Proteção Jurídica do Software: uma análise crítica dos - Alfa-Redi

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Proteção Jurídica do Software: uma análise crítica dos - Alfa-Redi
Proteção Jurídica do Software:
uma análise crítica dos elementos protegidos pelo direito1
Rodrigo Guimarães Colares
Advogado. Presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Informática (IBDI) e da Comissão de
Tecnologia da Informação da OAB/PE (2007-2009). Mestre (LL.M.) em Direito de Tecnologia da
Informação e Telecomunicações pela Universidade de Strathclyde (Reino Unido). Sócio do escritório da
Fonte Advogados em Madrid (Espanha).
Introdução; 1. Noções técnicas básicas de software; 2. Uma breve
história da proteção jurídica do software no mundo; 3. O projeto
brasileiro e as pressões externas; 4. Definição da proteção do programa
de computador no Brasil; 5. Uma análise comparada: Brasil, Estados
Unidos e União Europeia; 6. Elementos do programa de computador
protegidos pelo direito; 6.1. Proteção jurídica sobre o código-fonte; 6.2.
Proteção jurídica sobre o código-objeto (ou “código de máquina”); 6.3.
Proteção jurídica sobre os elementos funcionais gráficos – o look and
feel; 6.4. Proteção jurídica sobre figuras, músicas, vídeos, textos e outras
obras autorais existentes em programas de computador; 6.5. Proteção
jurídica sobre logotipos utilizados em um software; 6.6. Proteção jurídica
sobre bancos de dados e outros elementos gerados por um software; 7.
Proteção do software: a questão do registro; 8. Considerações finais: que
rumo poderia seguir a tutela jurídica dos softwares?
Até a década de 70, pouco era a utilidade de uma proteção específica para o programa
de computador2. Constituindo-se a parte lógica dos computadores, os programas até
aquela década estavam intrinsecamente vinculados às máquinas que compunham. Eles
continham as instruções, sob a forma de código, para fazer com que as máquinas
desempenhassem as funções para as quais elas haviam sido fabricadas.
Assim como atualmente existem programas de computador específicos para fazer
funcionar equipamentos determinados, tais como as partes computadorizadas de um
carro, uma impressora, um avião ou um telefone móvel celular, os programas de
computador, naquela época, eram os softwares desenvolvidos especialmente para as
máquinas em que se encontravam e não para equipamentos similares em geral. Na
prática, os computadores tinham um preço de aquisição inacessível à população em
geral, existiam apenas nas grandes corporações e, via de conseqüência, tinham seu
mercado consumidor severamente restrito.
Sua proteção, assim, em um momento inicial, estava vinculada às máquinas para as
quais haviam sido desenvolvidos. O direito da propriedade industrial, sob a forma da
concessão de patentes, era a via ordinária para a proteção das invenções e
1
Estudo parcialmente desenvolvido e apresentado pelo autor para aprovação no módulo “Intellectual
Property Law” no LL.M. in Information Technology and Telecommunications Law da University of
Strathclyde (Glasgow, UK), em 2005. A presente versão trata-se de uma tradução, reorganização e
ampliação do original. Projeto co-financiado mediante bolsa concedida pelo Programa AlBan da União
Européia, 2005-2006. Última versão elaborada em Madrid, em novembro de 2009.
2
Consideramos sinônimas as expressões “programa de computador” (português) e “software” (inglês,
bastante usada no Brasil).
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melhoramentos da indústria. Por não representar um valor econômico relevante em si,
não era preocupação dos países em geral que houvesse uma proteção específica para os
programas per se, que estivesse dissociada à proteção dos equipamentos.
Contudo, no final da década de 70, início da década de 80, duas grandes corporações da
indústria de tecnologia, Apple e IBM, desenvolveram um computador com a finalidade
de que fosse utilizado pelo público em geral, chamado de computador pessoal (PC, do
inglês personal computer). Seu preço era bem mais acessível e, para que fosse possível
sua utilização massificada, era importante que os programas desenvolvidos pudessem
ser instalados e utilizados em qualquer PC.
Aquele foi um momento de quebra de paradigmas, disruptivo para o direito da
propriedade intelectual moderno. Diante do fenômeno dos computadores pessoais, um
novo mercado consumidor havia sido criado: o de pessoas comuns, indivíduos e
empresas de menor porte, que, para que seus computadores desempenhassem novas
funcionalidades, como o processamento de textos e organização de dados em planilhas,
precisariam obter novos programas.
Novos vetores econômicos ocasionados pela então crescente demanda da sociedade
urgiriam por uma mudança no panorama mundial de proteção a novos bens intangíveis,
de utilização em computadores em geral, que representavam sua parte imaterial e lógica,
os softwares.
O presente estudo tem por objetivo analisar quais elementos constitutivos de um
programa de computador são protegidos pelo direito. Para tanto, buscamos analisar a
legislação brasileira atinente à matéria – a Lei do Software e a Lei de Direitos de Autor
–, levando-as para uma discussão comparada com a legislação e a jurisprudência mais
aprofundada de outros países, que possam ser utilizadas como referências de aplicação
no Brasil, além de elevar os critérios estabelecidos na lei brasileira a uma interpretação
sistemática com tratados e acordos internacionais assinados pelo Brasil.
Ao final, fazemos breves considerações sobre a importância do registro de programas de
computador no Brasil, apesar de sua não obrigatoriedade; trazemos algumas
considerações finais sobre a falta de efetividade da tutela legal atualmente aplicável e
sobre a necessidade de sua rediscussão, propondo critérios que nos parecem mais
sensatos a uma normativa de proteção à propriedade intelectual dos programas de
computador.
1. Noções técnicas básicas de software
O programa de computador é desenvolvido por um profissional devidamente habilitado,
chamado “programador”. O programador é o responsável por desenvolver o software
por meio de códigos escritos dentro da respectiva linguagem de programação
escolhida3. Esses códigos desenvolvidos pelo programador conterão as instruções que
indicarão as funções que estarão disponíveis ao computador no qual ele funcionar.
Para que esse código faça o computador desempenhar suas funções é preciso que ele
seja traduzido. A depender da linguagem em que o software tiver sido desenvolvido,
3
Existem diversas linguagens de programação, tais como Delphi, C/C++, Pascal, Java, etc.
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esta tradução poderá ocorrer por meio de “interpretação” ou “compilação”. Por
exemplo, as páginas web são desenvolvidas em linguagens como a JavaScript e, em
certo ponto, podem ser consideradas como programas de computador, mas são
“interpretadas” pelo navegador de internet do computador que a está acessando, no
momento do acesso, de forma instantânea.
Já programas aplicativos como o MS Word passam por um processo de “compilação”, é
dizer, eles são desenvolvidos e, antes de serem passados aos usuários finais, são
“compilados” por um programa específico (chamado “compilador”) e transformado em
um arquivo final, fechado, cujo novo código, ininteligível para o homem por estar em
linguagem de máquina, é chamado de “código objeto”. O processo de “compilação”
pode ser comparado ao da elaboração de um bolo: o cozinheiro (programador) mistura
os ingredientes necessários (códigos) e, para que esteja pronto (seja traduzido para o
computador), é preciso que passe pelo forno (compilador). Ao final, o bolo (software)
estará pronto para o consumo do comprador final (usuário do software). Uma vez
compilado, não é possível alguém chegar ao código-fonte original, exceto por processos
de “engenharia reversa”, cuja legalidade é extremamente questionável.
Essas noções introdutórias são importantes para a discussão posterior de quais
elementos devem ser considerados protegidos pelo direito.
2. Uma breve história da proteção jurídica do software no mundo
O Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte) e os Estados
Unidos, países cujas empresas despontaram à frente no desenvolvimento de programas
de computador, na defesa dos interesses dessas corporações, clamaram que houvesse
proteção legal dos softwares nos diversos países do mundo.
Segundo David Bainbridge, o argumento levantado à época era o de que a inexistência
de uma tutela jurídica para os programas de computador já representava perdas
expressivas no faturamento das organizações empresariais em si, que, diante daquele
cenário, vir-se-iam desestimuladas ao seu desenvolvimento e comercialização4.
Melhor colocada a questão, a inexistência de um regime que pudesse proteger os
programas em si, não associados às máquinas em que funcionavam, representaria a
impossibilidade de se constranger terceiros que deles se utilizassem, copiassem e
comercializassem, a que não o fizessem, o que, caso massificadas tais condutas,
repercutiria na impossibilidade de aumento nos lucros decorrentes da comercialização
pelas empresas que os desenvolveram.
Em 1980, os Estados Unidos foram o primeiro país a modificar sua lei de direitos
autorais para expressamente a contemplar a proteção ao programa de computador, pela
então Lei de Copyright de Programas de Computador de 19805 (US Computer Software
Copyright Act 1980). A proteção então conferida aos softwares estava sob o regime
geral do copyright norte-americano, que se assemelha ao regime conhecido pelos países
civilistas, de tradição jurídica romana, como “direito de autor”, já que ambos se
4
5
BAINBRIDGE, David. Software Copyright Law. Londres: Butterworths, 1999. 4ª ed. p. 43.
Computer Software Copyright Act of 1980, Pub. L. No. 96-517, 94 Stat. 3015 (1980).
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destinam à proteção de obras literárias, artísticas e científicas, tais como textos, figuras,
obras de artes plásticas e produções científicas6.
Antes disso, em 1978, uma lei modelo sugerida pela Organização Mundial da
Propriedade Intelectual7 considerava que uma proteção sui generis - nem só de direitos
de autor, nem só de patentes, nem de só de segredo industrial -, seria mais adequada do
que uma proteção exclusivamente sob o regime de copyrights.
Em 1983, o Ministério da Indústria e Comércio Internacional do Japão propôs8 um
modelo parecido com os direitos de autor, mas com um tempo de proteção menor9, sem
direitos morais10 e com diversas hipóteses para licenciamento compulsório.
No mesmo ano, um estudo do Escritório de Patentes da França sugeriu um modelo11 que
guardava características mais próximas do regime patenteário do que daquele que
conhecemos por direitos de autor: o depósito do software perante o órgão competente
seria constitutivo de direito, não declaratório como é no direito de autor; haveria
requerimento de um certo grau de não-obviedade para a concessão da proteção; e, ao
final do período de proteção, os elementos constitutivos do programa seriam levados ao
conhecimento e utilização públicos, ato que, no direito patenteário, é atribuído como
forma de se garantir a evolução da técnica existente.
3. O projeto brasileiro e as pressões externas
Em 1984, o Brasil havia preparado um projeto de lei de proteção sui generis aos
programas de computador12. Conforme relata Denis Borges Barbosa, no mesmo mês em
que este projeto foi posto em discussão no congresso nacional, o então presidente norteamericano Ronald Reagan sancionou a Lei de Tarifas e Comércio, segundo a qual,
dentre outras provisões, havia expressa menção de que todos os países deveriam adotar
o sistema de copyrights para a proteção jurídica dos softwares, sob pena de sofrerem
retaliações comerciais dos Estados Unidos13.
Em setembro de 1985, o presidente Reagan anunciou que estaria determinando a
abertura de um processo contra o Brasil14, a fim de verificar suas políticas relativas à
indústria de informática, incluindo a inexistência de um arcabouço jurídico próprio a
amparar a proteção legal dos programas de computador. Não estranha o fato de que, em
6
Em que pese as diferenças entre bases jusfilosóficas sobre as quais foram construídos e a repercussão
nos critérios subjetivos de proteção.
7
WIPO’s Model Provisions on the Protection of Computer Software, 1978.
8
Information Industry Committee, Industrial Structure Council, Protecting Software. Interim Report,
December 1983 (não publicado) apud BARBOSA, Denis Borges. Software and Copyright: a Marriage of
Inconvenience. 1987.
9
O tempo mínimo de proteção de uma obra autoral sob a Convenção de Berna de 1886 é de 50 anos, a
contar da morte do autor.
10
Pela Convenção de Berna de 1886, ao menos 2 direitos morais deveriam constar nas leis dos países ao
redor do mundo: o direito à paternidade ou à “autoria”, consistente no direito do autor ver seu nome
eternamente ligado à sua obra; e o direito à integridade, que é o direito do autor se opor a modificações
que impliquem em prejuízo à sua honra ou à sua reputação.
11
Vers Une Protection des Logiciels Informatiques. 100 Revue de la Propriété Industrielle 380, Paris,
1984 apud BARBOSA, Denis Borges (1987). Op. cit.
12
Projeto de Lei do Senado nº 260/84. Diário do Congresso Nacional. 04 de dezembro de 1984, p. 4814.
13
BARBOSA, Denis Borges (1987). Op. cit.
14
Idem, ibidem.
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1983, apenas os Estados Unidos e as Filipinas contavam com essa proteção para os
softwares, enquanto apenas um ano depois, após sancionada a Lei de Tarifas e
Comércio norte-americana, mais de uma dúzia de países tinham leis próprias a tratar da
matéria15.
Foi então que, em 1987, o Brasil, que ainda se preparava para um regime democrático
de direito, promulgou a sua primeira lei de proteção aos programas de computador16, a
Lei nº 7.646 de 18 de dezembro de 1987. Em seu texto, havia forte ênfase ao tratamento
da proteção e da comercialização dos programas de computador de propriedade de
estrangeiros no Brasil, destacando-se o caráter de reciprocidade com que deveriam ser
tratados. Por seus termos, os softwares passaram, desde 1987, a ter um regime de
proteção de direito de autor no Brasil, com algumas modificações tratadas na própria
lei, como a restrição a alguns direitos morais e um prazo de proteção inferior ao
atribuído às obras literárias, artísticas e científicas em geral.
Foi dessa maneira que alguns países do mundo, por pressões externas, adotaram os
direitos de autor (quando de tradição civilista) ou os copyrights (quando de tradição de
anglo-saxônica), sem que tivesse havido discussões conclusivas sobre as repercussões
de tal proteção.
Diante do panorama então instalado, a doutrina (nos países civilistas) e a jurisprudência
(nos países de common law) passaram a ter papel preponderante na abertura das
tortuosas estradas de se descobrir como os direito de autor ou os copyrights, destinados
a criações do espírito nos domínios da literatura, da ciência e das artes, protegeriam uma
obra de ordem eminentemente técnica e funcional como o software.
4. Definição da proteção do programa de computador no Brasil
Em 19 de fevereiro de 1998, foi promulgada a atual lei brasileira do programa
computador, conhecida como a Lei do Software17, que substituiu a antiga Lei
7.646/87. Conforme prescrito em seu preâmbulo, a lei dispõe sobre a proteção
propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e
outras providências.
de
nº
da
dá
Definindo o âmbito de sua proteção, em seu art. 1º conceitua-se o programa de
computador como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem
natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego
necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos,
instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para
fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”.
Dentro da concepção de proteção de obras literárias, artísticas e científicas sob o direito
de autor, protege-se expressão de determinadas idéias, não a idéia em si. Este
entendimento é replicado pela lei brasileira ao buscar deixar claro que as idéias
subjacentes e existentes em um programa de computador não se encontram sob a
15
ASCENSÃO, José de Oliveira. Programa de computador e direito autoral. In GOMES, Orlando;
WALD, Arnoldo; ASCENÇÃO, José de Oliveira; LOBO, C.A. da Silveira; ULMER, Eugen e KOLLE,
Gert. A Proteção Jurídica do Software. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1985. p.63.
16
Lei nº 7.646/87, disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7646.htm .
17
Lei 9.609/98.
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proteção dispensada pelo direito positivo, tais como a funcionalidade que ele exerce, os
comandos que executa ou os métodos por ele utilizados em determinado ramo no qual
seja aplicável18.
Em obras literárias, tais como livros, a compreensão de que a lei protege a expressão
das idéias, sob a forma escrita, nas palavras em que elas foram escritas e organizadas, é
de certa forma mais fácil de se assimilar, apesar de, ainda assim, encontrar diversos
problemas.
Por exemplo, um livro cuja proposta seja o de oferecer aos seus leitores um manual
sobre Direito de Empresa brasileiro provavelmente tratará de determinados tópicos
comuns à matéria, poderá ter uma estrutura dos assuntos bastante similar ou mesmo
idêntica a outros e, no fundo, traduzir as mesmas explicações relativas a este ramo do
Direito, de forma que seu leitor poderá assimilar conhecimento semelhante em qualquer
outro livro semelhante.
Entretanto, é a forma como o livro é escrito, a ordenação singular das palavras
escolhidas e escritas pelo autor que o fará único, posto que é impossível haver dois
livros escritos exatamente da mesma forma, com as mesmas palavras, sem que tenha
sido copiado um do outro. Sob o regime de direito de autor, até mesmo o estilo daquele
que o escreve é preponderante para que seja conferida proteção à obra autoral, sob o
requisito da originalidade, seja ela um livro, uma escultura ou um quadro.
Sob este prisma, já se encontra a primeira dificuldade em definir o âmbito de proteção
do programa de computador. Em uma linguagem simplista do texto legal, que aqui se
utiliza apenas para melhor assimilar o entendimento àqueles que não estão
familiarizados com o difícil jargão utilizado pela lei brasileira, pode-se dizer que está
protegido sob a Lei do Software a expressão de um conjunto organizado de instruções
para uso em computadores (máquinas automáticas de tratamento da informação),
contidas em um suporte físico de qualquer natureza, e que os fará desempenhar
determinadas funcionalidades.
Em sentido similar ruma o direito do software dos Estados Unidos ao prescrever na Lei
de Copyright de Programas de Computador de 1980 que a proteção seria conferida
sobre “um conjunto de declarações ou instruções a ser utilizada direta ou indiretamente
em um computador, de forma a produzirem um resultado determinado”19, não sobre
uma idéia em si considerada. O mesmo entendimento foi firmado no Reino Unido,
apesar da lei20 estabelecer que, para terem proteção, devem estar “gravados por escrito
ou de outra forma”, similar ao requisito estabelecido na lei brasileira de estarem
“contidos em um suporte físico de qualquer natureza”.
Ora, ainda assim, o que seria protegido? O que é a expressão dessas instruções, desses
códigos escritos pelos programadores que desenvolveram o software? Seria a forma
como os técnicos desenvolvedores o escreveram, em seu código fonte, que os torna
únicos? Não seria a expressão gráfica do programa e a forma como os usuários o
18
Lei 9.6010/98, art. 8º, de aplicação subsidiária à Lei do Software.
Section 117 do US Copyright Act 1975, tal como modificada pelo US Computer Software Copyright
Act 1980. Tal entendimento foi confirmado pela jurisprudência no caso Apple Computer Inc v. Franklin
Computer Corp 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983).
20
UK Copyright, Designs and Patents Act 1988.
19
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percebem protegidos pela Lei do Software? Seriam ambas, a expressão gráfica e a
expressão dos códigos escritos pelos programadores? Estaria incluída a documentação
técnica dos programas, tais como manuais?
Pouco tem sido discutido na doutrina brasileira sobre qual a real amplitude de proteção
dos programas de computador e esta discussão, até o presente momento, não encontra
respaldo na jurisprudência de nossos tribunais superiores.
5. Uma análise comparada: Brasil, Estados Unidos e União Europeia
Não obstante as diferenças ainda existentes entre os regimes de copyright e de droit
d’auteur – o primeiro, seguido em maior ou menor grau por outros países de common
law21 como Estados Unidos e Reino Unido, e o segundo, consolidado pela Convenção
de Berna de 1886, seguido por países civilistas como o Brasil –, diferenças estas que aos
poucos vêm diminuindo22, o entendimento de países como Estados Unidos e Reino
Unido sobre o que seria protegido sob a égide do “programa de computador” é de
extrema importância, uma vez que possibilita fornecer os nortes para a delimitação da
proteção e seus impactos na economia, no desenvolvimento e nas limitações a terceiros.
Sem sombra de dúvidas, os Estados Unidos são o país atualmente mais avançado no que
concerne à discussão e jurisprudência sobre proteção legal do software.
Na esteira dessas considerações, o balanceamento entre, de um lado, a proteção para os
criadores e, de outro lado, a possibilidade de terceiros utilizarem e desenvolverem o que
foi criado, é um dos paradoxos da proteção à propriedade intelectual. Este aspecto – de
que quanto maior a amplitude da proteção maior também serão as possibilidades de
terceiros utilizá-los – é crucial a se firmar um entendimento equilibrado da amplitude
dos direitos de propriedade intelectual sobre programas de computadores e deve ser
sempre levado em consideração para uma análise finalística e pragmática de suas
repercussões.
Nos Estados Unidos, em diversos julgados prolatados23 logo após a promulgação da Lei
de Copyright de Programas de Computador de 1980, entendeu-se que a proteção literal
se estendia basicamente ao código-fonte e ao código-objeto (o código do programa
depois de compilado) dos softwares de quaisquer gêneros, ou seja, aos códigos escritos
pelos técnicos desenvolvedores a programas como sistemas operacionais, como o
21
PATTERSON, Lyman Ray. Copyright in Historical Perspective. Nashville: Vanderbilt University
Press, 1968.
22
A exemplo das mudanças introduzidas pelo Reino Unido para harmonização de seu direto positivo
interno com as Diretivas e os Regulamentos do Conselho da Europa e do Parlamento Europeu relativos à
propriedade intelectual e tecnologias, além da adaptação à Convenção de Berna de 1886, em que se
reconhecem direitos morais de paternidade e integridade, inexistente na acepção primária dos países que
seguem o sistema de copyrights, não o de direitos de autor. Para fins deste estudo, não é interessante
aprofundarmos neste assunto, de modo que “copyrights” e “direitos de autor” poderão ser utilizados
indistintamente para se referir ao regime de proteção jurídica às obras literárias, artísticas e científicas,
sendo importante, contudo, ter-se em mente que as distinções entre esses sistemas de common law e
direito civil vêm aos poucos se desfazendo, à medida que os sistemas convergem entre si em face da
relativa unificação promovida pelos tratados internacionais.
23
CMS Software Design Sys., Inc. v. Information Designs, Inc., 785 F.2d 1246 (5th Cir. 1986), Estados
Unidos; – sobre código fonte; Apple Computer, Inc. v. Franklin Computer Corp., 714 F.2d 1240 (3d Cir.
1983), Estados Unidos; cert. dismissed, 464 U.S. 1033 (1984) Estados Unidos; – sobre os códigos fonte e
objeto de um sistema operacional; Williams Electronics, Inc. v. Artic Int'l, Inc., 685 F.2d 870 (3d Cir.
1982), Estados Unidos; – sobre código de um jogo de video-game.
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Windows e o Linux, a jogos eletrônicos e a programas existentes em equipamentos
específicos, bem como ao código existente no programa depois de compilado, mas não
à experiência gráfica que eles produziam.
Entrementes, na década de 1990, em muitos casos relativos à infração de direitos de
propriedade intelectual de softwares24 se buscou ampliar a proteção legal a elementos
não literais, ao “look and feel”, que representa as funcionalidades do programa de
computador exteriorizadas pelas diversas expressões geradas quando executados pelos
usuários, tais como os elementos gráficos - a tela, o layout, a interface gráfica –, e a
dinâmica gráfica geral utilizada para a sua estrutura, tal como percebida pelos usuários.
Enquanto as decisões tendiam a restringir a proteção dos elementos gráficos, no sentido
de que eles não estariam sob o véu legal da proteção ao software, ao mesmo tempo
imprimiam o alargamento dessa proteção a elementos não visuais, mas ainda assim não
literais, tais como técnicas utilizadas e funcionalidades, ainda que os comandos em si
não o fossem25. Não havia, dessa forma, um entendimento explícito e seguro de quais
elementos dos softwares estariam protegidos pelo copyright norte-americano.
6. Elementos do programa de computador protegidos pelo direito
Na quase totalidade dos países do mundo, os direitos de autor protegem basicamente
obras de duas naturezas distintas: literárias e artísticas. No Brasil, para gozar de
proteção, tais obras podem estar expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer
suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, de acordo com a
Lei de Direitos de Autor brasileira. Idéias em si não são protegidas26. O software, por
sua vez, precisa estar gravado em um suporte físico de qualquer natureza27, que é uma
formalidade originária do direito britânico28, repetida no direito positivo dos Estados
Unidos29 e do Brasil30.
O art. 2º da Lei do Software brasileira aduz que o regime de proteção à propriedade
intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação
de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta Lei.
24
LLOYD, Ian. Information Technology Law. London: Oxford University Press, 2004, p.
HAYES, David L. A Comprehensive Current Analysis of Software “Look and Feel” Protection. The
Computer Law and Security Report; Part I, 1995.
26
Nos Estados Unidos, critérios sofisticados foram estabelecidos pela jurisprudência para distinguir-se a
“expressão de uma idéia”, que é protegida pelo direito de autor, da “idéia em si”, que não recebe proteção
autoral. Vide Baker v. Selder (1880) 101 US 99 (Supreme Court) e Whelan Associates v Jaslow Dental
Laboratory Inc. [1987] FSR 1. Alguns desses critérios aplicados aos softwares serão discutidos neste
estudo.
27
Lei 9.609/98, art. 1º
28
Originário da primeira lei de direitos de autor de que se tem notícias, o United Kingdom Statute of Anne
1710, no qual constava que “(…) the Author of any Book or Books already Printed, who hath not
Transferred to any other the Copy or Copies of such Book or Books, Share or Shares thereof (…)”. A
mesma formalidade continua atualmente em vigor no Reino Unido, pelo United Kingdom Copyright,
Designs and Patent Acts 1988, Section 3 (2), segundo o qual “Copyright does not subsist in a literary,
dramatic or musical work unless and until it is recorded, in writing or otherwise; and references in this
Part to the time at which such a work is made are to the time at which it is so recorded.”
29
“Copyright protection subsists, in accordance with this title, in original works of authorship fixed in
any tangible medium of expression, now known or later developed, from which they can be perceived,
reproduced, or otherwise communicated, either directly or with the aid of a machine or device.” § 102(a),
US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C. texto consolidado.
30
Lei 9.609/98, art.1º.
25
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Primeiro, aplica-se a Lei do Software e, subsidiariamente, aplica-se a Lei de Direitos de
Autor.
A tutela legal da proteção ao programa de computador, dentro da categoria de direitos
de autor (subcategoria da propriedade intelectual), pode ser entendida como um regime
sui generis do clássico direito das coisas, em que se encontram os direitos de exploração
econômica (patrimoniais), ademais dos direitos morais31, que não se encontram no
regime geral da propriedade.
Conforme preleciona Washington de Barros Monteiro32, os elementos (ou direitos) que
constituem a propriedade são o jus utendi (direito de uso), o jus fruendi (direito de fuir)
e o jus disponendi (direito de dispor da propriedade), cuja junção sob a titularidade de
uma pessoa forma a plena in potestas, a propriedade plena sobre um bem.
O mesmo se aplica aos bens albergados sob o direito de autor, como o programa de
computador, por expressa disposição da Lei de Direitos de Autor33. O exercício pleno
dos direitos de propriedade, inclusive sobre bens de propriedade intelectual como o
software, pressupõe o direito de exercitar todos os direitos de uso, fruição e disposição
sobre o bem34, em ato ou negócio jurídico de qualquer natureza.
Pela Lei do Software35, é protegida a expressão de um conjunto organizado de
instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer
natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da
informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em
técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
Ocorre que tal comando normativo é extremamente vago, uma vez que a expressão de
um programa de computador apresenta uma série de elementos distintos entre si.
Os elementos mais importantes são o código-fonte, que é o código tal como foi
desenvolvido pelo programador, sem qualquer processo de compilação; o códigoobjeto, consistente no código de máquina unicamente inteligível pelo computador e que
é o resultado da compilação do código-fonte original; há a interface gráfica,
consistente no conjunto gráfico geral que o programa apresenta ao seu usuário; podem
existir figuras, músicas, vídeos e textos, de diferentes naturezas, de acordo com a
finalidade do software, sobre os quais se discute a proteção sobre tais elementos
individualmente considerados; pode existir um logotipo utilizado para distinguir o
programa de computador dos demais concorrentes; e, por fim, existem os bancos de
dados e outros arquivos gerados pelos programas de computador, sobre os quais cabe
fazer algumas considerações.
6.1.
Proteção jurídica sobre o código-fonte
31
Lei 9.609/98, art.2º, parágrafo 1º.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: direito das coisas. Vol. 3. 27ª ed. São
Paulo: Saraiva, 1989, p 87.
33
Lei 9.610/98, art. 28.
34
PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 4. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p.
90-91.
35
Lei 9.609/98, art. 1º.
32
Página 9 de 29
Ao explicitar que o regime de proteção à propriedade intelectual de programa de
computador é o conferido às obras literárias36, a lei brasileira não deixa dúvidas à
proteção do código-fonte dos softwares. Isso porque as obras literárias são escritos,
contos, novelas, etc, que basicamente são formadas pela disposição única de palavras
empregadas pelo autor dentro da língua em que o escreveu.
O mesmo que se aplica às obras literárias em geral se aplica ao código-fonte: são
escritos pelos programadores. Assim como ocorre nos livros, por mais que dois
programadores distintos pretendam implementar a mesma funcionalidade em um
software, é praticamente impossível que escrevam os códigos-fontes de maneira
exatamente igual sem que um tenha tido acesso ao código do outro, de maneira que o
resultado final leva o toque personalíssimo de cada um de seus respectivos autores.
Ocorre que, já há algum tempo, o desenvolvimento de programas segue determinados
comandos pré-moldados, de forma que seus programadores não precisam escrever
exatamente todos os códigos, como acontecia antigamente nas chamadas linguagens de
baixo nível (porque se aproximavam mais ao nível das linguagens de máquina). Por
exemplo, se um programador quiser implementar um formulário com opções de
múltipla escolha, nos dias de hoje não é necessário escrever todos os seus códigos, basta
“clickar” no botão correspondente, existente no programa próprio para desenvolvimento
de outros softwares37, e automaticamente esses códigos serão escritos.
Para que uma obra autoral, como o programa de computador, tenha proteção jurídica, é
necessário que obedeça ao requisito da originalidade. Evidentemente os códigos que são
padrões, pois gerados automaticamente a partir de um “click” no programa que permite
seu desenvolvimento, não atendem ao requisito da originalidade. Contudo, é importante
advertir que isso constitui apenas partes isoladas do código-fonte, de forma que este
pode ser considerado sob dois aspectos: o código-fonte considerado em sua totalidade,
que, via de regra, recebe proteção jurídica, por tratar-se de obra original; e partes do
código-fonte consideradas estratégicas e diferenciadoras dos demais programas de
funcionalidade similar, que o tornam único e original, as quais também podem receber
proteção.
O fato de uma ou algumas partes do código-fonte de um software ser padrão (ou
“standard”, como é mais usado na linguagem de tecnologia) não afeta em nada a
originalidade do código como um todo, cuja organização e desenvolvimento dos demais
elementos se dê de forma individualizada e, portanto, original.
Desta maneira, está claro que o código-fonte, que é escrito por um ou mais
programadores, está protegido pela lei brasileira, desde que atenda ao requisito da
originalidade, típico das obras protegidas pelo direito de autor. Sua cópia ou utilização,
por qualquer terceiro, total ou parcial, sem autorização do titular dos direitos
patrimoniais, constitui infração aos direitos de propriedade intelectual do proprietário,
tanto no âmbito civil, que ensejaria indenizações por danos patrimoniais sofridos, bem
como no âmbito criminal, nos termos do art. 12 da Lei do Software. Não ocorrerá
infração quando
36
37
Lei 9.609/98, art. 2º.
Como o CodeGear Delphi, que substituiu o Borland Delphi Developer.
Página 10 de 29
Caso curioso de trata dos softwares livres. Esses são programas de computador que
foram desenvolvidos por uma ou mais pessoas, inclusive dentro de empresas, em que o
titular dos seus direitos patrimoniais resolveu “abrir seu código” ao público em geral.
Isso quer dizer que o proprietário do software, no uso dos seus direitos patrimoniais
sobre sua obra, resolveu disponibilizar o código-fonte do seu programa de computador
para a sociedade em geral, o que normalmente é feito sob os termos de uma licença
pública geral por ele determinada38.
Ao fazer isso, o titular, conforme o texto da licença por ele escolhida, permite o livre
acesso do público ao código do seu programa, para que possam alterá-lo e, muitas
vezes, utilizá-lo como melhor entender. O escopo subjacente dessa abertura seria
possibilitar que a “comunidade de programadores” mundial possa produzir
melhoramentos e posteriormente compartilhá-los com os demais, que seriam
impossíveis caso estivessem fechados a uma equipe específica. Em alguns casos, tratase da estratégica corporativa de muitas empresas, que, ao invés de venderem licenças de
software, comercializam os serviços de adaptação para clientes específicos, o que é um
modelo de negócios bastante legítimo.
O fato é que muitas das licenças públicas gerais escolhidas pelos titulares dos softwares
livres permitem a alteração e inclusive a utilização comercial de tais programas por
terceiros, mas obrigam que, ao serem comercializados, deve ser entregue também ao
cliente final o código-fonte atualizado, com as novas modificações procedidas. Tais
alterações no código-fonte não são de propriedade daquele que as empreendeu, mas
incorporam-se ao código original e passam a ser do seu primeiro titular, o mesmo que
resolveu “abrir” o programa, ainda que possam vir a ser novamente utilizadas e
alteradas por outros terceiros. Por isso, não há que se confundir software livre com
software sem titularidade.
Os direitos de exploração econômica sobre o software normalmente continuam com o
primeiro titular, que o tornou “livre”, a diferença básica é que o código está aberto, o
que possibilidade a modificação por qualquer um, e que, em alguns casos, permite-se
que terceiros comercializem tal software, sem nenhum benefício econômico direto aos
seus titulares.
Uma prática bastante comum na indústria desenvolvedora de programas de computador
é o “reuso” de software, que se constitui basicamente no reaproveitamento de
componentes (códigos) já utilizados em outros programas anteriores e que pode gerar
diversos transtornos sob o aspecto jurídico, uma vez que há um grande potencial da
utilização e sobreposição de códigos que são de propriedade de terceiros, o que é
considerada uma infração penal39.
38
Existem diversos tipos de licenças públicas gerais (ou GPL, do inglês General Public License)
diferentes, com versões também diferentes entre si, que foram desenvolvidas para finalidades distintas,
cada uma com um texto padrão, que é escolhida pelo proprietário do software no momento em que
resolve “abri-lo” à sociedade.
39
Pela lei brasileira, o desenvolvimento de software contratado por terceiros enseja a titularidade todos os
direitos de exploração econômica sobre o software para o contratante, incluindo os direitos de qualquer
uso, fruição econômica e transferência de direitos, de modo que o desenvolvedor não pode utilizá-los, de
qualquer forma, no futuro desenvolvimento para terceiros, salvo se houver estipulação contratual
expressamente em contrário. Lei nº 9.609/98 (Lei do Software), art. 4º.
Página 11 de 29
Muitas empresas no Brasil, desconhecedoras destas regras, vêm desenvolvendo
produtos baseados em programas livres, ou com componentes sobre os quais não detêm
direitos, e comercializando-os a terceiros, inclusive para órgãos da administração
pública direta e indireta, sem ter atenção a esses princípios, o que pode vir a gerar
grandes prejuízos a essas empresas no futuro.
Por outro lado, caso distinto ocorre quando um terceiro, com o fim de comercializar
uma “solução completa”, modifica o código de um programa de computador livre para
adaptá-lo a uma realidade comercial específica e, junto a ele, integra outros programas
de computador ou, como normalmente chamam na indústria da tecnologia da
informação, “módulos”, que por sua vez são individualizáveis, possuem código-fonte
separado e foram desenvolvidos pelo terceiro sem a utilização direta de qualquer parte
do código do programa com o qual está sendo integrado.
Neste caso, o software livre que sofreu modificações seguirá as regras acima esposadas,
mas os demais programas ou módulos, não. Ou seja, os novos programas ou módulos
que se integram ao software original, ainda que sua utilização se dê necessariamente em
conjunto, são obras autorais distintas, cuja titularidade é daquele que os criou, não do
proprietário do programa original, o qual não detém quaisquer direitos sobre eles.
Evidentemente a opinião jurídica a um caso concreto dependerá da análise de cada
licença pública geral aplicável, mas a maioria das licenças públicas gerais até o
momento existentes reflete os princípios explicados acima.
6.2.
Proteção jurídica sobre o código-objeto (ou “código de máquina”)
O código-objeto, como explicamos no início deste estudo, trata-se do software cujo
código-fonte foi compilado, pronto para utilização no computador sem que haja
necessidade de interpretação por outro programa. É mais vulgarmente conhecido como
“código de máquina”, porque é representado por caracteres ininteligíveis ao homem,
mas que são entendidos e processados pelo computador para execução do software.
Nem sempre a proteção sobre ele foi clara.
Nos Estados Unidos, em 1979, no caso Data Cash Systems Inc v. J S & A Group40,
decidiu-se que um software que já viria gravado na memória interna de um computador
“não seria protegido porque não estaria em uma forma em que pudesse ser lido ou visto
a olho nu”, como diferentemente ocorreria com um código-fonte. Tal concepção pode
ser atribuída ao fato de que, sob o ponto de vista jurídico, entende-se o programa de
computador como uma obra literária, como um livro de romance, e este pode ser visto
pelo olho humano e entendido em seu estado natural, o que não ocorre com o códigoobjeto.
Em 1980, a Lei de Copyright de 1976 dos Estados Unidos foi alterada pela Lei de
Copyright de Programas de Computador de 1980, que incluiu os softwares e suas
expressões em quaisquer meios sob a proteção do direito de autor (copyright), o que
implicitamente incluía aqueles que estivessem gravados em memórias internas e
facilitou a evolução no direito do software nos Estados Unidos.
40
Data Cash Systems Inc v. J S & A Group 480 F Supp 1063 (ND III 1979).
Página 12 de 29
Felizmente, o anterior entendimento, duramente criticado, foi posteriormente revertido
por outras decisões. Em de 1983, a Corte de Apelações da 3ª Região dos Estados
Unidos, no caso Apple Computer Inc v. Franklin Computer Corp.41, entendeu que a
proteção legal ao software se estendia a qualquer forma de expressão, em qualquer
meio, incluindo quando se encontrasse sob a forma de código-objeto gravado em uma
memória que não permita sua alteração (ROM - Read Only Memory, em português
“Memória Apenas de Leitura”).
Como ressalta Andrew Beckerman-Rodau42, decisões como a do caso Data Cash
Systems Inc v. J S & A Group tinham criado uma distinção artificialmente imposta entre
tipos de softwares e suas formas de expressão, que não guardava amparo na lei norteamericana, mas que foi criada pelas Cortes de Justiça daquele país.
No Brasil, não há motivos para não se conferir proteção jurídica sobre os códigos-objeto
dos programas de computador. Esta proteção deriva do fato da lei brasileira
expressamente estabelecer que é protegida a expressão de um conjunto organizado de
instruções, em linguagem natural (que entendemos como “código-fonte”) ou codificada
(que entendemos como “código-objeto”), que pode estar expresso em suporte físico de
qualquer natureza, e que funcione em máquinas automáticas de tratamento da
informação e dispositivos eletrônicos análogos. Este foi o intuito da atual Lei do
Software, que substiuiu a anterior, e assim é como se deve entender o seu art. 1º, que
não deixa dúvidas43.
Desta forma, encontra-se protegido pela Lei n. 9.609/98 o código-objeto dos programas
de computador, incluindo daqueles que estejam gravados em dispositivos específicos
com memórias que não permitem sua alteração e são exclusivamente de leitura. Assim
se encontram os softwares presentes nos chips internos de quaisquer dispositivos
eletrônicos, como monitores, placas-mãe de computadores, impressoras, mouses,
scanners, relógios digitais, computadores de bordo de automóveis, satélites e qualquer
outro aparato que contenha um código computacional.
Ainda que os equipamentos per se, nos quais estes softwares estejam gravados, sejam
protegidos por outras categorias específicas de tutela jurídica, tais como patentes de
modelo de utilidade ou invenção, ou ainda como semicondutores, os programas de
computadores neles contidos gozarão de proteção própria pela Lei do Software, desde
que atendam ao requisito da originalidade requerido pela lei.
Como se vê, a aplicabilidade dessa proteção é imensa e atende a diferentes interesses e
indústrias, o que felizmente é conferido pelo direito brasileiro.
6.3.
Proteção jurídica sobre os elementos funcionais gráficos – o look and
feel
A interface gráfica ou o layout de um software corresponde ao aspecto visual gerado
quando um programa é executado e que é visto pelo usuário na tela do seu computador.
41
Apple Computer Inc. v. Franklin Computer Corp. 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983).
BECKERMAN-RODAU, Andrew. Protecting Computer Software: After Apple Computer, Inc v.
Franklin Computers Corp., 714 F 2d 1240 (3rd Cir 1983), Does Copyright Provide the Best Protection?
Temple Law Quarterly 527. Estados Unidos: 1984.
43
BARBOSA, Denis Borges. A Proteção do Software. 2002. p. 17.
42
Página 13 de 29
A distribuição única de janelas, botões, menus, palavras, etc, de todos os elementos
visuais que dão a um programa sua aparência gráfica e como ela é percebida pelos
usuários. Esta imagem geral, no todo considerada, é o que denominados interface
gráfica. É o que, nos Estados Unidos, chama-se de “look and feel” de um software, que
formam seus elementos não-literais.
Conforme explica Mark A. Lemley, a dificuldade deriva principalmente de dois
motivos: enquanto o direito autoral está destinado a proteger obras literárias, artísticas e
científicas, os programas de computador são escritos para uma finalidade utilitária; e a
forma de expressão contida no código-fonte ou na estrutura e organização de um
software é puramente instrumental ao seu propósito utilitário, não contendo um valor
em si44.
A questão da proteção jurídica sobre a interface gráfica e seus elementos constitutivos é
extremamente complexa e, por isso mesmo, controvertida45. Segundo enfatiza Denis
Borges Barbosa46:
“A par da estrutura interna de um programa, subsiste a questão da
aparência e da funcionalidade deste em relação com o usuário - como
este sente o programa que atua em sua máquina. É o tema da extensa
discussão jurisprudencial relativa ao look and feel - o ‘jeitão’ - dos
softwares. O fato de dois softwares terem, em confronto, o mesmo
‘jeitão’ é extremamente importante para o novo concorrente que entra
no mercado, porque o usuário não sente maiores dificuldades de
aprendizado decente de cada um deles, pela coincidência de telas, pela
seqüência de comandos ou pelo tipo da resposta”.
Em 1990, a Corte Distrital de Massachusetts, nos Estados Unidos, proferiu uma
importante decisão no caso Lotus Development Corp v. Paperback Software
International47, em que se questionava sobre a eventual existência de proteção legal
sobre os elementos gráficos de um programa de computador.
Com efeito, neste caso, a empresa de tecnologia Lotus Development Corp. alegou que
sua concorrente, a Paperback Software International, havia copiado a estrutura geral de
organização do seu programa Lotus 1-2-3, o conteúdo e a estrutura do menu de
comandos, o layout gráfico das telas e, especialmente, a interface.
Deve-se ter em mente que, no Lotus 1-2-3, a parte gráfica se restringia basicamente à
organização de menus, que no caso se dava com palavras distribuídas em duas linhas,
sendo que cada palavras abria um novo sub-menu. Por ter se tornado extremamente
famoso e líder em seu mercado, a distribuição desse menu tinha um alto valor comercial
em si, já que os usuários estavam acostumados com ela.
44
LEMLEY, Mark A. Convergence in the Law of Software Copyright? Berkeley Technology Law
Journal. Estados Unidos, 2005.
45
MAGNAN, Richard A. Software User Interface Compatibility and Copyright after Lotus Development
Corp. vs. Paperback Software International. Program of Information Resources Policy. Center for
Information Policy Research, Harvard University. Cambridge: 1993. Disponível em:
http://pirp.harvard.edu/pubs_pdf/magnan/magnan-p93-4.pdf
46
BARBOSA, Denis Borges. Op. Cit.,, p. 14 e 15.
47
Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990).
Disponível em http://digital-law-online.info/cases/15PQ2D1577.htm
Página 14 de 29
Para melhor entendimento deste caso, é importante que se visualize como era o layout
gráfico do software Lotus 1-2-3, baseado no antigo sistema operacional DOS:
Fonte: Wikipedia.
Além disso, era possível salvar atalhos para esses comandos, que eram armazenados em
arquivos separados, denominados macros. Esses macros eram extremamente
importantes para economizar tempo na execução das tarefas pelos usuários. Contudo,
para tornar seu programa compatível com as macros do Lotus 1-2-3, a Paperback copiou
todas as estruturas de menu e sub-menu existentes no programa de seu concorrente.
No todo, o programa continha 469 comandos dispostos em 50 menus e sub-menus, que
poderiam ser ativados mais facilmente pelos macros, que eram micro-programas de
interoperabilidade e representavam em si uma outra vantagem competitiva no 1-2-3.
A Lotus alegava que todos esses elementos eram formas de expressão do seu software e
que, uma vez copiados de forma idêntica pela Paperback no programa desenvolvido e
comercializado por esta, estaria havendo uma infração aos seus direitos de propriedade
intelectual. Em nenhum momento houve alegação de que os códigos-fontes tivessem
sidos copiados, fossem similares ou idênticos, mas sim o efeito gráfico que eles
produziam, o que, sob o ponto de vista daquele que utiliza qualquer dos softwares, os
faziam ser iguais, independentemente dos códigos serem diferentes.
Apesar dos códigos desenvolvidos pelos programadores de cada uma das empresas
serem totalmente distintos, na prática a percepção pelo usuário final das funcionalidades
e utilização dos programas de cada uma delas era praticamente a mesma. Essa
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similitude ocasionou sério risco para que a Lotus perdesse fatia do mercado em que até
então era dominante.
Por sua vez, a Paperback defendeu-se alegando, em resumo, que os elementos gráficos
copiados não estariam protegidos, sob os argumentos de que a interface gráfica e a
estrutura de menus por ela utilizadas seriam obrigatórias em face das funções
desempenhadas, e que essas estruturas seriam meras funcionalidades, uma idéia, algo
abstrato e que não seria protegido pelo direito autoral.
Para resolver esta complicada questão, em sua decisão, o juiz Keeton48 defendeu que
quatro questões deveriam ser analisadas para estabelecer se um elemento49 do software
seria considerado uma forma original de expressão de uma idéia, protegido pelo
copyright:
(i) Originalidade: o elemento deve ser original, ou seja, desenvolvido
originalmente pelo autor50;
(ii) Funcionalidade: se o elemento não faz nada mais do que incorporar
elementos de uma idéia que são funcionais, no sentido de sua utilidade, sua
expressão não é protegida pelo direito autoral51;
(iii) Obviedade: quando um elemento não ultrapassa os limites do óbvio para sua
função, ele é indissociável da idéia em si, o que desautoriza a proteção pelo
direito de autor52;
(iv) Fusão entre idéia e sua expressão: se o elemento é expresso de uma
determinada maneira em face de suas formas de expressão serem extremamente
limitadas, então haverá uma confusão entre a expressão e a idéia, de forma que o
elemento em jogo não deve ser protegido pelos direitos de autor53.
Para David Bainbridge54, o teste dos quatro elementos utilizados continuavam a ser
extremamente vagos e subjetivos, de modo que pouca contribuição trariam para a
elucidação de quais elementos não-literais seriam protegidos pelo direito autoral e em
que situações gozariam desta tutela jurídica.
De fato, há certa subjetividade nos quatro critérios descritos pelo juiz Keeton no caso da
Lotus contra a Paperback, mas entendemos que possa servir de um bom norte na análise
de casos concretos, já que fogem da vaga idéia de que “o direito autoral protege
48
Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990). The
Idea-Expression Riddle: Four Additional Concepts.
Disponível em http://digital-lawonline.info/cases/15PQ2D1577.htm
49
O que aqui denominamos “elemento”, o juiz Keenton chama de “expressão”, do inglês “expression”.
50
§ 102(a), US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C. Nos Estados Unidos, o elemento de originalidade é
menos rigoroso do que em países civilistas, como o Brasil, em que, no mais das vezes, para uma obra
autoral ser original, não basta que tenha sido expressa pela primeira vez pelo autor, mas sim que carregue
consigo alguns traços do conhecimento e estilo do seu criador.
51
§ 102(b), US Copyright Act 1976, Title 17 U.S.C.
52
E.H. Tate Co. v. Jiffy Enterprises, Inc., 16 F.R.D. 571, 573 [103 USPQ 178] (E.D. Pa. 1954).
53
“When there is essentially only one way to express an idea, the idea and its expression are inseparable
and copyright is no bar to copying that expression.” Concrete Machinery Co. v. Classic Lawn
Ornaments, Inc., 843 F.2d 600, 606 [6 USPQ2d 1357] (1st Cir. 1988).
54
BAINBRIDGE, David. Op. Cit. p. 104.
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expressões originais de uma idéia”, à qual estamos acostumados a trabalhar em países
de direito civil, fornecendo elementos mais palpáveis a uma apreciação pontual.
Considerando tais requisitos, o juízo da Corte Distrital de Massachusetts decidiu que a
interface gráfica do Lotus 1-2-3 seria protegida pelo direito de autor, em particular o
menu de comandos formado por palavras em duas linhas, que remetiam as outros submenus, pois teriam sido originalmente desenvolvidos pela Lotus, tendo, portanto, a
Paperback infringindo os direitos de propriedade intelectual daquela.
Contudo, a Corte ressalvou que alguns dos elementos não gozariam de tutela jurídica
autoral, como seria o caso da utilização de determinadas teclas para executarem
funções, a exemplo de “-”, “+” e “*”, que eram utilizadas por diversos outros programas
de planilhas de texto, ainda que não fossem essenciais.
Esta decisão foi severamente criticada por diversos juristas e cientistas da computação,
pelos potenciais efeitos nefastos que poderia vir a causar, já que nos Estados Unidos
uma decisão como esta, confirmada pela Suprema Corte, vincularia todas as posteriores
a respeito de matéria similar, que deveriam seguir no mesmo sentido55.
O principal motivo alegado pelos críticos56 seria o de que, caso se conferisse proteção
sobre os elementos gráficos e a interface de um programa de computador, isto poderia
causar o impedimento de qualquer programa similar, pelo longo prazo de duração dos
copyrights, o que poderia garantir exclusividade e monopólios indesejados por todo este
tempo, diminuindo a competição e aniquilando o mercado e as opções de programas de
computador de uma mesma finalidade.
Além disso, conforme ressalta Ana Maria Carneiro e outros autores57, a padronização de
partes dos softwares é uma trajetória “natural” de qualquer indústria, de maneira que
não poderia ocorrer de forma distinta com as empresas dedicadas desenvolvimento de
programas de computador.
De fato, a bem da melhor e mais fácil utilização pelos usuários de software, nota-se que
há uma grande semelhança entre programas com finalidades semelhantes, a exemplo do
que ocorreu com os sistemas operacionais, que nem sempre foram baseados em janelas,
como atualmente ocorre com o Microsoft Windows, o MacOS e quase todas as versões
correntes de Linux. Devido a certa padronização, um usuário médio pode facilmente
migrar de um programa ao outro, sem sentir grandes dificuldades.
Em 1995, a Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados58 decidiu um novo caso com
base na alegação de uma nova infração dos direitos autorais sobre o Lotus 1-2-3, no
55
SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. A Manifesto
Concerning the Legal Protection of Computer Programs. Columbia Law Review. Estados Unidos: 1994.
P. 2308-2431.
56
SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H. Op. cit. P. 23082431.
57
CARNEIRO, A. M.; ALVES, A.; STEFANUTO, G.; VEIGA, B., SALLES-FILHO, S. L. M.; DE
LUCCA, J. E.. Propriedade Intelectual na produção de software: um componente importante na equação
de reuso. XII Seminário Latino-Iberoamericano de Gestion Tecnológica – ALTEC, 2007. Disponível em
http://www.ige.unicamp.br/geopi/documentos/41439.pdf .
58
A United State Court of Appeals for the 1st Circuit (Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados
Unidos) é um tribunal judicial federal dos Estados Unidos, com competência recursal sobre as decisões
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caso Lotus Development Corp. v. Borland International Inc.59. A situação era bastante
similar, a Borland havia desenvolvido um novo programa, sem copiar qualquer parte do
código-fonte do seu concorrente, mas cuja interface visual era extremamente similar à
do Lotus 1-2-3, repetindo seus comandos e estrutura de menu.
Neste caso, a Borland desenvolveu e lançou um programa de computador, chamado
“Borland Quattro”. Este programa, cujo nome sugeria uma evolução do programa
“Lotus 1-2-3”, incorporava as funções existentes em seu concorrente e adicionava
outras novas. Apesar de ter uma apresentação gráfica inicialmente diferente, continha
um comando em que o usuário poderia optar por um layout extremamente similar ao do
Lotus 1-2-3, com menus e comandos idênticos. A esta função a Borland batizou de
“Lotus Emulation Interface” (Interface de Emulação do Lotus).
Uma vez ativado o modo de exibição Lotus Emulation Interface no Borland Quattro,
além das interfaces, comandos e estruturas de menus entre os programas passarem a ser
iguais, os macros desenvolvidos e utilizados pelos usuários no Lotus 1-2-3 poderiam ser
também utilizados no primeiro.
A Lotus processou a Borland em 02 de julho de 1990, perante a Corte Distrital de
Massachusetts, sob a alegação de que o ambiente do Borland Quattro, que simulava os
menus, comandos e exibição gráfica do Lotus 1-2-3, violava seus direitos autorais
(copyrights).
Durante o processo judicial, a Borland foi obrigada a não utilizar o menu originalmente
existente no programa da Lotus. Na prática, fora a perda do menu, isso também
implicaria na impossibilidade dos macros desenvolvidos para o Lotus 1-2-3 serem
utilizados no Borland Quattro.
Em face disso, a Borland alterou os nomes dispostos nos menus do seu programa, mas
continuou utilizando a primeira letra de cada palavra dos menus do programa da Lotus.
A explicação disso é que, replicando essas letras, seus usuários poderiam utilizar no
Quattro os macros que desenvolveram para o 1-2-3. Para possibilitar esse
aproveitamento, a Borland desenvolveu uma ferramenta chamada de “Key Reader”
(leitor de comandos). Assim, os usuários do Quattro não perceberiam qualquer perda
nas funcionalidades dadas pelas macros desenvolvidas para o 1-2-3.
Em janeiro de 1993, utilizando-se de um expediente típico do sistema processual norteamericano, a Lotus entrou com uma reclamação complementar à ação judicial
originária, segundo a qual alegava que o Key Reader, dispositivo que permitia a
utilização das macros criadas para o Lotus 1-2-3 no Borland Quattro, também violaria
seus copyrights.
À medida que o Key Reader possibilitava a operação de macros por dois programas
distintos, emergia também uma questão de interoperabilidade a ser analisada pelas
prolatadas pelas Cortes Distritais do território norte-americano de Porto Rico e dos estados norteamericanos de Maine, Massachusetts, New Hampshire e Rhode Island, sediado na cidade de Boston,
estado de Massachusetts, Estados Unidos. Todos estes estados e o território de Porto Rico compõem a 1ª
Região
(1st
Circuit).
Disponível
em
<http://www.fjc.gov/history/home.nsf/usca_01_frm?OpenFrameSet>.
59
Lotus Development Corp. v. Borland International Inc., 49 F.3d 807 (1st Cir. 1995).
Página 18 de 29
cortes norte-americanas60, uma vez que sua função era a de fazer determinados
elementos lógicos (macros) operassem tanto em um sistema como em outro.
Sob o direito norte-americano, normalmente dois pontos deveriam ser considerados para
verificar se, em um caso concreto, há infração aos copyrights, conforme o entendimento
firmado no caso Feist Publications, Inc. v. Rural Tel., Serv. Co: (1) primeiro, se o
demandante tem a titularidade sobre uma obra protegia sob o copyright; (2) segundo, se
houve cópia de elementos constitutivos da obra que sejam originais61.
Contudo, a Corte de Apelações da 1ª Região dos Estados entendeu que não se tratava de
analisar esses dois elementos, estabelecidos na common law estadunidense, uma vez que
a Borland reconhecia que a Lotus tinha os direitos autorais sobre o seu programa Lotus
1-2-3 e que, também, teria feito cópia da hierarquia de comandos do menu do programa
da Lotus, os quais incontroversamente teriam sido originalmente desenvolvidos,
organizados e distribuídos pela Lotus. A questão central a ser decidida era se a estrutura
do menu em si, que possibilitava a interoperação de macros em dois programas, seria
protegida.
Em decisão final, a Corte de Apelações entendeu que a estrutura do menu de comandos
per se era simplesmente um método de operação, o qual estaria expressamente excluído
da tutela jurídica dos direitos autorais, nos termos da Seção 120(b) da Lei de Copyright
dos Estados Unidos. Dessa forma, decidiu que a Borland não infringiu os direitos
autorais da Lotus.
É importante ressalvar, contudo, que os casos até então decididos nos Estados Unidos
versavam sobre interfaces gráficas extremamente simplórias se compararmos com os
avançados recursos gráficos existentes na atualidade, nos quais há uma mescla
considerável de vários elementos visuais sofisticados, bastante diferentes das estruturas
gráficas essencialmente baseadas em menus, palavras e comandos textuais de outrora.
No Brasil, não temos antecedentes jurisprudenciais que nos permitam adotar um norte
crítico, mas é possível realizar uma interpretação sistemática da legislação que rege a
matéria e tomar alguns ensinamentos da doutrina e jurisprudência estrangeira, já que os
princípios concernentes à matéria são extremamente similares.
De acordo com o art. 1º da Lei 9.609/98 brasileira, “programa de computador” é a
expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou
codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em
máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou
equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los
funcionar de modo e para fins determinados.
O art. 2º da mesma lei do software estabelece que o regime de proteção à propriedade
intelectual de programa de computador é o conferido às obras literárias pela legislação
de direitos autorais e conexos vigentes no País, observado o disposto nesta lei.
60
BAND, Johnathan. Lotus v. Borland viewed through the lens of interoperability. Computer Law and
Practice, n. 135, 1995.
61
“(1) ownership of a valid copyright, and (2) copying of constituent elements of the work that are
original.” Feist Publications, Inc. v. Rural Tel., Serv. Co., 499 U.S. 340, 361, 111 S.Ct. 1282, 1296, 113
L.Ed.2d 358 (1991). Estados Unidos.
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A referência a que os programas de computador serão tratados como obras literárias
para fins de proteção jurídica encontra-se também disposto no GATTS/Acordo
TRIPS62, que trata dos aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao
comércio, do qual o Brasil é signatário.
O art. 10(1) do Acordo TRIPS prescreve que os programas de computador, em código
fonte ou objeto, serão protegidos como obras literárias pela Convenção de Berna.
Esta, por sua vez, menciona que serão protegidas pelo direito de autor as obras
“literárias e artísticas”.
Ao fazermos uma análise dos textos integrais das normas acima referidas, verificamos
que, sob o direito de autor, existem basicamente duas classes de obras: as literárias, que
são aquelas escritas sob a forma de textos, de qualquer natureza; e as artísticas, que têm
diversas formas de manifestação nos diferentes domínios da tarde, como esculturas,
pinturas, músicas, desenhos, etc, mas cuja finalidade precípua é proteger a expressão
original de uma “obra de arte” contra a reprodução indevida por terceiros.
Está bastante claro que, tanto no Acordo TRIPS, quanto na Lei do Software brasileira,
foi feita especial menção a que os programas de computador desfrutarão de proteção
análoga à conferida às obras literárias, que são, por definição, obras escritas. Ainda
que em algum momento estejam simplesmente verbalizadas, como em um sarau - e
desde este momento a lei brasileira já lhes alberga proteção -, elas o são feitas por meio
de palavras, cuja expressão original do autor de maneira ordenada as transforma em
únicas.
Não se estabeleceu que os programas de computador seriam simplesmente protegidos
pela tutela do direito de autor; ao contrário, buscou-se especificar a forma de proteção e
como ela deveria ser interpretada: da mesma maneira que se trata a tutela das obras
literárias, ou seja, pela ordenação única de palavras. Esta ordenação única de palavras,
ao serem traduzidas para os programas de computador, trata-se do o “conjunto
organizado de instruções em linguagem natural ou codificada” a que se refere o art. 1º
da Lei do Software.
Adicionalmente, salientamos que o TRIPS faz expressa referência a que os programas
de computador serão protegidos “em código fonte ou objeto”, mais uma vez buscando
conexões textuais para adaptar a proteção autoral aos programas de computador, sem
que fosse feita qualquer referência a formas de expressão decorrentes da sua execução
em ambiente computacional. Todos esses elementos normativos reconhecidos pelo
direito positivo brasileiro levam à conclusão de que elementos não literais, distintos dos
códigos-fonte e códigos de máquina (código-objeto), não estão protegidos pelo direito
brasileiro.
Outro ponto relevante é o de que a lei brasileira63 expressamente estabelece que não
constitui ofensa aos direitos do titular de programa de computador, dentre outras
hipóteses, a ocorrência de semelhança de um programa a outro, preexistente, quando se
der por força das características funcionais de sua aplicação.
62
TRIPS - Acordo Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio.
Disponível em http://www.inpi.gov.br/menu-esquerdo/indicacao/pasta_acordos/TRIPS.doc .
63
Lei 9.609/98, art. 6º.
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Além disso, a Lei de Direitos de Autor brasileira, aplicável subsidiariamente aos
programas de computador, prescreve que não poderão ser protegidos pelos direitos
autorais as idéias, procedimentos normativos, sistemas, métodos, projetos ou conceitos
matemáticos como tais; os esquemas, planos ou regras para realizar atos mentais, jogos
ou negócios; e o aproveitamento industrial ou comercial das idéias contidas nas obras64.
A interface gráfica em um programa de computador tem por objetivo executar uma
idéia funcional, no sentido de implementar sua utilidade, ainda que de forma melhorada
em relação a outros programas, de modo que, adotando-se o critério da “funcionalidade”
estabelecido no caso Lotus Development Corp. vs. Paperback Software International65,
tal expressão não poderia ser protegida pelo direito autoral.
Tomando emprestados ainda os ensinamentos na decisão final do caso Lotus
Development Corp. v. Borland International Inc.66 e transpondo-os à realidade legal
brasileira, consideramos que os elementos de look-and-feel e interface gráfica dos
programas de computador, que consistem na forma como os usuários o percebem e
executam suas funções, confundem-se com métodos de operação do programa de
computador que têm por objetivo implementar características funcionais de sua
aplicação, o que expressamente excluiria esses elementos da proteção autoral, nos
termos do art. 6º da Lei do Software e do art. 8º, inc. I e II da Lei de Direitos de Autor
acima comentados.
Diante de todo o exposto, consideramos que, no atual estágio da legislação brasileira,
que confere tutela específica aos software na Lei 9.609/98, não há margem para
conferirmos proteção jurídica contra a reprodução por terceiros aos elementos gráficos,
interface e layout de um programa de computador. Isso porque os elementos
diretamente desenvolvidos pelo autor, código fonte e código objeto, foram os únicos
expressamente contemplados pela lei do software vigente, em proposital detrimento aos
demais elementos não literais, com exclusão dos elementos funcionais, ainda que
graficamente expressos.
Esta atualmente nos parecer ser a única posição que condiz com a proteção autoral
conferida pela lei brasileira e pela ordem jurídica internacional, que é replicada em
diferentes graus e distintos contextos nos demais países do mundo, mas que segue
sempre uma sistemática extremamente similar.
Entender de forma contrária, conferindo proteção jurídica à manifestação gráfica geral
produzida pelo programa quando executado, além de ser um forçoso exercício de
hermenêutica sobre o texto da lei existente, é também uma posição arriscada sob o
ponto de vista do livre desenvolvimento de novos programas de computador e do
desenvolvimento deste setor da economia.
Isso porque, ao se entender pela proteção do aspecto visual gerado por um programa de
computador – seu layout, por exemplo –, conferir-se-ia proteção durante o prazo de 50
(cinquenta anos), a contar de 1º de janeiro do ano seguinte ao da sua criação ou
divulgação, conforme prescrito no parágrafo segundo do art. 2º da Lei 9.609/98. Isso
64
Lei 9.610/98, art. 8º, inc. I e II.
Lotus Development Corp. v. Paperback Software International 740 F Supp 37 (D Mass 1990).
66
Lotus Development Corp. v. Borland International Inc., 49 F.3d 807 (1st Cir. 1995).
65
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poderia garantir ao seu titular o direito de impedir que terceiros desenvolvam qualquer
programa de computador que gere uma expressão gráfica similar, ou, pior, que seja
considerada um melhoramento da primeira versão protegida.
Uma proteção assim não atenderia aos interesses dos usuários em geral, não atenderia
aos interesses econômicos da indústria do software e, sob o ponto de vista estritamente
jurídico, atentaria às normas de garantia da livre concorrência previstas na Constituição
Federal, posto que seria capaz de condicionar todo um mercado extremamente dinâmico
como o da tecnologia da informação durante um período de mais de 50 anos, que é
estabelecido para a proteção dos programas do computador na Lei 9.609/98. Uma tutela
assim seria uma “desproteção”, parafraseando os ensinamentos do professor Goffredo
Teles Jr.67, pois seria uma proteção que não queremos.
6.4.
Proteção jurídica sobre figuras, músicas, vídeos, textos e outras
obras autorais existentes em programas de computador
Os programas de computador podem ser desenvolvidos com a finalidade precípua de
implementar outras obras autorais. Isso pode ocorrer, por exemplo, com livros
eletrônicos (e-books), estejam em formato puramente textual, apenas de áudio ou ainda
áudio-visual.
Nesses casos, entendemos que podem existir duas tutelas legais distintas, cada uma
aplicável a uma parte do software. Àqueles elementos que tenham sido implementados
pelo software e nele estão contidos, mas que, na verdade, constituem-se em obras
autônomas, como os textos de um livro, as cenas de um filme, as imagens digitalizadas
de um quadro, serão protegidos pela tutela geral dos direitos de autor, conferida pela Lei
9.610/98 (Lei Direitos de Autor). Ainda que, sob o formato digital, tenham seus
respectivos códigos de máquina mesclados com os do programas de computador, sua
natureza não é modificada. Estas obras não são um programa de computador, apenas
estão implementadas por um, para que seja possível sua execução em ambiente
computadorizado. O software é, nesses casos, um acessório à obra, que é o principal.
Na realidade, no mais das vezes, estão em arquivos autônomos, distintos dos respectivos
programas que as fazem serem executadas em computador, caso em que não há dúvida
entre a separação de tutela a cada elemento, mas é perfeitamente possível que haja
também a implementação de uma obra de natureza puramente autoral por um programa
de computador especificamente desenvolvido para ela.
Já os programas de computador que lhe dão suporte eletrônico podem receber também
proteção jurídica, pela Lei 9.609/98, desde que atendam ao requisito de originalidade.
Em muitos casos, não há elementos originais suficientes que lhes concedam tal status
legis, mas esta posição deve ser vista com extrema cautela e em uma base ad hoc,
evitando a generalização de que softwares que servem precipuamente à implementação
de outras obras autorais não estariam pro.
Além dessas situações, em que claramente se percebe que a base de programação serve
de mero suporte, acessório ao principal, às obras protegidas puramente pela Lei dos
67
TELLES JUNIOR. Goffredo. Carta aos Brasileiros. Aula-discurso proferida na Faculdade de Direito
do Largo de São Francisco. 1977.
Página 22 de 29
Direitos de Autor, há também os casos em que imagens e áudios formam parte do
programa de computador sem que possam ser considerados como elementos autônomos.
Quando não há independência do elemento em relação ao programa de computador em
que se encontra contido, não será conferido a ele tutela jurídica sob a Lei do Software
ou sob o amparo da Lei dos Direitos de Autor. Isso porque, uma vez não sendo possível
a identificação de autonomia e o requisito de originalidade, não poderá ser protegido
como uma obra autoral pura.
Como os elementos não-literais dos programas não estão protegidos pela Lei do
Software, conforme análise realizada no capítulo imediatamente anterior deste estudo, e
tampouco encontram-se abarcados pelo direito de autor geral, não gozam da proteção
jurídica própria dos códigos do software.
Solução similar encontramos aos sites de internet, conforme aponta Felipe Costa
Fontes68, que são verdadeiros programas, desenvolvidos em linguagem de programação
própria para ambiente web, mas que normalmente não estão compilados, mas sim
interpretados pelo navegador de internet (browser) utilizado pelo usuário para acessar
suas respectivas páginas.
Sendo original, seu código goza de proteção jurídica ao amparo da Lei do Software,
sendo que elementos textuais, imagens, fotografias e outras obras independentes, ainda
que utilizadas em websites, estão submetidas à tutela geral dos direitos de autor,
conferida pela Lei de Direitos de Autor.
6.5.
Proteção jurídica sobre logotipos utilizados em um software
Sobre a proteção de logotipos emerge questões bastante interessantes. Ao falarmos em
logotipo, referimo-nos a pequenos sinais gráficos utilizados em um programa de
computador, compreendendo, então, os ícones utilizados para distinguir um programa
de computador dos demais, bem como as pequenas figuras utilizadas em botões
existentes no software.
Essas imagens não recebem tutela da Lei do Software, uma vez que são elementos nãoliterais. Restaria então para eles a análise de eventual proteção sob o regime geral dos
direitos autorais, dentro da classe de obras artísticas.
Verificamos que, na maioria dos casos, não se encontra uma apreciação de ordem
artística nos logotipos utilizados em programas de computador. Ainda que apresentem
uma imagem agradável, para imaginar se a um logotipo presente em programa de
computador – seja seu identificador, seja utilizado em botões internos do software – é
preciso abstrair à qualidade de obra artística e imaginar se contém qualidades
necessárias a lhe atribuir a condição de “uma obra de arte”. É um exame extremamente
subjetivo, feito caso-a-caso, mas que leva consigo um pouco de senso comum e que
pode chegar à conclusão pela proteção sob a Lei de Direitos de Autor.
Ora, mas ainda que não se trate de uma obra de arte no sentido estrito das artes
humanas, seria absurdo não conferir proteção jurídica a um ícone que distingue um
68
FONTES, Felipe Costa. Natureza e proteção jurídica do website à luz do direito brasileiro. Recife:
IBDI, 2003. Disponível em http://www.ibdi.org.br/site/artigos.php?id=127
Página 23 de 29
programa de computador dos demais, como o do Microsoft Windows e até o pingüim
do Linux. Como o escopo subjacente é a distinção de um software dos demais, por meio
de um elemento gráfico, estamos falando da proteção própria conferida pelo direito
marcário.
Para que um logotipo utilizado para diferenciar um programa dos demais seja protegido
como marca, nos termos da Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96), é necessário
que seja requerido seu registro perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial
(INPI). Esta proteção restringe-se ao território brasileiro, sendo certo que, para fazer
valer em outros países, será necessário requerer seu registro perante o respectivo órgão
responsável pelo registro de marcas do país em que se pretende ter proteção marcária.
Além da tutela legal do direito de marcas, a proibição de uma empresa utilizar o
logotipo utilizado por um concorrente seu em um software, que tem o escopo de
diferenciá-lo dos demais, encontra amparo nas normas de repressão à concorrência
desleal, estabelecidas no art. 195 da Lei de Propriedade Industrial brasileira e na
Convenção da União de Paris, da qual o Brasil é signatário.
Desta forma, ainda que não esteja registrado como marca, uma empresa dedicada à
comercialização de softwares está proibida de utilizar em um programa de computador
seu o logotipo que seu concorrente utiliza em seu software, que tem a finalidade de lhe
distinguir dos demais, sob pena de estar incorrendo na prática criminosa de
concorrência desleal.
Tais tutelas – do direito marcário e da repressão à concorrência desleal – não se aplicam
a logotipos normalmente utilizados em botões presentes dentro de um programa de
computador, pois estes não são utilizados como um sinal original com o objetivo de
distinguir o software dos demais, mas sim para executar funções específicas. Este é o
exemplo dos botões utilizados para salvar um arquivo, representado em diversos
programas de computador diferentes por um disquete, ainda quando, na atualidade, o
uso de disquetes em computadores tenha caído em desuso.
6.6.
Proteção jurídica sobre bancos de dados e outros elementos gerados
por um software
A utilização de programas de computador pode gerar novos dados que, organizados de
acordo com um critério que os façam ser interpretados pelos respectivos softwares,
transformam-se em uma obra autônoma, denominada banco de dados ou base de dados
(do inglês database).
Considera-se como “bancos de dados” a qualquer coleção de obras individuais, dados
ou outros materiais organizados de forma sistemática ou metodológica, de maneira que
possam ser acessados de maneira individualizada, por meios eletrônicos ou não69.
Assim como ocorreu com os programas de computador, muito se discutiu sobre que
regime jurídico melhor se aplicaria à proteção dessas obras. Como sabemos, os direitos
de autor são divididos em direitos morais, de ordem personalíssima e vinculados à
pessoa física do autor, como é o caso do direito de autoria (ou à paternidade),
69
COLSTON, Catherine; MIDDLETON, Kirsty. Modern Intellectual Property Law. London: Cavendish,
2005. p. 267.
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consistente no direito que todo autor tem de ver atribuída sua obra ao seu nome, os
quais são inalienáveis e não estão sujeitos a ser objeto de negócio jurídico; e os direitos
patrimoniais, consistentes nos direitos de exploração econômica de uma obra.
Muito se argumentou que o direito de autor não deveria tutelar a proteção dos bancos de
dados porque os direitos morais não seriam conciliáveis com sua utilização, pois que
interesse teria alguém de ter direitos sobre uma compilação de dados que não fossem de
ordem eminentemente econômica. Direitos morais como os direitos de integridade e de
paternidade não pareceriam ser conciliáveis à função social que têm os bancos de dados.
Além disso, o prazo de proteção das obras autorais seria demasiado extenso, o qual, nos
termos da Convenção de Berna de 1886, corresponderia ao mínimo de 50 (cinquenta
anos), a contar do 1º de janeiro imediatamente posterior ao do falecimento do autor. No
Brasil, este prazo é ainda superior, de 70 (setenta) anos.
Na União Europeia, a Diretiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (Diretiva
da Proteção a Base de Dados) harmonizou entre os países-membros a tutela a bancos de
dados, conferindo-lhe uma dupla forma de proteção: sob os direitos de autor, sempre
que se puder constatar o elemento de originalidade obrigatório à proteção autoral, e uma
proteção sui generis, quando não for possível verificar-se originalidade na organização
empregada ao banco de dados, cuja valoração da indenização em caso de violação legal
corresponde aos gastos incorridos pelo seu titular para a sua produção70.
No Brasil, atualmente os bancos de dados são considerados obras literárias para efeitos
de tutela jurídica e, assim, submetidos ao regime autoral da Lei 9.609/98. Esse
parâmetro geral encontra-se replicado no art. 10 (2) do Acordo TRIPS, segundo o qual
as compilações de dados ou de outro material, legíveis por máquina ou em outra forma,
que em função da seleção ou da disposição de seu conteúdo constituam criações
intelectuais, deverão ser protegidas como tal. Essa proteção, que não se estenderá aos
dados ou ao material em si, se dará sem prejuízo de qualquer direito autoral subsistente
nos dados ou material que a compõe.
Sua titularidade pertence à pessoa que, utilizando-se do programa de computador,
compilou os dados sob determinada organização, de forma original. Os direitos recaem
não sobre os dados em si, que podem ter as mais diversas naturezas e não terem um
valor em si próprios, se individualmente considerados, mas sim sobre a organização
única que lhes é aplicada, ainda que proveniente da utilização de um programa de
computador.
Em um caso fictício em que uma empresa tenha organizado, por meio de um programa
de computador ou não, determinadas informações ou dados, de forma que esta
organização passou a ter um valor economicamente apreciável em si, não há razão para
não ser conferida proteção legal. Em nosso entendimento, “originalidade” para os
bancos de dados quer dizer a inexistência anterior da respectiva organização de dados
ou informações.
70
COLSTON, Catherine; MIDDLETON, Kirsty. Op. Cit. p. 267. Veja também a Directive 96/9/EC of the
European Parliament and of the Council of 11 March 1996 on the legal protection of databases. Official
http://eurJournal
L
077
,
27/03/1996
P.
0020
–
0028.
Disponível
em:
lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:31996L0009:EN:HTML
Página 25 de 29
Ainda que um banco de dados não atenda a alguma eventual rigorosa análise subjetiva e
pontual do elemento da originalidade, que é próprio do direito autoral, é possível buscar
proteção legal em face do princípio geral da responsabilidade civil, segundo o qual todo
aquele que causar dano a outrem tem a obrigação de indenizá-lo.
É evidente que a utilização não autorizada de um banco de dados por terceiro,
notadamente por meios que atentem à boa concorrência71, causa um prejuízo
patrimonial ao seu titular, seja à medida que a empresa deixou de auferir lucro pela
utilização indevida, seja porque a mera utilização não autorizada por terceiro diminui o
valor estratégico da respectiva base de dados. A avaliação do dano patrimonial, nesses
casos, deve levar em consideração a atividade desenvolvida pelo titular, do utilizador
não autorizado, os fins para os quais a base foi desenvolvida e os fins para os quais ela
foi utilizada.
Além dos bancos de dados, os programas podem gerar outras obras autorais. Um
exemplo simples são arquivos de textos gerados mediante a utilização de um software
editor de textos. Neste caso, como no dos bancos de dados, a titularidade das obras
geradas mediante a utilização do programa é daquele que a desenvolveu, não do
proprietário do software.
7. Proteção do software: a questão do registro
No Brasil, não há formalidades para que haja proteção sobre um programa de
computador, de maneira que a obra é protegida pelo período correspondente 50 anos,
contados a partir do 1º de janeiro subseqüente ao da sua criação ou divulgação.
O registro do programa perante o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI),
órgão competente no território nacional, é facultativo e não constitui direito de autor
sobre a obra, mas é uma prova juris tantum de autoria, ou melhor, é declaratório de que,
desde a data do pedido de registro perante o Instituto, a pessoa física ou jurídica que
requereu seu registro possuía os elementos que levou a registro, o que presume sua
titularidade.
Na prática, o efeito do registro perante o INPI inverte o ônus da prova, de maneira que,
se alguém, munido de um registro do seu respectivo programa de computador perante o
INPI, intentar uma ação de infração a direitos autorais sobre programa de computado
contra um terceiro, e a demandada alegar autoria da obra em detrimento da demandante,
a demandada terá a obrigação de produzir elementos probatórios que levem o juiz a se
convencer de que, antes do registro do programa de computador pela demandante
perante o INPI, a demandada já possuía os elementos levados a registro e que ela, de
fato, possui os direitos sobre a obra. Por isso, o registro perante o INPI, apesar de não
ser obrigatório, é extremamente recomendável.
Os meios de prova de autoria sobre um programa de computador, seja pela parte
demandante, seja pela demandada, não se restringem ao registro no órgão competente,
mas amplia-se para todos os meios de prova admitidos em direito, dentro dos princípios
processuais da livre produção de provas e do livre convencimento do juiz.
71
Ou seja, concorrência desleal, tal como definida na Convenção da União de Paris e no art. 195 da Lei
de Propriedade Industrial brasileira.
Página 26 de 29
Assemelhando-se à prática legal brasileira, nos Estados Unidos72, o registro de um
programa de computador (e de qualquer obra protegida pelo direito autoral) perante o
órgão competente constitui evidência prima facie de titularidade de direito de autor
sobre a obra, invertendo o ônus da prova para a outra parte, que deverá provar a
inexistência de direito pelo titular do registro, mas não é o único meio probatório.
8. Considerações finais: que rumo poderia seguir a tutela jurídica dos
softwares?
Conforme pudemos observar neste estudo, os programas de computador são obras de
natureza técnica e seu valor encontra-se nos aspectos funcionais que desempenham, os
quais são percebidos pelo usuário mediante sua execução no computador. Não obstante,
a legislação atualmente vigente no Brasil replica princípios adotados na quase totalidade
dos países do mundo, dispostos no Acordo TRIPS, equiparando os softwares às obras
literárias e, portanto, protegendo-os sob a tutela dos direitos de autor.
No Brasil, ainda que seja regido por lei própria – a Lei 9.609/98 –, as diferenças básicas
entre a proteção jurídica conferida aos programas de computador por esta lei e àquela
atribuída pela lei dos direitos de autor (Lei 9.610/98) às obras literárias em geral são de
que, de um lado, diminuíram-se os direitos morais de autor, reduzindo-os, para os
softwares, aos direitos à integridade e à paternidade73, que seguem os parâmetros
mínimos estabelecidos na Convenção de Berna de 188674, aplicável em face do art.
10(1) do Acordo TRIPS; e, de outro lado, suavizaram o tempo de proteção para 50
(cinquenta) anos, que nas obras literárias corresponde à vida do autor acrescida de 70
(setenta) anos.
A tutela legal dos direitos de autor não é apropriada aos programas de computador, por
diversos motivos. O primeiro é de que não fornece proteção a elementos que, sob o
ponto de vista patrimonial dos seus desenvolvedores, realmente são significativos para a
indústria de software, permitindo que uma empresa replique a quase totalidade dos
aspectos funcionais e gráficos de um programa de computador de sucesso desenvolvido
pela sua concorrente, sem que isso seja considerado infração legal, desde que o códigofonte não tenha sido copiado, total ou parcialmente.
Além disso, um segundo aspecto negativo é o de que o prazo de proteção jurídica de 50
(cinquenta) anos não atende aos interesses dos desenvolvedores de software, já que sua
defasagem tecnológica normalmente corresponde a cerca de 10% (dez por cento) deste
tempo, sendo demasiado longo para seu objeto tecnológico.
Um terceiro ponto é de que os direitos morais à integridade e à paternidade (autoria), na
prática, não encontram qualquer utilidade aos autores de programas de computador,
tendo caídos em natural desuso. Ora, com o exemplo do direito à paternidade, de fato
não parece ser compatível a obrigação de uma empresa desenvolvedora de softwares
fazer constar de maneira explícita o nome de todos os programadores e outros
profissionais que participaram do desenvolvido do respectivo programa. Isso é
72
Entendimento firmado no caso Bibbero Sys., Inc. v. Colwell Sys., Inc., 893 F.2d 1104, 1106 (9th Cir.
1990). Estados Unidos.
73
Há outras distinções, mas que não fazem parte do escopo deste estudo.
74
Convenção de Berna de 1886 consolidada, art. 6 bis (1). Disponível em
http://www.wipo.int/treaties/en/ip/berne/trtdocs_wo001.html#P123_20726
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perfeitamente compreensível para uma obra literária – um livro, um artigo, etc -, mas
não encontra guarida racional para ser aplicável também a programas de computador.
Não há um efetivo bem jurídico de âmbito personalíssimo a ser tutelado.
Entendemos ser necessário conferir alguma forma de proteção jurídica aos elementos
não literais de um programa de computador, é dizer, aos elementos gráficos percebidos
pelos usuários ao momento de sua execução em um computador, com a finalidade de
evitar o desenvolvimento de softwares idênticos que aproveitam e têm copiado uma
exteriorização original que foi projetada e desenvolvida por terceiros.
Os elementos não literais a serem protegidos devem atender a dois critérios:
originalidade, para evitar que seja uma reprodução de antecessores; ser utilizado para
desempenhar uma função ou utilidade como principal objetivo75, em oposição ao mero
embelezamento, que é objeto de obras artísticas, já que o elemento da funcionalidade ou
utilidade é o principal componente da natureza dos programas de computador.
O prazo para proteção desses elementos não literais de um programa de computador
deve ser suficiente para que haja um efetivo aproveitamento econômico por aqueles que
investiram em sua criação, de forma que tenham um retorno comercial desejado, mas
que seja limitado a um período conciliável com sua rápida defasagem tecnológica e que,
ao seu final, em que a utilização e remodelamento por terceiros será permitida,
possibilite certo grau de uniformização, que é desejável para facilitar a utilização de
diferente softwares similares pelos usuários.
No Manifesto sobre a Proteção Jurídica dos Programas de Computador, Pamela
Samuelson e outros autores76 propõem que sejam proibidas as condutas de réplica aos
comportamentos realizados por um programa e ao seu desenho industrial que tenham
por finalidade produzirem um determinado comportamento eficiente [ao computador],
mediante um período automático de proteção anti-clonagem para tais inovações.
Segundo eles77, o período deve ser suficientemente longo para incentivar o investimento
no desenvolvimento de programas inovadores e curto o bastante para não impedir que
novos players participem do seu mercado e promovam melhoramentos na invenção
inicial após seu desenvolvedor originário tenha recuperado o investimento inicial
realizado.
Dessa maneira e diante das lições aprendidas com os diversos inconvenientes gerados
pelas leis vigentes ao redor documento, acreditamos que os seguintes princípios
deveriam ser adotados para o desenvolvimento de uma nova legislação de proteção à
propriedade intelectual do programa de computador:
75
LEMLEY, Mark A. Op. Cit.
“We propose to remedy market-destructive appropriations of program behavior and the industrial
designs aimed at producing efficient program behavior through a period of automatic anti-cloning
protection for these innovations.” SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e
REICHMAN, J.H. Op. Cit. P. 2308-2431.
77
“The period should be long enough to give efficient incentives to invest in the development of
innovative software, yet short enough to avert the market failure that would result if second computers
and follow-on innovators were blocked from entering the market long after the first firm had recouped its
initial investment.” SAMUELSON, Pamela; DAVIS, Randall, KAPOR, Mitchell D.; e REICHMAN, J.H.
Op. Cit. P. 2308-2431.
76
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1) o foco deve ser dado à exteriorização da funcionalidade do software, sob a forma de
elementos visualmente perceptíveis aos usuários no momento da execução em um
computador;
2) para gozarem de proteção, os elementos visuais que compõem as exteriorizações das
funcionalidades do software devem atender ao requisito de originalidade, no sentido de
ser algo originalmente desenvolvido pelo seu autor, ou seja, um critério de apreciação
subjetivamente menos rigoroso que o aplicável às obras literárias;
3) o prazo deve ser curto, por volta dos 5 anos, a ser apurado em levantamentos
econômicos, mas bastante diferente dos 50 anos atualmente conferidos no Brasil;
4) não devem existir direitos morais sobre os softwares, pois não há caráter
personalíssimo em uma obra de natureza técnica e funcional, sem cunho artístico; os
direitos morais sobre programas de computador não exercem qualquer função social
relevante, de maneira que deve-se dar maior atenção aos direitos patrimoniais em
detrimento daqueles.
5) sobre o código-fonte e o código-objeto, inicialmente não enxergamos inconvenientes
em ser conferida proteção análoga à das obras literárias, exceto seu prazo de proteção,
que pode ser um pouco superior aos 5 (cinco) anos sugeridos no item 3 (três) acima,
mas bastante inferior aos 50 (cinquenta) anos da atual lei, e os direitos morais sobre
eles, os quais não devem existir.
O modelo ora recomendado encontra algumas similitudes com a proposta do Japão78 na
década de 1980, por sugerir a inexistência de direitos morais e um prazo de proteção
mais curto que o dos direitos de autor, mas tem seu foco voltado nos elementos gráficos
de exteriorização das funcionalidades exercidas por um software durante sua execução
em um computador.
Para se chegar a um entendimento mais refinado de que elementos deveriam ser
protegidos no software, seu prazo de proteção e critérios a serem utilizados, seria
necessário a retomada do debate em plano internacional, com ouvida dos diversos
segmentos empresariais, da sociedade civil e do governo interessados, uma vez que uma
legislação assim afetaria um setor que não reconhece fronteiras.
Infelizmente, no momento atual, parece estar longe a possibilidade de uma discussão
desta natureza e amplitude que possa gerar resultados práticos imediatos. Esperamos
que os problemas, soluções e nortes trazidos neste estudo, além de poderem ser
aplicados à realidade atual do Brasil, sirvam para conscientizar e reforçar a necessidade
de construções jurídicas mais aprofundadas e que visem a reformar os princípios
atinentes à proteção jurídica da propriedade intelectual dos programas de computador.
Uma proteção assim deve estar sob uma nova categoria sui generis da propriedade
intelectual, mais efetiva e pragmática e que leve em consideração os diversos interesses
econômicos e sociais envolvidos.
78
Information Industry Committee, Industrial Structure Council, Protecting Software. Interim Report,
December 1983 (não publicado) apud BARBOSA, Denis Borges. Op. cit. (1987).
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