Francesinho - Peter Pan Production
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Francesinho - Peter Pan Production
Mundo sobre rodas I aventura Francesinho duro na queda aventureiros encaram o sertão nordestino com seus citroën 2cv. rali? nada... foi só um passeio de 2.200 km por jason vogel | fotos theo ribeiro Os 33 coloridos Deuche viajaram de navio da França ao Ceará, ponto de partida do longo “passeio” pelo agreste. O modelo foi produzido pela Citroën entre 1948 e 1990, mas é difícil identificar qual é qual no grupo. Além das peças intercambiadas, os carros contam com reforços no chassi e na suspensão para enfrentar o uso mais radical 114 I autoesporte I dezeMBRO dezembro I autoesporte I 115 Mundo sobre rodas I aventura gosto pela aventura: o Raid 2cv é um passeio de amigos por terrenos exóticos, sem competição V egetação de caatinga, calor de 40°C, poeira fina de travar câmera fotográfica... e o mais popular dos carros franceses parecia ter encontrado seu ambiente natural. Na árida divisa do Piauí com o Maranhão, a coluna formada por 33 supercoloridos Citroën 2CV despertava a curiosidade dos locais. Professoras liberavam as crianças das salas de aula; adultos cercavam a caravana cheios de perguntas: – É tudo Fusca? – Vocês tão arrodeando o mundo nesses carros? – Isso é rali? Ainda muito brancos em seu primeiro dia de aventura, os franceses se limitavam a rir. E tentavam alguma comunicação, por gestos ou no idioma de Balzac. Contatos imediatos assim se repetiram ao longo de duas semanas, enquanto o Raid 2CV Brazil 2011 percorreu o Nordeste do país. Na aventura, realizada entre o fim de outubro e o início de novembro, “citroneiros” europeus rodaram por 2.200 km de estradas bem asfaltadas, esburacadas ou, de preferência, inexistentes. Apesar do nome em inglês, a expedição foi comandada por um francês – Jean-Pierre Lenfant, que convive com os Deux Chevaux (Dois Cavalos) desde que estudava medicina, na década de 60. O pequeno e versátil Citroën era, então, o modelo favorito da juventude. Do estacionamento da faculdade, os garotos iam cada vez mais longe com seus 2CV: Espanha, Tunísia e, por fim, corriam a Áfri- 116 I autoesporte I dezeMBRO ca inteira. A própria fábrica patrocinava muitas dessas expedições voltadas para universitários, como uma maratona de ida e volta ao Irã. Na década de 70, Lenfant comandou as equipes médicas dos primeiros ralis Paris-Dacar. Desde 1985, ele organiza a Peter Pan Productions, associação de amigos que têm em comum a paixão pelo Deuche (é esse o apelido francês do modelo) e o amor por aventuras em terrenos exóticos e agrestes. Na França, há vários grupos assim. O valente Citroën 2CV conta somente com tração nas rodas dianteiras, mas seu peso é de apenas 560 quilos; se atolar no areião, basta reunir a turma e empurrar Quase todos os participantes da expedição pelo Nordeste do Brasil eram franceses, mas havia algumas duplas de suíços e belgas. As idades variavam: desde moças de 20 e poucos anos até um octogenário. É uma turma que se cotiza (3.100 euros por pessoa) e, a cada dois anos, cai na estrada para uma viagem de férias. Os carrinhos e seus tripulantes já rodaram o mundo, como atestam adesivos coloridos e as inscrições nas portas e nos capôs. Em edições anteriores, foram da Mongólia à China, cruzaram os Andes, percorreram o Marrocos e rodaram pela Patagônia. Dessa vez, os 33 carros viajaram em navio de Le Havre ao porto de Pecém, a 58 km de Fortaleza. Além dos pequenos Citroën, vieram veículos de apoio, trazendo peças de reposição impossíveis de serem achadas por aqui. O mais impressionante era um Pinzgauer 6x6, modelo com jeitão de blindado militar fabricado na Áustria. Acompanhei os dois primeiros dias da viagem, nos trechos entre a capital do Ceará e São Luís do Maranhão, sempre pelo interior. Apesar de gostar muito de seus 2CV, os participantes não têm frescuras com os carros, que são submetidos a buracos, areia e até travessias de rios. Sem ponte. Nesses passeios roda-se da manhã até a noite. Os aventureiros são, na maioria, senhores e senhoras de meia-idade, que trabalham em escritórios ou repartições públicas na França. Quem os vê, se espanta com a disposição para dirigir por tanto tempo sem parar. enquanto isso, no Rio... Dirigir um 2CV no Brasil é ter de responder a perguntas sem fim. Jovens ficam surpresos ao descobrir que a Citroën já existia antes de ZX e Xantia. Os mais velhos o confundem até com Vemaguet, cismando que o motor é dois tempos. E sempre vem alguém com uma câmera. Tudo é compensado pelo prazer de usar um Deux Chevaux no dia a dia, no Rio. Antes de ligar o motor, abre-se a capota. É simples: duas travas e em segundos integra-se ao mundo lá fora. Quando faz sol e a temperatura está amena, é o paraíso. Dá vontade de ir ao trabalho sempre pelo caminho mais longo e colorido . Há que se manter uma relação íntima com a máquina, para que o motorzinho de dois cilindros renda todo o seu potencial. Esticando marchas e dirigindo de ouvido é possível acompanhar bem o trânsito a 90 km/h. Isso se o carro for das versões “modernas”, com 602 cm³ (os mais antigos, de 425 cm³, são lerdíssimos). Num instante se pega o jeito da alavanca de câmbio que sai do meio do painel. Mas o maior barato da Citronave é sua exclusiva suspensão: duas molas parrudas e longas vão deitadas paralelamente ao chassi, unidas às rodas por quatro braços em forma de “J”. O rodar é extremamente suave e, nas curvas, é praticamente impossível chegar ao limite de aderência, mesmo usando estreitos pneus Michelin 125 R15. Como dizem os franceses, o 2CV não é um carro, mas um modo de viver. Dirigi-lo é uma experiência rica em sons, vibrações e cheiros. Desperta sorrisos e acenos. Às vezes, parece ter alma. Dificuldades, só na manutenção. A loja de peças mais próxima está em Buenos Aires (não vende online). E, apesar da simplicidade do projeto, mecânicos brasileiros olham para as soluções técnicas do 2CV como se estivessem diante de um disco voador. O 2CV nunca foi vendido pela Citroën no país, mas um levantamento da comunidade 2CV Brasil no Facebook aponta 35 deles por aqui. Inclui os 2CV franceses e portugueses, os irmãos argentinos, rebatizados de 3CV, os jipes Méhari e os exóticos modelos Ami. Volta e meia aparece um à venda, por R$ 15 mil a R$ 35 mil. (J.V.) dezembro I autoesporte I 117 Mundo sobre rodas I aventura Durante dez dias, os europeus viajaram por lugares paradisíacos de Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte, acampando e consertando à noite o que quebrou durante o dia 1 5 2 3 7 4 8 9 118 I autoesporte I dezeMBRO 6 Os carros são quase originais (1), mas contam com o apoio de vários equipamentos para auxílio à navegação (2 e 4); adesivos dão uma ideia dos países e lugares por onde o raid já passou (3), mas... quem saberia dizer quantas vezes esse odômetro já virou? (5); os participantes gostam de seus carrinhos, formam clubes de admiradores e viajam equipados com ferramentas e recursos para fazer a manutenção (6 e 7), mas não têm nenhuma frescura quando é preciso enfrentar travessias de atoleiros ou córregos, com ou sem pontes; o Deuche não fez feio quando seu irmão Aircross, algumas décadas mais novo, entrou no comboio (9) Para não ficar pelo caminho, os carros são preparados com amortecedores mais robustos, reforços nos braços de suspensão, “bacalhaus” no chassi e enormes filtros de ar para segurar a poeirada e a areia. Os para-lamas são recortados para facilitar as trocas de pneus e aumentar os ângulos de ataque e saída. O Citroën 2CV foi produzido de 1948 a 1990, mas era difícil precisar a data de fabricação dos inscritos, já que todos misturavam peças de três ou quatro modelos de anos diferentes. Não há competição, apenas um passeio de amigos. Nesse tipo de rali, todos são ganhadores e a paisagem é o troféu. “É tudo por aventura e prazer. O 2CV é um carro simpático e fácil de consertar. E nessas viagens encontramos um monte de gente diferente”, diz Marie-Laure Didillon, integrante do Yellow Desert Team, grupo que trouxe três Citroën amarelos. Mesmo com tração apenas nas rodas dianteiras, os carrinhos venceram atoleiros e grandes trechos de areia. O segredo está na leveza: um 2CV vazio pesa 560 quilos. Encalhou? Empurra-se... Sobre estradas de terra esburacadas, anda- Em alguns trechos, a travessia dependeu de balsas, mas problema mesmo só com a burocracia, que fez com que os carros fossem levados de cegonha do Nordeste até o porto do Rio de Janeiro vam a 70 km/h. No asfalto liso, os Deuches passavam de 105 km/h. Bela marca para seu motorzinho de dois cilindros refrigerado a ar, de modestos 602 cm³ e potência em torno dos 30 cv (Dois Cavalos é apenas o nome fantasia do carro). Há preparadores que adotam o motor do extinto Citroën Visa, que tem a mesma arquitetura básica, mas conta com cilindrada de 652 cm³. Um verdadeiro bólido. Para encarar esses passeios, é preciso habilidade mecânica. A cada amanhecer nos acampamentos, os donos consertavam o que fora estragado na véspera. E, sempre que alguém parava no caminho, o resto da turma ajudava. Após um início pelo sertão, a volta foi por lugares paradisíacos do litoral de Maranhão, Piauí, Ceará e Rio Grande do Norte. São cenários desconhecidos pela maioria dos brasileiros: Lençóis, Santo Amaro, Barreirinhas, Camocim, Mundaú, Guaramiranga, Morro Branco, São Miguel do Gostoso... Algumas vezes, a travessia tinha de ser feita de jangada. Os participantes se deslumbravam com as paisagens, mais surpreendentes a cada dia. “O Brasil se presta bem ao uso do 2CV. E tem a simpatia dos habitantes, sempre receptivos”, completa Lenfant. A grande maioria dos 2CV chegou ao fim da viagem rodando pelos próprios meios. Planejada ao longo de dois anos, a expedição foi um sucesso. Problema mesmo, só com a burocracia e as taxas portuárias. Por esse motivo, a largada passou de Belém para Fortaleza. E, no fim, os carros tiveram de voltar à França pelo porto do Rio (para onde foram levados em caminhões-cegonha). O próximo destino? Algum paraíso perdido. Essa turma sabe levar a vida... dezembro I autoesporte I 119