O dia em que Winnicott e Cheguevara se encontraram

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O dia em que Winnicott e Cheguevara se encontraram
SÉRGIO ANTÔNIO BELMONT
O DIA EM QUE WINNICOTT E CHE GUEVARA SE ENCONTRARAM: EM
BUSCA DE PONTES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA EXISTÊNCIA
INTERSUBJETIVA
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo
como par te dos requisitos para a obtenção
do título de Mestre em Psicologia.
São Paulo
2002
SÉRGIO ANTÔNIO BELMONT
O DIA EM QUE WINNICOTT E CHE GUEVARA SE
ENCONTRARAM: EM BUSCA DE PONTES PARA A
CONSTRUÇÃO DE UMA EXISTÊNCIA INTERSUBJETIVA
Dissertação apresentada ao Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em
Psicologia.
Área de Concentração:
Psicologia Clínica
Orientadora: Prof. a Dr.a Ivonise
Fernandes da Motta
São Paulo
2002
2
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Mariana, Marcelo e Guilherme,
que me ensinam a cada dia o que é viver junto.
Ao duro aprendizado de que às vezes é preciso quebrar
pontes para construir novas.
Ao amigo Júlio de Mello Filho, que estava comigo
quando me aproximei da obra de Winnicott
pela primeira vez.
3
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................4
ABSTRACT.............................................................................................5
I- INTRODUÇÃO...................................................................................6
1.1- O cenário e a gestação das idéias........................................6
1.2- Ciência x ficção?..................................................................13
II- OS PERSONAGENS E UM POUCO DE SUAS HISTÓRIAS
2.1- Aspectos da vida de Che..........................................................16
2.2 - Aspectos da vida de Winnicott............................................41
III- PONTES ENTRE DOIS MUNDOS E DOIS HOMENS
3.1- Intersubjetividade, psicanálise e visão de mundo................49
IV- O ENCONTRO..................................................................................63
V- ALGUMAS IDÉIAS A TÍTULO DE CONCLUSÃO....................107
VI- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO IV.........114
VII- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................116
VIII- REFERÊNCIAS FOTOGRÁFICAS..........................................119
RESUMO
Belmont, S.A.- O dia em que Winnicott e Che Guevara se
encontraram: Em busca de pontes para a construção de um viver
intersubjetivo. São Paulo, 2002, Dissertação (Mestre), Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. 199 p.
Winnicott e Che Guevara foram homens fiéis a seus princípios e
dispostos a lutar por eles. Suas visões de como esta luta deveria ser travada
parecem divergir, mas os objetivos que pretendiam alcançar possuem muitos
pontos em comum.
Guevara foi em vida e depois de sua morte um símbolo de liberdade e de
luta por um mundo melhor. Conhecido em toda parte, seu exemplo tem inspirado
milhões de jovens e é ainda símbolo da determinação de permanecer fiel a si
mesmo e, ao mesmo tempo, doar-se ao semelhante.
Winnicott, cuja obra é mais conhecida na esfera da Psicanálise,
representou em sua vida o papel de um inovador, que era ao mesmo tempo capaz
de mediação. Entre os pontos que discutiu ressalta o da constituição de um sujeito
verdadeiro, fiel a si mesmo e que, ao mesmo tempo, pudesse se inscrever no
registro ético da percepção do outro. Assim era uma de suas visões de mudança do
mundo. A importância que atribuiu à família e à democracia se articula nesta
tessitura que se inicia no sujeito real.
Neste trabalho pretendo comparar suas vidas e algumas de suas idéias a
partir de seus textos e os de alguns biógrafos, incluindo também um encontro
relatado em registro ficcional, onde os dois se colocam frente a frente.
4
Nesse diálogo os personagens e também os homens Winnicott e Guevara
poderão perguntar e tentar responder algumas questões sobre suas vidas, suas
famílias, suas expectativas e um pouco de seus sonhos.
Minha expectativa é de poder contribuir um pouco para a síntese e
atualização de duas vidas e dois projetos de existência que só fizeram ganhar
relevância nos tempos difíceis que a cultura e o mundo atravessam.
ABSTRACTS
Belmont, S.A.- The day Winnicott and Che Guevara met: Searching for
bridges to build an intersubjective existence. São Paulo, 2002, Dissertation (Master
degree), Psychology Institute of Universidade de São Paulo. 199 p.
Winnicott and Che Guevara were men faithfull to their principles and determined
to fight for them. Their visions about how this fight should be carried on are different,
but their purposes seem to have many aspects in common.
Guevara was a symbol of freedom and of desire for building a better world during
his life and also after his death. Known worldwide, his example has inspired millions of
young people and still is a symbol of keeping faithful to oneself and, at the same time,
being able to be generous to others.
Winnicott, whose work is better known in Psychoanalysis, played throughout his
life the role of an innovator and also acted as a mediator. Among the aspects he has
discussed , we can point out that of the building of a true self, faithful to himself and, at
the same time, capable of behaving within an ethical frame, which included the other.
This was one of his concepts of being able to change the world. The importance he
attributed to the family and democracy is intimately interwoven with these concepts,
which stem from the real subject.
In this paper I intend to compare their lives and some of their ideas, using some of
their texts as starting points. Data brought by their biographers will also be used, and I
also intend to include a meeting between them described in fictional language. Their
dialog will allow us to testify some of the questions they might have asked, had they
met, about their lives, families, hopes and also about some of their dreams.
My hope is to contribute in some measure to the synthezis and updating not only
of two lives, but also of their projects for building a better world.
Their examples have only grown in importance during these harsh times our
culture faces at the present moment.
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I-INTRODUÇÃO
1.1-
O cenário e a gestação das idéias
No mês de outubro de 1994 o psicanalista inglês Donald Winnicott, que havia
falecido em 1971, começou a operar importantes transformações em minha vida.
A partir de um trabalho apresentado no Encontro Latino-americano em Gramado,
o estudo de sua obra, que eu já vinha fazendo há cerca de oito anos em grupo de estudo
no Rio de Janeiro, inicia um processo de articulação teórica interna e de reflexão pósanalítica que me impressionou sobremaneira.
Algo semelhante parecia estar ocorrendo em amplos setores culturais, pois
diversos encontros, jornadas e congressos começaram a ser feitos sob a inspiração de
seu nome, sua vida e sua obra. Já em 1996 a USP realizava o encontro
D.W.WINNICOTT NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO – O Verdadeiro e o Falso
– A tradição independente na Psicanálise Contemporânea, patrocinado pelo Instituto de
Psicologia e organizado e presidido pela Prof.a Dr.a Ivonise Fernandes da Motta
Catafesta, com grande afluência de público. A este se seguiram outros na USP e em
outras Universidades, contando com um público cada vez maior, eclético e
extremamente motivado.
Winnicott parecia estar entrando também nas vidas de outras pessoas e de modo
análogo operando transformações.
Com relação a Che Guevara, transformado em símbolo de liberdade e justiça para
milhões de jovens em todo o mundo, um processo semelhante estava ocorrendo.
Reportagens, resenhas, o levantamento das condições de sua morte e o mistério
do desaparecimento de seu corpo começaram a aparecer na imprensa de modo intenso e
regular, quando se contavam 30 anos de seu falecimento. A chamada de capa da revista
Veja (9/7/97), além de sua clássica foto, proclama A RESSURREIÇÃO DE CHE
GUEVARA e no curso do artigo fala do TRIUNFO FINAL DE CHE. A mesma foto
feita por Korda durante um comício de protesto no dia 5 de março de 1960, antes
estampada principalmente nas camisetas e nas mentes de jovens contestadores e
idealistas de todas as partes do mundo, começa a aparecer mesmo em desfiles de moda
na Europa.
Algumas perguntas parecem inevitáveis no contexto deste florescer de um autor e
personagem histórico, de sua obra e de sua vida.
Esta exuberância post-mortem teria a ver apenas com sua própria estrutura e
vitalidade conceituais, com os exemplos que tiver deixado, ou estaria ligada também a
acontecimentos ocorrendo na realidade, levantando questões para as quais não se estaria
encontrando respostas?
O sujeito pós-moderno vem sofrendo um processo de desconstrução sistemática,
ainda em evolução, reflexo de um processo histórico mais abrangente e que veio
alterando profundamente noções e paradigmas do mundo material e das relações
humanas.
Entre a infinidade de temas possíveis, articuladores destas transformações ao
longo do tempo, escolhi trazer para esta reflexão inicialmente - no viés de aspectos
epistemológicos gerais - a formulação de alguns dos princípios que iriam constituir o
universo dos fenômenos quânticos pesquisados por Bohr (1963), especificando dentre
eles o conceito de complementaridade, não para uma discussão de física, mas porque
alterou de forma permanente a visão do modo pelo qual observador e fenômeno
observado se articulam, se influenciam e se completam. Mais ainda, este conceito
denota uma nova possibilidade de relação lógica entre duas descrições que separadas
eram mutuamente excludentes, mas que tomadas juntas – na moldura desta visão adquirem uma inteireza fenomênica.
6
Encontrei esta relação em trabalho de Sucharov (1994, pg. 187-188) no qual ele
lembra que Bohr 1 dizia que “onda e partícula são aspectos complementares da matéria.
A complementaridade reflete a qualidade de conhecimento que se obtém sempre que as
interações entre observador e observado são parte intrínseca do fenômeno.”
No mundo da microfísica, observador e observado formam um todo inseparável e
a linha divisória entre eles (que deve ser traçada em qualquer observação) é arbitrária.
Estes fatos impedem uma descrição objetiva da natureza e nos limitam a uma série de
manifestações complementares correspondendo a uma sequência de linhas divisórias
entre observador e observado.
Diz o autor: “As fundações do determinismo mecanicista foram abaladas e a
subjetividade, incerteza e contradição, assim como a necessidade de abandonar modos
causais de descrição, foram reconhecidas como aspectos essenciais da ciência.”
(Sucharov, idem, pg. 188)
Sucharov é um autor da escola americana contemporânea da intersubjetividade,
que é por mim considerada importante e trazida a este texto como uma herdeira
filosófica da radicalidade conceitual da psicanálise em Freud e em Winnicott, dentre
inúmeros outros autores psicanalíticos.
Seus articuladores principais, Atwood e Stolorow (1979) descrevem no seu
trabalho inicial esta nova forma de observação ligada ao universo dos fenômenos
quânticos, aplicados à observação psicanalítica dizendo:
Estas imagens são subjetivas e pré-teóricas em sua origem; mais do
que resultados de uma reflexão imparcial sobre fatos empíricos acessíveis a
todos, elas são ligadas com a realidade pessoal do teórico e precedem o seu
engajamento intelectual com o problema da natureza humana. (Atwood &
Stolorow, 1993, p. 5)
Com este ponto de vista, os autores inscreviam a observação dos fenômenos
afetivos emergindo no setting analítico em território além dos limites circunscritos pelo
conhecimento, articulando-os de maneira ainda mais radical ao universo emocional e
história pessoal do analista. Esta nova epistemologia, validava formas de entendimento
outras que não o conhecimento (knowledge), atribuindo valor, no trabalho de
elaboração e constituição da subjetividade dentro da relação analítica, aos fenômenos
alcançados através da compreensão (understanding). Esta última, vista como um
fenômeno eminentemente intersubjetivo. Podemos ver que a proposta de aceitação de
um campo intersubjetivo como o local onde os fenômenos e a dinâmica
transferência/contratransferência se passam - dentro desta epistemologia nascente
trazida pelo universo dos fenômenos quânticos - aproximava a psicanálise, antes
desqualificada exatamente pela subjetividade de sua observação, de campos tradicionais
de investigação científica. A ciência é que havia mudado, na visão anterior da
imparcialidade de seu mecanismo de observação. Os autores da intersubjetividade e, um
pouco antes deles D.W. Winnicott, parecem ter se apercebido da importância destas
mudanças.
Também é trazida – atendendo ao viés político ancorado em Che Guevara - por
sua visão de que a psicanálise não possa ou deva ser voltada para a compreensão do
sujeito humano, isolado, sozinho e sim articulando a sua presença e existência a uma
rede de relacionamentos que o acompanha durante toda a sua vida.
Com o conceito do mito da mente isolada individual (Storolow & Atwood, 1992),
especialmente no aspecto de alienação da vida social, podemos ver que:
A idéia da mente como uma entidade separada implica uma independência
do ser essencial da pessoa de engajamento com os outros. A imagem desta
1
Bohr, N.,Essays 1958-1962 on Atomic Physics and Human Knowledge, N.Y, 1963.
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entidade mental, localizada no meio da realidade e subsistindo ao lado de
outras mentes, reifica em primeiro lugar a noção amplamente divulgada de
solidão psicológica. É dito pelos que caíram sob o poder deste mito que cada
indivíduo conhece apenas a sua própria consciência e está deste modo para
sempre barrado de acesso direto às experiências pertencendo a outras
pessoas. Esta solidão ostensivamente ‘ontológica’ (Mijuscovic,1988), que
ignora o papel constitutivo da relação com o outro se a pessoa quiser ter
qualquer experiência que seja, atribui universalidade a um estado bastante
particular de estranhamento aprisionador dos outros. Este é um estado no
qual o sujeito não se sente conhecido ou compreendido ao nível de seus
afetos mais profundos; é, mais ainda, um no qual o desejo de uma conexão
sustentada com os outros sucumbiu à resignação e desesperança. Este
isolamento, tão profundamente enraizado em nossa cultura, fornece, em
nossa visão, o contexto intersubjetivo que torna a experiência de angústia
insuportável e necessita das negações de vulnerabilidade inerentes ao mito
da mente isolada individual. A dor associada à solidão alienada do homem
moderno é, em adição, diminuída dentro deste mito pela visão
tranqüilizadora do isolamento pessoal sendo construída dentro da condição
humana como o destino comum de toda a humanidade. (p. 8-9)
Em minha compreensão, as noções de complementaridade, de validação da
intuição na produção de conhecimento, da universalidade dos sonhos e dos mitos já
estavam esboçadas no corpo teórico da psicanálise desde os seus passos iniciais com
Freud, aproximando-o destas noções contemporâneas sobre a elaboração do
conhecimento e as relações intersubjetivas. Podemos ver em sua obra a ruptura
evolutiva com o paradigma moderno, por exemplo, no conceito de inconsciente
(1900), como demonstra Plastino (2001):
A descoberta do inconsciente constitui um elemento central da crise
da concepção epistemológica hegemônica do paradigma moderno.O próprio
processo de formulação da teoria psicanalítica fornece um exemplo precioso
da participação do inconsciente nos processos de apreensão do real e na
produção de conhecimento (....) É que, como afirma Loparic,2 o
conhecimento inconsciente constitui o verdadeiro filão epistemológico da
psicanálise. (p. 96 -97)
Esta abertura inicial de Freud continuou ao longo de sua obra podendo ser vista,
segundo o autor citado, (apud Plastino) nas questões de identificação primária com o
objeto através de um campo afetivo de comunicação direta. Estamos no terreno da
valorização da empatia como forma de apreensão da realidade do objeto, e,
surpreendentemente, vemos que Freud a colocava como modo importante de
comunicação “não (...) apenas no início da vida, mas desempenha sempre o papel
principal ‘na compreensão do ego alheio’.” (p. 98-99)
A expressão surpreendente que utilizei antes diz respeito mais uma vez à
capacidade antecipatória de Freud. Registre-se aqui que a empatia como modo de
percepção das necessidades do sujeito nascente, em relação intersubjetiva, é um dos
fundamentos essenciais da teorização tanto de Winnicott quanto dos autores da
intersubjetividade. A admissão de que estes processos acontecem ao longo de toda a
vida, mostra de forma contundente a visão de que a comunicação empática e a presença
do outro sejam aspectos essenciais da própria condição humana, extrapolando e
ampliando as questões ligadas à necessidade.
2
Loparic, Z.,Um olhar epistemológico sobre o inconsciente freudiano, in O inconsciente, várias
leituras, Escuta, São Paulo, 1991.
8
A evolução da teorização freudiana continua até os trabalhos posteriores à
chamada ‘virada dos anos vinte’, em particular com ‘O ego e o isso’ (1923), expressão
de seu rompimento efetivo com o paradigma moderno. Segundo Plastino (2001) “Ao
sinalizar a superação da metáfora maquínica, o foco se desloca, ultrapassando o
estudo do mecanismo atuante nas psiconeuroses, para visar os processos de constituição
do sujeito.” (p. 122)
A devolução do homem à natureza é conseguida, dentro dos novos princípios
trazidos naquele texto, em parte devido ao conceito de ‘O Isso’, expressão alemã que
tem um sentido de impessoalidade ou de ações que independem do sujeito conforme o
demonstrado por Hans (1996):
Quando introduz a segunda tópica, Freud emprega o pronome es de
forma substantivada, das Es... Esta substantivação é uma criação filosóficopsicanalítica estranha ao emprego coloquial e seu emprego no contexto
psicanalítico se presta bem a evocar a imagem de algo contido no sujeito,
mas que lhe é simultaneamente estranho. O pronome es pode ser usado (...)
em contextos
que remetem a indefinido e inominável (fenômenos
meteorológicos, estados que acometem o sujeito etc.). (p.261)
As duas outras instâncias postuladas no texto freudiano, são também entendidas
de maneira complexa, uma vez que o ego e o superego estão intimamente ligados em
sua estruturação e guardam porções inconscientes. Como a operação da realidade exerce
papel efetivo, seja na estruturação das duas instâncias, seja ao participar da tendência à
socialização do homem, esta conceituação de uma nova metapsicologia representando
um
entrecruzamento
dinâmico
entre
o
biológico/pulsional/pessoal
e
o
psicológico/social/interpessoal, demonstra efetivamente o citado rompimento com a
modernidade.
Os princípios teóricos que colocaram a psicanálise em uma ordem complexa
desde o seu início, continuaram a evoluir neste sentido com diversos autores pósfreudianos, dentre os quais escolhi Winnicott e sua concepção da importância
estruturante do meio ambiente na construção da subjetividade. Conceitos como os de
preocupação materna primária (Winnicott,1956) e do mundo dos fenômenos
transicionais e do paradoxo (idem,1951) enfatizam de modo contundente esta visão do
mundo onde a interdependência e complementaridade refletem - nos seus termos - as
relações sujeito/objeto em visão semelhante e contemporânea às já citadas idéias de
Bohr a respeito da interação entre observador e observado.
Winnicott falou um dia que ‘não existe tal coisa como um bebê’, querendo dizer
com isso que tanto a observação dele quanto a compreensão de seu desenvolvimento,
na saúde e na patologia, dependeriam de modo profundo e determinante das suas
relações com o meio ambiente e da ação ativa deste.
No aspecto político, ao trazer para debate os ideais e idéias de Che Guevara
tentando articula-los, de modo análogo a um universo complementar e de mútuas
influências, liguei-os a alguns dos lemas trazidos pela revolução francesa, especialmente
o da fraternidade. Este foi reforçado em alguns aspectos pela teorização que embasou a
revolução de 1917, fundamento importante das idéias que vão permitir a revolução
cubana e a atuação do médico argentino que dedicou sua vida à melhoria das condições
de vida de multidões.
A fraternidade é discutida no contexto deste trabalho em busca de pontes entre o
seu significado político/social e aquele trazido por Winnicott e outros autores quando
dão à percepção do outro (o objeto) e ao desenvolvimento da capacidade de percebe-lo
separado e ter por ele consideração (concern), um estatuto ontológico.
O desenvolvimento emocional e a capacidade de acesso ao que significaria o
humano em cada um de nós, estariam neste viés ligados à possibilidade da percepção do
9
outro como irmão, participante da mesma condição humana, estabelecendo as bases
emocionais para a fraternidade não imposta, mas fundada no próprio cerne do sujeito
humano.
Estes serão alguns dos fundamentos epistemológicos e históricos que escolhi
estudar como pressupostos ligados às mudanças e relações buscadas na moldura deste
trabalho.
Estes processos sofreram dramática transformação no pós-guerra, no campo
político com a polarização capitalismo x comunismo, que colocava em confronto muito
mais do que dois sistemas ideológicos, e no campo específico filosófico-existencial,
devido aos avanços científicos que culminaram com a explosão da bomba atômica e
levaram à adoção do conceito de obsolescência. Este último, aplicado a princípio à
produção industrial e aos objetos, logo foi sendo ampliado para o conjunto das relações
humanas e da cultura.
Entre as conseqüências advindas destes dois fatores podemos citar a percepção da
possibilidade de extermínio total da humanidade e, ligada a ela, a extensão e
aprofundamento da idéia de obsolescência, aqui a serviço da defesa contra a percepção
da morte e como justificativa para o apagamento dos laços e da responsabilidade em
relação ao outro.
Tendo a morte passado a ser sentida como iminente, inevitável e global embora ela sempre tenha sido, menos em relação ao último aspecto – tornou-se
necessário um afrouxamento dos laços afetivos, um encurtamento do tempo psicológico
e um esmaecimento dos contornos e da presença do outro nas vidas dos sujeitos como
defesa contra as angústias geradas pelas novas circunstâncias. Acentuou também a
necessidade, decorrente do encurtamento do tempo psicológico, de que a juventude
passasse a ser vivida de modo intenso e radical, deixando de ser um período de transição
e de espera de um futuro e de realizações posteriores para se tornar um período de ação.
Esta parece ser uma das marcas que criaram um diferencial sócio-psicológico entre os
sujeitos destas décadas e os das anteriores.
O adolescente e o jovem entraram em cena, passando a influir em questões de
natureza cultural e política. Começaram a reivindicar liberdade sexual, recusaram-se a
participar de algumas guerras e entraram em luta aberta contra ‘o sistema’, em defesa
de seus direitos. O que nas gerações anteriores representava uma luta individual, travada
no seio da família e restrita ao indivíduo em sua luta por emancipação e superação da
conflitiva edípica, adquiriu estatuto e amplitude sociológicos.
A fidelidade radical a si mesmo, traço característico da produção cultural desta
época, foi um aspecto marcante do pensamento de Winnicott e da vida e da práxis de
Guevara. Este poderia ser considerado como um dos protagonistas do que poderia ser
chamado de uma visão homérica da existência, caracterizada pelo desejo de mudança,
pelo enfrentamento real de grandes dificuldades e por uma necessidade de movimento,
que se articularia ao longo do tempo com o que foi posteriormente chamado de ‘road
culture’. Guevara, na fase inicial de sua vida, poderia ser pensado como um hippie por
antecipação.
Quanto a Winnicott, sua insistência em que o indivíduo se constituísse o mais
possível de modo fiel ao sujeito original, espinha dorsal de sua existência, permitiu que
ele, baseado em sua longa experiência clínica, refletisse sobre as transformações sociais
em andamento naquela ocasião, e suas repercussões sobre a adolescência. (Winnicott,
1961) Em seqüência, alargou suas reflexões a respeito da verdade do sujeito,
ampliando-as para além de uma fase da vida e concebendo-a como uma construção a ser
efetuada ao longo de sua existência. Em sua análise desta dinâmica chegou à
formulação de conceitos como o de verdadeiro self e falso self (Winnicott, 1964), com
os quais analisa a importância da verdade para uma existência íntegra.
10
Na discussão destes aspectos
ele utiliza uma citação de Shakespeare, que
reencontrei em trabalho recente de Outeiral (apud, 2001):
Que esteja acima de tudo:
para que tu próprio sejas verdadeiro,
Deve-se seguir, como a noite ao dia,
Que tu não possas ser falso a nenhum homem.
Nela, além do aspecto específico da verdade, observa-se o imperativo e a
amplitude que a acompanham. Ademais, detalho o caráter de naturalidade que parece
sugerir o verso ‘deve-se seguir, como a noite ao dia’. Não é preciso apenas que se
busque a verdade, é preciso que ela seja exercida dia e noite.
Poetas, artistas, revolucionários, tinham sido os porta-vozes desta fidelidade
essencial a si mesmo, ao longo do tempo. No momento histórico para o qual dirijo meu
olhar, esta noção de fidelidade e de expressão da verdade foi ampliada a um espectro
maior da sociedade, corporificado nos movimentos contra-culturais adolescentes. Além
de uma forma de cotidianidade, em oposição a excepcionalidade anterior, começou a ser
trazido um sentido que daria às ações, em uma raiz aristotélica e em conotação
etimológica, um significado ético. Fiz esta ilação a partir de idéias do mesmo artigo de
Outeiral (2001), no qual cita Herrmann (1995, 2000) 3 ao perguntar:
Que significa ética? No começo do livro II da ‘Ética a Nicômano’,
Aristóteles ensina: “A virtude moral é adquirida em virtude do hábito,
donde ter se formado o seu nome (étiké) por uma pequena modificação da
palavra étos (hábito). Ético é pensar.” (p.29)
Na analogia buscada neste texto, parece ter ocorrido no período em discussão uma
mudança do que era um hábito determinado pelos adultos, ou seja, que a adolescência
fosse um período de espera, e que as lutas, caso existissem, ficassem circunscritas à
esfera interior. Como já foi dito, no novo cenário de aceleração existencial e cultural,
parece que tenha passado a vigorar a noção de que ético fosse agir.
Movidos por este novo sentimento e possibilidades, alguns jovens, como Guevara
e Fidel, segundo Retamar (1987)
..chegaram ao poder em plena juventude: o próprio Fidel Castro tinha
pouco mais de trinta anos em 1959. Iria ser dado a esses homens contemplar
um espetáculo raro: ao invés de viver uma evolução intelectual interior, de
que se sabe muito pouco, ao chegarem à atuação histórica, estes jovens iriam
evoluir perante os olhos do mundo. Acabariam por se formar com suas raízes
à mostra.
(XII)
Embora possamos dizer que os contornos do sujeito humano não sejam de fácil
explicitação, diante das mudanças trazidas pela cultura e mesmo causadas pelas alia,
(Morin,1990) este sujeito que não se define, paradoxalmente, sempre necessitou para si
mesmo de um chão de certezas que lhe trouxesse um sentido de estabilidade.
Segundo Levisky (1995):
O homem sempre buscou inspiração nos deuses e mestres para encontrar
seus próprios caminhos. A psicologia nos tem ajudado a perceber que desde muito
cedo necessitamos do outro para definir nossa própria existência e identidade. (p.
54)
De acordo com esta idéia, este conjunto de certezas, baseado em parte na
aquiescência do indivíduo com a tradição, criou ao longo do tempo uma tensão
3
Herrmann, F. Psicanalítica. In: IDE. SBPSP. Casa do Psicólogo. 1995, n. 27, p. 10-19.
11
essencial entre a sua constituição como sujeito original e a citada tradição, atravessando
o seu cotidiano.
A erosão ocorrida neste chão nos terrenos filosófico, científico, sócio-político e
psicológico provocou o que poderia ser chamado de um acréscimo de angústia
ontológica, na medida em que somava às dificuldades psicológicas reconhecidas de
equilibrar tradição e ruptura na constituição da subjetividade, uma nova qualidade de
angústia, dentro de um novo cenário de aceleração existencial.
Como conciliar o hábito (étos), com a ruptura, trazendo um sentido novo ao laço
com o outro, em novo etos ou em uma meta-ética?
Com relação a este aspecto, tanto Che Guevara quanto Winnicott representam
ícones do que talvez possa ser pensado como síntese de um novo de ser, entre tradição e
ruptura.
Winnicott, nascido em 1896 em tradicional família inglesa, rompeu com a praxe
ao decidir estudar medicina e não administração para cuidar dos negócios da família.
Na psicanálise, ao mesmo tempo em que seguia a tradição, fazendo rigorosa
formação psicanalítica e não abandonando postulados essenciais da teoria freudiana, os
seguiu em uma leitura pessoal. Tornou-se um dos grandes inovadores pós-freudianos da
técnica e teoria, ao mesmo tempo em que se tornava o homem do diálogo, constituindo
o que foi chamado de middle group na Sociedade Britânica de Psicanálise. Ao longo de
sua prática, talvez tenha sido o primeiro psicanalista a abrir os seus conhecimentos e
leva-los ao publico geral, não especializado. Durante anos manteve palestras
radiofônicas e fazia conferências para profissionais de outras áreas, donas de casa.
Abriu a psicanálise a amplos seguimentos da sociedade em um período no qual ela
estava trancada dentro de uma torre inatingível, onde permaneceu durante muitos anos.
Trabalhou durante a segunda guerra mundial como responsável pela recolocação
das crianças e adolescentes no interior da Inglaterra. Os seus trabalhos desta época
mostram a abertura de sua visão psicanalítica às questões de cunho social.
Che Guevara, nascido de tradicionais famílias argentinas, trazia no cerne de sua
personalidade a tensão entre revolução e tradição.
A visão da atitude de respeito com os pobres, mostrada por seus pais desde a
época em que tinham plantações de erva-mate e romperam com o hábito de manter os
empregados praticamente em regime de escravidão, pagando-lhes salários, pode ter sido
um dos alicerces de seu espírito de solidariedade e de justiça e de sua atividade
revolucionária posterior. Filho de latifundiários, resolveu lutar pelos direitos dos
miseráveis, apesar de ter vivido sua infância e adolescência em família que durante
vários anos se sustentou com rendas provenientes de aluguel de terras.
Mais adiante em sua vida, já Ministro de Estado do governo cubano, rompeu uma
vez mais com o protocolo, decidindo abandonar todas as suas atividades e partir rumo à
clandestinidade e a luta armada.
Nas vidas de ambos os personagens, vamos encontrar esta síntese entre a tradição
- no sentido de terem se estruturado e crescido em ambientes tradicionais e com
recursos familiares herdados - e mudança, ao se proporem a transformar o cenário do
mundo em que viveriam e trabalhariam.
Neste ponto poderíamos perguntar: quais seriam os afetos despertados pelas
mudanças anteriormente descritas, ocorrendo nos campos científico, polí tico e cultural e
que habitariam este sujeito sofrendo cada vez mais dificuldades em sua definição,
perdido de si mesmo e do outro, dentro de um espaço em vertiginosa modificação e
sujeito à possibilidade coletiva de extinção?
Eu ressaltaria dois no conjunto em discussão. A angústia e a incerteza, que
embora tendo sido constituintes permanentes da condição humana eram constantemente
negados, sendo reativamente trocados pela elação e pela presunção do conhecimento e
controles lógicos da realidade.
12
A angústia adquiriu nova expressão ou roupagem, ultrapassando as questões
individuais e pulsionais para alcançar nova intensidade e extensão. Esta situação
necessitaria de uma outra teoria da angústia para sua compreensão, além dos princípios
formulados por Freud em 1926,4 e encontrados em Plastino (2001, p.139)
No novo cenário as incertezas próprias da condição humana tornaram-se mais
agudas e as novas situações paradoxais criadas, reclamaram uma nova razão dialógica
para a sua compreensão. No campo existencial as mudanças exigiam enfrentamento e
ação.
A importância de dois pensadores que, como Winnicott e Che Guevara,
ressaltam e priorizam a importância e interdependência sujeito-objeto, - o primeiro
conceituando um universo psicológico de intersubjetividade e o último uma existência e
uma política de compromisso intersubjetivo - me parecem muito próximos na busca de
um novo sentido ético na moldura de suas formulações, cada um em seu enfoque. Suas
idéias parecem de fundamental importância para o resgate de ideais absolutamente
necessários em um mundo contemporâneo transformado em um deserto de fraternidade
e de solidariedade.
Neste universo árido vaga o sujeito pós-moderno, perdido de si mesmo e do
olhar do outro e para o outro que compartilha a mesma condição e destino humanos.
Talvez a exegese de algumas de suas idéias, objetivo desta dissertação, sirva de
inicio do encontro de algumas propostas de atuação.
1.2- Ciência x ficção?
Na concepção deste trabalho, introduzi um capítulo que descreve um encontro
que teria ocorrido entre Winnicott e Che Guevara.
Uma questão aparecia desde o instante em que tive esta idéia, para mim muito
importante, de colocar face a face, cotejando suas idéias e ideais e suas respectivas
vidas, dois homens que na vida real nunca haviam se visto. Como dar ao texto uma
adequada roupagem metodológica? Afinal, estaria colocando lado a lado produções
teóricas historicamente comprovadas e uma conversa de natureza ficcional.
Existiria um antagonismo essencial entre teoria e ficção?
Buscando respostas para estas questões encontrei em Bowie (1987) que
Freud, na parte final da Interpretação dos Sonhos havia empregado o
termo ficção teórica (p.603- ‘theoretisch Fiktion’) para descrever um estado
de coisas no qual uma determinada teoria e suas idéias parecem necessitar
de comprovações para as quais ainda não exista evidência que as
suporte.(...) E que tal entidade (ficção teórica) seria um triste anfíbio, com
poucas chances de sobrevivência entre as categorias epistemológicas, mas
seus vizinhos de aspecto mais forte - teorias mesmo - eram constantemente
ameaçados elas mesmas por invasores predatórios entrando na ciência
vindos dos mundos dos contos de fada e do romance. (p.6)
O autor continua mais à frente no mesmo texto dizendo:
Eu também tentei sugerir porque é que o papel combinado de
teórico e de ficcionalista, do modo como foi feito por Proust, Freud e
Lacan pode ser pensado como possuindo uma natureza excitante e
desconcertante e porque o intermundium entre teoria e ficção ainda oferece
uma área crucial de estudo tanto para o cientista quanto para o ‘cientista
humano’. (Entretanto eu não sugiro que estes três escritores formem um
clube de entrecruzamento cultural exclusivo – como poderia eu, quando
4
Freud, S., Inhibición, síntoma y angustia, Obras Completas, ed. cit., vol. XX, p.105.
13
Platão, Montaigne, Goethe, Kierkegaard, Musil e Sartre entre muitos
outros – e para especificar apenas a tradição européia – desempenham
requisitos combinados de modo tão instrutivo?.....Harold Bloom termina
seu ensaio ‘Freud e o Sublime’ a respeito de uma comparação global de
Freud com Proust dizendo:
Freud tem mais em comum com Proust e Montaigne do que com
cientistas da biologia, porque suas interpretações da vida e da morte são
mediadas sempre por textos, a princípio textos literários de outros, e logo
em seguida por seus próprios textos anteriores até que, finalmente, a
Sublime mediação da alteridade começa a ser desempenhada por seu texto
em processo. Nos Ensaios de Montaigne ou na vasta novela de Proust, esta
mediação constante é mais clara do que na quase perpétua auto-revisão de
Freud porque Freud não escreveu nenhum texto definitivo e singular; mas
o canhão dos textos de Freud mostra um crescente sentimento de
desconforto de que ele tenha se tornado seu próprio precursor, e de que ele
tenha começado a se defender de si mesmo através de chegadas
deliberadamente audaciosas a posições finais. (Bowie, idem, p. 8-9)
Espero que fique claro que a citação deste texto de Bowie, ao discutir em
profundidade a criação literária de Freud, Proust e Lacan, procura a partir da análise de
seus textos feita pelo autor, validação para a proximidade entre teoria e ficção
encontrada neste.
Para trazer outro exemplo de tal iniciativa mais próximo de nós, citaria também
a tese de Livre Docência da Prof. Dra. Lígia Assumpção Amaral apresentada à USP em
1998, especialmente no 1° ATO –Cena 1- A NARRADORA SE APRESENTA
(QUASE UM SOLILÓQUIO) e seguintes:
Estou aqui para contar uma história que se faz pelo entrelaçamento quase
mágico (ou será mágico) de duas histórias: a de Anita Malfatti e a de Frida
Khalo.
Na verdade tudo o que se segue deveria estar fazendo parte de um
tradicional relatório pesquisa, feita e divulgada (melhor o termo
“compartilhada”!) dentro dos moldes acadêmicos. Seria o relato de um
estudo sobre a forma de presença /expressão da deficiência física, de cada
uma das protagonistas, em seu fazer artístico. Mas a autora desejou ousar
transgredir (autora que, confidencio a vocês, sou eu mesma – assim, e pela
confidência, passo daqui para a frente a usar a primeira pessoa). Falei em
transgressão – será essa a palavra? Se não for, há de ser uma bem parecida!
Das idéias expressas na citação e no texto mais adiante, compartilho o desejo de
trazer para o meu o que das teorias de Winnicott e das idéias e do fazer revolucionário
de Che Guevara ficou como sedimento e alicerce de meu próprio fazer humano e
trabalho psicanalítico.
Falarei do que de ambos os autores tenha ficado registrado, documentado e que
discutiram separadamente em suas obras e suas vidas, buscando o que poderia ser
chamado de sua psicobiografia.
Acredito que esta forma de discussão de texto seja assemelhada em alguns
aspectos à defendida por Atwood e Stolorow (1979, p.27-28) ao definirem o método de
estudo de caso segundo a sua visão. Ali eles falam:
A análise destes capítulos é psicobiográfica em sua abordagem e ilustra
um método conhecido como análise de caso intensa e em profundidade
(Murray, 1938, White, 1952, 1963). Este método tem uma longa e distinta
história, sendo a principal abordagem seguida por vários analistas teóricos.
14
Três características gerais distinguem este método de outras orientações
metodológicas. Primeiro, ela é inerentemente personalista e fenomenológica.
Ela pressupõe que os temas
em investigação na pesquisa sobre a
personalidade só podem ser entendidos completamente se forem vistos no
contexto do mundo pessoal do sujeito. Em segundo lugar, é histórico; o
mundo pessoal é reconhecido como um fenômeno histórico-existencial, de
modo que os itens em pesquisa são colocados na dimensão temporal do
desenvolvimento pessoal. A terceira característica desta forma de abordagem
é que ela é clínica e interpretativa (mais do que experimental ou dedutiva).
Ela avança na compreensão dos indivíduos não ao testar
hipóteses
delimitadas às quais se tenha chegado a partir de uma base independente, mas
através de um processo de interrogação e construção que nasce do material
disponível. Repetidamente são levantadas questões interpretativas a respeito
de qual seja o contexto experiencial e vital-histórico dentro do qual as
variadas regiões do comportamento do sujeito adquirem sentido.
Utilizando estas premissas acima, colocarei a discussão sobre nossos personagens o
mais possível dentro da trama de suas vidas, tanto no aspecto pessoal quanto no
histórico, tentando chegar a um retrato dos dois que apareça a partir da soma de
compreensão com interpretação contextualizada.
Somarei a esta análise a discussão entre os dois personagens no espaço livre da
criação, conforme foi definido antes neste capítulo, localizando-o no intermundium
entre teoria e ficção (Bowie,1987, p.6-7).
Talvez esta complementação de abordagens analíticas possa trazer alguma
contribuição para o diálogo interdisciplinar tão caro a ambos os autores, que além disso
foram protagonistas de vidas ricas e multifacetadas.
Afinal, Che Guevara, ainda um jovem adolescente e esportista ferrenho e
excelente, “já lia Freud e Jung, apreciava a poesia de Baudelaire, e já tinha lido Dumas,
Verlaine e Mallarmé em ‘sua língua original’, assim como a maioria dos livros de Émile
Zola, clássicos argentinos como o épico Facundo, de Sarmiento, e a mais recente
literatura americana de William Faulkner e John Steinbeck.” (Anderson, 1997, p.28).
Mais tarde, já adulto e Ministro da Indústria do Governo Cubano “era um
visionário que colocava o futuro no lugar. Tinha planos para as formas de energia do
amanhã. Estudava muito para aprender sobre automação e física nuclear” (Saenz, in
Loviny, 1997).
Por outro lado, D.W. Winnicott (Khar, 1997)
Teve uma infância rica, cheia de diversão e companheirismo. Ele
não somente escreveu poemas e participou de teatro amador, como ainda se
destacou cantando e tocando piano, além de se envolver com empenho em
diversas atividades esportivas, de forma especial a natação e a corrida (Clare
Winnicott, 1978)... Pode ser interessante conhecer um pouco mais os
trabalhos apresentados na Sociedade de Literatura e Debates em 1910, não
somente para que tenhamos mais informações sobre as discussões que o
impressionável Winnicott, então adolescente, pode ter ouvido na Sala dos
Reitores, mas para que façamos uma idéia das preocupações e interesses de
um estudante inglês na era eduardiana. Entre outros, estão: “A Inglaterra
degenerou-se?”, “Uma pincelada de astrologia”, “A Índia sob domínio
hindu”, “Vale a pena viver a vida?” e a “Justiça ou injustiça da execução de
CharlesI e Mary, rainha da Escócia.” Em 10 de outubro de 1910, Max
Crutchley Ede, irmão mais velho de Harold Stanley Ede, o amigo de
Winnicott, foi muito elogiado ao falar de improviso sobre a ‘Revolução em
Portugal’.
15
Outras atividades do primeiro semestre escolar de Winnicott teriam
se constituído de vários eventos esportivos, como corrida de ciclismo (...)
além de partidas de futebol. (p.20-21)
Podemos observar nestas breves citações iniciais algumas coincidências
atravessando as vidas de ambos os personagens durante o período inicial formativo de
suas vidas. Espero que a leitura mais detalhada de suas histórias e de seus
desenvolvimentos nos capítulos seguintes possa encontrar as pontes que buscamos com
um dos objetivos deste trabalho.
CAPÍTULO II- OS PERSONAGENS E UM POUCO DE SUAS HISTÓRIAS
2.1 - Aspectos da vida de Che Guevara
O título deste capítulo procura dar uma idéia das intenções deste trabalho, na
medida em que observa que diante da vastidão da biografia escrita de Che Guevara seja
imperiosa uma leitura seletiva. Este fato, que a princípio poderia se configurar como
uma limitação, ao excluir diversos aspectos relevantes de sua vida, mostra-se como
exata expressão da possibilidade de criação, na medida em que cada autor pode fazer
uma leitura pessoal dos dados disponíveis. Este é um dos aspectos fundamentais
trazidos pela epistemologia que reconhece e valida a influência decisiva do olhar e do
desejo do observador sobre o fenômeno observado e é uma das vigas mestras da escola
da intersubjetividade. Stolorow e Atwood, no trabalho seminal (1979), citado em
capítulo anterior, propõem as noções essenciais de seu pensamento, citam na epígrafe de
Henry A.Murray escolhida:
...o homem- objeto de nosso interesse- é como uma nuvem sempre
em mutação, e os psicólogos são como pessoas vendo rostos nela. Um
percebe ao longo da margem superior os contornos de um nariz e de um
lábio, e então, miraculosamente, outras partes da nuvem se tornam tão
orientadas por estes que o desenho inicial de um super-homem aparece.
Outro psicólogo é atraído por um segmento inferior e vê uma orelha, um
nariz ou um queixo, mudando completamente a imagem. Assim, para cada
observador cada setor da nuvem tem uma diferente função, nome e valorfixados pelas limitações iniciais de sua percepção. Para se tornar o fundador
de uma escola na verdade é preciso apenas ver uma face ao longo de uma
outra margem.
Na leitura proposta neste capítulo, a visão seletiva diz respeito à busca dos fatos e
situações que evidenciem fundações emocionais e afetivas na vida de Guevara. Às
vezes, pequenos gestos do cotidiano que apesar de terem sido marcados se perdem
diante do grito de outros registros históricos, tem valor fundante do ponto de vista da
subjetividade. Alguns sussurros, ou sua falta, podem marcar definitivamente uma
existência, determinando possibilidades e impossibilidades. São pequenos pedaços da
nuvem que constitui o nosso personagem e, ao mesmo tempo, o esconde.
No dia 14 de junho de 1928 foi anunciado o nascimento de Ernesto Guevara, filho
primogênito de Ernesto Guevara Lynch e de Célia de la Serna y Llosa. Em suas veias
corria uma explosiva mistura de sangue irlandês, espanhol e basco. Sua mãe era uma
das herdeiras de uma família de proprietários de terras aparentados com a nobreza
espanhola, pois um de seus ancestrais, o general José de la Serna e Hinojosa havia sido
o último Vice-Rei espanhol do Peru colonial. O pai de Célia, Juan Martín, militou como
um dos fundadores da Union Cívica Radical, berço dos grandes proprietários de terra e
que se tornaria depois o primeiro partido de massas argentino.
16
Pelo lado paterno, duas linhagens hereditárias reuniam mais de dez gerações na
Argentina, aglutinando exploradores e nobres. Os Guevara chegaram ao rio da Prata na
metade do século XVII e emigraram em direção à Califórnia em 1850 para fazerem
fortuna durante a corrida do ouro. Por isso, Roberto, avô de Che, era de nacionalidade
americana.
Uma das peculiaridades da vida da mãe de Che foi ter ficado órfã muito pequena,
tendo sido criada por sua irmã mais velha Carmen, que muitos anos mais tarde,
justamente em 1928, ano do nascimento de Che, se casaria com o intelectual comunista
Cayteano Córdova Iturburu.
Apesar de sua conduta inovadora e progressista, que a havia levado a ser “uma
das primeiras mulheres a causar escândalo em Buenos Aires ao cortar o seu cabelo
curto, dirigir automóvel, assinar seus próprios cheques e ‘cruzar as pernas em público’,
segundo havia contado uma de suas primas.” (Loviny, 1997, p.2), ela havia alterado a
data verdadeira do nascimento de Che.
Segundo Anderson (1997)
O horóscopo causava confusão. Se o famoso guerrilheiro e
revolucionário tivesse nascido no dia 14 de junho, como constava de sua
certidão de nascimento, então ele seria de Gêmeos, e um sem brilho e
enfadonho. A astróloga, uma amiga da mãe de Che, refez seus cálculos para
encontrar um erro, mas os resultados que achou eram os mesmos. O Che
que emergia do horóscopo era uma personalidade dependente e cinzenta,
que havia vivido uma vida sem peripécias. Havia apenas duas
possibilidades: Ou ela estava certa a respeito de Che ou não valia nada como
astróloga. Quando lhe mostraram o horóscopo encobridor, a mãe de Che riu
muito e confidenciou um segredo que havia guardado por mais de três
décadas. Seu famoso filho havia nascido na realidade um mês antes, no dia
14 de maio. Ele não era de Gêmeos e sim um cabeça- dura e decidido
taurino. A mentira havia sido necessária, porque ela estava grávida de 3
meses quando se casou. Mudaram-se em seguida para a região selvagem das
Missões. Perto do parto mudaram outra vez para Rosário, onde Che nasceu.
Um médico amigo falsificou a certidão de nascimento, mudando a data para
um mês depois, para protege-los do escândalo que fatalmente ocorreria.
(p.1)
Os pais de Guevara avisaram as respectivas famílias do nascimento de Che um
mês depois do parto, dizendo que ele havia nascido prematuro de sete meses.
Ainda segundo Anderson (1997, p.2) “Guevara deve ser uma das raras figuras
públicas dos tempos modernos cujas certidões de nascimento e de morte foram ambas
falsificadas.”
Dentre a infinidade de eventos importantes na vida de Che Guevara e de sua
família, o dia 2 de maio de 1930 marca o seu primeiro ataque de asma, enfermidade que
o acompanharia até o fim da vida e que, devido à sua gravidade motivou a decisão de
mudarem para Alta Gracia, nas montanhas, em busca de um clima mais seco, o que
finalmente ocorreu em 1933.
A doença, longe de abate-lo, ajudou a forjar “uma vontade de aço” (Loviny,1997,
p.5), sendo parte importante tanto de sua historia quanto de sua personalidade e de seu
caráter. Segundo García e Sola 5 (2001, p.14) “Se uma biografia puder se permitir isolar
o objeto de seu contexto, então toda a vida de Che, e mesmo sua morte, podem ser
interpretadas como uma luta contra a doença.”
5
García, Fernando ; Sola, Oscar.CHE-Rêve Rebelle, Paris, La Mascara France, 2001.
17
Isto confirmaria o dito de que nas vidas daqueles destinados a serem heróis existe
sempre um grande obstáculo a ser transposto.
A casa da família, composta por Che e os irmãos Célia, Roberto, Ana Maria e
Juan Martin “era aberta às pessoas todas as horas” (Loviny, idem, p.7) e as crianças
eram encorajadas pelos pais a brincarem com outras, de todos os níveis sociais. Era o
seu modo de praticarem uma democracia na própria casa.
Apesar deste aspecto de integração, um problema começou a existir a partir da
mudança. Enquanto Célia passava o tempo todo em companhia das crianças, brincando
com eles, o pai, Guevara Lynch, começou ter problemas profissionais.
A medida em que suas economias começavam a acabar, seu
sentimento de frustração por não conseguir trabalhar se aprofundou,
transformando-se em desespero. Ele se sentia isolado, aprisionado pelas
montanhas circundantes e sofria de insônia. Passando as noites acordado,
ele se tornou crescentemente deprimido.(Anderson,1997, p.16)
A doença de Guevara, que havia determinado a mudança da família,
aparentemente continuaria a ditar os passos futuros, “dominando a vida de todos em um
grau extraordinário.”(idem, ibidem.) Decidiram ficar na cidade indefinidamente, apesar
dos poucos horizontes profissionais do local, em prol da saúde de Che.
O pai trabalhava precariamente em construção civil, mas era a mãe de Che quem
promovia o sustento da família durante estes anos com as rendas provenientes do
aluguel de suas terras.
Devido à doença e ao fato de não poder comparecer regularmente à escola, a
educação de Guevara foi feita de modo irregular. Começou a aprender a ler e a escrever
em casa, com sua mãe, que lhe despertou um apetite voraz pela leitura.
Célia contou que seu filho não cursou regularmente mais do que o
segundo e terceiro anos da escola primária; durante os três anos seguintes ele
não frequentou mais a escola. Suas irmãs copiavam os deveres e ele os fazia
em casa. Ele não pode ser inscrito e freqüentar a escola senã o aos oito anos.
As testemunhas e os biógrafos coincidem a respeito da enorme influência
exercida por Célia sobre as ambições intelectuais de seu filho. (García e Sola,
2001, p.14)
Esta influência intelectual materna, de natureza libertária, era complementada pelo
cuidado paterno com os aspectos físicos, pois era o pai quem o estimulava a jamais se
deixar abater ou se sentir derrotado pela doença ou se sentir inválido. Também era o pai
quem lhe aplicava as injeções com bronco-dilatadores por ocasião das crises e o
estimulava a praticar a natação para desenvolver a capacidade respiratória. Juntos,
praticavam o xadrez e Guevara aprendeu a atirar com armas de fogo com o pai.
Guevara ia crescendo, em uma vida livre nas ruas com seu bando de amigos,
sempre que sua condição física lhe permitia. Por outro lado, o repouso forçado que
precisava manter, mesmo contra sua vontade, nos momentos de crise o empurrava para
a leitura e desse modo foram-se estruturando um sinergismo e uma complementaridade
físico-intelectual.
Com os amigos, desde sempre teve um papel de liderança, que de certa forma era
determinada pelo estoicismo e determinação a que era obrigado pela asma. Isto pode ser
comprovado pelo relato de que a partir dos seis anos de idade ele mesmo passou a se
aplicar as injeções contra as crises além de ter mais tarde se dedicado a praticar o rugby,
“o esporte das classes abastadas da Argentina de então” (García e Sola, idem).
Nenhum esporte poderia ser mais contra indicado para um portador de bronquite
asmática, devido à sua natureza extremamente aeróbica. Apesar de suas limitações
18
físicas, Guevara jogava com determinação e, de tempos em tempos corria para a
margem do campo onde utilizava sua máscara de inalação.
Esta determinação, testemunhada por vários de seus contemporâneos, chegava às
raias da temeridade. Um deles, Fernando Barral falava de sua “total ausência de medo
diante do perigo além de uma completa liberdade de opinião e auto-confiança
extremada” (García e Sola, ibidem).
A mesma atitude determinada “lhe granjeou o apelido de ‘Fuser’, uma abreviação
de furibundo (furioso) e de Serna (nome de solteira de sua mãe).” (Loviny, idem). Mais
tarde, em outra faceta de sua capacidade empreendedora, fundou a revista ‘Tackle’,
especializada em rugby.
Outro aspecto característico de Guevara era a sua fidelidade e ligação profunda
com os amigos. Alguns deles o acompanharam ao longo da vida, como Alberto Granado
e Tita Infante, que foi sua colega de estudos e confidente durante toda a vida.
Alberto Granado merece menção especial, pois não apenas se tornaria o melhor
amigo de Guevara, como seria seu companheiro na famosa viagem de motocicleta ao
longo da América Latina, saindo da Argentina e chegando até a Venezuela, onde se
separaram.
Um pouco antes, em 1950, Guevara decidira interromper por uns tempos seus
estudos e partir em uma viagem de bicicleta, à qual havia adaptado um pequeno motor,
para conhecer melhor o interior da Argentina e seus habitantes. Começava a fazer na
realidade a viagem/travessia que tinha começado metaforicamente com a leitura dos
poemas de Baudelaire. Este, o poeta da viagem como experiência metafísica havia
marcado profundamente a adolescência de Che.
Guevara planejou viajar 850 quilômetros de bicicleta, decidido a se encontrar
com o amigo Alberto, que já estava formado e trabalhando em um leprosário ao norte de
Córdoba, “em San Francisco de Chanar. Sua bagagem consistia de um pneu
sobressalente, que carregava ao redor dos ombros, como uma trompa de caça, umas
poucas roupas e um livro de Nehru”.(Loviny, idem)
Segundo Trejo, “ele ia onde estavam os mais pobres e mais necessitados, como se
desejasse absorver toda a miséria da América Latina de um só golpe”. (apud Loviny)
Ao final da viagem, Guevara havia percorrido um total de 4500 kms. pelos
caminhos da Argentina, “evitando as estradas principais” e começado o seu aprendizado
sobre as duras realidades a que estava submetido o povo de seu país.
Sua decisão de seguir a carreira médica, além da provável influência de Alberto,
foi devida à sua tristeza com a doença e os sofrimentos de sua avó, a quem era muito
apegado. Ela viria a falecer em 1947. Imediatamente após a sua morte, “Ernesto
informou seus pais de que havia decidido estudar medicina ao invés de engenharia.
Naquele mesmo mês, ele se candidatou para a admissão na faculdade de Medicina da
Universidade de Buenos Aires.” (Anderson, 1997)
Além dos motivos citados para a escolha de medicina, Guevara diria ter sido
movido também pelo desejo de um ‘triunfo pessoal’: “Eu sonhava em me tornar um
famoso pesquisador (...) sonhava trabalhar infatigavelmente para descobrir alguma coisa
que pudesse ser definitivamente colocada a serviço da humanidade”. (Anderson, idem)
O temperamento independente de Guevara o levou a trabalhar desde cedo,
principalmente em tarefas de tempo parcial. De todos elas, a que mais tempo durou foi a
que realizou na Clínica de alergia do Dr.Pisani. Este médico fazia pesquisas na área de
alergia e aceitou que Guevara começasse a trabalhar com ele como estagiário não pago.
Este período da vida se tornou importante, porque a família do médico, que morava na
casa ao lado e era constituída por sua mãe e sua irmã, adotou Ernesto e cuidava dele,
preparando comidas especiais adequadas à sua dieta para alergia.
Ao mesmo tempo em que se abrigava cada vez mais na casa do médico, Guevara
se afastava de sua própria família. Seu pai procurava justificar seu comportamento
19
fugidio dizendo que ele precisava ganhar o próprio dinheiro, já que não aceitava mais
nada dele.
Neste ponto, Guevara parecia estar dominado por algum tipo de ‘tumulto interior’.
Anderson (1997) pensa desse modo e relata: “Alguns meses antes Guevara havia
expressado seus sentimentos carregados em quatro páginas de verso livre, que mostram
suas emoções conturbadas, em um momento crucial de sua vida.”
Os versos diziam:
“Eu sei! Eu sei!
Se eu sair deste lugar o rio me engole...
É meu destino: Hoje eu devo morrer!
Mas não, a vontade pode vencer tudo
Há obstáculos, eu admito
Eu não quero sair.
Se eu tiver que morrer, será nesta caverna.
As balas, o que podem as balas me fazer se
meu destino é morrer afogado. Mas eu
vou superar o destino. O destino pode ser
conseguido pela vontade.
Morro, sim, mas atravessado
por balas, destruído pelas baionetas, se não, não. Afogado não...
É lutar, morrer lutando.” (p.43-44)
Ainda segundo Anderson, com quem estou de acordo, estes versos parecem
mostrar vários aspectos das lutas internas de Guevara naquele momento, incluindo a
escolha de um destino pessoal, seus laços e seus sentimentos de responsabilidade para
com a sua família, que naquele momento atravessava grave crise financeira. Além disso,
era afetado pelo relacionamento de seus pais, “que embora estivessem legalmente
casados, estavam agora ‘separados’. Ernesto Guevara Lynch não compartilhava mais a
mesma cama com Celia.” (Anderson,1997)
Duas mulheres participaram estreitamente da vida de Guevara durante esta época.
Uma delas era sua tia paterna Beatriz, em cujo apartamento Guevara se refugiava com
freqüência. A tia, que o havia mimado desde pequeno, o havia “maternalizado de
maneiras que sua mãe Célia nunca fizera.” Guevara, o motivo de um amor tão
incondicional, manteve com a tia um relacionamento sem confrontações evidentes
durante toda a vida.
A outra mulher, já citada antes, era Berta Gilda Infante, ou ‘Tita’, uma das duas
únicas mulheres na classe de medicina. Guevara se tornou seu confidente e grande
amigo, em um tipo de relacionamento platônico que duraria toda a sua vida. Mesmo
depois de sair do país manteve-se em contato com ela através de cartas. Anos mais
tarde, pouco depois de tomar conhecimento do assassinato de Guevara, ‘Tita’ viria a se
suicidar.
Guevara continuava a sua formação acadêmica e humanística, política e filosófica.
Durante estes anos como estudante na faculdade de medicina ele continuava a ler muito,
com assiduidade e método. Passou a fazer uma lista de tudo o que lia, incluindo os
autores e seus países de origem, os títulos dos livros e os gêneros. Seus interesses se
expandiam cada vez mais, incluindo psicanálise, história, sociologia e política, além de
manter seu antigo interesse pelos clássicos de aventura. Sua coleção de três volumes
encadernada em couro de Jules Verne, que ele considerava muito preciosa, estava
sempre com ele. Apesar de seu interesse crescente e de suas leituras sistemáticas sobre o
socialismo e os grandes temas e textos do marxismo, Guevara ainda não se mostrava
desejoso de se filiar formalmente à esquerda.
20
Do ponto de vista de militância política, Guevara se manteve à margem das
atividades, “observando, escutando e algumas vezes debatendo, mas de modo estudado
evitando qualquer participação ativa.”
O cenário político na Argentina, por volta de 1950, começava a ser dominado por
Juan Domingo Perón, que detonara o peronismo, movimento de características popularnacionalistas. O embasamento filosófico do peronismo era o ‘justicialismo’, ou a
procura e construção de justiça social, “que tinha como objetivo final uma comunidade
organizada de homens vivendo em harmonia.” (Anderson,1997)
A atitude ambígua e cínica de Perón e seu desejo de criar um Estado que se
mantivesse entre o capitalismo ocidental e o comunismo, ao sabor das circunstâncias,
não desmerecia sua intenção de construir uma Argentina independente e “que não se
submetesse a nenhuma potência estrangeira, haviam granjeado alguma admiração de
Guevara, que passou a chamá-lo de ‘el capo’ por esta época.” (Anderson,1997)
O populismo de Perón e seu domínio sobre os trabalhadores e seus sindicatos
havia determinado que o partido comunista argentino se colocasse em oposição a seu
governo, aliando-se a outros de centro.
Guevara se mantinha à margem e, para alguns de seus contemporâneos, como
Ricardo Campos, “Ele tinha idéias muito claras a respeito de certos assuntos. Acima de
tudo, de uma perspectiva ética. Mais do que uma pessoa política, eu o vi naquela época
como uma pessoa com uma postura ética.” (Anderson,1997)
O que se entrevê dos textos biográficos sobre Guevara, neste período de sua
formação profissional e humana, é a imagem de um homem que observa, absorve, filtra
e pondera. O cenário político argentino de então, com todo o seu emaranhado de tramas
e acordos subterrâneos e “o maquiavelismo de Perón, iluminaram a fórmula para efetuar
mudanças políticas radicais a despeito da poderosa oposição das oligarquias
conservadoras, do clero católico e de setores das forças armadas.”
Guevara começava o exercício silencioso de sua formação política observando o
homem que demonstrava poder manipular as pessoas e as massas. Além destas
atividades, que demandavam sensibilidade e estratégia, Perón também deixava clara a
lição para quem quisesse alcançar o sucesso na política. “Era necessária a disposição
para usar a força para alcançar os objetivos políticos.”
O nacionalismo de Perón e seus esforços para desenvolver economicamente a
Argentina, livrando-a da dependência aos países industrializados “devem ter sido
atraentes para Guevara”, que era um grande admirador de Nerhu desde sempre. O livro
‘A descoberta da India’ tinha sido uma grande inspiração para ele, e talvez sua
disposição para viajar às entranhas de seu país para conhecer o seu povo, tenha sido em
alguma medida influenciada pelas idéias do livro.
Suas antigas leituras sobre ciência e tecnologia também o levaram a se identificar
com as propostas de desenvolvimento defendidas pelo líder hindu e, em certa medida,
por Perón.
Nerhu havia escrito em 19466: “No contexto do mundo moderno
(contemporâneo), nenhum país pode ser política e economicamente independente,
mesmo na moldura de interdependência internacional, a menos que se torne altamente
industrializado e desenvolva suas fontes de potência ao máximo.”
Acho que estas palavras continuam atuais, passados cinqüenta e dois anos, e
adquirem extraordinária importância antecipatória na semana em que a Argentina naquela época da formação de Guevara, talvez o país mais rico e desenvolvido da
América Latina- chega à bancarrota e ao caos social.
Os mecanismos de exploração mantidos pelos países industrializados sobre os
latino-americanos, em particular a Argentina, eram baseados na venda de produtos
6
Nehru, J., The Discovery of Índia. Oxford University Press,1985. (orig. Calcutta: Signet
Press, 1946)
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industrializados e na compra de matérias primas a preços vis. Esta situação havia
chegado ao auge em 1933, com o “ignóbil Pacto Roca-Runciman, renovado em 1936,
que obrigava a Argentina a comprar bens da Inglaterra e garantir concessões a
investidores ingleses em retorno a que a Inglaterra continuasse a comprar trigo, lã e
carne argentinos” (Anderson, ibidem). Esta situação, vigente na Argentina desde a
época da depressão econômica, era o chão político-social do país onde Ernesto Guevara
nascia em 1938.
Se pensarmos que um grande transformador social, um modificador de
paradigmas, também está inserido em seu tempo e nas circunstâncias sociais e históricas
que o emolduram, sofrendo as marcas de todos estes eventos, podemos dizer que o
‘voluntarioso e determinado’ Ernesto tivesse sido forjado em sua moldura ética, em
parte, pelas desigualdades que a política determinava e que eram parte do cotidiano de
seu país e de sua família.
A combatividade, a sinceridade e o sentido de justiça que eram marcas da
personalidade de Che se mostravam em diferentes momentos. No episódio de sua
viagem de bicicleta, ao encontrar seu amigo Alberto no leprosário onde trabalhava, Che
argumentou com ele sobre a necessidade de se lutar contra a internação involuntária e o
isolamento dos pacientes. A discussão se iniciou com o caso de uma paciente chamada
Yolanda, jovem e muito bonita, e que tentava convencer todos os médicos que
chegavam ao leprosário a pedirem por sua alta. Guevara ficou impressionado com o
caso da moça e Alberto, para demonstrar a gravidade da situação clínica, enviou uma
agulha em suas costas, para provar que ela nada sentia.
Alberto conta:
Olhei triunfantemente para Ernesto, mas o olhar que ele me deu
congelou o sorriso. O futuro ‘Che’ me ordenou: ‘Mial, mande-a sair.’
Depois que a moça deixou a sala, vi uma raiva contida no rosto de meu
amigo. Até aquele momento eu nunca o tinha visto daquela maneira, e tive
que agüentar uma tempestade de reprovações. Amigo, ele me disse, nunca
pensei que você pudesse perder a sua sensibilidade a tal ponto. Você fez de
tola a garota apenas para demonstrar seu conhecimento.
(Anderson, 1997, p.61)
Ernesto continuou sua viagem de bicicleta, durante a qual começou a escrever o
seu diário, o que se tornaria um hábito de toda a sua vida. Muitas de suas anotações
puderam ser usadas posteriormente por seus biógrafos graças à iniciativa de seu pai, que
descobriu o diário e o transcreveu em seu livro de memórias. Elas mostram momentos
de reflexão do jovem Che, como o que se segue, e que estariam inacessíveis .
Anderson (1997) relata:
Ao entrar em uma floresta, foi tomado por um êxtase face `a natureza
que o circundava, escrevendo depois: ‘Eu me dei conta de que alguma coisa
que estivera crescendo dentro de mim há algum tempo amadurecera: e é este
ódio pela civilização, a imagem absurda de pessoas correndo como loucas,
ao ritmo do tremendo barulho que me parece a odiosa antítese da paz. (p.62)
Ernesto continuou sua viagem até alcançar Jujuy, a cidade mais ao norte da
Argentina. Passando por estas inóspitas regiões, habitadas por grande contingente de
índios, Guevara começou a se dar conta da realidade de seu país, passando a perceber
por debaixo da fachada rica uma realidade de miséria e desesperança. Aprofundou a sua
visão do grande contingente de pessoas marginalizadas, a partir de seu encontro com
elas ao longo das estradas. Para ele, “a iconografia da nacionalidade Argentina moderna
era apenas um ‘verniz superficial’, debaixo do qual ficava a verdadeira alma do país;
esta estava podre e doente.” (Anderson,1997)
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Este mar de pessoas miseráveis, composto pelos já citados índios e mestiços,
chamados de ‘cabezitas negras’, quando fugia de suas regiões de origem e ia se refugiar
nas periferias das grandes cidades, passava a ser a mão de obra em trabalhos domésticos
e funções mal remunerados das indústrias e do governo.
Foi a este desprezado contingente humano que Perón dirigiu em sua retórica
populista, acenando aos descamisados com a possibilidade de terem algum respeito e
acesso a melhores condições de vida e foi também da existência real deles de que
Guevara se deu conta durante e ao fim de sua viagem.
Por essa época ocorreu um evento muito importante na história de Ernesto.
Durante uma viagem à Córdoba com sua família, para comparecer a um casamento, ele
se encontrou com uma jovem muito bonita de dezesseis anos, chamada Maria del
Carmen ‘Chichina’ Ferreyra. Ela era a herdeira de uma das famílias mais ricas e
tradicionais da Argentina, e além de muito bela era imaginativa, inteligente e alegre.
Guevara se apaixonou por ela, e ela demonstrava também interesse por ele,
encantada por sua maneira irreverente de ser e de se portar.
Como existiam laços anteriores de relacionamento entre a família de Guevara e a
de Maria Del Carmen, as enormes disparidades entre a duas, a dele composta de
‘aristocratas empobrecidos’ e a dela, dona de um império econômico e vinda da mais
alta linhagem, não se constituíram em obstáculo.
O modo excêntrico e aventureiro de Guevara, de certa maneira casava com
diversos membros da família Ferreyra, eles também aventureiros e desafiadores. Ao
longo do tempo, entretanto, este encantamento inicial da família com Ernesto e sua
permissão para que o namoro acontecesse, foi se quebrando, especialmente depois de
Guevara ter pedido a mão da moça em casamento. A partir daí, começou uma oposição
feroz ao relacionamento dos dois e o namoro de contos de fada entrou em crise. Eles
passaram a ter que se verem escondidos e seus encontros escassearam.
Ao final do período letivo de 1950, Ernesto não foi para Córdoba para ficar perto
de Maria e conseguiu uma credencial para embarcar como enfermeiro em um navio da
companhia petrolífera estatal da Argentina. Viajou durante diversos meses, mantendo-se
mais no mar do que em terra, sempre com seu pensamento em Maria del Carmen.
Esteve no Brasil em fevereiro de 1951 e foi do Caribe até a Patagônia. As viagens
foram perdendo o encanto para ele, porque não lhe permitiam ficar mais tempo em terra
e matar a sua curiosidade de conhecer novos lugares e culturas. Aparentemente Guevara
havia feito todas as viagens atendendo ao prazer de andar sem destino, mas na realidade
parecia estar fugindo do encantamento de Maria e talvez competindo com os feitos de
seu pai e tios.
De volta das viagens, ele trouxe de presente para seu pai um livro com um ensaio
intitulado ‘Angústia- Isto é certo’, que havia escrito durante seu período no mar. O
texto, denso e carregado de metáforas, é uma ‘jornada existencialista’ em busca dos
motivos de uma depressão que Guevara havia vivido enquanto viajava. Embora no texto
dissesse ter superado a depressão ‘podendo mais uma vez sorrir otimistamente e respirar
o ar à sua volta’, a história mostra como ele estava angustiado com seu relacionamento
com ‘Chichina’.” (Anderson, 1997)
O que se pode perceber, a partir do texto, é o entrelaçamento entre as questões
amorosas com que Guevara se debatia naquele instante, seu apego à namorada e seu
desejo de casar com ela, negado pela família, e questões sociais mais amplas.
No texto citado ele dizia:
Eu caio de joelhos, tentando encontrar uma solução, uma verdade, um
motivo. Pensar que eu tenha nascido para amar, que eu não nasci para ficar
permanentemente sentado diante de uma escrivaninha, me perguntando se o
homem é bom, porque eu sei que ele é bom.... Fazer um sacrifício estéril
que não consiga nada para construir uma nova vida: isto é angústia.
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Seu relacionamento com Maria permanecia sem solução, porque ela ainda tinha
dezessete anos, não tinha condições de decidir sua vida e era mantida sob severa guarda
por sua família, que continuava a se opor ao seu relacionamento com Ernesto.
Em junho, Guevara retornou às aulas e já estava com vinte e três anos. Faltavam
ainda dois anos para que ele completasse o seu curso médico e ele começou a se
desinteressar pelas aulas, não se preparando adequadamente para os exames. Neste
estado de desinteresse, inquieto e sem poder viver o seu amor, Guevara atingia as raias
do desespero.
Por essa época recebeu correspondência de seu grande amigo Alberto, então já
com trinta anos, e que havia se decidido a fazer uma grande viagem pela América do
Sul, convidando-o a acompanha-lo. Cansado de tudo, Guevara aceitou de imediato.
No final do ano foi para a casa de Alberto para planejarem a viagem. Deixara-se
levar por suas imaginações, fantasiando passeios ilimitados, e chegando até a Ásia.
Finalmente decidiram ir até a América do Norte, usando a motocicleta de Alberto,
apelidada de poderosa II. Uma vez tendo decidido em que direção seguiriam, deixaram
o restante, como de hábito, à improvisação.
Em janeiro de 1952 dirigiram-se ao balneário de Miramar, onde Maria estava com
algumas amigas, para que Ernesto pudesse se despedir. Como que demonstrando os seus
sentimentos por ela e suas esperanças para o futuro, Guevara levava um presente. Um
cachorrinho sintomaticamente apelidado de ‘volta’.
O encontro entre eles nada mudou e Guevara e Alberto finalmente partiram depois
de terem permanecido oito dias na cidade.
Seguiram a rota que levava ao Andes e à fronteira com o Chile, pedindo ajuda em
todos os lugares por onde passavam. Mendigavam comida, abrigo, o que pudesse ser
dado. Freqüentemente eram obrigados a se abrigar em celas de delegacias, entre
criminosos. Permaneceram na região de Bariloche por alguns dias, e lá Guevara
recebeu uma carta de Chichina terminando o namoro com ele. A carta o desesperou e
ele escreveu a respeito: “Eu li e reli a incrível carta. Era assim, todos os meus sonhos se
desmanchando. Comecei a sentir medo em relação a meu futuro e tentei escrever uma
carta chorosa, mas não consegui, era inútil tentar.” (Anderson,1997)
Podemos ver nestas palavras do próprio Guevara o impacto emocional que o
relacionamento com Maria del Carmen e a separação dela provocaram. De que sonhos
Ernesto estaria falando?
O relato biográfico dos meses e quilômetros seguintes nas vidas dos dois amigos,
mostra um caminho errático, ao sabor das circunstâncias, bem como eles haviam
planejado desde o início. O comportamento de Alberto e Ernesto mostra todo um
conjunto de atitudes marcado por acentuada falta de cuidado e de consideração pelos
outros, e pelas suas vidas. Diversas vezes se colocaram em situações de perigo físico
iminente, em episódios de burla que foram deixando, ao longo das cidades e vilas do
Chile, “uma trilha cada vez maior de anfitriões irados atrás deles.” Isto acontecia porque
os dois amigos faziam de tudo para conseguir comida, alojamento e sexo de graça,
mesmo que precisassem se fazer passar por “eminentes leprologistas em viagem de
pesquisa pelo continente”. Face à ingenuidade das pessoas que encontravam, seu
comportamento de total sem cerimônia e a ‘performance’ que levavam a cabo, resultava
até mesmo em entrevista em jornais, que eram usadas como credenciais nas próximas
vilas. Exemplo disto é o artigo do dia 19 de fevereiro de 1952, publicado pelo jornal ‘El
Austral de Temuco’, onde se lê: “Dois especialistas argentinos em leprologia viajam
pela América do Sul de motocicleta”.
A atitude dos dois amigos, na superfície infantil, irresponsável e levando a
extremos de incontinência, escondia um lento processo que ia se desenvolvendo no
interior da personalidade de Guevara, e que podemos perceber nas suas observações no
24
diário. O seu encontro com o sofrimento de diversas pessoas, como a velha moribunda
em Santiago, ou um casal fugitivo nas montanhas dos Andes, com quem ele e Alberto
compartilharam um cobertor na noite gelada, começava a consolidar a sua visão,
iniciada na Argentina, das conseqüências trágicas de séculos de exploração sobre as
vidas dos pobres. A respeito daquela noite ele escreveu:
O casal, congelado pelo frio na noite do deserto, sem nada que os
protegesse, a não ser o abraço um do outro, era a representação viva do
proletariado de qualquer parte do mundo. Apesar do frio, foi a oportunidade
em que senti um pouco mais de fraternidade por esta, para mim, estranha
espécie humana.”(Anderson, idem, p.78).
A visita que fizeram à mina de cobre de Chuquicamata permitiu a Guevara
perceber com mais intensidade a exploração que aquele país sofria pelas companhias
americanas que eram proprietárias do empreendimento.
Seguiram viagem entrando no Peru, e a visão dos belos vales irrigados por canais
construídos pelos antigos incas, com as montanhas ao fundo, a princípio provocou
encantamento em Guevara. Este sentimento durou pouco, pois a medida em que
penetravam mais no país, Alberto pôde observar os índios, vendo-os como seres
abatidos, espectros de pessoas, “domesticados e que nos olham com medo,
completamente indiferentes ao mundo exterior.” (Anderson, 1997, p.80)
Outro aspecto que começou a causar impacto sobre Guevara, foi a percepção de
que no Peru, diferentemente da Argentina, onde a imigração intensa havia provocado
grande miscigenação, os índios se constituíam na maioria da população, quase não se
misturando com os colonizadores. As diferenças étnicas, culturais e econômicas eram
claramente visíveis e estarrecedoras. O fato de serem brancos e profissionais lhes
garantia privilégios automáticos inimagináveis, resultando disso que, ao contrário de seu
comportamento no Chile, não precisassem mentir ou fazer outros esforços para obter
cama e comida. Em uma vila o chefe de polícia local, ao ouvir seu pedido de alojamento
junto com os presos falou: “O quê? Dois médicos argentinos irem dormir sem conforto
por falta de dinheiro? Não pode ser...”, e insistiu em pagar um lugar num hotel.”
(Anderson,1997, p.80)
Continuaram a viagem, chegando a Cuzco, com suas extraordinárias construções
coloniais e alcançaram Machu Picchu. Os mesmos privilégios recebidos anteriormente
se repetiram e eles foram alojados alguns dias gratuitamente no hotel local.
Na medida em que adentravam o país, Guevara ia penetrando também na
consciência do que lhe parecia um destino comum entre os diversos povos mestiços da
América Latina. Passou a achar que todos eles possuíam a condição de ‘raças
conquistadas’, não se percebendo mais como descendente daqueles seus antepassados
que haviam massacrado os indígenas. Ernesto passou a ver os mestiços latinoamericanos como os verdadeiros cidadãos do continente, encontrando identidades
históricas e culturais que os diferenciavam claramente dos ‘alienígenas’ que vinham do
norte. A consciência política derivada desta percepção foi se enraizando em sua mente,
fazendo-o ver como causa fundamental do destino inglório dos povos latino-americanos
a exploração desenvolvida pelo poder econômico americano. Entretanto, mais para o
interior de sua personalidade parecia ir se estruturando um sentimento de profunda
fraternidade e de percepção (afetiva) de um laço intersubjetivo entre ele e os homens
com quem se encontrava. Esta consciência, ao invés de ser um produto da mente,
representava a ultrapassagem por Guevara do sentimento de distanciamento que durante
parte de seu desenvolvimento havia determinado comportamentos de não solidariedade.
Stolorow e Atwood (1992), dizem a respeito deste tipo de transformação na
percepção de nossas relações com os outros:
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Uma atitude não alienada em direção ao irredutível engajamento com
outros leva a uma experiência de angústia, devido ao fato do destino dos
seres humanos ser tão irrevogavelmente dependente e vulnerável a eventos
acontecendo no meio interpessoal (...) nossa auto-estima, nosso sentimento
de identidade pessoal e até a experiência de nós mesmos como possuidores
de uma existência distinta e duradoura são influídas por relações sustentadas
pelo ambiente humano. (p.10)
Guevara acentuou estas transformações dentro dele por contraste, exatamente no
ambiente de um país onde as diferenças sociais transformavam os indígenas não em
cidadãos da mesma pátria, mas em párias, habitantes de outro espaço humano. A
percepção destes abismos de diferença e de injustiça, que ele já observava na Argentina,
tornou-se irrecusável no Peru, entremeando consciência e sentimento.
Um episódio ocorrido no vilarejo de Huancarama parece demonstrar estas
mudanças. Ele e Alberto continuavam usando expedientes para continuar a viagem, pois
estavam sem dinheiro e sem a motocicleta, que havia se quebrado. Pediram então a um
funcionário do local que lhes arranjassem dois cavalos, pois Guevara estava sofrendo
com crise de asma e não conseguia mais andar. Apareceram com dois cavalos magros e
um guia quéchua para os guiar até o leprosário para onde se dirigiam. Já na estrada,
depois de cavalgarem por vários quilômetros, viram uma índia e um menino que os
seguiam. Entenderam então que os cavalos que usavam pertenciam à índia e
simplesmente haviam sido confiscados dela para servirem aos ‘doutores argentinos’.
Penalizados pela injustiça, devolveram os animais e seguiram viagem a pé. Já não
estavam mais conseguindo rir das pessoas com quem se encontravam.
A colônia de leprosos era um lugar pobre e sujo, onde um pequeno grupo de
médicos trabalhava em condições precárias e ganhando muito mal. Souberam que o
diretor do programa de lepra do Peru, Dr. Hugo Pesce era um eminente comunista e
resolveram conhece-lo quando chegassem a Lima.
Pouco a pouco iam se dando conta de que a população indígena era tratada como
coisas, menos do que animais, e que havia atingido tal estado de mortificação e de
anestesia que mesmo gestos de consideração não provocavam nenhuma mudança em
seus rostos. Todos estes acontecimentos iam forjando uma transformação no sentimento
dos dois amigos, dando-lhe uma nova consciência dos problemas do mundo e de sua
responsabilidade diante deles.
Ao chegarem a Lima, depois de quatro meses na estrada, resolveram procurar o
Dr. Hugo Pesce, de quem já haviam tido notícia antes. Foram recebidos com extrema
cordialidade por ele, e encaminhados ao Hospital de Guia, referência no tratamento de
lepra. Durante algumas semanas permaneceram em contato com Dr. Pesce, assistindo às
suas aulas, participando de debates com ele e, a medida em que Guevara percebia a
importância de seu novo amigo, a quem ele e Alberto chamavam de ‘maestro’, um forte
laço começou a se desenvolver entre eles. Dr. Hugo havia sido discípulo do filósofo
marxista peruano José Carlos Mariátegui, autor do livro Sete Ensaios Interpretativos da
Realidade Peruana, escrito em 1928. Depois de sua morte em 1930, Hugo Pesce
continuou como membro do Partido Comunista Peruano, desenvolvendo, no campo da
medicina, as idéias do filósofo a respeito das necessidades sociais da população e das
estratégias políticas para promover o seu desenvolvimento.
Suas atividades políticas e sociais trouxeram-lhe inúmeros problemas com o
governo, representante das oligarquias dominantes, e causaram o seu ‘exílio interno’ no
país, tendo sido forçado a ir trabalhar no interior. Deste episódio resultou um livro, a
que ele deu o nome de Latitudes do Silêncio.
O Dr. Pesce foi o primeiro médico que Guevara encontrou em sua vida e que
podia considerar como sendo dedicado inteiramente ao bem comum, seu próprio sonho.
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A partir deste encontro, em um ponto da vida de Ernesto no qual ele estava procurando
um rumo que o orientasse em direção a um ideal de participação na transformação do
mundo, podemos considerar que tenha sofrido uma mudança qualitativa em sua
personalidade.
Anos depois, já um militante, ao publicar o seu primeiro livro, intitulado Táticas
de Guerrilha, Che enviou um exemplar ao seu amigo e inspirador, com a seguinte
dedicatória:
Ao Dr. Hugo Pesce: quem, talvez sem saber, provocou uma grande
mudança em minha atitude a respeito da vida e da sociedade, com o mesmo
espírito aventureiro de sempre, mas direcionado para objetivos mais em
harmonia com as necessidades da América. (Anderson,1997, p.86)
De Lima os amigos partiram em direção à Amazônia peruana, para visitarem uma
outra colônia de leprosos, visando chegar até Manaus. À noite, no barco que descia o
Amazonas, Guevara começou a lembrar de sua namorada Maria del Carmen, sendo
tomado por intensa nostalgia.
A experiência na colônia de leprosos, foi mais um mergulho na miséria humana e,
ao mesmo tempo, mais uma visão da necessidade de fazer alguma coisa pelos
miseráveis do mundo, representados pela condição de extremo opróbrio e
marginalização a que aqueles doentes haviam chegado.
Partiram de lá agradecidos pelo carinho que haviam recebido deles, em uma
jangada construída pelos pacientes, apelidada de ‘Mambo-Tango’, que teriam que
abandonar pouco depois da cidade de Letícia, de onde voaram para Bogotá.
Lá chegando, encontraram um país em franca ebulição política, sacudido por
conflitos armados na cidade e nos campos, a tal ponto que mesmo o aventureiro
Guevara se mostrou disposto a permanecer pouco tempo lá.
Apesar de terem conseguido alojamento e alimentação graças a uma carta de
recomendação do Dr. Pesce, devido ao ambiente carregado de tensão e ameaça
constantes, Guevara escreveu: “Em suma, um clima asfixiante, que os colombianos
podem suportar se quiserem, mas que nós pretendemos abandonar assim que
pudermos.” (Anderson, 1997, p.90)
No entanto, este momento na Colômbia foi importante porque havia acontecido
um encontro internacional de estudantes que se reuniram em Bogotá, em protesto contra
a assinatura da Carta da Organização dos Estados Americanos. Entre eles estivera um
jovem estudante de Direito, de 21 anos, Fidel Castro Ruz, vindo de Cuba para lutar nos
protestos contra o assassinato do líder Jorge Eliécer Gaitán, ocorrido no dia 9 de abril de
1948.
Os conflitos que se seguiram receberam o nome de ‘El Bogotazo’ e suas
conseqüência alcançavam os momentos nos quais Guevara e Alberto estavam na cidade,
entrosados com os estudantes e aprendendo a respeito de tudo isto.
Acabaram sendo presos e mais tarde foram avisados por seus amigos locais de que
era imperioso que abandonassem a Colômbia, porque corriam riscos de vida.
Saíram de Bogotá de ônibus, em direção a Caracas. Guevara, que não havia
sofrido ataques de asma nos últimos tempos devido ao fato de estarem em lugares muito
altos, começou a piorar assim que iniciaram a descida das montanhas. As crises foram
tão fortes que Alberto precisou usar doses muito altas de adrenalina, temendo pela vida
do amigo.
Ao chegarem na capital, refizeram seus planos de viagem, seguindo duas linhas.
Ou iriam para a América central e para o México, o que estava difícil porque estavam
sem dinheiro, ou Guevara procuraria o sócio de seu tio Marcelo, que exportava cavalos
de raça para os Estados Unidos, pegando uma carona em um vôo de volta para Buenos
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Aires, com a intenção de terminar o seu curso de medicina. Alberto ficaria na Venezuela
trabalhando e os dois planejavam se encontrar depois da formatura de Guevara.
Ao chegar de volta a Argentina Guevara encontrou o seu país bastante mudado,
com a morte recente de Eva Perón.
Ele também se sentia diferente e escreveu:
A pessoa que escreveu estas notas morreu no momento que pisou outra
vez em solo argentino...Eu não sou mais Eu; ao menos não sou o mesmo
que era antes. Esta vagabundagem através de nossa ‘América’ me
transformou mais do que eu pensei. (Anderson, 1997, p. 95)
As coisas na família de Guevara continuavam mais ou menos iguais, e ele se deu
conta de que para terminar o seu curso médico precisaria prestar exames de 14 matérias,
em curto prazo. Passou a estudar em tempo integral e em novembro de 1952 começaram
as provas. Até abril de 1953 passou em 13 matérias, tendo feito o último teste no dia 11.
Ligou para casa nesse dia e seu pai relata: “Eu estava no escritório e recebi um
telefonema. Reconheci sua voz imediatamente, e ele disse: ‘Dr. Ernesto Guevara de la
Serna falando.’ E colocou a ênfase na palavra Doutor.”
A despeito das esperanças de sua família e de Dr. Pisani, que esperava que
Ernesto trabalhasse com ele, logo depois de formado ele anunciou para todos que
reiniciaria sus viagem pela América, desta vez em companhia de um amigo de infância,
Carlos ‘Calica’ Ferrer.
Em junho, depois de obter uma cópia de seu diploma, e ter comemorado seu
vigésimo quinto aniversário, Guevara e ‘Calica’ começaram a levantar os fundos para a
viagem, pedindo dinheiro a todos os familiares, vendendo objetos pessoais, fazendo
rifas e o que mais fosse preciso. Eles conseguiram reunir 300 dólares e estavam à
procura dos vistos necessários para viajar aos países que tinham intenção de visitar.
O da Venezuela foi negado, devido ao grande número das pessoas que queriam
imigrar para lá naquele momento, em razão do desenvolvimento súbito que havia
acontecido com a descoberta de petróleo. Apesar disso, eles decidiram viajar,
acreditando que conseguiriam o visto em algum lugar ao longo da estrada.
Eles compraram ingressos para a segunda classe do trem rumo a Bolívia, deixando
a estação de Belgrano no dia 7 de julho de 1953.
O pequeno grupo de parentes e de amigos que assistiu a partida observou os dois
entrarem no trem, carregados de bagagem. A de Guevara era constituída em grande
medida pelos seus livros. No meio do grupo, Célia de la Serna ficou com os olhos
cheios de lágrimas e falou “segurando as mãos da namorada de Roberto: ‘meu filho está
de partida, e eu não o verei mais. '” (Anderson,1997, p.99)
Apesar de ‘não saberem novamente onde era o norte, querendo com isto significar
uma falta aparente de objetivos ou propósitos na viagem, pelo menos Ernesto parecia
disposto a continuar seu aprendizado relativo às realidades duras do continente’. A
Bolívia vivia um momento de grande efervescência e de tumulto políticos, e Guevara
definiu a situação naquele momento escrevendo:
“La Paz é a Shangai das Américas. Um grupo rico de aventureiros de todas as
nacionalidades vegeta e floresce na policromática e mestiza cidade.”
(Anderson, 1997, p.101)
Depois de entrarem em contato com um companheiro de viagem que estava em
visita a seu pai, Isaías Nogues, proeminente político e dono de uma usina de cana de
açúcar em Tucumán, exilado por sua oposição a Perón, os dois amigos começaram a
conhecer a comunidade de exilados argentinos que morava na Bolívia. Isto possibilitou
a Guevara mais um viés de compreensão das disparidades e sutilezas da política e das
relações sociais na Argentina. No grupo, entraram também em contato com o general
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Ramírez, que atuava como adido militar da Venezuela e se dispôs a conceder o visto
para os dois amigos.
Outro personagem com quem Guevara entrou em contato nesta ocasião foi o
advogado argentino Ricardo Rojo, exilado devido a sua oposição ao governo peronista.
Este, haveria de participar da vida de Che em encontros esporádicos pelos próximos dez
anos.
Em termos de política mundial, o cenário mostrava um agravamento das relações
Leste/Oeste, com a manutenção da guerra fria, além de vários pontos de tensão, entre
eles a guerra da Coréia. Esta terminou com um armistício assinado no dia 27 de julho,
depois da morte de mais de três milhões de civis coreanos. O final do conflito não
acabou com os problemas na região.
Outro ponto de importância diz respeito ao fato de que, preocupados com a guerra
fria e a ameaça da URSS de utilizar a bomba de hidrogênio, que eles finalmente
detonariam em 12 de agosto, os Estados Unidos começariam a pressionar os “países
aliados” em busca de apoio e também para conter a expansão da influência soviética.
Este fato determinou que todos os países onde existissem interesses econômicos
americanos passassem a ser pressionados por medida estratégica, especialmente aqueles
com governos de tendência socialista ou comunista. Tais problemas adquirem
importância na revisão da caminhada de Guevara, pois muitos dos países onde ele
transitava e se formava politicamente na ocasião estavam sofrendo estas questões.
Entre eles estava a Guatemala, onde o governo progressista havia promulgado a
reforma agrária em 1952, nacionalizando as propriedades da United Fruit Co. no país,
passando a ser pressionado pelo governo americano.
Em Cuba, país que na ocasião era considerado ‘seguro’ pelos EUA, estavam
ocorrendo fatos que passariam a ter muito significado na vida de Guevara... No dia 26
de julho, um grupo de jovens armados tentou tomar de assalto o quartel de Moncada e
começar uma revolta para derrubar o governo do ditador Fulgencio Batista. Não tiveram
sucesso e seu atentado se transformou em um banho de sangue, devido às insatisfações
populares. O Partido Comunista Cubano negou participação no evento e após a
intervenção da Igreja Católica, Fidel Castro, então com vinte e seis anos e seu irmão
Raúl foram aprisionados.
Tendo Ernesto voltado ao Peru e se encontrado mais uma vez com Dr. Pesce,
reiniciou as conversas com o amigo que tanta influência estava exercendo sobre suas
idéias. Depois de algum tempo lá, achando que o ambiente estava ficando carregado
demais, os dois resolveram seguir viagem em direção ao Equador, aonde chegaram no
dia 28 de setembro.
Permaneceram lá mais tempo do que esperavam, pois Guevara estava se sentindo
bem com o grupo de amigos com quem estava convivendo então, compartilhando todas
as dificuldades. Ele dizia sentir falta deste tipo de relacionamento íntimo, que achava
não ter existido nem mesmo entre os membros de sua família. Em confidências com o
seu amigo Andro, falava muito de sua mãe, e ele pôde perceber que existia algum
problema de Ernesto em relação a ela. Anderson (1997), diz que:
...ela se cercou de poetas e tipos literários frívolos, mulheres que ‘são
provavelmente lésbicas’. Como Andro era mais velho do que Guevara, pôde
entender os comentários do amigo como expressão de seus sentimentos de
exclusão, e instintivamente sentiu que ele era um jovem solitário com
grande necessidade de afeto. (p.112)
Ernesto estava em dúvidas a respeito de que caminho seguir a partir de Guayaquil.
Por um lado, havia o convite de Andro para irem até a Guatemala, onde estava
acontecendo uma revolução de esquerda, que poderia em sua evolução determinar os
caminhos futuros de toda a América Latina. Do outro, estava o seu desejo de ir até
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Caracas para se encontrar com Alberto, que lhe havia prometido um emprego com bom
salário. Ernesto precisava muito de dinheiro, porque queria mandar sua mãe para Paris
em busca dos melhores tratamentos, pois temia que ela ainda não estivesse curada do
câncer. No final ele se decidiu pela ida à Guatemala.
Conseguiram um lugar no navio Guayos, que navegava no rumo norte e deixaram
finalmente o Equador no dia 31 de outubro.
Guevara passaria os próximos meses em andanças entre os países que compunham
‘o istmo da América Central’, todos eles, com a exceção da Guatemala, chamados de
‘repúblicas de banana’ e dominados pelos Estados Unidos.
O Panamá era escassamente um Estado soberano, desde a sua criação, devido à
necessidade de controle americano sobre o recém construído canal de Panamá, com sua
extraordinária importância estratégica e comercial ao garantir uma ligação rápida entre
os oceanos Atlântico e Pacífico.
Desde a década de 30 a Nicarágua vinha sendo governada pelo corrupto general
Anastasio Somoza García, que havia alcançado o poder depois de um golpe à base de
traição, que terminou com o assassinato do líder nacionalista Augusto César Sandino,
com a ajuda dos U.S.A.
El Salvador e Honduras eram pequenos e pobres países agrícolas, dominados por
oligarquias ou companhias americanas, como a United Fruit Co., dona de enormes
plantações de banana e proprietária dos portos e estradas de ferro de Honduras. Costa
Rica se constituía em exceção neste cenário de miséria, corrupção e subserviência a
países estrangeiros, pois desde a revolução reformista liderada por José ‘Pepe’ Figueres
havia conseguido melhores acordos comerciais que garantiam uma melhor situação
econômica para o país. O cenário era de tal maneira diferente na Costa Rica, que ela era
chamada de ‘a Suíça da América Central’.
Cabe neste ponto a observação dos diferentes resultados que a atitude honesta e
voltada para o bem comum de um país, por parte de um governante determina.
Pode-se dizer que este cenário de pobreza era comum a todos os países do Caribe,
dominados por regimes coloniais, com a exceção de Cuba, da república Dominic ana e
do Haiti. Mudavam as bandeiras e os dialetos, permanecendo imutáveis as condições
sub-humanas da vasta maioria da população, determinadas principalmente pelo saque
indiscriminado dos recursos nacionais feito por dirigentes corruptos e despóticos.
Guevara chegou ao Panamá acompanhado por ‘Gualo’ e começaram seus contatos
na cidade, procurando o cônsul argentino e amigos na Universidade. Alguns desses o
encaminharam a editorias de revistas locais e Guevara chegou a publicar alguns artigos,
de natureza acentuadamente crítica aos Estados Unidos e à sua política internacional.
No final de 1953, os amigos conseguiram finalmente vistos para transitar entre os
países da América Central e se dirigiram à Guatemala por terra e depois em um navio,
alcançando finalmente a capital da Costa Rica. Este país, já citado com exceção em
termos de desenvolvimento e melhores condições sociais, era o centro de encontro de
inúmeros exilados de países ditatoriais na América do Sul, Central e Caribe. Isto se
devia à atitude progressista e honesta de seu Presidente, que era respeitado pelo governo
americano, havendo conseguido um bom equilíbrio ao não nacionalizar interesses
americanos, mas exigindo acordos comerciais benéficos para a economia da Costa Rica.
Sua política ‘middle group’ garantira estes verdadeiros feitos, “porque abolira o
exército, nacionalizara os bancos, estendera o controle estatal sobre a economia, mas
deixara intactos os interesses comerciais estrangeiros.” (Anderson1997, p.119)
Outros políticos conhecidos por suas posições democráticas eram Victor Raúl
Haya de la Torre, do Peru, Rómulo Betancourt, ex-presidente da Venezuela e Juan
Bosh, da República Dominicana, estes dois últimos exilados na Costa Rica. Ao manter
contatos e conversas políticas com estes líderes, pode-se dizer que Guevara iniciou sua
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formação política no sentido de ouvir, comparar e criticar não só idéias, mas ações
políticas, de homens que exerciam ou já haviam exercido o poder na região.
Depois de uma trajetória errante, Guevara chegou à Guatemala no dia 24 de
dezembro de 1953. Percebeu logo que o país, que mostrava ao mundo uma realidade de
‘cartão postal’, com o povo feliz trabalhando em harmonia, na verdade escondia uma
situação muito parecida com a da Argentina, com uma vasta maioria de nativos
miseráveis vivendo e trabalhando para uma elite branca ou mestiça, chamada ‘creole’.
Os latifúndios agrícolas pertenciam a estas minorias ou à onipresente American Fruit
Co. A situação havia sofrido uma grande mudança a partir da deposição do ditador
Ubico por Arévalo em 1940, prosseguindo com as transformações implementadas pelo
coronel Jacobo Arbenz, de tendência esquerdista e que realizou a reforma agrária,
assinada por ele em 52, resultando na tomada dos latifúndios das citadas oligarquias e
da companhia americana. Ao desagradar de uma só vez interesses nacionais egoístas e
americanos, Arbenz granjeou o ódio e as ações desestabilizadoras de importantes
políticos da administração americana, incluindo os irmão Dulles, que eram o secretário
de Estado e diretor da CIA, respectivamente. Estes funcionários do governo tinham
estreitas relações com companhias e bancos americanos e para defender todos estes
interesses começaram a pregar abertamente uma intervenção militar na região, com
financiamento de United Fruit Co. e fundamentação estratégica da CIA. Este ‘modus
operandi’ se tornaria um padrão de intervenção nas décadas seguintes.
O clima de confrontação aberta na Guatemala, presenciado por Guevara, resultou
no que ele chamaria mais tarde de ‘sua conversão’. Este importante episódio na vida de
Ernesto merece um registro especial. Ele dizia que em determinada noite, sob o céu
estrelado de uma pequena aldeia do interior, foi tocado pelo discurso de um exilado
político soviético, e suas palavras, semelhantes a tantas já ouvidas antes e que não lhe
haviam causado maior impressão, desta vez representaram ‘uma revelação’. O orador,
que havia vivido experiências semelhantes em muitos aspectos às do próprio Guevara,
com muitas aventuras e viagens, falou: (Anderson, 1997)
O futuro pertence ao povo, que pouco a pouco, ou de um só golpe,
tomará o poder, aqui e no mundo inteiro. A coisa ruim é que eles terão que
se tornar civilizados, mas isto só acontecerá depois que tomarem o poder, ao
custo de grandes sacrifícios e que custarão vidas inocentes. Ou talvez não,
talvez não sejam inocentes porque terão cometido o enorme pecado contra a
natureza, que significa a falta da capacidade de adaptação...Todos eles,
todos os inadaptáveis, como você e eu, morrerão amaldiçoando o poder que,
com enorme sacrifício, ajudamos a criar..Em sua forma impessoal, a
revolução dominará nossas vidas, e talvez utilize a memória daqueles que
ficarem como exemplos como um instrumento de domesticação para a
juventude que virá depois... Você morrerá com o punho fechado e a
mandíbula tensa, em uma perfeita demonstração de ódio em combate,
porque você não é um símbolo (algo inanimado que se toma como
exemplo), você é um símbolo vivo de uma sociedade que desmorona...e que
é a mesma que lhe sacrifica (...) agora eu sabia que eu, o eclético dissecador
de doutrinas e psicanalista de dogmas, urrando como um possesso, assaltarei
as barricadas ou trincheiras, molharei a minha arma com sangue e, em fúria
louca, cortarei as gargantas de meus inimigos que caírem em minhas mãos. (
p.124)
Esta passagem, de um diálogo com um personagem que nenhum dos amigos de
Guevara reconhece como alguém real que tenha cruzado o seu caminho, na verdade
parece mostrar a atmosfera conturbada e violenta que dominava o mundo interno de
Ernesto naquele momento. Desse mundo ainda envolto em sombras, emerge um
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personagem que começa a se reconhecer e, fruto desse momento de insight, consegue
entrever o futuro. Premonitoriamente, o Che vislumbra sua morte e de certa maneira um
pouco do uso futuro que viria a ser feito de seu exemplo e de sua vida.
‘Notas à margem’, o texto que inclui este relato, “deve ser visto como um
testemunho pessoal decisivo, porque os sentimentos que mostrava em breve emergiriam
da penumbra de seus pensamentos submersos para encontrar expressão em suas ações
futuras”. (Anderson,1997, p.125, meu grifo)
Os meses seguintes repetiriam em grande medida a rotina anterior de procurar
contatos, trabalho, arranjar alojamento e comida. Entretanto, a Guatemala representaria
na vida de Che o lugar de um outro encontro, além do já relatado, dele com sua porção
não adaptável e violenta.
Ernesto conheceu Hilda Gadea, que viria a ter grande importância em sua vida.
Ela era uma refugiada peruana, baixa, de aspecto pesado e feições de índia e que
aparentava mais idade do que os ‘vinte e tantos anos’ que na verdade tinha. Naquela
ocasião trabalhava no governo de Arbenz. Logo Hilda estava tomada de admiração por
Ernesto, que mal olhava para ela, pois seus interesses estavam em fazer contatos
políticos, seja para fazer o seu aprendizado prático, seja para legalizar sua situação no
país, em relação a trabalho, seja para movimentação entre os países da região.
A Guatemala era naquela ocasião um local de encontro para exilados e refugiados
políticos de vários países, representando o lugar ideal para as atividades que Guevara se
decidira a realizar. Cada vez mais sua natureza interior e seus projetos e visão de mundo
buscavam expressão. Em suas respostas às cartas de sua família começava a aparecer
um tom cada vez mais duro, menos conciliador, como se ele estivesse tentando através
da distância e da vida solitária vencer as influências que vinham deles.
Ernesto e ‘Gualo’, com sua boa aparência logo granjearam a admiração de moças
de boas famílias, com pais importantes na política local mas, apesar de serem
assediados por elas, não demonstravam maior interesse.Uma delas disse: “Pouco a
pouco, percebi que os argentinos, especialmente Ernesto, preferiam falar com Hilda
porque ela podia discutir política.” (Anderson, 1997, p. 131)
Além dessa comunhão de interesse político, Hilda era uma pessoa bem
relacionada e “generosa com seu tempo, seu dinheiro e seus contatos e apareceu na vida
de Ernesto em um momento em que ele precisava de todas estas
coisas.”(Anderson,1997, p.131)
Discutiam vários temas sobre os quais estavam em freqüente desacordo, pois
Guevara apreciava a filosofia existencialista de Sartre e era conhecedor da obra de
vários psicanalistas, incluindo entre eles Freud, Adler e Jung. Hilda não gostava de
Freud, achando que ele fazia uma interpretação sexual da vida e foi a responsável pela
aproximação de Guevara com a política de Mao e a revolução chinesa. A partir destas
noções sua visão da realidade e dos caminhos para transformá-la se tornaram cada vez
mais marxistas, embora ele, por aquela época, não tivesse se declarado formalmente
comunista.
No que diz respeito à política na Guatemala, estavam se acentuando naquele
momento (janeiro de 1954), as ações americanas visando desestabilizar o governo
Arbenz. O processo que se instalaria no local pode ser visto hoje, retrospectivamente,
como o modelo que foi seguido em toda a América Latina, Central e no Caribe,
derrubando os governos de tendência esquerdista ou comunista, aqueles considerados
progressistas ou, na verdade, todos os que contrariassem interesses comerciais
americanos. Como resultado destas ações se instalariam ditaduras militares em quase
todo o continente, com a perda de liberdades e direitos civis e a perpretação de grande
violência.
Na Guatemala, as ações americanas, sob a direção e instrumentação logística do
Departamento de Estado e da CIA incluíam a movimentação de agentes, a disseminação
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de informação divisionista e mesmo o envio de armas e aviões, armazenadas em países
vizinhos, para uma futura invasão.
Em termos do relacionamento com Hilda, que continuava como um ‘jogo de gato
e rato’, parte dos sentimentos que ela demonstrava por ele se deviam , segundo o texto
de Anderson, a sentimentos maternais que a fragilidade física de Ernesto lhe provocava.
Pode-se dizer que da parte de Guevara, algumas das suas necessidades fossem de
natureza análoga, representando uma nostalgia não reconhecida de sua família e uma
necessidade de maternagem. Entretanto, estes sentimentos delicados e profundos eram
negados por ele, que só conseguia ver o cabo de guerra entre eles, com Hilda querendo
conquista-lo a qualquer preço e ele se utilizando dela, achando-a uma mulher feia e
impertinente, e a enganando com uma enfermeira chamada Julia Mejía.
Ao saber que Ernesto estava com possibilidades de arranjar finalmente um
emprego como médico e ir trabalhar no interior, Hilda brigou com ele exigindo algum
tipo de compromisso. Guevara relata que ela teve um sonho “no qual mostrava
claramente suas intenções sexuais comigo e eu, mesmo sem ter sonhado, tive um ataque
de asma. Até que ponto o ataque de asma é uma fuga de algo, eu gostaria de saber.”
(Anderson,1997, p.139)
Neste momento Ernesto parecia estar tentando alguma forma de autoconhecimento, aplicado também a questões políticas, pois fazia uma análise de seu
relacionamento com os exilados políticos cubanos, como Ñico Lopez, fazendo
comparações entre eles. Guevara se perguntava se não lhe faltava a determinação e o
amor pela revolução demonstrado por Ñico, imaginando se a asma não poderia ser
também seu modo de fugir de tal comprometimento.
Naquele ponto Guevara falava de sua relação afetiva: (Anderson, 1997)
Hilda declarou o seu amor por mim de forma epistolar e prática. Eu
estava com um grande ataque de asma, senão teria tido relações sexuais com
ela. Eu a avisei que tudo que eu poderia lhe oferecer era um contato
ocasional, nada definitivo. Ela pareceu muito embaraçada. A cartinha que
ela me deixou ao sair era muito boa. Pena que ela seja muito feia. Ela tem
vinte e sete anos. (p.140)
Diante das renovadas dificuldades para trabalhar, Guevara se sentia frustrado e
irritado, achando que Hilda era um ‘pé no saco’ e falando de sua vontade de sumir no
mundo ‘talvez para a Venezuela’. No entanto, não tinha dinheiro para nada, e recebeu
algumas jóias de Hilda para pagar vários meses de pensão e uma passagem para o
interior.
O clima político se agravava e em abril a igreja católica lançou uma carta pastoral
denunciando a presença do comunismo no país e conclamando os fiéis a se levantarem
contra o governo, seguindo orientações e acordos feitos entre a CIA e o Arcebispo
Mariano Rossel Arellano.
Guevara começava cada vez mais a se dar conta do que aconteceria no país,
tendo-se decidido sair de lá caso não conseguisse seu visto de permanência. Esta
poderia ser mais uma desculpa para ‘o não comprometimento’ a que ele havia se
referido.
Nesse meio tempo os EUA preparavam a invasão do país, utilizando-se do
incidente envolvendo o navio cargueiro sueco Alfhem, que estava trazendo da Polônia
um carregamento de armas checas para o governo Arbenz e foi descoberto e denunciado
pela CIA para acelerar o processo. O episódio foi utilizado como “evidência” do
envolvimento soviético no processo, o que na realidade não estava ocorrendo, para
justificar a invasão da Guatemala com base na necessidade de evitar a consolidação de
“uma ditadura comunista” na América Central. No final de maio, com todo o cenário
para a invasão preparado, Guevara saiu para o interior do país, para passar o final de
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semana na vila de San Juan Sacatepéquez junto com Hilda. Esta seria a primeira vez em
que eles passariam a noite juntos. Poucos dias depois Ernesto saiu do país, dirigindo-se
a El Salvador.
Ele voltaria algum tempo depois, reencontrando-se com Hilda, depois de ter
trabalhado “fazendo esforço físico, sujo de asfalto e poeira da cabeça aos pés, cansado,
mas feliz”. (Anderson, 1997, p.146)
O clima na capital estava completamente paranóide naquele momento, com todos
aguardando a invasão iminente. Os cubanos, como Ñico Lopez e outros se preparavam
para fugir do país em direção ao México. No dia 14 de junho Guevara comemorou seu
vigésimo sexto aniversário e dois dias depois mercenários americanos começaram a
voar em missões de bombardeio sobre a Guatemala. No dia 18 começou a invasão, com
Castillo Armas cruzando a fronteira no comando do bisonho Exército de Libertação,
composto por quatrocentos homens.
Já no início de julho, graças a todas as medidas militares e de inteligência
realizadas pelos americanos, a ‘operação sucesso’ merecia seu nome. O presidente
Arbenz renunciou e procurou asilo na Embaixada mexicana, enquanto Guevara
continuava a trabalhar como médico, atendendo os combatentes na capital. A medida
em que a vitória dos conspiradores se consolidava e os comunistas, simpatizantes ou
progressistas começavam a ser perseguidos e presos, Ernesto se manteve escondido em
casas de amigos, indo e voltando da embaixada Argentina, até que, finalmente, buscou
asilo oficial lá.
Nas semanas seguintes, envolvido no clima tedioso e depressivo dos refugiados,
Guevara piorou bastante da asma. Hilda se dirigiu duas vezes à Embaixada, mas não
conseguiu entrar, pois havia uma severa vigilância no local. No final de agosto, já com o
salvo-conduto de refugiado político, Guevara pôde deixar a Embaixada e uma das
primeiras coisas que fez foi procurar por Hilda. Sua atitude era ambivalente, pois ao
mesmo tempo em que se relacionava com ela, fazia planos para cair na estrada outra vez
em direção ao México, falando de seus projetos de modo ameaçador e ambíguo. Ora lhe
prometia casamento quando se encontrassem no futuro, ora dizia querer desaparecer.
Seu relacionamento com Hilda “havia se tornado uma via crucis”. Em meados de
setembro, Guevara finalmente atravessou a fronteira da Guatemala, dirigindo-se à
cidade do México.
Nessa época, meados dos anos cinqüenta, o México continuava a ser o local pleno
da efervescência cultural que se iniciara nas décadas de 30 e 40, com a chegada ao país
de refugiados políticos da revolução espanhola e da segunda guerra mundial. Na esteira
desse movimento de homens que representavam idéias e sistemas políticos conflitantes,
vieram artistas de diversos meios de expressão. Esta movimentação cultural determinou
uma explosão de artistas mexicanos, como Frida Khalo, Orosco, Siqueiros e Diego
Rivera. Entre os estrangeiros, podem ser citados Artaud, Breton e os americanos da
geração beat Kerouac e Burroughs.
É importante falar da intersecção entre a política, que estava realizando um
processo de nacionalização no país e mostrava-se um cenário de confrontação
americano-soviética e as artes, com movimentos de vanguarda cultural. Estes universos
freqüentemente se mesclavam no plano teórico e também no individual. Frida Khalo,
por exemplo, havia sido amante de Leon Trotsky, assassinado em 1940 pelo espião
stalinista Ramón Mercader, que havia penetrado no círculo íntimo do russo e o matou
com um golpe de picareta na cabeça. Este era o clima de intrigas e de mistério que
dominava o país naquela ocasião e chegou a ser chamado de ‘era romântica’. Não
poderia haver evento mais significativo do eclipse deste período da vida no México do
que:
a última aparição em público de Frida Khalo, no dia 2 de julho de
1954. Naquele dia frio e úmido ela e seu marido, Diego Rivera
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compareceram a um evento de protesto contra a deposição do presidente
Arbenz em golpe tramado pela CIA...Lá, por longas horas, Khalo, em sua
cadeira de rodas, juntou-se à multidão que gritava ‘gringos asesinos, fuera!.
Com a mão esquerda, segurava uma bandeira com a pomba da paz,
enquanto com a direita fechava o punho em desafio. Poucos dias depois a
sua saúde se deteriorou e onze dias mais tarde, em 13 de julho, a artista de
47 anos morreu. (Anderson,1997, p.161)
Lá, Ernesto trabalhou como fotógrafo e correspondente da Agência Latina, vigia
noturno e também pesquisador em alergia no Hospital Pediátrico e também no Hospital
Geral. Estava engajado nessas diversas atividades quando Hilda Gadea o reencontrou, e
eles reiniciaram o seu relacionamento em bases semelhantes às anteriores.
Quanto à evolução política de Guevara, foi também no México, local onde os
exilados cubanos ligados a Fidel Castro se reuniram para montar o quartel general do
que viria a ser a futura invasão de Cuba, que ele os reencontrou e se tornou íntimo.
Seu amigo Ñico Lopez o informou dos planos para invadir a ilha e derrubar o
ditador Batista. Guevara ficou muito excitado com a perspectiva de afinal lutar pelas
causas em que acreditava.
No plano de trabalho, apesar de estar empregado, suas economias mal davam para
o seu sustento. Hilda apareceu com a proposta de casarem e disse que ela o sustentaria,
mas Ernesto recusou. Apesar disso, manteve sua relação com ela, passando depois a
ficar em sua casa, em uma rotina que podia ser chamada de doméstica. Ficavam
estudando e Guevara usava os bons relacionamentos de Hilda com exilados de diversos
países para continuar seu aprendizado prático de política. Corria o ano de 55 e no mês
de maio os dois resolveram consagrar sua união durante um fim de semana em
Cuernavaca.
Enquanto isto os acontecimentos políticos em Cuba se aceleravam, tendo o
movimento liderado por Castro finalmente adquirido o nome de Movimento de 26 de
julho, com a eleição de um diretório nacional. Poucos dias depois da chegada de Fidel à
cidade do México no dia 7 de julho, Guevara se encontrou com ele e foi convidado
durante um jantar a se juntar à guerrilha. Aceitou o convite imediatamente, pois havia
finalmente encontrado a causa pela qual lutar.
Foi a partir destes encontros iniciais e de seu relacionamento cada vez mais
estreito, que Ernesto começou a ser chamado por seus companheiros cubanos de ‘Che’.
A despeito de grandes diferenças entre eles, Che e Fidel também compartilhavam
algumas semelhanças. “Ambos eram provenientes de grandes famílias, bastante
mimados, descuidados com a aparência e vorazes sexualmente. Eram homens para
quem as relações vinham em segundo plano diante de seus objetivos”. (Anderson,1997,
p. 178)
Os dois iniciaram longas discussões sobre a invasão e o futuro de Cuba, a respeito
do qual não tinham dúvidas de que iriam influir. Trocavam idéias sobre o modelo
político que seguiriam para trazer os benefícios e mudanças econômicas para o povo,
discordando freqüentemente, mas concordando no essencial. Ambos queriam dedicar
suas vidas à transformação do mundo e serem protagonistas da história.
Em poucos dias Che já estava seguro de seus objetivos o bastante para informar
Hilda de sua decisão de fazer parte da invasão rebelde de Cuba. Pouco depois ela o
informou que estava grávida.
Motivado por um sentimento de dever, mas bastante contrariado com a situação,
Ernesto escreveu:
Para outro homem esta poderia ser uma situação transcendental; para
mim é um episódio desconfortável. Eu vou ter um filho e casar com Hilda
dentro de poucos dias. A coisa teve momentos dramáticos para ela e pesados
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para mim. No final, ela fez as coisas de seu modo - pelo menos do modo que
vejo, mas por pouco tempo, embora ela pense que será para a vida toda.
(Anderson, 1997, p.180)
Este relato é muito importante, para definir as circunstâncias nas quais Ernesto se
casou, assim como as conseqüências futuras daquele envolvimento. No dia 18 de agosto
ele e Hilda se casaram no cartório da vila de Tepozotlán. Saíram pouco depois em
viagem de lua de mel e os relatos posteriores que fizeram mostra a diferença de
sentimentos entre eles. Hilda, falando de 15 dias de ‘incomparável felicidade por
estarem juntos no meio de tanta beleza’, enquanto Guevara não cita seu nome nem uma
só vez.
Passaram-se os meses e no dia 15 de fevereiro de 56 nasceu Hilda Beatriz,
primeira filha de Guevara. Ele parou de escrever o seu diário, com a observação de que
pretendia se encontrar com seu amigo Alberto na Venezuela, o que nunca chegou a
acontecer. Envolveu-se cada vez mais com os preparativos logísticos para a invasão,
que incluíam treinamento militar, capacitação física, levantamento de fundos e
articulação com ações armadas e propaganda em Cuba. As ações sofreram nova e
intensa aceleração após a prisão de Fidel, Guevara e quase todo o grupo de
conspiradores cubanos pela polícia mexicana, em junho de 1956. Havia também a
procura frenética de um barco que pudesse levar os guerrilheiros na etapa final e que
terminou em fins de setembro ao encontrarem um barco de registro americano, o
Granma, de 38 pés e bastante avariado. O barco não era adequado para navegar em mar
aberto com segurança nem era grande o bastante para levar todos os combatentes. No
entanto, Fidel aceitou as condições de venda impostas pelo proprietário, devido à
urgência de conseguir transporte.
Para que tivessem alguma chance de sucesso na invasão, Fidel contava com o
apoio do Movimento 26 de julho na região oriental de Cuba, assim como a manutenção
da data e do local de desembarque em absoluto segredo.
Na escuridão antes do alvorecer do dia 25 de novembro, Che Guevara estava entre
o grupo de homens que se acotovelava para embarcar no Granma. Começava naquele
momento seu caminho em direção à revolução.
A estrada se mostraria muito mais acidentada do que o previsto, porque o
desembarque havia sido notado pelo governo e os enfraquecidos combatentes foram
recebidos em terra por uma emboscada que quase os dizimou completamente. Naquela
tarde Che foi ferido a bala no pescoço. Com muito esforço, apenas 22 homens
remanescentes dos 82 desembarcados conseguiram se reunir e alcançar a Serra. Era o
início de dezembro. As próximas semanas mostrariam o avanço doloroso dos
combatentes através da Sierra Maestra, com Che aguçando o seu proverbial destemor ao
ponto da temeridade. Ao sofrimento dos combates, no caso de Che, se somava o
provocado pela asma. Muitas vezes indefeso durante os ataques, ele contava apenas com
o auxílio de seus camaradas para sobreviver. Entretanto, na vida em comunhão da Sierra
“ a interdependência determinada pela necessidade de sobrevivência era mútua (...)
possivelmente tenha sido este sentido de compartilhamento que tenha lhe dado a intensa
reverência pessoal pelo ethos da vida de guerrilha”. (Anderson, 1997, p.242)
Se foi durante as lutas nas montanhas que Ernesto se encontrou com a sua
natureza de combatente e de revolucionário de modo radical e irreversível, seria na
fase final dos combates que ele se reuniria com aquela que se tornaria a expressão de
seu encontro com o amor.
Aleida March tinha 24 anos e os apelidos agressivos que lhe haviam dado- cicatriz
e peito manchado- não condiziam com a realidade. Ela era uma bela mulher loura,
descendente de imigrantes empobrecidos vindos da Espanha. Andaluzes, bascos e
galegos. Dizia-se que seus familiares tinham ascendentes nobres, mas estes fatos nunca
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foram confirmados. Tendo entrado para o movimento revolucionário praticamente ao
mesmo tempo da chegada do Granma, ela fazia parte do movimento subterrâneo, sendo
conhecida por seu destemor e audácia, pois levava bombas e armas debaixo das saias.
Depois de várias missões como correio entre Santa Clara e o acampamento dos rebeldes
onde Che estava, seu disfarce foi descoberto e ela teve que permanecer lá, contrariando
as regras que não permitiam a presença de mulheres.
Em meio de grandes lutas, progressivamente vitoriosas, Che caminhava para
provocar a derrota final de Batista. Foi em algum momento durante este período que
Aleida e Che se tornaram amantes. Ela mesma se recordava do fato:
Era uma noite em que eu estava sem sono. Do meio do escuro
apareceu um jipe dirigido por Che. Ele disse; eu vou atacar Cabaiguán.
Você quer vir comigo? Eu disse que sim e subi no jipe. Daquele momento
em diante eu nunca mais saí de seu lado ou o perdi de vista.
(Anderson,1997, p.361)
Apesar de suas divergências políticas com Aleida, Che foi irremediavelmente
atraído pela sua coragem, provada muitas vezes em batalha e talvez “por sua
personalidade paradoxal, muito parecida com a do Che. A um tempo tímida e também
dotada de um agudo e saboroso senso de humor.”
Ela também era sincera e direta, e quando era necessário falava sem se importar
com ser tática, de modo muito parecido como de Ernesto. Seja como for, daí para a
frente os dois sempre estiveram juntos, até que durante a batalha de Santa Clara algo de
muito significativo ocorreu, como fala Anderson (1997):
Cercado de morte por todos os lados, é uma reação humana normal
procurar a vida, e mesmo Che não era imune a este instinto; no meio da
batalha ele se deu conta de que tinha se apaixonado por Aleida. Como ele
lhe contou depois, esta percepção ocorreu no momento em que ela saiu de
seu lado e atravessou a rua debaixo de fogo pesado. Por alguns instantes ela
ficou fora de sua visão e ele ficou agoniado, sem saber se ela havia
alc ançado o outro lado em segurança. Quanto a ela, sabia muito bem o que
sentia por ele desde aquela noite em que subiu e sentou a seu lado no jipe.
( p.368)
Enquanto o amor dos dois se solidificava no combate, solidariedade e admiração
mútua, na noite de 1 de janeiro de 1959 o ditador Batista estava voando para o exílio na
República Dominicana.
No dia 2 de janeiro, com Aleida a seu lado, Che se dirigiu a Havana para a
libertação. No meio do júbilo coletivo, Ernesto estava pensativo, porque sabia que estes
eram apenas os primeiros passos da grande luta que se desenhava adiante.
As lutas se efetivaram em várias frentes, interna, com a oposição sistemática ao
regime que se instalava tímida e às vezes vacilantemente, com atitudes ainda veladas de
adesão ao socialismo e mais ainda de filiação ao comunismo. Do ponto de vista
externo, seguia -se a tradicional organização de interesses imperialistas, capitaneados
pelos EUA e que visavam a derrota da revolução e a restauração dos negócios
internacionais na ilha. Estes, como em todos os países, estavam aliados a interesses
locais de minorias.
No front pessoal, a vida de Guevara corria entre o estabelecimento e consolidação
dos laços da nova família e a permanência de conflitos resultantes da separação de Hilda
e a profunda hostilidade que se instalou entre ela e Aleida. Ernesto sofria com estas
questões.
Pode-se dizer, abreviadamente, em face das limitações impostas pelos objetivos
deste texto, que tanto Guevara, em maior percentual, quanto o regime cubano, ao longo
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do tempo, sofressem com a confrontação de idéias com seus principais aliados e
mantenedores, os russos e seu modelo centralizador, rigidamente hierarquizado e
antidemocrático de administração. Pode-se somar a estes fatos, o agravamento do
panorama político internacional que levou da situação de confronto endêmico e perigo
latente para a crise dos mísseis. Ao longo do ano de 1962 efetuaram-se intensas e
prolongadas conversações na Rússia, aparentemente para definir estratégias de apoio
econômico, logístico, tecnológico e militar ao governo de Fidel. O interlocutor entre os
dois governos era Alexandr Alexiev, residente em Cuba e conhecido de Guevara e de
Fidel desde os tempos do México. No final de maio, numa reunião com o Premier
Khrushchev e altas autoridades, Alexiev ouviu: “Camarada, para ajudar Cuba e para
salvar a revolução cubana nós chegamos à decisão de colocar mísseis nucleares lá. O
que você pensa? Como Fidel vai reagir? Aceitará ou não?” (Anderson, 1997, p.525)
O contexto mais amplo e verdadeiro das atitudes soviéticas dizia respeito à
decisão americana de colocar mísseis na Turquia, o que já havia sido feito. Durante
meses as negociações continuaram, com diversos problemas ocorrendo. Até o final de
agosto os acordos ainda não haviam sido assinados e Che suspeitava das intenções
verdadeiras dos russos. Em 31 de agosto, Guevara foi a Moscou acompanhado por uma
delegação e sendo estreitamente vigiado pela Inteligência americana. Ao chegar de volta
a Cuba, no dia 6 de setembro, os novos aviões U-2 de espionagem americana já haviam
detectado a presença dos mísseis SAM-2 e as instalações de defesa costeira.
Na verdade Cuba estava aprisionada no meio de uma guerra de interesses que
extrapolava em muito as necessidades e os problemas do país.
Vigiado a cada passo pelos americanos, que tomaram a iniciativa de convocar
150.000 reservistas, Guevara concluiria dentro de poucas semanas o acordo com os
russos, “que ele definiria ‘como um gesto de muita importância’ e levaria o mundo ao
limiar de uma guerra atômica.” (Anderson,1997, p.530)
O episódio receberia o nome de ‘crise dos mísseis de outubro’ e terminou como
uma decepção para Che e os cubanos, sendo ao mesmo tempo mais um aprendizado do
maquiavelismo dos políticos internacionais. Enquanto os cubanos se preparavam para
morrer defendendo o seu território, Khrushchev fazia um acordo de paz com o
presidente Kennedy, “por trás das costas de Fidel”.
Por estas razões, tanto Guevara quanto Fidel foram desenvolvendo em segredo o
conceito de que precisavam agir independentemente, não só firmando as posições do
governo de Cuba, como estimulando e participando de movimentos guerrilheiros de
emancipação em outros países. Em dezembro de 1961, Julio Roberto Cáceres, apelidado
de ‘El Patojo’, um jovem guatemalteco que era amigo e protegido de Che, saiu
secretamente de Cuba para organizar uma guerrilha em seu país. Guevara instrumentava
e incentivava estas ações, enquanto observava os acontecimentos e aguardava a sua
vez.
Em março de 62, quando recebeu a noticia da morte em combate de seu velho
amigo ‘Patojo’, Guevara começou a pensar em sair de sua posição de observador para
entrar na guerra. Como ele disse no final de 62, “o sangue do povo é nosso tesouro mais
sagrado, mas deve ser usado para salvar o sangue de mais pessoas no futuro.”7( apud
Anderson, 1997)
Por seu lado, Fidel Castro tornou estas atividades, que eram tão importantes para
Guevara, uma política de governo nessa ocasião. Cuba, que estivera por trás de
atividades guerrilheiras, abertas ou subterrâneas em diversos países latino-americanos,
inclusive a Argentina, agora declarava abertamente sua posição.
7
Guevara, E.,Tactics and Strategy of Latin American Revolution, 1962.
38
Aleida não queria que Guevara partisse, mas sabia que isto aconteceria desde que
o havia conhecido durante a guerrilha cubana. Ele havia deixado isto claro logo de
início.
Por essa ocasião o casal tinha a filha Aliusha, de cabelos escuros como Che,
Camilo, nascido em maio de 1962 e que era uma mistura das feições do pai com o
cabelo louro da mãe, e no dia 14 de junho de 1963, trigésimo quinto aniversário de Che,
nasceu a terceira filha, que eles chamaram de Célia, em homenagem à mãe de Guevara.
“A homenagem era mais significativa, porque naquela ocasião Celia madre estava na
prisão na Argentina, acusada de ser uma agente de seu infame filho.” (Anderson,1997,
p.561)
Depois de sair da prisão, a vida de Celia não seria mais a mesma. “Ela ainda tinha
seu círculo de amigos, suas atividades políticas, mas tinha se fechado em sua vida de
um modo muito privado e solitário.” (Anderson,1997, p.564)
De modo muito peculiar, ela estava como que efetuando uma revisão de sua vida e
de seus pontos de vista políticos. O fato de ser a mãe de um revolucionário conhecido,
temido e mitificado em todo o mundo havia trazido sérias conseqüências para a vida dos
Guevara. “Perseguição política, atentados e prisão haviam entrado em suas vidas. A
simbiose que havia tido com Che durante vários anos se restaurou nessa ocasião.”
(Anderson, 1997, p.564)
Quanto a Che Guevara, sua crença no modelo soviético havia entrado em declínio
há muito tempo. Aborrecido com a ineficiência, obsolescência e baixa qualidade do
ferramental e maquinário soviéticos, Che se dava conta de que a ruptura com os
americanos e o conseqüente bloqueio econômico trariam resultados dolorosos. Para seu
amigo de sempre, Alberto Granado, segundo Anderson (1997)
o mal estar de Che era devido à sua descrença atual no modelo
soviético que numa época havia abraçado com tanta ingenuidade e fervor,
chegando a acreditar que fosse a solução para todos os problemas do
mundo. Mas, em 1963 e 64, quando ele finalmente se deu conta de que eles
o tinham estado enganando – e você sabe que Che não suportava que
mentissem para ele - então aconteceu a sua reação violenta. (p.565)
Segundo Sartre disse na ocasião, a lua de mel revolucionária de Che, havia
acabado desde 1960. Do ponto de vista pessoal, ele era um homem quase chegando à
meia idade, cheio de responsabilidades, com quatro filhos e que estava ficando gordo.
Aleida também havia ganhado peso devido às gestações seguidas. Com tantos
problemas, segundo relatos de seus colaboradores mais chegados, Che foi se tornando
progressivamente mais rigoroso e dedicado aos seus estudos, em uma espécie de
isolamento dentro de casa. Por essa ocasião ele havia se tornado ‘Che, o implacável’.
Enquanto defendia e organizava movimentos subterrâneos de guerrilha na
América Latina, sua situação em Cuba se complicava. A sua atitude de defesa
incondicional da luta armada, em oposição à estratégia soviética de conciliação e de
convivência pacífica com os EUA o transformou de ícone da revolução em um grande
embaraço e suspeito de aliado e defensor da China, no momento a grande rival
ideológica da Rússia. Um agente da KGB foi designado para vigia-lo já no final de
1962.
A hora em que deixaria Cuba se aproximava. Em março de 64 Che estava em uma
conferência sobre comércio e desenvolvimento que acontecia em Genebra, quando
soube do desbaratamento do foco de guerrilha na Argentina, liderado por seu velho
amigo Masseti. Todos haviam sido mortos, inclusive seus dois mais próximos
discípulos, o já citado Masseti e Hermes. Por volta do verão de 1964 Guevara decidiu
deixar Cuba para estabelecer a guerrilha. A pergunta era aonde? Sua decisão foi pela
39
Bolívia, e para lá ele enviou a espiã Tânia, de origem alemã e que vinha sendo treinada
há bastante tempo. Sua missão seria preparar o terreno para a chegada de Che Guevara.
Nesse ínterim, sentindo as pressões resultantes do bloqueio americano, Fidel, em
uma série de entrevistas a Richard Eder, correspondente do New York Times, ofereceu
suspender a ajuda cubana aos movimentos de guerrilha na América Latina caso as
hostilidades contra Cuba fossem suspensas. Fidel havia aprendido as lições de
maquiavelismo político.
Por seu turno, segundo Anderson (1997),
Che tinha encontrado um sentido, uma forma de felicidade em sua própria
vida e em sua identidade como um revolucionário, dentro da família maior do
socialismo. Existe um paralelo discernível entre sua própria experiência- a
ânsia por camaradagem de sua própria luta da juventude, culminando na sua
adoção do marxismo como seu credo e sua descoberta do verdadeiro
companheirismo no vórtex da guerra e guerrilha – e a metodologia para
conseguir a consciência revolucionária que ele então pregava. A natureza
fraternal da vida de guerrilha na qual os homens são unidos por uma causa
comum, a despeito de suas diferentes origens, ligados pelo desejo consciente
de sacrificar a si mesmos enquanto encaram a dupla perspectiva de morte
iminente ou vitória final, era a caldeira visível da própria transformação de
Che, experiência que o havia cristalizado como homem. (p. 605-606)
A realidade, entretanto, não estava de acordo com esta forma de dedicação e de
sacrifício pregada por Che e vivida por ele em seu cotidiano. Para ele, que acreditava
ser o referido sacrifício pessoal uma questão fundamental para uma educação
comunista, os embates com a realidade política estavam se tornando muito dolorosos.
Em uma conversa íntima com dois personagens não muito bem vistos pelo regime,
Alberto Mora e o poeta Heberto Padilla, com os quais mantinha ligações de amizade a
despeito das pressões, Guevara revelou o estado de ânimo em que se encontrava:
(Anderson,1997)
Che caminhou lentamente até Alberto, colocou as mãos em seus
ombros e o sacudiu, olhando diretamente para os seus olhos. ‘Eu vivo como
uma pessoa partida em duas, vinte e quatro horas por dia, completamente
dividido em dois, e eu não tenho ninguém a quem dizer isto. Mesmo que eu
tivesse, nunca acreditariam em mim.’ (p.608)
Ele voou para a Rússia em novembro de 1964, tendo várias das mais importantes
personalidades do governo cubano comparecido a seu embarque, assim como Aleida,
grávida do último filho dos dois. Nas conversações que manteve com a cúpula dirigente
comunista, ele perceberia de modo claro e insofismável que a forma de luta armada
defendida por ele e por Fidel como instrumento revolucionário na América Latina
estava em frontal desacordo com a orientação do partido comunista. A diretriz emanada
do comitê central era de respeito às determinações dos partidos comunistas regionais, e
esta era a de coexistências pacífica com os americanos. (Anderson, 1997, p.615)
Ao voltar para Cuba, Guevara mal compareceu às reuniões do congresso do
partido comunista e já estava resolvido a abandonar seus cargos no governo. Sua
próxima missão seria a de comparecer à Assembléia Geral das Nações Unidas, na qual
fez o famoso discurso no dia 11 de dezembro. Nele, Guevara fez uma eloqüente
condenação do colonialismo, do intervencionismo americano e defendeu as guerras de
guerrilha na América Latina.
De Nova Iorque, de onde saiu no dia 17 de dezembro, Guevara se dirigiu ao
continente africano, onde permaneceria em uma ‘viagem de odisséia’ que o levou a
diversos países, à China, com passagens por Paris, pela Irlanda e por Praga e de volta à
40
África, até fevereiro de 1965. De volta a Cuba, aonde chegou no dia 15 de março, Che
recebeu a proposta de Fidel Castro de ser o líder de uma expedição revolucionária ao
Congo. Aleida, mais uma vez não estava de acordo, e mostrou-se aborrecida,
principalmente porque havia dado à luz o último filho, que se chamou Ernesto como o
pai e nasceu no dia 24 de fevereiro, enquanto ele ainda estava na África. Nos quinze
dias seguintes Guevara desapareceu dos olhos do público, mantendo apenas contato
com amigos íntimos. Estava preparando sua nova identidade, em uma surpreendente
transformação física. A Aleida, que estava muito triste e preocupada, Guevara prometeu
que se encontrariam ‘assim que a revolução chegasse a um estágio mais avançado’.
“Na madrugada do dia 1 de abril de 1965, ele deixou a casa onde havia vivido os
últimos oito anos não mais como Guevara, mas como o sonolento e barbeado homem de
meia-idade, usando óculos e que se chamava Ramón Benitez.” (Anderson, 1997, p.629)
Esta seria a última vez que eles veriam Che Guevara com vida.
2.2 – Aspectos da vida de Winnicott
A análise do material biográfico referente a Winnicott seguirá o traçado esboçado
no início do capítulo II. A leitura orientar-se-á pela busca de aspectos relevantes de sua
vida (para minhas intenções com o texto) , buscando articula -los com as circunstâncias
em que se desenvolveram, fazendo o que defini como leitura seletiva. Começaremos da
casa, onde tudo começa (seguindo proposta do próprio Winnicott), com olhos voltados
para o ambiente e para as situações existenciais que cercaram o crescimento de nosso
personagem, na esperança de encontrar as fundações intersubjetivas de seu
desenvolvimento e de algumas de suas singularidades.
Donald Woods Winnicott, último filho de John Frederick e de Elizabeth Martha
Woods Winnicott nasceu no dia 7 de abril de 1896, em Plymouth.
Cerca de 50 anos antes de seu nascimento seu avô paterno “havia fundado a firma
“Irmãos Winnicott, Mercadores e Exportadores” na George Streeet”. (Khar, 1997, p.2)
Os negócios da empresa se expandiram enormemente, atingindo diversos setores e
incluindo a produção “de doces e confeitos variados (Fuller, 1987), entre os quais
estavam os Winnicott Sweets, de boa fama local.” (apud Khar, 1997, p.3)
A família de Winnicott era bastante religiosa, sendo membros da Igreja Metodista,
na qual Frederick desempenhou diversas funções até chegar a participar do Sínodo. O
pai de Winnicott era um homem enérgico e dedicado ao trabalho e além disso também
envolvido com questões ligadas à prestação voluntária de serviço público. Por estas
atividades de natureza social recebeu o “título de Cavaleiro da ordem dos Knight
Bachelors ,...título antigo e valioso criado no século XVII pelo rei James I.” (Khar,
1997, p.3)
Devido às múltiplas atividades que era obrigado a desempenhar e que incluíam os
negócios da empresa, além das já citadas tarefa sociais, o pai de Winnicott não dispunha
de muito tempo para ficar em sua casa e se relacionar com ele, “deixando o filho
rodeado por esse verdadeiro exército de mulheres: mãe, irmãs, tias, babás, governanta,
copeiras e as diversas parentes que viviam do outro lado da rua.” (Khar, 1997, p.5)
O universo infantil de Winnicott foi povoado por estas mulheres, que o mimavam
de todas as maneiras. Como participava intimamente das vidas e do cotidiano da
maioria delas, desde menino foi desenvolvendo uma aguçada percepção do universo e
dos sentimentos femininos, fato que viria a ter muita importância futura em sua
concepção do desenvolvimento humano.
Khar (1997, p.7) acredita que tamanha e incomum imersão de um menino no
mundo feminino tenha “marcado de forma indelével o desenvolvimento psicológico de
Winnicott e gerando nele uma forte identificação feminina.” O mesmo autor cita que ele
“detestava o som de sua própria voz - o legado de uma infância repleta de um número
excessivo de mulheres. Em seu livro Clinical Notes on Disorders of Childhood ressalta
41
que: “Às vezes, um menino na puberdade não consegue utilizar o novo poder de sua
fala masculina, falando em falsete ou imitando, inconscientemente, a voz de uma
mulher ou menina que conhece.”
Esta vida bastante protegida e abrigada, externamente, o colocava a salvo de
dificuldades, mas parecia carregar em seu interior um conflito essencial ligado à
depressão de Elizabeth Martha.
Se levarmos uma vez mais em conta o universo emocional, cultural e social que
cerca o desenvolvimento de um futuro criador, podemos entrever estas relações iniciais,
quase que exclusivamente com mulheres, nas concepções psicanalíticas que Winnicott
viria a formular. A sua visão do desenvolvimento humano e os conflitos gerados na sua
evolução têm uma moldura diferente da matriz edípica freudiana. Naturalmente,
Winnicott concentrou o seu olhar nas relações mãe-bebê.
Outros pontos significativos de seu desenvolvimento inicial e que viriam a ter
importância em sua vida e, mais uma vez na construção de sua visão como psicanalista,
foram o respeito que todos em sua casa demonstravam pela liberdade de opinião,
mesmo em assuntos de natureza religiosa, e o fato, já citado, de sua mãe ter sido uma
mulher deprimida. O primeiro teria a ver com a sua insistência posterior na necessidade
da aquisição de uma visão pessoal de mundo e o segundo com a sua advertência para os
perigos da atribuição prematura de responsabilidades aos filhos. Esta última situação
parece ter sido determinante de um sentimento de responsabilidade culposa em relação à
mãe que ele desenvolveu e que o levou a dizer anos mais tarde que seu pai o havia
deixado: “demais com todas as minhas mães. As coisas nunca se consertaram
totalmente.” (citado em Clare Winnicott, 1978; Khar, 1997, p.12)
Esta infância plena de atividades, era especialmente marcada pelo fato de
Winnicott brincar com intensidade com ‘suas primas e irmãs’ além de ter muitas de suas
necessidades não apenas atendidas, mas antecipadas. Já adulto, ele escreveria a esse
respeito:
“Lembro-me de que, quando tinha quatro anos, acordei na manhã de Natal
e descobri que havia ganhado um carrinho de mão suíço, desses que as pessoas de
lá utilizam para levar lenha para casa. Como é que meus pais sabiam que era
exatamente isto o que eu queria?” (Winnicott,1962c, apud Khar, 1997, p.9)
Este episódio, tão marcado na mente adulta de Winnicott, pode muito bem ter
representado no ponto da infância onde ele ocorreu o sentimento de que existia uma
união mágica entre a criança e os seus cuidadores, resultando no sentimento de uma
ação onipotente da qual a criança fosse parte constituinte.
Apesar de ter feito a reclamação já citada do seu escasso envolvimento com seu
pai, seria ele o responsável por outro acontecimento marcante na vida de Winnicott.
Quando este quebrou o nariz da boneca de suas irmãs em um momento de raiva, foi o
seu pai quem a consertou, usando calor para remodelar o rosto do brinquedo. Este fato
parece ter exercido forte efeito sobre o espírito de Winnicott, além de lhe ter fornecido o
que mais tarde seria utilizado na teoria como a esperança de sobrevivência à agressão.
“Winnicott (1970c) viria a crer, mais tarde, que a possibilidade de expressar hostilidade
sem aniquilar o objeto de nossa fúria é de importância vital.” (Khar, 1997,p.9)
Esta passagem parece demonstrar o que foi pensado por Storolow e Atwood e
citado no capítulo I, ao falarem da abordagem clínico-interpretativa e da matriz
intersubjetiva de onde emergem e se estruturam as características do sujeito. Incluí nesta
avaliação também o que virá a ser representado no futuro como produções teóricas dos
personagens históricos estudados.
Khar (1997, p. 9) acredita que até mesmo o futuro interesse de Winnicott em
trabalhar com pacientes violentos e delinqüentes possa ter sido em certa medida
influenciado por este episódio.
42
A liberdade de opinião garantida a Winnicott e já citada antes, pode ter se
mostrado também no fato de ele ter conseguido romper com a tradição, que mandava
que o filho seguisse os negócios do pai. Ele pôde estudar medicina e conseguiu se
formar como psicanalista. No texto de Khar é feita uma análise dos motivos que
poderiam ter levado Winnicott a se tornar pediatra e mais tarde dirigir seu interesse para
a psicanálise. O aspecto mais importante diz respeito, mais uma vez à depressão de sua
mãe. Embora nunca tenha reconhecido este fato em seus trabalhos, já idoso, com 67
anos, escreveu um poema sobre ela e o enviou a seu cunhado, James Britton,
perguntando: “Você se importaria de dar uma olhada nesta minha ferida?” (p.11)
O poema citado inicialmente em Phillips, dizia:
Mamãe lá embaixo chora
chora
chora,
Assim a conheci.
Um dia,deitado em seu colo
Como nesta árvore morta, agora
Aprendi a faze-la sorrir
a estancar suas lágrimas
a desfazer sua culpa
a curar sua íntima morte.
Alegrá-la era a minha vida.8
Segundo o texto de Khar, o que se depreende deste poema é que realmente a mãe
de Winnicott sofresse depressões periódicas e que ele tenha sido bastante afetado por
elas. Isto poderia ter tido tanta influência sobre sua personalidade, que tenha sido o
pano de fundo para sua decisão de se tornar psicanalista, sua escolha de estudar
preferencialmente as relações mãe-bebê e mesmo a escolha posterior de uma mulher
bastante enferma mentalmente como sua esposa. Esta decisão viria lhe trazer “vários
anos de angústia e tormento.” (Khar, 1997, p.14)
Com relação a sua formação escolar, Winnicott cursou um colégio preparatório em
sua cidade, tendo obtido sempre um bom rendimento. Quando tinha 12 anos ocorreu um
episódio significativo. Durante um jantar em família, ele falou a palavra ‘danação’, que
foi considerada chocante e inadmissível por seu pai. Diante disso, foi tomada a decisão
de enviar Winnicott para um internato, o que viria a acontecer mais tarde, segundo
Khar, (1997):
Em setembro de 1910, alguns meses após o seu décimo –quarto
aniversário. Sem dúvida, o fato de ter sido expulso da casa da família
contribuiu para o seu interesse profissional em rupturas e choques capazes
de interromper a continuidade dos vínculos de uma criança.. (p.15)
Com a mudança para o internato, Winnicott não apenas deixou um mundo
essencialmente feminino, passando a viver em outro, quase exclusivamente masculino,
como perdeu condições de vida bastante confortáveis, que foram substituídas por outra
bem simples. Seu alojamento era “na casa Norte “B”, uma das construções residenciais
mais amplas e espartanas”. (Khar, 1997, p.17)
Podemos imaginar o impacto que estas situações novas e cumulativas tenham
exercido sobre o seu espírito. Ele mergulhou com intensidade na vida escolar e se
dedicou com empenho em atividades esportivas. Duas figuras presentes em seu
desenvolvimento neste ponto foram James Edgar Mellor,
e o lendário professor
William H. Bargarnie. O primeiro, conhecido como Jesse, era ex-aluno de Leys e havia
8
Phillips, A. , Winnicott, Harvard University Press, Cambridge,1988, p.29.
43
se tornado seu Diretor depois de fazer carreira
ocupando diversos cargos que
desempenhou com dedicação e entusiasmo. Segundo Khar (1997, p.17), Winnicott
“teria desfrutado da proteção do jovem Diretor.” O biógrafo citado não faz comentário
dos motivos e circunstâncias que levaram Winnicott a receber tal proteção, mas relata
que Mellor talvez tenha influenciado seu aluno na escolha da escolha da faculdade de
Cambridge onde estudaria. Khar relata, também sem fazer comentários, que Jesse, que
tinha duas irmãs como Winnicott, e “depois de aposentar-se, solteiro, foi morar com
elas, levando uma vida tranqüila e reservada.” O segundo, Prof. Balgarnie, era um
profissional tão espetacular “que serviu de modelo para o imortal personagem literário
“Mr.Chips”, protagonista do romance clássico de James Hilton, que havia estudado na
escola entre 1915 e 1918.” (Khar, 1997, p. 16) Embora Winnicott não o tivesse admitido
publicamente, Khar acha que Balgarnie possa ter tido influência sobre ele na aquisição
de alguns de seus aspectos carismáticos.
Em contato com diversos professores convidados, que faziam palestras às cinco
horas aos sábados, abordando temas variados, Winnicott teve informações a respeito da
obra de Darwin, que ele mais tarde reconheceria como importante em seu próprio
desenvolvimento intelectual como psicanalista. (Khar, 1997, p.23)
O desenvolvimento de Winnicott e sua melhor adaptação à escola pôde ser
evidenciado no período letivo seguinte, que se iniciou em 18 de janeiro de 1911, “pois
seu nome passou a aparecer com mais freqüência no oj rnal da escola.” Ele começou a se
envolver cada vez mais em atividades esportivas, destacando-se como corredor e entrou
para o coral.
Alguns fatos são pontuados por Khar em seu relato sobre este período. Em um
deles conta: “Não havendo meninas na escola, os alunos celebraram o dia de São
Valentim mandando mensagens de amor secretas entre si, seguindo a tradição
homoerótica das escolas públicas britânicas do início do século.”
Outro fato importante ocorreu no dia 6 de julho, “considerado ‘Dia dos discursos
anuais’, para o qual nada menos do que mil convites foram enviados a familiares e
dignatários.” (Khar, 1997, p.25)
Dois de seus amigos foram premiados e diversos de seus familiares compareceram
à festa. “Infelizmente Winnicott não recebeu nenhum prêmio, e seus pais não
compareceram ao evento. Talvez Frederick Winnicott tenha preferido dedicar seu tempo
às atividades municipais de Plymouth.” (Khar, idem) O autor resume seu comentário da
falta de participação da família de Winnicott, principalmente seu pai, com fina ironia
britânica.
A já referida influência de Darwin sobe Winnicott se acentuou com o tempo e
ainda segundo Khar (1997):
Donald Winnicott sempre observaria as crianças com muito cuidado,
assim como Darwin havia feito com as diferentes espécies. E Winnicott, da
mesma forma que Darwin, sabia tolerar o não saber – atributo essencial para
um psicanalista que poderia ter que esperar muitos anos para que os
pacientes revelassem os seus segredos mais profundos. (p. 29)
Depois de se formar na escola Leys Winnicott tomou a decisão de ir estudar
medicina. Para tal matriculou-se na Universidade de Cambridge em 1914, entrando para
o Jesus College, que fornecia estudos em biologia, zoologia, fisiologia e anatomia. Saiu
de lá com um “medíocre certificado de bacharel em Artes”. (Khar,1997, p.34)
Como estagiário de medicina Winnicott trabalhou em hospitais militares e, ao
completar 21 anos em 1917 resolveu se alistar e lutar na guerra, tendo entrado para a
marinha. Já perto do final do conflito,saiu da força naval para completar seus estudos de
medicina, o que fez na Faculdade de Medicina do Hospital St. Bartholomew,
considerado um dos melhores do país.Durante os seus estudos lá, Winnicott teve como
44
professor o Dr. Thomas Jeeves Horder, “que mais tarde se tornaria Lord Horder, o
primeiro Barão Horder de Ashford, um dos mais célebres e destacados médicos do séc.
XX.” (Khar, 1997, p.38)
A influência deste professor sobre a carreira de Winnicott foi extraordinária, pois
ele era um homem que valorizava a relação médico-paciente em uma época em que
pouco se falava disso. Ainda durante a sua formação médica Winnicott adoeceu com um
abcesso no pulmão e teve que ser internado no hospital onde estudava. O anonimato e a
indiferença a que foi submetido foram decisivos para a sua compreensão do papel de
paciente, e o quanto as pessoas nesta condição necessitavam de carinho e de atenção.
Winnicott se formou em 1920, e ainda durante o curso travou contato com a
psicanálise, tendo–se encantado com o livro ‘A interpretação dos Sonhos’. Apesar de
ter achado que a psicanálise viria a fazer parte de sua vida, ele se decidiu por fazer
especialização em pediatria. Em sua prática, o trabalho como consultor do hospital
Paddington Green se tornou o cerne de sua experiência clínica, e ele permaneceu
trabalhando lá durante 40 anos, até a sua aposentadoria em 1963. (Khar, 1997)
É de importância notar que Winnicott, ao publicar seu primeiro livro de artigos
reunidos para psicanalistas escolheu chamá-lo ‘Through Paediatrics to Psycho-analysis’,
em uma clara admissão da importância de sua prática como pediatra para a sua
formação como psicanalista. (Khar, 1997, p.48)
O ano de 1923 foi importante na vida de Winnicott, pois ele começou a trabalhar
em dois hospitais renomados e se casou com Alice Buxton Taylor no dia 27 de julho.
Como já foi dito antes, esta união se mostraria catastrófica, pois sua mulher era bastante
perturbada mentalmente e “tomar conta dela lhe tomou toda a juventude”. (Khan, 1987,
apud Khar, 1997)
Em parte devido a seus conflitos e dificuldades no casamento com Alice, ele
procurou tratamento psicanalítico, tendo se consultado com o Dr. Ernest Jones ainda em
23. Embora não se possa saber com certeza que problemas o teriam levado à análise,
podemos afirmar que ela durou muito, pois tomou cerca de 15 anos de sua vida.
Entre as especulações sobre suas dificuldades , Khar (1997) diz:
Talvez Winnicott tenha sofrido, em parte, de algum tipo de conflito
psicossexual. Numa vergonhosa violação da ética, seu primeiro analista,
James Strachey, insinuou a sua mulher Alix Strachey, que Winnicott tinha
problemas com a ereção, ou talvez um terror profundo à genitália feminina.
Alix Strachey (1924, p.166), em resposta, imaginou se ele “fod** a sua
mulher assim de repente” (“would f-ck his wife all of a sudden”). ( p.53)
Khar (1997) continua dizendo que:
É difícil avaliar este tipo de evidência mas , considerando-se a
violação do sigilo por James Strachey, os numerosos rumores e suspeitas
entre os psicanalistas, e o fato de que Winnicott não tenha tido filhos em
seus dois casamentos, supor que ele sofresse de impotência não seria
irracional. (p.54)
Estes aspectos não interferiram significativamente na atividade profissional de
Winnicott, apesar das dificuldades não resolvidas em seu tratamento, em parte por
problemas de “contransferência maligna” de seu analista. Em seu relato da
personalidade e da vida de Strachey, Khar fala que ele não se adaptou ao curriculum do
Hospital St. Thomas, tendo abandonado a faculdade depois de apenas três semanas de
aulas. Ainda segundo Khar, Strachey havia tido comportamento homossexual “ao
menos durante a sua juventude”, pois se apaixonou pelo poeta Robert Brooke e lhe
confessou seu amor. Diz ainda que Winnicott, seu contemporâneo na Universidade,
45
deve ter tomado conhecimento da orientação sexual de Strachey, que tinha uma
“aparência afetada e postura afeminada”. Diversos psicanalistas sabiam que o casal
Strachey não havia se unido “com base na atração genital”. O mesmo autor citado
acredita que Winnicott deva ter sentido “considerável ansiedade homossexual durante
os primeiros meses desse tratamento tão íntimo com Strachey”, questionando se este
teria as qualificações emocionais e clínicas para lidar “com um caso de impotência em
um paciente predominantemente heterossexual”. Foi com base nestas situações que
Khar se referiu, na citação feita antes, à transferência maligna que teria ocorrido.
Sua análise com Strachey durou dez anos, e como episódio emocional
significativo ocorrido durante este período temos a morte de sua mãe, que ocorreu em
1925. É relevante notar que, de 1926 até 1935, ano em que escreveu o trabalho ‘A
defesa maníaca’, Winnicott tenha escrito 30 trabalhos (Abram, 1996, p. 286), muitos
deles não versando sobre questões psicológicas. O trabalho citado foi escrito depois que
Winnicott entrou em contato com a obra de Melanie Klein,9 além de ter iniciado
supervisão com ela, que durou de 1935 a 1941.(Rodman, 1987b, apud Khar, 1997)
A obra de Klein, com seu foco nas experiências emocionais ocorridas durante o
primeiro ano de vida, representou não apenas numa abertura epistemológica em relação
à teoria psicanalítica clássica, mas teve uma influência decisiva sobre o futuro da
produção teórica e clínica de Winnicott. Ele tentou iniciar uma segunda análise com
Klein, mas, diante de sua recusa, foi encaminhado a Joan Riviere, com quem se analisou
aproximadamente por mais seis anos. Este tratamento também teve alguns problemas,
tendo-se tornado “no fim das contas uma experiência um tanto decepcionante”. Riviere
tinha “forte personalidade” e era “assustadora” (Rycroft, 1993, apud Khar) e era uma
mulher de grande estatura e energia. Infelizmente para Winnicott ela se comportou de
forma anti-profissional, “fazendo comentários cáusticos sobre a personalidade de
Winnicott em reuniões públicas de organizações profissionais”. (Khar, 1997, p.73) Ela
teria chegado a dizer que Winnicott “só faz teoria a partir da própria doença”. Khar
coloca este comentário sob restrição, “devido à personalidade volátil de Khan”,
concedendo, entretanto, que as lembranças das conversas dele com Winnicott possam
ser reveladoras da animosidade entre Donald e Riviere. Além do mais, os problemas
entre eles ficaram também registrados em algumas cartas. Numa delas, Riviere confessa
“ter sentido muita raiva de Winnicott”.
O tempestuoso relacionamento entre Winnicott e Joan Riviere continuou ao longo
do tempo, exacerbando-se a medida em que ele se tornava mais firme e independente
em suas formulações científicas. Enquanto Klein centrava o seu olhar sobre o mundo
interno do bebê, Winnicott se preocupava, cada vez mais, com a influência do mundo
externo, representado pelo ambiente familiar, sobre o desenvolvimento infantil. A
hostilidade de Riviere, uma das analistas mais próximas de Melanie Klein, expressavase de forma clara, pois segundo relato de Khar, quando Winnicott lhe disse que
estava pronto para escrever um livro sobre o ambiente, ela respondeu:
‘escreva um livro sobre o ambiente e eu o transformo em um sapo!’ É claro
que ela não usou estas palavras, veja bem, mas foi assim que o que ela disse
repercutiu em mim. (Padel,1991, apud Khar, p. 76)
Também Bowlby, outro grande pesquisador da importância do meio ambiente
para o desenvolvimento infantil, assunto sobre o qual escreveu textos clássicos, e que
também havia sido analisado por Riviere disse que ela “...tinha a forte convicção de que
a psicanálise não se preocupava de forma alguma com os eventos externos”. (Hughes,
1991, apud Khar, 1997, p.77)
9
Klein, M., The Psychoanalysis of Children, Hogarth Press, London, 1932.
46
Aparentemente, muito mais estava em jogo do que uma animosidade pessoal ou
problema de personalidade de Riviere em sua oposição a Donald Winnicott. O campo
em que estes problemas ocorriam, era o de uma disputa acirrada pela supremacia teórica
na concepção do desenvolvimento humano.
Freud10 já valorizava desde o início de seu trabalho
a observação direta de crianças, apesar da desvantagem de trabalhar
com dados que podem ser mal entendidos; a psicanálise se torna difícil pelo
fato de que só pode alcançar seus dados, assim como suas conclusões,
depois de longos desvios. Mas pela cooperação entre os dois métodos pode
obter um grau satisfatório de certeza em suas descobertas. (p.201) (meu
itálico)
De certa forma, pode-se dizer que Freud neste pequeno trecho estivesse
valorizando a realidade, apesar de no conjunto do texto, segundo Phillips, (1988)
Freud não ver uma conexão necessária entre o instinto e seu objeto,
para o qual substitutos podem ser facilmente encontrados. Nesta visão, a
criança e mais tarde o adulto, tem sua ligação primária com o instinto e sua
satisfação e não com uma relação específica (...) Em outras palavras, a
dependência foi imaginada por Freud como uma concessão por parte da
criança. Ela chega, em um estado quase de desapontamento, a uma
percepção tardia da mãe, que é literalmente um objeto de alívio para a
tensão nascida do desejo. O infante é concebido como sendo em sua origem
um hedonista explorador e onipotente. (p.8)
Embora esta citação merecesse uma análise em profundidade, pois representa o
que eu tenho pensado como um viés de incompreensão parcial de alguns aspectos da
teoria freudiana, este objetivo extrapola o alcance da proposta deste texto. Assim,
ficaremos com o relato histórico que registrou a teorização freudiana em oposição
frontal a diversos autores que o sucederam, buscando uma transformação paradigmática
que valorizasse especificamente a ação do meio ambiente.
A matriz relacional entra em foco a partir do trabalho pioneiro de Melanie Klein
com crianças e a mãe entra em cena na compreensão do desenvolvimento emocional do
bebê, especialmente a partir dos trabalhos de Winnicott. Entretanto, a diferença
fundamental entre o seu trabalho e o de Klein e seus seguidores, residia no fato de que
ele pensava que o bebê procurava uma pessoa, em busca de contato e de encontro, para
além de gratificação instintiva através do objeto. Este ponto é compartilhado por vários
autores pós-freudianos.
Então, as controvérsias ocorrendo no seio da Sociedade Britânica extrapolavam
questões pessoais, porque tinham como pano de fundo, como já foi dito, algo muito
maior- a própria constituição do sujeito.
Ainda segundo Phillips (1988),
Era o papel essencial da mãe proteger o self do infante; os instintos
serviam ao self, na visão de Winnicott. Eles não o constituíam. Era o ‘self
que devia preceder o uso do instinto pelo self’: o cavaleiro deve dirigir o
cavalo, não ser dirigido por ele.’ O trabalho da mãe era permitir que isto
acontecesse. Freud havia dito que o cavaleiro deveria guiar o cavalo na
direção em que o cavalo quisesse ir. Ele tinha pré- ciência de que a sua
insistência no papel central e subversivo da sexualidade iria ameaçar a
lealdade de todos à psicanálise. (p. 9-10)
10
Freud, S., Three Essays on Sexuality, The Standard Edition, Hogarth Press, 1978, vol. VII.
47
Winnicott liderou, embora não formalmente, o grupo chamado de ‘Middle Group’
na Sociedade Britânica. Segundo Phillips (1988) este era :
Comprometido como pluralismo mais do que como culto ao herói,
sendo o seu trabalho convergente ao redor de um modelo mais eclético de
desenvolvimento. Proveniente, falando amplamente, mais de uma tradição
empírica do que dialética, seu trabalho era caracterizado por um interesse
na observação e na empatia, em uma suspeita a respeito da abstração e do
dogmatismo, assim como na crença de que as pessoas possuíssem uma
habilidade para se fazerem entendidas e conhecidas. (p. 11)
Esta visão da essência do trabalho psicanalítico como sendo a busca e a
experiência de relações intersubjetivas, não hierarquizadas, chega até as escolas
contemporâneas que explicitaram esta forma de entendimento do desenvolvimento
humano.
Winnicott, que havia se qualificado como membro associado em 1934, tornou-se
apto para a psicanálise de crianças em 35 e finalmente membro pleno, com a
apresentação do já citado ‘A defesa maníaca’ em 1936. Tornou-se didata em 1940.
Parece que a longa formação e os esforços empreendidos por Winnicott para
completá-la, além da elaboração de suas dificuldades em análise tenham desenvolvido e
integrado alguns aspectos de sua personalidade. A realidade fez a sua parte, tanto na
integração quanto na explicitação de dificuldades ainda presentes. Em dezembro de
1948 o pai de Winnicott faleceu e ele teve o seu primeiro acidente coronário, após o
qual diversos se seguiram ao longo dos anos. Talvez não seja por acaso que um dos
seus mais importantes trabalhos, ‘A mente e sua relação o psicossoma’ tenha sido
escrito em 1949.
Durante a guerra, período no qual trabalhou para o governo na transferência de
crianças para o interior, Winnicott conheceu Clare Britton, com quem trabalhou e viria a
se casar em 1951. A admiração que ele parecia demonstrar por Clare abrangia tanto
aspectos físicos e sexuais quanto profissionais. Ele escreveu junto com ela dois
trabalhos (Khar,1997): “The Problem of Homeless Clidren” (Winnicott & Britton,
1944) e “Residential Management as Treatment for Difficult Children” (Winnicott &
Britton, 1947), o que mostra a importância do seu relacionamento para Winnicott. Ele
raramente escreveria artigos junto com algum colega durante toda a sua vida
profissional.
Neste ponto de sua vida Winnicott parecia estar superando antigos conflitos. Isto
ficou demonstrado pela escolha de sua nova mulher, uma pessoa dinâmica e vivaz, de
forte personalidade e pelo fato de estar assumindo cada vez com mais energia atividades
científicas e profissionais.
Falando um pouco mais sobre Clare, que teria tanta importância no conjunto da
vida de Winnicott, “pois o novo casamento parecia se basear tanto na amizade e nos
interesses profissionais quanto na sensualidade”, sua energia era suficiente para
enfrentar Melanie Klein, com que se analisou. “Em uma determinada sessão, na qual
discordou de uma longa interpretação de um sonho dada por Klein, disse: ‘Como você
ousa tomar o meu sonho e jogá-lo na minha cara?’ , e foi embora.” (Grosskurth, 1986,
apud Khar, 1997, p.112)
Para que seja possível entender o significado deste gesto, é preciso contextualizar
a importância de Melanie Klein na ocasião. Era um gesto de extraordinária confiança,
pelo destaque que ela desfrutava na comunidade psicanalítica da época.
A presença de Clare na vida de Winnicott se revestiu de extraordinária
complexidade. Ela não apenas estimulou a sua criatividade, como já foi dito, como foi a
responsável pela sua própria sobrevivência. Khar (1997, p.113) cita que “Winnicott
48
disse inclusive a seu colega Peter Tizard (1971) que ele provavelmente teria morrido
vinte anos antes, caso não houvesse conhecido Clare.”
Em 1956 Winnicott se tornou presidente da Sociedade Psicanalítica Britânica,
passando a se sentar na cadeira que havia sido ocupada pelo próprio Freud. Muito
desenvolvimento emocional deve ter sido necessário para a realização deste gesto.
Coincide com seu casamento e vida em comum com Clare a produção de
importantes trabalhos científicos. Se, durante o casamento com Alice Taylor, ele havia
publicado apenas um livro, sobre pediatria, (Winnicott, 1931 a), na companhia de Clare
“ele foi capaz de produzir mais seis livros (...) e escreveu ensaios, palestras, e cartas
suficientes para completar mais doze volumes, que foram publicados postumamente.”
(Khar, 1997, p.114)
Deve-se ressaltar também que por este período Winnicott começou a fazer
palestras no rádio, através da rádio BBC e para as quais demonstrou possuir tremenda
habilidade, sobre a família, educação infantil e diversos temas de psicologia. A sua
iniciativa, pioneira em termos psicanalíticos, permitiu que seus ensinamentos atingissem
milhões de pessoas.
Em 1965, foi eleito e aceitou um segundo mandato como presidente da
Associação Britânica de Psicanálise. Além disso, continuou a trabalhar incessantemente
para ampliar a área de influência das psicoterapias, trabalhando bastante para promover
novas organizações.
Enquanto sua saúde se deteriorava, Winnicott continuava produzindo bastante, e
gozando de sua merecida fama. Sua agenda era muito ocupada e em 1966, na
comemoração de seu septuagésimo aniversário, um jantar de gala foi realizado em sua
homenagem, na “Mansfield House, sede da Sociedade Britânica de Psicanálise.Vários
analistas de destaque compareceram e James Strachey, (...) fez um discurso no qual
lembrou o jovem imprudente que o havia procurado cerca de quarenta anos antes.”
(Khar,1997, p.143)
Winnicott estava trabalhando arduamente para levantar fundos para a confecção
do busto de Freud, que havia posado para o eminente escultor Oscar Nemon.
Se por acaso Winnicott abrigava em seu coração desejos de reconhecimento pela
posteridade, não se sabe. Podemos dizer apenas que o futuro guardava este
reconhecimento, em forma de um busto feito pelo mesmo artista que havia esculpido o
de Freud. São eles os dois únicos a terem sido honrados com a reprodução de suas
imagens pela Sociedade Britânica de Psicanálise. O local e a importância de Winnicott
para a psicanálise podem muito bem ser definidos por esta proximidade.
CAPÍTULO III
PONTES ENTRE DOIS MUNDOS E DOIS HOMENS
3.1- Intersubjetividade, psicanálise e visão de mundo
As questões ligadas ao sujeito humano em seus diversos aspectos atravessam toda
a história e alcançam até mesmo a pré-história. Desde as cavernas, em período anterior à
aquisição da linguagem escrita, o homem registrava a sua relação com a natureza e com
seus semelhantes em desenhos que mostravam seu cotidiano, suas ações, suas crenças e
suas dificuldades.
Já neste momento, existia a necessidade de entender o mundo e a natureza na qual
a vida transcorria e, ao contemplar o por de sol, ou uma tempestade com relâmpagos e
trovões, o nosso ancestral poderia se perguntar o que regeria aqueles eventos, tão
desconhecidos e envoltos em um registro mágico. Manitu, deus dos índios americanos,
falava com eles através do trovão. Em um hipotético encontro e conversa entre nosso
49
ancestral e o homem de hoje, talvez um de nossos contemporâneos o olhasse com
desdém, pois o extraordinário desenvolvimento tecnológico alcançado pela humanidade,
possibilitou até mesmo que colocássemos os pés na lua, enquanto se processava o
mapeamento da imensidão do universo e das complexidades do genoma humano. Nosso
contemporâneo, brincando cada vez mais de criador, provavelmente olharia para o
homem primitivo com ironia ao discutirem sobre suas concepções da natureza, sem se
dar conta do quanto o avanço tecnológico possa tê-lo afastado da harmonia com mesma
natureza que havia aprendido a dominar e pretensamente entender. Este afastamento do
homem moderno do mundo natural foi esplendidamente mostrado pelo diretor japonês
Akira Kurosawa no filme ‘Derzu Uzala’. O progresso sem reflexão traz seu preço, que
pode ser a morte, como foi mostrado no filme em questão.
Se, por outro lado, a pergunta fosse em relação ao sentido da vida, o porque
vivemos e morremos, de onde viemos e para onde vamos e sobre a nossa necessidade de
compreensão, de carinho e de amor, as necessidades e a falta de certezas e de respostas
seriam bem parecidas. Duzentos mil anos são um grão de areia no tempo, e todo o
desenvolvimento trazido pelos últimos dois séculos, não conseguiu fornecer as respostas
para as questões fundamentais da existência.
A partir de uma definição filosófica (Japiassú & Marcondes, 2001), o sujeito
Na metafísica clássica, sobretudo em Aristóteles, é sinônimo da
substância do ser real, como suporte de atributos. Em teoria do conhecimento,
principalmente a partir de Descartes e do pensamento moderno, é o espírito, a
mente, a consciência, aquilo que conhece, em oposição ao objeto, aquilo que
é conhecido. Sujeito e objeto definem-se, portanto, mutuamente, como pólos
opostos da relação de conhecimento. (...) O sujeito psicológico ou individual,
quer dizer, cada ‘eu’ na medida em que tem consciência de uma unidade,
apesar da diversidade de seus pensamentos e percepções, não é foco de
interesse da filosofia. Só lhe interessa o sujeito universal ou epistêmico, o
sujeito do conhecimento; vale dizer, para o racionalismo, o conjunto de
propriedades da razão, universais e idênticas em todos os indivíduos. (p. 255)
Podemos observar a partir desta leitura de um texto contemporâneo, que o foco na
compreensão da questão do sujeito e da subjetividade ainda reside em uma oposição
entre sujeito e objeto e na suposição de objetividade que rege esta epistemologia
delimitada pela consciência. O mesmo texto, ao definir subjetividade diz que é “aquilo
que é pessoal, que pertence ao sujeito e apenas a ele, sendo portanto, em última
instância, inacessível a outrem e incomunicável.”
Como este não pretende ser um trabalho de abordagem filosófica, não será feita uma
revisão extensa a respeito da questão da subjetividade ao longo do tempo, contentandome com a citação seletiva de autores que, ao longo da história enxergaram o sujeito em
perspectiva diferente, situando-se em terreno próximo, em termos epistemológicos,
daqueles que viriam a escrever de forma maiúscula a respeito da compreensão do sujeito
em sua relação com o outro, ao mesmo tempo em que promoveram uma crítica ao
primado moderno da razão. Como exemplos, podemos citar Feuerbach, que rompeu
com Hegel em 1837, ao não reconhecer a supremacia da razão no movimento da história
e colocou o homem como tema central da reflexão filosófica, em lugar da idéia. (apud.
Zuben, 1977) quando diz:
O homem individualmente não possui a natureza humana em si mesmo nem
como ser moral nem como ser pensante. A natureza do homem não é contida,
somente, na comunidade, na unidade do homem com o homem, mas em uma
unidade que repousa na relação Eu e Tu. (p. xxv)
50
Feuerbach exerceu profunda influência sobre Martin Buber, sendo o autor mais
citado em sua obra seminal ‘Eu e Tu’, publicada em alemão em 1923. É fundamental que
se note que esta obra sobre a intersubjetividade e que a nomeia explicitamente, repete o
último trecho da citação de Feuerbach, nascido em 1807. Buber inicia o que seria
chamado de filosofia do diálogo. Sua concepção do homem não está radicada em um
princípio abstrato, sendo antes entranhada ao mundo concreto. “O homem está no
mundo, habita no mundo, encarnado nele, imanente a ele, limitado pelo espaço e pelo
tempo. O mundo serve de estrutura ao ser humano.” (Sidekun, 1979, p. 20)
Além disso, segundo o mesmo autor, o homem não é um ser- para- si, ele é
essencialmente um ser –no –mundo e seu princípio não é único, mas duplo. A
duplicidade está evidenciada na palavra princípio Eu-Tu, representando o homem e
aquilo que o confronta. “O mundo como experiência diz respeito à palavra princípio EuIsso. A palavra princípio Eu-Tu fundamenta o mundo da relação.” (Buber, ‘Eu e
Tu’,1977, p.6)
Para Buber, o homem é uma unidade de relacionamento humano. A verdadeira vida
do homem é a vida do homem com o outro. “Ser homem e humanidade realizam-se na
relação. É este o princípio da abertura do homem como ser no mundo. O homem é
essencialmente um ser de relação: Isso fundamenta a existência do outro.” (Sidekun,
1979, p.28)
Outro ponto fundamental da concepção buberiana da existência, além de sua
percepção da concreticidade (konkretenheit) da vida e de seu aspecto pessoal, é de que
ela não se constitui em ato cognitivo, sendo antes “a relação primordial que se estabelece
no homem.” (Sidekun, 1979, grifo meu)
Acontece em um estágio primordial da existência humana e é a atitude que a
consegue tornar plena. Esta busca de comunicação e de compreensão se realiza e revela
no outro, desde quando a linguagem ainda não é o meio primordial de comunicação.
“Uma criança, quando sorri e quando chora, logo apela para os que a cercam, e deles
espera uma resposta.” (Sidekun, p.46)
Para Buber (1977), portanto,
A aspiração da relação aparece claramente desde o estágio mais
primitivo da pessoa. Já antes de poder perceber algo isolado (separado), o
ser em desenvolvimento procura com seu olhar, seus gestos com os braços
no ar, algo como que indefinido. Seguramente, estes gestos visam a relação
(...) Pois, no começo, é a relação. (p.30-31)
Buber e os existencialistas contribuíram grandemente para o estudo da existência
do outro, que não acontecia na filosofia clássica. O homem passou a ser compreendido
em sua existência como um ser no mundo com.
Além do mais, foi reconhecido que o homem não está só em nenhum nível de sua
existência, permanecendo sempre em presença do outro, que participa de seu projeto de
vida.“Não podemos abstrair a existência humana da verdadeira relação intersubjetiva. A
existência do homem é afirmação da intersubjetividade, sempre no sentido pleno da
palavra, diante do homem concreto.”(Sidekun, 1979, p.68)
Define ainda o amor como a essência da relação intersubjetiva, concebendo-o, além
do mais como um acontecimento na história do homem.
Os sentimentos residem no homem, mas o homem habita em seu amor.
Isto não é uma simples metáfora, mas a realidade. O amor não está ligado ao
Eu de tal modo que o Tu fosse considerado um conteúdo, um objeto: ele se
realiza, entre o Eu e o Tu. Aquele que desconhece isso e o desconhece na
totalidade de seu ser, não conhece o amor, mesmo que atribua a ele os
sentimentos que vivencia, experimenta, percebe e exprime. O amor é uma
força cósmica. (...) Amor é responsabilidade de um Eu para com um Tu: nisto
51
consiste a igualdade daqueles que amam, igualdade que não pode consistir em
um sentimento qualquer, igualdade que vai do menor ao maior, do mais feliz
e seguro, daquele cuja vida está encerrada na vida de um ser amado, até
aquele crucificado durante sua vida na cruz do mundo por ter pedido algo
inacreditável: amar os homens. (Buber, ‘Eu e Tu’, p.17, apud Sidekun,1979)
Na apresentação do homem a partir desta perspectiva, podemos observar a
importância decisiva que a solidariedade verdadeira, alicerçada no amor, adquiriu ao
longo do tempo, determinando um sentido de consciência social. Ela ultrapassaria os
‘arcanos da própria consciência humana’, tornando-se a sua voz mais penetrante e forte.
A importância de Martin Buber na constituição dos conceitos e visão de mundo
visada por mim neste capítulo, parece ficar claramente marcada nestas citações.
Sintetizando sua cosmovisão, podemos dizer:
a) O homem só define sua própria existência em relação com o outro, chamado de
Tu.
b) A palavra princípio da existência é o par Eu-Tu, que constitui o homem como um
ser de relações.
c) O homem deve ser entendido a partir das situações cotidianas de sua existência,
de seu dia a dia.
d) O homem necessita para a sua constituição como Eu, um sujeito, da presença do
outro, mesmo quando ele não pode ainda ser percebido. Mais ainda, esta
necessidade o acompanha desde os momentos iniciais de sua vida, em completo
desamparo, até os seus momentos finais, freqüentemente também em desamparo.
Estas necessidades são trans e meta-culturais e estão acima de distinções de
gênero, raça e nível social.
O pensamento de Buber, embora que não reconhecido na bibliografia da maioria
dos textos de autores da intersubjetividade por mim consultados, guarda com seus
princípios, extraordinárias semelhanças, muito além da epígrafe de um texto de Donna
Orange 11, na qual cita: “Se o Tu é dito, o Eu da combinação Eu-Tu é falado junto com
ele.” (Buber)
Ressalve-se que a autora citada é um dos expoentes da escola da intersubjetividade,
tendo dado às questões clínicas e epistemológicas enorme consistência devido a sua
profunda formação filosófica. No texto referido ela iria estabelecer o conceito inovador
de co-transferência, que será mais bem definido adiante em seu significado clínico e
filosófico.
As origens da intersubjetividade como escola psicanalítica podem ser claramente
definidas cronológica e conceitualmente. Ela nasce de um grupo de psicanalistas
formados na psicologia do self, tendo tido em sua maioria estreitas relações com o
fundador desta escola, Heinz Kohut. Um número expressivo deles foi analisado por
Kohut e passou a trabalhar junto com ele em Chicago, em colaboração estreita e que
durou vários anos. Podemos citar especificamente os nomes de Stolorow, Atwood,
Brandchaft, Bacal, Wolf, Bash e outros, como os mais significativos, e que estão
presentes na maioria absoluta dos textos da intersubjetividade.
Esta denominação passou a ser utilizada depois da morte de Kohut, em 1981, em
trabalhos cuja cronologia pode ser traçada ao redor de meados da década de setenta.
Mais especificamente, com o trabalho de Stolorow e Atwood (1979) ‘Faces in a Cloud’.
Dependendo do ponto de vista de quem a descreva, a nova escola pode ser
considerada como uma evolução da psicologia do self, ou como uma dissidência. Esta
última parece ter sido a visão predominante na décima sétima conferência sobre a
psicologia do Self, realizada em Chicago em 1994, a qual eu compareci. O título
11
Orange, D.; Countertransference, empathy, and the hermeneutical circle, in The Intersubjective
Perspective, London, Jason Aronson, 1994.
52
principal do evento, o mais importante da escola fundada por Kohut, foi: “New Goals for
Self Psychology: The Changing Clinical Scene”.
Quais seriam então os novos objetivos pretendidos pelos autores citados, em sua reavaliação do legado de Kohut?
A relação dos trabalhos apresentados mostrava vários questionamentos a respeito
de aspectos fundamentais da teorização kohutiana, como por exemplo o self bi e tripolar, o conceito de selfobjeto e de transferência, assim como a compreensão e o
significado da empatia para o processo terapêutico. Porém, os temas mais importantes
pareciam versar sobre o seguinte foco: a determinação do que eles consideravam como
um novo paradigma na psicanálise e que seria “um campo ou sistema relacional mais
amplo, no interior do qual os fenômenos psicológicos se cristalizam e no qual a
experiência é constante e mutuamente desenhada.” (Stolorow; Atwood; Brandchaft,
1994, introdução)
Esta nova metáfora (Rorty, 1989) estaria em franca oposição à anterior,
paradigmática da psicanálise ‘tradicional’, que seria representada pelo ‘mito da mente
isolada individual’. Os autores dizem na mesma introdução:
Da perspectiva deste novo paradigma, o observador e sua linguagem são
considerados como intrínsecos ao observado (ver também Kohut, 1982,1984),
e o impacto do analista e de sua atividade organizadora no descobrimento da
relação terapêutica se torna, ela mesma, um foco da reflexão e investigação
analíticas. (...) os fenômenos psicológicos, temos repetidamente enfatizado,
não podem ser entendidos à parte dos contextos intersubjetivos nos quais
tomaram forma. (Atwood e Stolorow, 1984, p.64) Desse modo, o
determinismo intra-psíquico cede lugar a um inescapável contextualismo
intersubjetivo. (xi, introdução)
O conceito dos referidos autores a respeito do desenvolvimento psicológico
(Stolorow e Atwood, 1992, p.23) é o de que “a organização da experiência da criança
deve ser vista como uma propriedade do sistema criança-cuidador de regulação
mútua”. Vão adiante no tema, dizendo que todas a formas de psicopatologia devem ser
referidas ao contexto intersubjetivo, enfatizando a importância da particularização de
cada experiência.
À medida que se contrapõem ao determinismo intrapsíquico e ao conceito de mente
isolada individual, expressões históricas de uma epistemologia objetivista, os autores
desenham nova visão que pode ser definida como ‘perspectivalista’. Nessa alternativa
ao impasse dicotômico entre realismo e subjetivismo, os autores postulam um ‘realismo
em perspectiva’, no qual a realidade subjetiva do analista não é mais verdadeira do que
a do paciente, e aquele só pode se aproximar da realidade psíquica do paciente a partir
da consideração desta. A importância desta instância, é que ela está alicerçada no
respeito pela realidade psíquica de ambos os participantes.
Seguindo estes princípios, a psicanálise e os fenômenos ocorrendo no setting
passam a ser entendidos como circunscritos ao chamado ‘modelo relacional’ (Mitchell,
1988), no qual:
A unidade básica de estudo não é o indivíduo como uma entidade
separada, cujos desejos colidem com uma realidade externa, mas um campo
inter-relacional,dentro do qual o indivíduo surge e luta para fazer contato e
se articular (...) A mente é composta de configurações relacionais e a
experiência é entendida como sendo estruturada através de relações. (p.34)
Loewald (1988,) também postula esta interação ao dizer que “a origem da vida
psíquica individual é um campo trans-individual, representado pela matriz mãe-infante.”
53
Estes conceitos citados me parecem estar em clara consonância com as noções da
díade Eu-Tu como representante inicial da existência humana, e já relatada desde
Feuerbach e Buber. Seriam as perdas e os traumas impostos a esta relação e interação
iniciais as causadoras das estruturas psicopatológicas, no entendimento da
intersubjetividade.
Outro ponto em comum entre a teoria da intersubjetividade e os filósofos citados,
está representado pela idéia de Lichtenberg (1989) ao dizer que: “as motivações
aparecem somente a partir de experiências vividas (...) e que a vitalidade da experiência
relacional depende da maneira pela qual experiências cheias de afeto se desvelam entre a
criança e seus cuidadores.”(p.2)
A respeito desta idéia, lembro a importância atribuída por Buber à vida real, ou
seja, às experiências e ações concretas ocorrendo entre os sujeitos humanos. Esta visão
da existência e desenvolvimento ocorrendo dentro de um sistema dual de mútua
influência e regulação, recebeu uma quantidade expressiva de evidências empíricas,
corroborando um sistema de regulação mútua criança-cuidador.(Beebe e Lachmann,
1988 a,b, Lichtenberg, 1983, 1989, Sander, 1985, 1987, Stern, 1985, 1988).
Segundo Stolorow (1994):
Da perspectiva dos conceitos ‘relational model’, que invadiram a
teorização psicanalítica na década passada, os fenômenos psicológicos,
incluindo mesmo conflitos e defesas inconscientes, são entendidos como
propriedades de um sistema intersubjetivo e assim tomando forma na
intersecção de subjetividades em relação. Inexoravelmente somos levados a
questionar o próprio conceito de uma mente ou psique isolada. É minha visão
que o conceito de uma mente individual isolada é uma ficção teórica ou mito,
que reifica a experiência subjetiva de ser distinto. (p.7)
Estas noções de relações intersubjetivas alteraram a teoria e a técnica psicanalíticas,
e tiveram como alicerce epistemológico os conceitos trazidos pela física quântica já
citados na introdução. Destacaremos mais uma vez a noção da interferência do
observador sobre o fenômeno observado, uma das expressões mais importantes de uma
nova lógica.
Em seguida destacaremos os conceitos avançados no texto de Stolorow e Atwood
já citado (1979), no qual fazem a análise psicobiográfica de Freud, Jung, Reich e Rank,
utilizando o processo de análise de caso e trazendo à cena analítica o conceito de
intersubjetividade. Sua idéia é que o curso do desenvolvimento e estruturação da
personalidade, ou a expressão teórica futura dos sujeitos, são radicadas em matriz
intersubjetiva.
Para eles, a adesão ou a rejeição de um determinado autor a uma teoria não são
feitas em termos racionais, ao contrário do que os cânones do método científico
poderiam supor. São, antes, expressões evidentes de sua realidade pessoal. No mesmo
texto citado, dizem que “a análise psicobiográfica busca não apenas estabelecer uma
relação entre um teórico e sua obra, mas também delimitar a particularização de visão de
sua teoria, delimitando assim sua generalidade e validade”. Continuam dizendo que “os
estudos psicológicos personalistas apresentados no texto, por omitirem em larga escala
contextos históricos e intelectuais, não devem por este motivo ser considerados como
relatos exaustivos- nem foram pensados para serem.” (p. 13)
O presente texto admite semelhante limitação em seus propósitos, esperando
entretanto conseguir a partir da análise histórica dos dados estudados conseguir traçar um
esboço do desenvolvimento emocional de Winnicott e de Guevara e definir também
alguns aspectos de seu encontro.
54
Os autores da intersubjetividade citados conceituam a sua análise dos personagens
como estudo de caso, definindo características já relatadas na introdução e que são: é um
método personalista e fenomenológico, histórico e clínico e interpretativo.
Dizem que esta abordagem “repetidamente levanta a questão de qual seria o
contexto experiencial e de história de vida dentro do qual as variadas regiões do
comportamento da pessoa adquirem sentido.” Incluímos nesta articulação de sentido,
mais uma vez,a produção teórica e a opção existencial dos personagens em estudo.
Continuam dizendo (Stolorow e Atwood, 1979, 1993):
Na análise psicobiográfica que se segue, nós focalizamos as
configurações de self e do outro que organizam tematicamente o mundo de
experiência subjetiva da pessoa. (...) O conceito de tais “estruturas de
subjetividade” (Atwood e Strolow, 1984) mantém parentesco
com a
psicologia do desenvolvimento de Piaget (1937) (...) e com a teoria dos
scripts elaborada por Tomkins (1991). Nós estamos preocupados aqui com a
estrutura de um mundo subjetivo como é descoberto pela intensiva
investigação dos temas repetitivos e dos leitmotifs que dominam a vida de
uma pessoa. (p31)
Foi a partir da análise das circunstâncias interpessoais do desenvolvimento dos
autores estudados, que Stolorow e Atwood avançaram além das ‘estruturas de
subjetividade’ já citadas, para definirem no capítulo seis o novo cenário e percurso que
estavam para iniciar. O capítulo é intitulado ‘Da subjetividade da Teoria para uma Teoria
da Intersubjetividade’. Ali os autores postulam o que chamaram de teoria da
intersubjetividade e explicam que:
Embora o conceito de intersubjetividade não tenha sido introduzido na
primeira edição deste livro, estava claramente implícito ali a demonstração de
como o mundo subjetivo de um teórico da psicologia influencia sua
compreensão das experiências de outra pessoa. (...) O primeiro uso explícito
do termo intersubjetivo em nosso trabalho apareceu em um artigo (Stolorow
et al. 1978), no qual conceituamos o interjogo entre transferência e
contratransferência no processo analítico como um processo intersubjetivo
refletindo a interação entre os mundos subjetivos diferentemente organizados
do paciente e do analista. (p.178)
Chegam a essas conclusões a partir da análise da influência que os sentimentos da
mãe e outras pessoas em contato com o sujeito nos momentos iniciais de suas vidas
exercem sobre o seu desenvolvimento, incluindo também as ‘lendas familiares’neste
raciocínio.
Analisando o caso de Freud, citam Jones (1953, p.5) lembrando que o “homem que
foi o favorito indiscutível de sua mãe, guarda para a vida inteira o sentimento de
conquistador, aquela confiança de sucesso que freqüentemente induz um sucesso real.”
(p.38-39)
Este foi precisamente o acontecido com Freud, e na opinião dos autores, resultou
na sua conceituação de que a ligação entre mãe e filho fosse “a mais perfeita e livre de
ambivalência de todas as relações”.(1933 [1932], p.133) Acreditam que pudesse haver
nessa idealização alguma forma de negação de problemas acontecidos na relação com
ela.
Falam também da importância de outras figuras femininas que tenham substituído a
mãe no relacionamento com o bebê e o menino. Citam o exemplo da babá de Freud, a
quem ele descreveu como “a primeira origem de meus problemas...feia, velha mas
inteligente.” (p.40)
55
Seu desaparecimento da vida familiar, mais tarde, devido ao fato de ter sido presa
por roubo, foi criticamente importante para o desenvolvimento da personalidade de
Freud, porque para os autores a “enfermeira funcionava como substituta de sua mãe,
dando-lhe um sentimento de continuidade nos momentos em que sua mãe estava ocupada
cuidando de novos bebês” (p.41)
Acham que os sentimentos de Freud em relação à sua mãe e também à babá
substituta fossem de “marcada ambivalência”.
Dizem também que:
Uma combinação de amor e de ódio estava presente igualmente em
suas atitudes iniciais em direção a ele, embora este fato só pudesse ser
esclarecido na sua auto-análise de seu próprio complexo de Édipo, depois
da morte de seu pai. (p.43)
A respeito de suas relações adultas, com Martha e Fliess, acham que “foram
dominadas pelo desejo de restaurar seu ideal de união perdido com a mãe”, assim como
sua escolha de medicina como carreira.
Citam um texto de [1925 [1924] no qual Freud diz que “foi ao ouvir o belo ensaio
de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta, que eu decidi me tornar um estudante de
medicina”.(p.8)
Esta idéia é ampliada por Jones (1953), citado por eles, ao dizer que: “O ensaio de
Goethe é um quadro romântico da Natureza como uma mãe bela e generosa que permite
a seus filhos prediletos o privilégio de explorar seus segredos. Esta imagem atraiu o
jovem Freud.” [p. 29, itálicos acrescentados]
Acreditam também que um ponto central da teorização e das dificuldades de Freud
tenha sido sua mãe, “que o banhou em adoração, e depois o traiu. Na verdade, as
mulheres, como herdeiras do quebra-cabeça da mãe, parecem ter permanecido (1905)
como um mistério para ele”. (p.47)
A substituta da mãe de Freud seria Martha, de quem ele exigia amor incondicional,
assim como indestrutível lealdade e fidelidade. Segundo os autores no mesmo texto, “o
desejo de Freud de moldar Martha à imagem e semelhança de sua mãe era colorida por
intenso ciúme e possessividade.” (p.49)
Em outro viés, crêem que os mesmos sentimentos seriam responsáveis em parte por
sua teorização posterior sobre os instintos e suas vicissitudes, o que podia ser antecipado
por uma carta que escreveu à Martha e onde dizia:
“Desde que eu sou violento e apaixonado, com todo o tipo de demônios confinados
dentro de mim e que não podem emergir, eles rugem ou são liberados contra você,
minha querida”.
Acham que o “casamento de Freud, considerado por Jones (1953) como “um céu de
felicidade”, foi influído pelo relacionamento dele com Fliess, que se iniciou cerca de um
ano depois de sua união”. “Fliess se tornou o herdeiro de suas necessidades arcaicas de
idealização e de conflito ambivalente inconsciente subjacente que haviam sido projetadas
inicialmente em Martha”. (p.50)
Trechos de suas cartas para ele “mostram o sabor da ligação existente”.
(p. 51)
“Quando eu falei com você e registrei o que pensa a meu respeito, pude até mesmo
ter uma boa opinião sobre mim”. [1894, Jones,1953, p.298]
“Estou esperando pelos congressos [encontros com Fliess] como quem espera
saciar a fome e a sede”. [1896, Schur, 1972, p.143]
“Você não pode recusar os deveres de ser minha primeira audiência e meu supremo
juiz”. [1898, Schur, 1972, p.143]
56
Acham que Freud tenha desenvolvido com Fliess “uma intensa transferência
selfobjetal, com componentes de idealização e de espelhamento (Kohut, 1971), colorida
por boa porção de imagens de dependência oral”. (p.51)
Concluem adiante que o marco da teorização freudiana foi seu conceito de que os
conflitos e dificuldades de uma pessoa deveriam ser entendidos “a partir de uma visão
biológica, interna e reificada- explicitamente as vicissitudes dos impulsos e energias
instintivas (Freud, 1905).” (p.53)
Continuam dizendo que:
O papel do tratamento dispensado pelos pais (especialmente a mãe) à
criança, foi negligenciado (...) e na sua visão do desenvolvimento infantil as
fontes do mal eram localizadas não nos pais (mãe), mas na criança ela mesma,
a partir de seus impulsos agressivos e sexuais, emergindo a partir de fontes
biologicamente determinadas, e em relativa independência do ambiente.
Concordamos com Fine (1973) em que esta ênfase reflita o desejo de Freud
de exonerar seus pais, especialmente sua mãe, da responsabilidade em seus
problemas. (p.55)
Concluem este trecho dizendo que:
Tentamos demonstrar que o desejo de Freud de preservar e restaurar
uma imagem idealizada inicial de sua mãe, correram através de sua vida como
um fio vermelho, influenciando suas reconstruções de sua infância inicial, sua
escolha do campo de estudo, suas relações adultas significativas e suas idéias
teóricas. (...) As reificações metapsicológicas com as quais tentou explicar os
fenômenos emocionais- suas concepções de impulsos e energias instintivas e
suas presumidas vicissitudes universais- foram em parte consideradas de suas
lutas defensivas e restitutivas, enraizadas nas experiências formativas de sua
própria vida.
(p.59)
No já citado capítulo VI os autores reconhecem que, ao proporem que “toda teoria
da personalidade universaliza as soluções pessoais do teórico para os dilemas nucleares
e crises de sua história pessoal” (Stotlorow e Atwood, 1993, p.189) estejam incluídos na
mesma forma de entendimento.
A seguir estabelecem três princípios inter-relacionados e que se constituiriam na
moldura da teoria da intersubjetividade. Seriam eles:
a)
A experiência humana está sempre fundada em irredutível engajamento
com os outros.
b)
Existe uma inseparável ligação entre o investigador psicológico com os
mundos de experiência que ele investiga.
c)
Toda realidade pessoal individual é subjetiva e historicamente moldada e,
desse modo, nenhuma realidade pessoal é inerentemente mais válida ou
verdadeira do que a de outra pessoa. (p.189)
Ao des-hierarquizarem as percepções e relações no interjogo do setting, os autores
estavam propondo uma ampliação epistemológica das questões tranferenciais /
contratranferenciais, que viria a se materializar ao longo do tempo com o conceito de cotransferência (Orange, 1995).12
Ao conceitua-la, a autora diz que usa uma perspectiva derivada “da hermenêutica
filosófica para elucidar seu ponto de vista de que a contra-transferência seja, em um
sentido inclusivo, essencial para a empatia”. Em seguida sugere que este sentido de
inclusão seja re-nomeado co-transferência , e que seja reservado (ou mantido, acrescento
12
Orange, D.; Emotional Understanding: Studies in Psychoanalytical Epistemology, N.Y., Guilford
Press, 1995.
57
eu) o termo contra-transferência
“para as memórias emocionais do analista que
interfiram com a sua compreensão empática e responsividade ótima.”
Voltando à questão do texto (e dos pacientes em tratamento) e de sua interpretação,
assim como às questões relativas à pretensão de conhecimento objetivista da verdade per
se, ou mesmo com foco exclusivo na subjetividade do paciente, Gadamer (1979) discute
as questões relativas ao temor de solipsismo ou subjetivismo ao dizer:
Ao ler um texto, se quisermos entende-lo, o que nós sempre esperamos
é que ele nos informe de algo. Uma consciência formada pela atitude
hermenêutica autêntica será receptiva com as origens e aspectos inteiramente
estranhos daquilo que vem de fora de nossos próprios horizontes. Entretanto,
esta receptividade não é adquirida através de uma ‘neutralidade’objetivista:
também não possível, necessário ou desejável, que nós nos coloquemos
dentro de parênteses. A atitude hermenêutica supõe que apenas aquilo que
nós auto-conscientemente designamos como nossas opiniões e preconceitos e
os qualificamos desse modo, nos possibilita retirar deles seu caráter
extremado. Ao mantermos esta atitude nós garantimos ao texto (e ao
paciente) a oportunidade de aparecer como um ser autenticamente diferente e
que possa manifestar a sua própria verdade, sobre e contra as nossas noções
pré-concebidas.
(p. 151-152)
Gadamer, um dos principais esteios filosóficos da escola da intersubjetividade,
acentua o tema da necessária ligação e inter-relação com o outro, em carne e osso ou em
texto, para a sua adequada compreensão (understanding), que é muito diferente de
knowledge (conhecimento).
Imagino que encontramos aqui mais uma ponte com o pensamento de Buber,
quando diz que a compreensão e compartilhamento da existência com o outro será feito
sempre em registro não cognitivo.
Ora, sabemos que D.W.Winnicott, um dos autores agrupados entre os teóricos das
relações objeta is, tem sua originalidade teórica exatamente na insistência radical da
participação do meio ambiente no desenvolvimento do bebê.
Esta participação, corporificada na mãe, alcança período anterior ao próprio
nascimento da criança, pois existe toda uma preparação física, fisiológica e emocional da
mulher que espera seu bebê. Este já vive em sua mente e em seu coração antes de existir
concretamente. Winnicott, (2000 a) diz:
Minha tese é a de que na primeira de todas as fases estaríamos lidando
com um estado muito especial da mãe..que merece um nome tal como
Preocupação Materna Primária. Geralmente este estado passa a ser o de
uma sensibilidade exacerbada
durante e principalmente no final da
gravidez.Sua duração é de algumas semanas após o nascimento do bebê.
(p.401)
Temos aqui uma ponte clara entre formulações de Winnicott a respeito do
desenvolvimento se considerarmos que exista uma unidade dual durante a gravidez, que
evolui para uma dupla que funciona como unidade, após o nascimento. Quero dizer com
isso que o bebê já precisa existir como antecipação amorosa no espírito materno, e que
este conjunto de sentimentos seria a representação concreta e encarnada do princípio
Eu-Tu de Martin Buber, já citado.
Se, no sentido buberiano, a existência é marcada pela palavra Eu-Tu, que é
princípio característico da intersubjetividade, e que por sua vez é marca essencial do
humano, a teorização winnicottiana da dependência essencial e fundamental do bebê do
meio ambiente, reflete , em seus termos, as questões básicas da visão intersubjetiva da
existência.
58
O bebê vive em relação indissociável com a mãe que ele ainda não conhece. “O
que a mãe faz, não será jamais apreendido pelo bebê neste estágio.” (Winnicott,2000a,
p.403)
Apesar disso, o que a mãe faça ou não faça, deixará marcas indeléveis, pois as
falhas neste estágio primitivo atentam contra o sentimento de existência. O desencontro
ou ruptura da unidade Eu-Tu que funcionava silenciosamente durante o encontro, leva a
um grito desesperado, evidência da angústia inimaginável sofrida pelo bebê. Uma vez
que ele nasce para o encontro e vive nele e por ele, a perda da unidade e da continuidade
de existência do ‘going on being’ representam uma espécie de morte “fenomenal”, nas
palavras de Winnicott. (1994 c)
Descrevendo o pensamento de Buber, Sidekun (1979, p.46) apresenta esta relação
essencial, primitiva e fundante quando diz que “Uma criança, quando sorri e quando
chora, logo apela para aqueles que a cercam, e deles espera uma resposta.” Neste sentido,
a falta de resposta jogaria o bebê dentro de uma experiência de não humanidade e não
existência, gerando a angústia pensada por Winnicott. Não é concebível tal desencontro,
para o ser “que vive a antecipação do Tu ainda sem conhece-lo.”
Outra ponte de união entre a teoria de desenvolvimento de Winnicott e aspectos
importantes do pensamento de Buber, reside no fato de que a existência do bebê deve ser
encarada em sua concretude (konkretenheit, Buber), em relações passada no cotidiano e
a partir da percepção afetiva.
Winnicott estabelece as bases do desenvolvimento emocional em relações e tarefas
do cotidiano do bebê, envolvendo o cuidado com seu corpo e alimentação, através de
atividades de handling e constituição de holding, que ultrapassam em importância
questões meramente mecânicas, para adquirir estatuto ontológico. Prochet (2000) diz a
este respeito:
Quando os cuidados com o bebê são tomados a partir de padrões préestabelecidos, com base em manuais de puericultura e não através dessa
capacidade empática de se adaptar e se identificar com ele, o bebê não pode
adquirir esta experiência ‘mágica’de ser “um em dois”. (p. 124)
A mesma autora cita Winnicott em nota de rodapé na mesma página dizendo que
ele relaciona as tarefas do ser às atividades do soma, na necessidade do homem de
relacionar-se com um outro, de somar-se ao outro para se constituir em unidade. (meu
grifo)
Acho que não poderíamos encontrar nenhuma fissura entre esta visão de Winnicott
e a concepção de Buber sobre a importância da relação Eu-Tu como fundamento do
sentido de humanidade.
Com relação à busca de pontes entre as formulações de Buber e dos teóricos da
intersubjetividade e a prática existencial e política de Guevara, podemos citar seu
profundo comprometimento com o Outro, considerado por ele como parte essencial de
sua existência pessoal. Citando Marx (Guevara, 1960), diz que ele trouxe a importante
contribuição do reconhecimento de que o mundo necessita mais do que ser analisado em
sua dinâmica. Ele precisa ser transformado pela ação,13 que é fundamentada o
reconhecimento do Outro e de seus direitos, mesmo quando não os enxergue.
Citando Buber mais uma vez , Sidekun (1979) lembra:
Contra estas estruturas sociais falidas, tecnificadas, Buber procura
contrapor uma solução: estabelecer uma sociedade em bases da vida da
relação Eu-Tu do homem, em que teríamos uma vida realmente comunitária e
autenticamente humana.Então, o Belo, a Paz e a Justiça não serão mais
produtos ontológicos e sim presença atuante na vida da comunidade humana.
13
Guevara, E.; Che Guevara Speaks, N.Y., Pathfinder, 1995, p.20.
59
(...) A sociedade e seus membros responsáveis tem a obrigação de assegurar e
garantir a cada homem o seu direito de vida e de desenvolvimento dentro da
sociedade. Esta deverá possibilitar plena satisfação e realização da pessoa
humana , em vista de o homem ter uma necessidade irrestrita de ser membro
da sociedade humana, homem com os outros. Caso contrário, definha e não se
desenvolve. O ser humano tem necessidade de compreensão, de justiça e de
amor. (p. 100)
Estas idéias são do filósofo, mas poderiam fazer parte de um discurso do político e
revolucionário Guevara. As pontes entre filosofia, psicanálise e política são óbvias
quando se dá precedência ao homem.
Sempre que este seja colocado em papel secundário, tornando-se instrumento de
interesses ou idéias impessoais, a ruptura Eu-Tu terá ocorrido e, àqueles que pensam no
outro como participantes do mesmo mundo e com direitos semelhantes, pode restar tão
somente a retórica da ação. Esta é válida, mas de menor valor em termos de uma
verdadeira ação de integração, que é proposta comum tanto de Buber, quanto dos
existencialistas que influenciaram autores do middle group entre outros, com o conceito
de ser-com-no mundo.
A ação proposta no texto que vou citar adiante, assemelha-se à perda da percepção
do Outro (Tu), em termos do pensamento de Buber, e a uma reação, em termos do
pensamento de Winnicott, que propõe que a moralidade verdadeira seja alicerçada em
um ambiente confiável, onde o sujeito em desenvolvimento consiga alcançar o estado de
concern (consideração) com o outro, em um sentido ético que brota de dentro do próprio
sujeito em relações intersubjetivas. Ele já advertia, entretanto, que o desenvolvimento
destas características dependeriam quase que obrigatoriamente da provisão ambiental
suficientemente boa.
Winnicott dizia (1993):
Essas condições essenciais não podem ser descritas em poucas palavras
mas consistem essencialmente nisto:o meio ambiente deve ser previsível e, no
começo, altamente adaptado às necessidades do bebê. A maioria dos bebês e
crianças pequenas obtêm, de fato, essas condições essenciais. Quero dizer
apenas que a base da moralidade é a experiência fundamental do bebê de ser
seu próprio e verdadeiro eu, de continuar sendo; reagir ao imprevisível
interrompe este continuar sendo e interfere com o desenvolvimento de um eu.
(p. 121)
Podemos perceber que a teoria do desenvolvimento de Winnicott está alicerçada na
estabilidade das relações com o bebê, por sua vez ligadas à estabilidade da família e,
conseqüentemente subordinadas, de modo geral, a condições mínimas de justiça social,
sem o que, é muito difícil que o delicado ambiente onde a frágil condição humana brota
possa existir.
É compreensível a angústia do homem comprometido com o desejo de um mundo
melhor, ao perceber as desigualdades e injustiças.
Talvez por esta razão Fidel Castro (1961) disse:
A classe operária é classe fecunda e criadora; é ela que produz toda a
riqueza material de um país. E enquanto o poder não estiver em suas mãos,
enquanto a classe operária permitir que o poder esteja nas mãos dos patrões
que os exploram, na mão dos especuladores (...) enquanto as armas estiverem
nas mãos dos que servem aos interesses dos exploradores e não em suas
próprias, a classe operária será obrigada a uma existência miserável, por
muitas que sejam as migalhas que caiam da mesa do banquete dos poderosos.
(p.25)
60
Este discurso emocionado pode ser considerado como expressão de uma dor
insuportável diante do desamparo do outro, o Tu de Buber. É necessário grande
amadurecimento emocional para permanecer junto do Tu quando a este faltam noções
mínimas de sua própria existência. A esse respeito Stolorow e Atwood (1992) dizem:
Uma atitude não alienada em direção ao irredutível engajamento do
homem com os outros leva a uma experiência de angústia pela percepção de
que o destino dos seres humanos seja tão irrevogavelmente dependente e
vulnerável aos eventos que ocorrem no meio interpessoal. (p. 10)
É exatamente esta angústia que leva alguns homens que possuem no eixo de sua
existência a percepção e o exercício da palavra princípio Eu-Tu a reagir, no sentido
winnicottianno. A reação se daria contra o impingement da realidade.
As palavras de ordem da ação revolucionária, por um lado representam a percepção
das oposições violentas que os homens do princípio Eu-Tu sofrem na realidade do
mundo. Disse Guevara (1961) a este respeito:
Quando se fala de ganhar o poder por via eleitoral, a nossa pergunta é
sempre a mesma: se um governo popular ocupa o governo de um país por
ampla votação popular e resolve, conseqüentemente, iniciar as grandes
transformações sociais que constituem o programa com que triunfou, não
entraria imediatamente em conflito com as classes reacionárias desse país?
(...) Esse governo pode ser derrubado mediante um golpe de estado mais ou
menos sangrento e torna a começar um jogo que nunca mais acaba; pode, por
sua vez derrotar o exército opressor mediante a ação popular armada em
apoio de seu governo. O que nos parece difícil é que as forças armadas
aceitem de bom grado reformas sociais profundas e se resignem mansamente
à sua liquidação como casta. (grifo meu) (p. 39)
A pergunta que poderia ser feita aqui é: e deveriam?
A sintaxe da luta e do extermínio do outro, ainda quando não viva segundo o
princípio Eu-Tu (e freqüentemente não vive), faz parte de um caminho que não tem fim,
em um jogo que nunca acaba, como reconheceu Guevara no texto acima. Este é o jogo
do ódio e da reação ao ódio, que se alimentam reciprocamente. Estamos vendo esta
forma de ação ocorrer de maneira trágica no Oriente Médio nos dias em que escrevo este
texto, quando judeus e palestinos deixaram de se ver como um Tu, participante da
mesma condição humana, para se transformarem na encarnação do mal, que vem de fora
e persegue um e outro. Neste cenário o homem se torna o lobo do homem.
Dá trabalho, a ser realizado cotidianamente, construir um mundo de relações
guiadas pela justiça. O mesmo Che das palavras acima escreveu em outro ponto:
Aqui estamos. A palavra chega-nos úmida das florestas cubanas.
Subimos a Sierra Maestra e conhecemos a madrugada; temos a cabeça e as
mãos cheias da semente da madrugada e estamos dispostos a semeá-la e a
defende-la para que frutifique. (p.24)
Guevara percebia que a justiça e a consideração com o outro necessitam ser
semeadas e cuidadas. É preciso também defende-las da violência dos que não vivem no
amor.
Um problema fundamental da questão do desenvolvimento de um sentido de
competência, que evolui ao longo do tempo para se constituir em auto-estima é que,
apesar de ser estruturado em matriz intersubjetiva, necessita obrigatoriamente da ação do
próprio sujeito. A esse respeito, Bash (1992) diz:
61
A verdadeira auto-estima, o sentimento genuíno de que o self seja
merecedor de respeito e de proteção...brota da experiência de competência, a
experiência de funcionar de maneira apropriada...ninguém pode dar ao outro
a experiência de competência: a pessoa deve adquiri-la por si mesmo. (p. 20)
Temos nesta questão trazida pela intersubjetividade um dos paradoxos a respeito do
desenvolvimento pensado por Winnicott. Pode-se considerar que o sentimento de
competência citado, seja estabelecido em um ponto do desenvolvimento no qual o bebê,
em aparente paradoxo, é completamente incompetente. Dito de outro modo, ele é
totalmente dependente das ações da mãe, que ele ainda não conhece. É o holding
fornecido pela mãe em estado de preocupação materna primária (1953) o instaurador da
ilusão de competência, iniciada no espaço potencial. É ali que o bebê, atendido
adequadamente em suas necessidades, com a presteza que lhe fornece o sentimento de
ser o criador do espaço e dos objetos, viverá a experiência de criar a mãe e a si mesmo,
estabelecendo posteriormente a diferença entre eles. Esta dinâmica é mostrada por
Winnicott (1988) ao dizer que:
Onde o ambiente de facilitação- que deve ser humano e pessoal- possuir
as características suficientemente boas, as tendências hereditárias que o bebê
tem podem, então, alcançar seus primeiros resultados favoráveis. (...) Com o
tempo, o bebê torna-se capaz de afirmar sua própria individualidade, e até
mesmo experimentar um sentimento de identidade pessoal.(...) Isto é o
começo de tudo, e confere significado a palavras muito simples como ser. (...)
É importante que eu sou não significa nada, a não ser que eu, inicialmente ,
seja juntamente com outro ser humano que ainda não foi diferenciado..Não é
exagero dizer que a condição de ser é o início de tudo, sem a qual o fazer ou
deixar que lhe façam não tem significado. (p. 8-9)
Martin Buber (1977) defende conceito semelhante ao dizer:
Aquele que diz Tu não tem coisa alguma por objeto. Pois onde há uma
coisa há também, outra coisa. No momento em que o Tu é proferido, coisa
alguma existe. O Tu não se confina a nada. Quem diz Tu não possui coisa
alguma, não possui nada. Ele permanece em relação. (...) entre o Eu e o Tu
não se interpõem artifícios ou jogos. Existe a relação que é total e imediata.
No início é a relação. (p.5)
Um longo trajeto vai ter que ser cumprido até que o bebê, a partir destas bases, ou
do lançamento destas sementes de vida, possa suportar se perceber como um sujeito
separado e possa dizer eu sou.
O acesso ao mundo da transformação, da alteridade e da criatividade é feito
atravessando espaço e tempo, em movimento complexo que inclui o brincar, este por sua
vez um dos conceitos winnicottianos de maior complexidade e importância. O
crescimento demanda trabalho e alguma dose de sofrimento.
Winnicott (1975) diz:
..brincar tem um lugar e um tempo. Não é dentro, em nenhum emprego
da palavra (...). Tampouco é fora, o que equivale a dizer que não constitui
parte do mundo repudiado, do não-eu, aquilo que o indivíduo decidiu
identificar (com dificuldades e até mesmo sofrimento) como verdadeiramente
externo, fora do controle mágico. Para controlar o que está fora, há que fazer
coisas, não simplesmente pensar ou desejar, e fazer coisas toma tempo.
Brincar é fazer. (p. 62-63)
62
Como chegar a este local da experiência humana onde brincar e fazer estão unidos
em instância afirmativa da existência? Com certeza o caminho a ser seguido é árduo e
tortuoso.
Guevara dizia (1961):
Mas nós temos que defender a nossa revolução, aquela que estamos
fazendo todos os dias. E para poder defender é preciso faze-la, construindo-a,
fortificando-a com este trabalho que hoje não agrada à juventude, ou que, pelo
menos, é considerado como o último dos seus deveres, porque ainda conserva
a mentalidade antiga, a mentalidade do mundo capitalista, isto é, de que o
trabalho é um dever e uma necessidade, mas um dever e uma necessidade
tristes. Porque é que isto acontece? Porque ainda não demos ao trabalho o seu
verdadeiro sentido. Não fomos capazes de unir o trabalhador ao objeto de seu
trabalho. E, ao mesmo tempo, não fomos capazes de incutir no trabalhador a
consciência da importância do ato criativo que dia a dia realiza. (p. 57)
(meus grifos)
Acredito que tenhamos reunido até este ponto, a partir da exegese dos textos de
nossos personagens, evidências de algumas pontes entre suas idéias, suas visões de
mundo, e as maneiras que imaginaram como capazes de transforma-lo.
Tomando algumas das premissas trazidas pela intersubjetividade e sumarizadas ao
longo deste capítulo, tentarei na conclusão definir os eixos de compreensão dos nossos
personagens, suas histórias de vida e entender algumas de suas opções pessoais, assim
como aspectos de suas vicissitudes. Os princípios que regerão esta leitura serão aqueles
já definidos pelos autores da intersubjetividade.
Nossos personagens serão vistos como homens de seu tempo, sofrendo as
influências da cultura em que viveram e os percalços das relações familiares que os
envolveram. Também fica clara a aceitação do fato de que a participação deste autor
sofre a interferência de seu olhar e desejo, o que, segundo as premissas tomadas pela
intersubjetividade, determina a produção de um encontro único entre nós.
Eu também sou uma criatura do século XX e me re-conhecí em inúmeras das
situações e eventos históricos estudados para a feitura deste texto. O tempo em que os
eventos analisados e descritos se passam envolveu a minha formação como homem e
como psicanalista. Os dois personagens que tanto admirei e sobre os quais escrevo estão
indelevelmente entranhados na constituição de minha identidade.
É exatamente pelo fato de compartilhar com eles um tempo e, humildemente, um
pouco de sua visão de mundo e dos homens, que este encontro e estas pontes estão sendo
buscadas.
CAPÍTULO IV- O ENCONTRO
O ar fresco e limpo que veio do continente atravessando o canal da Mancha
provocou um efeito extraordinário. Chegou até Londres e começou a atravessar a
cidade, clareando as margens do Tamisa, entrando pelas ruas e avenidas e chegando até
às vielas e aos menores becos. Os parques ficaram mais alegres e sua grama muito mais
verde. Nesse dia, que se anunciava como especial, o céu ficou claro e de um azul mais
forte e se podia perceber o sol, trazendo calor e um sentimento especial de vida. Assim
pensavam todos os que estavam na cidade. Nesse dia, Londres estava parecida com
Roma em uma ensolarada manhã de primavera.
Nos subterrâneos do metro, ninguém adivinharia o dia glorioso que havia
começado lá fora. O ar estava abafado como sempre e um cheiro de umidade e de
eletricidade dominava o ar.
63
A composição parou na estação com um forte barulho dos freios. Do penúltimo
vagão desceu um homem de ombros encurvados e aspecto abatido, que se encaminhou a
passos lentos em direção da escada rolante. Um pouco antes de chegar lá, viu seu vulto
refletido em uma superfície de alumínio polido. Parou, observando o rosto cansado, os
óculos de lentes grossas e os cabelos grisalhos ao redor de uma grande careca, que lhe
tomava todo o topo da cabeça. Os olhos e o conjunto da expressão de seu rosto
mostravam tristeza. Se alguém quisesse definir quem poderia ser aquele personagem, ou
o que fazia, certamente pensaria que ele fosse um funcionário público aposentado, de
baixo nível e talvez deprimido com a sua situação naquele momento.
Enquanto ruminava estes pensamentos, o rosto do homem começou a sofrer uma
espantosa transformação. A partir dos olhos, que se iluminaram com um brilho travesso,
ondas de vitalidade desceram alterando até mesmo as linhas de expressão, e algo de
juvenil, cheio de malícia e energia tomou o lugar da fisionomia cansada. Por instantes,
era como se o velho tivesse sido substituído por um jovem alegre. O homem observou
o reflexo por alguns instantes, deu um sorriso satisfeito - a expressão do rosto
começando a mudar de novo -, balançou a cabeça e quando começou a andar dirigindose à escada rolante havia -se transformado no velho desanimado outra vez.
A algumas quadras dali, no número 87 de Chester Square, uma sala ampla era
iluminada pela luz cálida do sol que entrava através da janela diagonalmente. No canto
esquerdo, alguns brinquedos amontoados numa caixa e outros espalhados pelo chão
compunham um ambiente calmo e ao mesmo tempo acolhedor, e perto deles se
encontrava um homem de estatura mediana, rosto cansado e cheio de rugas onde
sobressaíam olhos azuis de brilho intenso, que parecia estar ansioso. Os olhos mutáveis
exibiam expectativa ou alegria, como alguém que esperasse um presente, destoando do
restante do rosto.
O Dr. Winnicott estava curioso naquela manhã. Desde o seu primeiro acidente
cardíaco, ainda em 1948 e logo depois da morte de seu pai, vinha sofrendo com diversos
problemas de saúde. Não se sentia muito bem nos últimos dias e, apesar disso, havia
alterado a sua rotina diária, já muito sobrecarregada, para atender a um pedido de um
colega que nem conhecia pessoalmente. Ele havia lhe mandado uma carta dois anos
antes pedindo comentários a respeito de um trabalho que escrevera. O psicanalista era
cubano de nascimento e o pedido era para que atendesse um filósofo e humanista muito
importante, que estava incógnito na Inglaterra e precisava muito de ajuda. De todos os
atributos que haviam sido colocados a respeito ‘do importante personagem’, não tinha
sido a generosidade, o altruísmo, ou a coragem de lutar por um mundo melhor que
haviam atraído a atenção de Winnicott. Era o fato de ele estar viajando incógnito que
havia despertado a sua curiosidade e fazia os seus olhos brilharem. Era o espírito
brincalhão dentro dele, sua sede permanente de novas experiências e idéias que o fazia
ficar naquela expectativa, desejando descobrir o mistério e se perguntando: Quem seria
o personagem?
Neste estado de espírito, conferiu a mesa que pedira para ser arrumada, com
biscoitos, alguns sanduíches e cerveja Guiness, a sua preferida até um tempo atrás. Ao
lado dela brinquedos espalhados, de sua última cliente do dia anterior e alguns
rascunhos e anotações de um livro que escrevia. Depois disso, a conselho médico,
passara a tomar chá juntando sempre um pouco de uísque. (1) Havia um vaso com um
belo arranjo de flores de seu jardim, do qual ele sempre havia se orgulhado muito. As
flores eram lindas e frescas, recém colhidas. Tudo lhe parecia bem. Nesse exato
momento bateram na porta e Winnicott soube que o seu visitante havia chegado. Pediu
que o fizessem entrar e se levantou pra encontra-lo.
Os homens se olharam com visível curiosidade.Winnicott estendeu a mão e
cumprimentou o homem, que se apresentou como Adolfo Mena González.
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- Que posso fazer pelo senhor? Confesso que estava muito curioso, porque fui
informado que o senhor viajava disfarçado e logo fiquei pensando quais seriam as
razões para a sua atitude. Acho que foi um lado meu que gosta muito de aventura que
foi aguçado pela sua história. Além disso resolvi atender a um pedido de um colega
psicanalista.
- Dr. Winnicott, o que eu posso lhe dizer neste momento é que fiz algumas
escolhas que estão mudando profundamente a minha vida. Eu tenho imensas
responsabilidades políticas e decidi começar atividades que eu pratico desde muito
jovem e pelas quais tenho muito apreço. Na verdade, acho que estas atividades, que se
baseiam em minhas crenças, são o mais importante para mim. Eu poderia até mesmo
dizer que eu sou um pouco essas atividades. O senhor sabe, um filósofo espanhol disse
uma vez que um homem é um conjunto de crenças. Diferente das idéias que um homem
tem, as suas crenças são o que ele é. Como eu sei que este tema do sujeito verdadeiro
tem sido do seu interesse, achei que o senhor poderia me ajudar em um momento no
qual ser eu mesmo está me provocando muita dor. Não gostaria de falar de meus
problemas e das situações que estou atravessando para alguém que não soubesse o
valor de ser fiel a seus princípios.
Além disso, sei que o senhor foi um dos defensores de adaptações do setting
psicanalítico a necessidades ou momentos especiais. Como acho que estou vivendo um
momento deste tipo, acreditei que pudesse me ajudar.
Winnicott, que a princípio estava um pouco inquieto com as palavras de seu
interlocutor, deu um leve sorriso, esticou as dobras de sua calça, dando uma baforada do
cigarro, contorcendo o braço por trás do pescoço de um modo que lhe era peculiar,
como se estivesse distraído ou confuso (2) e fixou neste momento o olhar.
- O senhor gosta de psicanálise? Acho isto interessante, porque me disseram que
é filósofo e humanista, além de perceber que tem atividades políticas. O senhor fez
referência ainda há pouco aos meus estudos sobre o sujeito e sua relação com a
verdade e às adaptações do setting que eu propus. Não é comum que as pessoas leigas
estudem psicanálise. Apesar de eu mesmo ter contribuído bastante para a divulgação
da teoria e da prática psicanalíticas, fazendo palestras no rádio para todos os públicos
e em diversos ambientes, inclusive não científicos, acho que ela ainda não é conhecida
o bastante.
Neste momento o rosto de Winnicott estava iluminado por um sorriso maroto,
como se estivesse informando ao visitante que ele também gostava de brincar e de
mudar certos códigos e rotinas. Recordava neste momento como havia sido difícil e mal
entendida a sua visão de que a psicanálise deveria sair de dentro da torre de marfim
onde estava abrigada, ganhando o mundo e permitindo que as pessoas se aproximassem
e se beneficiassem dela.
- Eu posso lhe dizer, Dr. Winnicott, que a psicanálise sempre me interessou,
desde a adolescência. Comecei a ler Freud e Jung muito cedo, e aumentei meu interesse
pelo assunto numa época em que tinha que permanecer muito tempo acamado, devido
aos terríveis ataques de asma que comecei a ter desde menino. Com o tempo passei a
achar que a psicanálise fornecia uma visão de mundo, sendo mais do que uma teoria.
Acho que a poesia e a psicanálise me salvaram.
- O senhor gosta de poesia? Curioso, é mais um ponto que temos em comum.
Aprecio poesia em geral e acho que os poetas são porta-vozes de um mundo inacessível
aos comuns. Um mundo de sentimentos e de verdade. Meus preferidos são T. S. Eliot,
Dylan Thomas e os sonetos de Shakespeare. Também sou muito tocado pela obra de
William Woodsworth .(3) E o senhor?
- Como lhe disse, desde sempre fui um leitor inveterado. Li de tudo, mas gostei
muito de Verlaine, Mallarmé, Neruda e principalmente de Baudelaire. Só bem mais
tarde, já adulto, tive contato com a obra de Walt Whitman, através de uma mulher com
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quem vivi. Eu também aprecio o trabalho de Steinbeck e de Faulkner. Durante toda a
minha adolescência fui um leitor voraz e apaixonado de Sartre e dos existencialistas.
De maneira geral posso me considerar um leitor acima da média.
Enquanto o visitante falava, Winnicott, que era conhecido por sua intensa
capacidade de introspecção, mergulhava em seu mundo interno, imaginando quem seria
afinal o homem que lhe falava e buscando um sentido para a forma pela qual a sua
conversa se desenrolava. Veio-lhe à mente uma velha imagem, de um casal de
patinadores no gelo, nos momentos iniciais de sua apresentação. Faziam movimentos
lentos, delicados, em busca do timing e do ritmo certos, para que o seu entrosamento
produzisse beleza em movimento. Assim estava acontecendo entre eles, na conversa que
iniciavam. Delicados movimentos de aproximação em busca do encontro. De dentro da
bruma, em que estava envolto, chegava outra vez a voz do interlocutor.
- ... A poesia de Baudelaire foi particularmente importante para mim, porque me
mostrou em forma poética a questão da viagem e do movimento como experiência
metafísica. Viajar e descobrir coisas novas sempre foi algo muito importante para mim.
Winnicott mudou o tema de modo repentino.
- O senhor disse que está vivendo um momento de mudanças em sua vida e que
isto está lhe causando muitas dores. Será que poderia explicar melhor a que se refere?
- Dr. Winnicott, o senhor me desculpe por falar ainda de forma elíptica, sem
explicar bem e de modo completo quem eu sou e o que me fez lhe procurar em busca de
ajuda. Isto se deve a razões de segurança, minha e sua.
No entanto, estou percebendo duas coisas de fundamental importância. A
primeira, é a constatação do quanto está sendo difícil para mim este momento de
intimidade compartilhada. Eu, que sempre registrei minhas experiências
metodicamente e necessitei da presença de alguém em minha vida, com quem pudesse
dividir sonhos, medos e esperanças, percebo o quanto na realidade isto é difícil para
mim. A segunda, é que eu estou em um momento no qual sinto a necessidade premente
de vencer estas e outras limitações.
Há alguns anos eu vivi um momento semelhante em uma pequena vila no interior
da Guatemala. Foi uma experiência de revelação, na qual entrei em contato com
aspectos muito intensos, talvez mesmo violentos de minha personalidade. Esta
aproximação comigo mesmo foi muito importante para a definição do meu futuro e da
estrada que me trouxe até aqui.
Winnicott retrucou:
- Eu reconheço que entrar em contato com certas verdades a respeito de nós
mesmos é sempre muito complicado. Pensei e escrevi sobre isto durante muito tempo.
Talvez o senhor possa deixar de lado as circunstâncias que lhe limitavam e entrar em
contato comigo em um outro espaço, onde consiga ficar perto de sentimentos, sem se
importar com críticas, razões e justificativas. Só desse modo o nosso encontro
justificará o esforço que o senhor e eu estamos fazendo.
- Vou tentar. Repetindo o que já lhe disse, sempre me interessei por psicanálise.
Em uma época de minha vida acho que estive fazendo um tipo de auto-análise parecida
com a que Freud começou a fazer, mas os conhecimentos ou as questões que eu
consegui penetrar não foram suficientes para me dar mais tranqüilidade.
Há alguns meses eu tomei a decisão de sair do meu país, deixar as funções que
estava desenvolvendo e partir em uma missão que me obriga até mesmo a me afastar de
minha família. Eu tenho mulher e cinco filhos, sendo que o menor acabou de nascer
enquanto eu estava viajando a serviço. Faço isto com uma mistura de alegria e de
pena. Diria que uma parte de meu espírito está ferida. Na verdade eu queimei as pontes
que permitiriam um retorno e minhas decisões são irremediáveis. (4)
Neste ponto, Winnicott estava plenamente imerso nas palavras de seu interlocutor
e percebia um sentido trágico no que ele dizia. Naquele exato instante veio-lhe à mente
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o lema dos gladiadores ao entrarem na arena: os que vão morrer te saúdam. Todo o seu
ser vibrava com as ondas de emoção e de sentimento que iam e vinham no espaço entre
os dois, e ele exclamou:
- O que o Sr. acaba de me contar é muito forte! Que razões lhe levam a tomar
decisões que acarretam tantas perdas? As questões que lhe motivam devem ser vitais
para a sua existência e precisam estar ancoradas no mais profundo de seu ser, senão
eu não sei como o senhor resistirá.
O homem à sua frente esboçou um sorriso triste e resignado neste momento, como
se já esperasse ouvir aquelas palavras.
- Este é exatamente um dos pontos que eu preciso entender. Minhas decisões
estão de acordo com tudo o que eu construí na vida e pelo qual tenho lutado. Deste
lado a questão é bastante simples. É o momento final de um projeto de vida acalentado
e desenvolvido longamente. Não tenho dúvidas a respeito disso, mas assim mesmo meu
coração dói.
Winnicott olhava para o rosto do homem e, mais uma vez, sentiu como que uma
onda penetrando dentro dele. Seu corpo estava bastante cansado e dolorido pelos
problemas de saúde que o abalavam nos últimos anos, e ele experimentou um outro tipo
de dor, talvez localizada em um outro espaço de seu ser. Sentiu uma intensa compaixão
e permaneceu calado.
- Dr. Winnicott, o senhor está pálido. Está se sentindo mal? Acho que preciso lhe
explicar melhor as situações em que estou envolvido.
Winnicott retrucou:
- Não se preocupe. Eu não estou muito bem de saúde e as questões que estamos
discutindo são muito mobilizadoras. No entanto, lembre-se de que eu passei toda a
minha vida ouvindo as pessoas e posso lhe dizer que tenho uma verdadeira paixão por
prestar ajuda a quem necessita de mim. (5)
Um dos pontos de sua história que mais me tocou é o afastamento de seus cinco
filhos. Devo confessar que às vezes me sinto triste por não os ter tido, de modo que me
coloco em seu lugar e posso sentir um pouco de sua dor por se separar deles. O outro
lado de sua história, que diz respeito a um tipo de sacrifício que pretende fazer pelo
bem dos outros, eu entendo melhor. Eu mesmo, nos últimos anos venho trabalhando
com grande dificuldade muitas vezes. No entanto me obrigo a continuar.(6)
- Estes são realmente pontos importantes, Dr. Winnicott. Eu já me sentia mal por
ter me separado de minha primeira mulher e só poder ver minha filha, que se chama
Hilda como a mãe, de tempos em tempos.
O meu segundo casamento foi com uma mulher por quem me apaixonei
perdidamente. Temos um mundo de afinidades e eu tenho certeza de que vou sentir uma
terrível falta dela. Quando saí de casa tive o impulso de deixar gravados com minha
voz os poemas de amor de que mais gosto, inclusive diversos de Neruda. (7) Não sei
como vou me sentir longe dela e de meus filhos.
- Meu caro, você disse que seu último filho ainda é bebê. Qual é o sentimento a
respeito do papel que desempenha em relação a eles?
O homem alterou a fisionomia neste momento, falando com voz enérgica,
completamente diferente do tom que estava empregando.
- Posso lhe responder citando um artigo que escrevi há pouco tempo. Nele eu falo
que os líderes da Revolução têm filhos que não aprenderão a chamar o nome do pai
com suas primeiras palavras balbuciantes; suas esposas devem aprender que são parte
do sacrifício geral de suas vidas para levar a Revolução a seu destino. Não existe vida
fora disso.(8) Apesar de ter escrito estas palavras, nas quais eu acredito
profundamente, algo dentro de mim não está combinando com a firmeza e a
determinação que demonstrei anteriormente. Eu me sinto fraco e cheio de dúvidas.
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Winnicott, que observava o homem falar algo surpreso pela modificação no tom
de voz e no aspecto geral de seu interlocutor, disse:
- Quase não lhe reconheci quando o senhor falou. Eu acho que pode estar
acontecendo de fato uma divisão radical no seu espírito, ou talvez sempre tenha
existido.
O senhor acredita que este tom veemente, apologético, que empregou é parte
integrante ou expressão do que poderíamos chamar de viga mestra de sua
personalidade, ou seria um tipo de reação a acontecimentos ao longo de sua vida?
- Dr. Winnicott, eu posso lhe responder a esta pergunta com bastante certeza.
Sempre me vi como uma pessoa de opiniões muito firmes e um desejo de atuar para
mudar o mundo muito forte. Queria seguir uma atividade que me permitisse realmente
doar algo à humanidade. Foi desse jeito que me vi toda a vida. Mas o senhor falou de
algum tipo de reação.
Onde é que o senhor coloca o início do sujeito real; o local de chegada e da
caminhada da pessoa original que vem ao mundo?
Winnicott respondeu prontamente:
- Em meus estudos a este respeito, eu cheguei a formular a idéia de que o sujeito
verdadeiro inicial teria que ver com a disposição ou potencial herdado, com a
vitalidade muscular e dos tecidos, começando a interagir com o meio -ambiente logo no
momento do nascimento ou até mesmo antes dele. Sempre pensando em interação, caso
os cuidados com o bebê sejam eficientes em perceber estes potenciais inatos e facilitar
a sua expressão e integração, podemos falar de verdadeiro self. Este tem a ver com
espontaneidade e criatividade e surge assim que haja uma organização mental por
parte do indivíduo, o que implica pouco mais do que a consciência sensório-motora. (9)
- Este assunto parece bastante complexo, Dr. Winnicott. Não sei se o senhor
percebeu, mas também adotou agora um tom professoral, muito intenso. Como estamos
falando de verdade e o senhor me convidou há pouco para me esquecer de
preocupações, temores, e ser o mais franco e aberto possível, eu quero lhe fazer uma
proposta semelhante.
Acho que o senhor já percebeu que devido às circunstâncias que estão
acontecendo em minha vida eu não poderia fazer uma análise com o senhor, mesmo
que concluíssemos aqui que isto seria necessário ou fosse a realização de algo de que
necessitei toda a minha vida. Este é um encontro entre dois homens, no qual pelo menos
um deles já está fora do trampolim. Eu já saltei e não há volta. Em aviação há uma
expressão que tr ata deste assunto. É chamado de point of no return. Não é possível
voltar ao aeroporto de partida e a única saída é alcançar o destino.
- Bem, meu amigo, isto é uma situação totalmente fora do comum, porque embora
eu sempre tenha defendido que o analista seja também uma pessoa real, não vim para
este encontro para falar de mim. Como o senhor ainda está mascarado e acho que
desvendar a sua história real possa ser interessante também para mim, vou levar a sua
proposta em conta. É como se fosse um jogo, onde procurássemos os dois sujeitos reais,
dentro do mosaico da paisagem de suas vidas. Não sei com certeza quais são as minhas
razões neste momento, mas estou disposto a jogar.
Guevara deu um sorriso satisfeito e falou:
- Voltando então ao início de minha vida, posso lhe contar que nasci de uma
união de amor e de pais inovadores e corajosos. Principalmente minha mãe, que
sempre foi uma mulher muito ativa e revolucionária. Era anticonvencional e isto se
mostrou no meu nascimento, que aconteceu na verdade um mês antes do que eles
fizeram constar em minha certidão por motivos de conveniência social.
Winnicott respondeu com um sorriso maroto: -Então eles não eram tão
inovadores assim, não é?
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- De fato. Não é fácil enfrentar preconceitos sociais. Daí porque ser verdadeiro e
coerente com o que se é seja tarefa tão delicada. Então ocorreu um episódio que foi
motivo de muitas brigas entre eles. Eu era muito pequeno ainda e minha mãe deixou
que eu entrasse na água fria em um dia em que a temperatura já estava baixa. Tive a
minha primeira crise de asma nesse dia e meu pai sempre a acusou de desleixo comigo
por isso. Daí em diante as crises me acompanharam a vida inteira, e posso dizer que
tiveram grande influência não só no meu destino como no de minha família. Meus pais
precisaram mudar para uma região montanhosa da Argentina em benefício de minha
saúde e devido aos poucos recursos da região meu pai começou a ter problemas
profissionais que acabaram por torna-lo deprimido. A nossa vida foi cheia de altos e
baixos. (10)
Winnicott disse:
- Já a minha vida familiar foi bastante estável e segura. Não sofri qualquer tipo
de angústia ou perda física, não tive irmãos mais novos que me tirassem o lugar e fui
criado com enorme estabilidade e consistência.(11) Acredito que isto possa ter me dado
uma base de segurança e me feito considerar a importância da família estável e coesa
para o desenvolvimento do indivíduo.
Com um sorriso o homem falou:
- Sorte a sua Dr. Por outro lado, o senhor não acredita que este tipo de
estabilidade possa levar a alguma forma de acomodação ou de conformismo?
Winnicott sorriu, e parecia neste momento um jogador de xadrez, observando o
movimento do outro.
- ‘Peão do rei duas casa à frente!’, falou de súbito.
Guevara olhou para ele completamente surpreso:
- Não me diga que o senhor joga xadrez, Dr. Winnicott? Joguei a minha vida
inteira, e fui iniciado por meu pai e estimulado por ele ainda menino. Era um dos
nossos pontos de cumplicidade.
Winnicott falou em um tom algo irritado:
- Não joguei, apenas estava lhe alertando, de modo espontâneo, para as regras
que propusemos. Não estamos jogando com a cabeça. Acho que nosso jogo vai ser
melhor se partir do coração. O nosso não é para ser um ‘game’, uma competição. É
para ser um ‘play’ , um brincar compartilhado, onde não interessa derrotar o outro.
Todo mundo ganha.
- Este é um conceito interessante, Dr. Winnicott, mas eu acho que a minha
personalidade e minha vida mostraram um jogo diferente. Apesar de minhas limitações
físicas causadas pela asma, joguei rugby, e me destaquei. Era muito combativo e feroz.
Meus amigos chegaram a me apelidar de Fuser, que era a mistura de furioso com o
sobrenome de minha mãe, tal a ferocidade com que me dedicava ao jogo, apesar das
limitações físicas que a asma me impunha.
Winnicott exclamou:
- Isto é surpreendente. Eu também joguei rugby e tive algum destaque. Em um
jogo no dia 13 de dezembro de 1910 recebi uma menção especial por ser muito bom
naquele dia, apesar da derrota de nosso time.(12) Saiu até mesmo um artigo no Leys
Fortnightly do dia 20 de dezembro. Coisas como essa, que representam um elogio e um
incentivo para nossa auto-estima são tão importantes que, mesmo hoje, mais de meio
século depois, eu me lembrei imediatamente até mesmo da data.
Guevara disse:
- É fato. Eu fico pensando também nos efeitos que as situações contrárias, ou
seja, aquelas que nos provocam humilhação ou sofrimento e rejeição, podem causar ao
nosso sentimento. Eu tive sempre a tendência de me defender de deboche ou das
dificuldades rindo delas. Até mesmo posso dizer que as procurasse, como se elas fossem
um teste ou treinamento para confrontações futuras. Pensando aqui junto com o
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senhor, neste espaço inédito para mim, fico imaginando se este enfrentamento
constante com as convenções não tenha sido a expressão de minha necessidade de me
pôr à prova e de enfrentar adversidades.
Winnicott parecia estar gostando da conversa, imaginando se não haveria um
pouco de ineditismo também para ele.
O homem continuou:
- A primeira mulher de quem eu gostei muito, e até mesmo posso dizer que amei,
era muito bonita e rica. Era morena, tinha o rosto meigo e ficou louca por mim. Eu
destoava completamente de seu círculo de amigos. Andava mal vestido, algumas vezes
sujo, e acho agora que aquele fosse meu modo de chamar atenção, ou ‘épater les
bourgeois’. Chegaram a apelidar a camisa que usava de ‘la semanera’, ou seja, a
semanal. De branca ela ficou bege.
Os problemas começaram quando eu resolvi pedi-la em casamento. Ela tinha
apenas dezesseis anos e a família, que me aceitava até aquele momento, começou a
fazer de tudo para nos separar. Isto não me incomodava, até me dava força. Afinal,
eram os latifundiários, milionários, lutando contra o amor do jovem pobre romântico.
Quando recebi uma carta dela acabando com tudo, pensei que fosse morrer e me senti
sem rumo. Não sei avaliar até que ponto este episódio tenha influído nos
acontecimentos futuros de minha vida.(13)
- Por meu lado, relacionei-me com um bom número de moças, tendo quase me
casado em várias ocasiões. Uma das que eu namorei era irmã de um de meus melhores
amigos, mas esta relação não durou muito. Olhando para trás, vejo que foi de modo
algo súbito que eu conheci. Ela se chamava Alice Buxton Taylor, tinha 31 anos, e era
uma pessoa artística e enteada de um médico de renome. Eu tinha 27 anos na época e
casei com ela no dia 7 de julho de 1923. (14)
- Mais uma coincidência Dr. Winnicott. Eu também casei com uma mulher mais
velha do que eu e posso lhe afirmar que não a amava. Não é muito nobre o que vou
dizer, mas eu acho que me aproveitava dela, usando seus relacionamentos, seu dinheiro
e sua casa. Usava também seu corpo, porque sempre fui muito ativo sexualmente e não
gostava de ficar muito tempo sem ter relações sexuais.(15) Como sempre me vi como
um sujeito anticonvencional, não sei explicar porque decidi casar com ela quando me
informou que havia engravidado. Tinha quase certeza que ela fez isso para tentar me
prender e me impedir de seguir viagem, possivelmente com receio de me perder. São
situações de minha vida para as quais eu não consigo encontrar uma explicação
razoável.(16)
Winnicott estava sério quando falou:
- Posso lhe dizer que as escolhas das pessoas a quem vamos amar são das mais
indicativas de lados profundamente ocultos de nossas personalidades. Tem a ver com
os primeiros objetos de nosso amor e são na maioria das vezes inconscientes.
- O senhor foi feliz em seu primeiro casamento Dr.Winnicott? Desculpe a
pergunta, de repente me senti um pouco abusado, forçando entrada em sua intimidade.
Winnicott estava um pouco perplexo com o rumo que a conversa estava tomando,
atônito com sua atitude de estar falando de sua vida com um completo estranho, além do
mais incógnito. Este comportamento tão pouco convencional de sua parte, que ele
considerava até mesmo imprudente, o inquietava. No entanto, percebeu que estava
movido por um sentimento inédito de se revelar naquele momento, e apesar de suas
reservas decidiu continuar.
- Não posso dizer que tenha sido feliz. Apenas no início. Infelizmente Alice sofria
de graves problemas psiquiátricos, incluindo alucinações e delírios. Seu quadro se
agravou com o passar do tempo e pode-se dizer que tenha enlouquecido. Tomar conta
dela tomou toda a minha juventude. Ficamos casados durante 25 anos, e uma das
únicas coisas boas que posso dizer de meu relacionamento com ela, foi que por causa
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dos seus problemas procurei análise em 1923.(17) Isto seria motivo de profundas
transformações em minha vida e podemos ver que mesmo de um episódio doloroso
podemos tirar boas lições ou oportunidades.
- Isto é muito estranho Dr. Winnicott! Como pode ter acontecido que o senhor,
um homem dedicado ao estudo dos problemas emocionais tenha se casado com alguém
tão doente? De meu lado, eu que sempre vivi intensamente, pergunto: como posso ter
me unido a uma mulher que não me despertava entusiasmo? Logo eu, o homem das
paixões radicais.
Winnicott falou:
- Eu lhe disse que estas questões de amor são complexas e difíceis. Olhando para
trás, vejo que desde a infância convivi com uma mãe que era profundamente deprimida.
Talvez eu possa ter armazenado uma série de fantasias de reparação em relação a ela,
realizando estes desejos ao buscar uma mulher profundamente vulnerável para casar.
(18)
- Apesar de achar tudo isto muito estranho Dr. Winnicott, suas palavras e a sua
hipótese para a sua escolha me levaram a pensar o seguinte. Será que eu me casei com
Hilda porque ela era mais velha e provedora? Na minha família o papel de mantenedor
foi muitas vezes invertido pelas dificuldades profissionais de meu pai, e era o dinheiro
da herança de minha mãe que sustentava a casa. Além disso me pergunto se a desilusão
com a perda do amor de ‘Chichina’ não tenha desempenhado algum papel nessa minha
atitude passiva de não escolha na questão do casamento.
Winnicott disse:
- Eu tenho certeza, senhor, de que o ambiente inicial de nossas famílias e o
exemplo de vida que observamos e sentimos lá, vão ser determinantes em grande
medida de nosso futuro. Quando falava que o ambiente de minha casa tinha sido
estável, não estava mentido ou me negando a ver mais amplamente. Apenas não pus o
foco no quanto a depressão de minha mãe possa ter influído sobre os sentimentos e as
dificuldades de todos os filhos.
- Eu confesso, Dr. Winnicott que logo depois de me casar e do nascimento de
minha filha só pensava em cair na estrada com meus companheiros de luta. A minha
irritação com Hilda, que eu tinha mantido sob controle durante a gravidez, começou a
aumentar. Eu estava tão envolvido com questões políticas que até chamava a menina de
‘minha pequena Mao’ e fazia discursos para ela ao invés de cantar canções de
ninar.(19)
Winnicott deu um sorriso meio triste neste instante, dizendo que ele mesmo sabia
o que era receber pouca atenção de um pai muito ocupado e falou:
- Quando eu tinha 14 anos fui mandado para o internato por meu pai, que
justificou sua atitude dizendo-se preocupado com minha educação e minhas
companhias ao me ouvir usar a palavra ‘danação’ durante um jantar.(20) Ouvindo
você falar de como as tarefas que estava se determinando a cumprir tomavam todo o
seu tempo e sua mente, me ocorreu que meu pai, com todas as suas atividades
comunitárias, talvez estivesse sem paciência para lidar com um adolescente
questionador como eu. No fim das contas, acho que danação não é uma palavra tão
feia que justifique um garoto ser separado de sua família e mandado para o internato.
Uma coisa boa que aconteceu lá foi que no período da tarde, quando não havia
aulas, eu praticava esportes diversos. Nessa época eu comecei a dirigir uma
motocicleta. Andar de bicicleta e de moto teria sempre um papel central em minha
vida. (21)
- Isto é assombroso Dr. Winnicott! Eu comecei a conhecer o meu país e tomar
contato com as realidades duras num passeio de bicicleta motorizada, que eu havia
planejado fosse cobrir 850 quilômetros. No final eu andei mais de 4000. Nem posso
falar da alegria que senti com este passeio, assim como da importância dele para o
71
início da construção de minha consciência cívica. Depois eu continuei esta
‘conscientização sobre duas rodas’, se assim eu posso chamar, percorrendo a América
do Sul de motocicleta. Ela era apelidada de ‘Poderosa II’ e meu companheiro de
viagem foi um dos meus melhores amigos e se chamava Alberto Granado. Acho que
experiências como estas que estamos vendo, ou seja, eu e o senhor termos gostos em
comum como o amor pelas motos, são mais do que coincidências. Mostram algum tipo
de afinidade diante da vida, que eu não sei explicar. Eu me senti bastante próximo do
senhor ao lhe ouvir falar sobre a motocicleta.
- Talvez possamos então nos aproximar mais um pouco de sua vida real, disse
Winnicott. Pelo que entendi, o senhor começou desde muito cedo a se interessar por
questões sociais e, no período em que falava sobre nascimento de sua filha estava se
preparando para algum tipo de luta mais específica?
Neste instante bateram na porta e Winnicott se levantou, olhando para o relógio.
Nem tinha percebido que já havia passado bastante tempo desde que o visitante chegara.
Sua esposa Clare apareceu e tinha uma expressão preocupada no rosto, seja pela
mudança dos hábitos de Winnicott, seja por seus cuidados com sua saúde e com os
medicamentos que ele necessitava usar regularmente. Perguntou também se ele não
queria almoçar. Winnicott lhe fez um carinho no rosto, procurando tranqüiliza-la, e
disse que ia comer, mas que preferia ficar no escritório, fazendo a refeição junto com o
visitante. Pediu desculpas à esposa pelos transtornos e disse que mais tarde explicaria
tudo.
O visitante estava de pé junto a uma estante de livros e voltou-se para Winnicott,
que lhe perguntou:
- O senhor aceita almoçar comigo? A comida é um pouco de dieta, por causa de
meus problemas de saúde, mas acho que pode ser agradável.
- Não sei como lhe agradecer por tudo Dr. Winnicott. Comer junto com alguém é
algo muito íntimo e ao mesmo tempo solidário. Estes rituais de compartilhar alimento
acompanham o homem desde o tempo das cavernas. Na minha família a hora da
comida era muito alegre. Enquanto a comida não vem, vou responder a sua pergunta.
Quando disse que fazia parte de um grupo que estava se preparando para lutar, eu não
lhe disse que grupo era, ou o motivo da luta. Acho que este é o momento de deixar cair
o meu disfarce e falar realmente quem eu sou. O grupo foi o organizado por Fidel
Castro, junto com vários outros cubanos, que já haviam tentado derrubar o ditador e
foram derrotados. Castro foi preso durante bastante tempo, saiu do país e nos
conhecemos no México. Nossa empatia foi imediata, apesar das diferenças entre nós.
Ele me revelou os planos para invadir a ilha de Cuba e começar a revolução. Passamos
por terríveis dificuldades, quase fomos massacrados no desembarque na ilha e depois,
nos combates de Sierra Maestra. Ali eu aprendi na prática o que eu havia estudado e
pensado durante toda a minha vida. É possível convocar o povo e fazer uma revolução
que transforme sua vida.
No final conseguimos triunfar e o ditador Fulgencio Batista fugiu para o exílio e
estabelecemos um governo revolucionário.
Enquanto o visitante falava Winnicott, que no início estava mexendo o chá em sua
xícara predileta, parou, completamente atento, fascinado pelo desvendamento do
mistério e ouviu:
- Meu nome verdadeiro é Ernesto Guevara, mas eu sou mais conhecido em todo
o mundo como ‘Che’ Guevara.
Ao ouvir estas palavras, Winnicott estava com os olhos arregalados de espanto e
disse:
- O senhor é o ‘Che’, conhecido em todas as partes do mundo pela foto com o
boné e a estrela? Você é um jovem de uns 38 anos e o homem que entrou aqui é um
72
senhor de meia idade, abatido e cansado. Como pôde ter acontecido isto? Não é um
disfarce, é como se você tivesse se transformado em uma outra pessoa.
Guevara estava rindo abertamente neste momento.
-O fato de sermos um país pobre e com poucos recursos não nos impede de
sermos muito capazes. Este disfarce, ou mudança de identidade, foi muito planejado e
tão bem executado e secreto que ao ficar pronto, eu e Fidel marcamos uma reunião
com um grupo de nossos amigos e colaboradores mais chegados, e ninguém entre eles
me reconheceu. Minha transfiguração exigiu até mesmo que meus cabelos fossem
arrancados fio a fio, para que a calvície fosse mais convincente. Isto foi tão doloroso
que eu chorava. Estas medidas de segurança que o senhor pôde ver, quando não lhe
disse quem eu era, são obrigatórias devido aos riscos que eu corro e que acabam
atingindo as pessoas com as quais eu entro em contato. Minha família de origem já
sofreu atentados e minha vida e de Fidel correm riscos. Peço desculpas ao senhor por
ter pedido para me encontrar.
Winnicott olhava para Guevara completamente fascinado. É lógico que um certo
receio ou preocupação percorria o seu espírito. Afinal, ele sabia da importância de seu
visitante, dos cargos que exercia e havia exercido na revolução cubana, e sua fama
como combatente e defensor intransigente das conquistas obtidas com muito esforço.
Sabia também que ele era vigiado e procurado pelos serviços secretos de vários
países. Cuba havia se transformado como que em um farol para o mundo e intelectuais
de todas as partes haviam visitado a ilha para ver e ouvir de perto as idéias que aquele
homem e Fidel Castro defendiam. Pensadores respeitados como Jean Paul Sartre e
Simone de Beuvoir tinham ido à ilha pessoalmente para conferir a possibilidade de se
construir uma sociedade com justiça social. O encontro com ele era realmente uma
oportunidade única.
- Dr. Winnicott, o senhor está se sentindo mal? Seu rosto ficou pálido outra vez.
Não se esqueça de que eu sou médico também e não quero lhe causar mais problemas
do que os que já causei.
Winnicott deu um suspiro algo resignado e falou:
- Não se preocupe. Se eu estou pálido, pode ser devido à emoção de encontrar
com você. Eu acho que você representa, de certa forma, um ideal de atuação no mundo.
Minhas lutas e minha vida foram dedicadas, na dime nsão do relacionamento do
indivíduo, a construir uma vida melhor. Eu ia dizer mundo, mas mudei para vida por
pudor. No entanto, creio que se eu for sincero, devo admitir que a luta de todos os que
se dedicam a melhorar a vida de uma pessoa, de uma família, acaba sendo a luta para
mudar o mundo. Este é feito, afinal de contas, de pessoas, seus amigos, suas famílias. O
micro é articulado vida a vida, e termina compondo o macro, o mundo.
Winnicott estava veemente, o tom de sua voz já habitualmente agudo um pouco
mais alto neste momento e Guevara exclamou:
- É bom ver o senhor entusiasmado, Dr. Winnicott. A cor já lhe voltou ao rosto.
O motivo principal para eu ter lhe procurado foi ter percebido que esta visão da
vida que o senhor acabou de descrever era muito importante. Eu comecei a notar,
depois da tomada do poder, que a revolução não acaba com uma guerra na qual se
triunfa. Ao contrário, é ali que ela começa. A luta para a manutenção de ideais de
liberdade, de respeito pelo próximo e de generosidade é árdua e tem que ser mantida
todos os dias. É um trabalho diário de melhoria e aprendizado. É necessário lutar
contra nossa natureza egoísta, voltada para interesses imediatos e para a necessidade
de ganhos rápidos. Percebi na prática que é muito difícil conseguir tudo isto.
Winnicott respondeu:
- Este é um aprendizado doloroso, Che. Escrevi há algum tempo que o sentido de
moralidade e de consideração tem que ser desenvolvido de dentro para fora, em
relações ocorrendo num meio ambiente confiável. É evidente que eu escrevi isto a
73
respeito dos bebês. Mas também fica claro que os bebês vão se desenvolver e se
transformar em homens ou mulheres, lidando uns com os outros e formando a
sociedade. Assim, o que acontece com o bebê, ou o bem que pudermos fazer a ele,
representa um modelo do bem que podemos fazer à humanidade. Basicamente, o que eu
discuti nos trabalhos a que me refiro (22) é que é a técnica materna que permite que o
amor e o ódio coexistentes no bebê se distingam um do outro, e em seguida venham a se
inter-relacionar e tornem-se gradualmente controláveis a partir de dentro, de um modo
que chamamos de saudável.
- Este é um ponto muito importante, Dr. Winnicott. Eu ficava muitas vezes
intrigado pelo modo como pessoas do povo, por cujos direitos nós havíamos lutado e
estávamos lutando, podiam se sentir desestimulados, ou melhor, desesperançados
diante dos esforços coletivos para alcançar o progresso e o bem comum. Posso dar o
exemplo da colheita da cana de açúcar, nosso principal produto de exportação. Não
era necessário apenas grande empenho de todos, independente de nível profissional,
mas também tolerância com os baixos salários que éramos obrigados a pagar. Além
dos salários pequenos, também a diferença de ganho entre diferentes categorias
profissionais praticamente acabou. Não achamos que um médico, pesquisador ou
professor seja tão mais importante que um trabalhador braçal que deva ganhar
infinitamente mais que ele. Ao iniciarmos a implantação destas idéias, que são algumas
das que formam a base da construção de uma nova sociedade, percebemos o quanto
isto era difícil.
Nesse ponto da conversa bateram outra vez na porta e Clare apareceu, trazendo o
almoço. Desta vez Winnicott a deixou entrar, fazendo-lhe um afago no rosto. Este era
um gesto de carinho comum entre os dois. Ele se dirigiu a Che Guevara e a apresentou,
dando o mesmo sorriso travesso de tantas vezes, quando estava descobrindo algo novo e
muito interessante, o que a deixou intrigada.
- Guevara, esta é minha esposa Clare.
Ela estendeu a mão e seu rosto estampava a mesma surpresa que Winnicott
mostrara. Disse muito prazer mantendo a mão no ar por alguns segundos, tamanha era a
sua perplexidade.
Guevara estava sorrindo e disse:
- Não pareço muito com minhas fotografias, não é? Eu expliquei a seu marido
que tive que me disfarçar para sair do país e alcançar alguns objetivos políticos
secretos. Desculpe por vir até a sua casa, mas precisava falar com seu marido. Ele lhe
explicará a respeito da importância de manter nosso encontro em absoluto segredo.
Clare continuava atônita e disse:
-Não se preocupe senhor. Aqui em casa estamos acostumados a guardar muitos
segredos. Para nós isto é mais do que um hábito. Pode ser considerado mesmo como
uma das questões essenciais de nosso trabalho e de nossas vidas. Po de ficar tranqüilo
porque o seu segredo está está em completa segurança.
Pediu licença e saiu.
Guevara e Winnicott se sentaram e começaram a comer. Algo na expressão de
Winnicott havia mudado e Ernesto falou:
- O senhor a ama muito, não é? Eu consegui ver isso no brilho de seu olhar. Eu
posso dizer que sou um homem apaixonado também. Aleida, minha segunda mulher,
apareceu em minha vida como um cometa e eu me apaixonei por ela imediatamente.
Eu ainda estava casado com Hilda, mas os olhos e o sorriso de Aleida, sua
coragem e sua alegria de viver me fascinaram. Esqueci de tudo, menos da luta que
estávamos travando juntos, e ela passou a ser como oxigênio ou alimento para mim.
Ela era linda e eu fiquei absolutamente fascinado por ela. Apesar disso, por uma
questão de respeito e de hierarquia mantive distância dela, até que não agüentei mais.
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Uma noite, durante a batalha de Santa Clara, resolvi procura-la de repente.Ela
estava sentada diante da casa, como se estivesse esperando por mim. Parei o jipe com
uma freada brusca e perguntei: você quer vir comigo? Ela subiu, sentou a meu lado e
nunca mais nos separamos.
Winnicott estava se servindo de um pouco de carne fria e manteve a expressão
que havia despertado o comentário de Che.
- Eu sei do que você está falando, porque conheci Clare em circunstâncias de
trabalho, durante a ação com crianças evacuadas na guerra. Minha atração por ela foi
favorecida não somente por suas evidentes qualidades profissionais. Também me
encantei com sua beleza física. Alguns de seus colegas a chamavam de ‘uma tremenda
louraça’. (23) Eu acho que ela era mesmo. Ela também passou a ser como oxigênio em
minha vida e eu disse a ela em uma carta que ela me tornava perspicaz e produtivo.
Como uma confissão pessoal, devo lhe contar que a conheci e comecei a minha relação
com ela muito tempo antes do fim de meu casamento com Alice. (24)
Guevara, que nesse momento olhava para os brinquedos no chão da sala estava
dando um sorriso maroto e falou:
- Não há nada mais revolucionário do que a paixão, não é Dr. Winnicott? Eu ia
falar não é, meu amigo? Acho que ao falarmos de nossas vidas e de acontecimentos tão
íntimos nos tornamos cúmplices. Penso que o senhor deve ter experimentado isto
muitas vezes, ao ouvir tantas coisas secretas e delicadas de seus pacientes. Talvez hoje,
aqui comigo, seja um pouco diferente porque o senhor também está falando segredos.
- É um pouco diferente Guevara, e a princípio eu me sentia estranho. Entretanto,
como já disse, não sei bem porque este momento em sua companhia está tendo uma
qualidade diferente, especial. É como se nós dois estivéssemos prestes a nos lançar
rumo ao desconhecido. No seu caso, isto faz sentido e fica claro. No meu, eu ainda não
entendi, mas sinto que estas reflexões estão me fazendo bem.
Ficaram por algum tempo em silêncio, e Guevara se surpreendeu com o fato de
estar comendo pouco. Ele era conhecido desde menino por seu apetite voraz, e embora
parte da moderação que estava mostrando talvez se devesse à comida inglesa servida,
pouco temperada e diferente da que ele gostava, achava que não era só isso. Estava se
sentindo alimentado de sentimentos e de emoções.
Winnicott terminou de comer e serviu-se de uma outra xícara de seu chá predileto,
colocando uma dose bem maior de uísque do que o habitual. Estava se sentindo
confortável e relaxado. Voltou-se para Guevara quando ele começou a falar.
- Eu tive muita dificuldade de lidar com a situação do término de meu casamento
com Hilda quando ela finalmente veio a Cuba em janeiro, trazendo com ela Hildita,
que na época estava com três anos. Eu, ‘o destemido’ Che dos combates era um pouco
menos em matéria de casamento; mandei o meu amigo Dr. Oscar Fernández Mell
encontrá-las no aeroporto, ao invés de ir eu mesmo. (25) Nosso reencontro foi difícil,
porque eu não conseguia fazer rodeios, como de costume. De modo claro e decidido,
disse a Hilda que estava vivendo com uma outra mulher, que havia encontrado na
campanha de Santa Clara. Ela pareceu sentir profundamente o impacto do que eu
disse, mas seguindo nossas convicções concordou em se divorciar.(26) Se Hilda aceitou
com tanta facilidade e de verdade a separação eu não sei dizer. O que eu posso lhe
dizer é que tentei desempenhar meu papel de pai com a pequena Hilda, que eu conhecia
apenas de fotografias. Não foi tarefa fácil, pois Aleida e Hilda se detestaram e se
desprezaram desde o primeiro momento em que se viram. Para evitar problemas com
Aleida eu freqüentemente mandava trazer a pequena Hilda para ficar na fortaleza de
La Cabaña. Lá, nós podíamos ficar caminhando de mãos dadas, ou ela ficava
brincando no meu escritório enquanto eu trabalhava. (27)
Com estas lembranças creio estar lhe respondendo um pouco a respeito da
importância que as crianças tem para os pais e que papel o pai desempenha na vida
75
dos filhos, falando de mim mesmo. Recordar destes fatos me provoca dor. Algumas
vezes me faltava o ar quando eu me via envolvido no cabo de guerra em que minha vida
se transformou naquele período.
Os filhos são tão importantes, que apesar de minhas convicções sobre as
prioridades de um revolucionário e combatente, foram eles um dos principais motivos
que me levaram a lhe procurar. Quero muito lhe ouvir a este respeito, pois sei que o
senhor dedicou grande parte de sua vida e de seus estudos teóricos para discutir estas
questões.
Enquanto a conversa entre os dois se desenvolvia, Clare estava em outra parte da
casa e manuseava alguns artigos de jornais falando sobre o visitante. Estava tão
impressionada com a espantosa transformação que Guevara havia sofrido que
interrompeu um artigo que estava escrevendo para ser publicado em uma revista de
psicanálise. As matérias falavam de sua importância para a revolução cubana e sobre a
sua intransigente defesa da liberdade dos povos, que provocava enorme irritação aos
governos, inclusive ao de seu país. Ficou preocupada com a segurança de Winnicott,
que no outro escritório estava começando a responder:
- De fato, Guevara, estes foram temas centrais de minha vida e de minha obra. Eu
comecei estes estudos a partir de minha experiência como pediatra. Ao cuidar de
crianças, você percebe de imediato as relações e problemas existentes no universo
composto por pai, mãe e filhos. A primeira questão envolvida nesta estrutura familiar é
a da completa dependência e vulnerabilidade das crianças, especialmente bebês. É
evidente que esta visão é muito complexa, porque ao analisarmos a estrutura familiar
estamos falando de diversos campos da ciência, ou das ciências. Falamos de biologia,
quando pensamos a respeito da gravidez, do nascimento e da amamentaçã o e cuidados
com o bebê. Esta biologia é equivalente à dos mamíferos, em sua base, acrescida das
complexidades que o desenvolvimento explosivo do córtex humano trouxe. Falamos de
sócio -psicologia, quando pensamos nos papéis dentro da família, ou seja, quando
enfocamos especificamente as relações entre homem e mulher no que diz respeito ao
nascimento de um bebê. Podemos discutir história, fazendo uma revisão dos modelos
familiares em relação às condições econômicas e políticas que determinam estas
estruturas através do tempo. Também podemos discutir sobre o amor e sobre doação,
tanto na escolha de um parceiro quanto na atenção obrigatória que precisa ser dada ao
bebê. Eu poderia seguir adiante, ampliando as enormes possibilidades de estudo a
respeito da família e das relações dentro dela. Em suma, o estudo desta relação do
casal humano e seus bebês, que a princípio pode ser considerado simples, ou mesmo
simplório, revela-se algo extremamente vasto e complexo.
- Então eu acho que estava certo ao procurar o senhor, Dr. Winnicott. Não foi só
a minha admiração pela psicanálise e minhas leituras a este respeito que me trouxeram
a este encontro. Acho que foi intuição de que nós dois nos preocupamos com os
problemas da vida humana e das maneiras para melhora-la em campos diferentes, ou a
partir de premissas diferentes, mas fundamentalmente à procura dos mesmos ideais.
Estivemos sempre discutindo caminhos para tornar a vida mais plena e feliz.
- Eu acho, Guevara, que este momento seja realmente singular. De um lado está
você, um militante e guerrilheiro, com cinco filhos e que decidiu abandonar sua família
e a mulher que você ama para se dedicar a alguma coisa que eu ainda não sei o que é.
Você parece estar em dúvida se esta atitude é uma escolha ou uma imposição interna e
também parece estar questionando o valor geral de sua decisão. Talvez você esteja se
permitindo ter dúvidas, mesmo depois de ter dado o salto, como você falou. Esta
posição em que você está necessita de muita coragem, porque é mais difícil questionar
uma decisão depois que iniciamos o processo para a sua realização.
Do outro lado estou eu, um homem que dedicou sua vida ao estudo do
desenvolvimento humano, da estabilidade da família e das relações entre os pais e os
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bebês e não consegui ter filhos. Nosso encontro tem algo de dramático, pois é de certa
forma um balanço que dois homens fazem de algumas escolhas em suas vidas.
Winnicott falou isto em um tom grave, pouco habitual para quem tinha voz
bastante aguda. Seu rosto também exibia um ar sério e, naquele momento, nada de
brincalhão aparecia em sua fisionomia. O duende que tantas pessoas haviam visto
encarnado nele, estava transformado em um mago refletindo sobre problemas
extremamente sérios. O relógio soou mais uma hora e ele se surpreendeu com a rapidez
da passagem do tempo.
- Dr. Winnicott, o senhor esta bem? Seu rosto mudou outra vez de expressão! Eu
estou preocupado. O tempo de que dispomos é muito curto para a quantidade de
questões que eu pretendo discutir com o senhor. Não sei se devo continuar, pois o
senhor está muito frágil e tenho receio de lhe fazer mal.
Winnicott nada respondeu e permaneceu olhando para o rosto de Guevara, que
começou a falar outra vez.
- Minha ligação com a revolução e a libertação dos povos sempre foi muito
intensa, talvez completa. Logo depois de conseguir o divórcio de Hilda, em maio, eu me
casei com Aleida em uma cerimônia civil, no dia 2 de junho. Fizemos uma festa com
amigos íntimos, como Camilo, Célia Sanchez e outros, na casa de meu mais
incontrolável guarda-costas, Alberto Castellanos. Poucos dias depois voei para Madri,
cidade inicial de meu roteiro, que incluía o Japão, por causa de seu desenvolvimento e
países não alinhados da África, Ásia e Europa. Fidel me disse para levar Aleida
comigo, transformando a minha viagem política em um tipo de lua de mel. Eu não
aceitei e deixei Aleida para trás, porque achava que os líderes revolucionários deviam
mostrar austeridade em suas vidas pessoais. Nunca fui transigente nestas questões. (28)
Che não sabia que por trás da fachada política de ‘boa vontade’ de sua viagem,
havia existido a decisão de Fidel de afasta-lo do país, devido ao radicalismo de suas
posições e para não criar mais problemas com o governo americano, que por aquela
época já considerava Che a ‘principal Nemesis’ da América Latina. Fidel ainda estava
tateando a procura do modo mais eficaz de se relacionar com os americanos e precisava
de algum espaço para ‘respirar’. A saída de Guevara da cena seria benéfica para as suas
intenções no momento.
- Eu vou lhe contar desta viagem, Dr. Winnicott, apenas uma passagem que tem
um valor emocional e sentimental para mim, e que serviu também como um alerta para
os perigos de se assumir o poder.
Um dos heróis de minha adolescência tinha sido Nehru, e seu livro sobre a Índia
havia representado uma fonte de inspiração para mim. Eu estava ansioso pelo meu
encontro com ele, que ocorreu no Palácio do governo, durante uma suntuosa refeição.
Ele estava em companhia de sua filha Indira e dos dois filhos dela, Sanjay e Rajiv. O
venerável primeiro-ministro mostrou um comportamento sofisticado, explicando cada
um dos pratos exóticos servidos e falando muito pouco.
Finalmente eu não agüentei mais e perguntei: “Senhor Primeiro Ministro: Qual é
a sua opinião sobre a China Comunista?” Nehru ouviu com uma expressão ausente e
respondeu: “Senhor Comandante, o senhor provou estas deliciosas maçãs?” “Senhor
Primeiro Ministro: o senhor já leu Mao Tse- Tung?” “Ah, senhor Comandante, como
estou contente que tenha gostado das maçãs.” (29)
Veja só Dr. Winnicott, como um homem pode ouvir e responder apenas o que lhe
interessa.
Winnicott estava com um sorriso no rosto.
- Eu sei muito bem o que é isto Guevara. Muitas vezes em reuniões científicas,
quando apresentei algum trabalho que contivesse uma idéia nova ou provocadora,
pude ver reações semelhantes. Mas voltemos à sua vida familiar. Como se desenvolveu
a sua relação com Aleida?
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- Antes de lhe responder esta pergunta, Dr.Winnicott, preciso lhe dizer que por
esta época estava se desenvolvendo dentro de mim um sentimento de
desterritorialização pessoal, se assim eu posso falar. Quero dizer com isso que apesar
de estar apaixonado e amar Aleida e de ter laços afetivos fortes principalmente com
minha mãe, a quem enviei uma carta que exprime verdadeiramente a minha essência,
me sentia desenvolvendo um sentimento de amplitude de visão em oposição ao pessoal,
e disse a ela que eu ainda era o mesmo solitário que eu costumava ser, procurando um
caminho sem ajuda de ninguém. No entanto, agora possuía um sentido de meu dever
histórico e um sentimento absolutamente fatalista de minha missão que me deixava sem
medo algum.(30) Talvez fosse apenas saudades de Aleida e de meu país, mas era assim
que eu me sentia.
Voltando a sua pergunta, no começo de 1960 eu e Aleida nos mudamos para um
local mais protegido, dentro dos limites de Ciudad Libertad. A casa em que vivíamos
havia pertencido aos oficiais do exército de Batista. Nossa vida doméstica era incomum
devido às minhas múltiplas obrigações, e ao número grande de pessoas com quem tinha
que falar todos os dias.Por causa disso tínhamos pouca privacidade e muitas
dificuldades aconteciam.
Entretanto, meu problema principal nesta época eram os conflitos entre Hilda,
que estava trabalhando no mesmo local, e Aleida, que achava que ela não havia
desistido de me reconquistar. Para se aproximar de mim, Hilda usava nossa filha, que
ela trazia com muita freqüência para brincar comigo. Já falei sobre isso, mas é
importante dizer que eu sentia uma mistura de alegria paternal por estar com ela e de
sentimento de culpa por ter ficado sem vê-la durante bastante tempo. Às vezes Hilda
deixava que ela ficasse conosco durante o fim de semana.(31) Eu me senti apanhado no
meio de um fogo cruzado e tinha dificuldades para lidar com a situação.
- Este é um dos problemas que discuti em meus trabalhos, Guevara. Quando
falávamos um pouco antes a respeito das complexidades das situações familiares, eu
pensava em eventos como estes.
A sua ex-mulher usava Hildita para se aproximar de você. De certa forma, ela
colocava seus próprios interesses em primeiro lugar, ao invés de priorizar a relação da
filha com seu pai, independentemente de estar casada com você ou não. Quando falei
de dedicação dos pais em relação aos filhos, e de generosidade, posso dizer que
incluísse situações como esta. Os interesses e necessidades da menina eram deixados
para trás e ela passava a ficar a serviço da resolução dos problemas da mãe. Isto
constitui uma inversão das expectativas naturais, que deveriam ser colocar a criança
em primeiro lugar e pode trazer más conseqüências para o desenvolvimento da menina.
Ela, mais do que ninguém, com certeza sofria com as tensões deste ambiente.
Você pode ver que estamos lidando nesta situação com as questões iniciais que
você me colocou a respeito de quando começa e quem é o sujeito verdadeiro. Quem
seria a verdadeira Hildita em seus desejos e sentimentos em relação a você? Eu me
preocupei desde sempre com estas questões.
Neste momento Winnicott começou a falar em tom algo provocador:
- Vamos ampliar um pouco o tema, já que em 1957, em uma publicação que
reuniu uma série de palestras que fiz através da BBC e que se chamou ‘A criança, a
família e o mundo exterior’, discuti aspectos de influenciar e ser influenciado. Entre
outros pontos, a reflexão é a respeito das pessoas com uma grande capacidade de dar,
de encher os demais, de meter-se na pele de outras pessoas, realmente para provar a si
mesma que o que tem que dar é bom. Existe uma dúvida inconsciente, é claro, a
respeito dessa boa coisa.(32) O quanto este impulso para ensinar e influenciar é
original e ‘normal’ talvez possa ser medido pelo grau de inquietação que domine o
espírito da pessoa.
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Guevara parecia um pouco intranqüilo neste momento e caminhava pela sala
folheando alguns papéis soltos que havia retirado de sua pasta. Permaneceu em silêncio,
ouvindo as palavras de Winnicott, que prosseguiu:
- Eu continuei estes estudos sobre submissão ao meio ambiente e não
reconhecimento das necessidades individuais durante muito tempo, até que em 1960
escrevi um artigo chamado ‘O conceito do falso self’, que não por acaso fazia parte de
um texto chamado ‘Home is where we start from’. O que quis dizer com isso, é que o
sujeito começa em casa, no lar. O tema central deste trabalho, que marca um ponto de
uma evolução constante em meu pensamento, é o das consequências que incidem sobre
a personalidade quando as necessidades essenciais do bebê não são percebidas pelo
meio ambiente e o bebê procura se adaptar às falhas, tornando-se submisso e
complacente ou reativamente um doador. O que procurei definir é o limite entre o
sujeito verdadeiro e suas necessidades reais, ou o sujeito que se desenvolve falsamente.
- Dr. Winnicott, os temas que o senhor abordou agora são muito difíceis. Os
problemas que ocorrem nas relações das crianças com os pais, como parece estar
ocorrendo com minha filha ao ser usada pela mãe para se aproximar de mim ou causar
problemas com Aleida, eu vejo com clareza. Já o problema da vocação de ensinar ou
do sentimento de doação, eu acho mais difícil. Às vezes acho complicado generalizar
situações a partir de um caso particular.
Acredito também que o senhor estava com um tom algo desafiador e crítico
enquando falava.
O fato é que eu, que na esfera da atuação pública do governo e nas tarefas da
revolução estava tentando me despersonalizar, ainda tinha uma vida pessoal. Em fins
de julho, Aleida estava grávida de cinco meses de nosso primeiro filho e os conflitos
dela com Hilda haviam diminuído, pois havíamos nos mudado para outro bairro. (33)
Não era fácil conciliar atividades tão diferentes.
Foi por essa época que começamos a ver na prática as ações internacionais para
destruir a revolução com atos violentos. Um pouco antes, em março, o navio francês La
Coubre estava começando a descarregar armas que compramos na Bélgica para
defender o país quando explodiu, matando cem pessoas e ferindo muitas mais. Eu,
Fidel e muitos outros nos dirigimos correndo para lá. No dia seguinte, na cerimônia do
funeral, estávamos todos ouvindo o discurso emocio nado de Fidel, que dizia ‘Pátria ou
morte’! Enquanto eu ouvia, o fotógrafo Alberto Korda tirou minha foto que mostrava
meu rosto e depois foi descrito como ‘ícone revolucionário, de olhos postos no futuro e
cuja face encarna o sentimento de ultraje diante das injustiças’. Eu podia estar
sentindo tudo isto que disseram, mas meu coração ardia com o desejo de trabalhar
para mudar aquelas injustiças e ao mesmo tempo doía com o sofrimento das famílias
dos mortos. Aquelas pessoas eram a minha família, e a época em que podíamos até
mesmo nos divertir talvez estivesse chegando ao fim. É muito bom quando conseguimos
crescer, mantendo nossos sonhos e ao mesmo tempo trabalhando para mudar o mundo.
Winnicott estava com um sorriso triste no rosto neste momento, e começou a
falar:
- Eu pensei muito a este respeito. O tema do homem comum e de como ele possa
viver uma existência criativa sempre me interessou. Não estou falando aqui do grande
gesto criador, da obra de arte, mas de viver o cotidiano de modo intenso, real e
criativo. Eu ainda estou fazendo estes estudos, e pretendo escrever um texto no futuro
discutindo especificamente as ligações entre o brincar e a realidade. Minhas hipóteses
iniciais a esse respeito começaram com um trabalho sobre objetos e fenômenos
transicionais, publicado em 1953, no qual estudo questões da ligação entre o espaço
potencial, a criação do objeto transicional e a cultura.(34)
- Dr. Winnicott, deixe-me explicar o que eu quis dizer a pouco quando falei do
receio de acabar o tempo de divertimento. Durante uma reunião na qual estava sendo
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discutida a substituição do anterior presidente do Banco Nacional, Fidel estava falando
e disse que o que ele precisava naquele era de um ‘bom economista’. Eu estava
distraído e levantei o braço. Fidel se espantou e disse: Che, eu não sabia que você era
economista! Eu respondi: Ah! Eu pensei que você tinha dito que precisava de um ‘bom
comunista’.(35) Brincadeiras à parte, o que estou tentando lhe mostrar é como nós
trabalhávamos brincando e conseguíamos fazer as coisas a sério. Estávamos
transformando um país, criando um governo socialista e, porque não, criando um novo
homem.
Winnicott estava rindo com o que ouvia, e ao mesmo tempo olhando para
Guevara com um ar de admiração em seu rosto. Permaneceu quieto e pegou sua xícara
enchendo-a de chá outra vez.
Guevara continuou:
- Para que se construa um novo homem é preciso que mudemos os seus valores
desde a base. Na função de Presidente do Banco Nacional eu tinha atividades de
máxima seriedade e importância. Eu já tinha visto na Venezuela, Guatemala e no
México a experiência da reunião de homens capazes de sonhar o bem comum agindo
como um imã e atraindo semelhantes de todas as partes do mundo. Intelectuais,
artistas, militantes e filósofos que levam o homem a sério. Naquelas ocasiões eu era um
dos migrantes à procura de esperança. Nós formávamos um bando, como aves
migratórias, e chegávamos quase ao mesmo tempo. Minha alegria foi perceber que em
Cuba, éramos eu, Fidel e outros companheiros quem despertávamos estes sentimentos.
Quando fomos imprimir as notas de dez e de vinte pesos, eu, na condição de
presidente do banco assinei apenas ‘Che’. Minha intenção com este gesto foi mostrar
que dinheiro não pode ser um valor em si mesmo. Ao mesmo tempo em que eu brincava,
estava trabalhando a sério, promovendo uma conscientização quase subliminar.
Neste momento Guevara e Winnicott estavam rindo francamente, com os rostos
alegres, e Che pediu licença a seu anfitrião para fumar um charuto, hábito que havia
mantido sempre, apesar de ter sido contra-indicado devido à sua asma. Winnicott, que
também estava proibido de fumar devido aos seus problemas cardíacos e circulatórios,
assentiu em silêncio e abriu a gaveta superior de uma cômoda para pegar um maço de
cigarros que havia escondido lá. Se alguém os visse nesta hora, em atitude cúmplice e
brincalhona, talvez lembrasse de dois meninos tramando uma arte qualquer.
- Um dos grandes problemas do crescimento Ernesto, é que os homens perdem a
capacidade de brincar na medida em que vão aceitando as ‘realidades’ da vida.
Preparam-se para trabalhar, aceitam responsabilidades e se esquecem de sonhar.
Fiquei comovido ao lhe ouvir falar do que fazia em Cuba, porque sempre refleti a
respeito desta questão do ponto de vista individual. De repente pude ver o que pensei
articulado em uma escala muito maior. Imaginei um país dirigido por homens capazes
de sonhar e governando como se brincassem. A idéia me divertiu.
- Dr. Winnicott, vou lhe contar um episódio que me trouxe muita alegria. Você se
lembra de quando lhe falei de minha admiração pelos existencialistas? Pois bem, entre
o grupo de visitantes que vieram a Cuba estavam Jean Paul Sartre e Simone de
Beauvoir. Eu tive o prazer de me encontrar com eles e conversamos durante diversas
horas. Pode parecer algo provinciano, mas devo confessar que fiquei envaidecido,
porque eles vieram para me ouvir e pude sentir que eles admiraram minhas idéias.(36)
Você sabe a importância que eles tiveram na minha formação intelectual.
De repente, era eu quem estava falando de liberdade e da condição humana. Mas
a liberdade, isto aprendi, não é algo que se ganhe como um presente. Ela tem que ser
conquistada. Já falamos sobre isto, mas vale a pena repetir. Depois destes instantes em
que eu saboreei um gosto de vitória, fui percebendo o quanto é difícil transformar um
ideal socialista em uma sociedade socialista. Eu tive muitas decepções e me desiludi
com o sistema real que materializava e estava por trás do ideal comunista que havia
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norteado a minha vida. Uma coisa era o comunismo como conceito, ou projeto de vida.
Outra era o comunismo como partido, instituição, homens.
Enquanto Guevara falava, uma sombra toldava seu rosto e o ambiente se tornava
menos luminoso. Era como se o entusiasmo e a alegria que estavam habitando o coração
dos dois homens nos últimos momentos e estivera contribuindo para clarear a sala
diminuísse de intensidade.
Winnicott também se mostrava reflexivo, como se estivesse compartilhando mais
uma vez com Guevara sentimentos em um espaço compartilhado entre eles e falou:
- Discutir sobre democracia e liberdade não é uma tarefa fácil para mim. Sou
psicanalista e não sociólogo ou cientista político. Até acredito que algum biógrafo ou
comentador de meu trabalho no futuro tenha dificuldade de achar este tema em minhas
obras. Apesar disto, cheguei a escrever sobre estes assuntos, direta ou indiretamente.
Estou um pouco inibido por falar de política em sua presença, mas vou arriscar. (37)
A palavra democracia reveste -se de imensa importância em nossa época. É usada
em uma ampla gama de sentidos. Vou destacar entre eles dois aspectos: um sistema
social cujo governo é escolhido pelo povo e que, atravessando uma fase de boa fortuna
é capaz de conceder aos indivíduos liberdade de ação. Tentando dar início a um est udo
psicológico do termo ‘democracia’, poderia dizer que esta seria representada por uma
sociedade ‘madura’, significando a qualidade de maturidade individual que caracteriza
seus membros sadios. Eu posso mesmo usar uma definição feita por um colega meu,
chamado R. E. Money-Kyrle, no Congresso de Saúde Mental de 1948. A democracia
seria a sociedade bem ajustada a seus membros individuais sadios.
Enquanto Winnicott falava, Guevara tinha uma expressão entre alegre e irônica no
rosto e disse finalmente, em tom de surpresa e exclamação:
- Eu não sabia que psicanalistas se preocupavam com democracia e melhorias
sociais! Pensei que só se interessavam pelo individual. É bom ver que estava com razão
quando decidi lhe procurar. Você sabe que a psicanálise foi inclusive banida na Rússia.
Winnicott respondeu de pronto, em tom veemente e apaixonado:
- E tinha mesmo que ser Guevara. Isto era natural em um regime que propunha a
reforma do mundo através da razão. Reconhecer a existência de aspectos irracionais
inconscientes era ameaçador demais. No entanto, a negação de alguma coisa não
suprime a sua existência, como o tempo mostrou.
O que você acabou de falar a respeito dos psicanalistas é tão superficial e
prematuro quanto um psicanalista supor que um político não tem nada a ver com
questões individuais. Até este nosso encontro eu já escrevi cerca de 300 textos, entre
artigos para revistas, cartas para diversos colegas e personalidades e textos para
livros. O espectro dos temas que me interessam varia desde o meu primeiro artigo em
1926, sobre varicela e encefalite, passando pelas questões da família e do
desenvolvimento individual, chegando até a guerra e as questões sobre delinqüência.
Escrevi sobre muito mais coisas. De sua parte, sei que sempre se interessou por
história, poesia, ética e inclusive sobre psicanálise. Esta divisão do estudo em campos
estanques e incomunicáveis só tem trazido prejuízos à ciência e aos povos. Veja o nosso
encontro e nossa conversa, por exemplo. Por mais improvável que ele pudesse ser
considerado, e realmente era, nós estamos juntos e eu estou começando a achar que é
uma oportunidade extraordinária. Quando nós poderíamos juntar um político
dissidente e iconoclasta com um psicanalista pouco convencional? Com certeza não
seria em congressos psicanalíticos ou do partido comunista.
Os dois estavam rindo abertamente, quase às gargalhadas. Guevara imaginava as
reações que aconteceriam caso tivesse proposto levar Winnicott à reunião do último
Congresso em Havana. A idéia o divertia muito, porque o clima tinha sido tenso e de
confrontação e ele havia evitado contato com os companheiros. Este fato era pouco
habitual nele.
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- A dificuldade que eu encontrei, Donald, foi exatamente ajustar uma política que
contemplasse os interesses coletivos com as questõ es individuais. Inclusive há o
problema de aplicar medidas políticas em moldura democrática, quando o que se quer
é o bem coletivo, acima do individual. Como já lhe disse, nosso governo foi implantado
depois de uma guerra feroz, de vida ou morte, contra um ditador que tratava o povo de
seu país de forma pior do que se tratavam os animais. Você não pode esperar que um
ditador cruel e corrupto vá entregar o poder voluntariamente, pode? Ainda há pouco
você disse que a democracia pode conceder liberdade aos indivíduos quando atravessa
uma fase de boa fortuna. O que você quis dizer com isso?
- Você fez perguntas demais Guevara! Eu posso lhe dizer apenas que estas
questões são bem mais complexas do que se possa pensar. Tenho certeza de que não
podem ser reduzidas a um campo singular de reflexão. Vou confessar que fiz uma
seleção das idéias que eu defendi no texto que estava citando de memória, para evitar
confrontos desnecessários e prematuros. Você poderia não entender ou se aborrecer
caso eu começasse discutindo a questão da escolha da forma de governo pelo povo
como um aspecto essencial da democracia, assim como a possibilidade de derrubar o
governo pelo voto secreto. A essência da democracia é o voto livre e secreto. Isso
implica a garantia de liberdade das pessoas expressarem sentimentos profundos,
desvinculados de um pensamento consciente.(38)
Quanto à questão da fase de boa fortuna sobre a qual você perguntou, eu creio
que seja uma colocação espontânea minha a respeito dos limites da democracia e das
dificuldades reais para se chegar a este nível de relacionamento social. Não é fácil
encontrar indivíduos maduros e que se mantenham assim ao longo do tempo e das
circunstâncias, especialmente as adversas.
- Eu acredito que existem pontes entre nossas abordagens destas questões,
embora a princípio pareçamos estar em confronto, Donald. Sei que você escreveu sobre
o desenvolvimento primitivo, e uma de suas teses mais importantes é exatamente sobre
o completo desamparo dos bebês e o significado decisivo das ações das pessoas que
tem o cuidado do bebê a seu cargo. Estas responsabilidades precisam ser aceitas, não
discutidas. Não se pode perguntar a um bebê: o que você quer que eu faça, neném? Eu
tenho que aceitar a responsabilidade da minha interpretação do que acho que ele
necessita, assim como das conseqüências destas percepções e de minhas ações. Se não
me engano, você deu uma palestra em 1948 na London School of Economics sobre
‘Estágios Primitivos da Introdução à Realidade Externa’, não foi?(39)
Winnicott estava com uma expressão quase de estarrecimento no rosto.
- Como você sabe disso Guevara?
Com um amplo sorriso no rosto ele respondeu:
- Um político tem seus segredos e seus estudos também podem ser vastos, Donald.
Outro ponto de vantagem de ser um estadista é o acesso quase ilimitado a fontes de
informação. Quando você deu esta palestra eu ainda tinha vinte anos e estava
perambulando pela Argentina e arredores. Mas quase tudo o que aconteceu na guerra
e no pós-guerra, especialmente quando se falava sobre realidade e economia era de
interesse para ambos os regimes, tanto o comunista quanto o capitalista. Quando um
intelectual de seu porte fala sobre a realidade para economistas, sua palavra tem um
peso grande. Você não imaginava isso?
- Bom Guevara, ninguém escreve ou fala sobre alguma coisa esperando não ser
ouvido. Existe um aspecto narcísico essencial em nosso desejo de interferir sobre a
realidade, seja de que forma for. No entanto, nunca poderia imaginar que uma palestra
dada por mim fosse despertar atenção de governos. Mas continue, suas idéias estão
interessantes.
- O que eu estava querendo dizer é que, tanto no caso do bebê, quanto do povo
inculto e massacrado, o desamparo é o mesmo. Eu nunca mais esqueci da expressão do
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rosto dos índios na América Latina depois de séculos de exploração e desrespeito. Mais
do que tristeza, o que me impressionou foi o vazio e a apatia que eu percebi. Percebi
durante minha viagem de motocicleta com Alberto que séculos de dominação haviam
como que retirado a alma dos povos latino-americanos. Os índios que encontrei eram
como espectros.
Um dos episódios que mais me impressionaram foi o encontro com o casal de
trabalhadores na madrugada gelada dos Andes. Eu tive uma visão do desamparo do
proletariado no mundo todo e tive um sentimento de fraternidade por eles.(40) No
mesmo momento, percebi que eles, que adormeceram abraçados aquecendo um ao
outro, eram uma metáfora do abraço imperativo que nós precisamos nos dar, caso
queiramos sobreviver.
Bebês e pessoas desamparadas precisam que alguém aja por eles. O que se
espera é que estas ações sejam fundamentadas na percepção de necessidades reais e
sejam feitas com generosidade verdadeira. Em ambos os casos, é necessário que haja
devoção da pessoa que cuida. A causa de cuidar exige pessoas devotadas.
- Veja que interessante Ernesto. Eu usei exatamente esta expressão quando me
referi às mães e seus bebês. ‘Mãe comum devotada’, este foi o termo que eu usei. A
partir desta idéia eu cheguei ao artigo sobre preocupação materna primária, que
escrevi em 1956. Este é muito importante, porque acentua a definitiva importância da
percepção da mãe das necessidades do bebê, como você lembrou há pouco. Tenho
dúvidas a respeito desta noção aplicada ao cuidado e o desenvolvimento dos bebês
poder ser estendida às pessoas adultas e aos povos.
Guevara tinha um sorriso satisfeito no rosto quando falou:
- Se você puder ser livre em seu pensamento Donald, acho que vai conseguir
entender meu ponto de vista. Alguns adultos, ou muitos, por lesões em seu
desenvolvimento, tanto na esfera da família quanto no âmbito político-social, não são
capazes de decidir a respeito de suas vidas. Desse modo, como eu já falei, alguém tem
que assumir a responsabilidade das decisões. Isto não é democrático, no sentido
habitual do termo, mas num estágio em que a pessoa não tem capacidade para
escolher, talvez seja não só válido como essencial para a sobrevivência do indivíduo
que alguém resolva por ele. É esta idéia que está por trás da intervenção em prol dos
deserdados. Eu tenho que acreditar em minhas intenções e atribuir um valor positivo
ao que eu considero essencial para qualquer ser humano. Isto seria o direito de ter um
trabalho, remuneração digna, casa, educação, saúde e garantia de que os esforços
empreendidos ao longo da vida serão reconhecidos e recompensados quando o sujeito
envelhecer e não tiver mais forças para trabalhar. Mesmo que o sujeito por quem eu
luto não reconheça estes direitos como seus, ainda assim tenho a obrigação de lutar
por ele. Não acho que o que senhor defende quando fala do bebê e de seus direitos seja
diferente em conteúdo do que eu acabei de falar. Os princípios são os mesmos.
- Acho que você tem razão, Che. Naquele artigo que citei antes e que discute a
questão da democracia, outros pontos podem aprofundar a nossa discussão. Lá
reconheço que a democracia é uma conquista. Eu disse que se fosse possível impor a
uma sociedade toda a estrutura própria da democracia, isso não equivaleria à criação
de um tal sistema. Seria preciso que alguém ainda se encarregasse de garantir o
funcionamento da estrutura (o voto secreto,etc.) e de forçar o povo a aceitar os
resultados.(41) Esta última questão poderia ser aplicada aos indivíduos que possuem
uma tendência anti -social. Para falar de outro modo: qual a proporção de indivíduos
anti-sociais a sociedade pode conter sem perder sua tendência inata à democracia?(42)
Guevara estava sorrindo outra vez e parecia aliviado quando falou:
- Donald, é uma alegria ouvir de você, um defensor intransigente do indivíduo, o
reconhecimento de que precisamos lutar sem trégua para fazer florescer o que você
chama de ‘a tendência inata à democracia’. Este era um dos assuntos que estava
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procurando evitar, por ser demasiadamente polêmico e mesmo doloroso. Não sei se
posso concordar com você a respeito da questão da democracia. Para manter as
conquistas iniciais da revolução cubana, você sabe que foi necessário que
suprimíssemos várias liberdades individuais, que submetêssemos traidores do regime,
locais ou infiltrados internacionalmente, a tribunais e a julgamentos que muitas vezes
terminaram em execuções. Fomos duramente criticados por pessoas que anteriormente
nos haviam apoiado. Acho que muitas destas pessoas não aceitam que para manter o
bem somos obrigados a encarar o mal diariamente, dentro e fora de nós. As medidas
necessárias para este enfrentamento vão depender das circunstâncias para a
determinação de sua intensidade.
- Guevara, esta é uma visão nova para mim, não em sua essência teórica, mas em
sua aplicação prática. Na elaboração de minha teoria sobre o desenvolvimento infantil,
eu enfoquei prioritariamente a mãe e sua relação com o bebê. A função paterna neste
momento seria a de preservar e garantir a relação dos dois. Ocorreu-me agora uma
idéia prosaica, mas que talvez nos ajude a pensar. Suponhamos uma situação na qual
uma mulher fosse casada com um alcoólatra violento. No exemplo que estou pensando,
o que seria necessário ser feito caso o pai, enfurecido e com ciúmes do filho, resolvesse
agredi-lo, ou mesmo matá-lo? A medida a ser tomada para garantir o direito à vida
tanto da mãe quanto do filho, teria que ser enérgica, talvez mesmo violenta. Seja do
ponto de vista legal ou pessoal. Não podemos ser tolerantes com os abusos, senão nos
tornamos cúmplices deles.
Era Guevara quem olhava outra vez para Winnicott com admiração neste ponto.
Além do mais, estava surpreso com o tom enérgico e apaixonado que seu interlocutor
havia adotado. Winnicott falava com emoção, como se o tema dos direitos das pessoas o
estivesse tocando de maneira especial naquele momento. Sem se dar conta do gesto,
Guevara bateu palmas e disse:
- Bravo, Donald! Do jeito que você está falando, não faria feio em uma reunião
da executiva do Partido. Eu fico alegre de perceber esta chama de amor pelo outro
queimando em seu peito, do mesmo jeito que no meu. É realmente impossível para um
homem dotado de consciência ética permanecer indiferente diante das injustiças
cometidas contra os desamparados. No caso de nossa revolução, nós estendemos a
indignação e a luta para além do indivíduo e daqueles de quem estamos próximos, em
defesa daqueles que nós nem conhecemos. Às vezes é difícil de entender para quem não
viva a experiência da revolução essa estreita unidade dialética que existe entre o
indivíduo e as massas, em que ambos se inter-relacionam e, por sua vez, as massas
como conjunto de indivíduos se inter-relacionam com os dirigentes.(43) Quando você
falava ainda a pouco do enfrentamento com os anti-sociais, lembrei de um artigo que
escrevi quando estava na África, e mandei para um jornal do Uruguai. A questão da
consciência das massas foi pensada por nós como uma tarefa de reeducação. No nosso
caso, a educação direta assume uma importância muito maior. Ela se implanta nas
massas e a nova atitude preconizada tende a converter-se em hábito; as massas a vão
tornando sua e pressionando aqueles que ainda não a têm. (44)
- Bem, Guevara, parece que estamos quase de acordo em vários pontos.
Certamente você não veio aqui apenas para discutir política ou relações humanas do
ponto de vista teórico ou geral. Foi muito bom o desvio que fizemos, porque foi possível
comparar nossas experiências e algumas questões teóricas e práticas. Você me
incentivou a falar e de repente eu estava me sentindo quase um revolucionário, ou
percebendo o potencial revolucionário de algumas das questões que eu discuti.
Entretanto, gostaria que você voltasse a falar sobre os motivos que lhe fizeram pensar
em falar comigo
-É verdade Dr. Winnicott. Eu lhe disse que estava com o coração cheio de
perguntas e de inquietações. Além das decisões que eu tomei recentemente e que afetam
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a minha família, gostaria de entender um pouco mais de minha história e dos
antecedentes pessoais que me trouxeram até este ponto. Eu lhe disse que tive uma
influência muito forte de minha mãe, não foi? Confesso que fico um pouco encabulado
por falar de problemas pessoais. De repente, não me pareceu muito apropriado para
um revolucionário ter este tipo de conversa. Entretanto, é o homem Guevara, o Ernesto,
que está aqui com o senhor.
Voltando ao que dizia, vejo hoje que a atuação de minha mãe sobre mim foi
predominantemente de natureza ideológica, ou filosófica. Quando você falou em seus
trabalhos a respeito das relações do bebê com sua mãe, eu entendi que elas eram de
característica preponderantemente afetiva, corporal. Não posso dizer que tenha
experimentado estas relações com ela de modo intenso. O que posso afirmar é que
nosso contato sempre foi muito estreito, mas me ficou como que uma nostalgia de uma
forma de carinho e de aconchego que acredito não ter experimentado na infância.
Minha mãe não foi uma mulher que demonstrasse carinho de maneira física com
freqüência.
Eu sempre busquei isto em minha vida, com diversas mulheres, como minha tia
Beatriz, e acho que o que tanto desejava finalmente encontrei com Aleida. Ela
reconhecia minhas necessidades e respondia a elas do melhor jeito que sabia, me
mimando, me vestindo e até mesmo me dando banho.(45) Este último aspecto é de suma
importância devido ao episódio do rio da Prata quando eu tinha dois anos,e sobre o
qual já lhe falei. Como médico, sei das questões de hereditariedade participantes nesta
história e já falamos dos aspectos familiares envolvidos devido à doença que me
acometeu. O que gostaria de ouvir é a sua opinião em relação às questões emocionais
que possam estar ligadas ao problema.
- Bem, Guevara, você mesmo disse que se tornou um desafiador, apelidado de
fuser, que era a união de furioso com Serna, sobrenome de sua mãe. Seria apropriado,
ou o melhor para um menino a associação de sua mãe a um exemplo de tanta
intensidade? Não seria melhor uma associação da mãe com suavidade? No entanto,
penso que muito pior do que isto seja a associação da imagem da mãe com o vazio.
Também podemos pensar nas conseqüências emocionais de uma angústia
respiratória tão intensa quanto à produzida por uma crise de asma. Eu escrevi a
respeito de problemas clínicos por si sós, principalmente até 1934. Você deve saber que
comecei a minha carreira como pediatra.(46)
Depois de um artigo intitulado ‘Defesa maníaca’ que escrevi em 1935, com o
qual me qualifiquei como psicanalista e me tornei membro da Sociedade Britânica de
Psicanálise, aumentei minha decisão de procurar pontes ligando cada vez mais as
questões físicas a aspectos emocionais.
No seu caso, acredito que a instalação da asma possa ter lhe feito regredir a um
estado de ansiedade muito intensa, que eu e outros autores chamamos de angústia
impensável ou terrores inimagináveis. Até que ponto estes fatos e angústias possam ter
interferido e influenciado na sua personalidade é uma questão que podemos discutir.
- Com certeza isto foi muito importante, Dr. Winnicott. Ainda muito jovem e sem
ter feito uma opção política fiz um verso, num momento muito conturbado de minha
vida, no qual estava afastado de minha família. Lá, eu escrevi: (47)
Eu sei! eu sei!
Se eu sair deste lugar o rio me engole..
É meu destino: Hoje eu devo morrer!
Mas não, a vontade pode vencer tudo
Há obstáculos, eu admito
Eu não quero sair.
Se eu tiver que morrer, será nesta caverna.
As balas, o que podem as balas me fazer se
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meu destino é morrer afogado. Mas eu
vou superar o destino. O destino pode ser
conseguido pela vontade.
Morro sim, mas atravessado
por balas, destruído pelas baionetas, se não, não. Afogado não..
É lutar, morrer lutando.
Winnicott estivera ouvindo Guevara falar, e seus olhos tinham um brilho cálido de
compaixão e de entendimento. Além do revolucionário determinado e corajoso com
quem estivera conversando nas últimas horas, enxergava agora um menino sofrido, tão
machucado e amedrontado pela asfixia provocada por sua doença que fora compelido a
escrever versos tão pungentes. Seu tom era meigo quando falou:
- Ernesto, eu sei que você entende perfeitamente o estado de angústia em que se
encontrava quando escreveu estes versos. Nós falamos um tempo atrás sobre as origens
do sujeito real. Eu poderia mesmo dizer que tentamos delimitar quem seria o sujeito
real. O que penso desde sempre é que o sujeito é a soma de suas tendências e das
circunstâncias que lhe atravessam o caminho. No seu caso, a idéia de morrer sufocado
na caverna de seus pulmões foi algo insuportável, uma experiência tão dolorosa, que
foi necessário imaginar ou construir a possibilidade de um outro tipo de morte. Vencer
o destino, como está escrito no seu verso. No entanto, o que acho mais importante de
vermos é o homem que você se tornou. Ao contrário do que aconteceu, você poderia ter
se fechado em si mesmo, encerrado em uma caverna de solidão, autocomiseração e
isolamento. Sua angústia poderia ter lhe acovardado e paralisado. Eu acho que você
deve se orgulhar do homem em que se transformou.
Houve então uma pausa, e no silêncio que se seguiu por instantes podiam ser
ouvidos barulhos distantes, alguns fortes como uma freada de carro na esquina, e outros
mais delicados, como uma abelha zumbindo ao bater no vidro da janela.
A luz do sol havia mudado de posição e numa nesga de claridade boiavam
pequenos fragmentos de pólen, ou poeira. Olhando para eles, Winnicott pensava na
pequenez e fragilidade da condição humana, mesmo quando o sujeito parecia livre,
voando na luz. Considerava o quanto os nossos destinos são vulneráveis, sujeitos a
alterações tão imprevisíveis quanto partículas mais leves do que o ar o são aos efeitos da
mais leve brisa.
Guevara tinha um nó na garganta, sem saber bem porque, e sentiu uma onda de
calor e de paz invadir o seu peito. Depois de muitos meses de aflição, sentiu-se
tranqüilo pela primeira vez.
- É muito bom ouvir isto, Dr. Winnicott. Estas questões e dúvidas me tomaram um
bom tempo da vida. Enquanto lhe ouvia falar lembrei de um médico peruano que
conheci há bastante tempo. Ele se chamava Hugo Pesce e foi o primeiro exemplo de
médico dedicado à humanidade que encontrei. Sonhei ser como ele, mas minha
dedicação à humanidade acabou seguindo caminhos diferentes. Há um outro ponto que
pensei e sobre o qual também gostaria de ouvir a sua opinião. Caso a sua idéia a
respeito do significado de minha mãe em minha vida esteja certa, como poderíamos
entender a minha relação com meu pai? Não lembro se já lhe falei, mas era ele quem
me atendia durante minhas crises de asma. Ele me dava as injeções de adrenalina, que
provocavam alívio dos sintomas. Também foi com ele que aprendi a atirar de revolver.
Éramos companheiros e jogávamos xadrez. Fiquei pensando se um pouco de meu
sentimento de que a camaradagem entre os combatentes seja uma forma sublime de
fraternidade não tenha algo a ver com minha história com ele.
Winnicott estava rindo quase às gargalhadas e disse:
- Guevara, mais um pouco e você acabava virando psicanalista! Como você disse
a meu respeito, quem sabe não fizesse feio em uma reunião da sociedade. Deixando a
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brincadeira de lado, talvez possamos pensar em outra ligação. Você disse que sua mãe
não era muito carinhosa e que sua ligação com ela era mais filosófica. Talvez você
tenha encontrado em Aleida a reunião de dois aspectos essenciais de sua vida. O
primeiro seria representado pela capacidade de se dedicar a uma tarefa política
revolucionária com coragem e energia, na construção de um ideal compartilhado com
você. Aí estaria sua identificação com sua mãe, encarnada em outra mulher, acessível a
seu amor. O outro seria a atitude carinhosa e apaixonada que ela dedicou a você desde
o começo. Este lado atenderia à sua necessidade de cuidado, identi ficada em seu pai,
agora materializada em uma mulher que você também conseguia admirar. Não posso
ver ligação mais forte do que esta, representando duas vigas mestras afetivas de sua
vida. Dá para compreender a sua profunda ligação com ela, sua fidelidade e a atração
sexual que sempre teve por ela.
Enquanto eu falava a seu respeito, lembrei de quando me encontrei com Clare. Já
falamos sobre isso, mas agora achei importante dizer de nosso trabalho durante a
guerra e de nossas afinidades profissionais. A questão das afinidades é uma base muito
séria em um relacionamento de amor. Juntos, trabalhamos para dar conta dos abrigos
psiquiátricos e nos tornamos especialistas reconhecidos no manejo e tratamento de
jovens ‘difíceis’ transferidos de Londres. Por isso, o Comitê Curtis nos convidou para
escrever relatórios orais e escritos de nossas experiências, o que constituiu, em parte, a
base para o Estatuto da Criança de 1948.(48) Não posso negar que sinto orgulho de
termos contribuído para um documento de tal magnitude e importância para as
crianças. Eu também fiz minhas revoluções!
Além de tudo isso, ela também gostava de música e de dançar. Era quase demais
para mim. Acredito que ela tenha sido um antídoto muito forte para me permitir
superar a minha submissão devotada ao padrão depressivo de minha mãe. O nosso
encontro foi uma celebração da vida.
- Ah! Donald, você está com o rosto animado outra vez. O amor é mesmo uma
força muito grande. Haverá outra maior? Esta é uma das questões fundamentais que eu
lhe trago. Se o meu amor por Aleida tem a intensidade que eu sinto e o significado que
você mostrou, como posso entender o meu afastamento dela e de meus filhos? É
verdade que durante estes anos que nós passamos vivendo em Cuba eu tive que me
ausentar com freqüência. Sempre a serviço do governo e da revolução. Nossa vida foi
uma seqüência de afastamentos e reencontros, sempre apaixonados. Não tenho certeza
alguma a respeito do significado desta forma de vida na constituição de nossos
problemas...
- Ernesto, o importante é o que sente. Se neste momento você está confuso, ou
cheio de dúvidas, é importante você suportar não saber. Esta é a essência do paradoxo,
um conceito que eu estudei. Existem questões na vida para as quais talvez não exista
resposta. É muito difícil suportar o não saber, ou saber que a resposta não está em
nenhum lugar que possamos definir. Talvez este seja exatamente o seu caso. Você ama
Aleida com a intensidade de que falamos, mas ama também a revolução com paixão
igual ou maior. Será que você consegue suportar o não saber, Guevara?
- Com certeza esta é uma situação paradoxal, Winnicott. Quando você falava
ainda há pouco a respeito de seu trabalho e suas contribuições para o Estatuto, eu
pensei outra vez em silêncio. Aí está um homem que dedicou toda a sua vida a entender
as crianças e ajuda-las a ter uma vida melhor. De modo intrigante, não teve filhos.
Então, um homem que não viveu a experiência pessoal de carregar um filho seu nos
braços fez tanto por milhares de pessoas, crianças e seus pais. É realmente fora do
comum. Não é este um dos sentidos de paradoxal? Algo que contraria o sentido
comum?
- É uma forma correta de se ver o problema, Ernesto. No caso de minha família
algo ainda mais intrigante aconteceu. Nem eu nem minhas irmãs tivemos filhos. A linha
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sucessória que nasceria com meu pai morreu com ele.(49) Eu passei boa parte de
minha vida estudando a importância da família para o desenvolvimento do indivíduo e
talvez uma boa parte desta procura tivesse a ver com as questões básicas da minha,
entre elas uma mãe doente e um pai bastante ocupado e ausente. Veja como as razões
que nos impulsionam em nossas escolhas e realizações podem ser baseadas em uma
dor, ou numa falta. Aí está o paradoxo outra vez. Um vazio, uma perda ou um
sofrimento gerando remédios para a dor e ações para melhorar a vida.
Guevara olhava outra vez para Winnicott com respeito. Pensava que aquele
homem, com uma história de vida tão digna e com tantas realizações, antes de tudo, era
uma pessoa. Um ser humano consistente e que podia errar. Considerou a força que brota
da admissão de nossas limitações e mais uma vez se sentiu apaziguado.
- Eu estou sentindo algo diferente aqui com você Winnicott. Não temos muito
tempo, mas o tempo também pode ser paradoxal. Estou sentindo o pouco que estamos
tendo como muito. Parece um momento fundamental de minha vida. Algo está
acontecendo aqui entre nós que está me fazendo poder articular passado e futuro de um
modo diferente do que eu tenha feito em qualquer momento de minha vida. Talvez
consigamo s enxergar aquelas imagens do modo que você propôs no início de nossa
conversa; talvez nossos rostos apareçam do fundo, naturalmente.
Guevara estava falando com muita emoção e continuou:
- Minha cara ultimamente andava com uma expressão triste e carregada. Era
como se eu tivesse perdido um pedaço de minha alegria ou de esperança, e tivesse
ficado no lugar um Che implacável. Não sei se isto era devido a uma luta interna que
estava minando o meu otimismo, causada pela perda da fé que eu tive no imperfeito
modelo soviético. Eu havia me transformado, pelo menos em parte, do jovem cheio de
esperanças, em um comissário político e anjo vingador da revolução. Exigente ao
máximo, cobrando o impossível de todos os que viviam a meu redor.(50) Esta imagem
estava me entristecendo. Pensando neste momento sobre o que estava ocorrendo
comigo, vejo que era como se as dificuldades para instalar um programa de
desenvolvimento industrial em Cuba e o fato de lidar com o lado negativo da política
estivesse me fazendo sentir outra vez sufocado, sem saída. A possibilidade de me
transformar em um burocrata, engordando e envelhecendo atrás de uma mesa, passou
a representar uma vez mais a caverna no interior da qual não tinha a intenção de
morrer.
Winnicott o interrompeu de modo determinado:
- Guevara, acho que podemos ver no que está falando o quanto situações de
impotência diante de algum fato levavam você a se impacientar. Acho que isto pode
representar uma reação muscular, impulsionando você à ação como forma extrema e
muito primitiva de lutar contra o que representasse uma ameaça à sua vida. Esta
reação poderia ter mais força, no sentido emocional inconsciente e na sua estrutura
psicossomática do que qualquer aspecto relacional. De um outro ponto de vista, eu sei
da enorme importância que sua mãe teve em sua vida.
-Não sei se entendi bem, Winnicott, mas você está dizendo que eu estava me
sentindo ameaçado em minha própria existência como pessoa? O que você fala
coincide de alguma forma com o que eu estava sentindo. Eu posso ver agora que talvez
a minha reação não fosse voltada apenas para situações externas da realidade, que de
fato estavam ocorrendo, mas também para estes sentimentos muito mais primitivos a
que você se referiu. Talvez uma mistura dos dois níveis. Eu era como dois homens, ou
como um homem dividido em dois. Acho que uma foto minha com Aleida e meus quatro
filhos, tirada em março de 65, pouco antes de minha partida para o Congo, mostra este
estado de espírito. Foi a última foto que tirei com eles, porque logo depois eu saí. Não
posso dizer que meu rosto mostrasse muita felicidade.(51) Naquele momento eu já
havia decidido sair do país e ir lutar, atendendo a uma sugestão de Fidel e também ao
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meu desejo. Quando nós dois nos encontramos no aeroporto, assim que voltei de
Moscou, nos trancamos no gabinete para uma conversa que durou várias horas. Ali nós
voltamos a brincar um pouco. Fizemos nossos planos secretos, que incluíam aparentar
estarmos brigados, providenciamos meu disfarce e organizamos minha viagem. A
princípio para a África, mas depois para a Bolívia. Nós éramos outra vez os dois jovens
de antes, unidos no ideal revolucionário. Aleida estava triste e me pediu para não ir,
mas eu estava determinado e prometi a ela que nos encontraríamos quando a luta
estivesse mais avançada. Também combinamos que minha viagem para a guerrilha era
um segredo absoluto, não podendo ser revelado a ninguém, nem mesmo aos mais
íntimos. Ela não sabia, mas de alguma forma estava me despedindo até mesmo dela.
Um dia antes de partir, estava tomando café com ela e perguntei a Sofia, que era nossa
babá e pessoa de total confiança da família, o que havia acontecido com as viúvas dos
revolucionários cubanos. Ela respondeu que elas tinham se casado outra vez. Não sei
bem porque, me voltei para Aleida e falei, apontando para o café que estava tomando:
‘este café que você está me servindo, você pode servir para outro.’(52) Acho que foi
meu jeito de dizer adeus e minha permissão para que ela seguisse com sua vida. Ela
não respondeu nada. Na madrugada do dia seguinte, 1 de abril, ainda estava escuro
quando saí, e eu estava com o sentimento de que não ia mais voltar.
- Aquele lema dos gladiadores romanos ao entrarem na arena me veio à cabeça
outra vez, Guevara. Você disse que sabia que não voltaria da viagem. Que extensão
você pensa que este seu conhecimento, ou melhor, sentimento tivesse? Você estava
motivado pelos planos de lutar na África. O que estava sentindo diante da perspectiva
de não ver mais Aleida?
-Não sei lhe responder, Winnicott. Eu lhe disse que meus planos feitos junto com
Fidel haviam levantado meu espírito. Por defesa ou de verdade, era com o coração leve
que saí secretamente do país. Na carta de despedida que lhe deixei, reiterei meu amor
pelo povo cubano e minha admiração por ele. Admiti que estava com sentimentos
misturados, de alegria e de tristeza, e disse que não deixava nada de material para
minha mulher e meus filhos, mas que estava feliz que fosse dessa maneira. Terminei
dizendo: ‘Até a vitória sempre! A Pátria ou a morte!’ (53) Para Aleida deixei os versos
de amor que eu mais amava, muitos de Neruda, gravados com minha própria voz. Foi o
jeito de declarar o meu amor às duas vigas mestras de minha vida, como você chamou.
Aleida e a revolução. Eu também pensei em minha mãe e em nosso amor compartilhado
pelo socialismo.
Os olhos de Winnicott mostravam ternura ao ouvir estas palavras, mas um brilho
de provocação também podia ser notado. Pensava em silêncio sobre os misteriosos e
difíceis caminhos do amor.
-Ernesto, ao ouvir você falar, me deu a impressão de que estivesse fazendo um
discurso para uma multidão. Felizmente falou de poesia, o que me trouxe de volta o
homem que eu descobri dentro de você, não o estadista e revolucionário. Quase não
falou de sua mulher e de seus filhos. Vamos tentar entender isto, pois foi um dos
assuntos principais que você queria discutir e eu não tenho uma idéia firmada a este
respeito.
Vamos repassar a questão. Nós pensamos que você possa ter sentido falta de
carinho materno em seu primeiro encontro com o amor. Depois, com a angústia que as
crises de asma lhe provocavam, imaginamos que você tenha estabelecido uma ligação
entre cuidado e uma relação viril, fraternal. Se imaginarmos o tema do amor, talvez
tenha acontecido uma espécie de cabo de guerra entre o amor individual e o coletivo.
Ou talvez possamos pensar que o seu amor por sua mãe fosse materializado na
cumplicidade ideológica a que você se referiu há pouco, e que uniu vocês a vida inteira.
Pensando deste modo, seu amor pela luta revolucionária poderia ser entendida também
como expressão do sentimento de sua mãe em relação a você e vice-versa. Não sei se
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podemos estabelecer uma regra geral nesse caso, ou teremos que considerar cada
exemplo em separado. Este parece ser o jeito mais perto da realidade. Umas pessoas
constroem uma continuidade no amor; experimentam este sentimento de modo
individual, pessoal, no início de suas vidas e conseguem alargar este amor para o
conjunto das pessoas. Outras não. No entanto, tome o que eu disse como uma opinião,
ou o esboço de um raciocínio, destituída de valor geral e definitivo.
-Não sei se entendi bem o que você disse, Winnicott, e se o seu raciocínio a meu
respeito está certo. O que eu sinto é uma duplicidade em meu amor. Acho que amo
minha mulher e meus filhos, mas consigo sentir o mesmo, ou talvez mais forte ainda,
pelo conjunto das pessoas, pela humanidade. Eu amo os filhos que não são meus;
aqueles que não nasceram e existem como uma possibilidade no futuro. Eu me sinto
responsável por todas estas pessoas. Não acredito que possa ser determinada uma
hierarquia para isto. O que sei é que me senti impulsionado a deixar minha vida
privada, as pessoas que viviam comigo e por quem também tinha responsabilidades,
para seguir o meu destino. Será que esta escolha foi determinada pelas causas que
investigamos? Ou existirão pessoas que se ligam às transformações do mundo com
intensidade igual ou maior do que à sua vida?
Se for o caso, talvez você também represente um exemplo de dedicação às
pessoas em geral, pelo menos no que diz respeito às crianças. Será que preferiu não ter
filhos para evitar as questões pessoais, as responsabilidades enormes que atribuiu aos
pais e escolheu defender as crianças como um todo, sem nome e sobrenome? Parece
que nos assemelhamos neste aspecto da escolha do geral ao invés do particular mais do
que a princípio se poderia pensar. O que difere é a nossa forma de lutar pelas pessoas.
- Talvez você esteja certo Guevara. O mais importante de tudo é perceber que
cada pessoa tem sua história e que a forma de amar, ou as possibilidades de expressão
deste amor estão ligadas a essa história. Tanto no meu caso como no seu, parece ter
acontecido algum abalo nos alicerces iniciais, mas nós dois conseguimos nos sair muito
bem. Acho que podemos dizer que nossas vidas representam uma vitória do amor.
Guevara não havia dito a Winnicott, sem saber bem o porque, que os dias antes de
sua partida haviam sido extremamente dolorosos para ele. Talvez os piores de toda a sua
vida. Já com o disfarce, tinha ido com Aleida e os quatro filhos para um sítio fora da
cidade, onde estava escondido. Ele não revelou sua identidade aos filhos e foi
apresentado como ‘tio Ramón’, um amigo de seu pai. Conversava com eles, brincavam
um pouco e comiam juntos outra vez. O ‘tio’ lhes trouxe notícias do pai, disse que ele
sentia muitas saudades e transmitiu alguns ensinamentos sobre a vida. Diversas vezes
‘Che’ tinha que alegar alguma coisa e se afastar deles, porque não suportava a dor que
estava sentindo. Trocava olhares com Aleida e ficava em silêncio, com o peito
sufocado.
Dois momentos foram ainda mais significativos. Em um deles Célia, a filha de
três anos, foi trazida para falar com o pai separadamente. Che permaneceu ao lado dela,
sem conseguir esboçar um gesto, sem beija -la ou abraça-la, tal a dor que sentia. No
outro, Aliusha, então com cinco anos, depois de dar um beijo no rosto do ‘tio’ voltou
correndo para perto da mãe e disse: ‘Mamãe, eu acho que o velhinho está apaixonado
por mim’. Neste momento as lágrimas correram pelo rosto de Che. Aleida conseguiu se
conter à custa de muito esforço. Estes seriam os últimos momentos em que eles se
veriam.
Os sentimentos eram tão intensos ao pensar nestes momentos, tão íntimos e
dolorosos, que Guevara os guardou para si, com um nó na garganta e disse:
- Vamos prosseguir então Dr. Winnicott. Eu cheguei na África e participei da
guerra com meus companheiros. Foi um período muito difícil e nós adoecemos com
diversos tipos de febre. Não vou falar a este respeito, porque os livros de história vão
detalhar estas questões no futuro.
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O fato importante é que chegaram reforços de Cuba, com um grupo liderado por
Osmany Cienfuegos. Ele me informou então que minha mãe estava em um estado muito
grave de saúde, em um tom que me deu a impressão de ser uma preparação para a
noticia de sua morte. Eu tive que ficar um mês numa incerteza triste, até que soube com
certeza que ela havia morrido no dia 19 de maio. Ela nunca chegou a receber a carta
de despedida que eu havia deixado em Havana. Nossa ligação, no entanto, chegou ao
seu funeral, pois soube depois que ela havia pedido que fosse colocada a minha
fotografia em cima do caixão.(54)
As enormes dificuldades que nós estávamos enfrentando naquele momento me
afastaram um pouco da dor da perda, ou talvez eu tenha endurecido ainda mais como
uma homenagem póstuma a ela. Um fato que me alegrou foi meu reencontro com Harry
Villegas, meu guarda-costas. Ele tinha se casado recentemente e tido um filho, mas
aceitou a missão dada por Fidel de vir para a África cuidar de mim com alegria.(55)
Assim somos nós, os combatentes. Depois de meses de lutas e derrotas, já perto do final
de novembro, e tendo perdido os apoios com que contávamos, chegamos à dolorosa
conclusão de que seria preciso interromper a luta e salvar as vidas dos combatentes
restantes. Eu e meus companheiros mais próximos chegamos a Dar-Es-Salaam e fiquei
escondido em um apartamento da embaixada cubana. O embaixador dispensou todos
os empregados e fiquei apenas com um telegrafista, um secretário que tomava notas de
meu relato da guerra no Congo e um cozinheiro.
Enquanto a conversa dos dois continuava, com a duração de horas, Clare estava
extremamente intrigada e bastante preocupada. Ela cuidava de Winnicott com bastante
carinho, e estava acostumada ao seu jeito de ser original, tão diferente do comum das
pessoas. Entretanto, aquele dia estava mesmo sendo especial. Já perto da hora do
almoço, quando ainda não sabia quem era o seu interlocutor, havia recebido um
telefonema de um homem que se identificou como administrador de uma universidade
americana. Ele queria falar com Winnicott para convida-lo a fazer um ciclo de palestras
lá. Não sabendo bem o porque, apesar de não ter sido instruída por Donald, resolveu
dizer que ele estava preparando um trabalho muito importante e não poderia falar com
ninguém naquele dia. Pediu que ele deixasse o telefone para contato e ficou um pouco
surpresa quando ele disse que ligaria outra vez.
Pensou nas diferenças entre americanos e ingleses, não só em relação ao sotaque,
mas também a respeito de algumas normas sociais.
Agora que sabia que o visitante era Guevara, estava progressivamente
preocupada, não apenas com a saúde de Winnicott, mas até certo ponto com a segurança
deles também.
Enquanto pensava nestas questões o telefone tocou outra vez, e um homem com
um sotaque diferente, não americano como o anterior, disse que precisava falar com o
senhor González com urgência. Diante de sua surpresa e negativa, ele insistiu e disse
um nome em código, explicando que, caso ela o mencionasse a González ele atenderia.
Ela respondeu que nem sabia se havia tal pessoa em sua casa, pois seu marido recebia
estudiosos e colegas com freqüência e ela não podia afirmar se havia alguém com ele
naquele momento.
Movida pelo instinto, disse que ele ligasse outra vez dentro de dez minutos.
Desligou e se dirigiu para o escritório para informar aos dois do ocorrido. Bateu na
porta e entrou, encontrando-os animados. Há bastante tempo não via Donald com tanta
energia. Dirigiu-se a Guevara e o informou do telefonema. Seu rosto demonstrou
preocupação imediatamente. Ao mesmo tempo em que o observava falar em espanhol
em um minúsculo transmissor, prestava atenção em sua expressão, que se abrandou um
pouco enquanto ouvia o que lhe era dito pelo rádio. Voltou os olhos e viu Winnicott
com um aspecto que ela conhecia bem, e que era a de um menino brincando com algum
segredo. Os seus olhos brilhavam. Guevara terminou de falar, pediu desculpas por estar
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falando em espanhol e transtornando tanto a rotina da casa. Agradeceu a Clare e disse
que tinha pouco tempo de sobra e que logo teria que ir. Ela saiu da sala ainda mais
preocupada do que antes e foi providenciar água quente para o chá a pedido de
Winnicott.
- Eu tenho um outro segredo para lhe contar, Dr. Winnicott. Fiz uma jogada de
espera e peço desculpas, pois queria ouvir sua opinião sobre o amor e sobre minha
relação com Aleida sem lhe informar um dado que considero importante. Depois de
minha partida de Cuba para lutar na África, já sob disfarce, me encontrei com ela duas
vezes. Não pude ficar longe, seja por sentir tremendamente a falta de seus cuidados
comigo, seja por ser um homem absolutamente fiel. Sexo para mim sempre teve que ser
com ela, mas, acima de tudo, eu precisava de sua presença, porque pela primeira vez
em minha vida de adulto estava completamente desamparado. Desde a saída do Congo
eu fiquei totalmente à mercê do serviço secreto de Cuba para minha proteção e
sobrevivência.(56) O fato é que ela saiu disfarçada e foi trazida para me ver. Nosso
encontro foi em Dar-El-Salaam, no pequeno apartamento em que estava confinado.
Ficamos lá durante as seis semanas seguintes sem sair para nada. É claro que pusemos
nossa vida sexual em dia e além disso líamos juntos e conversávamos. Foi a primeira
vez em nossa vida que ficamos sozinhos e foi o momento mais próximo de uma lua de
mel que tivemos.(57) Depois nos encontramos em Praga. Apesar das nuvens que
escureciam o nosso futuro, devido à minha decisão de continuar lutando, ela estava lá,
com todo o seu amor e generosidade.
- Ah! Ernesto, isto é de fato muito importante. Mas me diga, com quem você falou
no rádio? Desculpe interromper você, mas eu estava aqui me roendo de curiosidade.
- Foi com um dos meus seguranças, homem de minha completa confiança e que
me seguiu. Eu saí um pouco em segredo para este nosso encontro, até mesmo para os
mais chegados. Tive que fazer um esforço enorme para estar aqui. Na verdade, disse
que ia a Paris para testar o meu último disfarce, o que de fato aconteceu. Só não falei
que pretendia cruzar o Canal da Mancha e vir até a Inglaterra. Ele me disse que ainda
está observando, mas que talvez eu esteja sendo seguido por alguma agência secreta.
Talvez não tão claramente ou com certeza, porque se tivessem determinado a minha
presença com segurança, provavelmente já teriam tomado outras medidas. Minha
cabeça está a prêmio. Pode ser que seja apenas uma sondagem, mas por via das
dúvidas, vamos apressar nossa conversa.
Os olhos de Winnicott ainda brilhavam, mas agora mostravam também uma
sombra de preocupação. Entendia o esforço inaudito que Che Guevara estava fazendo,
assim como os riscos e ameaças que pesavam sobre ele. Sentiu-se mais do que
envolvido em um brinquedo. Sentiu-se parte da história; de um pequeno evento que
talvez nunca fosse escrito ou conhecido, mas que mesmo assim era parte dela. Teve
consciência ainda maior da complexidade da vida e dos fatos que se escondem por trás
das aparências, e que o homem comum não percebe. A realidade podia superar qualquer
história de ficção.
- Bem, Ernesto, você tem mais algum segredo para me falar? Se não, vamos
continuar nossa conversa sobre o amor. Afinal, eu estava certo quando disse que
nossas histórias representam um triunfo da vida. Pude ver que você encontrou em
Aleida, como havia dito, a síntese de duas formas de amar, ou de duas fontes de amor
que se juntaram. Se considerarmos a generosidade como um dos aspectos fundamentais
do amor, acho que estamos diante de duas formas dela, encorpando duas histórias de
paixão. A sua e a dela. Vamos ver se consigo falar mais sobre isso. O modelo de
doação que pensei em minha obra foi representado pela mãe em sua relação com o
bebê. Doação completa, porque ela precisa perceber o que o neném necessita e atendelo, sem que ele sequer se dê conta de sua existência naquele ponto do desenvolvimento.
Além disso, a mãe precisa dar tudo isso com os olhos voltados para a independência
92
futura do bebê. Já falamos antes sobre isto que chamei de preocupação materna
primária.(58) Na medida que o sujeito cresce e começa a se dar conta das diferenças
entre si mesmo e o outro, uma nova dinâmica se instala. Quando as coisas correm bem,
o potencial inato para a integração e o desenvolvimento que eu acredito que os bebês
tragam, mostra-se sob a forma de uma interação entre amor próprio, saúde, e amor
pelo próximo, ou seja, consideração e generosidade. Esta é a base fundamental da
capacidade de dar verdadeira, alicerçada em uma experiência de amor que propicia
uma existência ética.
- Então, Winnicott, uma vez mais penso que nossas história e teorias tenham
enormes afinidades. Eu sempre achei que a psicanálise trazia um potencial
revolucionário que não foi entendido pelos comunistas em geral. Ao contrário, ela foi
marginalizada ao mesmo tempo pela Igreja e pelo Partido. Eu não, sempre fui
fascinado por ela.
Entendi que a psicanálise propusesse, com o conceito de inconsciente, por
exemplo, muito mais do que uma quebra com um modelo lógico ou racional. Acho que
a proposta fundamental de Freud tenha sido a de fazer o homem voltar à natureza,
reconhecendo sua estrutura animal e instintiva, ao mesmo tempo em que imaginava a
superação desta base, por mecanismos diferentes e mais evoluídos do que a repressão,
em busca do que pode ser considerado o verdadeiramente humano em nós: a
generosidade e o amor, sem abrir mão da sexualidade e reconhecendo a agressividade.
Isto seria alcançado pela superação do egoísmo, representante no caso do homem, de
um distúrbio do que era natural nos animais. Eu me refiro à lei da sobrevivência e do
mais forte, perfeitamente adequada aos bichos, de quem não se espera piedade ou
consideração. Sei que estas idéias que estamos discutindo não são novidade e foram
pensadas por outros autores, chegando mesmo a se constituir em uma escola. Eles
buscaram também fazer a integração entre fatores psicológicos e sociológicos na sua
concepção do desenvolvimento humano. Eu me lembro imediatamente de Fromm e de
sua tentativa de juntar Marx e Freud.(59) Ao reconhecer que isto já foi tentado antes,
poderíamos perguntar qual seria o sentido de nossa conversa e que diferenças eu
poderia achar entre estes esforços já feitos e o nosso? Em primeiro lugar, vejo você
como uma alternativa teórica ao caminho seguido por muitos psicanalistas que levaram
a psicanálise ao que pode ser considerada uma crise, e que enxergo no presente e mais
ainda no futuro. Um terreno comum entre os esforços de Marx e de Freud foi
considerado por alguns autores como o trabalho de romper as cadeias da ilusão
através da dúvida, do poder da verdade e do humanismo. Marx queria evitar a
impressão de que considerava a essência do homem como uma substância nãohistórica. Para ele, a natureza do homem era um determinado potencial, uma série de
condições; a matéria humana, por assim dizer, imutável desde o início da civilização
podia na verdade ser transformada, evoluída. Eu estou falando isso quase em uma
citação literal. (60) Em meu ponto de vista, que está em contraste com a opinião do
autor que eu citei, que via Freud como um cientista prisioneiro do ‘espírito do
pensamento ma terialista do século XIX’, sempre percebi em sua obra uma dialética
entre natureza e cultura. Em segundo lugar, nós estamos tendo esta oportunidade de
um encontro em uma nesga do tempo. Não vejo razão alguma para que nós não a
aproveitemos ao máximo.
- Eu estou bastante impressionado Guevara. Eu não lhe disse que você não faria
feio em uma reunião científica de psicanalistas? Ouvindo você falar agora, passei a
pensar no quanto uma abordagem interdisciplinar poderia trazer de vantagens para o
debate psicanalítico. Na verdade sempre me senti pouco à vontade ao perceber as lutas
e o empobrecimento que a radicalização teórica havia provocado. Eu me coloquei, em
virtude de meu temperamento, em uma posição conciliadora, middle group,(61) não
por covardia ou falta de firmeza, mas por achar que reducionismos não poderiam dar
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conta de um problema tão complexo como o da ‘natureza humana’, motivo de pelo
menos dois mil anos de estudos filosóficos. Minha teorização foi uma expressão
intencional ou inconsciente, da busca de um ponto de interseção, capaz de superar
dicotomias e antagonismos. Comigo estavam diversos colegas, como Masud Khan,
Charles Rycroft, Marion Millner e outros, mais interessados em observação e empatia.
Nós suspeitávamos de dogmatismos e, apenas por curiosidade em relação à sua
história, estávamos obliquamente interessados no existencialismo.
- Foi por ter percebido isto que eu estou aqui, Winnicott, disse Guevara.
- Continuando a lhe dizer onde eu vejo diferenças em seu trabalho, em relação às
tentativas de que falava, poderia citar o seu conceito do desamparo inicial do bebê,
assim como sua noção de que a independência, tema caro tanto à psicanálise quanto ao
marxismo, fosse um processo em desenvolvimento.(62) Além disso você enfatizou a
ação do meio ambiente, explicitando uma relação que em outros autores ficava
implícita. Com isto, você abria a estrada de uma intervenção sobre a realidade, dando
esperanças de uma transformação das relações humanas, tão importante para o
marxismo. Acho mesmo que no futuro alguma escola psicanalítica ou filosófica poderá
tirar da questão da independência uma tendência a ser entendida e valorizada em
termos absolutos, relativizando sua importância ontológica e articulando-a com as
relações intersubjetivas.
Do outro lado do oceano, na mesma cozinha em que havia tomado café com
Guevara, Aleida falava com a babá: Sofia, será que Che acredita que eu vou poder
esquecer dele e viver com outro homem? Não falei nada em nossa conversa aquele dia,
porque ele já estava sobrecarregado demais e eu não queria discutir. Às vezes os
homens querem parecer fortes e falam de sua capacidade de independência, sem
perceberem o quanto também precisam de nós. Nossa separação pode até acontecer
fisicamente, mas eu jamais me separarei dele, não importando se estiver vivo ou morto.
Guevara continuava falando, observado por Winnicott:
- Outro ponto que eu acho extremamente importante e sobre o qual você falou há
pouco, é o representado pelo trabalho sobre objetos e fenômenos transicionais que
citou no começo da conversa. Acho que com ele você conseguiu alterar a dicotomia
sujeito/objeto que tanto atrapalhou a ciência, ao propor um espaço compartilhado, e
deu aos objetos um estatuto ontológico. Não sei se conhece o trabalho de um grupo de
filósofos russos que formaram a chamada época de prata da Rússia naquele tempo.
Eles alertaram para as conseqüências desastrosas da separação do homem das
‘coisas’, que eram artefatos feitos à mão e que participavam de sua vida e de sua
história, trocando-os por ‘objetos’, feitos por máquinas, descartáveis e sem ligação
com a vida humana. Os objetos seriam ‘coisas’ degradadas, despojadas de sua
importância nos eventos da história de um sujeito ou de uma família, através do tempo.
Os filósofos citados perceberam que esta situação poderia marcar o início da
degradação do próprio homem.(63)
- Isto é muito interessante Ernesto. Não conhecia estes conceitos, mas isto
mostra, mais uma vez, que as idéias estão no ar, através do tempo e não pertencem a
ninguém em particular. Você percebeu alguns aspectos de meu trabalho que muita
gente não aceitou ou não entendeu. Entretanto, esta questão que você trouxe a respeito
das coisas em seu significado ontológico precisa de uma reflexão. O objeto transicional
é uma criação do bebê e tem a ver com a individualidade. A coisa, como artefato
humano que passava de geração em geração e era apresentado como algo valioso,
neste sentido parece que tinha mais a ver com a tradição. Representava a ligação de
um homem com a história de seus antepassados. Acho que o conceito de objeto
transicional é mais amplo e complexo. Na verdade eu tentei manter aspectos essenciais
da teoria de Freud, mudando alguns termos, talvez de modo inconsciente, quem sabe
também para evitar a rejeição que muitas de suas idéias suscitavam. Isto nunca foi
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entendido assim. Também tive, como você, minha cota de incompreensões e de
desilusões. Mas voltemos uma vez mais à questão do amor. Eu disse que você e Aleida
representavam a junção de duas fontes de amor. Penso agora que a fonte talvez seja a
mesma. É preciso generosidade para deixar de se pensar em si mesmo. Existirá
generosidade maior do que doar a própria vida? Esta é uma idéia da Bíblia que
aprendi ainda menino. Naturalmente, se a entendermos além de seu sentido literal, que
falava sobre o sacrifício de Cristo, não seria também uma forma de dar a própria vida
à atitude daqueles que abrem mão de si mesmos, em algum momento, em prol do outro
que ama? Eu sei que a teoria freudiana colocava uma certa oposição a respeito da
valorização do sujeito face ao objeto. Talvez este tenha sido um dos aspectos nos quais
foi mal entendida e vista como uma proposição de egoísmo. Quando Aleida continuou a
lhe amar e aceitou sua vida e sua disposição para se sacrificar, ela também não estava
sendo generosa e dando a sua vida? Afinal, ela talvez quisesse envelhecer junto com
você, criando seus filhos e trabalhando para melhorar o mundo. Estou me perguntando
aqui se certas mulheres não conseguem ser generosas também com os homens que
amam, como o são com os bebês.
- Este é um ponto muito importante para mim. Ainda me contorço internamente
com a idéia de que esteja fazendo a mulher que eu amo sofrer. Enquanto você falava,
eu pensei que você e Clare também possam representar de certo modo esta forma de
amar. Você disse que a conheceu durante a guerra e que compartilharam tarefas
importantes. Vejo aí paixão e ideais compartilhados, do mesmo jeito que ocorreu
comigo e Aleida. Mas o ponto específico sobre o qual estou pensando é exatamente o
fato de vocês não terem tido filhos. Eu não sei se ela podia, ou se queria, se foi uma
decisão conjunta ou se algum dos dois era incapaz para isso. Quero falar é sobre o fato
como eu estou imaginando, e este me fala de uma mulher que escolheu tomar conta de
um homem, enquanto ele cuidava de dar à luz uma teoria que pudesse melhorar o
mundo. Vocês dois também são exemplos de doação. Quanto a mim e Aleida, não se
esqueça de que nós nos conhecemos em combate e ela sabia desde o início de minha
disposição de empenhar minha vida na luta para melhorar as condições de vida dos
povos. Pensando desta maneira, acredito que eu também tenha doado uma parte de
minha energia e de meu tempo para compartilhar com ela também uma família. Os
ideais nós já tínhamos em comum. Deste ponto de vista, a capacidade de ter outros
objetivos conjuntos que não a família singular nuclear, uma aspiração que
freqüentemente se descolou da naturalidade e da biologia para atender ideais
burgueses de acumulação, é o segredo para entender a importância da generosidade e
respeitar o indivíduo.
Enquanto os dois conversavam, o guarda-costas e amigo pessoal de Guevara,
abrigado em um ponto de observação seguro, ficava cada vez mais preocupado. Ele
havia achado aquela idéia do ‘chefe’ extremamente arriscada.
No entanto, era conhecida de todos a teimosia de Che para defender uma idéia em
que acreditasse. Por isso, quando ele havia dito que iria a Paris para testar o seu último
disfarce antes de voltar para Cuba e depois para a Bolívia, todos se entreolharam com
incredulidade mas nada disseram. Só ele, por quem Guevara demonstrava consideração
especial, tinha tido a coragem de esperar um pouco e quando se viu a sós com ele,
argumentou sobre os perigos a que ele se exporia. Lembrou do serviço secreto
americano e de sua raiva por não ter conseguido antecipar a saída de Cuba a tempo,
apesar da vigilância constante, não conseguindo depois seguir os seus passos. Passou o
período da guerra do Congo e eles, mais uma vez, haviam escapado ao cerco montado,
conseguindo chegar em segurança à Tanzânia. Depois foram para Praga e então
Guevara aparentemente foi tomado pela velha comichão do perigo, que parecia fazer
parte de sua natureza, e decidiu ir até a França. Para complicar tudo, inesperadamente,
disse que precisava se encontrar com um médico na Inglaterra e que aquela visita era
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essencial para ele. Nada o demoveu desta idéia. Nem a tradicional eficiência dos
investigadores ingleses, nem o fato do país ser uma ilha.
Aparentemente, o seu rastro ainda não havia sido alcançado de novo, senão a rua
já estaria fervilhando de agentes das ‘companhias’, da Inglaterra, dos Estados Unidos e
mesmo da União Soviética. Eles podiam ser invisíveis para os olhos do homem comum,
mas não para ele, um agente treinado do serviço secreto cubano. Entretanto, aquele
sentimento inexplicável de apreensão aumentava dentro dele. Decidiu aguardar mais um
pouco antes de fazer algum movimento.
Winnicott estivera em silêncio observando Guevara e disse:
- Parece que o segredo do que estamos discutindo é a descoberta do ponto certo
em que o sujeito doa o amor e ele volta, enriquecido por duas fontes. Uma, é o prazer
da própria doação, que faz o sujeito se sentir mais rico, feminino. Assim, o próprio
movimento em direção ao objeto reverbera em direção ao self. A outra é a resposta
amorosa e otimistamente agradecida, que completa a ação. O amor vivido deste modo
representa uma circularidade ou uma dinâmica de realimentação, na qual as questões
de quem dá, ou o quanto dá, e menos ainda o sentido de que a doação esvazia o sujeito
ficam fora de questão.
- Naturalmente, Winnicott, nós estamos falando de condições especiais da vida,
onde esta forma de amor pode se expressar. Nós dois sabemos das dificuldades para
desenvolver esta capacidade. Vou citar Marx, quando ele discutia os conceitos de
liberdade e de evolução do homem ligando-os à superação dos antagonismos de classe
e ao controle ou respeito, diria eu, pela natureza. Esta etapa representaria o fim da
pré-história e o começo de uma história verdadeiramente humana. Nela, a finalidade
da vida social não será o trabalho e a produção, mas a revelação da capacidade do
homem com um fim em si mesmo. Tal era, para ele, o reino da liberdade no qual o
homem estaria plenamente unido aos outros homens e à natureza. Entretanto, este é o
resultado de um longo e doloroso processo de desenvolvimento. A ‘boa sociedade’é,
para Marx, a sociedade dos homens bons, ou seja, de indivíduos sãos, plenamente
desenvolvidos e produtivos.(64)
Winnicott interrompeu Guevara mais uma vez com energia:
- Ernesto, você lembra de quando estávamos falando sobre democracia e lhe
disse que a ligava a uma questão de saúde? A democracia seria o ajuste de indivíduos
sadios, trabalhando por ideais comuns. Também gostei da citação que você fez a
respeito da superação do trabalho como um fim, para entende-lo como meio.
Tenho me preocupado bastante com um certo antagonismo entre o ser,
considerado feminino, o ter e o fazer, alegadamente masculino. Eu pensaria na reunião
e no desenvolvimento destes aspectos em cada pessoa, independentemente de gênero.
Mais uma vez, acho que existe aproximação nestes conceitos. Isto não deveria ser de se
estranhar, uma vez que qualquer pensador, independente de escola, ao considerar o
homem e formular uma proposta de desenvolvimento desembocará em caminhos
comuns.
Enquanto a conversa dos dois continuava, em uma casa de aspecto comum perto
dali, um grupo composto por cinco homens falava em tom algo exaltado. Estavam em
volta de uma longa mesa de madeira preta polida, sobre a qual diversos papéis estavam
espalhados. O mais jovem deles, de cabelos louros cortados no estilo militar e com
sotaque americano, dirigia-se ao grupo, mas parecia falar especialmente para o mais
velho, do outro lado da mesa. Era um homem de aspecto sóbrio, vestido
impecavelmente e que se mantinha ouvindo tranqüilo apesar do ritmo ansioso em que a
conversa se desenvolvia. Os homens se dirigiam a ele em tom respeitoso e o chamavam
de Lorde.
- Suas negativas não me convencem, senhor. Eu sei que o Ministério está ciente
da importância de determinarmos se Guevara está efetivamente na Europa e se veio
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para a Inglaterra. Os russos nos passaram informes através de agentes infiltrados em
Cuba, bem perto do núcleo do poder, mas nem assim nós conseguimos detectar os
planos deles em tempo. Eles fizeram tudo de maneira muito organizada e tão secreta,
que nem mesmo estes nossos informantes puderam nos dizer com certeza onde estava o
Che. Diziam que ele tinha ido plantar cana, ou que estava doente e teve que ser
operado em local desconhecido. Outra hora falavam que ele e Fidel haviam se
desentendido e que ele poderia estar até mesmo preso ou quem sabe morto.
Evidentemente, caso isto fosse verdade, estas notícias não poderiam aparecer
publicamente, porque trariam total descrédito ao governo. Por tudo isso nós ficamos
sem definição do que de fato estava ocorrendo. Até nos organizarmos melhor, ele já
havia saído do país e aparentemente lutou no Congo. Digo isto com vergonha, porque
apesar da união dos serviços secretos de mais de quatro países, a presença física dele
não pôde ser evidenciada. Ou ele não estava lá, e isto é mais uma atividade de
desinformação, ou estava tão disfarçado que não foi reconhecido. Dizem que esta é a
verdade, e é por isso que eu estou aqui.
Em tom suave, com o característico sotaque britânico, o senhor falou,
interrompendo o jovem e, para um ouvido treinado, podia se observar uma nuance de
ironia em suas palavras:
- Eu posso compreender a sua aflição e mesmo a sua irritação. O fato é que os
seus serviços falharam. Parece que está ocorrendo alguma não integração entre nós,
movida por vaidades ou talvez por pressa. Sei que a perspectiva de uma guerrilha, ou
de várias na América Latina é uma preocupação enorme para vocês. Afinal, vocês
estão trabalhando há tempos na região, tendo atuado na implantação de diversos
regimes militares fortes, vamos dizer assim, e estão preocupados que a presença de um
homem com o poder de mobilização de Guevara traga prejuízos aos seus planos lá. No
entanto, não vejo porque iríamos duvidar da capacidade de nossa organização aqui na
Inglaterra. A pergunta que eu lhe faço é porquê? Por que Guevara viria a este país, se
nenhum contato político pôde ser evidenciado por nossas agências? Você tem algum
dado novo que nós não saibamos? Caso tenha, esta é a hora de nos informar. Afinal,
você não pediu nossa ajuda e foi a atenção constante de nosso pessoal que detectou sua
presença aqui?
O jovem parecia impaciente e algo embaraçado quando falou:
- Não temos certeza, mas algumas fontes nossas nas universidades, ligadas a
movimentos liberais, nos disseram que ele talvez viesse conversar com os
existencialistas que vivem incensando a revolução cubana, ou talvez procurasse ajuda
aqui. Nós andamos telefonando para alguns personagens literários e científicos para
fazer sondagens, mas não temos certeza de nada. Chegamos a telefonar para um
psicanalista que tem ligações familiares ou de amizade com escritores, o Dr. Donald
W. Winnicott, mas não descobrimos nada até este momento. Ele foi uma das
personalidades com as quais tentamos fazer contato, de maneira um pouco aleatória,
devo confessar.
A idéia é que se ele viesse à Inglaterra, não procuraria ativistas políticos e sim
personalidades liberais cujas atividades tivessem ressonância cultural e socia l. De
qualquer modo, o último telefonema que eu dei foi para este Dr. Winnicott e a mulher
dele atendeu. Não pude falar pessoalmente com ele.
O homem idoso estava sorrindo abertamente quando falou, e para aqueles que
conheciam a sua formalidade, o tom exclamativo de suas palavras e o uso do nome de
batismo ao se dirigir ao jovem eram indícios claros de seu desagrado .
- Dave, francamente! Este Dr. Winnicott, como você falou, é um dos médicos mais
ilustres da Inglaterra. Vem de uma família tradicional, religiosa, e seu pai foi
condecorado por seus serviços em prol da comunidade. Ele mesmo é um cidadão
destacado, além de cientista de renome e trabalhou para o Governo durante a guerra,
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cuidando do programa de transferência das crianças para o interior do país. Ele é
conhecido por suas posições liberais e democráticas e não cuida de política, até onde
sabemos. É o presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise. Você acredita mesmo
que um cientista com tal perfil aceitaria se misturar com o representante de uma
ditadura? Acho muito pouco provável.
O jovem ouviu em silêncio e aguardou os outros falarem.
Na casa de Winnicott a conversa prosseguia:
- Donald, ainda estou com algumas questões pendentes. Você acha que nós
podemos continuar mais um pouco? Estou vendo que a tarde já vai começar a cair e eu
não quero ser inconveniente. O fato é que já resolvi que não volto mais para ficar em
Cuba. Decidi isto depois de pensar bastante e pesar o meu futuro, assim como o da
revolução. O aprendizado prático de política me deixou muitas seqüelas. De um jovem
com plena confiança no futuro e com uma fé inabalável no comunismo, me tornei um
militante mais crítico, à beira da maturidade em termos cronológicos, e com
consciência clara das falhas dos sistemas políticos no que diz respeito às instituições.
Continuo acreditando no socialismo como uma das poucas soluções viáveis para
alcançar o desenvolvimento que discutimos. No entanto, percebi que os senhores,
aquelas grandes potências que estão por detrás do cenário de questões regionais, tem
no fundo política muito parecida. Eu entendi isto, por exemplo, ao perceber que o
governo soviético havia feito um acordo com os americanos, por trás de nossas costas,
enquanto nós as colocávamos desguarnecidas à disposição de serem penetradas pelas
balas do inimigo. Nós não estivemos falando do sacrifício da própria vida?Foi o que
oferecemos em prol da defesa de nosso país, e também de ideais comunistas. Além do
mais, depender integralmente dos americanos para nossa sobrevivência ou dos russos,
tanto faz. Houve uma ocasião, quando nós percebemos a tentativa deles nos dominarem
através da ajuda tecnológica e econômica que davam, que o povo inclusive começou a
debochar da situação cantando uma musiquinha que dizia: Nikita, mariquita, lo que se
da, no se quita!(65) Sei que você entendeu apesar do espanhol, porque está sorrindo,
Donald. Enfim, percebi que o importante era cuidarmos do
desenvolvimento
tecnológico do país, sem o que não teríamos nenhuma esperança de futuro. Eu acho
que o colonialismo do futuro será representado pelo domínio de novas tecnologias,
guardadas a sete chaves pelos mesmos países que detiveram o poderio econômico
durante séculos. Achando que minha tarefa havia se esgotado em Cuba, eu decidi fazer
o que considero que seja a minha.
- Não vai ser tarefa fácil, Ernesto. Nós vimos que você sente um amor de grandes
proporções, dividido em partes desiguais e talvez variáveis entre a revolução e sua
mulher e filhos. Talvez eu possa fazer uma reflexão agora que consiga lhe ajudar em
alguma medida. Pelo que eu entendi, e nós discutimos, você considera que os povos
desassistidos e incultos seriam equivalentes aos bebês em sua fase inicial de
desamparo. Então, eu fiquei pensando se nós não poderíamos considerar você,
mantendo o paralelismo com a relação mãe-bebê, como o equivalente a uma mãe que
preferisse permanecer num estado de dar à luz e cuidar dos bebês, que seriam os povos,
enquanto eles estivessem pequenos e frágeis, sem autonomia. Quando os bebês e os
povos crescem e se desenvolvem, muitas vezes não podemos mais ter o controle sobre
suas decisões e seus destinos. É preciso paciência e tolerância para isso, assim como
capacidade para suportar o confronto. Força para encarar embates eu sei que você
tem, desde pequeno. Não sei é se você tem a paciência, com você e com os outros, para
esperar pelo crescimento e pelos frutos. Para ter tolerância com as falhas, suas e dos
outros, que fatalmente ocorrerão. Digo isto baseado no que me contou, ou seja, que
num determinado ponto você se transf ormou em um implacável cobrador.
- Aí Winnicott, você está tocando numa questão importante. Fico pensando no
acerto de minha vinda aqui, e de como está me ajudando a refletir. Você acha que este
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tipo de mãe hipotética seja válido? Talvez as mães não tenham todas as habilidades, e
reconhecer suas limitações, ao invés de ser um mal, pode ser bom. Pode ser que você
tenha razão e eu prefira a fase da luta em que todas as minhas energias estão reunidas
e em ação para provocar movimento. Um movimento de transformação que fica
bastante visível, do mesmo jeito que um bebê aumenta de peso aceleradamente quando
tudo vai bem nos primeiros meses. Ele também desenvolve habilidades motoras
aceleradamente. Você enxerga o desenvolvimento. Quanto às mães, algumas se dão
bem ao cuidar do bebê, não se assustam com o seu desamparo. Outras, ao contrário, se
sentem mal e tem muita insegurança para lidar com ele, dar banho, amamenta-lo. Um
outro grupo, ao contrário, tem dificuldades para aceitar o desenvolvimento e a
independência crescente dos bebês. Quando você falou sobre a mãe suficientemente
boa,(66) você foi sábio exatamente porque foi modesto. Você disse suficiente, ao definir
as qualidades que a mãe precisa ter para dar ao bebê uma chance real de
desenvolvimento. Eu só fico pensando é se não precisamos pensar também em um bebê
suficientemente bom. Ou talvez em duplas de mães e de bebês suficientes uns para os
outros.
- Devo dizer que você ainda me surpreende, Ernesto. Não é muito fácil encontrar
especialistas que entendam ou aceitem estas idéias. Desde 56, quando escrevi este
trabalho, eu tenho acentuado a minha visão da importância da atuação do meio
ambiente em diversos trabalhos. Você está falando sobre um outro aspecto, mais
estudado por outros autores, como Mahler, de uma adaptação do bebê à mãe. Eu
enfatizei a adaptação do meio ambiente ao bebê. Desde o meu casamento com Clare
tenho produzido muito. Falando sem falsa modéstia, acho que melhorei em qualidade e
quantidade. É como se eu tivesse encontrado nela a mulher suficiente para estimular a
minha criatividade.
No mesmo prédio perto da casa de Winnicott, a discussão continuava, e o jovem
chamado Dave permanecia em silêncio. Estava acontecendo um daqueles raros
momentos em que uma conjunção de fatores fazia com que homens treinados não
conseguissem se entender. A desconfiança e a má vontade uns com os outros cancelava
a lógica e os tornava inoperantes. Ouviu um dos participantes falar sobre notícias vindas
da França, numa reportagem onde um filósofo existencialista dizia que Guevara
compareceria a uma reunião nos próximos dias.Enquanto isso, outros informes davam
conta de sua presença para preparar os festejos de aniversário da revolução. Ele ouvia
todos com ceticismo e desconfiança, porque apesar de estar afastado das atividades de
campo, trabalhando em nível superior da inteligência, seu feeling ainda estava intacto.
Ele tinha sentido alguma vacilação, ou súbita aspereza na voz da esposa daquele médico
que o esnobe inglês tanto havia incensado. Por via das dúvidas, seguiria aquela pista.
Quem sabe não seria ele, o que havia falhado, como dissera o velho, quem poria as
mãos em Guevara? Não se deixaria influenciar por aquele bando de incompetentes e
que provavelmente o estavam enganando, e ao pensar isto sorriu internamente.
Guevara estava algo irônico quando voltou a falar:
- Acho que você saiu um pouco do tema que estávamos conversando, Donald.
Não quero parecer egoísta ou mal educado, mas o meu tempo está se esgotando e
preciso saber mais sobre o assunto. Eu penso que tenhamos alcançado o núcleo
fundamental de minha questão. Serei eu um parteiro de mundos, ao invés de um
cuidador de indivíduos? Será que a minha opção de deixar meu país de adoção, onde
estão meus amigos e companheiros de revolução, minha mulher e meus filhos, é válida?
Confesso a você que sempre tive muita força, e poucas vezes vacilei em minhas
decisões. Nem todas as vezes, é verdade. Quando cheguei a Bariloche e recebi a carta
de Chichina terminando comigo, pensei em desistir e não sabia mais que caminho
seguir. Desta vez é diferente. Existe muito mais em jogo do que em qualquer momento
de minha vida. Parece que tenho muito a perder, seja qual for a decisão que tome. Não
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falei nada a pouco, mas os últimos momentos que passei com meus filhos, sem lhes
dizer quem eu era, foram terrivelmente dolorosos. Não creio que possa sentir dor maior
do que esta. Você alguma vez se viu em uma situação semelhante, Donald?
- Não acredito, Guevara. Todos nós temos que tomar decisões que nos obrigam a
perder algo. Crescer, em certa medida, representa perder a ilusão, ganhar
responsabilidades e aceitar limitações. Mas no seu caso as decisões são matéria de
vida ou morte! Só você pode enxergar lá no íntimo de sua alma e decidir alguma coisa.
Você disse que deu um salto sem volta. Porquê? Sua mulher lhe ama, você é respeitado
e admirado pelo povo de Cuba e pelo mundo afora. Ainda há tempo de voltar e
continuar o seu trabalho. É possível que consiga aprender a esperar os frutos
amadurecerem e assim encontrar alegria até mesmo na velhice. Eu tenho
experimentado um pouco disso. Ainda este ano, meu aniversário de setenta anos foi
comemorado com um jantar de gala em Mansfield House, a sede da Sociedade
Britânica de Psicanálise. Eu fui eleito para um novo mandato como presidente ano
passado,(67) e confesso que me senti envaidecido e feliz com as homenagens que
recebi. O ponto mais importante não foi o fato de ter recebido honrarias, mas o
sentimento de que tudo o que está acontecendo é fruto de meu trabalho, e que ele é o
resultado de uma escolha de amor feita muitos anos atrás. Quanto a sua pergunta... É
muito difícil responder. Não deixaria Clare por nada deste mundo. Acho que só estou
vivo ainda por causa de seu amor e de seu carinho comigo. Se não fosse por ela creio
que teria morrido vinte anos atrás.(68)
- Bem, Winnicott, acho que nossas perspectivas são um pouco diferentes a esse
respeito. Você me deu a impressão, com seu último comentário, de estar com menos
energias para criar. Disse que talvez tivesse morrido já há algum tempo se não fosse
por Clare, e tenho a impressão de que se apega à vida. Não sei se estou certo nesta
observação, e peço desculpas se pareço um pouco cruel. Eu, por outro lado, não me
vejo perdendo minhas forças e esperando pela morte. Desde jovem quero ir ao encontro
das balas. Quero ser o senhor de meu destino.
- Acho que você realmente se enganou a meu respeito, Ernesto. Tenho me sentido
muito vivo, apesar de meus problemas de saúde, e como já lhe disse, nunca produzi
tanto na vida. Já recebi convites para os pró ximos anos e vou fazer conferências em
vários paises; até mesmo em locais como os Estados Unidos, onde minhas idéias não
são bem entendidas e aceitas ainda. Além disso tenho textos prontos para serem
publicados. Quanto à morte, tenho pensado um pouco sobre ela e até andei fazendo
rascunhos de um texto autobiográfico. Ele não está pronto ainda, mas deverá se
chamar ‘Não Menos Do Que Tudo’.(69) Tenho pensado que gostaria de estar vivo no
momento de minha morte. Esta é uma idéia que me acompanha há muito tempo e você
pode ver que eu também quero de certo modo ter o meu destino um pouco sob controle,
ou pelo menos continuar vivo e criativo até o fim. Neste sentido posso lhe entender.
Metaforicamente, eu também quero enfrentar minhas balas de peito aberto.
- Então estamos mais uma vez bem próximos, Winnicott. Eu já decidi continuar
lutando, e, como falei antes, meu objetivo é chegar até a Bolívia, de onde eu pretendo
lançar um movimento guerrilheiro que alcance diversos países da América Latina.
Pode ter sido apenas acaso, ou talvez uma determinação inconsciente, mas o fato é que
meu plano começa no altiplano e, como você deve saber, os Andes acompanham
diversos países. Talvez seja mais fácil começar as ações do alto e nos manter lá.(70)
Mas eu tenho algumas dúvidas e gostaria de discuti-las com você antes de sair.
Sentado ao volante de um daqueles tradicionais táxis de Londres, arranjado pelos
misteriosos caminhos do Serviço Secreto, o guarda costas esperava e observava a rua e
a entrada da casa de Winnicott. Ninguém desconfiaria de um negro, provavelmente
jamaicano, na direção do carro.
100
Ele percebeu um movimento que o preocupou. Tinha a fama de possuir uma
tremenda memória fotográfica, pois não se esquecia de um rosto que tivesse
importância depois de tê-lo enxergado, mesmo que apenas uma vez. Ele tinha certeza de
já ter visto aquela cara e aquele corpo treinado. O agente que era chamado de Dave já
tinha estado em Cuba em missão e agora estava parado do outro lado da rua, em frente
de uma banca de jornal.
O cubano sentiu tocar o alarme em sua mente, mas decidiu esperar ainda um
pouco antes de começar a agir. Talvez o inimigo não estivesse na trilha de Guevara.
A saída repentina do americano, assim como a desculpa que arranjara, não havia
passado desapercebida ao Lorde, que estiva presidindo a reunião com olhos voltados
para as intenções e sentimentos de cada um dos participantes. Sem que Dave soubesse,
despachou um subordinado para sair em seu encalço. Queria saber o que ele estava
tramando.
- Continuemos com as questões sobre as quais quero ouvir a sua opinião,
Winnicott. Vou falar de modo cronológico. Em primeiro lugar existe uma experiência
que tive numa noite em que estava na Guatemala. Descrevi numa conversa com um
homem, um andarilho revolucionário como eu. Dois aspectos são fundamentais: ele
falou sobre nós, os desajustados que cometeram o pecado de nunca terem se adaptado.
Depois falou de fúria e de revolução e também disse do perigo de que mesmo nós, os
que doamos nossas vidas em benefício do povo, viéssemos a ser usados no futuro como
instrumento de domesticação dos jovens Percebi naquele instante que eu seria mais do
que um dissecador de doutrinas e psicanalista de dogmas; vi que morreria nas
trincheiras, molhado pelo sangue de meus inimigos. Estas imagens violentas que eu
descrevi ocorrendo em uma conversa, na verdade estavam em minha mente a bastante
tempo, crescendo e se tornando mais cada vez mais intensas.(71) Em seguida, existiu
aquela noite, durante a campanha de Santa Clara, em que estava lutando junto com
Aleida e ela atravessou a rua, no meio de um tiroteio violento. Nos segundos em que a
perdi de vista, entendi que a amava. A idéia de perde-la foi insuportável para mim.(72)
Por último, vem uma questão política. Sempre defendi em meus textos a idéia de que
não se pode fazer uma guerrilha e ser vitorioso sem a participação do povo. Posso citar
de memória textos em que falei sobre este tema. A guerrilha é a guerra de todo um povo
contra a opressão dominante. O guerrilheiro é a sua vanguarda armada. Essa é a
razão de sua força e de seu triunfo, mais tarde ou mais cedo, sobre qualquer poder; isto
é a base, e o substrato da guerrilha está no povo. Não se pode conceber que sem esse
auxílio precioso, pequenos grupos armados, por mais mobilidade e conhecimento que
tenham, possam sobreviver à perseguição organizada de um exército bem
apetrechado.(73)
- Um momento, Ernesto. Você falou sobre coisas demais outra vez. Vamos por
partes. Então, uma noite você viveu uma experiência de um diálogo interior, com um
aspecto de sua personalidade que ainda não havia se expressado? Se foi assim e
reconhece que a conversa versou sobre os que não se adaptam, acho que existe alguma
coisa para nós pensarmos. A inadaptação é entendida comumente como uma pessoa
que não estabelece la ços harmônicos com o meio ambiente por lhe faltarem algumas
condições para isso. Pode ser que falte ao sujeito tolerância, ou paciência, ou mesmo
qualidades que sejam admiradas pelos outros. Alguns destes aspectos eu acredito que
poderíamos enxergar em você. Mas quero lhe mostrar outro ponto, que também está no
seu diálogo. Você não poderia estar fugindo exatamente do fato de ter conseguido se
adaptar? Eu disse mais atrás que talvez tivesse medo de aguardar pelo futuro, ou de
viver o dia a dia até chegar lá . Parece que o diálogo mostra um pouco disso. Talvez
tema que seu exemplo de sacrifício seja mal utilizado e queira marcar sua presença no
mundo de modo tão indelével e insofismável, que se transforme em mártir das idéias
nas quais acredita. De algum modo, esta seria uma forma de ter controle sobre o
101
futuro. Eu creio que o que não esperava, é que o amor por pessoas, representadas por
Aleida e seus filhos, também tomasse seu coração. Na noite que descreveu, perder a
sua mulher de vista encheu seu coração de pesar. Descobriu naquele exato momento
que a amava, e também entendeu uma das coisas essenciais do amor. É doloroso
perder de vista quem nós amamos. A morte de uma pessoa amada machuca
precisamente porque a perdemos de vista. Você disse que sentiu o mesmo em relação a
seus filhos. Coloque-se então no lugar de Aleida e imagine o que ela pode estar
sentindo. Por último, vem a questão da participação do povo como sendo vital para o
sucesso da guerrilha. O que você quis dizer quando falou nisso?
- O fato é que o projeto na Bolívia não está estruturado de maneira segura e
confiável. Eu mandei uma agente bem treinada para lá, apelidada de Tânia, além de
Pombo e Tuma, dois companheiros de luta, para preparar minha chegada ao país.
Entretanto, como nossos planos tiveram que ser feitos em total segredo, mesmo para os
dirigentes comunistas de lá, as bases não estão sólidas. A falta de firmeza não tem a ver
apenas com a não adesão do Partido local, mais uma vez. Nós vencemos em Cuba
apesar da oposição dos comunistas. Como disse, o que não pode faltar é a adesão do
povo. E isto está sendo dificultado pelo fato de nós termos que ocultar nossa estratégia
dos dirigentes comunistas bolivianos.(74) O presidente do Partido, Mario Monje, segue
uma linha claramente pró-Moscou, e a orientação russa é para que se evite a luta
armada. Nós estamos em confronto com eles, e, conseqüentemente, também em
oposição à política do local onde pretendemos lançar a guerrilha. Esta é uma situação
desconfortável e perigosa. Ela atenta contra pri ncípios básicos da luta, como lhe
expliquei ainda há pouco. O líder operário Juan Lechín foi exilado e a junta militar que
está no comando é feroz. Não pudemos estabelecer bases sólidas com os operários e
camponeses, como deveríamos.
- Então, Ernesto, o que na realidade está se passando? Você não acha que esta
situação que descreveu é tão perigosa e fora de suas próprias normas em relação à
guerrilha que tem chances demasiadas de terminar em tragédia? Não estou me
referindo aos perigos naturais de uma guerra. Eu já entendi isso muito bem, e eu
mesmo participei de combates arriscando minha vida em um navio. O fato é que esta
nova luta, do modo que você definiu, tem aspectos quase suicidas.
Guevara estava com uma expressão séria e de grande intensidade em seus olhos e
retrucou:
- Eu não pensei sobre isso, ao menos não conscientemente, Winnicott. Não me
vejo um suicida, e sim um combatente feroz, determinado a me lavar no sangue dos
inimigos. No entanto, tenho que reconhecer que esta situação extrapola de muito o
comum. O Monje esteve em Cuba para fazer treinamento de guerrilha, junto com
alguns quadros do partido boliviano que tinham ido para lá antes. Tive a impressão
muitas vezes de que ele tinha vindo na realidade para sondar a minha posição e de
Fidel em relação à ampliação da luta armada. Como ele tem ligações com Moscou, e
os dirigentes do comitê central e o primeiro ministro estabeleceram negociações até
mesmo com os americanos, eu não os acho confiáveis. Foi durante a questão dos
mísseis que percebi que existiam interesses que mudavam até mesmo a polarização e
confrontação naturais entre o comunismo e o capitalismo. Foi um doloroso
aprendizado reconhecer isso; tenho que admitir que não estou sendo prudente nesta
questão. Mas prudência nunca foi meu forte, Donald.
O telefone começou a tocar e depois de atender a empregada se dirigiu a Clare
falando: - Madame Winnicott, há um lorde do Almirantado querendo falar com a
senhora.
Ela atendeu e o homem ao telefone se identificou, dizendo seu cargo e justificando
a ligação pela importância que o Dr. Winnicott havia adquirido desde o seu trabalho na
guerra. Ele havia ouvido rumores, provavelmente infundados, naturalmente, de um
102
encontro dele com uma personalidade política estrangeira. Perguntou se ela sabia
alguma coisa a respeito, pedindo desculpas pela intromissão em assuntos particulares e
justificando a sua falta de polidez por razões de segurança. Clare respondeu que nada
sabia a respeito de encontro de seu marido com um político e disse: - Por Deus, senhor,
o que o Dr. Winnicott teria a discutir com um político? Pelo que eu sei, ele está
revisando um texto importante com um colega de profissão.
Desligou em seguida e saiu para falar com Winnicott e Guevara sobre o que havia
ocorrido. Do outro lado da linha, o Lorde também teve uma intuição e decidiu colocar
uma escuta na linha. Por via de dúvidas, queria saber o que de fato estava acontecendo
na casa.
Médicos eram personagens importantes na Inglaterra, especialmente após a guerra,
e Winnicott poderia até mesmo chegar a Lorde, como seu antigo professor, Dr. Thomas
Jeeves Horder, que havia se tornado o barão de Ashford. Sua intenção era proteger o Dr.
Winnicott, e ao mesmo tempo saber o que de fato ele estava fazendo. Nunca se sabe,
conjecturou.
- Bem Ernesto, começou a falar Winnicott, interrompendo o que ia dizer devido à
entrada brusca de Clare. Ela tinha os olhos assustados e contou tudo o que tinha
ocorrido. Pediu que os dois decidissem alguma coisa, pois sentia uma ameaça crescente
pairando sobre eles. Guevara olhou para Winnicott e quando falou também sua voz
transmitia preocupação.
- Vou chamar meu segurança, Donald.
O pequeno rádio havia sido calibrado para uma freqüência segura e a voz que
respondeu era a de sempre, conhecida há muitos anos.
-Chefe, eu vi um americano que já esteve em Cuba aqui perto da casa. Não havia
lhe chamado para não dar alarme falso, como o senhor havia determinado. O que está
ocorrendo?
Guevara lhe contou sobre o telefonema e começaram a combinar a respeito da
estratégia para saírem, caso os serviços tivessem de fato encontrado seu rastro. Não
queria em hipótese alguma colocar a vida de Winnicott e de sua esposa em perigo. Os
olhos de Guevara não estavam brilhando enquanto falava.
Alguns minutos mais tarde, o lorde ouviu uma chamada telefônica em seu
aparelho, e o pedido de um táxi para levar Dr. Winnicott à Sociedade de Psicanálise
dentro de meia hora.
- Bem Ernesto, creio que estamos chegando ao final de nosso encontro. Há
poucos instantes, depois de ouvir Clare falar sobre o telefonema, eu pude entender
afinal o motivo pelo qual eu lhe recebi e continuei a falar com você depois de
descobrir sua identidade e ter noção dos riscos que nós todos estávamos correndo. Não
sou um homem imprudente nem dado a revelações; sei dos riscos de falarmos de nossa
intimidade e de termos confiança. Há muitos anos eu confidenciei segredos meus a dois
analistas e eles faltaram ao segredo. Como você, também tive minha cota de desilusões
em coisas nas quais acreditava muito. Posso ter perdido um pouco de minha fé nas
pessoas, mas não nos ideais. Estava estranhando minha decisão de falar de coisas
muito pessoais com você. Acho que o aspecto principal que me moveu foi perceber a
sua integridade e, devo confessar, o desejo de pegar uma carona com você em sua vida
aventureira. Nós estamos nos encontrando numa nesga do tempo, como você disse.
Nesta nesga, de certa forma estou me sentindo participando de um espaço
compartilhado, como o que eu imaginei tempos atrás. Nosso encontro está sendo neste
local, nem meu, nem seu. Meu e seu. O que nós estamos discutindo, ultrapassa o tempo
e o espaço. Você falou de uma iluminação que teve uma noite, e estou vivendo algo
parecido neste tempo que passamos juntos. Você percebe, Ernesto, que este espaço de
que estou falando atravessa a cultura, se entrelaça com a ciência e se abre para o
futuro? Digo isso, porque a nossa conversa é a de dois homens que estudaram
103
medicina, trabalharam com ela em prol das pessoas e agiram politicamente. Você de
maneira clara e explícita, e eu como alguém que buscou melhorar o mundo a partir das
famílias e das ligações íntimas e delicadas entre seus membros. O seu trabalho
revolucionário provocando estardalhaço. O meu, silencioso, buscando encontrar e
manter o fluir da vida, como um regato cristalino descendo por entre as pedras de uma
colina. O rio Amazonas nasce nos Andes, para onde você vai. Começa como um
pequeno regato; um fio de água descendo da escarpa em direção ao leste. Depois de
milhares de quilômetros ele se transforma no poderoso rio, o maior do mundo. Você
pode imaginar aqui comigo, neste território livre da imaginação, que eu tenha, ainda
que secretamente, acalentado o desejo que meus silenciosos esforços pudessem se
juntar aos de outros regatos humanos para constituirmos um rio caudaloso de amor e
de compreensão. É evidente que na medida que os riachos se encontram e se juntam, a
pureza essencial do regato, sua especificidade, fica perdida. Nada impede, no entanto,
que o rio formado pela união dos regatos humanos continue limpo e se torne o caudal
que transporte pessoas e seus sonhos, na direção de um futuro melhor. Acho que nossos
desejos guardam muita semelhança em sua essência. Diferem apenas na maneira de
alcançá -los.
Guevara estava visivelmente emocionado enquanto ouvia estas palavras e colocou
as mãos nos ombros de Winnicott, repetindo o gesto que havia feito anos atrás com seu
amigo poeta em Cuba.(75) Na ocasião havia se sentido partido em dois. Não estava
assim naquele instante.
- Eu posso lhe afirmar, meu amigo Donald, que poucas vezes em minha vida eu
me senti como agora. Apenas em combate experimentei esta proximidade, em ocasiões
em que a morte era iminente. Talvez tenha sentido algo parecido com minha mãe, nos
instantes de intimidade que nós desfrutamos e com Aleida, em momentos de paz depois
da paixão. Sorriu e disse: como vê, você está na companhia das pessoas que mais amei,
Donald.
- Bem, Ernesto, creio que você entendeu profundamente o que lhe falei. Acho que
é muito mais, pois entendimento é coisa da mente. Nós dois estamos falando do
coração. Estamos conversando sobre ficar juntos, e ao mesmo tempo a respeito de
poder ficar só. Eu escrevi sobre isso em 59,(76) e disse que até para ficar sozinho é
preciso que tenhamos estado na presença de alguém que nos acompanhou. Pode ser
que tenha chegado o momento de se encontrar com seu destino em solidão.
Winnicott também estava emocionado, e lembrou de quanto tinha desejado se
encontrar com uma figura masculina forte e de respeito e que se interessasse por ele.
Sentiu tristeza pela ausência de seu pai. Refletiu o quanto paradoxal pode ser a vida,
porque aquele homem, tão mais jovem do que ele, lhe transmitia uma segurança do tipo
que havia buscado durante toda a vida.
Guevara estava pensando que talvez pela primeira vez estivesse conseguindo
reunir pai e mãe em harmonia, unidos na pessoa de Winnicott.
Eles se levantaram, e perceberam que estava ficando escuro. Os papéis, as flores e
os brinquedos espalhados pela sala quase desapareciam na atmosfera do entardecer.
Apesar disto, Winnicott enxergava um brilho no ar.
Antes que o agente americano começasse a andar, o guarda-costas colocou o carro
em movimento, dirigindo-se à casa de Winnicott.
Lá dentro, os dois estavam se preparando para sair, tinham deixado o consultório e
estavam no pequeno hall quando encontraram Clare. Ela observou que eles estavam
rindo e que seu marido estava com aquele ar de menino brincalhão que ela conhecia
bem. Winnicott estendeu as mãos e, num gesto inesperado, segurou os braços de sua
mulher e de Guevara ao mesmo tempo, em silêncio. Sem falar nada começou a subir as
escadas que davam para o jardim do terraço, do qual sempre tivera tanto orgulho.
Chegando lá, ainda sem dizer nada, ele colheu um pequeno ramo de flores e o entregou
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a Guevara. Começaram a descer as escadas em direção da entrada e Winnicott disse a
Clare que tinha decidido mostrar a sede da sociedade ao ‘amigo Guevara’. Aquele dia
estava sendo tão estranho e diferente que ela nada falou.
O agente inglês percebeu que o americano começara a andar e imediatamente
chamou o Lorde pelo rádio. Ele já estava esperando pelo chamado e saiu apressado para
encontrá-lo.
Dave estava na expectativa, olhando em volta com atenção. Embora não pudesse
observar nada fora do comum, sentia aquela comichão aumentando dentro dele outra
vez. Começou a caminhar lentamente e parou cerca de cem metros antes da casa de
Winnicott. Neste momento avisou o táxi que começava a parar na entrada. Seus sentidos
se aguçaram e instintivamente apalpou a automática que tinha conseguido esconder dos
ingleses.
A porta da frente se abriu e Winnicott, Clare e um distinto senhor apareceram. Ele
carregava um ramo de flores nas mãos, junto com dois pequenos livros, um deles de
capa verde. Na outra mão carregava uma pequena maleta bastante usada. Os três
conversavam tranqüilamente e lhe pareciam alegres. Era esta a cena que o Lorde, que
se encontrava alguns metros atrás do americano, enxergava. Um respeitável cientista
inglês e sua bela esposa, em companhia daquele colega a que ela havia se referido no
telefonema. Deu um sorriso ligeiro, achando engraçado os óculos de lentes muito
grossas que o colega de Dr. Winnicott usava. Pensou que os dois eram o protótipo
acabado de um cientista, do tipo que gasta infindáveis horas estudando.
O americano via coisa diferente. Com seu olhar aguçado, observou o contorno do
rosto do homem com jeito de contador aposentado, detendo-se especialmente no queixo.
Imediatamente veio à sua mente a lembrança do formato da mandíbula de Guevara. Era
um contraste visível, destoando do aspecto abatido do sujeito que falava com o casal.
Nesse exato momento, a porta do táxi se abriu, e ele pode ver o motorista. Um negro
alto e esguio, bastante musculoso, no entanto. Podia dizer quase com certeza que já o
tinha visto em Cuba. Hesitou por um instante, pensando até que ponto seu desejo de
prender Guevara não estivesse fazendo que visse coisas inexistentes, tirasse conclusões
apressadas de pequenos detalhes. Não gostaria de fazer um fiasco às avessas, prendendo
quem não deveria e provocando um incidente internacional. Uma coisa era agarrar o
revolucionário mais procurado do mundo e virar celebridade. Outra era falhar e
agüentar as conseqüências. Segundos se passaram sem que ele se decidisse.
De outro ponto, o velho agente viu quando Dr.Winnicott e o homem se dirigiram
ao carro, e antes de entrar, observou que ele entregou o livro e as flores à senhora
Winnicott com um gesto galante. O Lorde pensou que a atitude era perfeitamente
adequada para alguém que havia passado o dia todo na casa de uma senhora inglesa,
decerto muito ocupada, transtornando a sua rotina.
Nesse momento, pelo canto dos olhos viu o movimento do americano e reagiu
automaticamente, junto com seu subordinado mais jovem. Enquanto o americano
colocava a mão na pistola e começava a andar, eles o subjugaram por trás sem grande
esforço, porque sua concentração na cena em frente à casa de Winnicott o impedira de
perceber a aproximação dos dois. O velho se dirigiu a ele num sussurro, mas a sua voz
tinha um tom intenso e de comando.
- Você enlouqueceu, Davie? O diminutivo era propositalmente humilhante. Quer
prender um eminente cientista inglês e seu colega de estudos?
O americano estava pálido quando respondeu. - Não, eu quero prender Che
Guevara. Você vai me impedir? Eu lhe disse que ele estava disfarçado e tenho quase
certeza de que aquele homem junto a Dr. Winnicott é ele.
O Lorde e seu colega se entreolharam, e sem dizer palavra, o velho dirigiu o olhar
para o carro, num pedido mudo. Seu subordinado entendeu o gesto, tirou várias fotos
do bolso, olhou-as por segundos e disse: - Não vejo nenhuma possibilidade de que
105
aquele homem seja Guevara, senhor. Dave deve estar louco. Em seguida, engatilhou a
arma quando sentiu a tensão no corpo do americano, que tremia de excitação.
Enquanto eles discutiam, Guevara se dirigiu a Clare e disse.
- Senhora Winnicott, muito obrigado por ter me recebido em sua casa. Falarei a
seu respeito com minha mulher, Aleida. Este livro verde é meu desde criança. Foi
escrito por Jules Verne, e é um dos meus favoritos. Quero que o aceite como um
presente. O outro é sobre Arsène Lupin, o ladrão de casaca. Não sei se o conhece, mas
é um personagem extraordinário, muito inteligente, culto e ousado, quase mágico. Ele
conseguiu enganar a polícia francesa a vida toda, usando todos os tipos de disfarce.
Acima de tudo, é muito divertido. O autor é a contrapartida francesa de Agatha
Christie. Às vezes eu o lia escondido, porque não ficava bem para um ministro ficar
lendo histórias de ladrão. Espero que a Sra. goste.
Winnicott e Clare estavam de lado em relação ao meio-fio e Guevara pôde
observar com clareza os três homens, percebendo a tensão entre eles. Não teve dúvidas
de que seus perseguidores haviam encontrado sua trilha. Olhou para o guarda-costas e o
fez observar a cena também, sem dizer nada. Entraram em seguida no táxi, que se pôs
em movimento lentamente.
Do outro lado da rua o trio de agentes observava a cena em silêncio e viu a Sra.
Winnicott entrar em casa, depois de dar um aceno. Quando falou, o tom de voz do
americano era de desespero.
- Lorde, eu lhe suplico. Se não quer agir agora, pelo menos vamos seguir o carro.
Talvez você se arrependa amargamente se não o fizer. Vamos fazer um trato. Caso eles
se dirijam para fora da cidade ou algum lugar suspeito, nós os interceptamos. O Dr.
Winnicott pode estar até sendo seqüestrado. Você já pensou nesta hipótese?
O velho considerou todas as questões e decidiu: - Dave, eu ainda acho que você
está fora de si, em seu desejo furioso de prender quem lhe despistou tanto tempo. Mas
existe uma chance de que você esteja certo e eu não quero correr riscos em demasia.
Vou fazer o que sugeriu.
Entraram no carro e seguiram o táxi, que estava um pouco mais distante,
movimentando-se lentamente no tráfego pesado daquela hora. Andou por algum tempo
parando em frente à sede da Sociedade Britânica de Psicanálise, e lá os passageiros que
eles seguiam desceram. Guevara pagou a corrida e os dois se dirigiram à entrada, sendo
saudados efusivamente pelo porteiro, assim que identific ou o Dr, Winnicott. Demorou
um pouco até que o carro que conduzia os agente chegasse ao local, e o velho não pode
deixar de perguntar sarcasticamente:
- Será que o famoso Che Guevara vai estudar psicanálise, Dave? Ou talvez
Winnicott o tenha seqüestrado! Dave estava pálido e disse: brinque o quanto puder,
mas faça o que combinamos. Vamos esperar um pouco e ver o que acontece. O diálogo
entre eles estava áspero e o Lorde falou: Tudo tem limites. Eu acho que você está
enganado e vou lhe conceder mais um pouco de tempo. Parece que você não sabe, mas
o Dr. Winnicott pode ter até mesmo uma audiência com a Rainha, para falarem sobre a
inauguração do busto de Freud. Vocês americanos não respeitam as tradições, mas
para nós, ingleses, isto é sagrado.
Winnicott estava em seu gabinete da presidência e parecia contente de mostrar
tudo a Guevara. Seus olhos tinham um brilho intenso, e ele estava participando da
brincadeira com todo o empenho. Há muito tempo não se divertia tanto!
- Muito obrigado outra vez, Donald. Chegou a hora de nos separarmos. Vou sair
e você deve permanecer aqui. Não vou esquecer uma só palavra do que falamos. Eu
acho que estava com razão quando pensei em nos encontrarmos. Pode estar certo de
que me ajudou imensamente e que suas idéias, seu carinho e sua compreensão pelos
meus problemas me deram a percepção que eu necessitava para definir o meu futuro.
Vou assumir as minhas decisões com o coração tranqüilo. Eu o faria de qualquer
106
modo, mas talvez carregando dúvidas e sofrimentos demais. Agora eu sei, com mais
certeza ainda, que minhas escolhas são gestos de amor. O amor que eu posso viver, do
modo que eu consigo expressar. Nosso encontro não vai figurar na história, mas quero
lhe dizer que ele mudou a minha. Muito obrigado.
Guevara falou tudo isso em tom suave e delicado, olhando Winnicott bem dentro
dos olhos. Este não disse nada. Observou Che sair da sala e imaginou que ele não estava
apenas saindo por uma porta. Percebeu que entrava para a história.
Che entrou no banheiro e tirou o paletó e os óculos, colocando uma peruca, bigode
e cavanhaque castanho, que retirou da maleta que carregava. Vestiu um casaco aberto
de lã e observou o resultado no espelho, dando alguns retoques nas sobrancelhas. Ficou
satisfeito com o resultado, pois o cavanhaque disfarçava muito bem o formato incisivo
de seu queixo. O homem que ele enxergou no espelho podia ser um aluno do Instituto,
de quase quarenta anos e cheio de energia. Sorriu e se dirigiu à saída; seus olhos
estavam brilhando.
Dentro do carro os três observavam o movimento e viram quando o pequeno
grupo abriu a porta. Duas secretárias e um daqueles estudantes de psicanálise, pensou o
americano. Eles cumprimentaram o porteiro e se separaram, indo em direções opostas.
O lorde observava a cena e notou o olhar que seu subordinado dirigiu às moças, que
conversavam animadamente. Riu intimamente e pensou na energia que os jovens
despendiam pensando em sexo.
Guevara se dirigiu para a esquina, andando com calma, embora todo o seu corpo
estivesse retesado. Lembrou das inúmeras vezes, desde a infância, em que estivera em
situações de perigo. Nestes momentos era tomado por uma calma incongruente com a
situação. Pensou também nos longos anos de treinamento para as tarefas de guerrilha,
de espionagem e despiste. Deixou que seu corpo relaxasse e firmou o passo. No meio de
suas lembranças, naqueles breves instantes em que se afastava de seus inimigos,
apareceu uma cena na qual Lupin passava em frente ao seu perseguidor implacável,
mais uma vez, conseguindo escapar. Sorriu aliviado, dobrou a esquina e quando
enxergou o carro, estava quase gargalhando. Olhou para o motorista e perguntou:
- Este táxi pode fazer uma corrida até Cuba? O motorista respondeu sorrindo
também. - Só até Cuba não. Este carro vai até o futuro.
Che Guevara entrou, pôs as mãos nos ombros do homem e disse: - Então vamos
para casa, companheiro.
CAPÍTULO V
ALGUMAS IDÉIAS A TÍTULO DE CONCLUSÃO
Pretendo escrever este capítulo com uma síntese dos objetivos inicias deste
trabalho, a partir de seu título, ‘O DIA EM QUE WINNICOTT E CHE GUEVARA
SE ENCONTRARAM: EM BUSCA DE PONTES PARA A CONSTRUÇÃO DE
UMA EXISTÊNCIA INTERSUBJETIVA.’
O primeiro tópico a merecer discussão diz respeito à noção de temporalidade
embutida na palavra dia.
De qual estaríamos falando? De um dia determinado, de 24 horas? De um
interminável conjunto e sucessão de dias de estudo e de ação, condensados na
experiência e na mente deste autor e expressos no texto? Do significado real de que
estes dias e conceitos só puderam ser estabelecidos como fruto de outros, ainda mais
107
longos e, evidentemente mais significativos histórica e teoricamente, e que foram
vividos por Guevara e por Winnicott?
O que é na realidade o dia a que o título se referia?
Nós sabemos que a questão da temporalidade da experiência humana sofreu uma
extraordinária transformação com o advento da psicanálise. A partir da noção de
inconsciente também como local de guarda de experiências mantidas à margem do
tempo, retendo força psíquica para interferir nos eventos acontecendo no presente e,
desse modo, alterando o futuro, passado e presente deixaram de ser entendidos na
moldura de uma temporalidade ordinária.
Nos sonhos e na compulsão à repetição, passado, presente e futuro estão unidos na
trama das experiências que compuseram a vida humana. Isto, se abordarmos apenas a
discussão do tempo em sua relativização no cotidiano da vida.
Quando entendemos que a construção do sujeito humano passa por uma trama
inevitável de subjetividades, de pessoas vivendo juntas, com idades cronológicas
diferentes, assim como diversos níveis de experiência, a questão do tempo adquire
complexidade ainda maior. Novo e velho se mesclam e se confundem, no infinito
trabalho de tecer a trama de tempo e de esperança que é marca essencial do humano.
Esta poderia ser entendida como uma perspectiva essencial do esforço de meu texto.
Baseado em grande medida na teorização de Winnicott, que por sua vez articulo
com pressupostos fundamentais da intersubjetividade posteriores a ele, em termos
cronológicos, meu texto pergunta: Quem vem primeiro, no sentido da apreensão
fundamental da inescapável intersubjetividade da experiência humana? Buber,
Feuerbach, Winnicott?
É importante definir apenas esta cronologia ou, é mais significativa a
compreensão de que a passagem dos séculos abriga um rio subterrâneo de pessoas
ligadas à tentativa de valorizar o encontro humano como o essencial da existência,
mesmo quando o tempo e as circunstâncias trabalham contra ele?
Winnicott pensou a este respeito ao conceber o desenvolvimento como um
processo não linear, alternante e que funciona de forma inclusiva. Sua visão abrigava
um sentido não determinista e procurava superar com sua formulação teórica anteriores
impasses dicotomizantes, como a oposição sujeito/objeto e mundo interno /externo, por
exemplo.
A quebra das citadas dicotomias excludentes, foi feita a partir de conceitos
inovadores, dentre os quais destacarei o espaço potencial e os objetos e fenômenos
transicionais. Ao falar de espaços compartilhados ele se antecipava, em termos de
teorização psicanalítica, a alguns dos teóricos da intersubjetividade, fato reconhecido por
eles ao citarem claramente textos de Winnicott em alguns de seus mais importantes
trabalhos. Antes dele, dentro do rio da história, Buber, Feurbach e outros.
Para as finalidades que estamos buscando neste capítulo, é importante lembrar que
no trabalho sobre o espaço da transicionalidade, Winnicott acentua que o destino do
objeto transicional, na saúde, é ser descatexizado, não pranteado e se espalhar ‘sobre todo
o território intermediário entre a ‘realidade psíquica interna’ e o ‘mundo externo
conforme é percebido por duas pessoas que estão de acordo’, isto é, sobre todo o campo
da cultura.
Winnicott amplia este tema, incluindo a criação e apreciação da arte, o brincar, o
sentimento religioso e também a mentira e o roubo, a perda do sentimento de afeição e a
adição a drogas, entre outras.
Temos desse modo alguns aspectos essenciais para a compreensão do propósito
deste texto. Os fenômenos transicionais alargam o momento de criação do objeto
transicional, ultrapassando-o no tempo, mas não em sua função. Esta permanece
inalterada. Seu papel é o de marcar ao mesmo tempo a percepção nascente da alteridade,
108
ajudar a suporta-la e inscrever a existência, ao mesmo tempo, em irreversível matriz
intersubjetiva.
Assim, podemos dizer que o espaço posterior à criação do objeto transicional,
possa ser chamado (embora Winnicott não o tenha explicitamente nomeado) de espaço
transicional, assim como os fenômenos ocorrendo nele de fenômenos transicionais.
Este é um ponto central, pois a abertura que Winnicott faz destas ocorrências,
articulando-as amplamente com a cultura, o brincar e o sonho, abre a possibilidade de
que a produção que neste momento tentamos, seja uma criatura do mesmo espaço. Em
um espaço meta-temporal e intersubjetivo, nós nos tornamos, ao criar, ligados ao rio do
tempo e da transicionalidade, que nunca cessa. Nestas águas, sempre existe lugar para
mais um sonhador, na tarefa permanente de construir brincando em harmonia com nossos
irmãos que compartilham do mesmo princípio Eu-Tu.
Ficaria uma pergunta a ser respondida em outro momento, e que diz respeito às
diferentes possibilidades ou destinos de atuação dentro do universo ampliado pós objeto
transicional. Por que, enquanto alguns sonham, criam e brincam, outros mentem, roubam
e perdem a capacidade para se afeiçoarem?
Se considerarmos que Winnicott e Guevara seguiram a possibilidade da criação,
apesar das vicissitudes de suas histórias, e que basicamente se integram, para além de
suas vidas, ao rio permanente da vida, o tempo do encontro de Guevara com Winnicott e
comigo, segundo estes princípios, pode ser hoje. Ou amanhã, no trabalho de outro
pesquisador.
Uma vez que se tenha alcançado a capacidade de acessar o espaço da
transicionalidade, fica aberta a possibilidade de conjugar a realidade e o tempo
compartilhados, uma das funções do desenvolvimento, com outro tempo, interno e não
linear e desse modo escapar da subjugação.
É possível aceitar limites e observar os ponteiros do relógio real de 24 horas,
enquanto se mantém a possibilidade de olhar o relógio de Alice.
O tempo corre inexoravelmente, mas podemos estar em contato permanente com
nosso tempo interior, expressão freqüente de experiências e sentimentos mantidos à
margem do tempo.
Em um sentido proustiano da relativização do tempo, discuti em trabalho anterior
(Belmont, 1999) uma passagem de Lévi-Strauss onde ele deixa clara a força evocativa
das experiências sensoriais ao falar do creosoto impregnado nas folhas de seu caderno de
notas. Diz que as fotografias das mesmas ocasiões, que retratavam pessoas e paisagens já
perdidas não o impressionavam mais, passados quase cinqüenta anos, ao passo que o
odor lhe trazia o passado imediatamente ao presente. Paisagens que não mais existiam,
pessoas que já haviam morrido, sons, cores, adquiriam vida na memória sensório-afetiva.
É esta mesma força que pude compartilhar ao ler e ver o trabalho de Lévi-Strauss.
Talvez seu texto estivesse nos reafirmando o que chamei no trabalho citado de maior
poder de presentificação das experiências sensoriais e afetivas, em relação às
fotografias, expressão do mundo representacional. Acho
que estas noções estão
implícitas na importância que Winnicott (1979) atribuiu ao início do desenvolvimento,
para a constituição do sujeito. Horas, dias, momentos de experiências vividas no registro
pré-verbal e pré-representacional, nos quais o que conta para o bebê é o tom em que a
música é cantada, mais do que o significado das palavras. O que vale, é a alegria que
acompanha os gestos maternos, quando se fala da possibilidade de desenvolvimento de
um sentido de integração do self. O contrário, ou seja, a falta de vitalidade e de alegria
nas experiências iniciais do bebê, a perda do ‘going on being’ por falhas maternas instala
o registro, também à margem do tempo, de sentimentos de não integração e de vazio.
É nesse viés de compreensão que o relato das experiências é trazido a este texto.
Winnicott disse que nunca havia se esquecido de dois momentos. Em um deles, o
seu pai havia consertado o nariz da boneca de sua irmã, que ele havia amassado em um
109
gesto de raiva. No outro, maravilhou-se quando viu aos quatro anos os presentes que
havia recebido no Natal. O primeiro, lhe deu em profundidade o sentimento de que fosse
possível reparar os estragos causados pela impulsividade agressiva. O segundo, lhe deu
a idéia de que as pessoas podiam antecipar o desejo dos outros e se perguntou: ‘Como é
que os meus pais sabiam exatamente que era isso que eu queria?’
Também guardou na memória o jantar no qual falou uma palavra que o pai
considerou ofensiva e inadequada e resultou no seu envio para um colégio interno.
Momentos à margem do tempo, porque apesar de pertencerem ao passado, vão influir
sobre toda a vida.
A de Guevara registrou eventos semelhantes. Quando ele tinha apenas dois anos de
idade, sua mãe decidiu leva-lo para tomar banho no yacht club. Já era quase inverno, e o
tempo estava bastante frio e com fortes ventos. Naquela noite Ernesto teve seu primeiro
ataque de asma, doença que o acompanharia por toda a vida e até sua morte, e mudaria os
destinos de sua família. Teria mudado também o seu?
Continuando a proposta de síntese deste capítulo passarei a considerar agora os
campos de encontro entre os nossos personagens.
A família de Winnicott foi caracterizada por Khar (1996) como vivendo em um
cenário de estabilidade social, no qual “os cidadãos que possuíam terras e dinheiro
sentiam orgulho da expansão e do status internacional crescentes do Império.”
Com relação aos seus genitores, parece ter existido um evidente descompasso, pois
enquanto seu pai era talentoso e cheio de energia, sua mãe ‘era sujeita a períodos de
depressão.’ Apesar disso, ‘supervisionava a casa e representava
uma estabilidade
palpável para os filhos’, como no episódio do rompimento da caixa d’água.
Clare Winnicott disse que ‘a infância de seu marido parecia boa demais para ser
verdade’, e parece existir consenso a respeito desse período da vida de Winnicott ter sido
‘sólido e previsível, sem qualquer tipo de angústia ou perda física’.
Deve-se registrar também que a sua casa era habitada por um ‘exército de mulheres
composto por mãe, irmãs, babá, tias, governanta, cozinheira, copeiras e diversas parentes
que viviam do outro lado da rua.’
A mãe de Winnicott aparentemente reclamava do tempo que ele passava junto com
a cozinheira e demais empregadas, que ele chamava de ‘múltiplas mães’.
O autor citado nestas observações (Khar), reconhece que esta imersão em um
universo quase totalmente feminino, além da privação virtual do pai, parece ‘ter marcado
de forma indelével o desenvolvimento psicológico de Winnicott, gerando uma forte
identificação feminina’. (p.6) Cita também Alice Miller, (1979) que disse que ele teve
que lidar com os períodos de depressão de sua mãe (...) e a experiência de se preocupar
com uma mãe triste ‘pode ter estimulado no jovem Donald alguma fantasia de resgate,
levando-o finalmente a dedicar a vida ao cuidado de outras pessoas deprimidas’.
Usando do cuidado necessário da avaliação destes dados, preconizado por Khar no
texto citado, gostaria de utilizar os princípios de análise propostos pela intersubjetividade
e perguntar: Como poderia a vida de Winnicott ter sido estável e sem angústia,no sentido
emocional, se ele teve que encarar tamanhos descompassos e o enfrentamento com a
depressão de Elizabeth?
Conforme foi definido no capítulo III, a idéia de que grande parte de sua teorização
esteja vinculada à sua estrutura familiar, marcada pela ausência do pai e os problemas da
mãe, estaria na esfera da sua capacidade de utilização amorosa e restitutiva mesmo de
experiências dolorosas. Winnicott teria conseguido sobreviver, amparado por suas ‘mães
suporte’, que o teriam preservado, em certa medida, de afundar em um vazio de angústia
paralisante.
Ficaria entretanto uma pergunta: que papel suas ‘várias mães’ poderiam ter
representado em sua dificuldade para estabelecer um objeto sexual feminino claro? Não
110
poderiam ter sido exatamente esta diversidade e os contatos estreitos ‘no andar de baixo’
os responsáveis por seus futuros problemas psicossexuais?
Segundo Khar (1996, p.53), “Winnicott tinha problemas com a ereção, ou talvez
um terror profundo à genitália feminina”.
Além da idéia que segue a linha discutida em relação à babá de Freud ,
(o papel de objetos substitutos à figura materna), penso na hipótese de que algum tipo de
experiência traumática em termos sexuais possa também ter ocorrido.
Estes eventos relatados não impediram que ele tivesse desenvolvido um senso
aguçado exatamente da importância do papel da mãe, talvez pelas falhas prováveis
ocorridas em sua relação com a sua. Além disso, a ausência do pai, sofrida por ele e
relatada por vários autores, talvez tenha desempenhado um papel como parte de sua
noção do desenvolvimento do bebê, centrado essencialmente na sua relação com a mãe.
Não é que a figura do pai estivesse ausente nos trabalhos de Winnicott, como
escreveram Debeneti, Candiago e Outeiral (1994), ao dizerem que “há necessidade de se
investigar mais profundamente a questão do ‘pai’ na obra de DWW. (..) Nossa breve
pesquisa revelou que ele escreveu bastante (..) de forma não sistemática e retomando,
neste aspecto, a raiz freudiana. Ele estudou, como sua contribuição original, a questão da
relação entre a criança e sua mãe, (...) que é citada apenas de passagem em algumas
situações não relevantes e, quase não há descrições dela. (a mãe do próprio Winnicott)
(..) Sem desconsiderar, entretanto, a questão do pai.” (p.68-69) (grifos meus)
As questões levantadas por mim agora dizem respeito à tentativa de responder a
alguns dos porquês Winnicott teria dedicado tanto em extensão e profundidade `a função
materna, inovando o campo teórico psicanalítico a partir desta concepção original,
enquanto dedicava à figura do pai alguma extensão, sem inscrever o seu conceito na
matriz relacional e fora da concepção edípica freudiana, ou seja, em certo descompasso
com o conjunto de sua obra.
Talvez, ao fundamentar sua concepção da importância da função materna, por
oposição, em uma experiência intersubjetiva de vazio e de não encontro com uma mãe
deprimida, ele tenha podido alcançar o território da criação, trazendo idéias inovadoras e
pessoais. De acordo com postulados da intersubjetividade, teria existido uma relação de
vazio e de falta, na presença do objeto, exigindo uma luta para superar aquela situação de
desamparo.
Com relação à figura paterna, a configuração intersubjetiva parece ter sido a de
ausência do objeto, salvo nas situações já relatadas. Pode ter ficado um vácuo
identificatório, que impediu Winnicott de desenvolver mais sua masculinidade, o que se
refletiu em “algum tipo de conflito psicossexual”.
É como se , ao faltar a presença paterna com sentido afetivo e modelo a ser
introjetado, Winnicott tivesse discutido qualquer pai, não o seu, com todos os conflitos
que este enfrentamento edípico certamente ensejaria.
Talvez por isso, segundo os autores citados na página 221, o pai da obra de
Winnicott era o pai da raiz freudiana. Teria sido concebido fora da matriz intersubjetiva
que dá consistência afetiva às produções teóricas e representam o acesso ao espaço da
criatividade verdadeira.
Seguindo a já citada identificação culposa com a mãe deprimida, a primeira mulher
de Winnicott foi uma pessoa gravemente enferma em termos mentais, com quem ele
gastou quase toda a sua juventude, e viveu ‘sem sexo’. Na síntese destas questões,
aparentemente ligadas à configuração emocional de suas relações familiares, deve
também ser lembrada sua incapacidade para gerar filhos, e que se estendeu às suas irmãs,
também elas sem herdeiros.
A família de John Frederick Winnicott e de Elizabeth Martha Woods, acabou com
a morte dos filhos.
111
Todos estes fatos parecem ter contribuído para sua definição de
desenvolvimento infantil saudável, encontrado no livro ‘A natureza Humana’.
A criança saudável, que deverá lidar com todas essas vicissitudes,
deve ser pensada como aquela que vive num ambiente relativamente
estável, com a mãe feliz em seu casamento, e com o pai disposto a fazer a
sua parte em relação às crianças, a conhecer seus filhos e a dar e receber
naquela maneira sutil que lhe ocorre tão naturalmente, a partir da
experiência feliz que ele teve, na infância, com seu próprio pai. (p.5)
um
Sua visão começa com um sujeito impessoal (a criança) e termina com um sujeito
masculino. Talvez Winnicott tenha dedicado grande parte de seus esforços intelectuais e
emocionais para a construção de um mundo teórico, onde a natureza humana pudesse
começar em um cenário diferente do existente na sua. No sentido buscado pela
intersubjetividade, parte de sua produção teórica teria o significado de enfrentar e superar
os conflitos marcados em sua infância. Para esta escola, configurações psicológicas não
podem ser entendidas e conseqüentemente transformadas fora dos contextos
intersubjetivos que lhes deram origem. Isto seria válido também para as defesas.
Talvez a construção de uma teoria que sugere enfaticamente a importância de um
meio-ambiente e , especialmente de uma mãe dedicada a seu bebê, como base para uma
existência integrada, possa ter se constituído em um fenômeno transicional, propiciando
uma maior integração de sua personalidade.
Esta integração encontrada depois de um longo caminho inicial, pode ter sido
necessária para que Winnicott pudesse chegar até o momento no qual se encontrou com
Clare.Ela teria sido, com sua alegria, energia, capacidade intelectual e beleza, o símbolo
de sua superação dos problemas:o complemento humano, o Tu, fundamental para colocar
seu marido na corrente da sua existência.
A partir de seu encontro, a unidade Eu-Tu, expressa em toda a sua obra, passava a
ser uma realidade em sua vida. Ele muitas vezes disse que Clare era como o oxigênio em
sua vida, e até o último instante foi movido por um forte sentimento de amor por ela.
Com relação a Guevara, os textos falam de uma família vivendo em país instável
política e economicamente e posta em movimento pela busca de soluções para seu
problema de saúde. A mudança determinou o agravamento de conflitos já existentes,
devido à incapacidade de seu pai para encontrar trabalho e sustentar a família de modo
regular. Durante a maior parte de sua infância e adolescência, existiram situações
embaraçosas por falta de dinheiro.
Em pelo menos uma situação de sua vida, estas questões se mostraram importantes
para seu destino. O episódio a que me refiro é o de sua desilusão com o término de seu
namoro com a primeira mulher a quem amou, Maria del Carmen Ferreyra, de família
muito rica. Ela era bonita, voluntariosa e poderia ser um objeto substituto da mãe. Após o
rompimento com ela Guevara iniciou um movimento de deambulação, que continuou,
intermitentemente, até a sua chegada à Guatemala, posteriormente ao México e à viagem
para Cuba.
A instabilidade financeira e o uso de recursos da família de sua mãe, que durante
muito tempo representou a única fonte de dinheiro para o sustento da casa e dos filhos,
parece ter desempenhado um papel em escolhas futuras de Ernesto.
Além disso, havia a sua profunda intimidade com sua mãe, mais eficaz no âmbito
intelectual do que no afetivo. Estes dois aspectos, de acordo com um entendimento de
desenvolvimento à luz da intersubjetividade, podem ter respondido pela não-escolha de
sua primeira esposa, Hilda Gadea.
Ela era uma mulher mais velha e feia,de feições sempre sisudas nas fotos, a quem
ele não amava, mas de quem disse precisar. Usava seu dinheiro, suas ligações políticas e
o único ponto que tinham em comum eram seus ideais políticos. Ela engravidou de modo
112
súbito e Guevara se sentiu aprisionado, tendo resolvido se casar com ela sem saber bem
porque.
Outro ponto que pode ser entendido em viés intersubjetivo, diz respeito ao banho
em água gelada que sua mãe lhe deu aos dois anos de idade. Ele desenvolveu um quadro
de asma crônica, em parte herdado, pois vários membros de sua família sofriam do
mesmo mal e parece ter desenvolvido uma nostalgia intensa de cuidados femininos, que
durou a maior parte de sua vida. Tinha problemas com tomar banho desde a
adolescência.
Segundo Winnicott, os cuidados maternos envolvem até mesmo a temperatura das
mãos ao tocar o bebê (Winnicott, 1957, 1975, p.97). 14
Não caberia aqui uma pergunta? O que pode ter determinado que uma mulher
inteligente como Célia, pusesse seu filho de dois anos nas águas quase geladas do rio?
Além do mais, que conseqüências poderiam ter ficado registradas na mente de Guevara
devido a este episódio, que marcou o início de sua asma?
Só depois de seu relacionamento e casamento com a mulher a quem amou
profundamente, esta questão foi resolvida. Ela, que se chamava Aleida, era bonita,
guerreira e compartilhava com ele os mesmos ideais e atividades políticas.
A escolha desta mulher foi muito importante em termos de desenvolvimento à lua
da teoria da intersubjetividade, pois representava uma síntese do que anteriormente
estivera dissociado. Refiro-me aqui à questão do carinho e cuidados, que haviam faltado
na figura de sua mãe, e ele encontrou no pai, que o atendia quando ele estava em crises
agudas de asma, aplicando-lhe injeções.
Por conta desta provável divisão, até conhecer Aleida, as mulheres eram
representadas para ele como objeto sexual ou parceira ideológica. O carinho era
encontrado principalmente no companheirismo radical do campo de batalha.
Vale a pena lembrar que em verso escrito ainda adolescente, ele disse que mudaria
o seu destino e “não morreria afogado e sim atravessado por balas.” Isto representaria seu
desejo de superar a angústia respiratória de que padeceu desde pequeno.
Na verdade uma personalidade tão complexa como a de Guevara não pode ser
reduzida a um único parâmetro em sua estruturação. Também pesaram fatores como a
história familiar de aventureiros e desbravadores e sua genuína preocupação de contribuir
‘com algo de significativo’para o bem da humanidade. A intenção com estas reflexões é
demonstrar que desta trama fazem parte as experiências afetivas do período inicial da
vida, de forma marcante. Foi na sua vida com Aleida, com quem teve quatro filhos, e que
o tratava com tanto carinho que chegava até mesmo a lhe dar banho que as situações
iniciais de desamparo foram atendidas e superadas.
Aparentemente, o frio das águas do rio da Prata e a falta de cuidados de sua mãe no
episódio, foram resolvidos pelas águas tépidas do amor.
É importante também ressaltar que Guevara, que havia seguido os passos de seu
pai, um incorrigível sedutor de mulheres, fato que determinou a sua separação conjugal,
só foi encontrar a paz amorosa e a fidelidade com Aleida. O Tu de Guevara, foram dois,
Aleida e o homem sem rosto.
Sua concepção de mundo, no qual o sujeito particular foi ampliado para um geral,
por quem e a quem dedicou sua vida e sua morte, parece ter sido influenciada em grande
medida pela relação intersubjetiva inicial de sua vida. Com sua mãe, como foi dito, ele
compartilhava mais ideais do que carinhos e pode ter sido este o cenário afetivo
coadjuvante, pelo menos em parte, de suas futuras opções políticas.
14
Tomemos agora uma mãe com seu filhinho. Como ela dá banho no menino? Coloca-o na máquina de
lavar elétrica e deixa que o processo de limpeza ocorra mecanicamente? De modo algum. Ela sabe que a
hora do banho é especial tanto para ela quanto para o bebê...verificando a temperatura da água com o
cotovelo, mas acima de tudo que o banho seja uma experiência agradável para ambos. Por que tem ela
todo este trabalho? Não poderíamos dizer , muito simplesmente, que é por causa do amor?
113
O encontro de Winnicott e de Guevara neste texto foi feito, entre outros aspectos, a
partir de uma mesma base de convicções voltadas para o incremento da existência e da
afirmação do self. Cada um em seus termos, a partir de uma irredutível fidelidade aos
seus princípios, dedicou o melhor de seus esforços para tornar a existência do Outro, a
quem nem conheciam, um pouco melhor.
Eu me sinto feliz por ter recebido em minha vida os efeitos de seus exemplos.
Acredito poder dizer que Winnicott e Guevara, no que respeita à minha pessoa, se
encontraram em mim e permitiram a escrita deste texto, uma criatura do espaço
transicional.
Espero que este trabalho motive o seu encontro com muitos mais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO IV
O ENCONTRO
(1) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus, 1997. p.129.
(2) ______________. __________. p.126.
(3) ______________. __________. P.129
(4) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(5) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus, 1997. p.135.
(6) ______________. __________. P.153.
(7) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
Grove Press, 1997. p. 634.
(8) ______________. __________. p. 637.
(9) ABRAM, J. A linguagem de Winnicott: Dicionário das Palavras e
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(10) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(11) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus,1997. p.08.
(12) ______________. __________. P.22.
(13) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(14) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus,1997. p.51.
(15) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
Grove Press, 1997. p.178-179.
(16) ______________. ____________. P.180
(17) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus, 1997. p.52.
(18) ______________. ____________. P.52
(19) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
Grove Press, 1997. p.202.
(20) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
biográfico. Rio de Janeiro, Exodus,1997. p.15.
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(21) ______________. ____________. P.27.
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(23) KHAR, B. A vida e a obra de D.W.Winnicott: um retrato
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(24) ______________. ____________. P.100.
(25) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(26) ______________. ____________. p.401.
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(28) ______________. ____________. p.425.
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(51) ______________ . ______ . p. Encarte fotográfico entre páginas
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(52) ______________ . ______ . p. 629.
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(63) SAFRA,G. A Clínica do Self: Diálogos com alguns Teólogos Russos.
Anotações feitas em aula. Relações com Winnicott feitas por este
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(65) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(66) WINNICOTT, D.W. Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas.
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(68) ______________ . ______ . p. 113.
(69) ______________ . ______ . p. 154.
(70) ANDERSON, J. L. Che Guevara: A revolutionary Life. New York,
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(71) ______________ . ______ . p. 124.
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(73) CENTRAL EDITORIAL LATINO AMERICANO. Obras de Che
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