de administração direta do governo federal. Para se
ter uma ideia, no setor de televisão 75% das verbas de publicidade
foram destinadas aos dez maiores grupos empresariais. No rádio,
a situação não é diferente, com grandes emissoras como a Rádio
Jovem Pan, a Excelsior e a Rádio Globo abocanhando a maior
parte dos recursos.
Tal concentração revela que a publicidade do governo segue a
lógica comercial, a da compra de audiência. Em vez de se difundir
informação pelos meios mais diversos atingindo os mais variados
cantos e recantos do país no contato direto com a população, o
que importa é a compra de alguns minutos de grande audiência
para propagandear “grandes feitos”. Neste sentido, as rádios
comunitárias poderiam ser atores fundamentais pela proximidade
com que atuam diante de seus ouvintes, que são também
participantes da mesma.
25
A este cenário soma-se a falta de políticas públicas
que garantam sustentabilidade aos meios não
empresariais. A ausência de um fundo público com
controle social, que defina onde serão investidos os
recursos públicos de comunicação torna o ambiente
ainda mais antidemocrático. Regras diferenciadas
para captação de recurso, em que rádios
comunitárias são proibidas de arrecadar dinheiro
por meio de publicidade, permitem que empresários
vendam 30 segundos de espaço por alguns milhões
de reais, dificultam a sustentabilidade dos que não
têm fins lucrativos e os impõe, na prática, um “fim de
pobreza”.
Para se debater e entender esta questão das verbas
públicas no rádio e nos meios de comunicação, é
necessário, antes de mais nada, falarmos do sistema
político em que o problema está inserido. A forma
como se reparte a verba obedece necessariamente a
mesma lógica da concentração do espectro e a visão
capitalista de publicidade como “compra de olhares”.
Afinal, sabemos que os verdadeiros consumidores
dos meios de comunicação são seus anunciantes,
que compram nada mais nada menos, do que nossos
olhares (a audiência). Pois a partir deste número
de olhares, determina-se o preço de cada segundo
veiculado.
Ficam, assim, as iniciativas populares e públicas
cada vez mais sufocadas e difíceis de serem
implementadas, contando sempre com a boa vontade
daqueles que nelas se engajam, com total desamparo
das políticas públicas. Enquanto seguirmos esta
lógica e a comunicação for vista como negócio, o
cenário de uma sociedade democrática ficará cada
dia mais distante. E as verbas públicas seguirão o
mesmo caminho do espectro: a privada!
Pedro Martins é o Representante Nacional da Associação Mundial
de Rádios Comunitárias (AMARC Brasil)
“Tem uma série de entraves que precisam ser superados para que a
comunicação e o lazer sejam tratados como direitos e não reproduzam
mecanismos de dominação.”
Créditos
Ideia e concepção
Nils Brock e Stefanie Lipf
Layout
Nils Brock
Correções de estilo
Jaqueline Deister e Dilliany Justino
Ilustrações
Crocomila (pag. 7,9,17,19,23),
Newson (pag. 1, 5, 11, 13, 15, 21,25)
Os textos e ilustrações desta publicação foram escritos
durante a campanha “Rádio vs. Futebol. Quem vai
ganhar a copa antidemocrática?”. O site da campanha está
disponível para consulta pelo seguinte endereço:
http://radiofutebol.amarcbrasil.org/
Esta versão tanto como outras versões online são
publicadas pela AMARC Brasil sob a licença de creative
commons
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Tel/Fax: (21) 3559 0062
e-mail: [email protected]
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CC 2014
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http://amarcbrasil.org/