Conselho Consultivo Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Oiti Berbet
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Conselho Consultivo Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Oiti Berbet
Conselho Consultivo Berthold Ölze – Universität Passau Cássio Fernandes – UFJF Durval Muniz – UFRN Conselho Editorial Prof. Dr. Carlos Oiti Berbet Júnior Prof. Dr. Cristiano de Alencar Arraes Prof. Dr. Luíz Sérgio Duarte da Silva Estevão Martins – UnB Jörn Rüsen – Kulturwissenschaftliches Institut - Essen José Carlos Reis – UFMG Oliver Kozlarek – Universidade de Morelia Diretoria Daniele Maia Tiago Flávio Silva de Oliveira Frederick Gomes Alves Pedro Caldas – UFU René Gertz – UFRGS Valdei Araújo – UFOP Sérgio da Mata – UFOP Prof. Dr. Jurandir Malerba – PUC-RS Kaio Bruno Alves Rabelo Makchwell Narcizo Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Apresentação Preocupada com as questões próprias da teoria da história, isto é, com os fundamentos e os princípios da ciência da história, a Revista de Teoria da História alcança agora o seu terceiro número. Inseridas no vasto campo da reflexão sobre os fatores constituintes da história como ciência; encontram-se neste último número, especificamente, reflexões sobre os métodos, os interesses e as funções da ciência histórica. Tratando dos métodos, Pedro Spinola Pereira Caldas, em Teoria e Prática da Metodologia da Pesquisa Histórica: reflexões sobre uma experiência didática, e Sírley Cristina Oliveira, no artigo A experiência estética de Hans-Georg Gadamer e a vivência de Wilhelm Dilthey: contribuições da hermenêutica aos estudos da história, apresentam reflexões sobre uma das operações substanciais da pesquisa histórica: a hermenêutica. Pedro Caldas trata da aplicabilidade do método hermenêutico na prática de pesquisa e do modo como este método pode ser ensinado a alunos da disciplina Teoria e Metodologia da História. Para tanto, aproveita as contribuições de Droysen para apresentar e demonstrar a viabilidade das quatro etapas da interpretação histórica: a pragmática; a interpretação das condições; a psicológica e a interpretação das idéias. Sírley Cristina Oliveira busca as relações entre a Hermenêutica e a História a partir das obras de Dilthey e Gadamer. Fundamentando a importância da operação hermenêutica para a História, a autora chega à percepção da inevitabilidade de se obter variadas interpretações sobre o passado humano. Além destas análises sobre uma das operações substanciais da Ciência Histórica, encontram-se neste número, alguns artigos que tratam sobre o uso das fontes na pesquisa histórica. No artigo História e literatura: algumas considerações, Valdeci Rezende Borges, por exemplo, analisa as relações entre História e Literatura, apresentando, a partir de um diálogo especial com a historiografia francesa, elementos metodológicos para a utilização da literatura como documento na pesquisa histórica. 2 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Kleverson Teodoro de Lima, no artigo Cartas, história e linguagem, problematiza a utilização das fontes epistolares na pesquisa histórica, identificando dois conceitos importantes para o trabalho com a prática epistolar privada: o conceito de “performatividade”, identificado nos estudos de Roger Chartier, e o de “expectativa de significação”, presente nos escritos de Patrick Charaudeau. Em As gravuras mexicanas do Museu de Arte de Santa Catarina: entre aparição e nostalgia, Lucésia Pereira analisa um conjunto de gravuras doadas pelo presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos ao acervo do então Museu de Arte Moderna de Florianópolis em 1961, através do qual desenvolve um debate sobre as relações entre história, arte e imagem. As contribuições do método histórico-filosófico de Foucault também são apresentadas. No artigo Foucault, o método histórico-filosófico de pesquisa e sua contribuição para a Metodologia Científica das Ciências Humanas, Fernando Gaudereto Lamas e Ramon Mapa da Silva discutem as contribuições metodológicas do filósofo francês para as ciências humanas, entendendo que o método histórico utilizado por este autor possibilita a emancipação do saber de suas amarras positivistas. Para além dos métodos da pesquisa histórica, as reflexões sobre a história elaboradas por Leon Tolstoi são analisadas no artigo Interpretação do Processo Histórico em Leon Tolstoi, de Gustavo Morais Barros. Com o mérito de, primeiro, analisar o pensamento histórico de um autor que teve suas reflexões sobre a história ignoradas ou subestimadas, e, segundo, de se opor àquelas interpretações que enxergam somente um “fatalismo histórico” nas percepções do escritor russo, Gustavo Barros apresenta uma visão instigante sobre a aproximação entre Lei e contigência no pensamento histórico tolstoiano. Nas reflexões a respeito dos interesses e das funções da História, encontramos neste número, alguns artigos que trazem contribuições para pensarmos a orientação da história na vida prática. O artigo de Julio Bentivoglio, por exemplo, Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift, apresenta-nos uma contextualização da historiografia germânica do século XIX, enfocando os vínculos entre os historiadores, no processo de especialização e 3 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 cientificização da história, e a ação política no contexto de formação do Estado nacional alemão. O artigo contribui, desta forma, para a percepção do modo como a história é produzida a partir de um debate vivo com a sociedade alemã. Ao mesmo tempo, nos ajuda a superar a imagem comum, reduzida, esquemática e caricatural de que esta historiografia se reduzia a um só personagem, Franz Leopold von Ranke, e a uma grande máxima, a de “narrar os fatos como aconteceram”. O artigo, A História como Sagesse, de Joana Duarte Bernardes, analisa as mudanças sofridas no axioma “História Magistra Vitae” a partir da transformação da perspectiva temporal. Contextualiza o axioma em sua perspectiva clássica, judaico-cristã e moderna, e propõe a superação dos excessos de anacronismos e presentismos para se alcançar uma historiografia que tenha, de forma assumida e responsável, uma função pragmática. Ainda em uma análise sobre as funções da História, o artigo A utilização da História no decorrer da Conquista da América, de Adailson José Rui, analisa o uso político da História nos discursos sobre a Conquista da América do século XVI e XVII. O autor identifica o modo como cronistas/historiadores utilizavam a história como forma de legitimar tanto suas posições pessoais quanto determinadas posições de grupo. Já no artigo A temporalidade na condição pós-moderna, Dagmar Manieri retoma o tema da crise da razão moderna ao analisar as transformações da noção de tempo motivadas pela pós-modernidade. Traçando uma longa trajetória da razão moderna, que o autor inicia com uma análise da filosofia da História de Hegel, identifica a renúncia pós-moderna da concepção de transcendência como um dos elementos centrais da crise da razão. Além destes artigos, este número da Revista de Teoria da História apresenta na seção NOTAS DE PESQUISA, o texto Que vença o melhor argumento: as notas de rodapé como artifício argumentativo em Casa Grande & Senzala, de Eliézer Cardoso de Oliveira e Vanessa Carnielo Ramos. Os autores traçam uma trajetória da utilização das notas de rodapé no texto histórico, apontando o modo como, para além das funções metodológicas, elas possuem uma função retórica importante. As notas de rodapé devem ser entendidas como estratégias argumentativas utilizadas pelos historiadores para reforçar seus argumentos, seja aproximando-os dos argumentos de outras obras, seja distanciando-os de posições contrárias. É a partir 4 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 desta percepção que analisam as notas de rodapé do clássico livro de Gilberto Freire, entendendo-as como mais do que um mero apêndice ao texto. Por último, neste número encontra-se uma entrevista com o historiador Sérgio Ricardo da Mata, professor de Teoria da História da UFPO (Universidade Federal de Ouro Preto), realizada por Daniele Maia, Flávio Silva e Frederick Gomes. Rafael Saddi 5 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Sumário 02 Apresentação. ARTIGOS. 08 Teoria e prática da Metodologia da pesquisa histórica: reflexões sobre uma experiência didática. Profº Pedro Spinola Pereira Caldas. 20 Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift. Profº Júlio Bentivoglio. 59 A História como Sagesse. Joana Duarte Bernardes. 75 A experiência estética de hans-georg gadamer e a vivência de wilhelm dilthey: contribuições da hermenêutica aos estudos da história. Sírley Cristina Oliveira. 94 História e literatura: algumas considerações. Profº. Valdeci Rezende Borges. 110 Foucault, o método histórico-filosófico de pesquisa e sua contribuição para a Metodologia Científica das Ciências Humanas. Fernando Gaudereto Lamas e Ramon Mapa da Silva. 123 Interpretação do Processo Histórico em Leon Tolstói. Gustavo Morais Barros. 144 Artigo Retirado. 169 A Utilização da História no Decorrer da Conquista da América Profº. Adaílson José Rui. 190 As gravuras mexicanas do Museu de Arte de Santa Catarina: entre aparição e nostalgia. Lucésia Pereira. 210 Cartas, história e linguagem. Kleverson Teodoro de Lima. 6 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 226 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A temporalidade na condição pós-moderna. Profº. Dagmar Manieri. NOTA DE PESQUISA 249 Que vença o melhor argumento: as notas de rodapé como artifício argumentativo em Casa Grande & Senzala. Eliézer Cardoso de Oliveira e Vanessa Carnielo Ramos. ENTREVISTA 267 Entrevista com o Profº Sérgio Ricardo da Mata. Daniele M. Tiago; Flávio S. de Oliveira; Frederick G. Alves. 7 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Teoria e Prática da Metodologia da Pesquisa Histórica: Reflexões sobre uma Experiência Didática1. Professor Adjunto da UNIRIO/ Pesquisador CNPq. Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas. E-mail: [email protected] RESUMO O objetivo deste artigo consiste em discutir a relevância da metodologia na história. Por meio do conceito da concepção de Jörn Rüsen de unidade metodológica (como demonstrado em seu trabalho Reconstrução do Passado), é possível elaborar todo um curso de metodologia. Com o fito de provar tanto a legitimidade teórica quanto o uso prático da metodologia, este artigo dá o exemplo da hermenêutica – não só como elaboração de dados, mas também como caminho para a descoberta das profundas implicações do pesquisadores com o próprio processo de conhecimento. Palavras-Chave: Metodologia – Jörn Rüsen – Hermenêutica. ABSTRACT This paper’s purpose is to discuss the relevance of methodology in history. Through Jörn Rüsen’s conception of methodological unity (as it is shown in his work Rekonstruktion der Vergangenheit) one may elaborate an entire course of methodology. In order to prove both the theoretical legimitacy and practical usefulness of methodology, this paper gives the example of hermeneutics not only as a data elaboration, but also as a path of discovery of the researcher’s deep implications in the process of knowledge itself. Keywords: Methodology – Jörn Rüsen - Hermeneutics 1 No dia 12 de maio de 2010, participei, no campus de Seropédica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), juntamente com Fernando Nicolazzi (UFOP) e Temístocles Cezar (UFRGS), de uma mesa redonda dedicada ao ensino de teoria da história e da história da historiografia. O presente texto é resultado de minha fala naquela noite. Aproveito para agradecer novamente às professoras Rebeca Gontijo e Maria da Glória de Oliveira (ambas da Rural) pelo convite feito. A palestra, por sua vez, foi baseada na (gratificante) experiência em sala de aula durante o segundo semestre de 2009, quando ministrei, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), a disciplina “Metodologia da História”. 8 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Dificilmente um estudante decide estudar história para se dedicar à reflexão teórica. Por ter ministrado por cinco vezes cursos para “calouros”, me permito afirmar que o fascínio pela história costuma ser o fascínio pelo particular: Egito antigo, a mitologia clássica, o Brasil contemporâneo, a Idade Média, a Segunda Guerra Mundial etc. O jovem dado a abstrações invariavelmente está, naquele exato instante, matriculado em uma graduação de filosofia. E o gosto pelo particular, acompanhado pela indiferença em relação à teoria, costuma acompanhar o estudante pela sua vida profissional, mesmo quando ele se torna um respeitado docente e laureado pesquisador. Daí ser previsível o estranhamento de disciplinas como “teoria da história”, “introdução aos estudos históricos” ou coisa semelhante. O estranhamento cotidiano, dado na sala de aula, por exemplo, é um fato incontornável, e que todos gostariam de mitigar. Afinal, um professor gosta de ser compreendido e um aluno gosta para aprender. E ambos têm uma notável e humana resistência ao inconclusivo, ao misterioso, ao que permanece incompreendido mesmo após um esforço moderado de leitura e audição. Porém, sou da opinião de que o estranhamento da teoria da história, a meu ver, deve ser mantido – em doses moderadas – mas jamais encoberto. Se bem canalizado, o estranhamento adquire um enorme potencial crítico e reflexivo. Mas como? Pelas peripécias da vida e da carreira, me vi levado (felizmente) a estudar um pouco de outra teoria, além da história: a teoria do teatro. E, além de sentir, fora do âmbito de minha formação profissional, como uma teoria é capaz de aumentar o prazer (no caso, de assistir a uma boa peça de teatro), de fornecer instrumentos capazes de elaborar, alargar e refinar uma experiência estética. E uma teoria do teatro, em específico, me serviu de inspiração para pensar a própria teoria da história. Refiro-me às teorias sobre o teatro engajado, pensadas primordialmente por Bertolt Brecht, mais precisamente o seu conceito de efeito de estranhamento (Verfremdungseffekt). O efeito de estranhamento pode ser exemplificado da seguinte maneira: habitualmente, as peças são encenadas em “palcos italianos”, isto é, em palcos em que palco e platéia estão divididos por uma parede imaginária (a “quarta parede”), e os espectadores só vêem a ação. Há, porém, a possibilidade de se encenar uma 9 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 peça no teatro de arena, no qual a ação transcorre no centro, rodeada pelo público. Neste caso, ao ver uma peça, vemos também os outros espectadores, localizados na nossa frente. Enquanto vemos a ação, vemos o ato de ver. E é isto a teoria. Qualquer teoria. Sem sair do teatro engajado, recordo-me também que, certa vez, li uma bela dissertação1, na qual havia a pergunta: por que, nos dias de hoje, marcados pelo individualismo e pela comunicação audiovisual de massa, alguém iria ao teatro? (cf. DESGRANGES, 2003:21-22, 24) Ou seja: por que ir ao teatro? Como fazer teatro? Para quem fazer teatro? Transponho sem receio algum o mesmo feixe de perguntas: por que estudar e ensinar história? Como fazer história? A quem se dirigir, quando escrevemos e ensinamos história? Junto os fios: a teoria, portanto, é a área na qual estas perguntas aparecem. Ela chama a atenção para forma como o sentido histórico é considerado (pessoalmente) necessário, (metodologicamente) viável e (socialmente) comunicável. E é por esta razão que a teoria da história é, necessariamente, uma área estranha, desagradável. Ela escapa da rotina, dos debates historiográficos a respeito da pertinência empírica de teses e hipóteses, do cotidiano da sala de aula e dos congressos. É por esta razão que, ao iniciar um curso de caráter teórico, pergunto aos alunos (e o faço com mais ênfase quando se trata de alunos de primeiro período): o que vocês estão fazendo aqui? O tom desafiador, arriscado em se tratando de um público que apenas começa a se acostumar com a idéia do fim da adolescência, pretende apenas introduzir uma pergunta: por que precisamos da história? Um curso, porém, tem aproximadamente 60 horas de aula, donde a provocação precisa ser desenvolvida. E, até onde vão minhas leituras sobre teoria da história, poucos sistemas me parecem tão completos quanto os desenvolvidos por Jörn Rüsen. Sua trilogia, formada por Razão histórica, Reconstrução do passado e História viva, de alguma maneira, apresenta, desenvolve e elabora justamente as três perguntas acima, pois tratam da consciência histórica, da metodologia da história e da narrativa histórica: isto é, da necessidade, viabilidade e comunicabilidade da pesquisa e do conhecimento na área de história. Aqui, FREITAS, Talitta Tatiane Martins. Por entre as coxias: A arte do efêmero perpetuada por mais de “Sete minutos”. Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal de Uberlândia, 2010. 1 10 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 evidentemente não terei como abordar as três obras. Mal terei como tratar de uma delas. Aproveitarei o espaço, portanto, para partilhar minha experiência como professor de metodologia da história. Logo, trato da segunda pergunta, sobre o como fazer história, presente em Reconstrução do passado. Sejamos sinceros: a metodologia é, para os alunos, uma das disciplinas mais enfadonhas da grade curricular da graduação. Para os pesquisadores, algo de que muitas vezes é lembrado somente para redigir um projeto. A metodologia é uma ferramenta, mas a ferramenta não é uma mera extensão do braço. Por que precisamos dela? Assim como não pregamos um prego com os dedos, por sentirmos uma carência na nossa força física para fazê-lo, quais as carências sentidas no ato de conhecer historicamente que exigem, portanto, uma metodologia? Está implícito no próprio título do livro de Rüsen: por que o passado precisa ser reconstruído (e não meramente construído)? Doravante, farei uma breve apresentação de Reconstrução do passado, para, no momento seguinte, demonstrar como um dos métodos abordados por Rüsen – o hermenêutico – pode ser utilizado na prática de pesquisa, com ganhos consideráveis. Não quero, com isso, comprovar a supremacia da hermenêutica, mas, apenas, relatar como o uso de um método (que aplico freqüentemente) é imprescindível para que a segunda pergunta da teoria da história – como fazer? – ajuda já a desenvolver a primeira – por que fazer? Reconstrução do Passado: a unidade do método histórico A obra de Jörn Rüsen1 me serve, ultimamente, como um mapa altamente preciso de questões e problemas. As discordâncias e reparos a serem feitos são possíveis porque, justamente, as coordenadas parecem muito claras e bem determinadas. De alguma maneira, Rüsen estabelece regras de um jogo no qual ele mesmo, em alguns lances, pode ser impreciso, sem que, com isso, as regras sejam desfeitas. Reconstrução do passado, por ser um texto abstrato (um desafio a mais para professores e alunos) e conciso, acaba sendo mais útil do que obras de grandes dimensões, que acabam confundindo metodologia e história da O historiador sueco Martin Wiklund tem um excelente estudo introdutório da obra de Rüsen. Cf. WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido histórico e racionalidade na teoria da história de Jörn Rüsen. In: História da Historiografia, n.1, 2008. www.ichs.ufop.br/rhh 1 11 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 historiografia. Se, de fato, uma obra é construída com método, por outro, a história da historiografia, o aspecto formal e comunicável da pesquisa histórica, responde a outras perguntas. Deixarei de lado, neste espaço, as considerações de Rüsen sobre as operações processuais da pesquisa histórica (heurística, crítica e interpretação) por não ter nada a acrescentar ao assunto. Interesso-me, na verdade, pelas operações substanciais: analítica, hermenêutica e dialética. E é neste sentido que meu argumento seguirá, sem, em momento algum deixar de lembrar como a construção feita por Rüsen é idealtípica A função terapêutica atende a uma necessidade humana: a de reconstruir sua identidade no tempo. Esta identidade se desfaz mediante três formas de experiência temporal: a do tempo humano, do tempo natural e do tempo histórico. Segundo Rüsen, “o tempo humano é experimentado sempre que as mudanças do homem e do seu mundo podem ser tornadas inteligíveis por meio de intenções” (RÜSEN, 2007: 155). Podemos entender que o assassinato de John Kennedy, tendo sido ele cometido por Lee Harvey Oswald (na versão da Comissão Warren) ou por alguma outra sinistra conspiração, ocorreu devido a intenções humanas planejadas, desejadas e bem sucedidas na realidade. E é a dúvida sobre as razões da intenção do assassinato de JFK que levam os historiadores a pesquisar historicamente. A necessidade de um método histórico como elaboração de intenções e da experiência do tempo humano dá-se sempre quando enfrentamos situações imprevisíveis, isto é, nenhuma condição objetiva poderia prever que tal ou qual coisa poderia acontecer. Já o tempo da natureza “é experimentado sempre que mudanças temporais do homem e de seu mundo dependem de circunstâncias e condições externas ao agir humano, não explicáveis como decorrências de intenções” (idem). É o que ocorre, por exemplo, com a atual crise ambiental. Não era intenção dos industriais de Manchester, no final do século XVIII, tornar insuportáveis os meses de verão nas cidades tropicais, muito menos alegrar os fabricantes e vendedores de aparelhos de ar-condicionado. O processo ocorreu por outros caminhos além dos intencionais. Não se pode, neste caso, usar o método apropriado para elaboração de intenções geradora de fatos imprevisíveis, pois a experiência é a de se sentir determinado pela circunstância histórica, de se sentir 12 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 impotente, uma marionete nas mãos dos fatores históricos existentes para além de nós. E o tempo se torna histórico quando há a determinação mutua entre condições objetivas e intenções subjetivas. Ou seja: quando percebemos que algumas coisas são possíveis, e, dentro de sua possibilidade, retroativamente explicáveis e compreensíveis mediante a coordenação de condições objetivas e intenções subjetivas. Sentimos que, embora sejamos limitados por uns tantos fatores históricos, isto não nos faz inteiramente previsíveis em nossas ações. Pois bem. Para cada uma destas experiências, um método. Para a experiência do tempo humano, vivido pela consciência da imprevisibilidade do processo histórico, deverá ser aplicado, segundo Rüsen, o método hermenêutico. Para a experiência do tempo natural, patente sempre quando nos sentimos tão determinados e previsíveis quanto os movimentos de rotação e translação da Terra, é cabível o que Rüsen chama de método analítico. Já para a experiência do tempo histórico, no qual intenções subjetivas e condições objetivas se articulam, formando o tempo histórico, deve ser empregado o método dialético. Cada método é uma terapia para uma crise de orientação específica (por exemplo: transtorno perante a imprevisibilidade, apatia perante a imprevisibilidade, espanto perante a possibilidade)1. Gostaria de fazer duas observações pontuais acerca da unidade metodológica da história. A primeira diz respeito ao lugar do marxismo dentro da unidade metodológica. Ao utilizar trechos de Marx e Engels para definir e ilustrar o método analítico, acabou por sugerir a redução do marxismo a uma possibilidade metódica. É bem verdade que o marxismo – ou certo tipo de marxismo – busca leis e utiliza procedimentos quantitativos. Um bom exemplo do marxismo “nomológico” e interessado em perceber regularidades e leis de transformação da história se encontra em Caio Prado Jr. Mas há algo mais a tirar do marxismo. Para ficar em um exemplo: o polonês Jerzy Topolski, renomado filósofo da ciência, em um excelente texto sobre metodologia materialista (cf. TOPOLSKI, 1989), demonstrou que o marxismo é, antes, dialético, justamente por articular as intenções dos sujeitos históricos sociais com as condições objetivas de sua vida. Uma análise materialista histórica haverá de considerar as duas formas de entendimento do processo histórico. Penso que a autêntica contenda deveria ser com a pretensão do materialismo histórico em ser uma unidade metodológica, uma “totalidade concreta”, para usar os termos de Georg Lukács (cf. SOCHOR, 1987). A segunda observação diz respeito a uma tipo de experiência de tempo não considerado por Rüsen, a saber, a da ruptura, tal como podemos aprender com Nietzsche e ver aplicada em Michel Foucault. Pode ser provado, é claro, que a escrita de inspiração foucauldiana da história pode ser inserida na unidade metodológica, mas aqui é o caso de se esticar a corda. De um lado, Foucault era, além de filósofo, erudito pesquisador de arquivos. E escrevia livros aproveitados ricamente pelos historiadores, como Vigiar e Punir, História da Loucura etc. Como ver o método por detrás destes livros? Parto da premissa de que há, sim, um método, desde que entendamos método aqui como passo fundamental para elaboração de uma crise de orientação. E qual crise seria esta, senão a diagnosticada por Friedrich Nietzsche na Segunda consideração intempestiva? Segundo o filósofo, o excesso de história soterra a possibilidade de ação humana, na medida em que a história antiquaria nos prende excessivamente às “raízes” do passado, a história monumental nos prende a um modelo a ser imitado, e a história crítica simplesmente nos tira toda e qualquer referência ao negar todo o 1 13 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Aplicação do método hermenêutico Novamente, afirmo que estou ciente de que Rüsen trata de tipos ideais, mas confesso que gostaria de acrescentar algumas considerações às páginas de Reconstrução do Passado dedicadas à hermenêutica, e, assim, mostrar sua aplicabilidade no dia a dia, na prática de pesquisa a ser ensinada mesmo para alunos de iniciação científica – contato, claro, que os mesmos partilhem dos pressupostos de uma concepção hermenêutica. Para Rüsen, a heurística hermenêutica “(...) traz para o horizonte do interesse de pesquisa as fontes que podem valer como intencionalidade objetivada” (RÜSEN, 2007:140). Por exemplo: programas políticos, manifestos, cartas, diários etc. Já a crítica hermenêutica “retira das fontes fatos que são compreensíveis sobretudo por causa das ações intencionais e de suas complexas conexões sincrônicas e diacrônicas” (RÜSEN, 2007:141). Para ilustrar: se quero me assegurar (e a crítica é a operação que garante credibilidade às informações que nos interessam) se um determinado texto de autoria desconhecida foi escrito por um determinado artista, posso verificar, sincronicamente, o uso do vocabulário em outros textos da mesma época, e, diacronicamente, se tal texto trata de temas insinuados e já em desenvolvimento. historiciza a compreensão ao Já interpretação hermenêutica “(...) interpretar mudanças temporais como transformações das intenções e interpretações do agir que causa a mudança” (RÜSEN, 2007:143). Não me parece claro o que Rüsen entende por historicizar, mas creio que seja a interpretação de uma “(...) subjetividade dos processos históricos que caracteriza o sujeito de referência de uma história, e não o sujeito agente de um determinado ato” (idem). Parece-me que Rüsen indica que não se trata de um resgate da biografia, mas, sobretudo, de uma formação, ou até mesmo de uma idéia. Penso que o argumento ficaria ainda mais interessante se Rüsen se baseasse diretamente na teoria compreensiva de Droysen, que considera passado. A história, então, é erudição (acúmulo de dados do passado), moralista (se embebe de clássicos para lustrar a própria imagem) e ressentida (nego o próprio processo histórico). Vamos e venhamos: são três maneiras nada edificantes de se vivenciar o passado. O passado, então, segundo Nietzsche, precisa ser plástico, adquirir nova forma no presente. A pergunta a ser formulada: será o método arqueológico (ou genealógico) capaz de elaborar essa crise de orientação? 14 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 igualmente a interpretação “do sujeito de um ato” uma etapa parcial da compreensão histórica. Johann Gustav Droysen foi tema de tese de doutorado de Rüsen. E seu método compreensivo é dos mais úteis e aplicáveis, além de bastante sagaz. Droysen dizia que a interpretação histórica se divide em quatro etapas (cf. DROYSEN, 2009, pp.54-59): (a) pragmática; (b) interpretação das condições; (c) psicológica; (d) interpretação das idéias. A interpretação pragmática remete ao sentido original da palavra grega “pragma”, ou seja, objeto. Trata-se da interpretação dos vestígios, de resíduos históricos que restaram no presente, que resultará no conhecimento de um sentido empírico. Por exemplo: ao tentar reconstruir da maneira mais fiel possível uma estátua antiga quebrada, o historiador poderá, evidentemente, na falta de um desenho original ou da peça irreversivelmente ausente, procurar outras estátuas do mesmo escultor, ou ainda outras estátuas de escultores da mesma época no lugar de origem da estátua partida e em outros lugares onde o escultor tenha estado etc. Sua pretensão é a mais objetiva possível, mas o procedimento de comparação já é, em si, um ato subjetivo, porquanto não está dada na fonte (a estátua quebrada) a remissão a outras fontes. Portanto, é necessária a criação de um campo mais abrangente de fontes (podemos chamá-lo de contexto) para que seja elucidado um aspecto altamente objetivo, factual e pontual. Passa-se daí à segunda etapa, qual seja, a interpretação das condições, ou seja, dos fatores históricos existentes para que tal aspecto objetivo e factual adquira sentido. Tal interpretação chega a um sentido lógico, ou seja, aquela que busca identificar as determinações causais necessárias (mas muitas vezes insuficientes) para o entendimento de uma situação histórica. Droysen os percebe no tempo e no espaço. Mas a história, por ser feita de ações humanas, não é uma coleção de reações a condições dadas. A ação do homem não é condicionada naturalmente e pode se dar de maneira distinta mesmo em situações semelhantes. Portanto, o historiador não pode entender nomologicamente, como se fosse mero verificador de leis naturais, mas como alguém que precisa compreender o sentido da ação em uma determinada condição necessária ainda que não suficiente. Daí o terceiro nível: a interpretação psicológica, a tentativa de reconstruir as intenções dos agentes históricos em dadas circunstâncias que dariam, portanto, um sentido 15 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 empático, baseado nas ações dos homens. Geralmente, considera-se esta a etapa final da interpretação hermenêutica, ou seja, a reconstrução de intenções dos agentes, possibilitada pela empatia intersubjetiva. Afinal, se fosse o caso de meramente se transpor para o passado, tentando entrar na pele do objeto, o intérprete se anula. Droysen percebe tal contradição. E mais: não somente se anula, mas parte do pressuposto de que (a) o objeto tinha perfeita lucidez do que estava fazendo, e não tinha a menor possibilidade de se iludir; (b) o objeto manteve-se o mesmo durante grande parte de sua vida historicamente significativa, de modo que posso tomar uma biografia como base segura, estável e essencial para interpretar. Daí a necessidade da etapa final de interpretação, na qual ela se perfaz: a interpretação das idéias, ou seja, o sentido mais profundo que está em curso a partir das ações dos agentes históricos: o sentido ideal ou espiritual. O exemplo preferido de Droysen é Alexandre Magno: ao unir ocidente e oriente, de modo algum ele poderia imaginar que estava preparando o terreno para o cristianismo, religião originalmente oriental que se tornou ocidental E como aplicar na pesquisa as quatro etapas do processo interpretativo? E, sobretudo: o que se ganha com ele? Um primeiro ganho se dá na forma de organização das leituras. Banal, mas algo que efetivamente desconcerta alunos e até mesmo pesquisadores experientes. Dou o exemplo de minha própria pesquisa sobre Droysen. Ao tentar compreender o conceito de Bildung na teoria da história de Droysen, evidentemente, tive que analisar, em primeiro lugar, a própria Historik (1857). Nessa primeira etapa, é necessário fazer uma leitura detalhada do texto, conhecer cada passo, item, argumento. É o momento do famigerado fichamento. Podem entrar, na primeira fase, as leituras comentadas sobre a Historik (e não sobre todo o Droysen, por exemplo). Na segunda fase, da busca do sentido lógico, me perguntei: quais são as condições sem as quais este texto seria impossível? Claro, há uma bem óbvia: a língua alemã. Mas o caso é outro: ver, a partir de minha pergunta sobre a idéia de Bildung, quais autores foram fundamentais para Droysen, ou seja, autores citados por ele ao longo da obra. Três nomes se destacaram: Hegel, Wilhelm von Humboldt e Ésquilo. Pus-me, então, a ler as obras referidas dos três. E, se o tempo permitisse, obras comentadas sobre os autores escolhidos. 16 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Na terceira etapa, a da busca do sentido psicológico, fiz o levantamento das obras escritas por Droysen antes de 1857, bem como se textos de cunho político, que explicassem as lacunas deixadas na leitura direta da Historik e na análise de textos influentes. A referência constante a um Ésquilo, por exemplo, me levaram a estudar suas obras sobre helenismo e, sobretudo, reflexões sobre a cultura grega e, claro, sobre a tragédia. Tentei encontrar, também, como sua visão política poderia ter sido influenciada ou influenciado sua concepção de história. Aqui foram obrigatórias as leituras de livros gerais sobre a obra e a vida de Droysen, isto é, textos que não se dedicavam exclusivamente à teoria da história, mas também sobre helenismo etc. Por fim, o exame da idéia de Bildung, tema importante para Droysen, mas que jamais foi tema central e explícito de algum livro ou curso durante toda sua vida. Neste momento, os temas se juntam. Foi importante ver como Hegel e Humboldt o trataram, ou se ele aparecia nas obras de Droysen sobre Grécia antiga. E, claro, as leituras sobre o tema da Bildung, mesmo aquelas sem qualquer menção a Droysen, foram fundamentais (Georg Bollenbeck, Franco Moretti, W.H. Bruford, Aleida Assmann, Koselleck, entre outros). A organização da leitura permite, além de traçar com mais racionalidade o programa de trabalho (sempre em relação ao tempo), torna viável também organizar o debate sobre o assunto, viabilizando a identificação de níveis de argumentação. Este seria o segundo ganho. Na medida em que um autor pretende argumentar no nível do sentido empírico, farei o debate entre ele e com ele neste nível. Se um outro pretende argumentar no sentido ideal ou espiritual, não poderei argumentar contra ele no plano meramente empírico ou mesmo lógico. Veja o caso da imensa literatura sobre o Holocausto (permitam-me sair um pouco de Droysen): não creio que seja muito produtivo comparar as biografias de Hitler escritas por Ian Kershaw e Joachim Fest com a visão filosófica mais ousada de Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém. As primeiras podem ser comparadas com outro estudo, fortemente baseado na idéia da reconstrução da intencionalidade (como a obra Ordinary Men, de Christopher Browning), ao passo que a segunda se mede melhor se lida em paralelo ao famoso Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. 17 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Há ainda um terceiro ganho, este, a meu ver, inestimável. O método hermenêutico, como qualquer outro, exige rigor no exame das fontes (a interpretação pragmática), mas durante o exercício do rigor, o pesquisador já se vê na necessidade de interpretar: desde a comparação entre ruínas e artefatos, como no exemplo de Droysen, seja no mais simples fichamento, no qual o leitor precisa escolher, selecionar, posto que nenhum autor dirá qual passagem mais ou menos importante do texto. Portanto, o estudioso já se vê obrigado a discernir, mesmo que no plano mais objetivo possível, o essencial do secundário. Tudo isto até chegar ao nível da interpretação das idéias, impossível sem que se insira um sentido ausente nas fontes, mas capaz de articulá-las de maneira verossímil. E é aí que o pesquisador se vê implicado no processo do conhecimento. Subjetividade não é arbitrariedade ou capricho, mas lenta e laboriosa construção. E só é atingida após as etapas da pesquisa, percorridas de maneira mais ou menos consciente. O resultado, quando atingido (e não é fácil), é a experiência de pensar o próprio pensamento enquanto pensamos o objeto. E aí a metodologia passa a ser algo bem mais importante do que uma disciplina monótona ou um item de projeto a ser eventualmente financiado por uma instituição de fomento. É processo de reconhecimento. Conclusão Jamais negaria que adoto a hermenêutica como metodologia, mas, sobretudo em sala de aula, é importante mostrar como cada um dos procedimentos metodológicos – os de matriz analítica e os de matriz dialética – são ferramentas igualmente úteis. O fundamental é que o aluno perceba qual a mais adequada, em primeiro lugar, ao seu conceito de processo histórico. É isto o mais complicado, pois incentivar o aluno a uma escolha específica é inútil; o fundamental, penso, é fornecer critérios e instrumentos que permitam um embasamento teórico e uma elaboração metodológica coerentes. E, assim como no teatro, o estranhamento não deve tirar o prazer pela cena, isto é, pela empiria, mas, antes, potencializá-lo. 18 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESGRANGES, Flávio. A arte do espectador: contexto de uma formação. In: ______. A Pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003 DROYSEN, Johann Gustav. Historik. Stuttgart; Bad-Canstatt: Fromann-Holzboog, 1977. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do Passado – Teoria da História II: Os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora da UnB, 2007. SOCHOR, Lubomír. Lukács e Korsch: a discussão filosófica dos anos 20. In: HOBSBAWM, Eric (org.) História do marxismo, vol.9. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. TOPOLSKI, Jerzy. Historical explanation in historical materialism. In: Poznań Studies in the Philosophy of the Sciences and the Humanities, 1989, v. 19. 19 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Cultura Política e Historiografia Alemã No Século XIX: A Escola Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift. Professor Adjunto de Teoria da História Julio Bentivoglio PPGHIS-UFES E-mail: [email protected] RESUMO A constituição da ciência histórica alemã no século XIX coincidiu com um momento ímpar da própria história da Alemanha – o processo de unificação política e de formação do Império – no qual a investigação histórica esteve direta ou indiretamente relacionada à emergência do nacionalismo e à política prussiana. Naquele período, duas escolas históricas se tornaram referências aos jovens historiadores: a escola rankeana e a escola histórica prussiana. Este artigo pretende caracterizá-las e discutir a formação da cultura historiográfica germânica oitocentista tomando como referência a Historische Zeitschrift. Palavras-Chave: teoria da história; história intelectual; historiografia alemã; século XIX. ABSTRACT The constitution of the German historical science in the nineteenth century coincided with an unprecedented moment of the history of Germany – the process of political unification and formation of the Empire – in which historical research was directly or indirectly related to the emergence of nationalism and Prussian policy. At that time, two schools have become historical references to young historians: the Rankean school and the Prussian Historical Pchool. This article aims to characterize them and discuss the formation of the 19th century Germanic cultural historiography taking the Historische Zeitschrift like reference. Keywords: theory of history; intellectual history; german historiography; nineteenth century. Tarefa difícil definir escolas históricas, delimitando-as num certo tempo e espaço, localizando suas idéias de força e os elementos que conferem identidade aos historiadores que as compõem. Um recurso que permite um primeiro passo nesta direção é analisar seus expoentes, bem como sua produção o que, invariavelmente, nos leva a um determinado periódico. Tal como podemos 20 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 vislumbrar uma escola dos Annales nas páginas da revista homônima ou uma Nova Esquerda Inglesa nos artigos da New Left seria possível identificar uma Escola Histórica Prussiana nas páginas da Historische Zeitschrift? Lamentavelmente a historiografia alemã durante o século XIX foi reduzida a uma imagem distorcida e caricata de um historiador só: Franz Leopold von Ranke. Como se toda a produção historiográfica germânica adotasse a escrita rankeana da história. Essa imagem duradoura que surge ainda hoje em certas interpretações (FUNARI & SILVA, 2008) oblitera a existência de diferentes escolas – ou movimentos – em solo alemão durante o oitocentos, das quais se destacaram de um lado Ranke e seus seguidores e de outro a Escola Histórica Prussiana, tal como localizam os intérpretes (Iggers, 1983) (SOUTHARD, 1995). É este o objeto das linhas que se seguem, discutir a historiografia germânica em suas linhas mais gerais e analisar o contexto histórico em que foi produzida, tomando como referência a Historische Zeitschrift (Revista Histórica), criada por Heinrich von Sybel em 1859, periódico que existe até hoje e oferece um panorama bastante sensível da produção historiográfica alemã. Em Michel de Certeau (2002) encontramos uma chave analítica acurada para se pensar a operação historiográfica e, por conseguinte, a produção individual e coletiva dos historiadores, visto ser resultante da relação entre determinados processos de institucionalização – os lugares –, a conformação de determinadas regras ou métodos – as práticas – e, por fim, a expressão e materialização de um saber consubstanciado em regimes de escrita. Em outras palavras, nesta operação observa-se a reprodução de algumas estratégias funcionais: a institucionalização e reunião em torno de centros universitários privilegiados, a adoção de procedimentos metodológicos semelhantes e o exercício de uma forma de escrita, que, a seu modo, privilegia um periódico particular; responsável por integrar os sujeitos do saber, as práticas e os circuitos de circulação do conhecimento histórico, produzindo um vínculo entre as universidades, os historiadores, as associações científicas e os arquivos, garantindo a gênese e a divulgação das idéias do grupo. Longe de querer propor um esquema, tenho me convencido de que as escolas históricas dos séculos XIX e XX parecem seguir um certo desenho: sua duração – constituição e influência – não costuma exceder um século; orientam-se a partir de um grande centro, uma universidade que se destaca e projeta suas 21 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 obras históricas que são reconhecidas e traduzidas em outros países1 e, por fim, cujo programa e identidade do grupo é cristalizado por meio de um instrumento de difusão fundamental, uma revista, uma coleção, uma série. Seria possível localizar ainda outras iniciativas que consubstanciam as escolas, relacionadas ao acesso e controle privilegiado de certas fontes. Senão vejamos, a Escola Histórica Prussiana sediada na Universidade de Berlim tornou-se pujante já em meados de 1840, notabilizou-se pela publicação da Monumenta Germanicae Historica e uma das referências centrais do grupo foi a Historische Zeitschrift , tendo seu ocaso ocorrido em meados da virada do século após a querela de Karl Lamprecht.2 O interesse por este tem surgiu-me em meados de 2003, quando me convenci de que os historiadores alemães oitocentistas tinham sido reduzidos a um lugar-comum. A emergência da história produzida na Alemanha atualmente, que é bastante conhecida pelos leitores brasileiros, a partir, sobretudo, do contato com Gumbrecht (2003), Rüsen 2001) e Koselleck (2006), conduziu-me ao pensamento histórico germânico do século XIX. E revelou que ele não passava exclusivamente pela obra de Ranke, que ainda hoje é muito mal-conhecida3, mas também por Niebuhr, Droysen e Gervinus, estes dois últimos expoentes da chamada Escola Histórica Prussiana. Da leitura destes historiadores estampou-se a urgência para que sua obra fosse estudada. Assim surgiram as traduções do Manual de Droysen (2009) e dos Fundamentos de teoria da história (2010) de Gervinus. O despertar epistemológico da História, vivido na Alemanha do século XIX referenda um momento singular em que o pensamento histórico, ou suas idéias-força parecem tomar consciência de si, historicizando-se, situando seus lugares e sua pertença, confrontando sua própria história e projetando-se no 1 E é curioso que quase todos estes historiadores iniciam sua carreira em alguma universidade periférica e depois migram para um pólo maior e mais importante na área. Deste centro passam a peregrinar e conferenciar em outros centros importantes, em outras universidades dentro e fora de seu país. 2 A escola metódica francesa, composta por Monod, Fagniez, Langlois e Seignobos dentre outros, de modo semelhante, aglutinou-se em torno da Revue Historique de 1876 – nome idêntico à revista alemã – e da Sorbonne irradiando um tipo de escrita da história que depois seria combatida por uma nova escola, os Annales, que inicia suas atividades a partir de 1929 na revista homônima, Bloch e Febvre também se deslocam de Estrasburgo para a Sorbonne e até o final do século XX foram uma influente corrente historiográfica. A micro-história segue padrão similar, nas páginas dos Quaderni Storici. 3 Basta lembrar que, a rigor, existem apenas dois ensaios sobre o pensamento deste autor, o primeiro redigido por Sérgio Buarque de Holanda (1981) e o último, publicado em 2010, por sinal uma análise que nada deixa dever ao célebre historiador, de autoria de Sérgio da Mata (2010). 22 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 futuro. Nascia a ciência histórica. Outro detalhe importante era a convergência particular de ciência e política, visto existir um diálogo intenso entre pensamento histórico e ação política, haja vista a história subsidiar e ser subsidiada pelo debate político em torno da unificação alemã, dos conflitos territoriais e do nacionalismo emergente de tal maneira que nem mesmo Ranke escapou a isso; o que por si desmistifica a interpretação ingênua e os ataques desferidos contra seu pretenso apartidarismo. Ao contrário de Karl Marx, cujas obras históricas procuravam produzir ação junto ao povo, em particular os trabalhadores, aqueles historiadores prussianos escreviam para os príncipes e para a burguesia, embora não desprezassem o diálogo junto à opinião pública, mas para isso se serviam da imprensa. Como se trata de uma pesquisa em desenvolvimento, talvez existam mais perguntas e indícios que respostas categóricas neste artigo. A meta, bastante modesta, será pensar a Escola Histórica Prussiana a partir da Revista Histórica, uma das primeiras do gênero em todo o mundo. Ela foi anterior às congêneres: Revue Historique (1876) dos metódicos Monod e Fagniez, English Historical Review (1886) fundada na Univesidade de Oxford ou os Annales (1929) de Marc Bloch e Lucien Febvre. E também relacioná-la com um perfil e uma análise sobre a trajetória dos historiadores que a compunham. Este texto expressa, portanto, tanto a necessidade da desfiguração de lugares-comuns da historiografia alemã durante o século XIX, quanto as dificuldades inerentes àqueles que se enveredam pelo estudo da história da historiografia. E vai enfatizar a convergência entre o desenvolvimento da ciência histórica alemã e o processo de unificação política. Vínculo, por sinal, percebido por um dos historiadores alemães mais conhecidos do período, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1904, Theodor Mommsen: Eis o horizonte do futuro: organizar o Estado institucionalizado de forma que o comércio alemão, a manufatura alemã, a arte alemã, a ciência alemã, a sociedade alemã e a vida alemã continuem equiparadas ou se equiparem ao poder da nação. (THEODOR MOMMSEN, 1871, Apud MARTINS, 2010) Em muitas alusões à historiografia alemã do século XIX é comum referiremse a ela como sendo positivista, factual e conservadora (FUNARI & SILVA, 2008). Pesa sobre aqueles historiadores e, em especial, sobre o pai desta história alemã o anátema de uma condenação categórica, afinal Ranke parece ser a síntese de tudo 23 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 aquilo que não se deve fazer em História, algo que poderia ser resumido numa fórmula: “narrar os fatos como aconteceram, ser objetivo e imparcial (Cf. CARDOSO, 1988). Como se fosse fácil resolver estas questões em um autor cuja obra é tão vasta quanto complexa1. Creio que sob esta censura ataviaram exatamente aquilo que todo historiador deveria evitar: reproduzir acriticamente uma máxima, incorrer em anacronismo e não tomar toda uma historiografia a partir de apenas um representante. Esta é a primeira imagem a ser desfigurada, que elimina esta leitura reducionista, superficial e equivocada. A complexidade da definição para o que recentemente surge sob a rubrica de história da historiografia exige que algumas advertências sejam levantadas. A primeira remete à própria historicidade do conceito de historiador, um léxico antigo que sofreu mutações no pensamento ocidental em meados do século XIX, quando se passou a distinguir historiadores de cronistas ou de memorialistas. A segunda ao problema da relação autor(es) e obra(s), ou ainda, num sentido mais amplo, da construção de identidades em um grupo específico de historiadores. De certo modo, esta questão é a mesma que ocorre nos estudos consagrados à história intelectual, embora em outro registro. Nos estudos franceses consagrados ao tema, destacam-se os trabalhos de Jean-François Sirinelli e de Michel Winock com uma ênfase sociológica sobre as cartografias de intelectuais, suas redes de solidariedade e de oposição, seus modos de integração e em torno da formação de gerações (SILVA In: LOPES, 2006:15s). A referência maior é o pensamento de Pierre Bordieu, sobretudo em suas noções de campo e de habitus (SILVA In: LOPES, 2006:16). A esta influência francesa existe uma outra da New Intellectual History anglo-saxã, que entende o texto como uma relação de forças, um nexo entre perspectivas e níveis diversos que se configuram em determinadas obras e autores (KIRSCHNER in: LOPES, 2006:33). Nesta tendência temos a influência sedutora da hermenêutica filosófica e do desconstrucionismo derridadiano e seu maior expoente é, sem dúvida Dominick La Capra (KIRSCHNER in: LOPES, 2006:34-5). Hayden White, a meu ver, apresenta um diagnóstico bastante elucidativo acerca do campo. Ele se divide entre os analistas Concordo com Sérgio da Mata (2010) acerca da existência de um verdadeiro mito historiográfico a respeito de Ranke. 1 24 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 que 1) assumem uma posição de acordo com uma ou mais das hermenêuticas clássicas do século XIX (Hegel, Dilhey, Marx, Freud) ou seus herdeiros do século XX; 2) advogam uma teoria filológica neohumboldtiana da linguagem ultimamente reelaborada e refinada por Gadamer e Ricoeur, ou então 3) subscrevem abertamente a teoria póssaussuriana do signo lingüístico, dos quais são expoentes, ainda que de forma diferenciada Foucault e Derrida (WHITE, 1990:187-8). Neste registro, pode-se ponderar que, a seu modo, Pocock e Skinner quando subsumem as criações individuais a um contexto maior, não deixam de ter sua utilidade para a história intelectual e para a própria história da historiografia (Cf. JASMIN & FERES JÚNIOR, 2007). Evidentemente, é preciso considerar as críticas de David Harlan ao chamado contextualismo, sobretudo em Skinner, com sua hermenêutica de fundo romântico ancorada na proposta teórica de resgate das intenções originais do autor (HARLAN, 1989:585). Ponto alto das contribuições recentes, sem dúvida devem ser localizados tanto em Koselleck, quanto em Jörn Rüsen, visto ambos terem dedicado estudos ao problema da historiografia e de como deve ser subsumido à análise da consciência histórica (KOSELLECK, 2003, RÜSEN, 2008). Como se vê, o exercício de crítica historiográfica a respeito da história da historiografia não é algo fácil. Embora existam trabalhos clássicos1 a tarefa apresenta algumas dificuldades, sobretudo acerca da melhor maneira de avaliar o sentido e o efeito produzido pelas obras. Acrescente-se aí os problemas inerentes de crítica, ou análise. Ou, como nas palavras de Barthes: A crítica funciona ordinariamente (não é uma censura), quer ao microscópio (esclarecendo com paciência cada pormenor filológico, autobiográfico ou psicológico da obra), quer ao telescópio (perscrutando o grande espaço histórico que envolve o autor) (2004:27). Numa tentativa de síntese eu diria que o debate a respeito da história da historiografia está marcado ora pela ênfase na constituição do autor (e da autoria – sua formação, mestres, conceitos-chave), ora pelo problema da publicação das obras (e do que elas querem dizer), ora pelo do seu efeito (sua aplicação em outras obras), ora pelo recurso à contextualização (pontos de inserção e de dispersão em um determinado lugar e período, ou ainda face às disputas existentes). A empreitada se torna ainda mais árdua quando, em meio às diferenças de formação e de orientação epistemológica se procuram identidades que configurem a existência de uma geração ou de um grupo suprimindo, muitas vezes, A lista de autores é exaustiva, mas, dentre eles se destacam Croce (1953), Momigliano (1993), Gooch (1959), Collingwood (1972) e Iggers (1983) dentre outros. 1 25 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 singularidades, quando não, elidindo a própria autoria, dissolvendo-a em práticas ou em ideários coletivos. O desafio, portanto, é o de discutir a experiência daqueles historiadores e sua trajetória política e historiográfica para compreender seu percurso intelectual no contexto da unificação alemã, sem diluir trajetórias individuais em uma imagem coletiva, a fim de restituir vida àqueles historiadores embalsamados por clichês, trazendo ao primeiro plano da cena os que foram eclipsados pela magnitude de Ranke. Retratá-los não como figuras ingênuas da historiografia alemã oitocentista ou meros intelectuais conservadores e monarquistas, mas como historiadores complexos vivendo em um período dramático da história européia. Em se tratando da apresentação de alguns resultados preliminares creio que talvez estes pressupostos não estejam plenamente atingidos neste artigo, pois ele apresenta um momento de uma pesquisa em andamento, não tendo a pretensão de ser conclusivo. O espaço de tempo vivido entre 1806 e 1871 é crucial para se entender a história alemã. Entre a derrota fragorosa em Iena para Napoleão Bonaparte e a vitória sobre a França e anexação dos territórios de Alsácia e Lorena por Otto von Bismarck, que marcaram a fundação do Império Germânico, ocorreram eventos que distinguiram a emergência do nacionalismo alemão e o comportamento dos estados germânicos em meio ao processo de unificação que seria capitaneado pelo Reino da Prússia. A ocupação napoleônica marcou a emergência do nacionalismo e o desejo de integração alemã. Os excessos da Revolução Francesa e de Napoleão atiçaram os incipientes sentimentos nacionais das pessoas e fizeram-nos irromper em impiedosas labaredas. A nacionalidade tomou o lugar da humanidade. Ao esforço para se realizar uma cultura humana de caráter universal, seguiu-se o que visava consolidar uma cultura nacional (...). e a própria ciência da história nada hoje com bela desenvoltura na torrente nacional (SCHÄFER, 1884:I). Vale lembrar, contudo, que em 1815 não havia instituições representativas na Prússia, mas já as havia na Bavária, em Baden e em Wüttemberg. De qualquer modo, para a maioria dos historiadores alemães, a dominação napoleônica evocou o nacionalismo germânico. Breuilly indica que entre 1815 e 1848 teria havido uma dominação cooperativa entre austríacos e prussianos dos estados germânicos (2002:27). Não creio. A exclusão da Áustria do Zolllverein deixa isso muito claro. Em termos bem simples, as elites alemãs – em especial, a velha classe agrofeudal em declínio material, inúmeros magnatas em ascensão na 26 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 indústria e nos bancos, e os professores universitários – passaram a se ver como guardiães do caráter especial da nação: pensavam ou imaginavam que a Alemanha estava sendo assediada por um conluio de inimigos externos e, mais importante, de inimigos internos (STERN, 2004:13). Os historiadores não poderiam fugir a estas demandas. Concomitante a estes eventos formava-se a ciência histórica e se constituía uma esfera pública onde começava a se destacar a figura do intelectual ocupando espaço privilegiado no cenário político, na burocracia estatal e se projetando junto àquela sociedade aristocrática. E muitos destes intelectuais foram, depois de Leopold von Ranke, historiadores, tal como Georg Gervinus, Johann Gustav Droysen, Karl Wecker, Friedrich Dahlmann, Georg Waitz, Heinrich von Sybel, Maximilian Duncker, Karl Rotteck, Ludwig Häusser, Theodor Mommsen, Rudolf Haym, Heinrich Treitschke e Hermann Baumgarten, que pareciam ter o estudo do passado e a atuação política no presente como vocações. A atividade deles foi marcada não somente pelo vivo sentimento de agir integrando o pensamento histórico e seus conceitos às palavras de ordem usadas na imprensa e na luta política, mas também por um compromisso com determinadas forças e seus projetos políticos. O objeto contemplado, portanto, parece ilustrar um expressivo ponto de convergência no qual história intelectual, história e historiografia se articulam, numa constelação particular, que projetou historiadores e a própria história, intelectual e cientificamente, influenciando gerações de políticos na Alemanha e também de historiadores em toda Europa e em várias partes do mundo. Só para se ter uma idéia do destaque dos historiadores nesta esfera pública em formação, basta lembrar que muitos deles foram conselheiros políticos, editores de jornais, deputados gerais ou ministros. O próprio Ranke não escapou a este processo, pois editou o Politischhistoriche Zeitschrift entre 1832 e 1836 a pedido da Casa de Brandemburgo, bem como foi conselheiro do rei Frederico IV da Prússia e de Maximiliano I da Baviera (BREISACH, 2007:262). O Historisch-Politische Zeitschrift foi criado a pedido do conde de Bernstorff, o ministro dos Estrangeiros, que em 1833 tinha duas metas claras: combater os radicais liberais de esquerda e afirmar a autoridade do governo prussiano face às exigências do liberalismo político (IGGERS, 1983:70). O von em seu sobrenome indica o título de nobreza (barão) por ele obtido em 1865. E vale lembrar que suas aulas eram concorridas, freqüentadas não somente por 27 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 estudantes, mas também por autoridades, militares, políticos, profissionais liberais e até integrantes da burocracia prussiana. Nem ele pode fugir do reflexo que as guerras napoleônicas e depois a Restauração tiveram sobre a formação do nacionalismo (Cf. HOBSBAWM, 1991) que ia ao encontro do interesse crescente pelo estudo das raízes históricas das diferentes nações européias, o que colocava a história como tematizadora do pensamento social. Não por acaso este processo foi acompanhado pela presença triunfante do historicismo como um verdadeiro paradigma adotado em vários saberes em formação (MEINECKE, 1997). Ao mesmo tempo, nesta ânsia pelo vivido, evidentemente que as técnicas e a natureza da própria história também foram revistas1, explicitando a gênese de uma nova consciência histórica na qual os historiadores redimensionavam suas experiências, seus projetos e a historicidade do momento em que viviam. Assim, tanto o passado quanto os saberes produzidos sobre ele viveram um despertar epistemológico que pode ser detectado em vários momentos. O primeiro destes momentos é a referência quase obrigatória ao pensamento histórico de Chladenius, que em sua Algemeine Geschichtswissenchaft de 1752 havia indicado o percurso metodológico mais adequado para se estudar o passado. Sua obra balizou a crítica e a escrita da história germânicas ao destacar o ponto de vista dos sujeitos históricos e dos historiadores-narradores, revelando que o conhecimento histórico é marcado pela crítica, tanto da perspectiva do historiador quanto dos testemunhos. O que não significa exatamente a aceitação de que os estudos históricos estejam contaminados pela sua subjetividade, mas o reconhecimento da existência da própria subjetividade, ferramenta imprescindível para uma correta compreensão, outro conceito fundamental por ele empregado e que seria fundamental na constituição do método histórico posteriormente. A crítica dos testemunhos, a compreensão do passado e a busca pela objetividade conheceram em Chladenius um crítico veemente do ceticismo ou do relativismo na História. O segundo momento reside na obra de Barthold Niebuhr, sobretudo sua História romana, na qual desenvolveu inovadoras técnicas de crítica histórica documental, buscando evitar tanto o anacronismo quanto a reprodução acrítica do É curioso neste sentido ver a hesitação e o uso feito por Ranke do termo Historie em lugar de Geschichte (RANKE, 2010) em muitas passagens de sua obra. 1 28 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 que diziam os documentos. Partindo dos avanços recentes tanto da filologia quanto da hermenêutica, Niebuhr indicou para os historiadores duas operações fundamentais da história: a heurística e a sistemática. Sua contribuição é enorme, bem como a repercussão de suas pesquisas; basta ver seu reconhecimento por Ranke e Droysen; ambos revelam sua dívida metodológica a Niebuhr, que realmente constituiu um momento de inflexão nas técnicas de pesquisa histórica na Alemanha. Essa tradição veio, sobretudo, da escola filológica de Göttingen, que promoveu o exame crítico e rigoroso dos clássicos antigos e das fontes, preconizada por Wolf e Böckh. Este último foi o orientador de Droysen em seu doutorado. Junto com Wolf foram responsáveis pela disseminação da filologia e também expressavam a valorização pelos Estudos Clássicos no interior do pensamento germânico, ao lado de nomes como Schleiermacher, Schelling, Schiller ou Humboldt. O terceiro momento surgiu com Wilhelm von Humboldt e, para ser mais preciso, com sua conferência inaugural proferida em 1821 na Universidade de Berlim: A tarefa dos historiadores. Ali se encontra a agenda científica dos historiadores prussianos, seu programa fundamental, adotado como referência por toda aquela geração. Competiria ao historiador reunir os fatos, procurando seus nexos, identificando suas forças motrizes e reproduzindo-os por meio de uma exposição narrativa. Nada poderia ser mais claro. Caberia ao historiador seguir procedimentos científicos e não abandonar a atividade criadora em seu ofício. Propagador do historicismo, Humboldt foi, ao lado de Chladenius e de Niebuhr, uma das maiores influências sobre o pensamento de Ranke e de sua geração. Seu nome ficou associado à Universidade de Berlim, capitaneada a um dos centros nevrálgicos do pensamento germânico, cujo programa e organização foram por ele reformulados tornando-se referência para reformas universitárias posteriores. Lecionar em Berlim era meta almejada por muitos professores de então. Aquela universidade, sobretudo graças a Ranke e a Hegel, tinha seus postos cobiçados por todo historiador ou filósofo que desejasse ter projeção em sua área, tornando-se um pólo irradiador de novas doutrinas, e eles tiveram o mérito de serem consagrados em vida não só na Alemanha, mas em toda Europa. Um quarto momento corresponde ao desenvolvimento dos trabalhos de Ranke e Droysen junto à Universidade de Berlim: definindo a relação entre teoria e 29 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 prática do novo saber. O modo como Ranke escolhia seus objetos de estudo, a forma como submetia as informações à crítica, bem como suas narrativas profundamente articuladas e expressivas conferiram-lhe uma posição de destaque. Mas ao seu lado havia outro gigante, Droysen, responsável por desenvolver uma verdadeira teoria da história que consolidou o campo epistemologicamente, dotando-o da autonomia necessária face aos demais saberes que o destacou perante sua geração. Ao que tudo indica, embora cioso do método, interessava mais a Ranke a prática, a pesquisa e a escrita da história, ao contrário de Droysen, que embora tenha escrito obras históricas absolutamente rigorosas e fosse excelente pesquisador, teve maior e notável êxito com suas reflexões de ordem teórica. Junto-os aqui, não somente porque foram contemporâneos, ou porque constituem a expressão maior do pensamento histórico germânico naquele período, mas também porque, embora fossem rivais e não tivessem uma boa convivência em Berlim, suas obras se complementam e referendam os fundamentos da operação historiográfica de então. Um dos debates permanentes em relação à história prosseguia, qual seja, o de se vincular a narrativa histórica aos domínios dos estudos literários. E foi para resolver esse conflito de fronteiras que Gervinus em seu Fundamentos de teoria da história, redigido em 1837, analisou a poética da história, estipulando os elementos constitutivos da narrativa histórica, distinguindo-a das narrativas ficcionais. Para além disso, propôs um modelo sugestivo para se analisar a história da historiografia ocidental bem como para se definir alguns gêneros existentes na escrita da história. Este corresponde a um quinto momento, visto distinguir a narrativa histórica da ficcional de uma vez por todas, e pensar a história como um gênero híbrido, mas específico, conferindo assim, um modelo genético de análise da historiografia. Pela primeira vez havia discutido com profundidade o problema da escrita da história, bem como havia exposto um novo modo de pensar a própria história da história. O último momento, a meu ver, reside na criação da revista Historische Zeitschrift (Estudos Históricos) em 1859 por Heinrich von Sybel, pupilo e discípulo de Ranke na Universidade de Berlim e amigo de Droysen desde as jornadas de maio de 1848 em Frankfurt. Ali se consubstanciou o que procurarei defender como sendo a efetivação de uma nova escola histórica e a constituição de um regime de 30 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 historicidade particular para a escrita da história na Prússia. Ela coroa todo o processo de formação e maturação de um tipo de história e surge quando as manifestações pró-unificação alemã se ampliaram, sobretudo na Prússia, contando com a participação de muitos daqueles historiadores. Sem dúvida a Historische Zeitschrift foi um ponto de encontro, propagador das idéias do grupo, projetando-o na Alemanha e no exterior. Sua influência explícita na Inglaterra, Itália, Espanha e nos Estados Unidos, foi, mais velada na França1. Ao lado da revista, forçoso é dizer que a editora Duncker & Humblot, tornou-se também uma referência para o grupo, uma das maiores na Alemanha, cujo nascimento se deu auspiciosamente com a criação da revista Athenaeum, publicada pelos irmãos Schlegel e que depois se projetou com a publicação das obras completas de Hegel e de Ranke. Nesta editora figuraram grandes obras produzidas pelo grupo. Ao tratar da Escola História Prussiana, Robert Southard (1995) revela que para nascer ela teve que superar o interdito rankeano: o não-envolvimento direto do historiador nos assuntos da política. Acredito, ao contrário, que a influência de Ranke tinha indicado que o intelectual ou historiador não é somente aquele que precisa se envolver diretamente nos acontecimentos políticos de seu tempo, mas cujo pensamento pode ser uma força capaz de produzir ação política no presente. Seja subsidiando ou sendo subsidiado por um determinado projeto político, seja imprimindo seus postulados nos acontecimentos do presente, seja agindo para refutar projetos ou postulados existentes. É preciso ainda lembrar que as universidades alemãs eram instituições estatais e que os graduados começavam a ocupar um lugar especial naquela sociedade. O Código Geral Prussiano havia incluído na sua classificação dos grupos sociais, além das tradicionais nobreza, burguesia e campesinato os servidores do Estado, incluindo nesta rubrica os diplomados2. Escolas e as universidades, afirmava o Código, “eram instituições do Estado e só podiam ser fundadas com autorização oficial” (RINGER, 1999, 37). Aquelas universidades passavam por um período de grande renovação nos estudos e nas disciplinas. Em Göttingen, o neohumanismo enfatizava o apreço pela cultura clássica, pelas raízes culturais germânicas e pelos estudos filológicos. Em Halle Embora seus livros sejam sempre lidos, alguns traduzidos e seus nomes sempre lembrados por Coulanges, por Monod, por Seignobos. 2 Allgemeines Landrecht für die preussischen Staaten, parte II, tít.VII-X, 1794. 1 31 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 surgia uma nova universidade, voltada para cursos mais técnicos e para as ciências aplicadas, como o Direito, a Administração e a Economia. Tratando daquelas universidades dirá Ringer que na “corte de Weimar e na Universidade de Jena, cidade vizinha, quinze anos brilhantes reuniram algumas das principais figuras do renascimento cultural alemão” (RINGER, 1999, p.35), como Schiller, Fichte, Hegel. A própria Universidade de Berlim, que se destacava agora como o centro nevrálgico prussiano, superando Praga1, Frankfurt, Göttingen e Leipzig, expressava o ideal de uma nova universidade, servindo de modelo para as futuras universidades alemãs, que alterariam seus estatutos tendo-a como referência (Ringer, 1999, 39). Mas estas novidades se adaptavam a uma sociedade aristocrática, onde estes professores eram transformados em conselheiros, Geheimräte, e vistos como leais e eminentes servidores do Estado (RINGER, 1999, 51). Penso que esta leitura desmistifica a possibilidade de uma atuação livre e apartidária. Afinal a adesão dos docentes era obtida por meio de um instrumento: o doloroso processo de habilitação dos candidatos a professores efetivos nas universidades alemãs. Os professores tinham seu passado esquadrinhado pelos Habilitationsschrift antes de serem admitidos, sobretudo depois de 1871. “Este sistema de recrutamento permaneceu essencialmente intacto até 1945” (IGGERS, 1983:25). De qualquer modo, o interesse pelas questões do momento levaram à criação de várias cadeiras de história contemporânea, que atraíam grande público, desviando os historiadores da ciência para a atuação política, cadeiras estas ocupadas por historiadores como Droysen, Sybel ou Gervinus, dentre outros. E o estudo da história política conduzia cada vez mais à rejeição da possibilidade de uma ética racional de direitos e valores universais, comum a todos os homens, pois cada vez mais era vinculada a situações históricas específicas2. Vale lembrar que a história disputava com a moral, a política e a filosofia o papel de norteadora da ação política. De qualquer modo, diz Mommsen O intelectual alemão também se pode vangloriar do que a ciência trouxe de benefício do povo (...) o desempenho individual de cada um de nós, em comparação com o todo, é de tal forma ínfimo que aparece como um Viena e Praga foram em alguns momentos, a capital do império germânico. A ascensão de Berlim foi recente e está relacionada com a ascensão dos Hohenzollern. “Graças às conquistas internas e externas e também à habilidade diplomática desta dinastia, Berlim se equiparou a Paris e a Londres, entre os séculos XVIII e XIX” (ELIAS, 1997: 22). 2 Exemplos disso seriam as justificativas dadas por Mommsen e Sybel sobre os direitos da Alemanha sobre a Alsácia e Lorena, em textos onde a ação política era justificada pela história. 1 32 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 soldado no campo da batalha em que combateu (...) Muito antes de as armas alemãs ganharem nos campos de batalha, a pesquisa alemã, em seus campos, conquistou o conhecimento e forçou nossos vizinhos a aprender nossa língua. (MOMMSEN, Apud MARTINS, 2010, p.114-5). E é precisamente esta relação entre história, filosofia e política que distinguiriam as escolas históricas que se formaram na Alemanha oitocentista, afinal elas não se limitaram à Ranke ou a sua obra como querem alguns intérpretes, tampouco constituíam uma identidade absoluta entre todos aqueles historiadores. Os próprios alemães chegam a reconhecer a existência de várias escolas: a escola Rankeana e Humboldtiana, a escola de Niebuhr (que exerceu enorme influência na França e veio a se reforçar com o manual de Ernst Bernheim), a escola filológica de Böckh e de Grimm, a escola romântica de Goethe e Novalis, a escola histórica do Direito de von Savigny e, finalmente, a Escola Histórica prussiana (cf. MARTINS, 2008, p.; cf GOOCH, 1959). Em que se distinguiam? Que peculiaridades existem, por exemplo, em relação aos herdeiros de Ranke e ao grupo dos historiadores capitaneados por Gervinus e Droysen? Penso que foi, sobretudo, a intrínseca relação que estabeleceram entre pesquisa e postura intelectual, entre pensamento e ação, entre ciência e política. Até porque é notável a herança teórica e metodológica comum bem como a atmosfera de respeito e reverências mútuas entre os seguidores de Ranke e os integrantes da Escola Histórica. Desafetos haviam, rivalidades também, como entre Ranke e Droysen, entre Mommsen e Treitschke, ou entre Sybel e Waitz. Mas, o grupo assentava-se sobre uma herança epistemológica comum; foi marcado pelo historicismo de Humboldt e de Ranke, pela reação ao idealismo hegeliano e pela absorção de procedimentos hermenêuticos e filológicos na composição do método – a crítica documental buscada em Niebuhr. Defendiam a atualidade de Aristóteles – cujo pensamento é visto com respeito –, muitos publicaram traduções, redigiram obras voltadas para a política e a história do tempo presente, engajaram-se em lutas na imprensa periódica, participaram diretamente na vida pública se envolvendo no nacionalismo emergente – publicando textos de caráter políticonacionalista –, propagando o ideal da Kleindeutsch durante e após as jornadas de 1848 além de preconizar um fundamento axiológico orientado pela defesa da objetividade. Em sua maioria eram protestantes, defensores da monarquia constitucional, integravam-se às fileiras dos liberais moderados 33 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 constitucionalistas, não condenaram as guerras de unificação capitaneadas por Bismarck (salvo Gervinus e Mommsen) e, por fim, escreveram obras de história do tempo presente. Em resumo, mantinham atmosfera de respeito às escolas germânicas de pensamento existentes – hermenêutica, filológica e filosófica –, que eram vistas como coadjutoras na fundamentação da História, com um esforço teórico semelhante e mediante o recurso a procedimentos metodológicos comuns. Para Fritz Stern, Encontramos núcleos de excelência nas vidas de alguns de seus indivíduos representativos; eram imbuídos de uma fé na ciência que ainda era inocente, uma fé semelhante a uma religião. Eram protegidos por laços de amizade, tinham o apoio de uma sociedade disciplinada, moviam-se por ambição organizada e contavam com um sistema educacional sem igual. A ciência alemã e a sociedade alemã eram profundamente interligadas (STERN, 2004:12). Comprova-se assim a existência de um processo de institucionalização da disciplina histórica em curso, marcado por lugares e também por regras que definiam a ciência histórica exercitada. Em relação à escrita da história, maiores estudos são ainda necessários para aquilatar o nível de suas semelhanças e diferenças no que concerne aos aspectos figurativos, estilísticos, retóricos e narrativos das obras. Fortes indícios subsumem seu surgimento em meio a uma crise da consciência histórica européia, vivida desde a Restauração e marcando o pensamento e a política oitocentistas. Não é ocioso, portanto, examinar a atuação daqueles historiadores como atores históricos. Em primeiro lugar queriam reformas, ademais, do início do século XIX até meados de 1848 buscavam algo novo. Creio haver uma compreensão entre eles sobre a necessidade da formação de novos homens para uma nova Alemanha, incutida no papel que muitas vezes atribuíam à Bildung, embora isso não fosse algo homogêneo. Esses novos homens, singularizados na figura do intelectual, contudo, precisavam conviver com uma velha política. Na crise da experiência histórica vivida, construíram novos projetos políticos – alguns já haviam sido potencializados na literatura –, reavaliaram suas tradições culturais, mas encontraram muitos obstáculos em relação à ação política, revelando uma sensível tensão em curso entre a sociedade, a burocracia administrativa e os governos aristocráticos germânicos. Assim, embora algumas experiências fossem questionadas, havia dificuldade em romper determinadas 34 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 orientações político-monárquicas e também religiosas. Nem todas as tradições, portanto, estavam permeáveis às mudanças em curso. Isto talvez explique o triunfo da excessiva moderação, bem como, da persistência do conservadorismo. Do ponto de vista político, de modo semelhante ao Brasil, os liberais moderados desejavam reformas, pois viam com reservas a revolução ou o princípio democrático. Igualmente não defendiam a igualdade absoluta entre os homens. Lutavam, contudo, pela consolidação de uma esfera pública cujo debate jornalístico é bastante expressivo, mas que enfrentava o poder estatal e as retaliações políticas – que se valia de instrumentos como a censura, a demissão ou a prisão1. Em uma atmosfera profundamente autoritária, pouco espaço era conferido ao princípio democrático. Assim, liberais radicais, comunistas e socialistas eram quase sempre resumidos à condição de anarquistas ou de perturbadores da ordem vigente. Nesta condição sofriam ameaças de prisão ou eram forçados ao exílio. Pode-se dizer que o nascimento do historiador na Alemanha coincidiu com a constituição deste saber e destes intelectuais, ao lado da construção do estado Alemão, cujo passo inicial pode ser localizado na criação do Zollverein em 1834, e depois através de alianças político-militares que viabilizaram as guerras de unificação sob a liderança da Prússia. Durante este processo, muitos historiadores viram-se integrados no esforço de construção do novo Estado, integrando-se à burocracia ou ao serviço público, realizando missões diplomáticas, exercendo a docência e a pesquisa e atuando como funcionários ou como conselheiros. Ou seja, foram intelectuais de projeção em sua sociedade, ao lado de juristas, economistas, políticos e filósofos, mas que orbitavam em torno do Estado. Como foi exposto anteriormente, nem o apartidário Ranke escapou a isso. De maneira mais explícita os historiadores da Escola Histórica não viam problemas em integrar escritos políticos de ocasião com estudos sobre o tempo presente ou história do passado. Eles percebiam uma relação intrínseca entre as motivações do presente com a investigação histórica, entre a compreensão teórica do estudo das sociedades no passado e a motivação para a ação política no presente, subsumidas a uma marcha, Foi o caso de Gervinus, por exemplo, que teve obra censurada e ameaça de prisão, de Dahlmann que também foi preso, da perseguição de Droysen na Dinamarca. Ou ainda Karl Wecker que perdeu sua cadeira na universidade por questionar o Parlamento de Baden. 1 35 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 ilustrada pela História e pela própria trajetória nacional alemã, escamoteando pretensões universais, pois a defesa das singularidades da história alemã não obliterava a ambição que tinham de escrever uma história mundial, na qual a Alemanha ocupava uma posição de destaque. Curiosamente, os historiadores germânicos do século XIX pareciam inverter a fórmula de Koselleck: alimentavam muitas expectativas do passado, cuja experiência histórica redescobriam cada vez mais graças à consulta de fontes nunca manuseadas e ao recurso à crítica documental que possibilitava uma nova escrita da história; e recorriam a esta experiência do passado a fim de encontrar uma conexão nos eventos verificados no presente e no futuro. Ou seja, projetavam o passado no futuro. Afinal, a história não era mestra da vida, mas expressava forças históricas permanentes que se configuravam de maneira singular em cada época e em cada povo. Nos eventos políticos verificavam uma soma em curso, cuja tendência e até mesmo cuja essência era universal. Tomavam os estudos do passado como uma referência para pensar a atuação nos acontecimentos políticos vivenciados no presente, vislumbravam a presença de forças históricas, de idéias que se materializavam em diferentes sociedades, que possuíam um sentido que se sentiam capazes de analisar. O que comprova a sedução do pensamento de Hegel, a imprimir um forte teor teleológico na leitura que muitos faziam a despeito de resistências. Forças históricas impeliam o agir humano e este possuía uma essência a se realizar, materializada de maneira incompleta em diferentes experiências históricas do passado e do presente. O século XIX, contudo, trazia novamente a possibilidade de tentar concretizar esse ideal, embora soubessem, por sua própria experiência, que isso poderia ou não ser realizado de imediato. A seu modo colaboraram para repensar o mito leibziniano de que viviam no melhor dos mundos possíveis, em uma época dourada para o pensamento e para a cultura germânica. Após 1848 e, sobretudo, com o início das guerras de unificação essa imagem ganhou força ainda maior, embora convivesse com vozes dissonantes. Mais uma vez, revela Mommsen, Por certo temos também o orgulho de ser alemães, e disso não nos encabulamos. De todas as ostentações, nenhuma é mais vazia e falsa do que a da modéstia alemã. Nada temos de modestos, não o queremos ser e nem que se diga que o somos (...). No entanto, mesmo se nos declaramos nada modestos, não nos tornamos por isso cegos. (MOMMSEN Apud MARTINS, 2010: 113). 36 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 As manifestações nacionalistas ganhavam ímpeto e exprimiam o desejo de formação de um Império Germânico, uma monarquia constitucional sob o governo dos Hohenzollern, ou seja, sob a liderança da Prússia e a exclusão da Áustria. Aqueles historiadores viam a história como um processo complexo, não como uma relação de causalidade, mas como constelações de eventos marcados pela ação de forças históricas, tendo um sentido: a realização da liberdade ou ainda da consumação da grande obra divina. Nisso fundiam convicções políticas e religiosas. Este último aspecto não será destacado aqui. Mas, a liberdade era, para eles, um conceito complexo. Sua idéia de liberdade estava fundada sobre velhas tradições nacionais e entendia a autoridade real e o poder estatal como historicamente associados e não como antítese à livre política. Mas essa percepção tinha matizes nos diferentes Estados – 39 ao todo – que compunham a Confederação Germânica. Com a Unificação Alemã liderada por Bismarck (1866-1871), novamente potencializou-se o otimismo germânico, afinal, depois da Revolução Francesa e das revoluções de 1820 e 1830, também a Alemanha parecia realizar os desígnios históricos da humanidade. Essa impressão era sensível em muitos daqueles historiadores. E imprimiu neles, por conseguinte, a ênfase e o engajamento nos acontecimentos. Em 1848 era preciso agir, seja para impedir a anarquia e os excessos, seja para dar a direção aos eventos. Mas, derrotadas em uma atmosfera reformista a palavra de ordem para o momento foi, sem dúvida, moderação. Muitos historiadores engajaram-se na crítica da realidade político-social alemã, tomando, declaradamente, partido, em franca oposição ao mestre Ranke. Só não pareciam se lembrar de que, em 1792, a Prússia havia lutado contra os revolucionários franceses, tentando parar a revolução. Sobre aquela sociedade diz Norbert Elias: O Estado Hohenzollern tinha todas as características de um Estado militar que se erguera através de guerras vitoriosas. Seus dirigentes reconheciam a necessidade de crescente industrialização e, lato sensu, de crescente modernização. Mas os industriais burgueses e os donos do capital não formavam o estrato superior que governava o país. A posição da nobreza militar e burocrática, como o estrato mais elevado e poderoso da sociedade foi não só preservada, mas também fortalecida pela vitória de 1871. Uma boa parte da classe média, mas não toda ela, adaptou-se com relativa rapidez a estas condições. Seus membros encaixaram-se na ordem social do Kaiserreich como representantes de uma classe de segunda categoria, como subordinados (ELIAS, 1997:26). 37 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A seguir, vejamos um perfil geral daqueles historiadores integrantes da Escola Histórica Prussiana e que tiveram ou exerceram alguma função política destacada no período entre 1848-1871 apresentado no Quadro 1 e que colaboraram na Historische Zeitschrift. Alguns deles integraram o Partido do Cassino, nome do hotel e restaurante onde se encontravam, onde defendiam a Kleindeutsch, a unificação, o Estado de direito, baseado na constituição; no qual pediam órgãos representativos eleitos pelos distritos dos estados tradicionais e advogavam a igualdade perante a lei e o fim das restrições, como por exemplo aos judeus. Alguns deles integraram, nos anos 1860, o Partido Nacional Liberal (IGGERS, 1983:93). De um modo geral rejeitavam a filosofia da história de Hegel, a teoria da lei natural, a primazia do indivíduo – em seu lugar colocaram as forças históricas – que produziam o Estado e os indivíduos. Acreditavam no progresso. E entendiam que o poder não é somente força, mas também um princípio ético. Entre os 830 deputados da Assembléia de Frankfurt em 1848-9, havia apenas um trabalhador e um camponês, 49 professores universitários, 57 professores escolares, 157 magistrados, 66 advogados, 20 prefeitos, 118 funcionários públicos, 18 médicos, 43 escritores, 16 pastores e 16 padres. No total, pelo menos 550 tinham diplomas de curso superior, perto de 20% eram professores universitários, 35% funcionários públicos, 17% advogados (HUBER, 1960: v.2, 611). No total, 11 eram historiadores. A essência dos trabalhos revelouse como “a unidade pela persuasão” (TAYLOR, 1945:76). Soldados do rei protegiam os trabalhos. O nacionalismo tcheco da Bohemia conturbou a paz da assembléia. E também a guerra em Schleswig-Holstein. Em 1850 a Áustria derrotou tropas bávaras e prussianas em Hesse (Olmutz), em retaliação foi novamente recusada no Zollverein; posteriormente, a guerra com a França, em 1859, e a unificação italiana colocaram em xeque a hegemonia austríaca. Tem início a expansão da supremacia prussiana, cuja hegemonia pode ser ilustrada pela famosa frase proferida em 8 de outubro de 1862, pelo primeiro ministro prussiano, Bismarck: “os problemas atuais não serão resolvidos por maioria de votos – este foi o erro dos homens de 1848 e 1849 – mas por sangue e ferro” (Apud TAYLOR, 1945:101). O desejo de participação e de maiores liberdades políticas manifestou-se no Parlamento de Frankfurt, mas as divisões internas entre os parlamentares facilitou 38 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 a recomposição das forças aristocráticas, culminando na sua dissolução em junho de 1849 e na recusa da coroa do Império por Frederico IV. Na Assembléia “valores liberais predominaram, por exemplo, a separação entre igreja e Estado, a independência do judiciário, a instituição do habeas corpus, a abolição da pena de morte (BREUILLY, 2002:45). O grande dilema era entre autoridade nacional – de base popular? – e autoridade estatal, afinal os príncipes germânicos indicavam os ministros em seus Estados. Não obstante, as tendências revolucionárias foram esmagadas, os ímpetos liberais refreados e a disputa pela hegemonia face aos estados germânicos foi resolvida em 1866 na Guerra das Sete Semanas entre Prússia e Áustria. Ali se formou a Confederação Alemã do Norte, por Otto von Bismarck, o Reichstag foi inaugurado em fevereiro de 1867 e a Guerra FrancoPrussiana de 1870-1 selou a criação do Império, a integração dos Estados do sul e, consequentemente, a unificação. No Quadro 1 estão relacionados alguns historiadores alemães do período que, além de obras históricas, produziram textos políticos ou exerceram alguma atividade política importante no período estudado. Ele apresenta alguns resultados parciais da pesquisa que desenvolvo. Nele relaciono datas de nascimento e morte, cidade natal, curso estudado, universidades freqüentadas, amigos ou mestres de relação mais estreita, universidades onde atuaram, cargos legislativos, outros cargos, publicações de caráter político e obras históricas. Encontram-se relacionados apenas 31 historiadores; só para se ter uma idéia na Historische Zeitschrift são 273 ao todo que colaboraram enviando 783 artigos entre 1859 e 1900; mas eles permitem fazer uma radiografia elucidativa dos historiadores e da historiografia alemã oitocentista. Ao todo, 11 tinham títulos de nobreza. Em primeiro lugar, nem todos eram prussianos, muitos nasceram em outros Estados germânicos. Do mesmo modo embora os protestantes fossem a maioria, é possível localizar judeus e católicos atuando dentro do grupo. Uma outra característica é a presença de pelo menos três gerações de historiadores: a primeira composta por membros como Ranke, Waitz, Gervinus e Droysen; uma segunda composta por Sybel, Mommsen, Duncker e Häusser; e, a última, composta pela geração de Treitschke, Oncken, Waschsmut e outros. Esta última geração representa o arrefecimento da hegemonia historiográfica exercida pelas duas primeiras gerações, com um afastamento bem maior do paradigma rankeano. 39 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Aspecto decisivo da formação revela que alguns universidades eram preferidas e que era comum estudos desenvolvidos em mais de uma instituição. É como se buscassem em cada universidade os melhores cursos desejados, ou ainda como se deixassem os estudos iniciais em sua cidade natal e seguissem para outros centros mais especializados. História é o curso mais freqüentado pelo grupo relacionado, seguido por filologia, filosofia e direito. Berlim e Heidelberg são as universidades mais apreciadas, seguidas por Freiburg, Göttingen, Leipzig e Bonn. Os vínculos de amizade e afinidades pessoais dentro do grupo é bastante heterogêneo, embora Ranke, Sybel, Gervinus, Droysen Häusser e Dahlmann fossem figuras de destaque junto aos demais, surgindo em várias biografias na condição de mestres, supervisores de estudos e projetos merecedores de crédito e gratidão. Além de algumas biografias foram consultadas enciclopédias de autores alemães para localizar os dados apresentados no quadro. Aqueles historiadores lecionaram em diferentes universidades, embora seja possível verificar que os que se destacaram no campo costumavam ocupar cadeiras em Berlim, Heidelberg, Bonn ou Göttingen. Entre os relacionados, 11 foram deputados no Parlamento em Frankfurt de 1849, 13 foram deputados em seus Estados e 10 foram deputados no Parlamento Nacional após 1871, o que indica uma intensa atividade política por parte dos historiadores. Não por acaso, muitos foram conselheiros de reis e príncipes germânicos, seis foram reitores de universidades e sócios ou integrantes de academias e sociedades científicas. Em relação à imprensa, 15 foram editores de jornais, a metade do conjunto recortado, bem como escreviam em jornais, ao lado de outros dois que apenas escreviam na imprensa periódica sem chegar à direção. Já a produção historiográfica do conjunto não está definidamente indicada, faltando relacionar algumas obras, embora possa ser dito que sua principal marca são histórias nacionais, estudos sobre a história do tempo presente e biografias. Idade Média e Era Moderna eram dois períodos bastante apreciados ao lado de história recente. Mas aqui ainda são necessários maiores levantamentos para afirmações mais conclusivas. 40 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Quadro 1. Alguns Historiadores Alemães Do Século XIX Envolvidos Em Assuntos De Natureza Política. NOME VIDA Karl von ROTTECK 1775-1840 Karl Theodor Georg P. WELCKER 1790-1869 Rudolf HAYM Georg WAITZ CIDADE NATAL Freiburg FORMAÇÃO UNIVERSIDADE Direito Freiburg LECIONOU Freiburg Dahlmann, Droysen e Gervinus Duncker Giessen, Kiel, Bonn e Freiburg Halle Parlamento de Baden, Parlamento de Frankfurt Parlamento de Frankfurt Assembléia de Schleswig-Holstein, Parlamento de Frankfurt Parlamento de Frankfurt Direito Ciência Política Teologia filologia e Giessen Heidelberg 1821-1901 Oberofleide n Holberg Ohm Grünberg e Halle e Berlim 1813-1886 Flensburg Filosofia direito e Kiel e Berlim Ranke e Schelling Kiel Göttingen 1795-1868 Dinkelsbühl Direitoeconomia Erlangen Ranke Munique Reinhold PAULI 1823-1882 Berlim Filologia história Bonn e Berlim Dahlmann Ranke Georg VOIGT 1827-1891 Konigsberg História Konigsberg Drumman e Von Sybel Bonn, Marburg, Göttingen Rosttock, Leipzig Wilhelm ONCKEN 1838-1905 Heidelberg Filologia, história filosofia Heidelberg, Göttingen e Berlin Häusser Heidelberg Copenhagen e Halle Wolff, Von Kleist, Gervinus, Welcker Droysen, Haym e Kiel, Göttingen, Iena, Bonn Friedrich HERMANN von Friedrich DAHLMANN 1785-1860 Wismar Filosofia Maximilian DUNCKER 1811-1886 Berlin História, filosofia e e Berlim e Bonn e e MESTRES/ AMIGOS Johann Jacobi e Halle, Tubingen, CARGOS LEGISLATIVOS Parlamento de Baden e OUTROS CARGOS Presidente da Câmara e Conselheiro em Freiburg, pró-reitor da Universidade de Freiburg Monumenta Germaniae Histórica Conselheiro dos reis Maximiliano I e II da Baviera, Conselho de Estado da Baviera, Academia Bávara de Ciências Secretaria da embaixada em Londres OBRAS POLÍTICAS OU JORNAIS Editor do jornal O Liberal OBRAS HISTÓRICAS História Geral, Staatslexikon Editor do jornal O liberal independente, Staatslexikon Discursos e palestrantes do primeiro prussiano Unidos Diet, A Assembleia Nacional Alemã, editor do Preußische Jahrbücher, Hallesche Algmeneine Literatur Zeitung, National Zeitung Rotteck-WelckerStaatslexikon, Grundzüge der Politik, Hegel e seu tempo, A escola romântica, Herder e sua vida. Württemberg e o desastre federal História dos documentos hanseáticos, Ensaios sobre a história da Inglaterra O Renascimento na Antiguidade Clássica Jornal Cultural Parlamento de Hesse e Nacional Membro da Associação Comercial de Leipzig, Academia de Ciências da Baviera, Sociedade de Leipzig, Academia de ciências de Viena Reitor da universidade de Giessen Parlamento de Frankfurt 1848, Parlamento de Erfurt Parlamento de Hesse, Parlamento Secretário da cavalaria em Schleswig Holstein, Líder da revolta dos Sete Diretor dos Arquivos Prussianos, Ministro Política, reduzida ao grau e medida das condições existentes. Preussische Staatsschriften, Hallesche História constitucional alemã, Forschungen zur deutschen Geschichte, História de SchleswigHolstein. Estudos dos ativos estatais econômicos, comerciais, renda e consumo. História Geral 44v., a Era da Revolução – do império à guerra de libertação, A Era do Imperador Wilhelm I, Frederico o Grande. Fontes para o estudo da história alemã, História da Dinamarca, História da revolução inglesa, História da Revolução Francesa História do Parlamento de Frankfurt, A crise da reforma. 41 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 filologia von Sybel de Frankfurt, Membro do Parlamento Nacional em 1867 dos Estrangeiros em 1860, conselheiro de Frederico III, 6 meses preso por participar de fraternidade, Academia Prussiana de Ciências, Academia de Göttingen Ludwig HÄUSSER 1818-1867 Kleeburg Historia Heidelberg Schlosser, Gervinus Heidelberg Parlamento Baden de Theodor MOMMSEN 1817-1903 Garding Direito Kiel e Leipzig Moritz Haupt e Otto Jahn, Max Weber Zurique, Breslau, Leipzig Berlim Deputado Nacional em 1881 Amigo do rei da Dinamarca, Academia de Berlim, Sociedade Real de Ciências da Saxônia, reitor da universidade de Berlim e Georg GERVINUS 1805-1871 Darmstadt Filologia Heidelberg Schlosser, Dahlmann Heidelberg Göttingen e Parlamento Frankfurt de Academia de Ciências da Bavária Johann G. DROYSEN 1808-1884 Teptow Filologia Berlim Böckh, Gervinus, Duncker Kiel, Iena Berlim e Parlamento Frankfurt de Academia Berlinense de Ciências, Historiógrafo da Casa de Brandemburgo Leopold von RANKE 1795-1886 Wiehe (Unstrut) Teologia filologia Leipzig Schleiermache r, Humboldt, Sybel, Savigny, Niebuhr Berlin Karl MAURENBRECHER 1838-1892 Bonn História Bonn e Berlim e Munique Sybel, Ranke, Siegfried Hirsch Konigsberg, Bonn e Leipzig Heinrich TREITSCHKE 1834-1896 Dresden História Economia Bonn, Leipzig, Tübingen, Freiburg. Bismarck Kiel, Freiburg e Heidelberg von e e Historiógrafo da Casa de Brandemburgo, barão von Ranke, Membro do Conselho Real, American Historical Association, Memórias da Casa de Brandemburgo , Guilherme II assistiu suas aulas, Real Sociedade de Ciências da Saxonia Deputado Nacional Algmeneine Zeitung. Literatur Allgemeine Zeitung Deutschen Zeitung, Preußische Jahrbücher Historia da Alemanha da morte de Frederico à Fundação da Confederação. Jornal de Rendsburg (1848), escritos sobre a revolta da Saxônia em 1848 levam-no à demissão, escritos de combate ao antisemitismo Deutsche Zeitung, projeto da Constituição em 1847 História Romana, Direito Romano, As províncias romanas. Preußische Jahrbücher,Politische Schriften. Guerras de Libertação, A posição política da Prússia Historisch-Politische Zeitschrift, Sobre as afinidades e diferenças entre história e política Editor do Preußische Jahrbücher (depois foi expulso), A solução da questão de SchleswigHolstein, O futuro dos estados do norte alemão, A guerra ea reforma federal, Dez anos de luta alemã 1865-1874. Escritos sobre assuntos Fundamentos de Teoria da História, História da Literatura e da Poesia Nacional, História do século XIX. História do Helenismo, História das Guerras de Liberdade, História da Política Prussiana, Conde Yorck von Wartenburg História os povos latinos e germânicos, História dos Papas, História da Reforma, História francesa, História Inglesa, Hardenberg und die Geschichte des preussischen Staates von 1793 bis 1813, Sérvia e Turquia no século XIX. História da Reforma, História do Império: História da fundação do Império Alemão Ensaios histórico-políticos alemães, A história alemã do século XIX, Lutero e da nação alemã, 42 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 atuais, Alguns comentários sobre a questão judaica, O projeto da lei da escola prussiana. August KLUCKHOHN 1832-1893 Bavenhause n História Heidelberg Göttingen Alfred BORETIUS 1836-1900 Meseritz Direito Berlim e Halle Carl Wolfgang Paul Mendelssohn BARTHOLDY Heinrich von SYBEL 1838-1897 Leipzig Direito Heidelberg Freiburg 1817-1895 Düsseldorf Historia filosofia e Berlim Bonn Ranke, Voigt, Maurenbreche r Wilhelm JUNKMANN 1811-1886 Munique Filologia história e Munique e Bonn Ernst Arndt, Friedrich Dahlmann Jacob VENEDEY 1805-1871 Köln Direito Heidelberg, Bonn Heinrich Heine, Georg Fein Bonn Zurique Kurt WACHSMUTH 1837-1905 Naumburg Filologia historia Iena e Bonn, Berlim Ludwig Lange, Karl Lamprecht Marburg, Gottingen, Heidelberg, Leipzig Paul HINSCHIUS 1835-1898 Berlim 1825-1901 Tilsit Ludwig AEGIDI Karl von James e e Häusser, Waitz e Sybel Professor em Göttingen Mommsen Zurique Berlim Heidelberg Freiburg e Heidelberg Direito Berlim, Göttingen Gervinus, Arquivos do Reichstag e correspondência de Wittelsbach, cartas de Frederico o Piedoso Germaniae Monumenta Historica e e Bonn, Marburg, Munique e National Zeitung Democrata e opositor da Prússia Biografias de Gilherme II, duque da Baviera, de Ludwig, de Prederico o Piedoso, de Louise, rainha prussiana Frederico o Grande e Carlos Magno História da Grécia Deputado em Frankfurt e deputado na Assembléia de Kassel, Parlamento de Erfurt e Parlamento Nacional Fundador com Ranke da Comissão Histórica da Academia de Ciências da Bavária, Diretor dos Arquivos Prussianos, membro do Instituto Histórico de Roma, A nação alemã e o Império. Um tratado histórico-político, Kölnische Zeitung, Autonomen, Sobre a relação da nossa Universidade com a vida pública, Os partidos políticos do Reno História da Primeira Cruzada, História da fundação do Império Alemão, Acta Borussica. Deputado Nacional, Parlamento de Erfurt Liga católica, Partido do Cassino, Pariser Hof, Katholischen Magazins für Wissenschaft und Leben, Foi pro PréParlamento, foi do parlamento de Rumpf e se elegeu para o parlamento de Frankfurt Festival de Hambach, atividade política intensa, exilado Deutschen Volksverein, vários jornais, RotteckWelcker Staatslexikons Obs: não publicou na HZ Allgemeinen Kirchenlexikons, Allgemeinen Realenzyklopädie für das katholische Deutschland, Regesta Historiae Westfaliae, Westfalia Sacra. Reise und Rasttage in der Normandie, Die Deutschen und Franzosen nach dem Geiste ihrer Sprachen und Sprüchwörter. Pesquisa na Itália, reitor da universidade de Leipzig Halle, Kiel Parlamento Nacional Parece que era do Partido Católico e do Partido Liberal Zeitschrift für Gesetzgebung und Rechtspflege in Preußen Erlangen, Hamburg, Berlim Parlamento da Liga Germânica do Norte, Parlamento Prussiano Partido do Cassino, Deutschen nationalverein Deutschen Zeitung Das alte Griechenland im neuen, Die Stadt Athen im Altertum, Studien zu den griechischen Florilegien, Ausgaben von "Lydus de ostentis" und den griechischen Kalendern Die preußischen Kirchengesetze (4v), Die Orden und Kongregationen der katholischen Kirche in Preußen, Das landesherrliche Patronatrecht Staatsarchiv 43 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Friedrich von WEECH 1837-1905 Munique História Munique Heidelberg Hermann Eduard von HOLST 1841-1904 Fellin, Estland História Karl Marquardt, Paul BOJANOWSKI 1834-1915 Schwedt Direito Dorpat e Heidelberg, Londres, Italia e Argélia Halle, Heidelberg e Berlim Alfred STERN 1846-1936 Göttingen História Heidelberg, Göttingen e Berlim Albert Einstein Berna, Zurique Johann Friedrich Ritter von SCHULTE 1827-1914 Winterberg Fredeburg Bonn Döllinger, Wasserschlebe n Bonn e Praga Arnold SCHAEFER 1819-1883 Seehausen Filologia clássica Leipzig Hermann, Wachsmuth, Asbach Greiswald, Bonn, Konigsberg Reitor da universidade de Bonn 1871-2, Instituto Arqueológico Alemão em Roma Demóstenes e seu tempo, História da guerra dos Sete Anos, Martin PHILIPPSON 1846-1916 Magdeburg História Bonn Bonn, Brüssel, Deutsch-Israelitische Gemeindebund, Jüdischen Friedhof Berlin-Weißensee, Verband deutscher Juden. Der Grosse Kurfürst Friedrich Wilhelm von Brandenburg. 3, Neueste Geschichte des jüdischen Volkes Julius Albert Georg von HARTTUNG 1848-1919 Wernikow História filologia Paul Kehr, Burckhardt Tübingen, Basel Soldado na guerra Franco-prussiana, Sociedade Histórica de Verona, Londres, Paris, Roma, Turim e Palermo, Geheimen Staatsarchiv in Berlin Friedrich Wilhelm Karl von HEGEL 1813-1901 Nürberg História Berlim e Heidelberg Filho de Hegel Rostock Erlangen Richard ROEPELL 1808-1893 Danzig Halle e Berlim Breslau Adolf BEER 1831-1902 Prossnitz Heinrich Leo, Ranke Sybel von História e Bonn, Berlim Göttingen e e Berlim, Heidelberg, Praga e Viena Erhart Schürstab J. Freiburg Bibliotecário dos Arquivos Gerais e diretor em 1885 Strassburgo, Freiburg, Chicago Academia Prussiana de Ciências Reinhold Kohler Deputado pelo partido Nacional Liberal e Grosswardein (Romênia) Parlamento Erfurt Academia de Erfurt, Jornalista em Paris, bibliotecário e historiador Controvérsia BaumgartenTreitschke contra os judeus Conselheiro do kaiser Francisco José, reitor da universidade de Bonn de Parlamento de Erfurt Deputado Nacional Kolnischen Zeitung, Deutsch-amerikanischen Konversations-Lexikons Weimarische Zeitung Codex diplomaticus Salemitanus, Baden unter den Großherzögen Karl Friedrich, Karl, Ludwig 1738– 1830, Geschichte der badischen Verfassung, Baden in den Jahren 1852 bis 1877, Die Deutschen seit der Reformation. Ludovico XIV, vários outros Tomada da Bastilha. História da Europa desde 1815 até a Liga de Frankfurt em 1871. Die Geschichte der Quellen und Literatur des Canonischen Rechts von Gratian bis auf die Gegenwart, Hamburger Zeitung Editor Mecklenburgischen Zeitung Documentos do Papado 10461198 do Academia de Ciências da Baviera Crônicas dos Estados Germânicos Anais Poloneses Arquivos para a História austríaca, Historischer Zeitschrift Geschichte des Welthandels, Die orientalische Politik Österreichs seit 1774, Der Staatshaushalt Österreich-Ungarns seit 1868, Die 44 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Ernst BERNHEIM 1850-1942 Hamburg História Hans DELBRÜCK 1848-1929 Bergen auf Rügen História Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Berlim, Heidelberg Göttingen e Estrasburgo Heidelberg e Bonn Georg Waitz, Julius Weizsäcker Sybel Greifswald Berlim Reitor da universidade de Greifswald Deputado no Parlamento alemão Judeu que se converteu ao protestantismo em 1886 Lutou na guerra Preussischen Jahrbücher Franco-prussiana, membro da delegação alemã na Conferência de Paz de Versalhes em 1918 Fonte: Deutsche National Bibliothek. Disponível em: http://www.d-nb.de/; Elektronische Allgemeine Deutsche Biographie. Disponível em: http://mdz10.bib-bvb.de/~ndb/adb_index.html, Deutsche Biographie. Disponível em: http://www.deutsche-biographie.de/blaettern.html. Biographie Portal. Disponível em: http://www.biographie-portal.eu/search. Österreichisches Biographisches Lexikon 1815–1950. disponível em: http://www.biographien.ac.at/oebl?frames=yes. Finanzen Österreichs im 19. Jahrhundert, Leopold II., Franz II. und Katharina von Rußland. Ihre Korrespondenz Manual do Método Histórico e da filosofia da história. História da arte da guerra 4v. 45 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A participação dos historiadores nos assuntos políticos deixava claro que eles disputavam com os filósofos e os políticos o papel de tematizarem a liberdade, e de refletirem sobre a política ou a governança. Esse envolvimento político expressa um período decisivo da história alemã, vivido entre a derrota para Napoleão e a vitória na Guerra Franco-Prussiana. Segundo Norbert Elias, a “vitória dos exércitos alemães sobre a França foi, ao mesmo tempo, uma vitória da nobreza alemã sobre a classe média alemã” (1997: 26). Com isso, eles trocavam “decisivamente, o idealismo burguês clássico pelo manifesto realismo do poder” (ELIAS, 1997:27). De qualquer modo, a história foi uma matriz disciplinar – bem como o pensamento historicista – e um instrumento capital para a política no período em tela. Com efeito, a “história da Alemanha e do liberalismo alemão não poderia ser escrita sem devotar considerável espaço ao papel central desempenhado pelos historiadores” (IGGERS, 1983:91). Assim, os historiadores foram importantes atores do momento, algo que também ocorreu em relação à França, onde Thiers, Guizot e Michelet, por exemplo, não se furtaram de combater na arena política e exercer cargos públicos. Sobre as trajetórias individuais algumas análises podem ser feitas. Ranke, por exemplo, era um conservador convicto, mas acompanhou a política de Bismarck com pouco entusiasmo. Embora visse o chanceler com bons olhos, afinal ele havia mantido a Prússia longe dos temores da revolução, não o defendia abertamente. O von em seu sobrenome, inclusive, foi um título nobiliárquico de barão obtido em 1865. Ranke conclamava os historiadores a contemplar o jogo das forças históricas, não de maneira desapaixonada apregoam como seus críticos, mas deixando as responsabilidades do governo para os homens de Estado, ou seja, políticos (BENTIVOGLIO, 2010). Theodor Mommsen editou um jornal político em Schleswig-Holstein, Gervinus dirigiu a Gazeta Alemã. Em 1857 surgiu o periódico Preussische Jahrbücher (Anais Prussianos), criado quando Guilherme assumiu o governo devido aos problemas mentais de Frederico IV, para apoiar a causa da unificação alemã e do governo constitucional sob a liderança da Prússia. A sua frente estiveram Sybel, Treitschke, Baumgarten e Dilthey (IGGERS, 1983:91) – todos historiadores. 46 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Da queda de Napoleão e da Restauração em 1815 até 1857 existiu a Confederação Germânica formada por 39 Estados independentes e cujas decisões eram compartilhadas por Prússia e Áustria, sob a hegemonia desta última. O clima reacionário fez com ambas resistissem a formas mais amplas de representação política, gerando movimentos em 1820 e 1830; sem contar as ingerências nas constantes intromissões políticas da Santa Aliança. Áustria e Prússia se uniram na repressão, os decretos de Karlsbad revelam isso, sobretudo para conter conspirações estudantis, motivadas pelas sociedades de estudantes, as Burschenschafts. Foram elas que organizaram os famosos festivais de Wartburg em 1817 e de Hambach em 1832, emblemáticos para se compreender o nacionalismo germânico. Ambos foram gestados pelas Burschenschaften. O festival de Wartburg celebrou o tricentenário de Lutero e o 4º aniversário da Batalha de Leipzig (HAHN, 2001:27). Já o festival de Hambach tinha como mote a censura da imprensa e a defesa do princípio democrático (HAHN, 2001:29). Mais de 30 mil pessoas ligadas a estes eventos foram perseguidas pela polícia secreta de Metternich. A radicalização dos movimentos estudantis teve seu ponto alto no surgimento d´A Gazeta Renana de Karl Marx, que começou a circular em 1842, e, em escala menor com a Gazeta Alemã de Gervinus, surgida em 1845. Embora depois da derrota em Iena as aspirações liberais tivessem sofrido duro golpe, paradoxalmente o controle francês sob territórios germânicos animou certos atores políticos em relação ao ideário liberal e teve importância decisiva na emergência do nacionalismo. A atmosfera reacionária pós-Restauração também contribuiu para a expansão das reivindicações de liberdade e de direitos democráticos, além de motivar outros movimentos mais radicais, ilustrados pela esquerda hegeliana e também pela liga dos comunistas. Os historiadores alemães tendiam a acreditar que a monarquia Hohenzollern, com seus aspectos autoritários e aristocráticos e seu ethos burocrático único, garantiria melhor caminho para a defesa das liberdades individuais e segurança jurídica que uma democracia em que política pode ser mais reativa aos anseios da opinião pública que às considerações e razoes de Estado (IGGERS, 1983:15). Nas fórmulas políticas de então nutriam admiração pelo federalismo norteamericano, ainda que não vissem com bons olhos o princípio democrático que lhe inspirava; pelo liberalismo inglês – sobretudo de Mill e de Bentham – cuja 47 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 monarquia constitucional bicameral era admirada, ao lado do pensamento político francês oriundo de Montesquieu e de Benjamin Constant. Mas esses ideários eram assimilados criticamente e adaptados às práticas políticas vivenciadas em solo germânico. Desse modo tradicionalismo, autoritarismo e protecionismo eram forças que no universo das práticas políticas moldavam compreensões de liberdade e de representação política. Historiadores liberais, como Dahlmann ou Droysen, não defendiam uma monarquia parlamentarista, como a inglesa ou a brasileira, mas uma monarquia constitucional em que rei e administradores da burocracia deveriam respeitar as liberdades civis e serem coadjuvados por instituições representativas eleitas para a Câmara Baixa – o Parlamento –, visto justificarem a existência de uma Câmara Alta, formada pela aristocracia tradicional. Até o Vormärz (Pré-Março) em 1848, um otimismo reinava entre os círculos políticos e intelectuais. Vislumbrava-se a possibilidade do surgimento de um Estado alemão unificado, com instituições representativas e governo constitucional. A despeito da repressão reinante, da censura e das restrições políticas a intelligentsia germânica acreditava no triunfo do liberalismo. Afinal viviam um momento de rápido desenvolvimento econômico, cultural e científico que alimentava sentimentos patrióticos de integração, sedimentados no pressuposto de uma identidade histórica e cultural comum acompanhada pelas alianças econômica – o Zollverein – e política – a Deutschesbund. O dualismo foi rompido apenas em 1849, quando, o impacto da revolução definiu melhor os projetos políticos existentes e ampliou a rejeição à monarquia austríaca, prenunciando a ascensão da Prússia. Se os episódios de 1848 em Frankfurt, Berlim, Bohemia e Schleswig-Holstein haviam demonstrado àqueles políticos a necessidade do uso de tropas, austríacas ou alemãs, para garantirem as reformas e evitarem ações políticas de uma esquerda radical (IGGERS, 1983:22), nos conflitos do norte ficou patente que a Áustria não desejava a expansão do poder prussiano. A ação do exército prussiano contra a reivindicação da Dinamarca por Holstein indicou para a Prússia que somente a força militar não seria suficiente para conquistar a liderança frente aos territórios germânicos1. Seria preciso adotar o Dahlmann publicou seu Política reduzida ao grau e medida das condições existentes para tratar desta questão e foi um orador ativo dos direitos dos Schleswig-Holsteiners germânicos contra a 1 48 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 caminho constitucional a fim de manter sua liderança sobre a Confederação Germânica e fazer alianças com os Estados germânicos mais fortes – excluindo-se a Áustria – projeto que ganhou até mesmo a adesão homens como Welcker e Gervinus. Agora não se tratava somente de evitar conflitos sociais internos, como a atuação de Metternich havia priorizado ao lado da expansão e domínio sobre seus territórios no leste, mas, sobretudo, conseguir alianças políticas externas. De início, havia o desejo de integração de todos os estados germânicos, com o passar do tempo viu-se que a Áustria não poderia integrar a confederação. Assim, até 1848 os intelectuais alemães desejavam a liberalização e a unificação nacionais, face ao temor diante dos conflitos que colocavam em risco a ordem, em crescente radicalização política, que fizeram com que, salvo poucas exceções, apoiassem o governo prussiano de Frederico IV; depois, durante a crise constitucional de 1862 e 1866 não apoiassem a política de Bismarck, mas, enfim, que se comprometessem com ela a partir de 1867. Quando Bismarck reformou o exército violando a constituição em 1862, o Preussische Jahrbücher protestou, mas depois das vitórias de 1866 todos reataram com Bismarck, com exceção de Gervinus. Para Taylor, até 1848 os escritores alemães escreviam para si e para os príncipes, estavam longe da realidade. Não tinham público (TAYLOR, 1945: 54). E seria inimaginável pensar o equilíbrio germânico sem Metternich, mas depois daquele ano a posição da Áustria tornou-se um problema. A expansão dos jornais mudou este panorama, indício de ampliação da esfera pública e da constituição de forças disputando a arena política. O interesse crescente pelas questões do momento levaram à criação de várias cadeiras de história contemporânea, que atraíam grande público, e acabavam por deslocar muitos historiadores da ciência para a atuação política, como foi o caso das aulas de Droysen em Kiel. Quando em 1849 a contra-revolução destruiu os parlamentos eleitos democraticamente e muitas das liberdades criadas pela revolução (BREUILLY, 2002:55) e em 1850 Saxônia, Hannover, Bavária e Wüttemberg decidiram criar uma nova liga de reinos, em oposição à Confederação Germânica, sendo realizadas eleições para o parlamento de Erfurt votar uma constituição para esta liga, que foi monarquia dinamarquesa, ao lado de Droysen, que inclusive teria que deixar a Universidade de Kiel por conta disso. 49 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 derrotada pelas tropas austríacos, preservando a Confederação (Bund), ficou evidente a impossibilidade de transformações mais radicais ou democráticas para o futuro da Alemanha. Este episódio, chamado também de humilhação de Olmütz, contudo, apenas abreviou a franca ascensão da Prússia como liderança política. Nas palavras de Von den Pfordten, primeiro ministro bávaro, “a luta pela hegemonia germânica havia sido selada e a Áustria perdeu” (Apud, BREUILLY 2002:58). Ao contrário de Georg Iggers que vê na chamada Escola Histórica Prussiana a expressão de um otimismo político ingênuo face a estes acontecimentos, penso, que poderiam ser otimistas, mas não eram ingênuos. Mommsen, Gervinus e Droysen, por exemplo, não acreditavam na existência de um aperfeiçoamento espontâneo realizado pela história que tornaria as instituições melhores ou mais justas, como produtos necessários do desenvolvimento histórico. Igualmente, para eles, o poder não poderia ser somente o uso da força, mas o exercício de princípios éticos. Ou seja, ao contrário dos franceses que após a Revolução procuraram aplicar a lei natural à política ou, ou de Hegel que colocava a supremacia da razão sobre a história ou sobre os direitos individuais, revelam um entendimento político diverso ancorado no princípio constitucional. Droysen, por exemplo, escreveu as Guerras de Libertação entre 1842-3 e a História da Política Prussiana, em 1855, obras que tiveram forte impacto naquele contexto. Para ele a lei é muito, mas não é tudo e “o grande erro do liberalismo vulgar foi ter insistido no governo baseado na soberania popular e por direitos individuais garantidos (...) e a verdadeira essência do constitucionalismo consiste em o Estado remover de sua competência tudo aquilo que não propriamente pertence a ele” (IGGERS, 1983:107). Nacionalidade, portanto, deveria ser mais importante do que liberdade. A identidade entre os historiadores prussianos não pode ser pensada sem reservas, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista epistemológico. Embora surgissem em um contexto comum e de uma mesma base, não são poucas as diferenças existentes. Na Comissão Constitucional durante o Parlamento de Frankfurt em 1849, Dahlmann e Droysen se opuseram ao voto universal, algo que Mommsen e Gervinus defendiam. Com o tempo, todos perceberam que a Unificação não poderia ser feita a partir de Frankfurt, mas de Berlim. Outro exemplo ocorreu durante a reforma do Exército por Bismarck em 1861, quando 50 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Duncker e Droysen não se manifestaram, mas Haym, editor do Preussische Jahrbucher escreveu um duro artigo lamentado que o chanceler desejasse salvar a velha ordem militar prussiana em uma nova Prússia. Treitschke, que apoiou Bismarck, foi convidado a deixar a revista. Mas a vitória sobre a Áustria em 1866 fez com que todos reatassem com o governo e, até mesmo Baumgarten realizou uma autocrítica de sua resistência à política do Reich. Somente Gervinus permaneceu irreconciliável com a liderança dos Hohenzollern, de Bismarck e de sua política militarista. Aos poucos, também Mommsen e Treitschke foram percebendo que os princípios liberais eram inconciliáveis com um poder nacional fundamentado na força. Note-se que este último era um liberal da Saxônia, filho de junker, de raízes tchecas, que apoiou a Kulturkampf contra a Igreja católica bem como defendia abertamente seu antisemitismo. Para Herman Baumgarten e Theodor Mommsen o caráter liberal do governo de Bismarck era tênue, pois as instituições e a própria sociedade estavam nas mãos de uma elite senhorial militarista e burocrática de forte tradição autoritária (IGGERS, 1983:23). Segundo Mommsen a estrutura autoritária do Estado alemão, sua parlamentarização incompleta, seu vínculo com valores de obediência militares e aristocráticos, impediram a emergência de um espírito de responsabilidade política entre o povo alemão no tempo em que a emergência dos movimentos políticos de massa junto ao padrão constitucional do governo bismarckiano tornou a cidadania absolutamente necessária (Apud IGGERS, 1983:23). As forças políticas lentamente conduziram à formação de clubes, ligas e partidos políticos, os radicais Clube Democrático foi criado em 23 de março de 1848 e o Partido Comunista em janeiro de 1848, os moderados Clube Constitucional e o Partido do Cassino em 1849. A simpatia pelos americanos não era velada. Rotteck e Welcker se inspiravam no federalismo de Thomas Jefferson, Gervinus afirmava que a América era o Estado do futuro (HAHN, 1996:38) e Droysen advogava um novo tipo de governo representativo que poderia incrementar a unidade e coesão do Estado sem a eliminação completa da estratificação social existente ou, igualmente importante na Alemanha, a supressão das peculiaridades regionais (SOUTHARD, 1995:16). Buscar o just milieu, o equilíbrio, eis a tônica da moderação de Droysen. Em seus estudos sobre as Guerras de Liberdade, ele “ofereceu uma exposição detalhada da história americana e européia e demonstrou a inevitabilidade histórica da 51 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 unificação alemã como uma monarquia constitucional sob a preponderância da Prússia” (Southard, 1995:33). Em A posição política da Prússia, de 1845 defendeu Frederico IV e seu papel na manutenção da paz e no desenvolvimento cultural e econômico nos países germânicos. Duncker em Crise da Reforma, publicado em 1845, dividiu a história em quatro períodos: o primeiro é o do Iluminismo e seu pensamento ahistórico, o segundo é o do romantismo e seu amor acrítico pelo passado, o terceiro é o idealismo de Hegel e sua tentativa de colocar conteúdos ilegítimos em formas legítimas e o último do empirismo, onde se inseria. Duncker e Haym participaram do movimento protestante conhecido como Amigos da Luz (Lichtfreunde), que estabeleceu congregações livres em várias cidades alemãs. Separavam o desenvolvimento do Estado (prussiano) do desenvolvimento nacional (germânico), cuja história, no entanto, tinha uma mesma fonte: os desígnios divinos. Duncker e Droysen estavam do lado das populações germânicas em Schleswig-Holstein e contra os dinamarqueses. Tratando da Prússia, revela Duncker A monarquia constitucional aparece para nós como uma demanda requerida do tempo, como a necessidade histórica de nossa época, como a reconciliação entre o norte e o sul da Alemanha, como o compromisso entre o absolutismo e a liberdade. O princípio conquistado era serem oferecidas condições aceitáveis, uma paz própria para ser concluída entre os partidos em disputa. Constitucionalismo, como desejamos, era para ser democrático e honrado: não para ser limitado pela representação da burguesia em que um administração poderosa e centralizada controlasse o balanço; era para proceder de um auto governo das províncias e ser direcionado para o caminho de um Parlamento germânico (Apud SOUTHARD, 1995:122). Droysen tinha medo da anarquia republicana (SOUTHARD, 1995:123) e da revolução, da guerra civil. E temia que os príncipes não fossem receptivos, compreensivos com o projeto da unificação. Para Droysen, “a Alemanha deveria ser forte, mais forte que o perigo ou nossa esperança” (Apud SOUTHARD, 1995:26). A constituição prussiana, aprovada, teria o mérito de ser confeccionada com base na representação provincial. Suas expectativas, contudo, foram frustradas pelos acontecimentos e ele voltou-se para o trabalho acadêmico. Haym insistia que “o processo histórico consiste no progressivo desenvolvimento da ideia que subsume todos os fatos e valores” (Southard, 1995:87). Ele acrescentou à ideia de progresso contida na filosofia hegeliana, 52 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 embora abandonasse sua crença em verdades atemporais, a empiricidade, historicizando a ética. A pedido de Duncker, Haym leu o panfleto de Gervinus A Constituição Prussiana redigido em 1847 e chegou a conclusões parecidas com as de Droysen. A Prússia não precisava de uma constituição porque o constitucionalismo era algo inevitável, ela precisava de uma constituição para preparar o caminho da unificação. Enquanto Gervinus apelava para a força dos negócios, Haym tratava do poder dos negócios – pensando-os como agentes de mudança. Sybel, protestante vivendo em um território católico, era um fervoroso adepto do modo rankeano de escrever e pesquisar história, mas não de fazer política. Em 1843 escreveu Sobre os Tories e também Sobre a relação da nossa Universidade com a vida pública. Criticava as monarquias absolutas, contrapondoas à liberdade, ao caminho constitucional e representativo. E também o mito do herói de Edmund Burke. Redigiu Os partidos políticos do Reno em 1847, para combater o partido feudo-clerical. É dele o maior número de colaborações na Historische Zeitschrift, da qual foi o também o editor-chefe até 1895. Em seguida o periódico foi dirigido no curto período de um ano, entre 1895 e 1896 por Heinrich von Treitschke e, em seguida por Friedrich Meinecke de 1896 a 1935. Ao tratar dos historiadores prussianos, Southard retrata Duncker como mais ingênuo, Haym como mais raivoso, Droysen como mais enérgico e personalista, Sybel como o mais conciliatório. À guisa de conclusão eu lembraria que as motivações da pesquisa histórica partem sempre de circunstâncias do presente relacionadas às carências de sentido provocadas pelas transformações ocorridas, e isso não foi diferente em relação aos historiadores alemães. Todos eles abandonaram a produção de uma história filosófica por outra, mais empirista e mais voltada para as repostas aos problemas colocados em seu tempo, que invariavelmente se situava entre a política e a diplomacia. Lideranças em suas localidades, articulados, cultos, autores conhecidos e enérgicos, aqueles historiadores não poderiam se furtar do debate político vivido, tampouco fugir do chamamento que a sua atuação exigia. Concordo com Rüsen que vê na historiografia um modo de constituição narrativa de sentido, no qual domina o fator da relação ao público-alvo, de dirigir-se a alguém mediante o pensamento histórico (que, aliás, sempre é pensado para alguém, para um público ou 53 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 para um grupo de pesquisadores, por exemplo). É determinante desse modo e de sua especificidade científica o ponto de vista da relevância comunicativa. Ela diz respeito à receptividade das histórias. (RÜSEN, 2008:28). Assim, podemos perceber que havia um rico e profundo diálogo que foi estabelecido entre os historiadores da Escola Histórica Prussiana do século XIX e sociedade na qual se inseriam, não somente no plano do pensamento, mas, sobretudo, no plano da ação, encurtando a distância entre ciência e política, suas verdadeiras e inseparáveis vocações. 54 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARTHES, Roland. O discurso da história. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 2004. BENTIVOGLIO, Julio. Leopold von Ranke. In: MALERBA, Jurandir (org). Lições de História. Rio de Janeiro: Porto Alegre: Ed. PUC-RS: FGV, 2010 (no prelo). BREISACH, Ernst. Historiography: Ancient, Medieval, and Modern. Chicago: University Of Chicago Press, 2007. BREUILLY, John. Austria, Prussia and Germany, 1806-1871. New York: Longman, 2002. CARDOSO, Ciro Flamarion S. Uma introdução a história. 7a ed. 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WHITE, Hayden. The content of the form. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1990. 58 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A História Como Sagesse Doutoranda Joana Duarte Bernardes FLUC / CEIS 20 Universidade de Coimbra E-mail: [email protected] RESUMO É nosso objectivo esclarecer quais as metamorfoses que o axioma ciceroniano “Historia magistra vitae” sofreu diante da mudança da perspectiva temporal. E se tal tarefa implica sopesar-se o contributo das concepções cíclica, judaico-cristã e moderna da temporalidade, deve questionar-se também qual a recepção possível de uma ideia de história tornada exemplum, no contexto da actual crise da produção de memória e da banalização do novo. Palavras-Chave: historia magistra vitae – sagesse - temporalidade ABSTRACT It is our goal to clarify what metamorphosis the ciceronian axiom “Historia magistra vitae” has undergone in face of the various temporal perspectives. And, if such a task implies weighing the contribution of cyclic, judaic-christian and modern forms of temporalities, it should also be asked what reception is possible nowadays – when the production of memories is passing a moment of crisis and the trivialization of the new has been the support of an arithmetic and cumulative experience of time. Keywords: historia magistra vitae – sagesse - temporality 1. Se é verdade que escrever a história é ler o real como um texto, admitamos que essa leitura, partilhando com o seu sujeito o presente ao qual este está arreigado, ao dar sentido ao pretérito não pode nunca deixar de estribar esse magistério na inevitabilidade de interpretações futuras. Admitamos também que, a ser uma prática de desvelamento do acontecido, a historio-grafia confere ao seu escritor uma capacidade de iluminação, não pela tentação da prognose, mas pelo 59 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 exercício do presente como momento de verdade: produção de luz, revelação do adormecido. Qualquer uma destas tentativas de definição do ofício do historiador (e qualquer uma que assuma que em primeiro plano historiográfico está um sujeito pré-ocupado), ao situar aquele que escreve a História num campo de experiência adquirida, indirecta, mediada, passa necessariamente pelo reconhecimento de que é impossível separar memória e história. Mas nem sempre esta reciprocidade é tida em conta. A verdade é que quer preocupações excessivamente esteticizantes e datadas (como por exemplo, a avaliação da prevalência de uma cultura sobre outras; a problemática da existência ou não da História dos outros1) ou mesmo de ordem ontológica e epistémica (as querelas sobre o estatuto diferenciado ou não entre historiografia e ficção; a construção do discurso historiográfico) acabam por secundarizar o que importa de facto: a historiografia nunca poderá ter, de forma assumida e responsável, uma função pragmática enquanto as leituras do passado padecerem de excessos de anacronismo ou de exageros presentistas. O mesmo será dizer que o ciceroniano preceito historia magistra vitae deve ser depurado e, antes de mais, contextualizado. 2. Se, por um lado, não é novidade dizer-se que é Cícero quem, a propósito das virtualidades da oratória, afirma ser o orador aquele capaz de veicular o conjunto de experiências não só do passado mas do outro2, deve sublinhar-se que o que aqui está em causa é, também, a compreensão clara sobre o papel quer da escrita, quer da palavra ouvida, na construção de mundividências pessoais e na tomada de consciência de uma sabedoria que, acima de tudo, pode e deve ser comum. E, portanto, a história, que era mestra da vida, era também a vida da memória, logo, sobrevivência possível do passado. Colocando a história ao serviço da oratória, enfatizava-se, sobretudo, o carácter exemplar das coisas pretéritas e não somente o seu registo. O que significa que o autor situa o julgamento da história no presente, porque o julgamento da virtude é feito pela elevação, ou não, da vida a exemplo (logo, a biografia), e o cumprimento do passado no futuro – que Cf. Fernando Catroga, Os Passos do homem como restolho do tempo. Memória e fim do fim da história, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 191 e ss. 2 “Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia vetustatis, qua voce alia, nisi oratoris, immortalitati commendatur?” (CÍCERO, De oratore, 2, 9, Boston, WELLS and LILLY, 1823, p. 109). 1 60 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 também seria passado – , uma vez que, feito exemplo, deveria estar sempre a repetir-se. Percebe-se que assim seja. Numa sociedade caracterizada por uma concepção de tempo cíclico, em que a perspectivação da história enquanto magistério transmissor de uma súmula de exemplos deveria servir às gerações futuras, a experiência nunca poderia ser considerada passada. Isto é, um futuro apriorístico estaria sempre em aberto em virtude quer do seu carácter reprodutor, quer devido a uma rememoração constante da acção original. No entanto, ter-se-á sempre de perguntar qual a futuridade que existe num horizonte crente no eterno retorno, ou, numa sua versão mais mitigada, na constância da natureza humana. Pano de fundo em que o indivíduo deveria ser sempre a personificação do anterior1. Se se tiver em conta que historiografia e biografia surgem ambas no século V (não por acaso o da idade de ouro da democracia ateniense), pode concluir-se, como foi já feito2, que, se a primeira parece ficar circunscrita aos leitores e ao ensino aristocráticos, a biografia terá sempre desempenhado uma função mais democraticamente pedagógica já que seria um género popular, o que mostra claramente até que ponto um certo ideal heróico deveria estar ao alcance de todos. Compreende-se: pelo menos num plano teórico, também o futuro era visto através dos olhos da isonomia ateniense. Ou, talvez melhor, a igualdade entre cidadãos começava sempre no passado, como se nele residisse uma vocação universal, nem que fosse a possibilidade democrática de cada indivíduo poder conquistar a Fama. Nesta universalidade dos exemplos residia a previsibilidade do futuro – forma de se dizer que os casos vindouros seriam quase expressão, reactualizável, de um referente máximo (mas não absoluto) e pretérito. Sem uma vivência diacrónica, o horizonte de expectativas não poderia ser projectado – e o próprio campo de experiência estaria revestido de uma semântica peculiar3. De facto, o exemplum conteria uma dimensão anamnética, própria de um Cf. François Dosse, La Apuesta biográfica. Escribir una vida, València, Publicaciones de la Universitat de València, 2007, pp. 123 e ss. 2 Cf. Arnaldo Momigliano, The development of Greek biography: four lectures, Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1971, p. 39 e ss. 3 Partimos dos conceitos definidos enquanto categorias meta-históricas por Reinhart Koselleck em Le Futur Passé. Contribution à la sémantique des temps historiques, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1990, pp. 307 e ss: “L’expérience, c’est le passé actuel, dont les événements ont 1 61 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 estrato temporal não apenas passado como narrativizado, distante temporalmente e estrangeiro subjectivamente, mas cuja consciência do estranhamento é irrealizável porque a acção funcionaria por via mimética. Visto que na ordem cíclica das coisas – ou no reino do só aparentemente mutável – cada dia inaugurava uma possibilidade de reinício, o presente estaria sempre a acontecer e a decair, sem que se ultrapassasse nunca uma fatal roda da fortuna elevada à escala da natureza: a cada movimento de crescimento, seguir-se-ia outro de degenerescência. Veja-se o que sucede na Odisseia, a título de exemplo. Quando Hannah Arendt afirma que Homero, no momento em que Ulisses regressa a Ítaca, amalgama no aedo Demódoco, a função de poeta e de historiador, defende que assim se funda a primeira circunstância historiográfica1. Faz, contudo a seguinte ressalva: trata-se da fundação poética de uma experiência humana historicamente mais antiga. Como se dissesse que, desde que inserto numa comunidade e, precisamente por isso, público da vida e da morte do outro, o homem experienciasse a passagem do tempo enquanto fenómeno. Pelo que Ulisses certamente perguntaria a Santo Agostinho o que era o tempo – em virtude da experiência narrativa – e não historicista – que pontuou o seu regresso 2. E isto porque a ordem cíclica do tempo vivia do exemplo que vivia da imitação da acção – ciclicamente. Desta feita, em última instância, a renovação da ordem circular das coisas gera e alimenta-se do esquecimento. Pelo que, só através de uma práxis exclusivamente humana, produtora de mitos, de poesia, de filosofia, de histórias3 se poderia ter a ilusão de se fugir à amnésia inexoravelmente provocada pela corrupção do tempo físico. Com efeito, falar em historia magistra vitae somente faz sentido numa sociedade cujo pensamento, nas suas diversas manifestações, estava été integrés et peuvent être rémémorés (…). Dans ce sens, l’histoire a effectivement de tout temps été saisie comme porteuse d’une expérience étrangère. On peut affirmer la même chose pour ce qui es de l’attente: elle aussi est à la fois liée à l’individu et interindividuelle; elle aussi est s’accomplit dans le présent et est un futur actualisé, elle tend à ce-qui-n’est-pas-encore, à ce-qui-n’est-pas-duchamp-de-l’expérience, à ce- qui-n’est-pas-aménagéable” (p. 311). 1 Cf. Hannah Arendt, Between Past and Future, USA Penguin Books, 1993, p. 45. 2 Cf. François Hartog, Régimes d’Historicité. Présentisme et expériences du temps, Paris, Seuil, 2003, p. 68 e ss. 3 Cf. Hannah Arendt, op. cit., pp. 64; J. A. Barash, Politiques de l’histoire. L’historicisme comme promesse et comme mythe, Paris, PUF, 2004, p. 240 e ss.; Fernando Catroga, Os Passos do homem como restolho do tempo, p. 16-18. 62 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 dominado pela crença na índole degradativa e corruptora do tempo, e, consequentemente, na sua renovação, compreendendo esta não tanto a repetição da res gestae, mas sim sucessivos ciclos tipológicos. O que, mostrando que a própria natureza humana seria imutável e ahistórica, o afamado axioma se compaginava com a necessidade de se contornar o esquecimento. Se para o grego, o homem estaria sujeito irrevogavelmente às leis da physis, então nada lhe restaria a não ser a opção – ou a inevitabilidade – de dois caminhos. Se, por um lado, é a manutenção do trabalho e, decorrente deste, a criação da ordem, que permite considerar como finalidade humana a materialização da luta contra o olvido, por outro, apenas através da práxis o homem assegura as condições para a recordação. O que faz de Heródoto um justo. Para o autor, o historiar deveria combater o esquecimento o que denota que ele adivinha algo que apenas mais tarde fará sentido, à luz das diferentes experiências do tempo: que a historiografia se faz para ordenar (não esquecer) o passado e pacificar o presente. Em suma, ela, tal como o mito nas sociedades de cultura oral, aparece como uma ars memoriae, adequada à sociedade da escrita, e como uma resposta aos efeitos aculturadores e amnésicos que, a par da expressão ontológica do tempo, esta inevitavelmente também provoca1 na sagesse assente na oralidade. Não surpreende, pois, que Heródoto afirme que regista o que viu, o que lhe granjeia o estatuto de testemunha – e que, consciente de que esse é um trabalho de mediação, as suas histórias sejam as histórias de Heródoto. No caso do hístor (e não historiador) de Halicarnasso, declara-se o processo selectivo que deve nortear a narração de um passado que não deve ser esquecido – não como registo da passagem do homem mas antes como catálogo de passados ideais, positiva e negativamente. E se é sedutora a ideia de que, em virtude da experiência temporal, só na Antiguidade clássica uma história do tempo presente poderia fazer sentido de forma cabalmente lógica, não será porque cada fragmento tornado narrativa de interesse humano (que é a base tanto da narrativa ficcional, como da historiográfica), é apresentado, não como uma fracção do todo, mas cuja 1 Fernando Catroga, op. cit., pp. 27 e ss. 63 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 concretização, enquanto produto narrativo, só sucede porque pretendida como modelo?1 3. Com contradições na própria apropriação que a antiguidade fez da máxima de Cícero, não surpreende que os próprios Padres da Igreja a tenham sempre olhado com renitência e desconfiança. Isidoro de Sevilha, por exemplo, não confere grande relevo, explicitamente, ao preceito ciceroniano, já que os exempla deveriam ser lidos nos argumentos religiosos, não na história profana2. Contudo, se é verdade que o paganismo assombrou sempre a intelectualidade patrística precisamente por pôr em causa a maquinaria temporal do Livro, não o é menos que o próprio autor das Etimologias, na definição de historia, consagra um pequeno subcapítulo a “De utilitate Historiae”, no qual, se considera alguma força educadora aos autores pagãos, também localiza a história num passado que admite uma nova compreensão: se ela serve o aperfeiçoamento institucional através da “praeterita hominum gesta”, o conhecimento dos anos (através dos annales) e dos tempos (através da historia) pressupunha uma perspectiva retrógrada3. Não espanta que assim seja. Não apenas a qualidade do exemplo é alterada, como a teia temporal judaico-cristã obrigará a que se reequacione a lei do De Oratore. Com efeito, a divindade judaico-cristã, instalada na sua eternidade e criando um tempo que, enquanto criatura, tem princípio e fim, ao estar orientado para uma meta escatológica, propiciava, teoricamente, a criação e emergência de um homem novo e de um tempo novo4 – enquanto fenómenos absolutos, irreversíveis e irrepetíveis. A partir do momento em que a criação do mundo é identificada com um Alfa Único, homem e cosmos passam a estar sob o imperativo da Revolução e da Revelação: o ritmo da história pauta-se, então, pela irreversibilidade, alegoria que é da divindade criadora – também ela Una. Todavia, porque a cristianização Cf. Françoise Proust, L’Histoire à contretemps. Le temps historique chez Walter Benjamin, Paris, Les Éditions du CERF, 1994, p. 19. 2 Com efeito, assim descreve sucintamente Reinhart Koselleck, partindo da obra de J. Fontaine, Isidore de Séville et la culture classique dans l’Espagne wisigothique, a dificuldade de Isidoro de Sevilha face à definição de História, já que recorrer ao axioma implicaria, segundo o autor, admitir o predomínio da exemplaridade do mundo profano. 3 “Historiae gentium non impediunt legentes in iis, quae utilia dixerunt. Multi enim sapientes praeterita hominum gesta ad institutionem praesentium historiis indiderunt. Siquidem et per historiam summa retro temporum, annorumque supputatio comprehenditur; et per consulum, regumque successum multa necessaria perscrutantur.” (Isidoro de Sevilha, Opera omnia: Etymologiarum, liber I, caput. XLIII, Typis Antonii Fulgonii, 1798, p. 72). 4 Sobre a conceptualização do homem novo no contexto revolucionário francês, vide Mona Ozouf – L’homme régénéré. Essais sur la Révolution française. Paris: Gallimard, 1989. 1 64 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 obrigava a que o herói fosse substituído pelo mártir (daí que a sua historiografia seja, em última análise, uma hagiografia), culminava por também inscrever no caminho salvífico do homem, condenado à história porque pecou, a exemplaridade bíblica (consubstanciada no exemplo dos exemplos: Cristo) – que acaba por efectivar a função dos exempla postos agora ao serviço da Cidade de Deus. Em última análise, num tempo em que, contrariamente ao que virá a suceder na experiência moderna (na qual a causa de sofrimento – e suporte de uma atitude melancólica – é o mesmo tempo), o valor do exemplo se afirmava sempre através do novo como encarnação sempre mais próxima do sagrado, o significado da historia magistra vitae é aquele que apresenta a História como conjunto de experiências paradigmáticas e pretéritas, reconhecidas como fonte de exemplaridade irreversível que só por imitatio poderá ser rediviva, testemunha de que o Deus transcendente se revelara historicamente1. Por conseguinte, aos olhos do crente o Livro também constituía uma narração arquetípica, não pelos factos em si mas pelos sinais do gradual anúncio da salvação do sofrimento causado pela história. O que fez com que o seu futuro escatológico fosse incindível de uma prática que aparentemente contraditava: a convocação do rito e, portanto, da memória. Não admira, pois, que o próprio Santo Agostinho tenha rejeitado o seu neoplatonismo inicial, porque a concepção cíclica não permitia que o homem se libertasse do fatalismo, e que tenha procedido à seguinte clarificação, quer a nível subjectivo, quer a nível colectivo: o presente, ou melhor, o presente-presente é sempre presente-passado e presente-futuro. E, por isso, quanto a este último, a história só seria mestra da vida se ela fosse lida como uma semiótica da esperança transcendente. Na hagiografia ficam plasmados testemunhos – mais do que exemplos, precisamente porque martyroi – da relação que é possível estabelecer com a divindade judaico-cristã, na medida em que a História já está escrita antes mesmo de o ser2. De facto, contrariamente ao que sucede na experiência cíclica, a vida exemplar é delimitada por uma temporalidade cosmológica também ela circunscrita por uma narrativa que começa e acaba (o Livro) e que, per se, não é Fernando Catroga, op. cit., p. 135 e ss. Michel de Certeau, L’écriture de l’histoire, Paris, Gallimard, 1975, p. 281; François Dosse, op. cit., pp. 137 e ss. 1 2 65 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 mais do que um fragmento do Todo divino. E por isso o mártir não contraria a vontade divina – pelo que não poderia ser considerado herói – nem se confunde com ela – não sendo messias. Assim sendo, e porque a experiência legada era, não apenas passada, mas obrigatoriamente a experiência da alteridade, a lógica judaico-cristã, assente na transcendentalização da própria divindade, não excluía o sujeito do páthos edificador, ao eleger o sacrifício e a conversão como condições para o aperfeiçoamento moral, bem pelo contrário. O que talvez faça com que a hagiografia possa ser pensada como estando nos antípodas da historiografia1 é a sua inevitável capacidade de personificar o lógos divino, instrumentalizando o homem do ponto de vista da experiência como mediação – mas sem que esta se traduza num problema. Esta lógica, ao fazer de Cristo o exemplum exemplorum, cerceia a prática da virtude cívica cantada pelos filósofos pagãos para que se possa inaugurar a conversão e tornar a Revolução possível. O sujeito deixa de estar sob o jugo da roda da fortuna – no sentido de imitar um passado que oferecia o futuro, como se este precedesse sempre o sujeito – para projectar no Além (que está fora do tempo) a Esperança. Modo de se dizer que ao sujeito ficava reservada a hagiografia e não uma historiografia: para que ele pudesse apreender a história do mundo – contida no Livro e por ele e à luz dele historicizada. 4. Nessa medida, quando, em pleno processo de secularização e modernização do homem, em período de enfraquecimento da escatologia judaicocristã, Maquiavel exorta à admiração e imitação dos antigos, não será ingénuo pensar-se que se trata apenas de uma convocação mecânica do axioma de Cícero? Maquiavel, como já antes Petrarca (De Viris Illustribus), apresenta o exemplo antigo para que da imitação possa ser criado um grande homem que só atingirá esse estatuto se conseguir, através da acção, ou melhor, da virtù, relativizar os efeitos da fortuna. A bem dizer, só então se conjugaram as circunstâncias ideais para que, ultrapassadas as teologias da história e em plena época de reordenamento da Cf. Michel de Certeau, op. cit., p. 274. Segundo o autor, citando Sulpício Severo, o que demarca a hagiografia do discurso historiográfico é que, quer o discurso, quer o seu significante estão ambos ao serviço de uma verdade transcendente que organiza os próprios acontecimentos, o que, mediante os preceitos genológicos da hagiografia/hagiologia, excluía da História qualquer função epifânica. 1 66 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 própria natureza e auto-suficiência do político, o antropocentrismo permitisse que, ao reactualizar-se o sistema judaico-cristão, Maquiavel identificasse a velha virtude enunciada nos exempla greco-romanos com a capacidade de controlar a fortuna e de a ela resistir. É este matiz na concepção do herói renascentista, por comparação ao herói antigo, que justifica que também o primeiro seja celebrado – ou, talvez melhor, biografado. Com efeito, equilibrando a exemplaridade clássica e a tyche (superior à balança dos deuses), reconhece a virtù somente quando através da acção supera uma história já ditada. A História surge verdadeiramente como mistério mas também como plasticidade, o que começava a potenciar a abertura de caminho à chegada do Progresso, enquanto futuro aberto, e de uma concepção do homem capaz de, colectivamente, através do seu sucessivo aperfeiçoamento, contrariar, ironicamente, a decadência do mundo1. Posto isto, a releitura que a moderna experiência do tempo levará a cabo sobre aquele que é, porventura, o mais humano dos ensinamentos, parece vir contraditar, pelo menos teoricamente, o preceito de Cícero, na medida em que se fixa numa concepção de tempo irreversível, pelo menos desde o século XVIII. Vejamos. Em primeiro lugar, um futuro aberto vem ocupar o lugar, quer do regresso, quer da transcendência do fim judaico-cristão; o que significa, admitindose a infinitude do tempo (e, consequentemente, do espaço), que a possibilidade perfectiva do homem enviesava, de certa forma, a imitação. Por outro lado, o passado, em virtude da crença no progresso, é sempre mais imperfeito do que o presente, e, por esse motivo, o futuro, sendo forjado no passado, é sempre qualitativamente superior. Pelo que, a credibilidade da divisa só seria sustentável no seio de uma visão imanentista e teleológica do devir, e isto porque a retrospectiva que a legitimava tinha de encarar o passado com o continente potencial do conteúdo que o tempo ia explicitando como progresso. Deve, pois, perguntar-se qual vem a ser o lugar do exemplo se, mesmo não podendo prescindir da analogia, a experiência moderna do tempo releu o devir universal, não como fatalidade e degenerescência, mas antes como realização gradual e perfectiva da Humanidade por ela mesma. O que, em parte, explica por que motivo a revolução deixa de ser encarada como movimento circular cósmico – Miguel Baptista-Pereira, Modernidade e Tempo. Para uma leitura do discurso moderno, Coimbra, Minerva, 1990, p. 75. 1 67 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 com paralelo na vida dos homens1 – para ser entendida como o lógos cristão intentou no plano religioso e transcendente: a chegada de uma nova ordem das coisas através da Revolução implicava que a consumação do previsto como Verdade estivesse situada no Futuro – no caso moderno, exequível através da aceleração do tempo (Diderot; Robespierre). A rasura do passado, apanágio revolucionário, parece prescrever à exemplaridade o papel de experiência tipificada (e, portanto, impossivelmente geradora de virtù), posta no catálogo das grandes narrativas com uma finalidade pedagógica e em que os exempla (de indivíduos, de épocas) são sobretudo relevados enquanto antecedentes e precursores de valores de porte universalista, porque inspirados na natureza humana. Com a Revolução e a metamorfose das histórias numa História entificada e, portanto, com o início de uma pré-ocupação veridictiva na valoração do discurso historiográfico, o passado deixa de ser modelar para passar a ser um ausente relativizado. No entanto, poder-se-á afirmar que esta relativização dos acontecimentos subsume a historia magistra vitae2? A grande diferença entre os regimes modernos de historicidade e os seus precedentes é que a história se transforma em mestra da vida não por imitação – porque o futuro seria sempre qualitativamente melhor do que o pretérito, independentemente do grau de analogia passível de estabelecer entre acontecimentos –, mas sim através da selecção do passado e da sua filiação face ao presente e ao seu uso como argumento legitimador da previsão do porvir. O exemplo passa a ser perspectivado enquanto potencial instrumento para a emancipação do presente – direccionado para a consumação da Felicidade futura. Daí que faça dos grandes homens momentos mediadores e, portanto, pioneiros do que, finalmente, se iria realizar em plenitude. Mesmo nos discursos contra-revolucionários e conservadores, a insistente convocação do que foi, seja através da glorificação do passado, seja através da observação do passado como condição de Progresso, já não está em causa a automática e cíclica reprodução do tempo. Cf. Joana Duarte Bernardes, “O século XX ou o ambíguo tempo dos profetas”, Estudos do Século XX, Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX - Universidade de Coimbra, nº 9, 2009, p. 96-98. 2 Cf. R. Koselleck, op. cit., p. 47. 1 68 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 5. Se isto é sintoma da passagem do herói a grande homem enquanto médium do télos agora inscrito na própria História – isto é, da mudança de lente para melhor se retrospectivar o passado – também revela que desta transmutação resulta não apenas a firmação da História (e da Humanidade) como entidade, mas, outrossim, a sua assunção como memória, presa num jogo em que o futuro não pode ser recalcado. Ganha, assim, sentido que se deixe esta pergunta: se, com o advento da Modernidade, a História continua a ser, dentro dos pressupostos assinalados, mestra da vida, não será igualmente correcto sustentar que a vida também é mestra da História? O que nos conduz à seguinte questão: quando pode, afinal o conhecimento do passado produzir sagesse? Enquanto a procura e a aquisição de conhecimentos são próprios do filósofo e do cientista (não por acaso identificados com as concepções cíclica e moderna de tempo, respectivamente), tão só quando esses conhecimentos resultam na compreensão do que é a condição humana (o homem como ser para a morte e, simultaneamente, como ser para a vida) é que a História pode ser veículo de sagesse. E não será menos verdade asseverar que o magistério da História torna o Homem conhecedor da sua natureza e circunstância quando e se o seu conhecimento histórico estiver ao serviço da compreensão do outro, da diferença e da finitude. Muito para além da historiografia, a vida é o Homem estar perpassado de tempo e no tempo1. Resta saber, pois, que uso disto fará uma actualidade marcada precisamente pela crescente reprodução do convencimento – que a análise profunda da experiência subjectiva não confirma – de que esta não passa de um somatório cumulativo e aritmético de memórias e esquecimentos. Neste horizonte (ou na falta dele) faz-se a vénia servil à vivência meramente presentista e sucessória dos momentos, como se a temporalidade (e, por conseguinte, a historicidade) tivesse como exclusiva condição de possibilidade esta premissa: o advir do momento seguinte exige o total esquecimento do momento anterior. 6. Admitamos, apenas provisoriamente, que a experiência moderna do tempo pode ser balizada entre a Revolução Francesa (1789) e a queda do muro de Berlim (1989)2 e que o século XX termina mergulhado numa experiência de tempo 1 2 Fernando Catroga, op. cit., p. 111. François Hartog, Régimes d’historicité, p. 116 e ss. 69 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 presentista. Por presentismo, entenda-se a sempre iminência do presente e o domínio do ponto de vista desse mesmo presente1. Como suas provas são chamados à colação movimentos estéticos, como o simultaneísmo ou o nunismo, ou mesmo diferentes posições diante do estudo do passado. A título de exemplo, referimo-nos ao papel mediador do sujeito, destacado por uma corrente de pensadores que, contra os objectivismos e positivismos vários, relevou a dimensão contemporânea de toda a indagação histórica. Na verdade, outro ensinamento não se pode retirar do magistério de autores como Droysen, Dilthey, B. Croce ou Collingwood. Facilmente se percebe que não se tratava de reduzir a história ao tempo presente (ou cair-se em anacronismo), mas defender o inevitável círculo hermenêutico que existe entre os problemas do presente e as representações do passado. Algo não muito distinto, mas numa perspectiva menos teórica e mais historiográfica, foi avançado pelos Annales (Marc Bloch e Lucien Febvre). Tendo sido defendido já que o conceito de historia magistra vitae deixou de ser operatório à entrada do século XX (o que pressupõe uma errónea e remanescente concepção essencialista de tempo). No entanto, ultrapassadas que devem ser definições impressionistas, urge perceber até que ponto a banalização do conceito não está a decorrer nesse mesmo hipotético regime de temporalidade presentista. Aliás, os que enfatizam esta última experiência nem sempre percebem que não pode competir àquele que pensa o tempo a sua alegada revelação. Guardadores do tempo, sabem melhor do que ninguém que é sempre à luz de memórias e expectativas – e não de um impossível presente-presente – que o seu labor cognitivo sobre o passado tem lugar. Dizemos mais: o presentismo mais não é do que tanatopraxia do tempo não assumida, através da sua transformação em coisa. As últimas décadas do século XX ficaram marcadas pela chamada revolução da informação e por um surto tecnológico que se propagou a todos os níveis da esfera pública e da esfera privada, alimentando quer a queda de barreiras culturais (e consequente reafirmação das diferenças), quer a disparidade entre um mundo que vê (mais lato mas inevitavelmente circunscrito) e uma multiplicidade de mundos que são vistos. E se isto pode significar uma crescente participação do 1 Idem, ibidem, pp. 120-122. 70 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 indivíduo no processo de comunicação global – e da globalização –, também é certo que as dessincronias entre os povos pressentidas pelo pensamento iluminista estão, mais do que nunca, à mostra e para uso das consciências. A hipertrofia da memória motivada pela superabundância de informação e pela permanente referenciação digital do mundo e da vida, marcas da vivência inegável de um presente cuja futuridade se pretende sempre adiar, exige, talvez mais do que nunca, uma nova releitura do magistério da História. Fenómenos como as chamadas políticas de memória, ou, e decorrente destas, a patrimonialização1, se respondem a uma espécie de estética do efémero, simultânea e ironicamente desenvolvida para a acumulação mas não para a perda, reclamam que o diálogo entre o legado da experiência e a humana necessidade de um horizonte de expectativas resulte na veiculação de uma sagesse. Ora, neutralizar a lógica do axioma em apreço por força de um argumento que tem na sociedade de produção e de consumo as causas – inegáveis – para a supervalorização do agora e consequente retardamento das ideias de fim e de finalidade, é querer silenciar o seguinte: ser o presentismo a face da crise da moderna experiência do tempo potencia que o axioma Memória e Espera, mestras da História, se cumpra, contrariando-se a idolatria do presente através da compreensão da evidência do passado. Esta releitura da feliz glosa de Cícero é indispensável, na medida em que apenas ela pode resgatar das práticas frias da patrimonialização – acumuladoras do passado – o conhecimento das coisas pretéritas. Este deve estar sob a égide de um trabalho da memória consciente de que, se dela parte a paulatina edificação da nossa pré-compreensão do mundo e a nossa capacidade de o representar, esse conhecimento só é válido se estiver ao serviço de uma leitura em que a alteridade seja perscrutada como estágio anterior no presente de quem rememora – e não como monumentum “estrangeiro” no qual não seja possível ler a experiência do outro. Isto implica, antes de mais, pesar-se o exemplum à luz da desconstrução (ou, pelo menos, da questionação) dessa exemplaridade hegemónica Vítor Oliveira Jorge, “Património, neurose contemporânea?”, in Conservar para quê? coord. de Vítor Oliveira Jorge, Coimbra / Porto, Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto, 2005, pp. 25. 1 71 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Ao protelar-se, grosso modo, o fim, ao relativizar-se, através da multiplicação e da sobreposição, o presente, este tende a escapar à historicidade. O agente da chamada “sublime historical experience”1 tem, assim, ao seu dispor os instrumentos críticos necessários para escapar aos vícios historicistas do século XIX, às políticas de silêncio do século XX e à atracção contemporânea pelo presentismo. Repare-se: a história pode ser narrada liberta da sedutora previsão do fim, colocando em plano de epistemológica igualdade passado e presente – o primeiro, por via negativa, o segundo, e ainda que ilusoriamente, por via positiva. É que o presente, se se supõe que seja auto-suficiente2, também surge conotado como o que já passou e como o que ainda não veio. De onde se infere que os sentimentos de expectação, plasmados na linha do horizonte de expectativas, passam por um processo voluntário de activação – caso o sujeito se posicione criticamente no seu presente em relação ao passado – ou de ignorância. Mais do que nunca, é necessário um processo crítico de selecção de memórias. Forma de se dizer que o velho preceito mantém a relevância de sempre para a construção do conhecimento histórico e para a qualidade da experiência do indivíduo – mas que cabe ao historiador a aquisição e partilha de uma sagesse que só o é se tiver implicações humanas. “Sublime historical experience is the experience of a past breaking away from the present. The past is then born from the historian’s traumatic experience of having entered a new world and from the awareness of irreparably having lost a previous world forever” (F. R. ANKERSMITH, Sublime Historical Experience, Stanford, California, Stanford University Press, 2005, 265). 2 Cf. Fernando Catroga, op. cit., principalmente pp. 27 e ss. 1 72 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANKERSMITH, F. R. Sublime Historical Experience, Stanford, California, Stanford University Press, 2005. ARENDT, Hannah. 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Palavras Chave: História, hermenêutica, Gadamer, Dilthey ABSTRACT The aim of this article is to promote a reflexion about the methodological and philosophical fundaments of hermeneutics, especially discussing how the HansGeorg Gadamer and Wilhem Dilthey's presumptions communicate with the theoretical and methodological principles in the field of History. Keywords: History, hermeneutics, Gadamer, Dilthey Em uma concepção simplista, hermenêutica sugere um ramo da filosofia que busca a compreensão humana, o esclarecimento e a interpretação de textos escritos. Notadamente, se apresenta como sendo a tradutora de uma linguagem obscura e desordenada cujo fim desaguaria na interpretação única e verdadeira do texto. Segundo o crítico literário Luis Costa Lima, os primeiros tempos da hermenêutica se organizavam a partir de pressupostos teóricos e filosóficos 1Este artigo é fruto das discussões e leituras realizadas na disciplina História e Hermenêutica ministrada pelo Prof. Dr. Pedro Spnola Caldas no curso de Pós–Graduação em História (Doutorado) da Universidade Federal de Uberlândia /UFU, no segundo semestre de 2007. 75 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 essencialmente frágeis, baseados, sobretudo, na descoberta do sentido literal da palavra ou texto. Na Antiguidade Clássica a hermenêutica era entendida exclusivamente como a arte de interpretação, ou seja, a responsável por apresentar o significado, a tradução dos textos. Essa visão filológica via a hermenêutica como um instrumental viável à redescoberta da literatura clássica. Na Idade Média, a hermenêutica se transformou em uma área do conhecimento eminentemente religiosa. A concepção teológica hermenêutica deságua na compreensão reformista da Bíblia e na tradução normativa ligada ao conhecimento metódico do texto sagrado. Em ambos os casos, o propósito maior era a decodificar, descobrir algo estranho, inacessível à compreensão ou ao entendimento humano. Tanto na literatura quanto na Bíblia a hermenêutica procurava desvendar o sentido original, correto e absoluto dos textos (LIMA, 1979). Contudo, a hermenêutica não pode ser entendida como um simples ato de interpretar ou um mero instrumento lingüístico que viabiliza a compreensão única e verdadeira da linguagem. Ela fez tradição no campo do conhecimento e seu estudo tornou-se essencialmente complexo e de difícil apreensão, exigindo por parte de quem a estuda uma série de cuidados e averiguações1. Assim, ao longo dos tempos muitos teóricos se debruçaram sobre a problemática da hermenêutica e apresentaram contribuições importantes a essas questões. A maior delas, é que a hermenêutica é essencial aos estudos das ciências 1 As divergências teóricas e metodológicas expressas no estudo da hermenêutica fizeram desse campo do saber uma área de estudo essencialmente complexa e até mesmo estranha ao mundo científico. A explícita discordância e a ausência de unidade do pensamento de seus teóricos podem ser identificadas nas seguintes obras: DILTHEY, Wilhem. Estructuración del Mundo Histórico por las Ciencias del Espiritu. IN: IMAZ Eugênio (org). Obras de Wilhelm Dilthey. El Mundo Histórico. México (D.F): FCE, 1978. _____. Schiller. IN: IMAZ Eugênio (org). Obras de Wilhelm Dilthey. Vida y poesia. México (DF): FCE, 1978. GADAMER, Hans-Georg. Quem Sou Eu, Quem És Tu? - comentários sobre o ciclo de poemas Hausto-Cristal de Paul Celan. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005. _____. Verdade e Método I – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2007. 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Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi um dos teóricos mais expressivos para pensar questões pertinentes à hermenêutica e à implicação de seu uso no campo das ciências humanas. A instigante relação entre hermenêutica e as ciências do espírito humano ocupou as atenções de Dilthey ainda no século XIX. Em 1870 publicou a biografia de Schleirmacher -, o primeiro que pensou a hermenêutica no campo da ciência e a concebeu a partir da existência de um método. Depois, em 1883, publicou a obra Introdução às Ciências Humanas: tentativa de estabelecer fundamentos para o estatuto da sociedade e da história. Em 1900, tornou-se público o livro O Nascimento da Hermenêutica, onde conferiu a hermenêutica o estatuto de ciência da interpretação. Em sua obra El Mundo Histórico, projetou não só a especificidade das ciências humanas, mas, sua legitimidade frente às ciências da natureza1. As bases do pensamento de Dilthey estão localizadas no século XIX, portanto parte expressiva de sua produção cientifica é fruto das conturbações e dos conflitos pelo qual passava o conhecimento científico. Nesta época, o mundo se deparava com a ascensão das idéias darwinistas, com a crise das explicações religiosas, com o auge das ideologias positivistas de Comte, com a sistematização dos novos métodos científicos e sociológicos e, sobretudo, com as mudanças de paradigmas da História. Vivia-se, então, um momento de intensa crise. Em meio à euforia dos eventos científicos do século XIX, as contribuições de Dilthey consistiram na formulação de princípios que fundamentaram as ciências humanas. Em sua perspectiva de análise, um dos pontos que constituíram a base Torna-se importante ponderar que Wilhelm Dilthey ocupou um lugar de destaque na produção cientifica do século XIX, tendo seu nome e seu pensamento constantemente associados ao historicismo alemão. Contudo, não existe um consenso em torno da importância intelectual do teórico. Alguns o classificam como reducionista, conservador, antimarxista e criador de uma filosofia de vida favorável ao expansionismo imperialista e à doutrina nazista alemã. Para maiores informações consultar: REIS, José Carlos. História e Teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 1 77 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 epistemológica das ciências humanas foi a critica da razão pura. Contra o mundo abstrato, estático, atemporal, racional, sistematizado e cultuado pelas ciências naturais, o autor apontou outro caminho, o da crítica da razão histórica: Em el mundo histórico no existe ninguna causalidad cientifico - natural porque causa, em el sentido de esta causalidad, implica que provoque efectos necessariamente, com arreglos a leyes; a historia sabe unicamente de relaciones de hacer y padecer, de accion y reaccion. (DILTHEY, 1944, p. 221). Necessariamente, a crítica da razão histórica consiste em mostrar que o homem é diferente da natureza pela capacidade que ele tem de apresentar sua experiência vivida, de mostrar sua expressão de mundo e compreender o outro. O mundo histórico é, então, o mundo das possibilidades humanas, da diferença, da linguagem, dos sentidos, enfim, o mundo em que a comunicação existe e é amplamente possível. Ao conceber a idéia de crítica da razão histórica, Wilhelm Dilthey está marcando com precisão os limites do universo histórico, cujas especificidades se configuram em três proposições essencialmente importantes não só no processo de compreensão, mas, também, na produção do conhecimento histórico. Para ele: - Todas as manifestações humanas são partes de um processo histórico e devem ser explicadas em termos históricos; - As diferentes épocas e os diferentes indivíduos só podem ser entendidos de seu ponto de vista especifico que deve ser considerado pelo historiador. -O próprio historiador está limitado pelos horizontes de sua época. (ALBERTI, 1996, p. 08) Esta passagem é significativa, pois sugere algo que hoje se apresenta comum ao oficio do historiador: as formas de compreensão da realidade, as expressões de conhecimento, bem como as experiências humanas devem ser pensadas a partir de seu contexto histórico, ou seja, a sua historicidade. À luz da mediação histórica, Dilthey aposta seu projeto intelectual em uma filosofia de vida. A vivência é um dos pontos chave de sua teoria e deve ser entendida como possibilidade de conhecimento e compreensão nas ciências humanas. Para ele vida e história são termos indissociáveis, tudo é manifestação da vida histórica: En la cooperación de vivencia, comprension de otras personas, captación histórica de ´comunidades’ como sujetos de actuación histórica y, 78 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 finalmente, del espíritu objetivo, surge el saber acerca del mundo espiritual. La vivencia es el supuesto ultimo de todo esto y por eso nos perguntamos cuál es su aportación. La vivencia incluye las operaciones elementales del pensamiento. He designado esto como su ‘intelectualidade’. Se presentan com el incremento de consciência. El o caminho de una ‘realidade’ (sachverhalt) interna se convierte así em conciencia de la diferencia. (...) A la ‘vivencia’ se adhieren los juicios sobre o ‘lo vivido’ em los cuales esto es objetivado (DILTHEY, 1944, p. 220). O conceito de vivência é, pois, a categoria por excelência das ciências humanas para entender o homem é preciso, sobretudo, compreender a sua historicidade. A história se faz na vivência com os valores, os sentidos, os ritos, os sentimentos e as experiências de que são portadores todos os homens. Essencialmente, a vivência é uma categoria viva, concreta, dinâmica intrínseca à vida humana e essa fórmula, visivelmente, não se encontra disponível nas categorias abstratas e estáticas das ciências da natureza. Mediante essas condições, a autobiografia tornou-se, a partir da concepção de Dilthey, a forma suprema de compreensão da vida, o lócus de autêntica filosofia, poesia e experiência. Ela é, então, um código estético, um gênero literário, uma manifestação da arte que viabiliza a compreensão. Sendo assim, a autobiografia só pode ser compreendida em função de sua vivacidade e com base no entendimento hermenêutico que se tornou o procedimento fundamental para todas as ações das ciências humanas: La autobiografia es la forma suprema y más instructiva en que se nos la compreensión de la vida. En ella el curso de uma vida es lo exterior, la manifestación sensible a partir de la cual la compresión trata de penetrar en aquello que há provocado este curso de vida dentro de um determinado médio. Y, ciertamente, quien compreende este curso de vida es idêntico com aquel que lo há producido. De aqui resulta una intimidad especial del compreender (DILTHEY, 1944, p. 224). Nessas circunstâncias, pode se afirmar que o projeto intelectual de Dilthey é simples, mas ao mesmo tempo profundo e complexo: a vida é matéria poética e carrega uma possibilidade enorme de compreensão e conhecimento. Em vista disso, [...] en el fondo de la creación poética se encierran las vivências personales, la compreensión de estados ajenos, la ampliación y profundización de la vivência por medio de ideas. El punto de partida de 79 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 la creación poética es siempre la experiencai de la vida, como vivencia personal o como comprensión de la de otros seres, presentes o pasados, y de los acontecimentos en que estos seres cooperan. Cada uno de los infinitos estados de vida por que pasa el poeta puede calificarse como “vivencia” en un sentido psicológico; pero solo aquellos momentos de su existência que le revelan un rasgo de la vida guardan una relación profunda com su poesia (DILTHEY, 1978, p. 140-141). Contudo, poesia para Dilthey não é uma mera imitação ou relato de vida, muito menos um retrato fiel da realidade. Também não se configura como um objeto fortuito, utilizado apenas para o entretenimento e descontração. A poesia que tem como mote de inspiração a vida humana se materializa a partir da relação de nexos que se estabelecem pelas vivencias dos homens, pela trama da existência e pela experiência que alimenta cotidianamente os indivíduos em um tempo histórico. Essencialmente, a poesia carrega recordações do passado, projeta o futuro e apresenta as condições materiais e psíquicas da vida humana no presente. Nessa direção, é possível afirmar que a hermenêutica diltheyniana é uma interpretação eminentemente historicizada. Outro teórico que tem seu nome associado à ciência hermenêutica é HansGeorg Gadamer (1900-2002). Suas obras, que apresentam diferentes procedimentos no âmbito da hermenêutica, ganharam notoriedade no campo do conhecimento científico, primeiro pela capacidade que apresenta em dialogar com pensadores clássicos como Platão, Aristóteles, Hegel, Heidegger, e, segundo, por propor os estudos da hermenêutica totalmente desvinculados da problemática metodológica e científica das ciências naturais1. Em sua expressiva obra Verdade e Método, Gadamer quer mostrar a validade da hermenêutica filosófica na busca da verdade a partir dos princípios da filosofia, da estética, da arte e da razão. A arte se torna central na obra do autor, Os princípios teóricos e filosóficos da doutrina de Hans-Georg Gadamer podem ser estudados a partir das seguintes obras: GADAMER, Hans-Georg. 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III, IV 1 80 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 com o propósito maior de revelar que a ciência e seus métodos são incapazes de absorver a experiência estética das manifestações artísticas, da filosofia e do cotidiano. O método não só separa o indivíduo do objeto, como também mata a sua historicidade, diz Gadamer. Explicitamente, essa idéia é uma resposta à ascensão do historicismo alemão que se aproximava cada vez mais do modelo e do método das ciências pura da natureza. Ao projetar a ciência hermenêutica desvinculada de um método, Gadamer cria, então, uma série de princípios que visam organizar o problema da compreensão e da interpretação, que para ele passa, necessariamente, pela experiência humana do mundo. Em vista disso, uma das formas mais expressivas da experiência humana é a obra de arte. Em Verdade e Método, das três partes que compõem a obra, uma é exclusivamente dedicada à busca da verdade a partir das experiências estéticas da arte. Assim, ao pensar a obra de arte do ponto de vista da hermenêutica, Gadamer tem como preocupação romper com a consciência estética formulada por Dilthey. Notadamente, ele se afasta das noções de vivências, da filosofia de vida e dos valores essencialmente psicológicos e intimistas da doutrina diltheyniana. Desse modo, para Gadamer, [...] a interiorização das “vivências”, não pôde construir a ponte para as realidades histórias, porque as grandes realidades históricas, sociedade e Estado, determinam de antemão toda a “vivência”. A auto-reflexão e a autobiografia – pontos de partida para Dilthey – não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por elas a história é reprivatizada. Na verdade, não é a história que nos pertence, mas somos nós que pertencemos a ela. (...) a lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não passa de uma luz tênue na corrente cerrada da vida histórica. Por isso, os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica de seu ser (GADAMER , 2007, p. 367-368). Gadamer entende que o modo de ser da arte não passa exclusivamente pela experiência do seu criador e que a vida não pode ser entendida como o fim único para a constituição de uma obra. Ele parte do princípio de que a experiência estética de uma obra de arte se materializa a partir da sensação, imaginação e compreensão de quem a interpreta. Neste caso, a obra de arte se traduz na 81 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 recepção, na autocompreensão do intérprete e é a partir dessa recepção que ela se torna um veículo capaz de realizar a estética: [...] a experiência da arte que precisamos fixar contra a nivelação da consciência estética consiste justamente em que a obra de arte não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si. Antes, a obra de arte ganha seu verdadeiro ser ao se tornar uma experiência que transforma aquele que a experimenta (GADAMER, 2007, p. 155) Ao procurar o modo de ser da arte a partir dos pressupostos da recepção, Gadamer não está à procura de uma teoria da arte de compreender, mas parte do fato de que toda obra de arte é um jogo. Extraordinariamente, o jogo tem um papel importante na procura do modo de ser da arte e na busca de sua experiência estética, pelo fato de estar constantemente aberto ao espectador. Para Gadamer, aquele que não participa do jogo, mas que assiste ao seu espetáculo, é o que tem a experiência mais autêntica do ato. Isso se explica da seguinte forma: o espectador é o sujeito que irá recriar a interpretação da obra, do jogo que lhe está sendo apresentado. É ele que melhor visualiza as ações e as sensações do jogo, pois seu distanciamento permite identificar a essência, a identidade, a unidade do espetáculo, ou seja, da obra infinitamente criada. E ele esclarece: Minha tese, portanto, é que o ser da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética, porque, por seu lado, o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo. É uma parte do processo ontológico da representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo. Que conseqüência ontológicas tem isso? Se partirmos assim do caráter lúdico do jogo, o que resulta para determinar mais acuradamente o modo de ser da arte? Uma coisa é clara: o espetáculo teatral e a obra de arte entendida a partir dele não são um mero sistemas de regras e de prescrições comportamentais, no âmbito das quais o jogo poderia se realizar livremente. O representar de um espetáculo não quer ser entendido como a satisfação de uma necessidade lúdica, mas como um entrar da própria poesia na existência. Assim, a questão é saber o que é propriamente essa obra poética, de acordo com o seu ser, uma vez que só se torna espetáculo quando é representada, na representação, e que o que nisso se torna representação é o seu próprio ser (GADAMER, 2007, p. 172). Diante desse propósito, torna-se importante ponderar ainda que Gadamer não identifique o intérprete como um sujeito autônomo, desenraizado das condições políticas de sua época. Para ele, o receptor não se apresenta passivo diante das expressões estéticas das obras que lhe são apresentadas. Ao contrário, 82 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 ele é um sujeito que atua e está visivelmente presente no jogo da arte. Ocupa, sobretudo, o lugar de sujeito do conhecimento, interpreta, recria e, indo além, redimensiona os códigos da arte com as expressões da vida. Assim, o espectador tem somente uma primazia metodológica: pelo fato de o jogo ser realizado para ele, torna-se patente que possui um conteúdo de sentido que deve ser entendido, podendo por isso ser separado do comportamento do jogador. (GADAMER, 2007, p. 164). Mas a idéia de que a experiência estética da arte se localiza na recepção do leitor ou na autocompreensão do expectador não é algo tão tranqüilo e amplamente aceito no campo do conhecimento. Diferentemente de Gadamer, Schleiermacher acredita que uma obra de arte só será verdadeiramente compreendia na medida em que for devolvida ao seu tempo original, às condições naturais de sua gênese. Portanto, o contato da arte com o intérprete, com um mundo histórico que lhe é exterior, descaracteriza por completo a essência da obra: [...] a partir do momento em que as obras de arte entram em circulação. Ou seja, cada uma (obra) tem uma parte de sua compreensibilidade a partir de sua compreensão original. (...) Por isso a obra de arte perde algo de sua significância quando é arrancada de seu contexto originário e este não se conserva historicamente (...). Assim, uma obra de arte está enraizada, na realidade, também no seu solo e chão, no seu entorno. A ser retirada desse entorno e entrar em circulação, é como algo que foi salvo do fogo e agora traz as marcas do queimado (SCHLEIERMACHER; ASTHETIK , p. 84. apud GADAMER, 2007, p. 233). Seguindo essas considerações, nota-se que Schleiermacher está totalmente comprometido em reconstruir na compreensão a determinação original de uma obra. Pontualmente ele entende a obra de arte como um código estético datado, preso a um único tempo - o tempo de sua matriz, de sua gênese. Nessa direção, enxerga arte como uma expressão superada pelo tempo, ou seja, uma obra datada que serve de reflexão e compreensão apenas para o momento histórico em que foi concebida. A questão do tempo histórico para a compreensão e interpretação de uma obra tornou-se primordial em Gadamer e, eminentemente, deve ser entendida como uma contribuição importante pra todos aqueles que pensam a arte no campo da História. Para o teórico, a distância temporal e a ocasião de representação da obra, são possibilidades positivas e produtoras da compreensão: “só a distância 83 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 permite que o objeto não seja recebido com a mesma preconcepção de seus contemporâneos tornando possível questionamento”. Nesse sentido, o modo de ser da arte não existe em um espaço neutro, atemporal e circunstancialmente apolítico. Ao contrário disso, a ocasionalidade, a temporalidade são instrumentos que permitem à obra de arte determinar-se de maneira nova, redimensionar seus significados e receber outras interpretações. Para Gadamer, [...] é incontestável que a arte jamais é passado, mas consegue superar a distancia dos tempos através da presença do seu próprio sentido. Assim, parece que a partir de um duplo ponto de vista o exemplo da arte nos mostra um caso privilegiado de compreensão. A arte não é mero objeto da consciência histórica e, no entanto a sua compreensão implica sempre uma mediação histórica. (...) se sabemos e reconhecemos que a obra de arte não é um objeto a-temporal da vivência estética, mas pertence a um mundo e somente este poderá determinar plenamente o seu significado, parece que devemos concluir que o verdadeiro significado da obra de arte só pode ser compreendido a partir desse “mundo”, portanto, principalmente a partir de sua origem e de seu surgimento (GADAMER, 2007, p. 232-233) As considerações de Hans-Georg Gadamer visivelmente aproximam dos fundamentos teóricos e metodológicos em que se organiza o conhecimento no campo da história. Assim, aos olhos do historiador de ofício, para quem as evidências devem ser questionadas e indagadas, toda arte é política e traz no seu âmago as lutas políticas de uma época. Por isso nenhuma obra de arte é datada. Ao lidar com fontes artísticas, sejam elas “engajadas” ou “não engajadas”, torna-se essencialmente importante atualizá-las, redimensioná-las de acordo com seu momento de produção e com os interesses do presente; acima de tudo criar novas tentativas de interpretação1. A idéia de uma obra de arte datada, cujos códigos estéticos são delimitados pela circunstância temporal da época de sua produção, constantemente visita a historiografia do teatro brasileiro. Em 1960/1970 vários espetáculos foram considerados obras datadas pelo fato de apresentarem um forte conteúdo político. Entre tantos, mais uma vez, estão as produções da Companhia de Teatro Arena de São Paulo, em especial os musicais Arena Conta Zumbi e Arena Conta Tiradentes. A peça Arena Conta Tiradentes (1967) é um texto polêmico, cujo enredo aponta para uma visão essencialmente oficial da Inconfidência Mineira. No espetáculo, Tiradentes é um revolucionário destemido, um homem a serviço da “revolução” e da liberdade. Os demais inconfidentes se apresentam como intelectuais “fracos”, sem posicionamento político, estão presos aos interesses de sua classe. Assim, Tiradentes se apresenta como o grande “herói”, o homem destemido e forte da política brasileira. A crítica especializada do teatro brasileiro é unânime em apresentar Arena Conta Tiradentes como uma obra datada e, por isso, uma obra didática, esquemática, a serviço da esquerda brasileira, em especial do Partido Comunista Brasileiro. Nessa crítica, em nenhum momento o texto foi articulado com o seu momento histórico, em nenhuma análise seus símbolos ou códigos de representação foram decifrados, o que permitiria o resgate de sua historicidade. É preciso, sobretudo, pensar a 1 84 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Em Verdade e Método, mais uma vez Gadamer chama atenção do leitor para uma série de questões importantes que devem ser levadas em conta no momento de interpretação de uma obra. A primeira delas é que o intérprete não deve estabelecer o exercício de compreensão partindo das simples, corriqueiras e arbitrarias opiniões do cotidiano. Compreender é uma expressão primordial do conhecimento por isso não pode ser calcada em vícios e hábitos vulgares da linguagem: Quem busca compreender está exposto a erros de opiniões previas que não se confirmam nas próprias coisas. Elaborar os projetos corretos e adequados às coisas, que como projetos são antecipações que podem ser confirmadas “nas coisas”, tal é a tarefa constante da compreensão. Aqui não existe outra “objetividade” a não ser a confirmação que uma opinião prévia obtém através de sua elaboração. Pois o que é que caracteriza a arbitrariedade das opiniões prévias inadequadas se não o fato de que no processo de sua execução acabam sendo aniquiladas? A compreensão só alcança sua verdadeira possibilidade quando as opiniões prévias com as quais inicia não forem arbitrárias. Por isso, faz sentido que o intérprete não se dirija diretamente aos textos a partir da opinião previa que lhe é própria, mas examine expressamente essas opiniões quanto à sua legitimação, ou seja, quanto à sua origem e validez (GADAMER, 2007, p. 356). Gadamer deixa claro, então, que a interpretação é um ato de recriação do intérprete, mas esse recriar deve-se configurar necessariamente como compreensão e conhecimento. Diante disso, torna-se falacioso interpretar, recriar imagens, decifrar os símbolos da arte, os códigos do texto a partir de noções pautadas no senso comum, em explicações rasteiras com fundamentos essencialmente fortuitos. A consciência hermenêutica de Gadamer indica que uma forma eficaz de compreensão é devolver a obra ao seu tempo, preservar-lhe a originalidade da linguagem, dos símbolos que lhes são peculiares. Necessariamente, “quem está disposto a compreender deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa” (GADAMER, 2007, p. 358). Isso converge para a obra teatral no interior da luta política de seu tempo, como instrumento de resistência, como representação dos inquietantes momentos que tanto a esquerda quanto seus militantes e intelectuais estavam passando diante da perplexidade e surpresa do Golpe. Para maiores informações, consultar: OLIVEIRA, Sírley Cristina. A Ditadura Militar (1964-1985) à Luz da Inconfidência Mineira nos Palcos Brasileiros: Em Cena Arena Conta Tiradentes (1967) e As Confrarias (1969) Dissertação de Mestrado. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2003, 224 p. Os limites da historiografia teatral brasileira e as restrições à idéia de uma obra datada serviram de objeto de estudo e questionamento para a historiadora Rosangela Patriota em duas importantes obras: PATRIOTA, Rosangela. Vianinha- um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999. _____. A Crítica de Um Teatro Crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007. 85 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 seguinte questão: o intérprete deve estar acima de tudo disposto a reconhecer a alteridade do texto e da obra de arte. Contudo, estabelecer limites para os fundamentos do senso comum no momento de compreensão do intérprete não significa que o teórico despreze os aspectos “lúdicos” e “fantasiosos” do conhecimento. Ao contrário, a premissa maior do seu pensamento é romper com os pressupostos dogmáticos da ciência e com a idéia absoluta e auto-explicativa da razão. Gadamer deposita profunda confiança nas manifestações advindas da tradição – ritos, mitos, fantasias, expressões espontâneas da natureza humana, elas são essenciais para a compreensão e interpretação numa perspectiva hermenêutica. Assim, “essas considerações nos levam a indagar se na hermenêutica das ciências do espírito não devemos restabelecer de modo fundamental o direito do elemento da tradição” (GADAMER, 2007, p. 374). Todas as ponderações feitas até então acerca do pensamento de Hans-Georg Gadamer permitem identificar que o filósofo está o tempo todo apontando restrições aos pressupostos teóricos, filosóficos e metodológicos da tradição hermenêutica, especificamente dos românticos que aqui podem ser amplamente representados pelas figuras de Wilhelm Dilthey e Schleiermacher. Sendo assim, ao defender que a experiência estética de uma obra artística se materializa pelo olhar do intérprete, pelas sensações e sentimentos do apreciador, pelas ações advindas das tradições, Gadamer está visivelmente se opondo às premissas cultuadas pela estética do gênio. Na concepção da hermenêutica romântica, o gênio se apresenta como um indivíduo cujo poder de criação ultrapassa a normalidade. Exageradamente, ele carrega um talento especial e uma aguçada capacidade para a originalidade. Sua obra é, portanto, esplendorosa, exemplar, representa uma grandeza universal, absoluta, portanto, clássica. O gênio se configura, então, como um indivíduo modelo e deve ser constantemente imitado pela capacidade intelectual que apresenta e pelo tom magistral, extraordinário e vitorioso das obras que cria. Mas a produção artística do gênio acompanha a sua excentricidade, suas criações não estabelecem um diálogo profícuo com a realidade, pois, ele se atém a um distanciamento permanente com as pessoas e com o mundo que lhe pertence. Criteriosamente, o gênio é preso ao formalismo, ao dogmatismo, às estruturas 86 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 estéticas fechadas e aos elementos conceituais, tudo isso em nome do “belo”, da “perfeição” e do “espetáculo” que deve ser a arte. Nesse sentido, o gênio entende a arte como um processo de criação meramente individual, sua essência e existência estão intimamente ligados à ação exclusiva daquele que a criou1. Assim, para além da crítica da estética do gênio, Gadamer se opõe o modo exageradamente individualista, idealista e abstrata de conceber a obra de arte. Existe uma cadeia de criadores que vai além da visão limitada do seu autor, “o artista que cria uma obra não é o seu intérprete qualificado” (GADAMER, 2007, p. 264). Porém, a teoria da produção genial - cujo expoente maior é Schleiermacher extinguiu por completo a diferença entre intérprete e autor, notadamente, ela legitimou a equiparação de ambos, na medida em que “o que se deve compreender não é obviamente, a auto-interpretação reflexiva, mas a atenção inconsciente do autor” (GADAMER, 2007, p. 374). O que está em questão é a defesa explícita de um comportamento divinatório por parte do intérprete, ou seja, ele deve adentrar ao máximo a constituição completa do seu escritor, percorrer o decurso interno da feitura da obra e captar a sua originalidade. Gadamer considera esse processo ilegítimo na medida em que o intérprete se torna um simples reformulador do ato criador, [...] a compreensão é, pois, uma reprodução referida à produção original, um reconhecer do conhecido, uma reconstrução que parte do momento vivo da concepção, da ‘decisão germinal’ como ponto de partida da composição. (GADAMER, 2007, p. 257-258). Seguindo essa direção, o modo de ser da arte torna-se essencialmente comprometido, pois ela não é experimentada pelas condições que lhes são exteriores. O valor da arte não pode ser reduzido a uma visão intimista, ligada somente às limitações psíquicas e emocionais do seu criador ou a uma função meramente pedagógica e compensatória. Ela carrega valores históricos, é a expressão máxima do conhecimento e, necessariamente, precisa ser inserida na problemática histórica do seu tempo. Torna-se importante ponderar neste momento que o esforço intelectual, a excentricidade e a originalidade do artista não são inferiores ou menos verdadeiros se lhe tirarmos a denominação de gênio. Isso não sugere colocar em questão a capacidade de genialidade que alguns artistas realmente apresentam no processo de criação de suas obras. O que precisa ser considerado é que a arte produzida pelo “gênio” não pode ser entendida ou apreciada como uma manifestação “sacralizada”, “intocável”, “absoluta”, um produto exclusivo do seu criador. Num processo de criação faz-se necessário reconhecer o papel dos envolvidos na arte do criar, reconhecer a dedicação individual e coletiva de acordo com a arte considerada. 1 87 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Com esta perspectiva, torna-se falacioso reduzir a arte a elementos meramente conceituais e formais da linguagem, uma vez que a arte carrega de forma bastante explícita uma intencionalidade na sua criação. Essa intencionalidade, que por sua vez não é controlada e nem medida, escapa à rigidez do método. A intencionalidade existe, principalmente, para expressar o ser de determinada maneira e também para revelar as nuanças de um ser que não está necessariamente à disposição de um discurso eminentemente conceitual. Diante dessas considerações, observa-se que um dos pontos altos do pensamento gadameriano consiste no posicionamento essencialmente dialético frente ao conhecimento. Hans-Georg Gadamer acredita que a obra sujeita a apreciação, interpretação do leitor/espectador necessita sumariamente que seu intérprete lhe formule perguntas: “é preciso então que nos aprofundemos na essência da pergunta, se quisermos esclarecer em que consiste o modo peculiar de realização da experiência hermenêutica” (GADAMER, 2007, p. 473). O autor acredita em uma abordagem dialógica da obra, cuja unidade de compreensão e explicação surge na medida em que o intérprete entra em cena, ou seja, no momento em que participa ativamente do jogo da arte1. Entrar em jogo significa para Gadamer dialogar com o texto, com a obra, decifrar seus códigos, estabelecer nexos de sentido, perceber, principalmente, que a partir do diálogo, das perguntas, das indagações haverá sempre espaços vazios, as lacunas da compreensão. Assim, o princípio hermenêutico gadameriano de conversão está aberto às novas possibilidades e não se prende à rigidez das “opiniões”: A arte de perguntar não é a arte de esquivar-se das opiniões; ela pressupõe essa liberdade. (...) A arte da dialética não é arte de ganhar todo mundo na argumentação. Ao contrário, é perfeitamente possível que aquele que é perito na arte dialética, isto é, na arte de perguntar e buscar a verdade apareça aos olhos de seus ouvintes como o menos indicado a argumentar. A dialética, como arte de perguntar, só pode se manter se aquele que sabe perguntar é capaz de manter de pé suas perguntas, isto é, a orientação para o aberto. A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, que é a arte de pensar. Torna-se importante informar que o pensamento de Gadamer sofreu uma influência direta dos pensadores da Antiguidade Clássica, especialmente de Sócrates, cuja, idéia da compreensão dialógica foi inspirada no método socrático, que tinha como propósito interrogar seus interlocutores sobre aquilo que pensavam saber. No decorrer do diálogo (pergunta/resposta) Sócrates apontava as contradições, os problemas de suas argumentações questionando então a arrogância e presunção que os mesmos possuíam frente ao saber. 1 88 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Chama-se dialética porque é a arte de conduzir uma autentica conversação (GADAMER, 2007, p. 479). A partir dessas discussões, nota-se, então, que os fundamentos teóricos de Gadamer tiveram um papel primordial na elaboração da teoria da estética da recepção elaborada a partir da década de 1960. Atualmente pode-se dizer que a estética da recepção se configura como uma Escola de Teoria Literária, cuja origem está intimamente ligada a um grupo de críticos da Universidade de Konstanz, que divulgava suas teses na revista Poética e Hermenêutica, especificamente a partir de 1964. Seus maiores e mais expressivos pensadores foram Hans Robert Jauss, com a obra A História da Literatura como Provocação à Ciência Literária, e Wolfgang Iser, a partir da publicação de Estrutura Apelativa dos Textos. Segundo Luiz Costa Lima no prefácio à segunda edição da obra A Literatura e o Leitor, esses autores tiveram a perspectiva de romper com a crítica imanentista, que enxerga a obra apenas na sua fase textual, desprezando os elementos históricos e as considerações interpretativas do leitor (LIMA, 2002). Com esta concepção, a obra e o leitor faziam parte de um circulo fechado, sujeito às normas e a representatividade máxima do autor. Tudo isso em nome da perfeição estética da obra. A estética da recepção aparece, então, como uma opção intelectual contrária aos aspectos formalistas, mecanicistas e burocratizantes de uma interpretação eminentemente tradicional. Diante dessas circunstâncias, as considerações de Jauss tornam-se pertinentes, pois entende que existe uma vida eminentemente histórica da obra, e que esta vida só se materializa com a participação ativa de seu destinatário, ou seja, o intérprete, o receptor. Contudo, pondera que a intervenção do leitor/intérprete não pode ser entendida como um simples complemento à obra. Uma concepção significativa do autor e que visivelmente se aproxima das reflexões de Gadamer é a de experiência estética. Para ele a experiência estética de uma obra se manifesta como atividade produtora, receptiva e comunicativa, ou seja, a partir de seu efeito sobre o leitor/espectador. Sendo assim, defende a idéia da experiência estética que valorize a interpretação e a capacidade de comunicação da obra, o que leva a três categorias importantes da estética: a poesis (que sugere o momento de criação da arte, o estar no mundo), Aisthesis (prazer da recepção, 89 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 percepção da arte, o prazer estético) e Katharsis (o efeito da arte que leva a tomada de atitude, à transformação). Nesta direção, Jauss considera, então, a estética da recepção como um processo dinâmico, livre entre autor, obra e público (JAUSS, 2002). Assim, como Jauss, o teórico Wolfgang Iser valoriza a imaginação criativa do leitor. Para ele o intérprete não é um simples adendo à obra, o texto despertará no leitor “competente” uma interpretação a partir do seu próprio repertório. Por sua vez, esse repertório é constituído pelas circunstancias históricas da vida social, política e cultural desse leitor. Ao lado disso, o texto é, para Iser, um ato intencional do seu autor no qual este intervém em um mundo que existe. Enquanto intencional visa a algo que não é acessível à consciência. Portanto, o texto é constituído por um mundo que ainda há de ser decifrado, mas que é criado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo, criá-lo, e por que não interpretá-lo (ISER, 2002). Nesta perspectiva, o significado do texto não está marcado dentro dele próprio, mas, sim, no fato de liberar a linguagem, o sentido, as sensações que estão no interior do intérprete. Desse modo, nenhuma interpretação é absoluta, pois, a partir da ação intérprete sobre a obra, vão se constituindo os espaços vazios, as lacunas que necessariamente são ocupadas pela fruição interpretativa do leitor/espectador. Outro ponto importante que aproxima Iser de Gadamer, é que a obra de arte, em especial a literária não é mimética, isto é, não é um simples reflexo, uma cópia expressivamente representativa da vida. A literatura, a linguagem artística permite um distanciamento que deixa reconhecer as fragilidades e os impasses da dinâmica social dos homens. À luz de todas essas discussões, uma questão importante se coloca: é eminentemente inviável trabalhar no campo história sem transitar pelos princípios filosóficos e metodológicos da hermenêutica. Isso, porque estamos constantemente trabalhando não só com os valores simbólicos do passado, mas também com as possibilidades da interpretação. O documento é, para o historiador, o locus privilegiado dos vestígios humanos, das tradições, dos ritos, das experiências e das vivências humanas. O tempo é, essencialmente, a matéria-prima maior do oficio do 90 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 historiador, pois, determina os possíveis procedimentos de compreensão e interpretação da realidade. Nesse sentido, a relação interdisciplinar entre Hermenêutica e História permite um exercício intelectual mediado pela distância temporal, o que necessariamente nos coloca na posição de uma procura constante: o tempo nos separa de outras expressões da vida, portanto, estamos lidando o tempo todo com o estranho, o desconhecido, o obscuro, enfim com as pistas. Circunstancialmente, torna-se impossível trabalhar com a idéia de totalidade, do “dar conta de tudo”. Desse modo, História e Hermenêutica – ainda que se reconheçam as especificidades e particularidades de cada uma - caminham juntas no desenvolvimento da consciência de que a interpretação/compreensão nunca é finita, sempre existirão lacunas, vazios a serem preenchidos pela vivência, pela experiência estética do objeto/arte, enfim, pelo olhar atento do intérprete, ou seja, do historiador. Oportunamente, essas questões vêm ao encontro de uma série de princípios que há muito tempo são latentes em nosso ofício de historiador, a de que as formas de escrever ou abordar um tema em história são variadas, os temas de investigação são diferentes e as conclusões a que chegamos são na maioria das vezes controversas. Isso mostra que não existe uma fronteira rígida, acabada para a História. Ao contrário, ela está em todo lugar, todos os dias incorpora várias percepções do conhecimento, volta-se para uma produção diversa, interdisciplinar e rica em possibilidades. Pensando hermeneuticamente, isso deságua na seguinte questão: as interpretações podem ser constantemente refeitas; a compreensão é uma expressão do pensamento humano, portanto, está sujeita às averiguações, às dúvidas e às indagações de outrens. E o intérprete? Este é sempre o provocador, aquele faz emergir os sentidos, que faz surgir a História. 91 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTI, Verena. A Existência na História: Revelações e Riscos da Hermenêutica. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 17, 1996. DILTHEY, Wilhelm. El Mundo Histórico. México: Fundo de Cultura, 1944. _____. Obras de Wilhelm Dilthey: vida y poesia. México (DF): FCE, 1978. GADAMER, Hans-Georg. O problema da Consciência Histórica. São Paulo: FGV, 2003. ______. O Caráter Oculto da Saúde. São Paulo: Vozes, 2006. ______. Quem Sou Eu, Quem És Tu? - comentários sobre o ciclo de poemas HaustoCristal de Paul Celan. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2005. _____. Verdade e Método I – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 8. Ed. Petrópolis/ Rio de Janeiro: Ed. Vozes; São Paulo: Ed. 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Petrópolis: Vozes, 2001. 93 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 História e Literatura: Algumas Considerações Dr. Valdeci Rezende Borges Universidade Federal de Goiás/Campus Catalão E-mail: [email protected] RESUMO Busca-se, neste texto, tecer algumas reflexões acerca da relação entre a história, como processo social e como disciplina, e a literatura, como uma forma de expressão artística da sociedade possuidora de historicidade e como fonte documental para a produção do conhecimento histórico. Apontam-se ainda algumas questões voltadas para a construção de uma metodologia de abordagem desse tipo específico de documento na pesquisa histórica. Palavras-Chave: história, literatura, fonte documental, metodologia. ABSTRACT Seeks in this text to make some reflections on the relationship between history, as a social process and as a discipline, and literature as a form of artistic expression in society possessing historical and documentary source for the production of historical knowledge. It is pointed out a few issues facing for the construction of a methodological approach of this particular document in historical research. Keywords: history, literature, documentary sources, methodology. Partindo do pressuposto de que a história como conhecimento é sempre uma representação do passado e que toda fonte documental para produzir esse conhecimento também o é, procuraremos apresentar aqui algumas reflexões acerca das relações estabelecidas entre a história e a literatura e certas ponderações teóricas e metodológicas sobre as possibilidades de emprego das fontes literárias na pesquisa histórica. Uma das vertentes da história cultural que tem recebido grande atenção no momento atual é aquela que se debruça sobre os diversos tipos de textos para pensar sua escrita, linguagem e leitura. Para Duby, a história cultural estuda, dentro de um contexto social, os “mecanismos de produção dos objetos culturais”, entendidos em sentido amplo e não apenas obras, literárias ou não, reconhecidas ou obscuras, e autores canônicos. Ela enfoca os mecanismos de produção dos objetos culturais, como suas intencionalidades, a dimensão estética, a questão da intertextualidade ou do diálogo que um texto estabelece com outro, dentre 94 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 aspectos diversos, como seus mecanismos de recepção, a qual pode ser pensada como uma forma de produção de sentidos. Isto, porque, de acordo com Chartier (1990, p. 27), o termo “apropriação” é visto como “a maneira de usar os produtos culturais” e de “re-escritura”, que ocorre na diferença e nas transformações sofridas pelos textos quando adaptados às necessidades e expectativas do leitor. Pensando que as narrativas, sejam históricas ou literárias, ou outras, constroem uma representação acerca da realidade, procura-se compreender a produção e a recepção dos textos, entendendo que a escrita, a linguagem e a leitura são indivisíveis e estão contidas no texto, que é uma instância intermediária entre o produtor e o receptor, articuladora da comunicação e da veiculação das representações. Desta forma, há uma tríade a considerar na elaboração do conhecimento histórico, composta pela escrita, o texto e a leitura. No que se refere à instância da escrita ou da produção do texto, o historiador volta-se para saber sobre quem fala, de onde fala e que linguagem usa. Já ao enfocar o texto em si, o que se fala e como se fala são questões indispensáveis. No trato da recepção, visa abordar a leitura de um determinado receptor/leitor ou de um grupo de receptores/leitores, tratando das expectativas de quem recebe o texto, de sua contemplação, ou seu enfrentamento ou resistência a ele (PESAVENTO, 2004, p. 69-70). No entanto, independente do plano no qual se foca e do tipo de textos, as considerações de Le Goff (1990, p. 545), sobre o documento como monumento, “produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força que a detinham”, expressam a necessidade de realização de uma reflexão, por parte do historiador, sobre as condições históricas dessa produção, abarcando a figura do produtor, o lugar social de onde se produz, como se produz, as intenções do produtor, as relações de poder que cercam e atravessam a produção e o produto. Se todo documento é monumento, cabe ao historiador desvelar como foi construído, a linguagem utilizada, a finalidade da edificação e as suas intencionalidades. Para Chartier (1990, p. 62-3), todo documento, seja ele literário ou de qualquer outro tipo, é representação do real que se apreende e não se pode desligar de sua realidade de texto construído pautado em regras próprias de produção inerentes a cada gênero de escrita, de testemunho que cria “um real” na 95 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 própria “historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita”. Desta forma, todo tipo de texto possui uma linguagem específica, na qual foi produzido, própria de um segmento particular de produção, e esta ocorre considerando dadas regras peculiares ao meio intelectual de onde emerge, ao veículo em que será veiculada e ao público a que se destina. Assim, contextualizar o texto com o qual se trabalha é indispensável para elucidar o lugar em que foi produzido, seu estilo, sua linguagem, a história do autor, a sociedade que envolve e penetra o escritor e seu texto. A época, a sociedade, o ambiente social e cultural, as instituições, os campos sociais, as redes que estabelece com outros textos, as regras de uma determinada prática discursiva ou literária, as características do gênero de escrita que se inscreve no texto, são questões que permeiam o texto escrito e constrangem o autor de um texto, deixando nele suas marcas (BARROS, 2004, p. 137-8) De tal maneira, as noções de leitura, linguagem, representação, prática, apropriação, intertextualidade, dialogismo, dentre outras, são importantes para esse campo do conhecimento histórico, que, segundo Chartier, “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler”. As representações do mundo social, como práticas intelectuais, dentre elas, as ficcionais, como as literárias, são sempre marcadas por múltiplos, complexos e diferenciados interesses sociais, sobretudo, aqueles dos grupos sociais que as forjam. Daí, ser necessário relacionar os discursos proferidos com a posição social de quem os produz e de quem os utiliza, visto que as percepções do social não são neutras; produzem e revelam estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade, uma hierarquia, um projeto, uma escolha (CHARTIER, 1990, p. 16-7, 28). Para Bourdieu (1992, p. 183-202), autor que abriu o caminho para pensar as “práticas” na história e o consumo dos bens simbólicos, a noção de campo intelectual nos ajuda a elucidar a configuração e a historicidade da produção e da recepção da obra de um autor, suas ideias e formas estéticas postas em circulação e inseridas no interior de um sistema de relações socioculturais edificadas publicamente. Essa noção remete ao lugar de onde fala e em que se insere o autor, literato ou não, assim como outros escritores que o cercam; lugar circunscrito e 96 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 estruturado ao redor das posições que esses produtores culturais ocupam na sociedade e no meio intelectual, no qual estabelecem relações entre si e com outros campos que constituem a vida social; lugar marcado pelos jogos de poder e vinculado com o campo político. Portanto, o campo intelectual e cultural se apresenta como diversamente segmentado, delimitado por posições, hierarquias e disputas por lugares, prestígio e reconhecimento no interior de um grupo de agentes, bem como em relação a outros grupos, mediante a consideração de regras e instâncias legitimadoras específicas, socialmente construídas. Deste modo, esse conceito pressupõe a procura de conhecer as convenções estabelecidas pelos agentes e produtores intelectuais, as linguagens empregadas, as localizações e as diferentes posições por eles ocupadas e defendidas, hegemônicas ou não, tal como ainda as estratégias e jogos de cada segmento, as polêmicas e os rituais que criaram e implementaram num processo dinâmico de interdependências (BOURDIEU, 1992, p. 183-202). Tais questões dizem respeito a aspectos elementares de nosso aparato básico de instrumentais de trabalho de investigação histórica. Assim, devemos ficar atentos aos mecanismos de funcionamento da comunicação, do pensamento, das variadas práticas socioculturais, das visões de mundo e das memórias. Os tipos de textos, a língua que falamos e na qual escrevemos, a linguagem praticada socialmente, que organizam a compreensão das experiências sociais, e a linguagem particular de uma produção, seja literária ou de outros objetos simbólicos, os quais representam tais experiências e formas de compreensão e interpretação dos seus significados e sentidos, requerem ser problematizados. Essas dimensões são mediadoras das experiências e práticas sociais e possuem historicidade, não sendo fixas e estáveis, nem isoladas de outros campos sociais, afinal, “nenhuma ilha é uma ilha”, conforme Ginzburg (2004), ao abordar as trocas literárias entre as ilhas britânicas e o continente europeu, que foram marcantes na formação da literatura inglesa e na identidade de seu povo, visto que esta mantém relações, contatos e vínculos com outras línguas, linguagens, literaturas e culturas inseridos num regime de empréstimos diversos. A esta questão, dos diálogos e dos cruzamentos que os textos e autores estabelecem implicitamente com outros, que possibilitam ler em um os outros, a qual Ginzburg 97 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 mostra-se atento e é tão característico da literatura, Kristeva (1988) denomina de intertextualidade. No universo amplo dos bens culturais, a expressão literária pode ser tomada como uma forma de representação social e histórica, sendo testemunha excepcional de uma época, pois um produto sociocultural, um fato estético e histórico, que representa as experiências humanas, os hábitos, as atitudes, os sentimentos, as criações, os pensamentos, as práticas, as inquietações, as expectativas, as esperanças, os sonhos e as questões diversas que movimentam e circulam em cada sociedade e tempo histórico. A literatura registra e expressa aspectos múltiplos do complexo, diversificado e conflituoso campo social no qual se insere e sobre o qual se refere. Ela é constituída a partir do mundo social e cultural e, também, constituinte deste; é testemunha efetuada pelo filtro de um olhar, de uma percepção e leitura da realidade, sendo inscrição, instrumento e proposição de caminhos, de projetos, de valores, de regras, de atitudes, de formas de sentir... Enquanto tal é registro e leitura, interpretação, do que existe e proposição do que pode existir, e aponta a historicidade das experiências de invenção e construção de uma sociedade com todo seu aparato mental e simbólico. Sendo a literatura uma forma de ler, interpretar, dizer e representar o mundo e o tempo, possuindo regras próprias de produção e guardando modos peculiares de aproximação com o real, de criar um mundo possível por meio da narrativa, ela dialoga com a realidade a que refere de modos múltipos, como a confirmar o que existe ou propor algo novo, a negar o real ou reafirmá-lo, a ultrapassar o que há ou mantê-lo. Ela é uma reflexão sobre o que existe e projeção do que poderá vir a existir; registra e interpreta o presente, reconstrói o passado e inventa o futuro por meio de uma narrativa pautada no critério de ser verossímil, da estética clássica, ou nas notações da realidade para produzir uma ilusão de real. Como tal é uma prova, um registro, uma leitura das dimensões da experiência social e da invenção desse social, sendo fonte histórica das práticas sociais, de modo geral, e das práticas e fazeres literários em si mesmos, de forma particular. Chartier considera que a distinção entre história e ficção, hoje em dia, tem se mostrado vacilante. Diferenciação que parece clara e resolvida, se aceitarmos que a primeira pretende realizar uma representação adequada do real que foi e 98 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 não é mais, e a segunda, em todas as suas formas, “é um discurso que ‘informa’ do real, mas não pretende abonar-se nele”. No entanto essa distinção tem sido ofuscada pela “evidenciação da força das representações do passado propostas pela literatura”, como do teatro dos séculos XVI e XVII, e do romance do século XIX, que se apoderaram do passado, deslocando para a ficção literária o registro de fatos e personagens históricos e colocando situações que foram reais ou apresentadas como tais. Além disso, a literatura se apropria não só do passado, como também de documentos e das técnicas da disciplina histórica, como o dispositivo de criar o “efeito de realidade”, abordado por Barthes, como uma modalidade da “ilusão referencial”, com a multiplicação de notações concretas destinadas a carregar a ficção de um peso de realidade (CHARTIER, 2009, p. 24-5, 27-8). Portanto, é indispensável refletir sobre as características específicas das diversas formas de ficção, das relações particulares que o texto literário, o autor e a escola, a que se filiam, estabelecem com a realidade e definem a representação que dela edificam. As formas como autor, escola e gênero de texto literário concebem a produção artística devem ser buscada em seus caracteres próprios. O discurso literário manifesto em texto, expresso em prosa ou verso, envolve modalidades de narrativa com características próprias, inclusive, na sua forma de lidar, captar e tratar as questões propostas por uma sociedade e por um tempo, como o conto, a crônica, a novela, o romance, a tragédia, a comédia ou o poema. Essas narrativas, por sua vez, apresentam-se sob forma de vários gêneros, como o lírico, o épico e o drama, que são ainda marcados por correntes estéticas, que determinam tanto as relações da literatura com a realidade, quanto ao seu estatuto e função, como as escolas literárias. Nesse campo, não podemos perder de vista ainda os modos por meio dos quais o discurso literário se manifesta, como os tropos: a metáfora, a metonímia, a sinédoque e a ironia. Até mesmo no campo específico da narrativa historiográfica, podemos nos deparar com tais figuras da retórica e da poesia clássica como formas estruturais constituintes dos discursos em geral, como nos mostra a abordagem de White (1995). Conforme Chartier (2002), ao tratar de um projeto de história literária, o qual oferece possibilidades para pensarmos como um historiador pode abordar a análise de textos literários na perspectiva da história sociocultural à maneira dos 99 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Annales, o objeto da história literária e da crítica textual “é o processo pelo qual leitores, espectadores ou ouvintes dão sentido aos textos dos quais se apropriam.” Uma história da literatura é, pois, uma história das diferentes modalidades da apropriação dos textos. Ela deve considerar que o ‘mundo do texto’, usando os termos de Ricoeur, é um mundo de objetos e de perfomances cujos dispositivos e regras permitem e restringem a produção do sentido. Deve considerar paralelamente que ‘o mundo do leitor’ é sempre aquele da ‘comunidade de interpretação’ (segundo a expressão de Stanley Fish) à qual ele pertence e que é definida por um mesmo conjunto de competências, de normas, de usos e de interesses. O porquê da necessidade de uma dupla atenção: à materialidade dos textos, à corporalidade dos leitores (CHARTIER, 2002, p. 255, 257). Essa definição de um projeto de história literária absorve um campo intelectual mais vasto, aquele dos estudos culturais, levando em conta que, em cada configuração social, certos discursos são designados pela distância dos discursos e práticas comuns e são produzidos e difundidos em espaços sociais específicos, que têm lugares e objetivos próprios e suas hierarquias. Assim, cabe à investigação histórica realizar uma historicização da especificidade da literatura, reconhecer as fronteiras diversas, conforme as épocas e lugares, entre o que é literatura e o que não é; atentar à variação dos critérios definidores da “literalidade” em diferentes períodos; desvelar os dispositivos que constituem os repertórios das obras canônicas; os traços deixados nas próprias obras pela “economia da escritura” na qual foram produzidas (as diversas restrições exercidas sobre elas), ou as categorias que construíram a “instituição literária”, como as noções de autor, de obra, de livro, de escritura, de copyright etc. (CHARTIER, 2002, p. 258). Para Pesavento (2004, p. 83), o historiador deve tomar a literatura a partir do tempo de sua escrita, do autor e da época em que foi produzida, tanto se o texto falar de sua época, de uma passada ou futura. Bosi (1992, p. 176) também chama nossa atenção para nos atermos à busca da compreensão mais do tempo em que a obra foi forjada do que aquele que por vez se refere. Candido (1985) aponta que a abordagem do texto literário deve articular tanto o intrínseco da obra, logo, seu conteúdo, que engloba suas temáticas, tramas e dimensões formais, estéticas, quanto o extrínseco, referindo-se ao contexto social e temporal em que foi escrita. No contexto do tempo e do lugar, no emaranhado das relações históricas, sociais e culturais, no qual o texto literário foi elaborado, ele revela sua estética, seu estilo, 100 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 sua linguagem, sua escola ou movimento, seus significados, os quais são criações coletivas e possuem sentidos, aceitação ou rejeição, nesse ambiente e tempo. Logo, utilizar a literatura como documento a para produção do conhecimento histórico requer também pensar sua estética, o cânone literário pertinente a esse tipo de escrita e que foi considerado para sua avaliação, pois o valor e a importância de um texto literário não são absolutos, podendo o historiador recorrer tanto aos escritores apreciados e reconhecidos como grandes pelo grupo de agentes intelectuais, quanto àqueles considerados como menores e medíocres. Reconhecer as regras e as convenções estabelecidas pelos agentes e produtores intelectuais, as quais são elementares no processo de reconhecimento do produtor e do produto, dando-lhes prestígio ou não dentro campo intelectual e da cultura, explicita o estatuto do texto e ilumina sobre as aproximações e os distanciamentos que estes possuem em relação à realidade a que se referem e representam (PESAVENTO, 2004, p. 84; BOURDIEU, 1992, p. 183-202). Chartier (2002) pondera que a historicização da especificidade da literatura tem por corolário a interrogação sobre as relações que as obras mantêm com o mundo social, afastando-se da tentação, que foi grande entre os historiadores, de reduzir os textos a um mero estatuto documental. Portanto, deve-se trabalhar sobre as variações entre as representações literárias e as realidades sociais que elas representam, deslocando-as sobre o registro da ficção e da fábula. Variações entre a significação e a interpretação corretas, tais como a fixam a escritura, o comentário ou a censura, e as apropriações plurais que, sempre inventam, deslocam, subvertem. Variações, enfim, entre as diversas formas de inscrição, de transmissão e de recepção das obras (CHARTIER, 2002, p. 258-9). Defendendo a construção de um novo espaço intelectual que obrigue a inscrever as obras nos sistemas de restrições que limitam, mas que também tornam possíveis sua produção e sua compreensão, Chartier argumenta: Produzidas em uma ordem específica, as obras escapam dela e ganham existência sendo investidas pelas significações que lhe atribuem, por vezes na longa duração, seus diferentes públicos. Articular a diferença que funda (diversamente) a especificidade da literatura e as dependências (múltiplas) que a inscrevem no mundo social: esta é, a meu ver, a melhor formulação do necessário encontro entre a história da literatura e a história cultural (CHARTIER, 2002, p. 259). A abordagem, contudo, deve buscar compreender como a recepção 101 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 particular e inventiva de um leitor singular, de um ouvinte ou espectador, encerrase numa série de determinações complexas e relacionadas – os efeitos de sentido visados pelos próprios dispositivos da escritura; os usos e apropriações impostos pelas formas de representação do texto; as competências, as categorias e as convenções que comandam a relação de cada comunidade com os diferentes discursos. Analisar em conjunto essas diferentes determinações e reintroduzir no questionamento a historicidade é voltar-se para a dimensão necessariamente “literária” de sua escritura (CHARTIER, 2002, p. 259). O historiador, ao lidar com esse tipo de documento específico, precisa estar atento a essas dimensões da representação construída, observando como o literato alia as regras de escritas, as restrições, os critérios e as convenções, o estético e o criativo à elaboração de suas reflexões sobre a realidade que o cerca e aquela que representa. O conteúdo, como temas e questões abordadas e ainda como forma, requer ser problematizado e relacionado à dimensão temporal, buscando perceber o texto como campo de tensões e contradições (SANTOS, 2007, p. 96, 105). Portanto, recorrer à literatura para a produção do conhecimento histórico pressupõe uma reflexão sobre ela, problematizá-la e historicizá-la. Para Chalhoub e Pereira (1998, p.7), a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto, crônica, poesia ou romance -, inseri-la no movimento da sociedade, investigar as suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação com a realidade social – algo que faz mesmo ao negar fazê-lo. Se todo documento, seja ele literário ou de fonte oficial, é uma construção que se pauta num sistema de regras próprias de escrita, peculiares a cada gênero de texto e específicas ao lugar socioprofissional de onde seu autor o produz, e é a partir daí que se cria um real em conformidade com a historicidade dessa produção e à intencionalidade dessa escrita, tanto o literato quanto a literatura, a linguagem e a sociedade, estão aprisionados nas teias da cultura e do tempo, ocorrendo entre tais instâncias influências recíprocas diversas. As representações do mundo social, de uma realidade, tanto objetiva quanto subjetiva, de um tempo e lugar, resultam do entrecruzamento de aspectos individuais e coletivos. O literato não cria nada a partir do nada. Não se faz literatura sem contato com a sociedade, a cultura e a história. De acordo com 102 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Candido (1985, p. 24), a criatividade, a imaginação e a originalidade, partem das condições reais do tempo e do lugar, as quais, ressaltamos, podem ser concretas ou não, da existência social e de suas experiências. Para Davi (2007, p. 12), o literato insere-se na realidade sociocultural do tempo em que vive, do qual faz parte, com ela dialogando ao produzir sua representação, por meio de sua vivência, de seus interesses e projetos, mas não é simples refletor dos acontecimentos sociais; ele os transforma e combina, cria e devolve o produzido à sociedade. A literatura, como testemunho histórico, é fruto de um processo social e apresenta propriedades específicas que precisam ser interrogadas e analisadas, como qualquer outro documento. Resta ao historiador descobrir, ponderar e detalhar sobre as condições de sua produção, as intenções do autor, a forma como ele realiza sua representação e a relação que esta estabelece com o real, as interpretações ou leituras que suscita sua intervenção como autor, as características específicas da obra e do escritor, da escola em que este concebe seu texto e em que estilo, inserindo-os num processo histórico determinado, em um tempo e lugar, pois “são acontecimentos datados, historicamente condicionados, valem pelo que expressam aos contemporâneos” (CHALHOUB; PEREIRA, 1998, p. 9). Ginzburg, ao tratar da forma como a pesquisa histórica moderna se formou, seus procedimentos em relação aos modelos clássicos e as sugestões recolhidas de outros gêneros de produção e textos, dentre eles, os de ficção, na busca de se afirmar como modo de conhecer a realidade, mostra como a narração histórica estabelece relações com a literatura imaginativa, a grande prosa de ficção, inserido-as num regime de empréstimos e desafios entre si. Para ele, entre os testemunhos, narrativos ou não, e a realidade testemunhada, existe uma relação que deve ser repetidamente analisada pelo historiador e, entre as narrativas ficcionais e as históricas, há uma “contenda pela representação da realidade”, “um conflito feito de desafios, empréstimos recíprocos, hibridismos”, o qual deve ser examinado (GINZBURG, 2007, p. 8, 9). Partindo das reflexões metodológicas de Bloch sobre os testemunhos voluntários e daquilo que neles interessava aos historiadores atuais, não os dados concretos, mas a mentalidade de quem os escreveu, a inteligência, na busca de fazer valer os testemunhos involuntários e o núcleo involuntário e, mais profundo, 103 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 dos voluntários, Ginzburg contrapõe-se ao ataque realizado ao caráter referencial dos textos. Defende que “escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”. Assim, nos romances medievais, podemos detectar usos e costumes, isolando, na ficção, fragmentos de verdade (GINZBURG, 2007, p. 10-2). Com essa estratégia de leitura, não muito diferente da esboçada por Bloch, Auerbach analisou trechos de Voltaire e Stendhal, não como documentos históricos e na perspectiva de seus autores e suas intenções, mas como textos entranhados de história, dos quais utilizou os rastros deixados mais ou menos involuntariamente. “A ficção, alimentada pela história, torna-se matéria de reflexão histórica, ou ficcional, e assim por diante.” Ler os testemunhos históricos contra as intenções de quem os produziu, assim como os textos literários que pretendem se constituir numa realidade autônoma, significa supor que todo texto possui elementos incontrolados, algo de opaco comparável às percepções que o olhar registra sem entender (GINZBURG, 2007, p. 12). Dessa forma, devemos centrar atenção no funcionamento da linguagem literária, na pluralidade e na instabilidade do texto, na busca de recuperar os diferentes significados e as multiplicidades de sentidos, pois não há um sentido fixo, congelado, estabelecido da obra. Mas é fundamental evitar o caminho da crítica e da história literária tradicional, que buscava o sentido do texto em si e se distanciava da prática sócio-histórica. A ideia de um texto não fechado, da instabilidade de sentido, da pluralidade interna da linguagem, aponta que há textos abertos a reapropriações múltiplas, que permitem construções diversas de sentido. Esta questão não pode ser remetida unicamente aos aspectos fundamentais como as instituições, centros de ensino, livrarias, editoras, nem aos seus mecanismos de escolha e seleção, determinantes do ato de ignorar ou rejeitar um texto, próprios da construção do cânon em sua dimensão sócio-histórica. Deve-se analisar por que se estudam uns autores e outros não; por que há autores que são frequentemente encenados e outros abandonados; por que, nas estratégias dos editores de publicação, alguns textos são conservados e outros descartados. No entanto há uma dimensão que resiste a semelhante estudo que é algo próprio do funcionamento linguístico das obras, que permite ou que cancela as reapropriações em longa duração. O entrecruzamento dos enfoques sócio104 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 históricos e das proposições estéticas ou formalistas é uma maneira também de evitar um sociologismo redutor do processo de construção do cânon, pois essa visão remete à estrutura interna das obras e ao funcionamento da linguagem, e não unicamente ao dispositivos externos como a escola, a crítica literária, o mercado do livro, etc., que operaram para estabelecer esta seleção canônica (CHARTIER, 2001, p. 105-6). Uma leitura entrecruzada pelos aspectos sócio-históricos e estéticos e a contrapelo, como Benjamim sugeriu, contra as intenções de quem produziu os textos (GINZBURG, 2007, p. 11), requer uma reflexão detida sobre as intencionalidades neles depositadas por seus autores. Só sabendo das intenções do autor podemos ler sua obra em sentido inverso ao que ele desejou. A literatura, como um registro social, uma reflexão e leitura sobre a cultura e suas questões, uma agente que institui um imaginário e uma memória, um produto de criação que envolve memórias e a elas recorre como matéria ficcional, é permeada de intencionalidades. Ela detém um valor temporal, histórico, o qual se pode desvelar por meio um processo de historicização, ou seja, de sua inserção no tempo e na sociedade em que foi produzida, clareando a relação de trocas recíprocas, de contatos e interações entre essas dimensões, suas aproximações e seus distanciamentos internos e externos. A literatura, como índice e instrumento das “relações de força” (GINZBURG, 2002) presentes numa sociedade, da maneira como seu autor se relaciona com elas e nelas se insere, como prática intelectual, constrói certa história da cultura e do social, institui uma memória em prejuízo de outras, podendo ser considerada como um dos “lugares de memória” de uma coletividade, pois, conforme Nora (1993, p. 9), a memória “se enraíza no concreto, no gesto, na imagem, no objeto”. Recorrer a esse tipo de documento possibilita-nos acessar um imaginário social, pensado tanto como qualquer coisa imaginada quanto como um conjunto de imagens variadas acerca da existência em sociedade, colhendo informações, muitas vezes, não encontradas em outras fontes ou perdidas por tantas, como aquelas referentes às formas de agir e comportar, de pensar e sonhar, de sentir e relacionar etc. próprias de um tempo, de um lugar e de um grupo social. Meio a esse complexo caleidoscópio de imagens e representações, cabe-nos reunir e aproximar informações, às vezes, dispersas, fragmentadas e afastadas, 105 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 interpondo-as e transpondo-as ao buscar inteirar-se de um mundo que foi e não é mais e as suas circunstancialidades, na procura de assimilar, digerir e interpretar os sinais que se dão a ler, com o objetivo de reconstruir uma paisagem cultural e atingir os significados tecidos e inscritos na cultura, tal como Geertz (1989) a define, como código público socialmente estabelecido. No entanto lidar com as manifestações literárias, que sempre apresentam traços heterogêneos, caracteres múltiplos e contraditórios, exige um exame minucioso de cada autor e dos pormenores que particularizam cada obra. Assim, as proposições gerais devem dar lugar a estudos específicos, pois as reflexões teóricas, os estudos generalizantes não podem escapar do status de hipóteses a serem testadas e da necessidade de examinar os casos particulares. Investigação para perceber as especificidades e rever leituras consagradas e consolidadas, que formam camadas sedimentares de cultura sobre um tema, autor e obra, não raro, marcadas por lacunas, distorções, subversões e reducionismos. O historiador da cultura, conforme Paris (1988, p. 85), ao trabalhar com a documentação literária, depara-se com a questão de que quase nunca é o primeiro leitor do documento, tendo de abordá-lo em diálogo com uma escala, um sistema de referências, uma história literária, que já classificou, hierarquizou as escritas, as obras e os autores. História que, geralmente, realizou tais operações deixando lacunas, dilacerando os significados, deslocando e subvertendo as significações, cabendo a um novo olhar sobre estes criar novas imagens e inverter outras (GINZBURG, 2002, p. 115). O distanciamento e o estranhamento, como formas de desvelar feições estranhas e opacas na leitura e tratamento de uma documentação já familiar, possibilitam retificar ideias, imagens e significados atribuídos, vistos como equívocos, afastando interpretações, por vezes, consideradas impróprias. Atentar às lacunas a serem decifradas e recorrer à postura de estranhamento como um procedimento cognitivo requer tentar apresentar as coisas como se vistas pela primeira vez e como meio e expediente para revelar feições distorcidas ou ocultas na leitura de uma documentação conhecida, abrindo caminhos para retificar interpretações e sentidos avaliados como impróprios, mesmo supondo os elementos incontrolados da obra e sua instabilidade, por distarem daquilo que a fonte apresenta e oferece (GINZBURG, 2001, p. 22, 32, 34, 41). 106 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Se a literatura, como outros monumentos e arquivos humanos, guarda as questões de um tempo e as marcas de um povo e de um lugar, lidar com tais fontes requer a construção de instrumentos afinados capazes de lançar luz àquilo que traz em seu bojo. Se muitos de seus leitores realizaram leituras apressadas, estreitas e indevidas, às vezes, por não se deterem devidamente às fontes e aos seus delineamentos, deturpando traços, realçando uns e apagando outros com toques imperfeitos e produzindo corruptelas, torna-se necessário restaurar suas feições. Nessa busca de refazer o percurso interpretativo, cabe espoar as diversas camadas de sedimentos e raspar as crostas de análises que lhe embotam a cor original ou desfiguram o desenho primitivo, fazendo aparecer os traços encobertos e as possíveis descontinuidades advindas das linhas que foram apagadas em muitas leituras anteriores, mas que podem ser recompostas, suprimindo lacunas e restabelecendo, em grande parte, os traços propostos pelo autor, ainda que para lê-los contra suas intenções. Portanto, a literatura, seja ela expressa nos gêneros crônica, conto ou romance, apresenta-se como uma configuração poética do real, que também agrega o imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte especial para a história cultural de uma sociedade. 107 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especificidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985. CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M. Apresentação. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (org.) A história contada: capítulos de História social da Literatura no Brasil. 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Nosso objetivo maior é perceber que através da adoção do método histórico, Foucault procurou dar uma contribuição ao método de pensamento filosófico. Palavras-Chave: Foucault; historiografia; história; metodologia. ABSTRACT The aim of this paper is to discuss the possible methodological contributions of the French philosopher Michel Foucault to the humanities. To achieve our aim will be reviewed only works when the French philosopher devoted to history, both in purely methodological aspects, as in its practical aspects, i.e in research. Our ultimate goal is to realize that by adopting the historical method, Foucault sought to make a contribution to the method of philosophical thought. Keywords: Foucault; historiography; history; methodology. Introdução O objetivo desse artigo é analisar o método histórico-filosófico desenvolvido pelo filósofo Michel Foucault ao longo da segunda metade do século XX. Cremos que este método merece um estudo mais detido, uma vez que pode conduzir à 110 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 análises extremamente úteis tanto para os profissionais da área de Humanas quanto para os profissionais da área de Saúde, uma vez que Foucault aplicou este método para perscrutar os procedimentos clínicos usuais em tratamentos psiquiátricos e médicos na primeira metade do século XX. 1 Não temos, portanto, a pretensão de realizarmos uma análise aprofundada dos trabalhos de cunho essencialmente filosóficos do autor. Nosso maior objetivo é discutir a contribuição de Foucault para o alargamento da Metodologia Científica para as Ciências Humanas e, particularmente para a História. Michel Foucault caminhava na direção de libertar, não a História, como destacou Margareth Rago, (RAGO, 2002, ps. 255-272) mas as ciências ainda muito atreladas ao método de pesquisa positivista. Para o filósofo francês, a opção pelo positivismo estava intimamente ligada a uma forma de controle de informação e consequentemente, a uma forma de detenção de poder. Este foi o tema fundamental desenvolvido por Foucault. História da loucura é não somente uma crítica aos procedimentos clínicos adotados ainda no século XX, como também uma crítica à forma de se fazer Ciência (Metodologia) já que esta se encontra imbricada com as relações de poder. Caminhando na mesma direção de nossa apreciação, encontramos Guilherme Castelo Branco, quando este autor, analisando a fase que ele denomina “analítica do poder” (1970-1977), afirmou que: (...) no início dos anos setenta, Foucault procurou analisar as relações de poder entre saber e poder num projeto que, apesar de prioritariamente epistemológico, tem de amparar-se numa nova concepção de poder. (in RAGO, 2002, p.175) A preocupação epistemológica de Foucault, iniciada, segundo Gilles Deleuze, em História da loucura, resulta, segundo palavras deste mesmo autor, na principal obra com preocupação científica, a Arqueologia do conhecimento. (DELEUZE, 200, p. 130). Nessa obra Foucault tentou chamar a atenção para a adoção de novos métodos que libertassem as Ciências da influência do Positivismo. Podemos dizer que o que Foucault pretende é inaugurar uma ontologia do presente a partir de seus estudos sobre a modernidade. Obviamente que ontologia aqui escapa ao sentido metafísico que a filosofia pretendeu, até Nietzsche, imputar Foucault fez uso desse mesmo método para analisar outros temas tais como o poder em suas múltiplas dimensões (Microfísica do poder, 1979) e a punição (Vigiar e punir, 1996). 1 111 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 a esse termo. A ontologia foucaultina se reveste com um sentido de crítica, em que a percepção do tempo presente passa inevitavelmente pelos questionamentos acerca das inúmeras possibilidades que existiram desse tempo ter sido diferente. O entendimento acerca da visão foucaultina da história passa, portanto, obrigatoriamente pelo entendimento da visão acerca da história desenvolvida por Nietzsche. A visão histórica desenvolvida por Nietzsche inicia-se com uma dura crítica à forma de se fazer história na Alemanha, ou melhor, dizendo, a maneira alemã durante o Reich de fazer história. Hayden White, analisando as possibilidades do discurso histórico, entendeu que em Nietzsche havia duas formas de considerar a História, a saber: (…) un tipo negador de la vida, que pretendia encontrar el único modo eternamente verdadero, o “propio”, de ver el passado y un tipo afirmador de la vida, que estimulaba tantas visiones diferentes de la historia como proyestos habia para alcanzar un sentido del ser en seres humanos individuales. (WHITE, 1992: 316-317) Fugindo da história enquanto processo linear, que, alcançaria um fim idealizado, nos moldes do pensamento hegeliano, Foucault trabalha a questão das contingências que formam o presente, num questionar constante sobre a proveniência e emergência dos acontecimentos históricos. Em oposição à ideia de origem, que pressupõe um desenvolvimento linear, a ideia de proveniência carrega em si toda a série de contingências, heterogeneidades, rupturas e fragmentações sutis próprias ao momento histórico. Da mesma forma, a emergência não se mostra como ponto final do acontecimento, mas sim como momento em que todas aquelas rupturas e sutilezas se concretizam em um processo de normalização que grosseiramente representa o surgimento de determinado elemento histórico. O manicômio e as instituições totais surgem, assim, como a normalização de todo um discurso sobre a razão e a desrazão na modernidade que acaba por enxergar na última um problema de sentido moral e social. Dessa forma, tanto a obra cartesiana quanto o hospital geral ou as reformas de Pinel, contribuíram, no jogo incessante do devir histórico, para a consolidação dessas instituições. Nada menos linear, portanto. Essa ausência de linearidade atinge principalmente o olhar do homem contemporâneo, que, como ressaltou Roberto Machado, encontra-se profundamente antropologizado, medicalizado e humanizado (no sentido racional 112 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 do termo) e que por essas razões percebe aqueles que não se enquadram nessa forma de apreensão do mundo como diferentes, estrangeiros aos olhos da razão e da moral. (MACHADO, 2001, p. 17) François Dosse ressaltou como um dos aspectos positivos da obra de Michel Foucault justamente o fato de buscar o prolongamento do poder em suas extremidades, descobrindo, desta forma, por trás do inorgânico e do desordenado, a hierarquia e a ordem. Ao mesmo tempo Dosse destacou o risco que esse procedimento tem de diluir o poder, retirando a capacidade de resistência, uma vez que se o poder está em todo lugar, não se pode lutar contra o mesmo. (DOSSE, 2003, ps. 338-339) A análise de François Dosse não levou em conta que o caminho aberto por Foucault possibilitou uma compreensão mais nítida acerca das ramificações e manifestações do poder nos seus mais variados graus. Como destacou Francisco Falcon, nas pegadas de Foucault, o interesse maior é pelas investigações acerca das formas concretas que assume a luta pelo poder (e o seu exercício). (FALCON, 1997, p. 80) O risco apontado por Dosse é fruto de uma percepção equivocada da obra de Foucault uma vez que pretende compreendê-la como fruto de um elogio da irracionalidade pós-moderna, tal como fizeram Luc Ferry e Alain Renaut. (FERRY, RENAULT, 1988, p. 109) Dentro dessa perspectiva a obra de Foucault passa a ser percebida como uma análise da descontinuidade em detrimento da continuidade que marcaria o trabalho histórico e de uma opção pela narrativa pura em detrimento do entendimento de processo histórico. Essa crítica perde totalmente seu sentido se entendermos a metodologia de pesquisa histórica de Foucault. O pensador francês adota a genealogia nietzscheana enquanto método de pesquisa histórica e em muitos termos continua o trabalho do pensador alemão. Para Nietzsche a genealogia consiste em reconstruir as condições de surgimento, transformação, deslocamento de sentido e desenvolvimento dos supremos valores de nossa civilização (GIACÓIA JUNIOR, 2003, p. 16). Herda de Nietzsche, por exemplo, a ideia da multiplicidade de interpretações possíveis sobre um fato histórico, a descontinuidade trágica do devir histórico, bem como a consciência da arbitrariedade presente na estipulação 113 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 de uma certa “verdade”, em detrimento das demais no desenrolar do processo histórico. Assim como Nietzsche, Foucault enxerga na transitoriedade, no imprevisível, no trágico, uma questão ética fundamental: ‘se temos diversas interpretações possíveis, podemos ter certeza que a interpretação que escolhemos é a melhor?’ Para Foucault a resposta não interessa tanto quanto a pergunta, que ele considera fundamental para uma vida emancipada. Pergunta essa embotada pelas certezas do pensamento metafísico, que começam a se quebrar com o advento do Iluminismo. As luzes permitem o abandono das antigas estruturas universais e o estudo do acontecimento como forma de busca pela consciência crítica do homem. Apesar de reconhecer a importância do Iluminismo para a criação de uma consciência libertadora, Foucault, assim como Adorno e Horkheimer, também reconhece os limites impostos pela supremacia, não da razão, mas de uma razão, a saber, a razão burguesa, que se baseava na credulidade, na aversão à dúvida, na precipitação nas respostas, no pedantismo cultural, no receio de contradizer, na parcialidade, na negligência na pesquisa pessoal, no fetichismo verbal (...) e em outras causas semelhantes. (ADORNO, HORKHEIMER, 1996, p. 17) Nessa crítica à forma burguesa de percepção e auto-percepção da sociedade Foucault aproxima-se da crítica de Marx à sociedade burguesa, em especial, ao conceito de fetichismo da mercadoria, responsável direto, segundo Marx, pelo embotamento de uma consciência crítica social. Também podemos vislumbrar intercessões entre Marx e Foucault na visão do materialismo exposta por Marx pela qual a realidade determina a consciência e não o oposto. Os dois pensadores entendem que a realidade (percebida como totalidade) é muitas vezes mias complexa que a consciência da realidade (percebida como parcial), originando daí a multiplicidade de interpretações históricas sobre um mesmo fato, além da multiplicidade de saídas em oposição à saída única indicada pela visão burguesa. A consciência originada da percepção acima exposta é essencial para nos livrar das armadilhas próprias do pensamento metafísico assim como de um pensamento indicador de uma única via. Nesse sentido, o método histórico de Foucault, assim como o método marxista, não pode ser confundido com a História, mas apenas como um método (HOBSBAWN, 1998, p. 175). 114 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Não é de se admirar que a leitura que Foucault faz do Anti-Édipo, de Deleuze e Guatari, seja a de uma obra de ética, uma vez que para Foucault esse livro inquietante ressalta as diversas possibilidades que temos de viver de forma diferente da que vivemos: Existem momentos da vida onde a questão de saber se podemos pensar diferentemente do que pensamos e perceber diferentemente do que vemos é indispensável para continuar olhando ou refletindo. (FOUCAULT, 2002, p. 14) Mais do que filosofar sobre a História, Foucault se utiliza dessa História como método filosófico, como forma de pensar o contemporâneo no jogo incessante do devir trágico, e como maneira de evocar as arbitrariedades e escolhas escondidas atrás das “verdades” e dos “conceitos”. Novamente ecoa aqui a obra nietzscheana, uma vez que na sua Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche trabalha justamente a ideia de que a História é importante porque nos faz perceber outras vidas e outras possibilidades, o que não o impede de opor a desvantagem da História para a vida, que seria embotar o desejo de ação nos homens, uma vez que esses não podem ter dúvidas. Mas, a par disso, Foucault se concentra na ideia da verdade e na consolidação dos saberes na história. Se toda verdade é provisória e arbitrária, o que dizer da verdade histórica? Contra todos os cânones positivistas e da história factual, Foucault opõe as rupturas, as sutilezas, as circunstâncias, mas, assim como Nietzsche, com a pretensão de mostrar que a vida poderia ser diferente. Tal perspectiva não pode ser confundida com uma negação da realidade ou com a substituição desta por uma interpretação possível. Foucault compreende bem que toda a interpretação é uma interpretação da interpretação, pois a apreensão da realidade em seu sentido mais duro nos é dada a partir de interpretações produzidas por nós ou por outros. Segundo Eduardo Grüner essa perspectiva não invalida as interpretações críticas do passado, como o marxismo, por exemplo, uma vez que lo que hace Marx es empezar por aceptar el “texto” de la economia burguesa como verdad parcial, y luego interrogar sus “silêncios” o sus inconsistências (GRÜNER, 2006, p. 124) . Em vida, Foucault usava desse mesmo argumento para rebater a ideia, bem difundida, aliás, de que ele seria um autor humanista. Dizia que os tecnocratas é 115 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 que eram humanistas, afinal eles achavam que conheciam o melhor caminho para a vida das pessoas. Ainda sobre o problema da verdade e a influência do pensamento nietzscheano na obra de Foucault, não é de se admirar que o seguinte fragmento do autor alemão seja um dos preferidos de Foucault sobre o tema: Num certo canto remoto do universo cintilante, vertido em incontáveis sistemas solares, havia uma vez um astro onde animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e hipócrita da “historia mundial”, mas foi apenas um minuto. Depois de a natureza ter respirado umas poucas vezes, o astro enregelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer. (NIETZSCHE, 2005, p. 7) Muito semelhante ao projeto dos Analles, no que toca a questão das várias maneiras de se enxergar o momento histórico, o trabalho foucaultiano radicaliza o perspectivismo ao adotar como fontes primordiais documentos que o autor gostava de chamar de “exóticos” ao trabalho histórico: cartas de loucos e de condenados, pinturas, textos literários. Aliás os textos literários merecem um comentário à parte no trabalho de Foucault. De Sófocles à Artaud, passando por Nietzsche, Sade e Raymond Roussel, o autor francês aponta sua flecha para autores malditos e mesmo banidos – como Sade – da história oficial. A semelhança com a proposta francesa dos Analles não para apenas na escolha de documentos exóticos, mas na busca por uma conexão lógica entre várias formas de comportamento, pensamento e sentimento, para vê-las como mutuamente coerentes, enquadrando-se nesse sentido àquilo que acabou denominado como História das Mentalidades. (HOBSBAWN, 1998, p. 199). A seguir teceremos alguns breves comentários ao trabalho de Foucault, destacando, entre sua vasta galeria de problemas e preocupações filosóficas, alguns temas fundamentais para entender sua metodologia aplicada ao fazer histórico. Artaud, Van Gogh, Nietzsche e Sade: a loucura cobrando o seu quinhão. O texto literário é muito mais do que uma experimentação estética, ou a articulação de uma narrativa sobre um determinado tema. As flutuações, inseguranças e mesmo aquilo que não pode ser dito oficialmente dentro de uma sociedade encontram guarita no texto literário. Em sua análise da contribuição dos saberes “psi” para o desenvolvimento das instituições totais Foucault parte da 116 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 ideia de que a mentalidade legitimadora da internação se funda na concepção de que a razão é o que nos diferencia do resto do mundo animal e que nos eleva acima da natureza. Esse pensamento, de matriz nitidamente cartesiana (FOUCAULT, 1978), esbarra em um primeiro momento com a desrazão, com formas de viver diferentes, irracionais, mas que compartilham o mesmo locus da racionalidade, as grandes praças, as sombras dos palácios, os entretenimentos da nobreza e da populaça. Com o surgimento do capitalismo a capacidade produtiva se transforma em um discurso diferenciador das pessoas: os bons são os que podem trabalhar e produzir riquezas, inteiramente de acordo com as doutrinas de cunho liberal que enxergavam no trabalho a origem da riqueza das nações, e os maus os que não produzem e se apoiam nos demais para poder sobreviver. A lógica do capital retira do “louco” qualquer estatuto moral que antes o mesmo pretendera ter, condenado ao silêncio do hospital geral e em um segundo momento às celas manicomiais, o louco é afastado do convívio dos normais, vítima de sua própria linguagem e forma de ver o mundo, inalcançáveis pelo uso da razão, marcando a distinção social apontada por Deleuze e Guatari, entre produção, distribuição e consumo (DELEUZE, GUATARRI, 1996, p. 9). Foucault tenta dar voz a essas pessoas, silenciadas por uma nova ordem, violenta demais para que pudessem reagir, e analisa suas fichas de tratamento, seus memoriais, sua arte, sua literatura. Em Sade ele enxerga uma radicalização do projeto iluminista: e se a razão tivesse que passar pelo crivo da própria razão? Como partículas que se anulam gerariam a própria desrazão que pretende combater. O texto sádico demonstra que a moral defendida pelos moralistas franceses da época das luzes é tão ou mais arbitrária e violenta quanto o tipo de moral sádica que ele pretende estabelecer. Nietzsche se coloca também dessa forma, minando as verdades universais através do jogar com a razão, colocando-a diversas vezes em xeque, mostrando o tanto de moral e de arbitrário que existe em nossas posições “objetivas” ou “científicas” diante da realidade, rompendo com toda a estrutura externa da significação. Para além dessa estrutura “jaz a loucura – o destino de Hölderlin e de Nietzsche” (DARTON 1986, p. XVIII). Foucault acaba enxergando, no fim do projeto racionalista, a incorporação da desrazão como o inatingível, como uma realidade diferente da razão, não o seu 117 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 oposto, algo que ela não consegue fazer falar, mas em que pode enxergar seus próprios resquícios escondidos. O inconsciente freudiano, o id à solta que explica e forma o ego. O mundo se medindo pela obra de Nietzsche, Artaud e Sade. A loucura falando, se apropriando do discurso racional, fazendo novamente o mundo duvidar. O corpo, prisioneiro da alma. A análise das instituições totais realizada por Foucault não possui um caráter humanista, de condenação do poder institucional como sempre perverso e destrutivo. Foucault se exime de valorar o poder institucional dessa forma, buscando sua faceta “construtiva”. O que o poder constrói são novos corpos, novas formas de se lidar com o corpo (FOUCAULT, 1996). O corpo é visto por Foucault não como um dado biológico inalterável, mas como algo extremamente fluido e adaptável às forças que o pressionam e o atravessam. Invertendo a famosa máxima platônica: a alma, prisioneira do corpo, Foucault enxerga o corpo como um construto da situação social em que está inserido. A “alma” seria formada pelas forças que atravessam esse corpo. Dessa forma existiria uma “alma” para o louco, outra para o preso, outra para o homossexual. O corpo se constrói em resposta à atuação dessas forças anímicas, construindo novas formas de sexualidade, de visão, de tato. As atuações do poder se mostram muito mais sutis do que pode parecer. Sem essência ou concretude o poder para Foucault não é algo que se possua, mas que se exerce, que age. Ninguém é dono do poder, ele simplesmente está presente, capilarmente, na família, no hospital, na escola, na prisão (FOUCAULT, 1979). Construindo, criando, destruindo, estabelecendo e anulando. O poder é expressão do mundo, e uma força que o saber histórico não pode ignorar. Piérre Riviérie, o assassinato como discurso. Foucault organizou e anotou a publicação dos autos de um processo de homicídio triplo realizado por um camponês francês em 1835. Piérre Riviérie degola a mãe, sua irmã Victoire e seu irmãozinho Jules, para, segundo ele, por fim 118 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 aos sofrimentos de seu pai, constantemente artomentado pela mãe. Foucault chama atenção não para o crime em si, mas para o memorial que Riviérie escreve para os magistrados explicando o crime e suas crenças sobre a sociedade. Para Foucault o texto memorial e o assassinato se complementam, ambos são ato e discurso, acontecimento e fala. Um perde a força sem o outro. Sem seu memorial, o ato de Riviérie perde grande parte de seu poder de chocar. Dono de uma lógica por vezes perturbadora o texto se utiliza de argumentos religiosos, mesclados às teorias moralistas da época para justificar o ato assassino. Mas, mais que isso, o texto faz parte do assassinato, pois eterniza o ódio de Riviére por suas vítimas, critaliza seu sorriso cravado por uma sábia idiotia. O memorial transforma o assassinato em discurso, mas é, ele mesmo, um acontecimento. Foucault e sua equipe contextualizam o ato e o texto em sua época, se aproximando algumas vezes daquilo que os historiadores, por falta de um termo melhor, chamam de mentalidades. Inserem Riviére num discurso de animalidade próprios do campesinato francês da época, em que o horrível era sempre o “quinhão de todos” (FOUCAULT, 2007), em que seu ato tenta ofender mais a própria realidade, que lhe impõem a impossibilidade esmagadora do cotidiano, do que a moralidade francesa tradicional. Riviére força o mundo, como força seus cavalos, quase à exaustão, tentando ver até onde o impossível alcança. Numa época em que as teorias contratualistas da sociedade começam a tomar forma, Riviére interpreta a ideia da lei e do contrato à sua maneira, se colocando no papel do árbitro e do executor, que garante o cumprimento do contrato, ou a punição de quem se nega a cumpri-lo. Muito mais do que o ato de Riviére, um entre centenas de atos monstruosos na época, o que choca é a realidade em que esse ato aparece. A monstruosidade pesada e opressora de um cotidiano que reduz a vida à animalidade, ao nunca poder, ao nunca realizar. Em que os tributos confiscam até à miséria, em que a hostilidade da vida leva à hostilidade contra à vida. Conclusões Espelho retrovisor futuro. 119 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Vimos como o olhar foucaultiano sobre a história levanta problemas essenciais para o amadurecimento de nossas concepções científicas, possibilitando a emancipação do saber de suas amarras positivistas. Ao encenar o teatro da certeza e da objetividade, os positivismos criam a ideia da universalidade e da atemporalidade dos conceitos que constroem, vendendo, ainda que veladamente, a concepção de que existem verdades absolutas e que somente através de tal ou qual método é possível que as alcancemos. A genealogia foucaultiana se inscreve, nesse contexto, como um questionamento radical não só dos limites da significação e do conceito, lançados à análise como partes de um processo histórico, mas também de nossa postura diante desses conceitos e de nossa visão de mundo em geral. A história para Foucault, portanto, é uma forma de lidarmos com o presente, de considerarmos todas as possibilidades para a nossa realidade. Ainda que sua contribuição para o fazer do saber histórico não seja tão radicalmente inovadora é fundamental para repensarmos nosso viver como viver historicamente inscrito. Deleuze concebe o monstro como um problema ético fundamental, uma vez que, segundo ele, o monstro representa aquilo que poderíamos ter sido, ou ainda podemos ser. Assim também o é nos textos de Foucault. Cercados pelos seus monstros, loucos e anormais, podemos repensar nossos critérios, nossa forma de vida, nossas maneiras de emancipação e nossas escolhas. Repensar nossa normalidade, que como a de Piérre Riviére, tenta nos esmagar com o peso do impossível. 120 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. O conceito de Iluminismo. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996 CASTELO BRANCO, Guilherme. As lutas pela autonomia em Michel Foucault. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. Lacerda & VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: DP&ª 2002. 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Tendo em vista os conceitos de poder, necessidade e livre arbítrio, considerados por Tolstói como essenciais à ciência histórica, analisaremos de que maneira esses conceitos influem no desafio que o historiador tem diante de si ao interpretar o processo histórico, bem como intentaremos indicar em que consiste a sua teoria da “integração dos infinitesimais”, tendo em vista que esta constitui o centro nevrálgico da teoria da história desenvolvida pelo escritor russo. Palavras-Chave: Livre-arbítrio; necessidade; poder. ABSTRACT This study aims to examine the interpretation of historical process according Leon Tolstoi, that is, discuss what the Russian writer was the human experience in time and the possible ways through which we can obtain that knowledge. Considering the concepts of power, necessity and free will, considered by Tolstoy as essential to science history, we will review how these concepts impact the challenge that the historian has before him to interpret the historical process, and intend to indicate what is his theory of “integration of infinitesimal”, since it is the nerve center of the theory of history developed by the Russian writer. Keywords: Free will; necessity; power. Introdução O cientificismo do século XIX notabilizou-se por promover, dentre outras coisas, a elevação de “ramos do conhecimento” ou “saberes” à categoria de ciência. Bem entendido, queremos aqui sinalizar com isso o processo através do qual estes “espaços do saber” se tornaram cada vez mais especializados e dotados de 123 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 ferramentas conceituais e procedimentos próprios para a avaliação empírica dos dados da realidade. Para sermos mais específicos, trata-se aqui do período em que as ciências recém-criadas esforçaram-se por compor um aparato que garantisse a validade/plausibilidade de suas postulações. O principal elemento deste conjunto foi, sem dúvida alguma, o método, isto é, a instituição de normas e procedimentos específicos para a apreciação adequada dos elementos analisados por cada ciência respectivamente. Com a História não aconteceu diferente e podemos, com razoável precisão, apontar para uma data normalmente tomada como um marco referencial no que diz respeito à metodologia da história: a publicação, em 1824, do manual de metodologia histórica de Ranke, no qual o autor intenta estabelecer as normas da história científica, diferenciando-a de outros ramos congêneres, tais como: a filosofia da história e a literatura. Houve, na verdade, uma conjugação de fatores que ensejaram o surgimento de preocupações metodológicas cuja exata análise e apreciação não serão possíveis neste breve trabalho; porém, recorremos ao auxílio da referida data apenas para lançar luzes sobre um período a partir do qual os historiadores, baseados em uma própria metodologia e influenciados pelo espírito cientificista do século XIX, acabaram por levar a ciência da história a uma situação de sectarismo em relação às posições deterministas que se tornaram predominantes nas ciências sociais. Um dos efeitos mais paradigmáticos desta prática será o aparecimento de obras de história totalizantes, nas quais seus autores procuram explicar o movimento histórico com base na atuação de grandes figuras públicas: chefes de estado e pessoas proeminentes. Fazemos notar também que este é o tempo das histórias nacionais, ou seja, o período em que as trajetórias dos povos são contadas com o intuito de glorificar e reafirmar as histórias dos Estados-nações europeus, baseadas em uma teleologia inabalável segundo a qual o progresso é o destino inescapável e inexorável destas sociedades. Queremos aqui nos referir ao período compreendido entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX, em que predominou nos estudos históricos uma vertente que Arno Wehling denominou de “Historicismo cientificista” em seu trabalho A invenção da História, cujas principais 124 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 características são a predominância da explicação histórica sobre a sistêmica, da visão diacrônica sobre a sincrônica, pela tentativa do estabelecimento de leis que traduzissem as regularidades do processo histórico, e de toda a realidade, freqüentemente pela escatologia dos sistemas sociais com graus variáveis de determinismo. Ora, foi exatamente neste contexto, mais exatamente entre os anos de 1865 e 1869 que o escritor russo Leon Tolstói publicou o romance: Guerra e Paz, no qual expressou sua desconfiança para com as explicações vazias e pretensamente científicas dos historiadores de então, bem como demonstrou quão frágeis eram os métodos de que estes historiadores lançavam mão para interpretar o processo histórico. O presente trabalho tem por objetivo analisar a interpretação do processo histórico segundo Leon Tolstói, isto é, discutir o que para o escritor russo constituía a experiência humana no tempo e as possíveis maneiras através das quais podemos obter esse conhecimento. Tendo em vista os conceitos de poder e livre arbítrio, considerados por Tolstói como essenciais à ciência histórica, analisaremos de que maneira esses conceitos influem no desafio que o historiador tem diante de si ao interpretar o processo histórico, bem como intentaremos indicar em que consiste a sua teoria da “integração dos infinitesimais”, tendo em vista que esta constitui o centro nevrálgico da filosofia da história desenvolvida pelo escritor russo. A filosofia da história de Tolstói: uma visão geral Para que possamos compreender e identificar uma filosofia da história em Tolstói, isto é, o modo como ele interpretou o que seja experiência humana no tempo e as possíveis maneiras através das quais se pode conhecê-la, é necessário que levemos em consideração o que para Tolstói constituía os maiores desafios da ciência histórica, a saber: a dificuldade de definir as forças que movem as nações e o problema do livre arbítrio e da necessidade. Embora não tivesse sido nem filósofo nem historiador de profissão, a narrativa de seu romance Guerra e Paz está repleta de menções à história e, sobretudo no "Adendo" da obra, o autor expõe de forma minuciosa suas idéias 125 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 sobre o assunto. Na reflexão que se desenvolverá a seguir acerca da interpretação do processo histórico segundo Tolstói, é preciso fazer notar que, apesar de muitas das suas críticas à maneira como os historiadores do seu tempo tendiam a discutir e interpretar as ocorrências históricas fossem, sem dúvida alguma justificadas, é difícil evitar a sensação de que as suas ponderações se tornaram um tanto controversas pelo fato de ele julgar a história de acordo com um entendimento que lhe era peculiar. O escritor russo não estava preparado para reconhecer a validade dos cânones aceitos do processo histórico; além disso, estava demasiado influenciado pela crença de que a investigação histórica só pode ser digna de respeito se for capaz de produzir resultados comparáveis aos obtidos na matemática e nas ciências naturais. Todavia, por mais problemática que se possa julgar ter sido a sua teoria da “integração dos infinitesimais,” as observações do autor de Guerra e Paz têm, aos menos, a vantagem de pôr em destaque algumas das dificuldades com que se deparavam os estudiosos das coisas humanas, dificuldades essas que - como ele bem notou - eram ainda obscurecidas pelas generalizações inócuas e pelas ferramentas conceituais grosseiras de muitos historiadores e teóricos sociais do seu tempo. Feitas as devidas considerações, procedamos ao tratamento do primeiro desafio da ciência histórica: a dificuldade em se definir as forças que movem as nações. Tolstói considerava que, para o entendimento do processo histórico, era crucial que a ciência histórica fosse dotada da capacidade de solucionar duas questões fundamentais: 1 - O que é poder? 2 - Que força determina os movimentos dos povos? O escritor refutava tanto o tipo convencional de história do seu tempo que procurava apresentar os eventos históricos como efeitos das atividades de indivíduos ilustres e poderosos, como também aquilo que ele denominava como “histórias universais” e “histórias da cultura”. Estas últimas, reconhecendo as fraquezas inerentes à historiografia dos “grandes homens”, tentavam justificar as evoluções históricas por qualquer outro meio, recorrendo, por exemplo, à influência de “idéias” ou movimentos intelectuais, ou pressupondo a ação de forças 126 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 subjacentes que de algum modo produzem os eventos da história ou levam os agentes históricos a agir como agem. A razão pela qual Tolstói lançava objeções tanto a interpretações deste tipo como a interpretações que dão prioridade de lugar às escolhas e decisões “livres” de indivíduos eminentes era, pensava ele, que todas acabavam por cair no conceito - ainda não analisado - de poder; conceito esse que, tal como normalmente se empregava, era suficientemente vago e mal definido para ocultar a ignorância fundamental quanto às reais causas da mutação histórica. A título de exemplo, tomemos o caso dos historiadores de biografias particulares, para quem o processo histórico é movido pelos desígnios de pessoas proeminentes. Tais historiadores interpretavam a força propulsora dos acontecimentos históricos como sendo o poder existente nos heróis e monarcas. Segundo estas descrições, os acontecimentos advinham exclusivamente da vontade dos Napoleões, Alexandres ou, em geral, das personalidades estudadas pelo historiador. As respostas apresentadas por este gênero de historiadores na questão da força que movimenta os eventos são satisfatórias, mas somente enquanto houver um só historiador para cada evento. Logo que historiadores de nacionalidades e opiniões diversas começam a descrever o mesmo acontecimento as respostas por eles elaboradas perdem imediatamente doto o sentido, uma vez que essa força é apreendida por cada um deles não só de modo diferente, mas também contraditório. Um deles afirmava que o acontecimento foi produzido por Napoleão, outro, pelo poder de Alexandre; um terceiro pelo poder de qualquer outra personalidade. Esses historiadores, além disso, contradiziam-se mutuamente, inclusive nas interpretações da força em que se baseava o poder de um mesmo indivíduo. Aniquilando, assim, suas teses uns aos outros, os historiadores deste gênero destroem também o conceito da força promotora dos eventos, nenhuma solução fornecendo na questão essencial da história. Em uma passagem de sardônica ironia, Tolstói nos transmite a impressão que lhe causavam os trabalhos dos historiadores supracitados por meio de uma impiedosa paródia. Acompanhemo-la: Luiz XIV era um homem muito orgulhoso e autoconfiante. Tinha tais e tais amantes, tais e tais ministros e governava mal a França. [...] Além 127 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 disso, certas pessoas, naquela época, escreviam livros. Quando o século XVIII chegou ao fim, reuniram-se em Paris umas duas dúzias de pessoas que começaram a afirmar que todos os homens eram livres e iguais. Por causa disso, na França inteira o povo começou a se assassinar e a afogar uns aos outros. Essa gente matou o rei e muitas outras pessoas. Nessa época havia na França um homem genial – Napoleão. [...] Era tão inteligente e astuto que, depois de chegar à França, ordenou que todos o obedecessem, o que aconteceu, aliás. Tendo-se coroado imperador, foi de novo matar milhares de pessoas na Itália, Áustria e Prússia. E lá também matou muitos. [...] De repente todos os aliados de Napoleão tornaram-se seus inimigos; e esse exército marchou contra o imperador, que reunira novas forças. Os aliados derrotaram Napoleão, entraram em Paris, forçaram-no a renunciar ao trono e o enviaram para a ilha de Elba, sem, no entanto, privá-lo do título de imperador. [...] Quanto a Napoleão, após derramar lágrimas diante da Velha Guarda, abdicou do trono e partiu para o exílio. Então estadistas e diplomatas astutos, sobretudo Talleyrand, que conseguira sentar-se na famosa cadeira antes de qualquer outra pessoa e, por isso, alargara as fronteiras da França, discursaram em Viena e, graças a essa fala, tornaram os povos felizes ou infelizes. Subitamente os diplomatas e monarcas quase se engalfinharam. Estavam a ponto de ordenar que suas tropas voltassem a se matar, mas, nesse momento, Napoleão chegou à França com um batalhão e os franceses, que o odiavam, imediatamente se submeteram a ele. Isso, porém, aborreceu demais os monarcas aliados e eles declararam guerra à França, ele se consumiu lentamente num rochedo e legou seus grandes feitos à posteridade. Quanto à Europa, ali ocorreu uma reação e todos os príncipes começaram novamente a tratar mal seus povos. (TOLSTÓI, 1983, pp. 587-88) Para o escritor russo, analisando apenas as expressões da vontade das personalidades históricas que puderam se relacionar com os acontecimentos como ordens, os historiadores incorreram no erro de supor que fossem aqueles, isto é, os acontecimentos dependentes destas, as ordens. Examinando, porém, os próprios acontecimentos e a relação com as multidões em que tais personalidades se encontram, verificamos que elas (personalidades) e suas ordens são dependentes daqueles, isto é, dos acontecimentos. Tendo chegado a tal conclusão Tolstói responde as questões cruciais da história da seguinte forma: Poder é a relação de dada pessoa com outros indivíduos, segundo a qual aquela, quanto mais opiniões hipóteses e justificações da ação conjunta que se realiza, formula, tanto menos nesta participa. E o movimento dos povos não é determinado pelo poder, nem pela atividade intelectual, nem mesmo pela união daquele e desta, mas pela ação de todas as pessoas participantes no acontecimento, sempre de tal modo associadas, que às que mais diretamente no mesmo intervêm menos responsabilidades compete; e vice-versa. Sob o aspecto moral, o poder é causa do acontecimento; sob o físico, são aqueles que se submetem ao poder. Como, porém, a atividade moral é inconcebível sem a física, a causa do evento não reside na primeira nem na segunda, mas somente na conjunção de uma e outra. (TOLSTÓI, 1983, p. 605). 128 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Assim, de acordo com Tolstói, o conceito de causa torna-se inaplicável ao fenômeno que analisamos; se, por exemplo, eclode uma guerra, não podemos precisar por qual motivo isso ocorreu, sabemos apenas que, para a execução deste ou daquele efeito, as pessoas se coligam em certa conjunção e todas participam, e dizemos ser assim a natureza dos homens, acreditamos ser isso uma “lei”. Não obstante, o objeto da história é o homem e este afirma altivamente: “Sou livre e, portanto, não estou sujeito a leis” 1. Precisamente aqui deparamo-nos com o problema do livre arbítrio e da necessidade. Em linhas gerais, o autor de Guerra e Paz demonstra que o fato da consciência da liberdade ser uma forma de conhecimento distinta e independente da razão, proporciona ao homem o pueril engano de que age tão-somente pelo seu querer, esquecendo-se de que, em todos os casos em que há representação da liberdade e/ou da necessidade humanas, nunca é possível encontrar apenas uma dessas categorias agindo, mas a relação inversamente proporcional de cada uma com a outra, isto é, a proporção de cada uma aumenta ou diminui conforme o modo sob o qual o ato humano é considerado. O escritor de Iasnaia Poliana considera que em todos os casos sem exceção, em que a nossa representação da liberdade e da necessidade humanas aumenta ou diminui, três fatores fundamentais concorrem para isso: 1 - A relação do indivíduo, autor do ato, com o mundo exterior, que é o conceito mais ou menos claro do lugar definido que cada indivíduo ocupa com relação a tudo quanto com ele simultaneamente existe; 2 - A relação do indivíduo com o tempo, ou seja, a idéia mais ou menos clara do lugar que a ação humana ocupa no tempo; 3 - A relação do indivíduo com as causas que ao ato deram origem, isto é, a nossa maior ou menor possibilidade de apreender a série interminável de causas que constitui exigência inevitável da razão, na qual cada fenômeno inteligível e, por isso, todo o ato humano deve ter seu lugar definido, como efeito de atos precedentes e causa de ulteriores. Para Tolstói, se a história fosse constituída de atos humanos inteiramente livres, esta seria um amontoado desconexo e fortuito de volições, isto é, atos nos quais 1 Ver TOLSTÓI, L. Guerra e Paz. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983. 129 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 há expressão de vontades, isso impediria então qualquer possibilidade de verificação de leis na história. Sob esse entendimento, o escritor russo propõe que se diminua o fator da liberdade a proporções infinitamente pequenas na relação dinâmica dos indivíduos com os acontecimentos e com suas ações, para que, para além da busca de causas, a ciência histórica se ocupe antes de interpretações mediante a consideração de unidades infinitesimais, isto é, das “propriedades comuns da história”, das tendências homogêneas dos homens. Leon Tolstói acredita que o movimento histórico é promovido pela integração dessas unidades infinitesimais; como fora dito, a relação entre elas é definida pela análise de cada ato como sendo a participação de todas as pessoas, no qual o livre arbítrio deve ser visto como uma espécie de liberdade a posteriori, quer dizer, uma liberdade que sutilmente se submete ao caráter contingencial da vida humana. Com o intuito de ampliar nosso horizonte interpretativo procederemos, doravante, a um levantamento de algumas análises realizadas por alguns críticos e intelectuais acerca da filosofia da história elaborada por Leon Tolstói. Não obstante as particularidades de cada um dessas análises, a maioria tem em comum o fato de desconsiderarem solenemente a relevância das reflexões do escritor de Iasnaia Poliana, tratando-as como infelizes postulações pretensamente científicas oriundas de um intelecto considerado indubitavelmente genial e pródigo enquanto escritor e artista, mas lamentavelmente canhestro na condição de pensador. Com efeito, a propósito dessa disposição geral dos críticos em relação à filosofia da história de Tolstói, nos diz Isaiah Berlin o seguinte: De modo geral, a filosofia da história de Tolstói não recebeu a atenção que merece, seja como visão intrinsecamente interessante ou como episódio na história das idéias, ou mesmo como um dado no desenvolvimento do próprio Tolstói. Aqueles que o trataram basicamente como romancista por vezes consideram as passagens históricas e filosóficas presentes em Guerra e Paz como uma interrupção impertinente da narrativa, como uma disposição lastimável para digressões irrelevantes, característica desse grande escritor, mas excessivamente dogmática, como uma metafísica capenga, tosca, de pouco ou nenhum interesse intrínseco, profundamente não-artística e totalmente alheia ao propósito e à estrutura da obra de arte como um todo. (I. BERLIN, 1988, pp. 45-6). Um emblemático exemplo deste tipo de análise sobre as reflexões tolstoinianas, nós encontramos em Ivan Turgueniev, romancista e dramaturgo russo para quem as postulações de Tolstói sobre a história eram “farsescas”, “trapaças” e, 130 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 em última análise, não passavam de charlatanismo.1 Conforme ainda nos diz Isaiah Berlin, Gustave Flaubert, que expressou fascínio para com o primor artístico de Guerra e Paz, ficou horrorizado com o teor filosófico presente nas páginas do romance. A mesma disposição para com as reflexões de Tolstói nós encontramos no crítico Dmitri Akhcharumov: “É uma sorte para nós que o autor seja melhor artista que pensador” (AKHCHARUMOV, 1868, apud BERLIN, 1988, p. 47). Do mesmo modo, a filosofia da história de Tolstói apresentou pouco interesse para Vogüé e Merejkovski, Stefan Zweig e Percy Lubbock, Biriukov e E. J. Simmons. Por fim, a maioria dos proeminentes historiadores do pensamento russo tendeu a reduzir a filosofia da história de Tolstói a mero “fatalismo”. 2 Entre todas as análises realizadas acerca das reflexões tolstoinianas sobre a história, as considerações do historiador russo Kareiev foram, sem dúvida alguma, as mais razoáveis haja vista que este foi o único a se preocupar em analisar seriamente o conteúdo das postulações de Tolstói. Com brandura e paciência, ele [Kareiev] assinalou que, por mais fascinante que fosse o contraste entre a realidade da vida pessoal e a vida social de um formigueiro, daí não se deduziam as conclusões de Tolstói. É bem verdade que o homem é, ao mesmo tempo, um átomo que vive a sua vida consciente “por si mesma” e, simultaneamente, o agente inconsciente de certa corrente histórica, um elemento relativamente insignificante no vasto todo composto de um enorme número de tais elementos. Guerra e Paz, diz-nos Kareiev, “é um poema histórico sobre o tema filosófico da dualidade” – “as duas vidas vividas pelos homens”, e Tolstói estava perfeitamente certo ao objetar que a história não se faz acontecer devido à conjunção de entidades tão obscuras como o “poder” ou a “atividade mental”, pressupostas por historiadores ingênuos. Na realidade, segundo a apreciação de Kareiev, ele alcançava seus melhores momentos ao denunciar a tendência dos escritores de orientação metafísica a atribuir eficácia causal ou idealizar entidades tão abstratas como os “heróis”, “forças históricas”, “forças morais”, “nacionalismo”, “razão” e assim por diante, com isso cometendo simultaneamente dois pecados mortais: o de inventar entidades inexistentes para explicar acontecimentos concretos, e o de dar livre curso a preconceitos pessoais, nacionais, classistas ou metafísicos. (I. BERLIN, 1988, p. 63). A seguir, temos as considerações de Kareiev segundo as quais Tolstói negaria a possibilidade de um conhecimento empírico nas ciências sociais devido a sua descrença quanto à importância real dos indivíduos considerados proeminentes e responsáveis pelo movimento histórico. Bem entendido, trata-se 1 Ver E. I. Bogoslovski, Turgueniev o L. Tolstom (TIFLIS, 1894), p. 41; citado por P. I. Biriukov, L. N. Tolstoi (BERLIM, 1921), vol. 2, pp. 48-9; apud BERLIN, I. Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 2 De acordo com I. Berlin, os professores Ilin, Iakovenko, Zencovski dentre outros. 131 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 aqui de atestar que para Kareiev, Tolstói desconsiderou solenemente a importância das vontades individuais, como se os indivíduos estivessem submetidos a “forças” inexoráveis e abomináveis, isto é, como se os homens fossem meros produtos de seus respectivos moldes sociais. “[...] as vontades individuais talvez não sejam onipotentes, mas tampouco são totalmente impotentes e algumas se mostram mais eficazes do que outras.” (KAREIEV, 1887, apud BERLIN, 1988, p. 64). A despeito da inegável coerência de tal interpretação, ela se baseia, todavia, no que modesta e audaciosamente apontaremos aqui como um equívoco de interpretação por parte do historiador russo supracitado. Equívoco esse que provém justamente da interpretação de Kareiev acerca da compreensão tolstoiniana sobre o encadeamento dos acontecimentos históricos. Kareiev insinua que Tolstói postulara uma espécie de inacessibilidade intrínseca das causas dos acontecimentos, ou seja, como se o fluxo histórico fosse uma entidade regida por leis inexoráveis e inacessíveis, cuja inteligibilidade por meio de métodos como a observação social e a inferência histórica seria impossível. Esta análise nos conduz a uma inevitável impressão de fatalismo na teoria da história elaborada por Leon Tolstói que, em última instância, deve-se a um mal-entendido cuja origem mais exata discutiremos mais adiante. Na verdade, o mal-entendido em que incorreu Kareiev decorre de uma controvérsia presente na própria fala de Tolstói, controvérsia de cuja elucidação depende todo o desenvolvimento ulterior do presente trabalho. Trata-se aqui de interpretar a noção que o escritor russo tinha da categoria “leis”, pois este conceito possui fundamental importância para a correta análise e compreensão da “teoria da integração dos infinitesimais”, centro nevrálgico e núcleo irradiador a partir do qual se sustenta toda a filosofia da história tolstoiniana. Sob esse entendimento, faz-se necessário a esta altura um esclarecimento. Por questões de clareza e objetividade metodológicas, percorreremos um caminho interpretativo que modestamente se atreverá a destoar da posição do eminente historiador russo Kareiev, e assim procederemos não pela tola presunção de procurar exaurir o tema e fornecer uma explicação definitiva para o mesmo, e sim pela riqueza interpretativa que a controvérsia do assunto fornece, fazendo com que o vislumbre de uma interpretação distinta seja não apenas possível como 132 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 também necessária e igualmente edificante no esforço interpretativo do conhecimento. A teoria da integração dos infinitesimais Comecemos sem delongas por definir o que a “teoria da integração dos infinitesimais” não é: apesar de se basear claramente em um método de cálculo desenvolvido pela matemática no século XIX, a teoria não consiste absolutamente em transmutar para a ciência histórica uma espécie de equação mirabolante através da qual os acontecimentos históricos são apreendidos e explicados. Tampouco a teoria constitui-se de um conteúdo metafísico como pretendeu Patrick Gardiner. 1 A questão central reside na antinomia liberdade/necessidade, isto é, a delicada questão do livre arbítrio humano que, para Tolstói, constitui o cerne da investigação histórica. Embora não expresso, o problema do livre-arbítrio manifesta-se a cada passo na História. Todos os historiadores sérios chocaram-se com este problema, mesmo contra suas próprias vontades. Todas as contradições, todos os pontos obscuros da História e o falso caminho seguido por esta ciência provêm do fato de que este problema ainda não foi resolvido. Se a vontade dos homens é livre, isto é, se cada homem pode agir de acordo com seus desejos, a História então é apenas uma seqüência de acasos incoerentes. Se, entre os milhões de homens, um só, num período de mil anos, tivesse tido a possibilidade de agir livremente, isto é, de acordo com sua vontade, é evidente que um único ato livre desse homem, contrário às leis, destruiria a possibilidade da existência de qualquer lei para toda a Humanidade. E se houver uma só lei dirigindo as ações humanas, já não pode haver livre-arbítrio, pois a vontade dos homens deve ficar submetida a ela. Nesta contradição reside o problema do livrearbítrio que, desde os tempos mais recuados, ocupou milhares de cérebros humanos e, desde os tempos mais recuados, surgiu em toda a sua enorme importância. (TOLSTÓI, 1983, pp. 605-6). Como fora dito anteriormente no presente trabalho, para o escritor russo o problema reside no fato de que, se tomarmos o homem como objeto de observação teológico, histórico, ético ou filosófico, encontraremos a lei geral da necessidade à qual ele está submetido. Entretanto, se o olharmos através de nossa própria experiência, como algo de que nós próprios temos consciência, nos sentiremos mais livres. Isto se deve ao fato de que para Tolstói, a consciência de liberdade constitui uma fonte de conhecimento distinta e autônoma em relação à razão: 1 Sobre este assunto, ver GARDINER, P. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966. 133 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Esta consciência é uma fonte de conhecimento de si mesmo, inteiramente distinta e independente da razão. Graças à razão, o homem observa a si mesmo; mas ele só se conhece através da consciência. Sem a consciência de si mesmo não são possíveis nenhuma observação e nenhuma aplicação do raciocínio. Para compreender, observar, concluir, o homem deve primeiro ter consciência de si mesmo, como um ser vivo. O homem só se concebe vivo, quando quer, isto é, tendo consciência de sua vontade. Ora, essa vontade, que constitui a essência de sua vida, ele só a concebe e só pode concebê-la, quando livre. [...] Se a consciência da liberdade não fosse uma fonte de conhecimento de si mesmo, distinta e independente da razão, ela estaria subordinada ao raciocínio e à experiência; mas, na realidade, tal subordinação nunca existe e é inconcebível. [...] Essa consciência de liberdade, inatacável, irrefutável, reconhecida por todos os pensadores e experimentada por todos os homens, sem exceção, essa consciência sem a qual é impossível qualquer noção de Humanidade, é que constitui a outra face do problema. O homem, em ligação com a vida geral da humanidade, aparece submetido às leis que regem essa vida. Mas o mesmo homem, independente desse elo, aparece livre. Como deve ser considerada a vida passada dos povos e da Humanidade. Como produto da atividade livre ou dirigida dos homens? Eis o problema da História. (TOLSTÓI, 1983, pp. 6067). De acordo com o escritor de Iasnaia Poliana, a resolução da questão da liberdade e da necessidade encontraria na História 1 – em relação aos outros espaços do saber que tentam solucioná-la – a vantagem de que essa questão seria concernente não apenas à essência da vontade humana, mas à representação da manifestação dessa vontade no passado e sob distintas condições. A História, no que se refere à solução deste problema, encontra-se em relação às outras ciências, na mesma situação de uma ciência experimental em relação às ciências especulativas. A História tem por objetivo não a própria vontade do homem, mas a representação que temos desta vontade. Eis porque não existem para a História, como para a Teologia, a Ética e a Filosofia, mistérios insondáveis na fusão da liberdade e da necessidade. A História estuda a representação da vida do homem, onde já se processou a fusão desses dois termos contrários. Na vida real, cada acontecimento histórico, cada ação humana, são compreendidos com muita clareza e nitidez, sem que surja a menor contradição, embora cada acontecimento apareça em parte livre, em parte necessário. (TOLSTÓI, 1983, p. 609). Compreender em que medida se articula a fusão entre liberdade e necessidade na experiência humana é, para Tolstói, o maior desafio que o historiador pode ter diante de si haja vista que em todas as instâncias da vida humana sobre a qual lançarmos nossos olhos encontraremos, sem exceção, essas duas categorias interagindo: “Seja qual for o ângulo por que examinamos a atividade de numerosos homens ou de um único, não podemos concebê-la senão 1 Optamos por grafar a palavra “História” com inicial maiúscula, tal como se encontra originalmente nos escritos de Tolstói, querendo com isso nos referir à ciência histórica, isto é, à disciplina acadêmica. 134 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 como o produto, em parte da liberdade humana, em parte das leis da necessidade.” (TOLSTÓI, 1983, p. 609). Como havíamos visto na primeira parte do presente trabalho, Tolstói considera que em todos os atos humanos nunca é possível encontrar apenas uma dessas categorias agindo, mas a relação inversamente proporcional de cada uma com a outra, ou seja, a proporção de cada uma aumenta ou diminui conforme o modo sob o qual o ato humano é considerado. O escritor russo considera que em todos os casos sem exceção, em que a nossa representação da liberdade e da necessidade humanas aumenta ou diminui, três fatores fundamentais concorrem para isso. O primeiro deles é a relação do indivíduo, autor do ato, com o mundo exterior, que é o conceito mais ou menos claro do lugar definido que cada indivíduo ocupa com relação a tudo quanto com ele simultaneamente existe. Partindo desse ponto de vista, é evidente que o homem que se afoga é menos livre e mais submetido à necessidade que o que se encontra em terra firme; partindo desse ponto de vista é que os atos de um homem ligado estreitamente a outros homens de uma região de população densa, e os atos de um homem ligado à sua família, a seu trabalho e a empreendimentos, parecem incontestavelmente menos livres e mais submetidos à necessidade do que os de um homem só e isolado. Se considerarmos o homem só, fora de suas relações com tudo que o cerca, cada um de seus atos nos parecerá livre; mas, se observarmos suas relações com seu círculo, se observarmos o elo que o prende a quem quer que seja, a alguém que lhe fala, ao livro que lê, ao trabalho que o ocupa, mesmo ao ar que o envolve ou à luz que cai sobre os objetos em seu redor, veremos que cada uma dessas condições exerce uma influência sobre ele e comanda pelo menos um dos aspectos de sua atividade. E quanto mais influência observarmos, mais diminui a idéia que tínhamos de sua liberdade e mais aumenta da necessidade à que ele está sujeito. (TOLSTÓI, 1983, pp. 610-11). O segundo fator é a relação do indivíduo com o tempo, ou seja, a idéia mais ou menos clara do lugar que a ação humana ocupa no tempo. Partindo desse ponto de vista, a queda do primeiro homem, que teve como conseqüência o nascimento da espécie humana, parece menos livre que o casamento de hoje. Partindo desse ponto de vista, a vida e a atividade dos homens que viveram há séculos e estão ligados a mim no tempo não me podem parecer tão livres quanto a vida contemporânea, cujas conseqüências ainda me são desconhecidas. A parte mais ou menos grande de liberdade e de necessidade, sob esse ponto de vista, depende do maior ou menor lapso de tempo decorrido entre a realização do ato e o julgamento feito sobre ele. [...] Quanto mais longe eu me transportar para trás, pelo pensamento, ou, o que vem a dar no mesmo, para a frente, pelo julgamento, mais duvidosa será minha apreciação da liberdade de meu ato. (TOLSTÓI, 1983, p. 611). 135 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 O terceiro fator é a relação do indivíduo com as causas que ao ato deram origem, isto é, a nossa maior ou menor possibilidade de apreender a série interminável de causas que constitui exigência inevitável da razão, na qual cada fenômeno inteligível e, por isso, todo o ato humano deve ter seu lugar definido, como efeito de atos precedentes e causa de ulteriores. A propósito desse fator, acompanhemos o que nos diz Tolstói: Segundo esse ponto de vista, nossos atos e os dos outros nos parecem, de um lado, tanto mais livres e menos sujeitos à necessidade quanto mais conhecermos as leis fisiológicas, psicológicas e históricas deduzidas da observação às quais o homem está sujeito e quanto mais seguramente tivermos penetrado a causa fisiológica, psicológica ou histórica de um ato; por outro lado, quanto mais simples for o ato observado, menos complexos serão o caráter e o espírito do homem cujo ato estudamos. Quando não compreendemos em absoluto a causa de um ato, seja ele um crime, uma boa ação ou mesmo um ato indiferente ao bem e ao mal, reconhecemos nele uma grande parte de liberdade. [...] Se um homem, cujos atos examinamos, se encontrar no mais baixo grau de desenvolvimento da inteligência, como uma criança, um louco, um simples de espírito, então, conhecendo as causas de seus atos e a pouca complexidade de seu caráter e de seu espírito, veremos desta vez uma grande parte de necessidade e uma reduzida parte de liberdade, e se conhecermos a causa que deve produzir o efeito, poderemos predizer o ato. (TOLSTÓI, 1983, p. 612). Destarte, consoante Tolstói, a nossa idéia de liberdade e/ou de necessidade aumenta ou diminui paulatinamente, segundo o maior ou menor elo existente entre a manifestação da vida de um homem o mundo exterior, o maior ou menor distanciamento temporal e a maior ou menor dependência das causas entre as quais examinamos esta manifestação. Nas palavras do escritor russo, representar um ato humano submetido tãosomente à lei da necessidade, destituído do menor resíduo de liberdade é tão impossível quanto representá-lo inteiramente livre. Portanto, para imaginarmos um ato humano submetido apenas à lei da necessidade, sem livre-arbítrio, devemos obrigatoriamente admitir que conhecemos o número infinito das condições no espaço, o período de tempo infinito e a seqüência infinda das causas. Se fôssemos imaginar o homem inteiramente livre, não sujeito à lei da necessidade, devemos então imaginá-lo só, fora do espaço, fora do tempo, e fora da dependência das causas1. 1 Para maiores esclarecimentos, consultar TOLSTÓI, L. Guerra e Paz. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983. 136 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 No primeiro caso, se a necessidade fosse possível sem a liberdade, chegaríamos à definição da lei da necessidade pela própria necessidade, isto é, a uma forma sem conteúdo. No segundo caso, se a liberdade fosse possível sem a necessidade, chegaríamos a uma liberdade incondicionada, fora do espaço, do tempo e das causas que, pelo próprio fato de não ser condicionada nem limitada por coisa alguma, nada seria, ou apenas um conteúdo sem forma. De um modo geral, chegaríamos a estes dois princípios que formam toda a concepção humana do mundo: a essência desconhecida da vida e as leis que definem esta essência. [...] A razão exprime as leis da necessidade. A consciência exprime a essência da liberdade. [...] Somente reunindo-as é que se chega a uma representação da vida do homem. (TOLSTÓI, 1983, pp. 615-16). De acordo com Tolstói, na História chamamos o que nos é conhecido de “leis da necessidade”, e ao que nos é desconhecido de liberdade. A liberdade seria, para a História, a expressão do resíduo desconhecido do que sabemos das leis da vida humana. Ainda segundo Tolstói, a História estuda as manifestações da liberdade humana em relação ao mundo exterior , no tempo e na dependência das causas, ou seja, ela define esta liberdade segundo as leis da razão. Deste modo, a História só seria ciência na medida em que essa liberdade for definida por essas leis. Para a História, as vontades humanas se movimentam sobre certas linhas, das quais uma das extremidades se perde no desconhecido, enquanto a outra se move no espaço, no tempo e na dependência das causas; a consciência da liberdade dos homens aí se move no presente. Quanto mais o campo deste movimento se amplia aos nossos olhos, mais evidentes se tornam as leis deste movimento. Descobrir e definir estas leis é o papel da História. [...] Só limitando esta liberdade ao infinito, isto é, considerando-a como uma quantidade infinitesimal, é que nos convenceremos da impossibilidade absoluta de penetrar as causas, e só então, em lugar de pesquisar as causas, a História terá como missão a pesquisa de leis. [...] Chegando ao infinitamente pequeno, a Matemática, a mais exata das ciências, abandona o método de fracionamento e adota o novo método da totalização das incógnitas infinitamente pequenas. Renunciando às noções de causa, os matemáticos procuram uma lei, isto é, propriedades comuns a todos os elementos desconhecidos e infinitamente pequenos. [...] A História usa o mesmo processo. Se seu objetivo é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve, afastando a noção das causas, pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si. (TOLSTÓI, 1983, pp. 617-18). A “teoria da integração dos infinitesimais” é, portanto, um esforço interpretativo no qual as categorias liberdade e necessidade devem ser consideradas como compondo um todo que é a experiência humana no tempo. A interação entre essas categorias é de tal modo complexo que só poderíamos daí extrair uma intelecção efetivamente positiva se considerarmos essa interação como um processo em que os elementos – livrearbítrio e contingência – relacionam-se em níveis infinitamente pequenos, isto é, relacionam-se em instâncias sutis da existência humana. 137 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 É chegado, porém, o momento de dedicar algumas páginas de nossa reflexão à noção de “leis” presente nas reflexões tolstoinianas acerca da História. A noção tolstoiniana da categoria “leis” Como havíamos visto anteriormente, uma análise pormenorizada da acepção empregada por Tolstói para se referir à categoria “leis” é de fundamental importância para a compreensão de sua filosofia da história. É preciso fazer notar, entretanto, que em Guerra e Paz, bem como especificamente no posfácio da obra – em que o escritor russo consagra mais de trinta páginas para refletir sobre a ciência histórica – não encontraremos particularmente nenhuma passagem na qual Tolstói defina precisamente o que entende pela categoria “leis”, isto é, em nenhum momento o escritor nos apresenta um conceito sólido e lapidado da referida categoria. Não obstante esta aparente indefinição, procuraremos em nosso esforço interpretativo fornecer valiosos subsídios para apresentar um caminho de interpretação diferente do que foi majoritariamente percorrido por críticos literários e historiadores no que diz respeito ao tratamento recebido pela filosofia da história de Tolstói ao longo da história das idéias. Não se trata evidentemente de pretender apresentar um conhecimento definitivo sobre o tema, e sim de tentar fornecer uma interpretação distinta, ensejada pela própria riqueza hermenêutica que o tema encerra. Com efeito, como vimos anteriormente no presente trabalho, a filosofia da história de Tolstói fora geralmente tratada como uma legítima aberração, uma disposição infeliz e impertinente de um genial escritor para diletantismos filosóficos. Estas análises apontavam invariavelmente para um suposto “fatalismo histórico” presente nas reflexões do escritor russo. Pertencem ao historiador russo Kareiev, e ao filósofo e ensaísta canadense Isaiah Berlin, as análises mais lúcidas e ponderadas sobre a filosofia da história de Tolstói. Todavia, como veremos, ambos sustentam a tese segundo a qual haveria nas reflexões do escritor russo uma espécie de “determinismo” proveniente da categoria “leis” interpretada por eles – Kareiev e Isaiah Berlin – com o significado de padrões cartesianos universais ou regularidades inexoráveis e imutáveis de comportamento às 138 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 quais a humanidade estaria inescapavelmente submetida. Contudo, esta interpretação dá sinais de claro desgaste se a confrontarmos com algumas pistas que nos foram deixadas por Tolstói. Vejamos. O primeiro argumento que oporemos modestamente às colocações desses dois eminentes intérpretes do escritor russo é a constatação prosaica, demasiado simples, aliás, do contra-senso que constitui a aceitação da categoria “leis” como sendo sinônimo de padrões universais e/ou regularidades inexoráveis do processo histórico no interior da filosofia tolstoiniana da história. Essa constatação se deve à razão muito justa de que foi exatamente contra este tipo de explicação histórica que o escritor russo lançou suas objeções por meio do adendo da obra Guerra e Paz. Como vimos, Tolstói refutava tanto as histórias nacionais, promovidas pelas capacidades pretensamente extraordinárias de figuras proeminentes, como príncipes, reis, ministros ou “heróis” como as chamadas “histórias da intelectualidade”, isto é, as explicações segundo as quais o movimento histórico seria promovido pela divulgação ou propagação de idéias. A mesma oposição o escritor fazia às histórias totalizantes, que procuravam explicar o movimento histórico através da postulação de leis que traduzissem as regularidades do processo histórico e de toda a realidade, ou seja, as teorias escatológicas dos sistemas sociais. A História moderna substituiu os homens dotados de um poder divino e guiados diretamente pela vontade de Deus, por heróis dotados de qualidades excepcionais, sobre-humanas, ou simplesmente por homens das mais diversas qualidades, desde monarcas até os jornalistas que arrastam multidões. Às antigas finalidades, agradáveis à divindade, que eram impostas a certos povos como os hebreus, os gregos e os romanos, e que os antigos imaginavam ser o objetivo dos movimentos da Humanidade, a História moderna acrescentou suas próprias finalidades: o bem do povo francês, alemão, inglês e, no mais alto grau de abstração, a civilização de toda a Humanidade, que geralmente significa os povos que ocupam o pequeno recanto noroeste do grande continente. A História moderna repudiou as antigas crenças sem substituí-las por novas, e a lógica obrigou os historiadores que pretendiam ter rejeitado o poder divino dos reis e o “fatum” dos antigos, a voltarem, por outro caminho, ao mesmo ponto. Foram obrigados a reconhecer que: 1º os povos são dirigidos por indivíduos; 2º existe uma finalidade determinada para a qual se encaminham os povos e a Humanidade. Todas as obras dos mais modernos historiadores, desde Gibbon até Buckle, apesar de sua aparente divergência e da aparente novidade de suas concepções, baseiam-se em dois postulados definitivos. Em primeiro lugar, o historiador descreve a atividade de determinados indivíduos, que, em sua opinião, conduzem a Humanidade. Um só considera como tais os monarcas, os grandes generais, os ministros. Outro, além dos monarcas, inclui os oradores, sábios, reformadores, filósofos e poetas. Em segundo 139 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 lugar, é conhecido do historiador o objetivo para o qual a Humanidade é dirigida. Para um, para leste, é a grandeza do Estado romano, espanhol, francês. Para outro, a liberdade, igualdade, a civilização de certa espécie, de um pequenino recanto do universo, chamado Europa. (TOLSTÓI, 1983, pp. 585-86, [grifo do autor]). Tolstói compreendia as conseqüências antitéticas e extremamente problemáticas de se considerar a categoria “leis” como regularidades imutáveis e passíveis de repetição através do empirismo. Aplicar o padrão newtoniano de explicação da realidade à História seria prestar um enorme desserviço para com a sua própria filosofia da História; em uma passagem sobre as considerações de Kareiev acerca da filosofia da história de Tolstói, Isaiah Berlin nos diz o seguinte: Negar que possamos descobrir muitas coisas através da observação social, da inferência histórica e meios semelhantes equivaleria, para Kareiev, a negar que dispúnhamos de critérios mais ou menos confiáveis para distinguir entre a verdade e a falsidade histórica. Isso, com toda certeza, não passava de mero preconceito e obscurantismo fanático. Kareiev declara que são inquestionavelmente os homens que fazem as formas sociais, mas essas formas – os modos como os homens vivem – por sua vez afetam os que nelas nasceram; as vontades individuais talvez não sejam onipotentes, mas tampouco são totalmente impotentes e algumas se mostram mais eficazes do que outras. [...] O conceito de Tolstói sobre leis inexoráveis que funcionam por si sós, a despeito de tudo o que os homens possam pensar ou desejar é, em si, um mito opressivo; as leis são apenas probabilidades estatísticas, pelo menos nas ciências sociais, e não “forças” abomináveis e inexoráveis – um conceito cuja obscuridade, segundo Kareiev assinala, o próprio Tolstói, em outros contextos, desmascarou com grande brilho e malícia, quando seu adversário lhe parecia excessivamente ingênuo ou esperto, ou sob o domínio de alguma metafísica grotesca. Afirmar porém que, a menos que os homens façam a história, eles não passam, sobretudo os “grandes” homens, de meros “rótulos” porque a história se faz a si mesma, e apenas a vida inconsciente da colméia social , o formigueiro humano, possui significado ou valor e “realidade” autênticos – o que significa isso, a não ser um ceticismo ético, inteiramente dogmático e a-histórico? Por que deveríamos aceitá-lo, quando a evidência empírica aponta em outra direção?(BERLIN, 1988, p. 64, [grifo nosso]). É interessante notar que o próprio Kareiev, segundo nos mostra Isaiah Berlin, fornece outro importante subsídio para nossa argumentação. Através do trecho grifado da passagem supracitada, notamos claramente o fato de que Tolstói não ignorava os efeitos paradoxais de se considerar a noção de “leis” como sendo regularidades imutáveis ou forças inexoráveis. O segundo argumento de oposição às interpretações majoritárias sobre a filosofia da história de Tolstói encontra respaldo em passagens em que o próprio escritor russo indica uma acepção restrita do termo “leis”. De fato, se analisarmos 140 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 detidamente os trechos nos quais Tolstói emprega a palavra “leis”, verificaremos que sempre o termo se refere às leis da necessidade, isto é, às adversidades com as quais todos os homens em todos os tempos se depararam. Vejamos: “Seja qual for o ângulo porque examinamos a atividade de numerosos homens ou de um único, não podemos concebê-la senão como o produto, em parte da liberdade humana, em parte das leis da necessidade.” (TOLSTÓI, 1983, p. 609, [grifo nosso]). Em outra passagem, refletindo a respeito do modo como a nossa noção de liberdade e/ou necessidade aumenta ou diminui conforme a maneira como examinamos o ato humano, o escritor de Iasnaia Poliana nos diz o seguinte: A relação entre a liberdade e a necessidade diminui ou aumenta segundo o ponto de vista em que nos colocamos para examinar o ato; contudo, esta relação conserva-se sempre inversamente proporcional. O homem que se está afogando e que se agarra a outro e o arrasta consigo, ou a mãe faminta, esgotada pelo aleitamento do filho, que rouba comida, ou o homem habituado à disciplina que, por uma ordem, mata um homem indefeso, parecem menos culpados, isto é, menos livres e mais submetidos à lei da necessidade, aos olhos do que conhecia as condições em que eles se achavam, e mais livres, para quem não sabia que aquele homem se afogava, que a mulher tinha fome e que o soldado recebera uma ordem. (TOLSTÓI, 1983, p. 609, [grifo nosso]). Na seqüência temos outro exemplo do modo pontual com que Tolstói lança mão da categoria “leis” para falar da complexa interação entre liberdade e necessidade. Mas, mesmo se imaginarmos um homem inteiramente subtraído a todas as influências, considerando somente seu ato instantâneo no presente e supondo que nenhuma causa o tenha provocado, admitimos um resto infinitesimal de necessidade igual a zero, e nem assim chegaremos à noção de liberdade absoluta do homem. Pois um ser, impermeável a influências do mundo exterior, encontrando-se fora do tempo e sendo independente de causas, já não é mais um homem. Exatamente da mesma forma, nunca podemos imaginar um ato humano que se realize sem a intervenção da liberdade e que só esteja sujeito à lei da necessidade. [...] Por essa razão é que representar-se um ato humano submetido unicamente à lei da necessidade, sem o menor resíduo de liberdade é tão impossível quanto representá-lo inteiramente livre. Assim, para imaginarmos um ato humano submetido unicamente à lei da necessidade, sem liberdade, devemos admitir que conhecemos o número infinito e a seqüência infinita das causas. Para imaginarmos o homem absolutamente livre, não sujeito à lei da necessidade, devemos imaginá-lo só, fora do espaço, fora do tempo e fora da dependência das causas. (TOLSTÓI, 1983, pp. 614-15, [grifo parcialmente nosso]) Os leitores mais atentos chamarão a atenção para o fato de que anteriormente citamos neste trabalho o fato de Tolstói propor para a História o mesmo procedimento da Matemática, em que a busca de causas seria substituída 141 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 pela pesquisa de “leis”. A despeito da coerência desta observação, fazemos notar que o escritor russo se refere a um procedimento metodológico, e não epistemológico. Dito em outras palavras, Tolstói vislumbrou para a História uma maneira de proceder que apesar de tomar de empréstimo o procedimento da Matemática, não partilhava com esta o padrão newtoniano indutivo/dedutivo de explicação da realidade. A História usa o mesmo processo. Se seu objetivo é o estudo do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de alguns homens, ela deve, afastando a noção de causas, pesquisar as leis comuns a todos os elementos de liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre si. (TOLSTÓI, 1983, p. 618, [grifo nosso]). Observe-se que as “leis” às quais se refere Tolstói devem ser interpretadas como sendo adversidades presentes na existência. Precisamente aqui chegamos ao centro nevrálgico de nossa audaciosa oposição argumentativa às interpretações recorrentes a propósito da filosofia da história de Tolstói. Estas invariavelmente encaram as reflexões tolstoinianas como recheadas de um suposto “fatalismo histórico”. Este tipo de análise decorre, como já vimos, de uma interpretação que pensamos ser equivocada da categoria “leis”. O fato de Tolstói não ter se preocupado em conceituá-la concorre, a bem da verdade, para alimentar a controvérsia. O caminho que percorremos procurou fornecer uma interpretação do termo “leis” como sendo a contingência, isto é, aquilo que pode ou não acontecer, o incerto, o inesperado que embora tome formas diferentes sob distintas épocas, sempre será algo com que se deparará o gênero humano. O caráter contingencial da vida humana: eis algo que invariavelmente acompanhará a experiência humana no tempo. Sob esse entendimento, podemos pensar em falar de imutabilidade ou inexorabilidade, pois a liberdade humana sempre se verá diante dos desafios da dor, do sofrimento, do júbilo, da alegria, da serenidade, do esquecimento e da memória. Somente interpretando o termo “leis” como contingência é que podemos compreender a teoria da integração dos infinitesimais em toda sua inteireza, sem lhe imputar contornos “metafísicos” ou deterministas que não resistem a uma análise mais aprofundada e cuidadosa. 142 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS TOLSTÓI, L. Guerra e Paz. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1983. 2 v. BERLIN, I. Pensadores Russos. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 318 p. GARDINER, P. Teorias da História. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1966. WEHLING, A. A invenção da História: Estudos sobre o Historicismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Gama Filho, 2001. 228 p. FRIEDLANDER, Saul (Org.). Probing the Limits of Representation: Nazism and the “Final Solution”. Cambridge; London: Harvard University, 1992. GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 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Goiânia, Mestrado em História da UFG, v. 7, n. 1\2, 2002. 143 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 144 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 145 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 146 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 147 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 148 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 149 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 150 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 151 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 152 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 153 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 154 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 155 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 156 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 157 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 158 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 159 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 160 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 161 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 162 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 163 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 164 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 165 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 166 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 167 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 – ARTIGO RETIRADO – 168 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A Utilização da História no Decorrer da Conquista da América Prof. Dr. Adailson José Rui Universidade Federal de Alfenas, UNIFAL-MG. E-mail: [email protected] RESUMO Fazendo uso de obras escritas durante o século XVI e princípios do XVII que tratam da Conquista da América, apresentamos a forma como a História foi utilizada pelos historiadores da Conquista. Discute-se o uso da política na história como forma de legitimar ou contestar as realizações daqueles que participaram do processo da Conquista. Palavras Chave: Conquista da América, Historiografia, Memória, ABSTRACT Making use of scrip works during the sixteenth century and early seventeenth centuries dealing with the Conquest of America, we present how the history has benn used by historians of the Conquest. It discusses the political use of history as a way to legitimize or challenge the achievements of those who took part in the Conquest. Keywords: Conquest of America, Historiography, Memory Introdução: [....] a todo gênero de escritura, é e foi sempre preferida a História, porque é testemunho dos tempos, luz da verdade, vida da memória, mestra dos costumes e mensageira fiel de toda a antiguidade. Pelo qual são os historiadores dignos de ser estimados, pois dão perpétua memória e fama a pessoas valiosas e a seus heróicos feitos (FERNANDEZ,1963, p. CXX A tradução é de nossa autoria)1 [...] a todo género de escritura, es y fué siempre preferida la Historia, porque es testigo de los tiempos, luz de la verdad vida de la memoria, maestra de las costumbres y mensajera fiel de toda la 1 169 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 O fragmento em epígrafe faz parte da dedicatória da obra História del Peru, preparada por Diego Fernandez e dedicada ao rei da Espanha, Felipe II (15561598). Nele temos uma primeira ideia do valor atribuído ao longo do século XVI, à História. Ela traz a verdade, mantém a memória viva e ensina. Esses aspectos indicam a manutenção do conceito clássico de História cunhado por Heródoto: História magistra vitae (mestra da vida). Diego Fernandez, ao valorizar o historiador pelo trabalho que desempenha aponta para o uso político da História, como prática que se manifesta em diferentes formas. Neste artigo apresentamos algumas delas. 1- Funções da história Dando continuidade à perspectiva desenvolvida na Antiguidade e na Idade Média de se fazer uso da História como instrumento que permitia a construção da memória histórica de forma a sustentar os interesses do presente, na América do século XVI, a História foi utilizada como instrumento manipulado que possibilitava perpetuar a memória dos grandes feitos; como mecanismo que permitia mostrar e divulgar as heróicas realizações de algumas personalidades ou dos grupos aos quais elas pertenciam com a finalidade de se obterem benefícios e recompensas por eles; como maneira de denunciar irregularidades como forma de se alcançar reparações; como meio de harmonizar ou pelo menos tentar harmonizar os valores culturais de grupos específicos (conquistadores, mestiços e nativos) e, como instrumento que propiciava o conhecimento ao qual se poderia desenvolver ações transformadoras. A existência das diferenças e dos interesses particulares, bem como das consequentes explicações direcionadas, presentes nas obras produzidas na América ou sobre ela no decorrer do século XVI, contribuíram para o desenvolvimento da História enquanto gênero, dando continuidade à nova perspectiva historiográfica colocada em prática, na Península Ibérica, a partir do século XII e acentuada no século XIII por Alfonso X, o Sábio (1252-1284), quando o antiguedad. Por lo cual, son los historiadores dignos de ser estimados, pues dan perpetua memoria y fama a personas valerosas y a sus heroicos hechos ( FERNANDEZ, D. 1963, p. CXX). 170 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 uso político da história ganhou espaço na Península Ibérica. Neste século o aspecto político, presente no tradicional conceito - magistra vitae - passou a ser mais utilizado como instrumento que permitia justificar e legitimar as ações. Os trabalhos, produzidos sob a orientação do rei Sábio, foram os primeiros que alteraram a forma tradicional de se escrever a história. A história, além de narrar fatos/acontecimentos, passou a oferecer interpretações e explicações para os fatos/acontecimentos narrados. O espírito crítico passou a fazer parte do ato de escrever a história1. Diferenciava-se, assim, da prática comum no período anterior que, segundo Krzystof Pomiam (1975, p. 940-941), caracterizava-se pelo fato de o historiador limitar-se ao registro do presente, daquilo que podia conhecer diretamente. Segundo o mesmo autor, o conhecimento era entendido como apreensão imediata de um dado. Conhecer significava ver com os próprios olhos, tocar com as próprias mãos e ouvir com os próprios ouvidos. Isso justificava o registro do presente; o passado era transmitido sem ser questionado e apoiava-se no critério de autoridade reconhecida de quem fazia a transcrição, por isso o historiador copiava fielmente as suas fontes. A partir da Baixa Idade Média, os historiadores desenvolveram uma nova forma de escrever a história, por meio da qual confrontavam as fontes e procuravam oferecer explicações para os acontecimentos relatados. Essa perspectiva foi amplamente desenvolvida durante o Renascimento, quando, além de apresentarem o heroísmo de um ancestral, abolindo nessa apresentação a importância da coletividade, passaram a enfatizar a fama do indivíduo que nesta época se destacava, também, pelo saber e pela capacidade racional de conduzir as ações, reduzindo o papel da providência divina, anteriormente colocada como motor da história. Nessa direção, os autores que escreveram sobre a Conquista da América, particularmente os leigos, tinham como meta relatar o "presente", explicando aquilo que estava ocorrendo. É ilustrativo a esse respeito o comentário feito pelo escrivão real Agustin de Zarate ao dedicar ao rei Felipe II(1556-1598) a Sobre essa temática, veja: RUI, A. J. A elaboração da História na Idade Média: o exemplo de Alfonso X, o Sábio In BONI, L. A. de (org.) A Ciência e a Orgnização dos Saberes na Idade Média.Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 211-217 ( Coleção Filosofia, 112) . 1 171 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Perú, y de las guerras y cosas señaladas en ella1. Nas palavras do autor: “Chegando ao Peru vi tantas revoltas e novidades naquela terra, que me pareceu coisa digna de registrar, logo depois de ter escrito sobre o meu tempo, percebi que não se podia entender bem, senão fosse apresentado alguns antecedentes referentes a origem (dos acontecimentos do presente); e assim de grau em grau fui recuando até encontrar-me no descobrimento da terra; porque vão os negócios tão dependentes uns dos outros, que por qualquer que falte não tem os que seguem a claridade necessária; o qual me compeliu a começar (como dizem) do ovo troiano. (ZARATE,1947 p.459 – A tradução é de nossa autoria)2 Os autores, que escreveram sobre a Conquista no decorrer do século XVI, narravam a história da qual direta ou indiretamente haviam participado, porém sempre enaltecendo as suas próprias realizações ou as daqueles que os mandaram escrever. Agustin de Zarate, por exemplo, demonstra-se sempre fiel à Coroa e aos interesses dela no Peru. Essa perspectiva assumida pelos “historiadores” do século XVI e princípios do XVII que escreveram sobre a América conduziu ao desenvolvimento de uma nova concepção de “verdade” que consistia em ter e dar provas convincentes que pudessem explicar, justificar e legitimar os seus interesses. As “provas” podiam ser tanto a participação direta, como testemunhos deles nos episódios descritos, como as informações conseguidas em documentos ou ainda, o recurso a outros autores que consideravam fidedignos; a história não deveria limitar-se ao fato, mas sim deveria explicá-lo. É nesta perspectiva que encontramos os autores das crônicas e histórias da Conquista, independentemente da categoria social a que pertenciam. 1.1- Os primeiros testemunhos da Conquista Agustin de Zarate chegou à América na companhia do vice-rei Blasco Nuñez Vela em 1544, no decorrer da guerra travada entre os herdeiros de Francisco Pizarro e a Coroa. 2 “Llegados Allá [Peru] vi tantas revoltas y novedades en aquella tierra, que me pareció cosa digna de ponerse por memória, aunque, después de escrito lo de mi tiempo, conoscí que no se podia bien entender si no se declaraban algunos presupuestos, de donde aquello toma su orígen; y así, de grado en grado fui subiendo hasta hallarme en el descobrimento de la tierra; porque van los negócios tan dependentes unos de otros, que por cualquiera que falte no tienen los que siguen la claridade necessária; lo cual me compelió á comenzar (como dicen) del huevo trojano[ZARATE, 1947, p. 459]. 1 172 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 No decorrer do século XVI, a Conquista avançava e as narrativas sobre ela começaram a aparecer impulsionando a conquista na medida em que divulgavam tanto as dificuldades superadas e a forma de os conquistadores tornarem-se “heróis”, assim como as fabulosas riquezas que ofereciam as novas terras. Entre as narrativas que se tornaram fontes para a elaboração das primeiras Histórias, encontram-se as Cartas de Relación elaboradas pelos primeiros conquistadores, como: Hernán Cortés, Pedro de Albarado, Diego Godoy e Pedro de Valdivia e os depoimentos orais daqueles que, de alguma forma, viveram a primeira fase do processo de conquista. 1.1.1- As Cartas de Relación Entre as primeiras Cartas de Relación, encontram-se as escritas por Hernán Cortés ao Imperador Carlos V (1500-1558) sobre a conquista do México. Nelas, o autor oferece-nos a possibilidade de percebermos a divergência cultural entre os nativos e os conquistadores. Cortés, um conquistador que havia estudado na Universidade de Salamanca antes de ir para a América, em 1504, foi membro da expedição comandada pelo capitão Diego Velázquez, cuja missão era conquistar Cuba. Realizada essa conquista, coube a Cortés organizar e levar adiante a expedição que iria conquistar a Península do Yucatan, recém-descoberta (MARTINELL GIFRE, 1992, p. 28). O desenvolvimento desta empresa foi por ele interpretado como uma nova cruzada, cujos objetivos eram engrandecer a Espanha mediante a conquista de novos territórios, a evangelização dos povos encontrados e a submissão desses ao Imperador Carlos V (Carlos I da Espanha) que havia recebido da Igreja a missão de evangelizar os povos recém-contatados. Esses objetivos de Cortés para a conquista devem-se ao seu posicionamento ético típico do Renascimento, que valoriza o indivíduo, centralizando sua defesa somente na própria razão, ao mesmo tempo em que mantém traços medievais que identificam a nova evangelização semelhante à cruzada. Porém, esse comportamento de Cortés deve-se à manutenção de três virtudes clássicas: a fidelidade a uma vocação, o compromisso com a lealdade e o sentimento de honra. 173 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Sobre essas virtudes, Cortés constrói uma ética de situação, própria para cada momento (ALONSO BAQUER, 1992, p.97). Inserido nessa perspectiva, Cortés via a Conquista do México como um compromisso de fidelidade que proporcionaria a expansão dos domínios da Espanha e da Cristandade. Compreendia a Conquista como um projeto que estava além dos propósitos comerciais, como os almejados pelo governador de Cuba, Diego Velázquez, denunciado por Cortés, na primeira Carta de Relación, como desleal e infiel a Carlos V1. Tal denúncia deu lugar aos primeiros conflitos de lealdade que marcariam a conquista do México (ALONSO BAQUER, 1992, p.98). Porém, se por um lado a ética renascentista proporcionou o surgimento deste tipo de conflito; por outro, foi um dos aspectos que constituíram a personalidade moral de Cortés, o qual tinha na fidelidade e na honra o seu alfa e ômega (ALONSO BAQUER, 1992, p. 97). A personalidade de Cortés revela a permanência de valores típicos da Idade Média manifestados, por exemplo, na fidelidade ao Imperador, na crença e na missão de expandir a fé católica, por meio da conquista do México, cujas etapas ficaram, também, registradas nas cinco Cartas de Relación enviadas a Carlos V. As informações contidas nas cartas de Cortés complementam-se com as enviadas por integrantes de tropas que, sob as suas ordens, realizaram expedições em outras partes do território da Confederação Asteca. Entre essas, destacamos as do capitão Pedro de Albarado que tratam, entre outros assuntos, dos trabalhos e dificuldades enfrentadas para pacificar as “províncias” de Chapotulan, Checialtenengo e Utlatan; e a do escrivão Diego Godoy, em que são narradas lutas e conflitos enfrentados contra os índios da “província” de Chamula e do Repartimiento de índios e também as cartas deixadas por Pedro de Valdivia, conquistador e posteriormente governador do Chile de 1545 a 1552. Sobre a conquista, foram escritas por ele onze cartas dirigidas a diferentes destinatários, entre os quais estão o Imperador, a Corte, o Conselho das Índias e Hernando Por exemplo, na primeira Carta de Relación, Cortés denuncia Diego Velazquez de ter forjado uma legislação real para obter o trabalho forçado dos indígenas na extração de ouro (CORTES,1946, p. 02). Bernal Diaz del Castillo vai além, afirmando que Diego Velazquez “comprou” os votos dos ouvidores do Conselho das Índias dando-lhes “pueblos de indios en la isla de Cuba, que les sacaban oro de las minas” e, em conseqüência, os ouvidores atendiam as solicitações de Diego Velazquez (DIAZ DEL CASTILLO,1947, p. 14). 1 174 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Pizarro, chefe militar da conquista do Peru (VALDIVIA, 1960, p. 1-74). Nessas cartas, relata os trabalhos realizados para conquistar e manter o domínio sobre o Vale do Mapoucho e terras circunvizinhas. O conteúdo dessas cartas foi utilizado por Alonso de Gongora Marmolejo e Pedro Mariño de Lobera, entre outros autores do século XVI, que escreveram sobre a conquista do território do Chile. 2- As primeiras histórias sobre a Conquista da América Entre as primeiras Histórias produzidas sobre a Conquista que tiveram como fonte os relatos diretos dos conquistadores, sejam escritos ou orais, encontra-se a Historia General de Índias e a Historia de la Conquista de Mexico, ambas de Francisco Lopes de Gomara; a Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustín de Zarate e a Historia del Peru de Diego Fernandez. Francisco Lopez de Gomara nasceu em Gomara em 1511, estudou na Universidade de Alcalá de Henares e, ordenado sacerdote, foi professor de retórica na mesma instituição. Durante o período de 1531 a 1541, esteve na Itália onde conviveu com os principais integrantes do movimento humanista. De lá, regressou com a expedição de Carlos V que combatia em Spezzia onde conheceu Hernán Cortés, passando a ser o capelão da sua família. Foi um dos primeiros a utilizar as Cartas de Relação como fontes para a elaboração da História da Conquista. Conheceu particularmente o conteúdo das elaboradas por Cortés e ouviu os depoimentos orais do próprio conquistador. Obteve informações de outros conquistadores como Pedro Mártir de Anglería, Gonzalo Fernández de Oviedo, Andrés de Tapia e frei Toribio de Motolinía. Partindo dessas informações, sem nunca ter estado na América, elaborou a sua versão da História da Conquista em duas partes. Na primeira, apresenta uma história geral da conquista e, na segunda, uma biografia (oficial) de Hernán Cortés1. O vínculo de Lopez de Gomara com A primeira publicação da obra de Francisco Lopes de Gomara ocorreu em 1552, em Zaragoza, sendo reimpressa em 1553, em Medina del Campo, e, em 1554, em Amberés, e novamente em Zaragoza. 1 175 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Cortés, associado à tendência de valorização do indivíduo presente no Renascimento, ajuda-nos a compreender as razões que levaram Gomara a exaltar Cortés apresentando-o como o único condutor da conquista, o líder eminente, cuja imagem é enfatizada mediante os exageros nas dimensões das dificuldades superadas pelos conquistadores, graças à atuação de Cortés. Em relação à conquista do império Inca, além da Historia General de Indias de Francisco Lopes de Gomara, encontramos também a presença direta daqueles que participaram da conquista e dos conflitos a ela internos na Historia del Peru de Diego Fernandez e na Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustin de Zarate. Sobre Diego Fernandez, sabemos que esteve no Peru no período da guerra civil, provocada pela implantação das Ordenanzas de 1542, de Carlos V, em função dos abusos dos encomenderos em relação aos índios, segundo as denúncias de Bartolomeu de las Casas, entre outros. Foi morador de Palencia (titulação que fazia questão de manter, ligada ao seu nome, para garantir os benefícios do Repartimiento de índios) nomeado escrivão pelo vice rei do Peru, Andrés Hurtado, historiador e cronista, conforme afirmado pelo próprio Diego Fernandez no início da segunda parte da sua obra: Depois veio como vice-rei do Peru don Andrés Hurtado de Mendoza, marques de Cañete, e entendendo o que fiz e aquilo em que me ocupei, nomeou-me como historiador e cronista daqueles reinos, mandando (pelo título que para isso me deu) que eu começasse a escrever a partir da ida do presidente Gasca do Peru para a Espanha, pressupondo o vice rei (segundo disse) que o descobrimento daquela terra e as paixões do marques don Francisco Pizarro e todo o mais que precedeu, já havia sido escrito por outros autores, divulgado e impresso (FERNANDEZ, 1963,p. 242-243 / a tradução é de nossa autoria)1 A Historia del Peru está dividida em duas partes. Na primeira, narra os acontecimentos que geraram a guerra civil: o confronto entre o governador Después vino por visorrey del Perú don Andrés Hurtado de Mendoza, marqués de Cañete, y entendiendo lo que yo habia servido y aquello en que me había ocupado, nombróme por historiador y cronista de aquellos reinos, mandando (por el titulo que para ello me dió) que yo comenzase a escribir desde que el presidente Gasca salió del Perú para España, presuponiendo el visorrey (según dijo) que el descubrimiento de aquella tierra y las pasiones del marqués don Francisco Pizarro y de don Diego de Almagro y la tirania de Gonzalo Pizarro y todo lo demás que habia precedido, estaba ya por otros autores escrito, divulgado e impresso (FERNANDEZ, 1963, p. 242-243). 1 176 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Gonzalo Pizarro, rebelado contra as novas leis, e o primeiro vice-rei do Peru, Blasco Nuñes Vela, encarregado de implementá-los. Na segunda, dá ênfase aos acontecimentos ocorridos após a derrota de Gonzalo Pizarro pelas forças do vicerei. No conjunto, trata-se de uma obra de caráter oficial cujo objetivo principal é o de exaltar os feitos do vice-rei. Agustin de Zarate chegou à América na companhia do vice- rei Blasco Nuñez Vela em 1544, no decorrer da guerra travada entre os herdeiros de Francisco Pizarro e a Coroa. Escreveu a Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Peru, y de las guerras y cosas señaladas en ella como resultado das investigações por ele realizadas para entender o que se passava. A História por ele escrita foi publicada pela primeira vez em Ambéres, em 1555. As obras de Diego Fernandez e as de Agustin de Zarate juntamente com as de Francisco Lopes de Gomara, foram utilizadas pelos contemporâneos como roteiro e parâmetro na elaboração de outras versões para a história da Conquista. No entanto, entre elas existe uma diferença: enquanto as obras de Diego Fernandes e Agustin de Zarate foram utilizadas como uma espécie de banco de dados que auxiliavam os autores a explicar e justificar os relatos que escreviam, a de Gomara foi utilizada como fonte de contestação e inspiradora de novas versões para a História da Conquista. Autores como Bernal Diaz del Castillo, Fernando Alva Ixotlichtil, Diego Muñoz Camargo e o Inca Garcilaso de la Vega contestaram a obra de Gomara, pois nela não viam a presença da verdade. Francisco Lopes de Gomara apresentava a Conquista como uma façanha exclusiva de Cortés, omitindo ou esquecendo capitães e nativos que participaram da empresa. Para os autores oriundos dessas categorias, a verdade precisava ser registrada. Já a utilização da obra de Diego Fernandez e de Agustin de Zarate não foi a mesma seguida pelos contestadores de Francisco Lopez de Gomara; as obras por eles redigidas serviram mais como “banco de dados” do que como objeto de contestação. Entre os autores que fizeram uso dela, encontra-se o Inca Garcilaso de la Vega, que se serviu delas para retirar as “informações que considerava como verídicas”, e contestar muitos episódios descritos por Gomara na Historia General de la Conquista de Indias, particularmente os que se referiam à conquista do Império Inca. 177 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Embora exista um intervalo de tempo entre o período de elaboração dessas obras e as produzidas a partir delas, é significativo destacar a forma como os autores abordavam aquilo que consideravam como verdade. No entanto, destacamos que cada autor manifestou a verdade de acordo com os valores que seguia. Por exemplo, enquanto para Gomara a verdade permanecia ancorada em características medievais a história conduzida por Deus e pela ação dos grandes homens; para os cronistas posteriores, a verdade estava relacionada com aquilo que podia ser provado. Seguindo essa perspectiva, procuravam registrar a importância e a “utilidade” para o Império não só dos líderes, mas de todos aqueles que foram excluídos dos relatos oficiais. Contudo, nenhuma delas é uma história total, mas sim novas versões da história nas quais, quem escrevia, procurava documentar as suas origens e a sua contribuição para o sucesso da Conquista, ampliando o número de protagonistas e a possibilidade, também, de participar das glórias e dos lucros angariados. 2.1- Versões e protagonistas das histórias da Conquista A prática dos primeiros autores das histórias sobre a conquista, de terem como meta perpetuar a memória daqueles que consideravam heróis, resultou em contestação por aqueles que participaram, de fato, da conquista da América. Ao exaltarem, pois, as ações heróicas de alguns, anulavam a participação de muitos outros que se consideravam também agentes fundamentais no processo de conquista. A observação dessa situação contribuiu para o surgimento de várias versões da história da conquista, elaboradas por aqueles que participaram diretamente das lutas e confrontos travados com os nativos. Por meio da História, aqueles que se viram ausentes ou esquecidos, nas narrativas, encontraram a forma de se fazerem presentes. Com isto, além de repararem a injustiça, passavam a ter um registro no qual atestavam o desempenho que tiveram no decorrer da conquista. Seguindo essa perspectiva, a História passou a ser utilizada como meio de fazer valer interesses específicos, entre esses, ressaltamos o desejo que os autores tinham de destacar sua própria contribuição ou da categoria a que pertenciam ou, ainda, do seu povo; idealizar os 178 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 povos que, mediante a integração racial e social, estavam formando a sociedade americana; de denunciar os maus tratos praticados nos nativos tanto pelos conquistadores leigos como pelos religiosos e conhecer a cultura dos nativos para transformá-la ou adaptá-la aos valores que integravam a cultura dos recémchegados. Esses interesses estão relacionados aos diferentes grupos sociais a que os autores pertenciam: religiosos, leigos, mestiços e nativos. Entre as obras elaboradas por religiosos, destacamos a Historia de la Conquista de México e a Historia General de la Conquista de Indias ambas de Francisco Lopez de Gomara. Consideramos também, como pertencentes a essas categorias, as obras Crónica del Reino do Chile de Pedro Mariño de Lobera e a Historia de Chile de Alonso Gongora Marmolejo. Pedro Mariño de Lobera e Alonso Gongora Marmolejo eram leigos, no entanto, as obras por eles produzidas foram refundidas por jesuítas, dando a elas características semelhantes às elaboradas por religiosos. Dentre as obras elaboradas por leigos encontram-se: Crónicas del Peru de Diego Fernandez; Historia Verdadeira de la Conquista de Nueva España de Bernal Diaz del Castillo; Historia del Descobrimento y Conquista de la Provincia del Peru y de las guerras y cosas señaladas en ella de Agustin de Zarate; Verdadera Relación de la Conquista del Peru y Provincia de Cuzco llamada la Nueva Castiela de Francisco de Jerez. Do rol das obras elaboradas por mestiços, estão: Comentarios Reales de los Incas do Inca Garcilaso de la Vega; Historia de Tlaxcala de Diego Muñoz Camargo. Entre as obras elaboradas por nativos, destacamos: Relación de la venida de los españoles y principio de ley evangélica de Fernando Alva Ixtlilxochitl, Historia General de las cosas de Nueva-España, organizada por Bernardino de Sahagún, e Nueva Coronica y Buen Gobierno de Felipe Guamam Poma de Ayala. A não percepção dessas categorias (religiosas, leigas, mestiças e nativas) levou Héctor José Tanzi (1987, p. 65-111) a afirmar que as obras produzidas na América ou sobre ela no decorrer do século XVI possuem um caráter uniforme, 179 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 centralizado na perspectiva dos conquistadores1. Não concordamos com esse posicionamento, pois, conforme mencionado, não podemos conceber a “perspectiva dos conquistadores” como sendo algo homogêneo. Os autores desse período pertencem a categorias sociais distintas, motivo que os levou a expressar, em seus textos, diferentes versões dos acontecimentos que fizeram parte da Conquista. Manifestam, portanto, visões de mundo diferenciadas2. Constituem essas "visões de mundo" características medievais, modernas (renascentistas) e as sincréticas, desenvolvidas a partir do encontro entre as culturas "ibéricas" e as nativas. Entre as medievais podemos citar a preocupação com a cronologia, a confiança na providência divina e a exaltação de um “herói”; entre as modernas (renascentistas), destacamos: o individualismo, a propaganda dos feitos e a busca da fama; entre as sincréticas, ressaltamos a valorização de aspectos da cultura local (nativa) e as novas interpretações dadas por eles a tais aspectos. No decorrer do século XVI e princípios do século XVII, o relato histórico constituiu-se num documento, não só no sentido de registro da memória, mas como documento de valor legal que dava garantia de privilégios a quem houvesse feito parte dos episódios registrados. 2.1.1-A história como instrumento de legitimidade Bernal Diaz del Castillo é um dos autores que optaram por escrever uma versão própria da história, como forma de registrar a sua participação efetiva na empresa da Conquista. Nasceu entre 1495 e 1496, em Medina del Campo, onde seu pai era “regidor”; chegou às Índias, em 1514, como integrante do grupo que acompanhava Pedrarias Dávila, sendo nomeado governador de Tierra Firme. Em Hector José Tanzi chega a tal conclusão tendo como referência obras gerais como: “Decadas De Orbe Novo” de Pedro Martis de Angleria, “La Historia General de los hechos de los castellanos en las islas y tierra firme del Mar Oceano” de Antonio de Tordesillas; “Historia General y natural de la Indias” de Gonzalo Fernandez de Oviedo e, “Historia Natural y Moral de las Indias” do Pe. José de Acosta. 1 Para o século XVI, temos que entender visão de mundo como o conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias pertencentes ao indivíduo, e não ao grupo. 2 180 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 1517 fez parte da expedição à costa do Yucatan comandada por Francisco Hernández de Córdoba; retornando a esse local com a expedição de Juan de Grijalba e, na seqüência, fez parte da expedição comandada por Cortés que resultaria na conquista de Tenochtitlán. A sua versão da conquista ficou registrada na obra Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva-España elaborada durante a sua velhice, quando já haviam passado muitos anos da sua participação nas expedições referidas1. Com o intuito de registrar as suas lembranças, iniciou uma Relación que, segundo o próprio depoimento, abandonou logo por verificar que não possuía boas qualidades de escritor se comparado à obra de Francisco López de Gomara. Nas palavras de Bernal Diaz: Estando escrevendo esta relação, por acaso vi uma história de bom estilo atribuída a Francisco Lopez de Gómara, que trata das conquistas do México e da Nova Espanha, e quando li sua grande retórica e como minha obra é tão grosseira, deixei de escrevê-la, e ainda tive vergonha que ela aparecesse entre pessoas notáveis. (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14 / A tradução é de nossa autoria)2 Mas, se Bernal Diaz sente a sua inferioridade como escritor, não resiste quando percebe as contradições entre o narrado anteriormente e aquilo que, segundo ele, realmente se passou: [...] e estando tão perplexo tornei a ler e a olhar as razões e os feitos que Gómara escreveu em seus livros, e vi que não era uma boa relação nem no princípio, nem no meio e nem no final, pois o relatado era muito contrário daquilo que foi e se passou na Nova-Espanha (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 15/ a tradução é de nossa autoria). 3 Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva-España foi publicada pela primeira vez em Madrid pela Imprensa Real em 1632. 2 Estando escribiendo esta relación acaso vi una historia de buen estilo, la cual se nombra de un Francisco Lopez de Gómara, que habla de las conquistas de Mejico y Nueva-España, y cuando lei su gran retorica y como mi obra es tan grosera, dejé de escribir en ella y aun tuve ‘vergüenza’ que pareciese entre personas notables[...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14) 3 [...] y estando tan perplejo como digo, torné á leer y á mirar las razones y pláticas que el Gómara en sus libros escribió, e vi que desde el principio y medio hasta el cabo no llevaba buena relación, y va muy contrario de lo que fué é paso en la Nueva-España (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 15). Na edição de Guillermo de Serés, este mesmo texto é apresentado da seguinte maneira: “ Estando escribiendo en esta mí corónica, acaso vi lo que escriben Gomara e Illesca y Jovio en las conquistas de Mejico y Nueva España, y desque las leí y entendí y vi de su polícia y estas mis palabras tan groseras y sin primor, dejé de escrebir en ella[...]” (SERÉS, 1998, p. 89). 1 181 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Tal percepção levou-o a reescrever a sua Relación inicial que resultou na Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva-España. Nela teve como meta relatar o que considerava como verdade, tratou de esclarecer os pontos de contradição que tinha encontrado na obra de Gomara, visto que foi testemunha presencial dos acontecimentos (DIAZ DEL CASTILLO, 1947, p. 14 - 15). A intenção de Bernal Diaz manifesta-se claramente ao leitor no prólogo da sua obra: [...] o que eu ouvi e vivenciei, como bom testemunho de vista, eu o escreverei; com a ajuda de Deus, tranquilamente, sem torcer nem para uma parte nem para outra, e porque sou velho de mais de oitenta e quatro anos e perdi a visão e a audição, e não tenho outra riqueza para deixar a meus filhos e descendentes, salvo esta minha notável relação [...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 51).1 Essa preocupação levou Bernal Diaz a corrigir e a eliminar os exageros que continha o texto de Gomara, procurando, com isso, garantir o direito de reclamar, também ele, sua parte nas mercês reais (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 91). Entre os exageros que denuncia em Gómara, encontra-se a exaltação de Cortés, ao qual era atribuído o status de herói da Conquista. A esse respeito Bernal Diaz faz muitas críticas. Para ele os agentes da conquista foram os espanhóis, particularmente os capitães, categoria da qual fazia parte. Procura destacar o aspecto coletivo sobre o individual afirmando, em vários momentos de importantes decisões, o papel dos soldados como conselheiros de Cortés. A título de exemplo, corrige os erros dos cronistas que não estiveram presentes na conquista, afirmando que a atitude de Cortés de afundar os onze navios, para evitar que os soldados se retirassem ou desistissem da conquista do Yucatam e voltassem para Cuba, ou para outros lugares, foi devido ao conselho dele próprio e dos soldados; portanto não foi uma decisão exclusiva de Cortés, segundo o relato de Gomara2. 1[...]lo que yo oí y me hallé en ello peleando, como buen testigo de vista, yo lo escrebiré; con el ayuda de dios, muy llanamente, sin torcer a una parte ni a outra, y porque soy Viejo de más de ochenta y cuatro años y he perdido la vista y el oír, y por mi ventura no tengo outra riqueza que dejar a mis hijos y descendientes, salvo esta mi verdadera y notable relación[...] (DIAZ DEL CASTILLO, 1998, p. 51). 2 Segundo vários cronistas, Cortés teria ateado fogo aos navios para impedir o regresso dos soldados que haviam ido com ele na expedição que visava conquistar a Península do Yucatan. Conforme nota de Francisco Rico, esta versão deve-se ao interesse destes cronistas em aproximar a “figura” de Cortés a heróis clássicos, tais como: Agatocles, Timarco, Quinto Fábio Máximo, Juliano e outros, que de fato fizeram isto ( DIAZ DEL CASTILLO,1947, p.91). 182 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Como pode ser percebido, por meio das referências apresentadas, a História de Bernal Diaz contesta a obra de Francisco Lopez de Gomara, oferecendo outra versão da história, na qual procura exaltar o próprio valor e o dos seus companheiros, no processo de conquista. Encontramos outro exemplo de versão particular da história da Conquista na obra Relación de la venida de los españoles y principio de la ley evangelica do mestiço Fernando Alva Ixtlixochitl. Segundo Elisa Angotti Kassovitch (1997, 114116), Fernando Alva, filho do espanhol Juán Perez de Peraleda e da mestiça Ana Cortés, nasceu entre 1578 e 1580. Entre os seus antepassados, encontram-se Francisco Quetzalmamalintzin e Ana Cortés Ixtlilxochitl (bisavós) e Xiuhtotozin, tlatoani de Teotihuacan e Tecuhahuatzin, chamada após o batismo de Madalena (tataravós), dos quais herdou suas características nativas. Em virtude dos estudos realizados no Colégio de Santa Cruz de Tlatellolco, dirigido pelos franciscanos, assimilou os valores da cultura cristã ibérica. Inserido nessa perspectiva, escreveu uma versão da Conquista do México, tarefa que justifica por não ter encontrado, nas obras existentes, referências ao papel desempenhado pelo seu povo e, particularmente, pelo seu antepassado Ixtlilxochitl -infante legítimo del reino de Tezcoco - que apresenta como o principal aliado de Cortés na Conquista do México (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 197). Constatando essa ausência nas obras históricas anteriores, Fernando Alva redigiu a Relación de la venida de los españoles y principio de la ley evangelica na primeira metade do século XVII, e com o objetivo de registrar a memória do seu povo, particularmente a sua, destacando as realizações dos seus antepassados. Nela procura registrar o valor do seu povo, enquanto força aliada e fundamental, que colaborou na vitória dos espanhóis sobre as forças dos mexicas de Tenochtitlán (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 235). Sobre essas ausências, Fernando Alva comenta: [...] me espanta de Córtes, que sendo este príncipe o maior e mais leal amigo que teve nesta terra, que depois de Deus com sua ajuda e favor se ganhou, não deu notícia dele nem de suas lutas e dos seus heróicos feitos, se quer aos escritores e historiadores para que não ficassem sepultados já que não foi dado a ele nenhum prêmio/recompensa. [...] (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212 / A tradução é de nossa autoria)1 [...] me espanta de Cortés, que siendo este principe el mayor y más leal amigo que tuvo en esta tierra, que después de Dios con su ayuda y favor se ganó, no diera noticia de él ni de sus hazañas y 1 183 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Porém, ao longo dos seus escritos, é possível observarmos o quanto ele idealiza a participação do seu antepassado, e serve como exemplo a participação de Ixtlilxuchitl no decorrer da conquista de Tenochtitlán: Desde que Cortés e os demais saíram de Texcuco, Ixtlilxuchitl foi com eles e esteve junto a eles em todos os oitenta e quatro dias que durou a guerra do México sem faltar em nenhum, sendo o primeiro em todas as ocasiões, como bom capitão, arriscando a sua vida muitas vezes para livrar os espanhóis dos seus inimigos os mexicanos que se não fora por ele e seus irmãos, houve ocasiões em que podiam tê-los matado sem que ficasse ninguém se não fora por ele e os seus, como tenho referido (IXTLILXOCHITL, 1956.P. 212/ a tradução é de nossa autoria)1 Em virtude dessa falta de referências nas obras históricas, entre outros motivos, Fernando Alva relata o papel desempenhado pelos indígenas aliados no processo de conquista. Mediante tal registro, além de fazer constar que as realizações do seu povo ficassem protegidas do esquecimento total, visava a conseguir também as concessões que lhe eram devidas, como uma espécie de pagamento pelos serviços prestados pelo seu povo aos conquistadores, conforme podia ser comprovado nas fontes fidedignas por ele utilizadas, tanto escritas como orais para compor a sua versão da história. Sobre elas comenta: [...] os que escreveram ou pintaram, encontraram-se pessoalmente nessas ocasiões [e ainda] alguns deles me disseram, de viva voz, a forma como sucedeu, já que faz poucos anos que morreram, os quais eu os conheci quando já eram muito velhos (IXTLILXOCHITL, 1956, p.211212/ a tradução é de nossa autoria)2 A mesma confiança nas fontes utilizadas para escrever outra versão própria de uma das fases da conquista é encontrada no mestiço Diego Muñoz Camargo, autor da Historia de Tlaxcala. Nela procura enfatizar a contribuição desempenhada pelos tlaxcaltecas no processo da conquista de Tenochtitlán. Como fontes, ele utiliza narrativas elaboradas, entre outros, por: Andrés de Olmos, Bernal Diaz del heroicos hechos siquiera a los escritores e historiadores para que no quedaran sepultados ya que no se ló dió ningún premio[...] (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212). 1 Ixtlilxuchitl desde que salieron a Tezcuco Cortés y los demás vino con ellos, y se halló personalmente en todos los ochenta días que duró la guerra de Mexico, sin faltar uno solo, siendo el primero en todas ocasiones, como buen capitán, arriesgando su vida muchas veces por librar a los españoles de sus enemigos los mexicanos que si no fuera por él y sus hermanos, deudos y vasallos, hubo ocasiones en que podian matarlos sin que quedara uno tan sólo, si no fuera por él y los suyos, como tengo referido (IXTLILXOCHITL, 1956, p. 212). 2 ‘[...] los que las escribieron o pintaron, se hallaron personalmente a estas ocasiones’ [ e ainda] demas que algunos de ellos mo lo han dicho vocalmente y contado de la manera que sucedió que ya pocos años há que se han muerto, los cuales yo alcancé ya muy viejos[...](IXTLILXOCHITL,1956, p. 211-212) 184 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Castillo, Bernardino de Sahagún, Jerônimo de Mendieta, Toribio Motolinia, aos que acrescenta os relatos tlaxcaltecas escritos pelos primeiros aliados de Cortés. Nascido em Tlaxcala em 1529, era filho do espanhol Diego Muñoz, que chegou ao México em 1524 com seus pais, e de uma índia tlaxcalteca, de nome desconhecido. Segundo Georges Baudot (1990, p. 440), Muñoz Camargo foi educado no México (Tenochtitlán) e não em Tlaxcala. Como resultado da educação recebida, em grande parte espanhola, já que cresceu entre estes, tornou-se conhecedor dos clássicos e da cultura hispânica difundida na sua época, fato que contribuiu para que se identificasse mais com os espanhóis do que com os tlaxcaltecas, aspecto que pode ser percebido, ao longo da sua obra ao destacar, no relato referente à sua infância, o desejo de ser exclusivamente espanhol1. Em 1545 deixou o México e voltou a Tlaxcala, exercendo vários ofícios, entre os quais os de hospedeiro, vaqueiro, açougueiro e o de intérprete nos processos. A partir de 1580, levantou os dados que iriam resultar na elaboração da História de Tlaxcala cujo título exato é Descripción de la ciudad y de la provincia de Tlaxcala en NuevaEspaña y en las Indias del Mar Oceano. Esse trabalho foi motivado pela incumbência recebida para responder às questões elaboradas pelo Conselho das Índias em 1577, por meio das quais a Coroa visava a obter descrições regionais dos territórios conquistados no Novo Mundo. Uma primeira versão da História de Tlaxcala foi terminada em 1585 e entregue por ele a Felipe II, por ocasião de uma viagem a Madrid. Após seu regresso a Tlaxcala, continuou reelaborando o texto, finalizado aproximadamente em 15952. Ao compararmos a versão da história elaborada por Diego Muñoz Camargo com a escrita por Fernando Alva, deparamo-nos de imediato, com contradições e diferenças. Ambos têm Cortés como eixo da narrativa, porém, ao redor dele cada um destaca o seu povo respectivo, registrando a existência de fatos e personagens diferentes. É comum ao longo da Historia de Tlaxcala Diego Muñoz Camargo usar expressões tais como “nostros españoles” procurando se identificar como espanhol e não como mestiço. 2 A primeira versão foi identificada num manuscrito pertencente à Universidade de Glasgow, sendo editada em facsimile pela Universidade do México em 1981. A segunda, incompleta desde o século XVIII, encontra-se em Paris, na Biblioteca Nacional, na coleção Goupil Aubin, como manuscrito mexicano nº 210. A edição trabalhada por Georges Baudot provém deste manuscrito. Ao longo de ambas as versões, segundo Baudot é perceptível a parcialidade assumida pelo autor. Embora narre a história dos primeiros e “melhores” aliados de Cortés, não deixa de se posicionar como espanhol. 1 185 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Nos escritos sobre a Conquista aqui apresentados, constatamos que cada autor possui a sua verdade e o seu uso da história para legitimá-la. Fazendo uso da história lutaram pelos seus interesses particulares, apresentando-se como homens de valor; isto é, como homens que serviram e foram fundamentais para que os propósitos da Coroa fossem efetivados. A história, para eles, torna-se um mecanismo de legitimar, tanto as realizações pessoais como as do grupo/categoria que representam. Por meio dela tornaram públicos os atos de bravura e heroísmo dos seus povos respectivos, construindo a própria memória histórica com a qual reivindicaram melhores tratamentos por parte da Coroa. 186 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO BAQUER, M. La Generación de la Conquista. Madrid: MAPFRE 1492, 1992. CORTES, F. Cartas de Relación. In: VEDIA, Enrique de (ed.) Historiadores Primitivos de Indias. Madrid: Atlas, 1946, p. 1-153. DIAZ DEL CASTILLO, Bernal – Historia Verdadera de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. In: VEDIA, Enrique (ed.) Historiadores Primitivos de Indias. Madrid: Atlas, 1947. Tomo II, p. 1- 317. DIAZ DEL CASTILLO, Bernal – Historia Verdadera de la Conquista de Nueva España. SERES. G. (ed.) Barcelona: Plaza & Janés Editores, 1998. FERNANDEZ, Diego Crónicas del Peru. Primera e segunda parte. Edição e prólogo de Juan Peres de Tudela Bueso. 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E-mail: [email protected] RESUMO O presente artigo procura estudar um conjunto de gravuras doadas pelo presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos no ano de 1961, ao acervo do então Museu de Arte Moderna de Florianópolis. Sabemos pela autoria, que parte das imagens deste conjunto se integram a uma etapa específica da história da gravura no México, representativa da produção do TGP – Taller (em português, oficina ou ateliê) de Gráfica Popular. Concebidas em séries e, portanto, sem o valor aurático da cópia única, esta obra gráfica está desvencilhada das condições que presidiram sua origem, cujo propósito era informar e conscientizar através de uma mensagem forte, breve e clara. Os laços estreitos que as imagens têm com a Revolução de 1910, tornam comuns os estudos que destacam o seu papel de construtoras e guardiãs da memória revolucionária. São vistas deste modo como um epifenômeno da Revolução, como acontece em alguns trabalhos sobre o Muralismo. Sem desconsiderar isto, é preciso investigar como esta produção artística dialogou com seu tempo e com os processos mais gerais da cultura latino-americana dos quais são uma parte indissociável. Analisar as gravuras é também uma oportunidade de examinar mais criticamente a história da arte destes países, inclusive mostrando o caráter informe e pouco estudado dos seus acervos museológicos. Palavras-Chave: museu, gravura, imagens, México ABSTRACT The present article has the purpose to study a set of engravings donated in 1961 by the mexican president Adolfo Lopes Mateus to the then called Museu de Arte Moderna de Florianópolis. We have known by its authorship that part of the images of this set of engravings belongs to an specific history of engraving in Mexico, very representative of the production of TGP – Taller de Grafica Popular (Atelier of Popular Graphic). Conceived in series and, therefore, lacking the aural value of an unique piece, this graphic work is cut off from the context of its origins, which have the purpose to inform and generated awareness through a strong, brief and clear message. The tight bonds between those images with the Revolution of 1910 have unified the studies that put on the spot their role as makers and keepers of a revolutionary memory. They have been seen as an epiphenomenon of the revolution, just like what have happened with some works about the Muralism. Regardless of that, we must investigate how such artistic production had dialogued with its time and with the general processes of latin american culture from which they are an inseparable part. Analyse the engravings it is also an opportunity to look closer and critically the history of the art of those countries and, in doing so, show the shapeless form and spared studies conducted over its art collection. 1 Pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Santa Catarina com recursos do CNPq. 190 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Keywords: museum, engraving, images, Mexico. Este texto procura pensar as relações entre história, arte e imagem tomando como fonte um conjunto de gravuras produzidas no México nas primeiras décadas do século XX, e que atualmente pertencem ao Museu de Arte de Santa Catarina – MASC1. Concebidas em séries e, portanto, sem o valor aurático da cópia única, o conjunto de imagens que aqui chamamos de “gravuras mexicanas” estão desvencilhadas das condições que presidiram sua origem, cujo propósito era informar e conscientizar através de uma mensagem forte, breve e clara. Os laços estreitos que esta obra gráfica têm com a Revolução de 1910, tornam comuns os estudos que destacam o seu papel de construtoras e guardiãs da memória revolucionária. São vistas deste modo como um epifenômeno da Revolução, como acontece em alguns trabalhos sobre o Muralismo. Sem desconsiderar isto, é preciso investigar como esta produção artística dialogou com seu tempo e com os processos mais gerais da cultura e estética latino-americana do qual são uma parte indissociável. Analisar as gravuras é uma oportunidade de examinar mais criticamente a história da arte destes países, inclusive mostrando o caráter informe e pouco estudado dos seus acervos museológicos. Desta forma, contrariando o espectro de uma falsa totalidad como apontou Diana Wechsler ,2 que paira sobre a própria noção de uma arte latino americana. Além destas, pesam outras questões importantes num estudo desta natureza. Rosangela Cherem 3 diz que para sair do lugar-comum é preciso revirar os próprios bolsos, implica olhar para estas coleções, muitas vezes esquecidas nos labirintos das reservas técnicas, desafiando as cronologias engessadas e os ismos, deixando à mostra as contradições inerentes ao arquivo, já que como lugares de memória os museus estão indelevelmente marcados com os germes da contradição e do jogo dialético.4 O objetivo deste estudo é entender de que maneira os artistas expressaram questões importantes de seu tempo e delas extraíram matéria-prima do seu As seguintes referências ao Museu serão feitas apenas pela sigla. A expressão se refere ao título da comunicação: Exposiciones de Arte latinoamericano: la (falsa) totalidad , apresentada por Diana B. Wechsler no II Colóquio História e Arte: Imagens da América na Latina, realizada Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em setembro de 2009. 3 CHEREM, Rosângela. Notação para uma história da pintura na América Latina. Revista esboços nº 19. Dossiê história, arte e imagem. 4 CHAGAS, Mário. Há uma gota de sangue em cada museu. Chapecó: Argos, 2006. 1 2 191 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 trabalho, sem relegar para isto a pesquisa formal e a inventividade. Há que se destacar que elaborar narrativas sobre o passado tomando a imagem, seja ou não artística como documento, é um terreno movediço. Constata-se que apesar da crítica que trouxe a reboque a ampliação das fontes, ainda se “desconfia” muito mais das imagens do que dos objetos textuais, aos quais parece pesar sempre um maior substrato de verdade. Assim, para um discurso que não prescinde de sua objetividade e que instituiu a palavra como meio mais legítimo de testemunho, os métodos usados para trabalhar com imagens na história não parecem ser suficientemente seguros. Na contrapartida desta aparente dificuldade, está um campo fértil onde podem brotar ilimitadas associações que as imagens estabelecem na sua transitoriedade pela cultura. A lógica que prevalesce neste caso é a das associacões inderminadas, tal qual acontece ao colecionador benjaminiano, quando se deixa levar pelos arrebatamentos ao desempacotar sua biblioteca. Foi partindo destas premissas que procuramos analisar a partir das imagens, itens como as narrativas exteriores; o ambiente social em que foram produzidas; o modo como os artistas enfrentaram os problemas de sua época; os interesses políticos e culturais que dirigiram o percurso das obras em tempos e lugares. Mas, a revelia destes esforços, as imagens se colocam como irredutíveis a um discurso verbal que tenta apreendê-las, afinal de contas falar não é ver1. Portanto, qualquer dado aqui apresentado não pretendeu ser exaustativo e tampouco conclusivo, e neste momento preliminar das pesquisas em parte, rendeu-se aos silêncios impostos pelo arquivo. Nosso foco se dirige agora ao ano de 1961, quando ao acervo do então Museu de Arte Moderna de Florianópolis eram acrescentadas 62 gravuras doadas pelo então presidente da Argentina, Arturo Frondizi, e mais 49 ofertadas em nome do presidente mexicano Adolfo Lopes Mateos. O museu havia sido inaugurado em 1949, e, segundo as narrativas criadas sobre este momento fundacional, era fruto de um movimento iniciado por jovens locais e abraçado pelo escritor carioca Marques Rebelo, que esteve à frente da criação de outros museus de arte moderna no Brasil. Seja como for, a aparição do museu condizia com o clima cultural do pósguerra e com a introdução do ideário moderno nas regiões mais interioranas do 1 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita, a palavra plural. São Paulo: Escuta, 2007. 192 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 país1. Mesmo a partir de 1976 quando o museu mudou de nome e se tornou estadual,2 de acordo com a análise de Emerson Oliveira, houve um empenho contínuo dos dirigentes do MASC em perpetuar um discurso identitário a partir da arte moderna. Isto foi feito continuamente através dos eventos, das publicações entre outras ações encampadas pelo MASC. Dado que revela, segundo o mesmo autor, a dificuldade em aceitar a poliformia de seu acervo: A escolha de apenas códigos modernistas para a representação de si, numa seleção política articulada, traz ao acervo um apagamento perigoso e que pode indicar que a instituição está ligada e comprometida com somente um sentido da história de sua coleção.3 A significativa aquisição destas gravuras, resultava de um pedido de doação de obras de arte, feito em 1959. A idéia partiu de João Evangelista de Andrade Filho4 que nesta época cumpria a primeira das suas duas gestões na direção do museu. Recém empossado, ele visava aumentar o pequeno acervo do então MAMF que apesar de significativo - já que incluia obras de Iberê Camargo, Roberto Burle Marx, Athos Bulcão, Djanira, entre outros expoentes modernistas do Brasil – era, em sua opinião quantitativamente pequeno. Quando questionado sobre a razão de solicitar especificamente gravuras, ele diz que o pedido soava mais razoável pois, as gravuras eram mais acessíveis que pinturas ou esculturas. Além disto, ele sabia pela convivência artística mantida na cidade de Porto Alegre com gravuristas gaúchos, que no México havia uma forte tradição desta técnica. Para entender melhor o sentido desta doação, sabe-se que as exposições organizadas pelos orgãos diplomáticos, assim como a oferta de objetos artísticos não era nenhuma novidade dentro da prática política. Contudo, Knauss5 em seu estudo sobre as exposições de arte no contexto da Segunda Guerra Mundial aponta que já ao término da Primeira Guerra, novos e renovados interesses são LEHMKUHL, Luciene. Imagens além do círculo: O Grupo de Artistas Plásticos de Florianópolis e a positivação de uma cultura nos anos 50. Dissertação. Florianópolis: UFSC (Mestrado em História), 1996. 2 A sua primeira denominação foi Museu de Arte Moderna de Florianópolis (MAMF), entretanto, o termo moderno foi retirado em 1970 quando a instituição deixou de ser municipal e se tornou estadual. 3 OLIVEIRA. Emerson Dionisio G. Um acervo de arte moderna e a identidade institucional. Revista História em Reflexão: Vol. 2 n. 4- UFGD- Dourados jul/dez 2008. 4 João Evangelista foi professor de História da Arte da Faculdade de Direito de Santa Catarina e figura destacada no cenário artístico de Santa Catarina. Os dados aqui apresentados foram recolhidos a partir da entrevista realizada nas dependências do MASC em 28/04/2010. 5 KNAUSS. Paulo. Os sentidos da arte no Brasil: exposições de arte no contexto da Segunda Guerra Mundial. Revista esboços nº 19. Dossiê história, arte e imagem. 1 193 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 acrescentados a isto, como por exemplo mostrar os valores ilustrativos das nacionalidades e suas culturas através das obras selecionadas. Em que medida o interesse propagandístico influenciou a doação mexicana é ainda um assunto a ser aprofundado. Mas é possível deduzir que o envio das gravuras, na presidência de Lopes Mateos ao museu catarinense, mostrava interesse numa aproximação com seus vizinhos, tendo em vista que no mesmo ano de 1959 quando João Evagelista remetia o pedido, o presidente mexicano fez também uma visita oficial ao Brasil, chegando a desfilar em carro aberto pelas ruas do Rio de Janeiro. Figura1- Fotografia da visita do Presidente Adolpho Lopez Mateos ao Brasil em 1959. Foto: O Cruzeiro. Disponível em: http://fotolog.terra.com.br/tororo: 83 Os fatores que presidiram a escolha do conjunto enviado ao museu florianopolitano são desconhecidas. Pode se tratar de uma seleção tanto deliberada quanto aleatória e, é provável que pesquisas futuras possam confirmar uma destas suposições. Indiferente a estas questões, as imagens estudadas evocam em sua figuração, as experiências vividas pela maior parte da população latino-americana como a violência, a luta pelo reconhecimento de suas identidades, pela terra e mesmo o anseio por um momento mais redentor. O caráter de permanência e universalidade destas necessidades vão além das fronteiras ideológicas e temporais de qualquer discurso nacionalista. Mesmo o expectador desavisado, que nada saiba de antemão sobre a vida pregressa desta obra gráfica, será igualmente deslocado à atmosfera de conflitos, dramas e esperanças. Estes assuntos que 194 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 certamente ainda falam ao nosso tempo, ganharam forma a partir de narrativas individuais e diferentes linhas, das quais a obra gráfica remetida ao MASC é uma expressão. Sabemos pela autoria, que parte das imagens do MASC se integram a uma etapa específica da secular história da gravura no México,1 representativa da produção do TGP – Taller (em português, oficina ou ateliê) de Gráfica Popular. Fundado em 1937, por Pablo O´Higgnis e Leopoldo Mendez, que o dirigiu por vinte e cinco anos. Apesar de ter sido uma importante e profícua oficina gráfica, há pouca circulação de publicações acerca do TGP no Brasil. Os estudos consultados apontam para a influência que teve na formação de dois clubes de gravura no Rio Grande do Sul. Um deles sinaliza inclusive que os gravuristas Carlos Scliar e Vasco Prado2 conheciam Leopoldo Mendez, encontrando-o em duas ocasiões: no Congresso Mundial de Intelectuais em Defesa da Paz em 1948 na Polônia, e em 1952 em Paris. Segundo o mesmo estudo, a aproximação foi fundamental para a criação do núcleo de gravura de Porto Alegre em 1950. Além dos fundadores, assinam a autoria das 49 gravuras, artistas conhecidos como Franscisco Mora, Arturo Garcia Bustus, Angel Bracho, Ignacio Aguirre, Célia Calderon, Javier G. Iñigues, Sara Jimenez, e a americana Elisabeth Catlett que assim como Pablo O´Higgnis residia no México. A extensa produção de várias décadas esta dispersa de forma inalcansável. Entretanto alguns exemplares do MASC são facimente encontrados em sites de museus e publicações na internet. Isto acontece com os trabalhos produzidos por Leopoldo Mendez, intituladas Fusilamento, Los pueblos en defesa da paz, Un dia de vida en el paredon (única delas ADES, Dawn. História da Arte na América Latina. São Paulo Cosac e Naify, 1997. Segundo esta autora foi nas primeiras décadas do século anterior que a busca por uma arte acessível levou a recuperação e valorização da gravura no México, cuja técnica viera na bagagem dos primeiros colonizadores. De acordo com esta análise, coube aos muralistas salvar de um possível esquecimento o trabalho de Jose Guadalupe Posada (1852/1913), cujo valor da obra era reconhecido por artistas como Orozco e Rivera. 2 Para saber mais sobre este contexto ver: JUNIOR, Raul Rebello Vital. O Partido Comunista e a Revista Horizonte: a negação da produção na tradição. Revista Ciências e Letras. Porto Alegre, n.41, p.319-334, jan./jun. 2007. Disponível em: <http://www.fapa.com.br/cienciaseletras/publicacao.htm> 1 195 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 em que consta a data de fatura-1950) e Posada que também pode ser encontrada com o título de Homenagem a Posada, 1datada no ano de 1956. A gravura (fig.2) acena para a admiração que Leopoldo Mendez sentia por Posada embora o título seja apenas uma correspondência e não uma equivalência. Ao olharmos para uma fotografia (fig.4) em que ele aparece em frente a sua oficina, parece evidente que Mendez buscava uma semelhança com o “retratado”. Além da aparência, as duas imagens quase nada compartilham. A mão no bolso assegurando a pose informal de Posada destoa do tom sério da fisionomia que vemos da gravura. A feição circunspecta mostrava-se mais condizente com o valor histórico e o caráter testemunhal que se atribuia a ele e a sua obra. Este detalhe é importante no que se relaciona ao processo de fatura da obra pois diferente do imediatismo com que um rosto pode emergir de uma pintura, de um desenho ou uma fotografia, na elaboração de uma gravura há principios inerentes como a marca, a transferência e a reprodução, que demandam um tempo próprio. Figura 2 - Leopoldo Mendez (México, 1903 – 1969), Posada, s/data, linoleogravura s/papel, 35x78cm. Está assim referido em ADES, Dawn. Op. cit., p.182. Contudo, na apresentação desta e das demais imagens, foram mantidos os dados que constam nos documentos do acervo do MASC. 1 196 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Para Débora Caplow1, Leopoldo Mendez, não se contentava com um tratamento simplesmente icônico, agregando em suas gravuras, textos narrativos sob diferentes modos, como é dado ver na mensagem que segura a personagem posicionada a direita e em segundo plano (fig. 3) com relação à Posada. Nela, consta a seguinte frase: No havrá leva ese pretexto conque los actuales caciques arrancan de su hogar a los hombres a quienes odiam. Na mesma imagem vemos ainda a figura que representa Posada em primeiro plano. A mesa onde trabalha é previlegiada por uma luz que incide sobre as ferramentas de gravador. Ele observa através de uma janela onde Mendez usou como elementos da sua encenação do passado, os violentos conflitos em torno da questão agrária e expropriação das terras pelo Estado. Sobre a sua cabeça, uma nota assinala o ano de 1902, época de culminância destes conflitos. No seu papel de testemunha, Posada instantaneamente retem o que se passa “lá fora”, através das marcas feitas na placa de madeira em que trabalha. Nas artimanhas, jogos e inversões inventados pelo artista, as noções de tempo e autoria, assim como as de ficção e verdade se embaralham. O que reforça a máxima de que tudo na imagem, no final das contas, é somente a própria imagem. Figura 3 - Leopoldo Mendez (México, 1903 – 1969), Posada, detalhe, s/data, linoleogravura s/papel, 35x78cm. CAPLOW, Débora. Leopoldo Mendez: Revolutionary Art And The Mexican Print. Texas: University Press, 2007. 1 197 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Figura 4 – Jose Guadalupe Posada s/data, fotografia. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Posada4.Workshop.jpeg O artista trabalha dentro de um limite instável entre o que é herdado de outras épocas e ditado pelo seu tempo. Sobre isto Svetlana Alpers1 num estudo da arte holandesa do século XVII, mostrou que o seu modo cartográfico deve ser considerado em relação à especificidade do acesso a terra naquele país, cuja inexpressividade do caráter senhorial e liberdade nas formas de acesso foram, no seu entender, uma espécie de unanimidade no Ocidente. A técnica pictórica que se desenvolveu a partir disto destacou a admiração pela natureza, alimentada pela ausência do conflito entre campo e cidade. Sabe-se que tais condições foram de fato uma particularidade, pois as relações entre os seres humanos e a propriedade da terra se desenrolaram nos últimos séculos em grande parte à mercê de lutas e conflitos. Nas regiões colonizadas, mesmo após as independências, restaram marcas estruturais como o problema da distribuição desigual da riqueza, e, destacadamente, da terra. Este fator manteve excluídos um grande contingente de pessoas. No livro em que analisa a diáspora caribenha após a Segunda Guerra Mundial, Stuart Hall2 mostra que a história dos povos colonizados está marcada pelas rupturas mais violentas e abruptas, e que isto marcou as identificações que 1 2 ALPERS. Svetlana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999. HALL, Stuart. Da diáspora. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 198 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 são construídas na cultura, uma vez que é nela que tais identificações são produzidas. Como parte da cultura, a paisagem está presente em 19 das 49 gravuras do conjunto mexicano. Por elas é possível entender melhor o diálogo dos artistas com seu tempo e também com os elementos de uma cultura paisagística fortemente enraizada nas artes plásticas e na literatura. Faz-se notar nestas imagens certo atavismo na narração do lugar e seus habitantes, isto se dá pela inclusão de elementos naturais e culturais, como espécies vegetais, vestimentas e formas de trabalho. Mas, na sua figuração, a organicidade do conjunto vem de uma maior preocupação com o ser humano em relação à natureza. Na imagem de Arturo Bustus (fig. 5), cujo título já assinala se tratar de uma exortação da posse da terra, a figura do camponês está em primeiro plano. Ela é a presença dominante que transforma o solo e cria o cenário que sustenta a vida pelo ciclo da plantação e colheita. O campo cultivado que aparece no panorama da moldura/janela, faz recuar a natureza selvagem. Como escreve Cauquelin 1 toda paisagem é um combate ritual entre forças desarticuladas. Figura 5- Arturo Bustus. Campesino com tierra. s.d.Linoleogravura sobre papel, 30,4x40 1 CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 199 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Estas imagens ao mesmo tempo em que exprimem continuidade com períodos artísticos anteriores, quando os pintores projetaram as suas visões de mundo a partir de um ponto de vista ligado à natureza e ao mundo rural, não deixam de ser uma nota sombria ao tortuoso avanço dos processos de modernização das estruturas sociais e econômicas da América Latina. Além de expor a visão do trabalho agrícola, ainda como ação fundamental à sobrevivência, as gravuras fazem referência aos modos extenuantes deste trabalho. A composição de Sarah Jimenez intitulada Tallador (fig. 6) insinua a força necessária para obtenção das raspas da folha do henequén, variante mexicana de uma planta da família das agaves, cujas fibras já eram usadas no tempo dos Maias. A atividade foi integrada à economia internacional no século XIX graças ao cultivo em larga escala e a exploração da mão de obra de camponeses pauperrizados. O cultivo destas fibras teve seu correspondente dramático no Brasil quando a partir dos anos sessenta do século XX, o “ouro branco do sertão” como era chamado o sisal, se difundiu em regiões do estado da Bahia, consumindo em árduas jornadas de trabalho, a infância de milhares de crianças. A imagem de Sarah Jimenez tem um ar monumental pelas proporções avantajadas e pela solidez com que a figura do homem e suas ferramentas de ofício se fixam ao chão. As veias intumescidas das mãos e do punho são partes retorcidas da mesma dinâmica que envolve os outros elementos da composição. Nela tudo se curva e retorce num movimento incessante e ancestral entre natureza e cultura. 200 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Figura 6 – Sarah Jimenez. Tallador, s.d. Linoleogravura s/papel, 34,4x28cm. Nas gravuras mexicanas temos uma visão impactante dos modos de exploração da força de trabalho que mantém distante qualquer nota idílica acerca da labuta no campo, como na gravura Cosechadora de Algodón (fig.7) onde tudo é mínimo e essencial. A cabeça da mulher parece se ampliar junto a aba do chapéu, ambos pairam acima do torso excepcionalmente magro, que mesmo o delicado abotoamento do casaco não disfarça. A obra é simples e direta no seu fluxo descontínuo entre linha e espaço e dela emana uma emoção incômoda. Em entrevista concedida em 1990, Elizabeth Catlett1 comentava que os objetivos da arte era dar algo para as pessoas pensarem, e atingir os que sofriam não só no México, mas em de outras partes do mundo. Como havia feito Van Gogh na sua extensa série de auto-retratos, com incontáveis traços curtos e rápidos ela faz um registro particular e não menos intenso uma iconografia dos oprimidos2 contribuindo com o imenso arsenal expressivo da arte moderna. Entrevista realizada por Michael Brenson. Revista Sculpture. Publicação do Centro Internacional de Escultura. Abril 2003. Vol.22 no.3. Disponível no site http://www.sculpture.org/documents/scmag03/apr03/catlett/cat.shtml. 2 CANCLINI. Nestor Garcia. Culturas hibridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1999. 1 201 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Figura 7 - Elizabeth Catlett. Cosechadora de algodón, s.d. Linoleogravura s/papel, 44,8x42,3cm. Um outra gravura de Elizabeth Catlett, intitulada “Maternidade” (fig 8) pode ser combinada a uma longa série de imagens que aparecem na cultura visual desde antes das primeiras Madonas pintadas na Renascença. Por meio delas muitos artistas abordaram questões relativas ao pensamento plástico. Na composição (fig.8) sobressai o tratamento cuidadoso do jogo entre luz e sombra. Neste jogo, por uma equilibrada contraposição repousa a atmosfera de suavidade que emana do conjunto. O resultado é um arranjo formal que coloca em evidência o clima de comunhão e afeto entre mãe e filho. Combinada a esta série de aparições que remonta aos primórdios do Cristianismo, o punho cerrado da criança não deixa de pulsar como uma tensão, mostrando que a vida das imagens na cultura ao mesmo tempo em se inscreve nos processos de seu tempo conjuga outras temporalidades, como faz crer Aby Warburg nas suas considerações sobre a permanência de valores expressivos que sobrevivem como um patrimônio sujeito a leis próprias de transmissão e recepção. 202 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Figura 8 - Elizabeth Catlet (Washington, EUA, 1919), Maternidade, s/d. litografia s/papel, 43,6x3cm. A gravura (fig.9) “Cabeza” de Célia Calderon foi a vigézima terceira de uma série de cinquenta cópias. Nela vemos um delicado rosto de uma jovem cujo queixo se inclina timidamente sobre o peito. A impressão da imagem, em desalinho com o suporte, é um dado que se soma à inquietação provocada pelos grandes olhos da garota. Como um artíficio astuto, estes olhos veem aquilo que pode ser especulado ad infinitum, mas nunca será visto. O olho está aqui para o tempo, como a janela para a paisagem. É a partir de artifícios de inventividade como este, que a fisonomia dos grupos étnicos nativos ou não-europeus se inscrevem em parte do repertório das gravuras mexicanas do MASC. 203 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Figura 9 - Célia Calderon (México, 1921 – 1969), “Cabeza”, s. d., litografia s/papel, 55x41cm A inclusão das fisionomias indígenas, negras e mestiças foi um tema abraçado pelas gerações vanguardistas latino-americanas da primeira metade do século passado. Apesar da sua heterogeneidade, intelectuais e artistas membros destas vanguardas vão atacar a idéia da inferioridade cultural e biológica dos povos colonizados. Uma das atitudes adotadas para isto, será dar visibilidade as fisionomias e, ao mesmo tempo destacar elementos típicos do modo de vida destes grupos, ainda que muito desta produção tenha permanecido rendida, como outrora, ao típico e popular,. No Brasil, o modernismo encampou de um modo muito próprio esta tarefa, e alguns quadros de Tarsila do Amaral são emblemáticos a este respeito. Mas é preciso lembrar, que na arte em geral, a ruptura com modelos europeus não era novidade. Já se manifestara de formas distintas nos primeiros séculos da conquista através do Barroco e da arte dos viajantes. No Barroco brasileiro remete, entre outros, aos rostos mulatos do Aleijadinho e aos anjos mestiços do Mestre Athaíde. 204 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Na medida em que o nacionalismo se fortalecia, fez aproximações e apropriações com a cultura destes grupos. Num texto1 produzido com vistas ao Congresso Internacional das Artes Populares em Praga em 1928, Henri Foccilon discute estas apropriações. Contemporâneo do processo ele defendia que a arte popular não poderia ser circunscrita aos designios do nacional e que a sua suposta genuinidade era desmentida pela recorrência universalista dos seus padrões. Para ele os esquemas étnicos não coincidiam com os nacionais. Como de fato, estas ideias não se sustentaram frente à reorganização das identificações causadas pelas migrações e processos sócio econômicos das últimas décadas. Terry Eagleton 2 resumiu as diferenças nos discursos ligados à identidade ao se referir às mudanças culturais após os anos 60 escrevendo que a cultura foi o suplemento que veio desalojar àquilo que ela veio gradualmente retificar. No caso específico do México, a Revolução fora exitosa ao criar uma noção de identidade nacional que reconhecia os valores culturais legados pelos grupos camponeses, indígenas e populares. Uma significativa parcela da “arte revolucionária” é depositária da esperança que os artistas nutriam com relação à nação vindoura, onde as injustiças seculares seríam reparadas e as culturas conviveriam irmanamente. Tendo em conta os interesses ideológicos, entre suas vantagens estaria o fato de ser mais barata e popular, chegando a um número maior de pessoas através de cartazes, revistas, jornais, livros... Bem sucedidas no seu propósito de testemunhar este processo, as gravuras do MASC mantêm acesos estes valores mas advertem - através de uma cenografia de lutas, protesto e combates - para o caráter expiatório do caminho que leva a isto. Não à toa, este sinal melancólico está presente num conjunto impossível de juntar, composto por muitas fotografias, filmes, cartazes, pinturas..., que “documentaram” a recorrência da violência como uma epécie de modus operandi da modernidade política destes países. Gestos como punhos cerrados podem ser vistos na gravura “Manifestacion” (fig. 10) de autoria de Javier G. Iñigues. As figuras dos manifestantes exprimem solidez e determinação. Sobre suas cabeças, o artista criou um céu de linhas curtas FOCCILON. Henri. Arte e cultura populares. Revista Brasileira de História. São Paulo. v. 8 nº 15, pp. 205-314, set. 87/fev.88. 2 EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: UNESP, 2000, p.179. 1 205 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 e tensas. As zonas limítrofes entre claro e escuro são um obstáculo a ser transposto num percurso que, a despeito da determinação dos caminhantes, não deixa de parecer sombrio. Em meio a isto, a mulher se distingue pelo gesto preocupado com que esconde e proteje a criança, mantida junto ao seu peito. Estes vestígios impedem que as obras sejam reduzidas aos significados que a elas podem ser atribuidos pois, as gravuras têm uma lógica própria que inclui desvios e contradiz as expectativas de uma mera representatividade do social. Figura 10 - Javier G. Iñigues, “Manifestacion” (1957). Linoleogravura s/papel, 30,5x42cm. Desde o século XIX, com o advento da fotografia, a questão da reprodutibilidade técnica das imagens e o crescente aumento dos meios para isto foi um tema caro a muitos intelectuais que, como Walter Benjamin, tentavam compreender como estas mudanças alteravam a percepção sobre a arte e sobre o próprio caráter geral da cultura. Benjamim via com melancolia estas mudanças e alertava para a miséria narrativa nas modernas sociedades capitalistas, assunto que se tornou tema central de alguns dos seus escritos1. Na opinião deste crítico, a impossibilidade de compartilhar experiências numa cultura crescentemente BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas II: Magia e Técnica: arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. 1 206 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 individualista e fragmentada não somente inviabilizava a memória comum, mas decretava o fim de um extenso tecido narrável. A despeito de tudo isto, o mundo inconstante do século XX assistiu a expansão das linguagens populares como o cinema, a televisão e os quadrinhos, responsáveis por parte do imenso arsenal imagético da cultura visual. Estes meios influenciaram várias gerações porque as imagens são fecundas de experiência e deste modo fornecem elementos materiais e simbólicos para o pensamento. No início dos anos 60, o cinema já fazia parte dos modos de sociabilidade de muitas cidades latino-americanas, sendo que nas mais pequenas e periféricas se constituía muitas vezes numa das poucas formas de acesso a um mundo, cuja capacidade de reprodução de imagens aumentava cada vez mais. Em contrapartida, os meios de acesso a elas não. Nesta época, o faroeste era um gênero popular, exportado em geral dos Estados Unidos e apreciado por vários públicos. Entre produções banais e de maior calibre propagavam uma visualidade representativa do ser mexicano que se fez por estereótipos básicos como o bandoleiro desenraizado ou o camponês desafortunado, mercê da tutela ou da justiça de um herói, quase sempre um indivíduo moral e fisicamente mais poderoso. Destituídos de qualquer sentido libertário, estes contextos eram apresentados a partir da figuração de elementos comuns ao modo de vida e, como as gravuras, se nutriram de um imaginário em torno de uma iconografia mexicana originada na própria Revolução. Um item deste imaginário é a figura emblemática do trem que aparece em duas imagens elaboradas por Ignacio Aguirre. Uma delas (fig.11) intitulada Trem revolucionário, excluindo o cachorro que se coloca em frente do homem a cavalo, os movimentos dos demais personagens são desencontrados, como a figura da mulher que parece caminhar alheia ao restante da cena. Com exceção da jovem sentada lateralmente, que se distingue pelo perfil emoldurado por longos cabelos, as pessoas apinhadas no vagão de madeira, estão imersas na indolência que é ditada pela espera. O trem revolucionário desafiava a distância e aridez da terra, mas dentro de certos limites. Como observado pelo historiador da cultura Aby Warburg1 em viagem a região onde viviam os índios Pueblo, as ferrovias não WARBURG, Aby. Imagens da região dos índios Pueblo da América do Norte. Revista Concinnitas ano 6, volume 1, número 8, julho 2005. 1 207 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 haviam conseguido alcançar as aldeias mais distantes. Nelas, as práticas mágicas dos habitantes mais antigos deste território, sobreviviam assim como teimosamente as tempestades de areia cobriam os trilhos que simbolizavam a modernidade confusa destes tempos. Figura 11 - Ignacio Aguirre. Trem revolucionário I –s/d. Linoleogravura sobre papel, 30,7x42. Questionado acerca do impacto das gravuras sobre o meio artistico local, João Evangelista de Andrade1, afirmou que elas foram recebidas sem muito entusiasmo. Assim que chegaram ao MASC organizou-se uma exposição celebrativa mas, nos anos subsequentes, elas frequentaram apenas ocasionalmente uma ou outra exposição temática. Para ele, contribuiu para isto o fato dos interesses locais, tanto dos artistas quanto do gosto público, estarem voltados para outras preocupações estéticas, além da ausência de uma tradição da gravura, que só viria se desenvolver duas décadas depois. Seja como for, a coleção ainda permanece quase invisível entre as aproximadas 1700 obras que o museu possui hoje. A reduzida frequência com que as gravuras vieram a público é uma condição similar João Evangelista fez esta afirmação numa entrevista realizada em 2009 e a reiterou numa segunda entrevista realizada em 2010 1 208 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 aos acervos de muitos museus brasileiros, entre outras questões pela falta de estudos investigativos. A situação não deixa de ser um resultado indesejável do aspecto unívoco das relações entre o museu e a sociedade. Como disse Jorge Coli1 uma vez findada a sua gênese, a obra deixa de ser objeto e se torna sujeito, pois ao cria-lá o artista introduz no mundo um ser pensante. Vistas no contexto em que foram criadas, estas gravuras tinham o objetivo de conscientizar e chamar a atenção. Já as suas constantes formais e estilísticas permitem que na sua vida na cultura, expressem os seus próprios pensamentos, instaurando um mundo que passa a viver por si mesmo. Uma vez mantidas na invisibilidade tudo isto permanece apenas como latência. Dos diálogos que as gravuras suscitam com o seu antes e depois, resta saber como a promessa anterior de uma América livre, justa e próspera se consolidará frente às narrativas descentradas da cultura pós-moderna, assim como tem sobrevivido à urgência em promover a reforma agrária, a educação, e a inclusão das populações marginalizadas, lamentáveis continuidades no seu processo histórico. Palestra proferida no I Colóquio História e Arte: trânsitos da modernidade. Universidade Federal de Santa Catarina em setembro de 2008. 1 Realizado na 209 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Cartas, História e Linguagem. Doutorando em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Kleverson Teodoro de Lima. e-mail: [email protected] RESUMO Este artigo apresenta considerações sobre o estudo da prática epistolar, reafirma a necessidade de se desconstruir a equivalência, presente no senso comum, entre o espaço de intimidade e a noção de transparência e contribui para a reflexão do historiador sobre os diferentes elementos que compõem a situação discursiva da produção do texto missivista. Palavras-Chave: Cartas; epistolografia; História; Lingüística; performatividade. ABSTRACT This paper makes considerations about the study of epistolary practices and reasserts the need to deconstruct the common sense equivalence between space of intimacy and the notion of transparency. It also contributes to the historian’s reflection on the various elements that constitute the discursive situation of the production of missive text. Keywords: Letter; epistolography; History; Linguistics; Performativity. Primeira década do século XX. Durante os momentos iniciais do dia 1º de março de 1908, Amália Góia começou a escrever a Armando Lemos. Saue route. Indo, nadabu e Qua terto sa asdornsoceve! Fuz a q fuzamte! Ebnedau e baujau e mul vezes. Obnigeco. Não ta amquadem de sis1. Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Amália Góia para Armando Lemos. s/l, 1/mar./1908, 1f, s/env. Adotamos as seguintes abreviaturas: s/l (local não identificado); s/d (data não identificada); e s/env (carta sem envelope). A professora do Departamento de Letras da UFOP Hebe Maria Rola Santos identificou a estrutura da linguagem utilizada por Amália e Armando ao perceber recorrências na inversão do posicionamento de algumas consoantes e vogais (como o s pelo m; o a pelo e; o u pelo i; o r pelo n) e a permanência na disposição de outras letras (como o t e o b). Assim Saue route, que abre a carta de Amália, transformou-se em “Meia noite”. Segue a tradução do texto: “Meia noite. Armando, recebi a 1 210 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Três semanas depois, Armando endereçou uma carta para Amália, escrevendo-lhe do Distrito de Passagem, no município de Mariana, em Minas Gerais. Lianuce Sauxe. Desejara que tu estivesses junto a mim para saberes o meu sofrimento, pª de instante em instante relatar-te o que passo. Era meu desejo escrever-te logo que aqui cheguei, mas parece-me que em compensação das pouquissimas horas de prazer que passei contigo augmentarão-se as minhas obrigações. [...] Is epenteco ebnedo [c’egiallam] mebam (grifo nosso)? 1 Os códigos criptográficos criados por Amália e Armando, que permitiram a formação de palavras como “saue”, “lianuce” ou “ebnedo”, nos aproximam tanto das diferentes possibilidades de jogar com a linguagem (ao provocar a criação de novos termos) quanto dos desejos de que as ideias incorporem os acontecimentos e, com eles, realizem, na escrita, não apenas um efeito de realidade, mas a própria realidade, tragamna viva, digam sobre o outro. Nesses códigos misturam-se a potencialidade criativa do uso da língua e a pretensão de que ela proporcione uma performance objetiva, revele o real. Mas essa passagem do desejo à realidade, do pensamento à escrita, como indicam os estudos atuais sobre a autobiografia, se desenvolve dentro de um jogo complexo onde a relação “[...] não é da ordem do mimético ou da transparência (PESAVENTO, 2004)”, mas, sim, construída a partir de práticas conscientes ou não de representações, seleções, montagens e exposições (SÜSSEKIND, 1996; ARTIÈRE, 1998; LYONS, 1998; VENÂNCIO, 2000; SALOMON, 2002; MUZART, 2005;). Nesse sentido, esse artigo apresenta algumas considerações sobre o estudo da prática epistolar; reafirma a necessidade de se desconstruir a equivalência, presente no senso comum, entre o espaço de intimidade e a noção de transparência; e contribui para a reflexão do historiador sobre os diferentes elementos que compõem a situação discursiva da produção do texto missivista. Para que tanto me encommodava! Fiz o que fizeste! Abracei e beijei mil vezes. Obrigado. Não te esqueças de mim Desejo é que seja mesmo feliz, e [ ] com e bem Deus? (Lima, 2008).” 1 Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Armando Lemos para Amália Góia. Passagem,28/março/1908, 1f, s/env. Nos textos trocados entre Armando e Amália são perceptíveis alguns desvios na estrutura programada e combinada para a escrita das missivas, como a substituição do u pelo s no final da palavra “baujau” [beijos], em geral o u é substituído pelo m. Possivelmente, isso se deve à pressa, desatenção ou a algum forte estado de emoção no ato da grafia, que parece ser o caso da carta de Amália Góia anteriormente citada. Devido a esses desvios não é possível decifrar todas as palavras inscritas em suas cartas. “Lianuce Sauxe” e “Is epenteco ebnedo [c’egiallam] mebam?”, presentes na carta de Armando, podem ser traduzidos como “Querida Meiga” e “Um apertado abraço daqueles, sabes? (Lima, 2008).” 211 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 exemplificar alguns pontos abordados no artigo, utilizarei um conjunto de cartas pessoais escritas nas duas primeiras décadas do século XX, que envolve parentes e amigos de duas famílias que viviam no antigo Distrito de São Caetano, município de Mariana, em Minas Gerais. Entre esses missivistas encontram-se Amália e Armando acima citados. 1 Nas oficinas dos historiadores, os interesses pelos artefatos autobiográficos estão envolvidos pelas mudanças epistemológicas que inseriram novos problemas (como a importância da narrativa dentro do discurso histórico), novas correntes de investigação historiográfica (como o estudo das práticas de escrita e leitura) e novos campos temáticos (como as pesquisas sobre o cotidiano e a vida privada) (PESAVENTO, 2004; PRIORE, 1997; MATOS, 2002; CHARTIER, 1988; GOMES, 2004). Essas transformações passaram a perceber os espaços e os atos que constituem o mundo privado como derivados de historicidade e produtores de história, portanto, fornecedores de significativos elementos sobre a produção da esfera íntima e de suas articulações com a vida social. 2 Em meio a esse novo front investigativo, os últimos dois séculos transformaram-se em faixas temporais privilegiadas, apesar de não exclusivas, para a observação das complexidades presentes nas construções física e simbólica dos espaços público e privado. Nesses séculos acentuaram-se: a separação entre os espaços de “produção das condições materiais de vida, daqueles de reprodução da existência”; a escala industrial de produção dos objetos e, em especial, dos objetos de identificação, como os espelhos, a fotografia e o cinema; a necessidade do indivíduo comprovar-se (e colecionar-se) ante aos crescentes desejos de disciplina e controle da injunção social; a discussão, produção e intervenção de novos modelos urbanos; os conflitos entre as idéias políticas e jurídicas sobre o lugar do O Arquivo Histórico de Monsenhor Horta encontra-se nas dependências do Instituto de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Ouro Preto, em Mariana. Em 1999 o autor desse artigo encontrava-se entre os membros da equipe responsável pelo início dos trabalhos de higienização e organização desse acervo. Utilizei parte das cartas privadas como base de estudo da minha monografia “São Caetano: cartas íntimas no início do século XX”, elaborada em 2003 na Universidade Federal de Ouro Preto, e da minha dissertação “Práticas missivistas íntimas no início do século XX”, defendida em 2007 na Universidade Federal de Minas Gerais. Duas informações: entre as 103 cartas privadas pertencentes ao arquivo 60 (ou 58,2%) foram produzidas nas duas primeiras décadas do século XX, o que acabou gerando o corte temporal da investigação; nos trechos de cartas apresentados nesse artigo respeitamos a grafia e a estrutura dos textos utilizados pelos seus autores, bem como abreviamos ou substituímos os nomes reais por nomes-fantasia. 2 Alguns trabalhos apresentados no II CIPA - Congresso Internacional sobre Pesquisa (Auto)biográfica - demonstram a diversidade do assunto, abrangendo áreas de conhecimento como a Educação, História e Psicologia: “Memória e narrativa em Clarice Lispector”, Fani Miranda Tabak (UESB); “Os Arquivos pessoais da cantora e compositora Maysa, a construção de uma (auto)biografia, um mito”, Valentina da Silva Nunes (UFSC); “Entornos urbanos, subjetividades e cidadania juvenil”, Martha Cecilia Herrera, Vladimir Olaya Gualterros e Diego Alejandro Muñoz Gaviaria (UPN – Colômbia); Informações disponíveis no site: http://www.2cipa.uneb.br/. Acesso em 04/09/2006. 1 212 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 sujeito no meio social; a ampliação da alfabetização; entre outros (PRIORE, 1997; ARTIÈRES, 1998). Segundo Ângela de Castro Gomes (2004), o estudo das cartas pessoais e de outros artefatos autobiográficos, produzidos nos últimos dois séculos, nos aproxima das tentativas de coexistência entre as concepções de “igualdade” e “liberdade” que perfazem as novas idéias sobre o “sujeito”: De um lado, a necessidade de uma eqüidade moral e política constrói a idéia de indivíduo “abstrato” e sujeito do contrato social, alvo imediato de críticas tanto do pensamento conservador (para o qual há desigualdade), quanto do socialista (para o qual essa igualdade é ficção). De outro, o princípio da liberdade, também fundamental ao referido contrato, guarda a idéia de indivíduo singular, ao mesmo tempo único em relação a todos os demais e múltiplo no que diz respeito a seus papéis sociais e possibilidades de realização pessoal. O indivíduo que postula uma “identidade para si”, uma imagem social coerente, é o mesmo que se exprime em “identidades parciais e nem sempre harmônicas” mediante as circunstâncias e a presença do outro. No rastro dessas construções e necessidades: A correspondência pessoal, assim como outras formas de escrita de si, expande-se pari passu ao processo de privatização da sociedade ocidental, com a afirmação do valor do indivíduo e a construção de novos códigos de relações sociais de intimidade (GOMES, 2004). Percepção reforçada por Contardo Calligaris (1998): Ora, se para o sujeito moderno falar de si responde à necessidade cultural imperiosa de reconstruir ao mundo e a si mesmo no silêncio deixado pelo ocaso da sociedade tradicional, a série de fórmulas de seus atos autobiográficos deve nos informar de maneira privilegiada sobre seu devir, sobre os caminhos pelos quais ele constituiu [...]. Nesse sentido, uma história da subjetividade moderna é impensável sem o auxílio dos atos autobiográficos. Em nosso país, a incipiente epistolografia não parece fruto de um desinteresse sobre o gênero epistolar, já que o mercado editorial vem alimentando o público com uma série de obras contendo coletâneas de cartas particulares de escritores, pintores, políticos e acadêmicos (MIRANDA, 1998; RILKE, 2001; AMARAL, 2001). Esse descompasso entre o interesse pela leitura de correspondências íntimas e a produção de análises sobre a prática missivista pessoal pode ser içado no texto de Zahidé Muzart (disponível em: www.rbleditora.com. Acesso em 10/08/2005): 213 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Comecei o presente trabalho, pesquisando o que haveria, teoricamente, sobre cartas, correspondência. Descobri que a bibliografia teórica sobre a epistolografia é muito pequena. Deve-se procurar a teoria pelo viés das biografias, autobiografias, diários, memórias. As discussões pertinentes ao ambiente epistolar, como reitera o excerto acima, encontram-se excessivamente coladas às teorias construídas para outros artefatos autobiográficos, como os diários e os livros de memórias. Essa observação, longe de ser excludente, indica que as pesquisas sobre as missivas ainda estão produzindo um campo singular e consistente de perguntas e apreensões. Enquanto diferentes artefatos culturais, os registros relacionados à dimensão autobiográfica, incluindo as cartas íntimas, apresentam distintos produtos, estilos, formas de consumo, funções sociais, interesses, finalidades, assuntos, circunstâncias e estrutura de composição. Com isso, formam um campo potencial e específico de trabalho para cada tipo documental. Em comum, os estudos sobre as práticas autobiográficas nos ensinam a pisar de uma forma mais cautelosa e crítica nos espaços íntimos dos atores sociais, ratificam a desconstrução do autor - enquanto entidade coerente e imanente -, do leitor enquanto ser passivo- e, como desfecho, fragilizam a dimensão literal do texto (CORBIN, 1991; CALLIGARIS, 1998, ARTIÈRES, 1998; SIMILI, (disponível em www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/Rev_a11.htm. Acesso em 20/12/2005). No Brasil, o crescimento e a aproximação entre as pesquisas realizadas sobre os missivistas de diferentes épocas poderão: ampliar o nosso conhecimento sobre os usos, as finalidades e as maneiras de construir esse tipo de escrita privada (rede de sociabilidade, padrões de correspondências, trânsito de valorações, pactos epistolares, observação de rituais, estratégias, formas de tratamentos); aumentar a nossa percepção sobre os trâmites (oficiais ou não) criados para a circulação das cartas e a diversificada produção de souvenires para atender os gostos dos consumidores e o mercado epistolar; e contribuir para uma percepção mais apurada sobre as ressignificações do íntimo e as inscrições do eu (PRIORE, 1997; FURTADO, 1999). 214 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 No entanto é nítido que um impulso maior a esse nicho de investigação esbarra em dois pontos. Primeiro: o cultivo privado e sigiloso que envolve esse tipo de artefato cultural. Cartas avulsas ou acervos contendo um número expressivo de missivas pertencentes a uma mesma pessoa (ou a uma mesma família) tendem a ser guardados, colecionados ou destruídos conforme os desejos dos seus proprietários. Raramente são doados. Segundo: a cobertura legal em torno desse tipo de documentação - efeito e preço dos embates realizados nos últimos séculos sobre as tentativas de demarcação das fronteiras entre as esferas pública e privada. No Brasil, esse tipo de acervo é juridicamente preservado pela Constituição, Código Penal e Direito Autoral. Segundo Eliane Vasconcelos (Disponível em: www.rbleditora.com. Acesso:10/08/2005): Do ponto de vista jurídico, o signatário detém o direito autoral da carta: o destinatário possui o direito material, ou seja, ele é dono do suporte, normalmente o papel, onde a carta foi escrita, e os dois são protegidos pelo direito à intimidade assim também como aqueles que são mencionados no texto em questão. O arquivo (público) apenas guarda a documentação. Por esta razão ele não pode autorizar a publicação de seu material, no que diz respeito aos dois direitos mencionados: o autoral e o da intimidade. O que requer do pesquisador a necessidade de manter-se informado sobre a legislação vigente e os “procedimentos que deve cumprir para ter seu trabalho publicado sem problemas legais”. Aos poucos, o interesse pelas análises das práticas missivistas íntimas contribui para a (re)oxigenação da história social da cultura, a auxilia em suas investigações sobre a construção do privado e das tessituras do self com o social. Como os historiadores ainda estão se habituando ao trato com esse tipo de fonte, o diálogo com outras áreas do conhecimento torna-se necessário, fronteiriço e enriquecedor. Envolvimento que permite ao historiador “vôos por outros territórios”, armando-o “de novos conceitos, armazenando também novos conteúdos, de acordo com a serventia que terão para resolver as suas perguntas” (PESAVENTO, 2004). Esse envolvimento não deve perder de vista que a sua questão é elaborada a partir do campo da História. Em relação à minha ótica, gostaria de evidenciar a importância de dois conceitos que ajudaram a minimizar a minha insegurança inicial ante ao trabalho com a prática epistolar privada: as noções de “performatividade” e de “expectativa de significação”. O primeiro conceito, identifiquei nos estudos de Roger Chartier 215 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 sobre os protocolos de leitura (dispositivos textuais inseridos no processo de produção dos livros). O segundo, identifiquei no trabalho de Patrick Charaudeau sobre a “encenação do ato de linguagem”, onde o autor realça as finalidades, as identidades dos parceiros e os meios utilizados para produzir a informação e a interação entre os sujeitos em uma determinada situação social. Ambos reforçam o questionamento das ideias reproduzidas no senso comum sobre o ar espontâneo e imanente dos textos fabricados nos espaços íntimos. Ao longo do texto, à medida que apresentar os conceitos, os adaptarei ao meu campo de estudo: as práticas missivistas. O peso do Outro. Tomando como referência as obras escritas ou organizadas por Roger Chartier, como “A história Cultural: entre práticas e representações”, “Práticas da Leitura” e “Formas e sentido. Cultura escrita: entre distinção e apropriação”, é possível identificar alguns avanços relacionados à observação dos diferentes elementos intra e extratextuais que envolvem a produção dos textos, entre eles, a importância dos protocolos de leitura (CHARTIER, 1988; 2009; 2003).1 Pensando a partir da realidade da produção dos livros, Chartier define os protocolos de leitura como dispositivos textuais adicionados pelo autor e pelas intervenções gráficas realizadas durante o processo de revisão, edição e impressão. Como o objetivo desses protocolos é direcionar a interpretação do leitor, eles acabam evidenciando uma “representação que [o autor e o editor] têm das competências de leitura” daqueles a quem destinam a obra; criam, portanto, uma certa expectativa de performance (interpretar conforme se sugere) (Chartier, Segundo Márcia Abreu, na corrente historiográfica, atenta à análise das práticas de escrita e leitura, propõe-se “[...] uma história da leitura que seja uma história dos diferentes modos de apropriação do escrito no tempo e no espaço – seja ele físico ou social –tornando-se por referência a ideia de que a leitura é uma prática criativa e inventiva (o sentido desejado pelo autor não se inscreve de maneira direta no leitor) resultante do encontro das maneiras de ler e dos protocolos de leitura inscritos no texto (grifo nosso) (apud. Chartier, 2003).” 1 216 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 2003).1 Os protocolos de leitura acrescentados pelo autor podem ser identificados no título, prefácio, dedicatória ou mensagens direcionadas aos leitores ao longo do livro. Quanto aos editores, as intervenções dos protocolos de leitura podem ser encontradas no aumento dos parágrafos, na abreviação ou supressão de certas passagens e na modernização da ortografia, “o que parece indicar que, pelo menos em relação a tais leitores, a articulação dos conteúdos nem sempre tem o primeiro papel no interesse prático da leitura (PÉCORA, 2009).” Nesse sentido, os protocolos transformam-se em interessantes “pistas” sobre as interpretações que o autor e o editor elaboram sobre os seus leitores. O prólogo da quarta edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, escrito por Machado de Assis, é um exemplo desse tipo de dispositivo textual: O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que êle chama ‘rabugens de pessimismo.’ Há na alma dêste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus modelos. É taça que pode ter lavôres de egual escola, mas leva outro vinho. Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto, que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo (ASSIS, 1970). Machado, antes que o leitor entre em contato com o texto do romance, tenta prepará-lo, o induz a identificar o sentimento pessimista que encontra-se subjacente aos capítulos, inclusive nas situações irônicas narradas no livro. Comparando esse prólogo ao texto intitulado “Ao leitor”, também presente nas primeiras páginas dessa obra, percebe-se que Brás Cubas (o “defunto autor”, como se define o produtor imaginário da obra), alfineta essa estratégia. Reconhecendo o teor sugestivo (e pedagógico) das informações dispostas nos prefácios, ele diz: “O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado (ASSIS, 1970).” Coisas machadianas: o autor defunto (Brás Cubas) critica Machado (o autor real). No campo das cartas íntimas, nicho principal desse artigo, é possível identificar a presença dos protocolos de leitura em textos intercambiados, por exemplo, entre pares (dois escritores que dialogam sobre um livro) ou entre A máxima “autores escrevem textos, editores produzem livros”, comum entre os pesquisadores das práticas de escrita e leitura, nos serve para lembrar que os protocolos criados pelo autor antecedem aos do editor. Quando estão separados por espaços ou tempos distintos (como no caso dos livros da Antiguidade Clássica) as intervenções protocolares encontram um campo maior de liberdade de ação. 1 217 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 negociantes (um pintor e um comprador de sua obra).1 Nas correspondências dos sujeitos qualificados como “comuns” esses protocolos podem ser identificados, por exemplo, nas referências a uma certa maneira de se ler trechos de uma correspondência enviada anteriormente, como nesse fragmento disposto abaixo onde a intenção do autor é reafirmar o seu comportamento de obediência aos pais. Peço-vos pois scientificar-me se recebeo [a última carta] nem só que é (sic) a maior tranqüilidade que tenho [é] em receber noticias nossas, como tambem assim saber se o meo Papae conforma-se com os meos diseres, e nada resolvo sem a opinião vossa e da mamae, pois não quero faser aquillo que vos não se conformar, quero sempre entrar em acordo com os meos Paes apesar de estar pelos lados estranhos [...] (grifo nosso).2 O protocolo de leitura, seja no livro ou em uma carta, pode ser definido como um dispositivo posicionado dentro de uma certa estratégia discursiva; ao expressar um desejo de performatividade a sua presença ajuda a desconstruir a aura espontânea e “essencialista” que ronda os textos fabricados nos espaços íntimos, já que evidencia o cálculo. Como afirma Michel Perrot (apud. SALOMON, 2002): As correspondências familiares e a literatura ‘pessoal’ (diários íntimos, autobiografias, memórias), embora sejam testemunhos insubstituíveis, nem por isso constituem os documentos ‘verdadeiros’ do privado [...]. Não há nada menos espontâneo do que uma carta, nada menos transparente do que uma autobiografia, feita para ocultar tanto quanto para revelar (grifo nosso). Mas essas sutis manipulações do esconder/mostrar nos levam, pelo menos, à entrada da fortaleza. Acredito que para compreender o papel das estratégias e das “sutis manipulações do esconder/mostrar” num texto missivista é preciso perceber a correspondência como um produto gerado dentro de uma “encenação do ato de linguagem”.3 Para Patrick Charaudeau (2001), o ato de linguagem (oral ou escrito) Ver o artigo “Ler um quadro – uma carta de Poussin em 1639”, escrito por Louis Marin, onde Poussin (o pintor) envia, além de um quadro, uma carta a Chantelou (que lhe encomendou uma tela) explicando a cena disposta na pintura (ângulos, personagens e significados) (Marin, 2009). A carta, ao servir como um guia de informações sobre a imagem, busca transmitir ao comprador uma forma de olhar e interpretar a obra. 2 Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Demóstenes Felinto para Álvaro M. Felinto. Belo Horizonte, 20/nov./1911, 2f, com envelope. 3 A lingüística, desde a década de 1960, vem tentando responder a questões alimentadas pelos interesses de outras áreas do conhecimento, como a antropologia, a sociologia e a psicologia social, 1 218 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 é realizado por sujeitos “que são testemunhas, mais ou menos conscientes, das práticas sociais e das representações imaginárias da comunidade a qual pertencem [...].” Ele pode envolver dois ou mais sujeitos como, por exemplo, no intercâmbio de uma carta (remetente e destinatário) ou numa reunião de vários operários. A encenação do ato de linguagem (o termo tem um sentido teatral) nos permite pensar os componentes, as estratégias e as “expectativas de significação” (interpretar conforme se sugere) criados durante a produção de um texto oral ou escrito. Essa encenação, segundo Charaudeau, estrutura-se a partir de dois ambientes interconectados: o “espaço do dizer” e o “espaço do fazer social”. O espaço do dizer é formado pela fala (oral ou escrita), onde são lançadas as expectativas sobre a possibilidade de realização de algo (de um tipo de leitura) e de convencimento do outro. No entanto, o espaço do dizer é apenas parte de um perímetro maior, o do fazer social. Num grupo de correspondências trocadas entre dois parentes, por exemplo, o que um diz ao outro deve ser visto somente como parte da “encenação do ato de linguagem”, já que as interpretações que ambos elaboram não se encontram necessariamente representadas nas falas: em geral elas são recalcadas (consciente ou inconscientemente) pelos cálculos e escolhas que acabam filtrando os seus textos (o que dizer?, como dizer?, como ele vai reagir?). Para Charaudeau, em toda encenação do ato de linguagem existe uma “relação contratual” formada basicamente por três componentes: o psicossocial, “concebido em termos dos estatutos que os parceiros são suscetíveis de reconhecer um no outro: idade, sexo, categoria sócioprofissional, posição hierárquica, relação de parentesco etc”; o comunicacional, que configura o “quadro físico da situação interacional: os parceiros estão presentes [em um mesmo ambiente]? [...] Que canal – oral ou gráfico – é por eles utilizado? [...]”; o intencional, conhecimento a priori que cada um dos parceiros possui (ou constrói para si mesmo) sobre o outro, de forma imaginária, fazendo apelo a saberes supostamente partilhados [...]”. sobre as condições de produção, a dimensão psicossocial e as expectativas produzidas no ato de linguagem. A partir desse período, a lingüística passou a ser estimulada (pressionada) a levar em consideração não apenas a “frase”, mas o texto e o contexto em suas análises. 219 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A interação entre os sujeitos pressupõe duas questões contidas no componente intencional acima definido: “o que está sendo colocado em questão, com qual intenção de informação?” e “De que maneira isso está sendo veiculado, ou, qual será a intenção estratégica de manipulação (de convencimento)? (CHARAUDEAU, 2001)”. No campo das cartas, a “relação contratual” nos permite pensar, por exemplo, as contradições apresentadas nos textos de um determinado missivista. Como um mesmo sujeito contém diferentes perfis identitários (ele pode ser ao mesmo tempo pai, comerciante, político, filho, amante, maçon), o peso do destinatário (do interlocutor) pode levá-lo a se expressar de maneira diferente conforme a circunstância (algo que é afirmado a um amigo, pode ser desmentido a um parente, por exemplo). Os trechos dispostos abaixo, extraídos de cartas trocadas entre dois amigos, nos parece impensáveis nas correspondências que um ou outro poderia por ventura encaminhar aos seus respectivos pais. Mudamos, agora vou sauber dos amigos. Como vai o nosso B. já cortou o bruto penachu que tem no cu e o J. o que tem feito, elle o nosso vizinho do Phillograma vai bem nao e? Já soube que são entireçado na firma Taqual, [...].1 Amigo José Lino, passo-te essas epístolas linhas para sabêr as tuas boas noticias, que as minhas até me acanho em dar-te, pôrque sou um desordeiro rancador de cabaço como dizem estes filhos das puta,[...].2 Como os elementos que constroem as relações contratuais modificam-se conforme o interlocutor (estou falando com o meu amigo ou com a minha mãe?), o desafio colocado para o remetente (pensando o campo das cartas) é o de manter uma linha coerente de princípios de pensamento. Quanto mais contraditório, mais as “expectativas de significação” sobre um determinado assunto são distintas já que pressupõem o uso de diferentes cálculos e estratégias. Charaudeau utiliza a imagem do “jogo” para exemplificar o “campo situacional da conversação”, onde a performance desejada almeja o convencimento (interpretar como se sugere). A carta, por ser um canal de comunicação que implica uma distância física entre os sujeitos envolvidos e por tentar representar AHMH. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. José Lino para Lindolfo Lemos, Passagem de Mariana, 02/jun/1916, 2f, com envelope. 2 AHMH. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. Lindolfo Lemos para José Lino, São Caetano, 25/fev/1917, 1f, rascunho. 1 220 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 um pequeno encontro (uma breve supressão dessa distância), é um exemplo singular da vontade de persuasão presente no jogo discursivo. Outros componentes nos ajudam a pensar a situação discursiva da produção dos textos missivistas e, como conseqüência, nos aproximam das estratégias discursivas e das possíveis “expectativas de significação”: o tempo (a época em que o texto foi escrito); os espaços (de onde se escreve?, para onde se escreve?); os suportes (que tipo de envelope e papel de carta foram escolhidos para a interação? Comuns? Especiais? Contém marcas, como o nome do autor em alto-relevo ou impresso, que permitem observar a vontade de diferenciação e individuação?); os estatutos que os sujeitos projetam um sobre o outro (tratam-se de parentes, amigos, profissionais, conhecidos, adversários, amantes?); os rituais a serem cumpridos (os acordos tácitos, como o compromisso de escrever dentro de uma determinada freqüência); o(s) assunto(s) abordado(s) (o remetente aborda um ou vários temas); as formas de tratamento estabelecidas (formais ou informais); o trâmite (foi transportada através do meio oficial ou de um portador informal); e o próprio gênero textual (composto como uma espécie de pequeno encontro, onde temos respectivamente as áreas de saudações, assunto(s) e despedida). A observação desses componentes (é possível que o leitor desse artigo elenque outros) é fundamental para que o historiador faça uma reflexão sobre as “regras” que permitem aparecer determinados enunciados (e não outros) no texto de uma carta (o que pode ser dito?, o que deve ser evitado?, quais são os limites?). A construção dessas regras - que buscam direcionar o olhar do destinatário - demonstra que a performatividade “não é um fenômeno da língua, mas, sim, um fenômeno que diz respeito à encenação do ato de linguagem” (Charaudeau, 2001). A performatividade depende da situação comunicacional e a sua apreensão pode ser ilusória se for tomado como referência apenas o texto oral ou escrito. Enfim, ao aproximarmos dos espaços de intimidade de um ator social, em vez de entrarmos num caminho que nos guia à sua “essência” encontramos um outro espaço complexo e de equilíbrio instável: o da construção de si. Finalizando, entre as expectativas de recepção e as recepções dos leitores existe uma distinção, já que a significação de um texto varia conforme as apropriações, as competências de leitura e as convenções disseminadas no texto 221 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 (CHARTIER, 2003). Por mais que o autor se esforce, o texto não reina sobre as interpretações, ele apenas inicia um ritual de ressignificações. Considerações finais. Nesse artigo enfatizamos que o contraponto entre o interesse pela leitura de documentos autobiográficos, como as cartas íntimas, e a produção de pesquisas sobre a prática missivista demonstra o estágio promissor, mas ainda incipiente da epistolografia em nosso país. Essa é a realidade inicial que se abre aos investigadores que tentam problematizar a partir de tais fontes. Somam-se às dificuldades de contar com um pequeno arcabouço teórico, os limites técnicos referentes a observação das situações e condições de produção das cartas: primeiro, a impossibilidade de equivalência simétrica entre linguagem e realidade; segundo, o fato do texto oral ou escrito não apresentar todos os elementos que compõem o conjunto da encenação do ato de linguagem, ele é apenas parte. Portanto, longe de nos encaminhar aos espaços de revelação do ser, como pensavam os clássicos ou os românticos, os registros autobiográficos nos aproximam da percepção de que o self se constrói a partir de processos de seleção, montagem e exposição, além da leitura feita pelo outro. A carta íntima, não esqueçamos, é também um produto! 222 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 FONTES PRIMÁRIAS. Arquivo Histórico de Monsenhor Horta. Série Correspondências. Sub-série Correspondências pessoais. 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That means the appearing of a new temporal conception that updates again the historicities of the social movements. Keywords: Post-modern, history, dialetic, reason, historicity. Podemos iniciar nossa argumentação amparando-nos numa obra que representa bem o que significou a história para o século XIX: A razão na história, de Hegel. Com ela já temos uma idéia da presença do historicismo no pensamento desse século. Mesmo quando identificamos algumas correntes contrárias ao historicismo hegeliano – como a Escola Histórica Alemã, que se colocava em oposição à herança hegeliana -, podemos afirmar que só após a Segunda Guerra Mundial o historicismo dá lugar a outras formas de abordagens históricas. Nessa obra de Hegel, o devir e o universal acabam por impregnar toda uma visão de mundo. “O que o homem é realmente, deve sê-lo idealmente”; “o homem se determina de acordo com o universal” - eis o viés que Hegel vê o homem e sua determinação. O Pensamento como forma e expressão do historicismo dá uma segurança para o homem e a própria filosofia se elege como guardiã desses momentos que marcam o contexto do homem. Se ocorre o esfacelamento de 226 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 determinado “espírito particular (a cultura de um povo)”, por outro lado algo permanece porque o “espírito particular” é uma marcha geral do Espírito Universal. O particular sempre está amarrado a um Universal, em Hegel. Mas o principal desafio de Hegel é dar conta da “harmonia dilacerada da vida moderna”. Como propõe a análise de Habermas, Hegel vê os tempos modernos através de uma estrutura de auto-relação - a “subjetividade”. Esta última é um sinal de que “a consciência do tempo se destacou da totalidade e o espírito se alienou de seu si” (HABERMAS, 2000, p. 31). Assim, em Hegel a razão surge como um poder unificador que deve superar este estado de cisão efetuado pelo princípio da subjetividade. Essa ameaça tão presente em Hegel agora está de volta. Provavelmente ela nunca tenha se ausentado. Essa modernidade, hoje, nos leva a um campo onde as definições não conseguem mais abarcar tudo aquilo que ocorre. “Esgotamento das energias utópicas” (na expressão de Habermas) que obriga a história a se refazer, quando não temos a própria racionalidade histórica posta em questão. O retorno dessa ameaça da modernidade está presente em diversos pensadores. Jean-François Lyotard denomina de “idade pós-moderna” o período que sucede aos anos 1950. Mas há uma afirmação de Gianni Vattimo que parece fundamental para os objetivos desse artigo. Em A sociedade transparente, ele comenta que a modernidade se encerra quando não é mais possível falarmos de uma história como algo unitário, já que essa “antiga” visão da história implica na existência de um centro onde se reúnem e ordenam os acontecimentos (VATTIMO, 1990, pp. 74, 75). Se tomarmos essa afirmação como correta, então podemos afirmar que houve um apagar da razão histórica e uma fragmentação das historicidades sem que uma nova razão histórica pudesse lhe dar conta. É nessa linha de raciocínio que pretendemos desenvolver nossa argumentação. RAZÃO MODERNA E HISTÓRIA Na leitura hegelo-marxista de Kant, este último é inserido como um primeiro momento do pensamento dialético. Tanto Marcuse quanto Lukács 227 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 concebem em Hegel o momento de nascimento da dialética moderna. Mas Kant surge nessa perspectiva como uma espécie de “pano-de-fundo” que dá legitimidade ao nascimento do hegelianismo de esquerda. Então, temos um Kant que se situa na origem dessa forma de evolução do pensamento dialético, coroado, logo depois, com o materialismo dialético de Marx. Em Lukács, Kant é concebido em sintonia com o momento histórico do século XVIII. Como é bem típico em Lukács, o fundamento último para se entender um pensador está nas contradições históricas de sua época. Por isso Lukács vê em Kant a expressão da mais intensa crise da filosofia de fins do século XVIII. Em Kant já temos um despontar do pensamento dialético; mas isto é só um sinal, já que o pensamento metafísico ainda persiste como instância determinante para a crítica filosófica. A contradição (em Kant) torna-se um problema limite e que demarca a fronteira irrealizável de nosso pensamento. A idéia (revolucionária para a época) de evolução não atinge ainda a filosofia kantiana; há em seu sistema uma preponderância da “estática classificatória da biologia”: [...] a evolução é para Kant, de forma conceptual, inexistente. Não há mais que classificação ou especificação de acordo com o pensamento: ascende-se do particular ao geral ou se dirige do geral para o particular. Isto significa que a indução e a dedução, que até então se apresentavam sem qualquer conexão, e até como tendências filosóficas rigidamente separadas (pensemos em Bacon por um lado e Spinoza, por outro), aparecem como métodos coordenados (LUKÁCS, 1965, pp. 22, 23). Assim, Lukács já percebe em Kant um despontar da dialética, bem como uma oscilação entre materialismo e idealismo. O mundo objetivo - com sua formação e ordem - é negado por Kant; a ordem nas coisas é conseqüência de categorias do sujeito transcendental. Para Lukács, a razão que Kant proclama se aproxima do agnosticismo: “Nosso uso da razão não pode consistir mais que pôr um limite ao entendimento” (Ibid., p. 26). Há, então, nesse agnosticismo de Kant uma bancarrota da ciência. Mesmo que no filósofo alemão possamos encontrar um crescente aperfeiçoamento do conhecimento dos fenômenos, ainda assim persiste a incognoscidade no princípio das coisas. Há em Kant um agravamento do subjetivismo, bem como do agnosticismo: “O agnosticismo domina todo o âmbito da ciência, todos os seus 228 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 problemas concretos e todas as suas soluções concretas; o método inteiro se resume num claro subjetivismo (Ibid., p. 29). Assim, o que em Kant é objeto de crítica por parte de Lukács, será nos pensadores da condição pós-moderna um elemento positivo. Essa “liberdade” meio solta (sem definição) referente às coisas singulares também é criticada por Lukács: “Por isso, toda diferenciação, toda especificação da realidade; em resumo, todo o particular e, ainda mais, todo o singular, tem necessariamente que parecer casual (Ibid., p. 30). Eis o motivo de Kant estar no início do pensamento hegelo-marxista, bem como da possibilidade de sua saída. Entre os hegelo-marxistas e os pensadores da pós-modernidade, há uma inversão de valores ao se tratar do pensamento kantiano. O que neste último era reprovável, agora passa a ser um momento positivo. Nesse percurso que vai do dualismo kantiano à dialética marxista, a lógica hegeliana representa um passo importante. Do momento subjetivo da filosofia kantiana passa-se, no exemplo de Hegel, para o idealismo objetivo. Isto quer dizer que a própria razão adquire um sentido (filosófico) diverso daquele empregado por Kant. Em Hegel, a própria história é concebida como razão; não há uma particularização desta (mesmo como um instante do universal), mas uma apreensão da realidade histórica como um critério da razão. A Revolução Francesa mostrou que “o homem se dispôs a organizar a realidade de acordo com as exigências do seu pensamento racional livre, em lugar de simplesmente se acomodar à ordem existente e aos valores dominantes” (MARCUSE, 1969, pp. 17, 18). O mundo, em Hegel, tornar-se uma ordem de razão; entre este mundo e o próprio homem a diferença começava a desaparecer, pois o homem veio a confiar em seu espírito e submeter a realidade aos critérios da razão. A realidade histórica adquiria novo status epistemológico porque agora está submetida ao “pensamento racional e livre”. E foi a Revolução Francesa, segundo Hegel, que proclamou o poder definitivo da razão sobre a realidade. Mas de forma diversa do Iluminismo francês - que considerava a razão como uma força histórica e desejava que ela triunfasse sobre a irracionalidade social - Hegel crê que a razão não pode governar a realidade “a não ser que a realidade se tenha tornado racional em si mesma” (Ibid., p. 19). Entre o pensamento (racional) e a realidade histórica ocorre um conflito. O 229 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 primeiro tem uma ação destrutiva – que implica na atividade autoconsciente do homem – e que tende a elevar a forma social para um “universal”. Não há progresso histórico sem antes um progresso do pensamento. O conceito das coisas (que descobre o pensamento) leva o homem a ultrapassar o valor aparente dessas mesmas coisas. Nesse horizonte, “as condições vigentes surgem como particularidades limitadas que não esgotam as potencialidades das coisas e dos homens” (Ibid., p. 219). Há progresso, então, nessa filosofia da história de Hegel. É um progresso em direção à autoconsciência da liberdade. A transformação histórica equivale a um progresso para algo mais perfeito. Vê-se nessa interpretação a existência de uma “potencialidade lutando por realizar”. Para Lukács, em Hegel há uma sobrevalorização do papel do pensamento em detrimento do “ser social”. Isto equivale, obviamente, a um elemento de “defesa histórica” da revolução burguesa. Lukács identifica um Hegel idealista, deformador dos fatos. Mas ao mesmo tempo, existe um Hegel progressista que em sua dialética do universal/particular, dá um salto importante se comparado aos seus predecessores: “(...) as idéias básicas dessa dialética não são meros esquemas formalistas, senão sérios intentos de apreender os momentos reais da evolução histórica (LUKÁCS, 1965, p. 56). Ainda segundo Lukács, quando Hegel permanece fiel ao método dialético é o particular que luta até o final com o particular; ele concebe a história como real e feita exclusivamente pelos homens. Mas o conflito de interesses nos homens surge mediado por uma universalidade que se faz “repentinamente transcendente, se mistifica idealísticamente, aparece em um além das lutas humanas, do processo fático histórico (Ibid., p. 58). A Idéia universal se põe a salvo das lutas e contradições da vida social. É a chamada “astúcia da razão” que utiliza a particularidade (que implica em “vida infeliz”, “trabalho árduo”) individual para realizar seus desígnios. A “verdade” e a “liberdade” são sustentadas pelo fracasso do homem. O sujeito da história, assim, está no espírito do mundo (weltgeist). Ele não é uma entidade metafísica, mas se materializa no Estado – realiza a liberdade no Estado: “Ele não existe separado destas realidades e atua por meio destes agentes e destas funções. A lei da história, que é representada pelo espírito do mundo, atua, 230 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 portanto, por trás e acima das cabeças dos indivíduos, sob a forma de um poder anônimo irresistível” (MARCUSE, 1969, pp. 212, 213). É, portanto, essa idealização da razão moderna – subjetiva em Kant e objetiva em Hegel – que Marx critica. A totalidade em Hegel é diversa da totalidade em Marx. No primeiro, a totalidade era uma “totalidade da razão”, um sistema ontológico fechado que se identificava com o sistema racional da história. Em Hegel, a história se dá sobre um sistema metafísico do ser. Marx elimina essa condição metafísica e coloca a negatividade dialética na realidade e a torna uma condição histórica. A negatividade em Marx está nas relações de classe. O método dialético se transforma no próprio método histórico. Além do mais, a crítica marxista (especialmente a de Lukács e Marcuse) vê na dialética hegeliana avanços consideráveis, mas lamenta que a historicidade dessa dialética só compreenda um movimento (histórico) que vai do passado ao presente. Marcuse identifica de forma precisa essa face conservadora do hegelianismo; afirma que sua “filosofia da história” termina na sociedade burguesa e que os períodos da história “aparecem como estágios necessários na realização da forma de liberdade daquela classe (a burguesia)” (Ibid., p. 209). Assim, a dialética hegeliana não está fundamentada a ponto de transcender a sociedade capitalista. Suas idéias filosóficas sofrem uma espécie de traição na medida em que sua doutrina política entrega a sociedade à natureza, a liberdade à necessidade e a razão ao capricho. Com Marx, o próprio idealismo que deformava os problemas sociais cai por terra. A universalidade de Marx representa uma abstração derivada da realidade mesma; ela só se converte em pensamento correto quando a ciência reproduz de forma adequada a evolução viva da realidade em seu movimento. A dialética histórica de Marx mostra que a negatividade da realidade é uma condição histórica; ela (a negatividade) é uma condição social associada a uma forma histórica particular de sociedade. As relações de classe correspondem a essa negatividade; são elas que representam as contradições desta dialética (concreta). História e dialética não se separam – o método dialético torna-se o método histórico. Portanto, como afirma Marcuse, a dialética marxista concebe o fato através de sua superação: “Um dado estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pela libertação das possibilidades a ele inerentes” (Ibid., p. 285). 231 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A verdade da história só é percebida pelo “novo estado” que não surge automaticamente, mas é fruto da “ação autônoma dos homens”. A verdade assume uma forma transcendente: de uma realidade histórica para outro estágio, também histórica. É uma transcendência histórica, portanto. Se Marx concebe o momento atual como uma pré-história representada pela sociedade de classes, então o transcendente corresponde a uma nova estrutura social onde o homem tornar-se-ia um “sujeito consciente do seu desenvolvimento”. No estágio atual da sociedade de classes, o homem é esmagado por forças econômicas que configuram “contradições inerentes” a esta mesma sociedade. Na sociedade de classes encontramos a necessidade; daí as transformações operarem com base num fundo correspondente às contradições internas. A passagem do capitalismo para o comunismo só é necessária se responder à tarefa do pleno desenvolvimento do indivíduo. Essa nova história equivale à “realização da liberdade e da felicidade” dos indivíduos, onde a sociedade livre e autoconsciente deixa de ser uma “entidade objetiva, independente”. A CRISE DA RAZÃO HISTÓRICA Para efeito de nossa hipótese, vamos partir de uma afirmação de Maurice Merleau-Ponty que encontramos n’As aventuras da dialética (cuja primeira edição é de 1955). Ao se referir à idéia de revolução, afirma: “Esse marxismo que continua verdadeiro faça o que fizer, que prescinde de provas e de verificações não era a filosofia da história, era Kant disfarçado e foi, enfim, Kant que encontramos no conceito de revolução como ação absoluta” (2006, p. 306). Para Merleau-Ponty, o problema real está na dialética, pois só ela pode gerar uma forma de transcendência que se possa designar de verdadeiramente revolucionária. Na dialética ocorre esse possível dos “relacionamentos em dois sentidos”, de “verdades contrárias e inseparáveis”, de superações e uma gênese perpétua, de uma pluralidade de planos ou de ordens. Nesse espaço de trocas e inserções recíprocas há a possibilidade da ocorrência da dialética. Assim como o Sartre da Questão de método, As aventuras da dialética procura pensar a derrocada do comunismo (real) e reascender a possibilidade de uma retomada histórica na perspectiva da dialética. 232 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 A dialética, ainda na concepção de Merleau-Ponty, oferece a “coesão global, primordial, de um campo de experiência em que cada elemento abre para os outros. Pensa a si mesma sempre como expressão ou verdade de uma experiência (...)” (Ibid., p. 268). Assim, o todo não é constituído pelo pensamento dialético; é este que está situado naquele. Nessa concepção, o próprio conceito de revolução adquire em Merleau-Ponty uma configuração inédita, nova. É preciso enxergar “a história que aconteceu” - Merleau-Ponty refere-se à história da Revolução Francesa – “o que os outros inventaram fazer na conjuntura, inspirados no espírito revolucionário, mas também levando em conta o “reflexo” e, portanto, com seus preconceitos, tiques, manias e também, eventualmente, seu lado “partidários da ordem” (Ibid., p. 282). Então, se a história é maturação, desenvolvimento objetivo, é Robespierre quem tem razão contra as possíveis soluções radicais. A reflexão de Merleau-Ponty nos leva a entender a história de uma forma menos absoluta, sendo que a própria revolução tem agora, de forma quase endógena, uma inércia. A revolução nunca desvendará a história, nunca aparecerá de forma clara. Merleau-Ponty é precavido em suas conclusões; ou melhor, essas conclusões não existem. Ele sonda a história e o aparecimento das revoluções com a experiência de suas “derrotas” ao lado. A filosofia da história não se arroga mais a fornecer um modelo evolutivo das transformações sociais, mas ao mesmo tempo não abandona os esforços em compreender a história. É nesse meio-termo que se posiciona Merleau-Ponty. É a dialética que lhe fornece esse ponto de apoio. Embora suas análises se situem numa fase anterior ao aparecimento da condição pós-moderna, ele já vislumbra essa possibilidade. Deseja realizar uma revisão do pensamento revolucionário após a crise do comunismo. Em relação à Revolução Francesa, houve um aborto, um retrocesso; houve também um retrocesso na Revolução Bolchevique. Esse fracasso da revolução está na própria revolução. Não há uma classe (ou grupo) que poria o carro revolucionário em sua trajetória ideal: “A revolução e seu fracasso comporiam um único todo” (Ibid., p. 288). Então, os acontecimentos históricos mostraram que havia uma idealização na concepção da revolução, bem como na filosofia da história. Portanto, nas análises de Merleau-Ponty há uma negação do desenvolvimento objetivo da história. Entre o passado e o presente surgem ocorrências que a filosofia da história não dá mais conta: “(...) vínculos vagos, 233 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 contaminações, identificações que cruzam as relações de filiação dadas ou voluntárias, uma espécie de apagamento ou de amortecimento do passado real” (Ibid., p. 289). Merleau-Ponty se aproxima do paradoxo nietzschiano: há progresso com desaceleração e perda. O avanço histórico é, também, estagnação da história. Deixa-se de aparecer uma particularidade das várias revoluções – “toda revolução é a primeira”, afirma ele. Há, isto é verdade, um mínimo de justiça exigível que aumenta. Mas a grande revolução que recria a história é sem fim e “os progressos históricos não podem ser somados como os degraus de uma escada” (Ibid., p. 290). O que transparece dessa análise de Merleau-Ponty é o poder (ou coragem) de encarar a história como “ambigüidade”, como algo relativo e entender que nesta mesma história, “vitória e fracasso formem um único todo”. Então, há uma verdade das revoluções que não concorda com a imagem (ou saber) que elas fazem de si. Essa mesma inquietação de Merleau-Ponty e que se traduz em um desejo de representar uma nova temporalidade à luz do “fracasso” revolucionário, encontrase também em Cornelius Castoriadis. Neste, já presenciamos a intenção de pensar a história fora do esquema hegelo-marxista. Castoriadis comenta sobre a possibilidade de se alcançar uma nova perspectiva. Acima de tudo, a história é concebida por ele como uma “questão de emergência da alteridade radical ou do novo absoluto”. A questão principal, nesse contexto teórico, é pensar o novo objeto sem uma subordinação às significações e às determinações já adquiridas. Castoriadis faz uma ampla retrospectiva da tradição filosófica ocidental e mostra (principalmente em Aristóteles e Platão) que esse “novo” foi encoberto, oculto e marginalizado. Há, nesse sentido, uma impossibilidade do pensamento em tematizar esse “novo”. O que ele denomina de “pensamento herdado” contém dois limites. São limites da “lógica-ontologia identitária” e que indica a impossibilidade de se pensar a criação ou a gênese que não seja simplesmente devir, geração ou corrupção. Tanto o social quanto o histórico são dotados de um princípio inédito do ponto de vista ontológico: “O que o social é, e a maneira pela qual é, não tem análogo” (CASTORIADIS, 1982, p. 217). O exemplo do social mostra que ele não pode ser pensado através da “lógica herdada”. Para Castoriadis esse social representa uma espécie de magma, “uma diversidade não conjuntizável” ou em 234 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 termos filosóficos: “O ser só é sempre ser dos entes e que cada região dos entes desvenda uma outra face do sentido do: ser” (Ibid., p. 218). Nesse sentido, opera-se uma fratura na concepção de tempo. A emergência da alteridade radical como princípio ontológico em si faz com que toda herança do pensamento herdado não mais satisfaça como categoria que apreende a realidade histórica. O pensamento herdado não consegue mais compreender a história, pois esta é “criação imanente, novidade não trivial”. O que Castoriadis acentua em contraposição à temporalidade tradicional é uma noção de tempo que revoluciona a própria lógica-identitária: Só existe tempo essencial, tempo irredutível a uma “espacialidade” qualquer, tempo que não seja simples referencial de reconhecimento, se e na medida em que há emergência da alteridade radical, criação absoluta – isto é, na medida em que o que emerge não está, no que é, seja “logicamente” ou como “virtualidade”, já constituído, em que não é atualização de possíveis predeterminados (...) (Ibid., pp. 225, 226). Como pensar, então, um tempo desse porte? Como conceber um tempo que é, ele mesmo, o “aparecimento de determinações”? Eis aqui os desafios do pensamento de Castoriadis: pensar a história como “tempo de alteraçãoalteridade”. Desaparece, nesse horizonte da reflexão, o “tempo” como uma ordem de sucessões. Nota-se que Castoriadis coloca aspas nesse tempo; no fundo ele não é o tempo mesmo, mas uma expressão da lógica-identitária que expulsou o verdadeiro tempo para uma marginalidade qualquer. Sem a emergência do outro, de “figuras outras”, não há possibilidade de haver o tempo. Assim, não há um tempo puro, mas um tempo com aquilo que se faz ser pelo tempo. E para justificar seus argumentos, Castoriadis resgata as fontes daquilo que ele denomina de “lógica identitária-conjuntista”. Esta concebe (ou cria) uma temporalidade que só pode ser decadência ou imitação imperfeita da eternidade (Cf. Platão). No interior desse pensamento herdado a criação é impossível pois “o mundo criado não pode manter-se no ser, ele não é ontologicamente autárquico, ele se apóia no único ser ao qual “nada falta para existir” ” (Ibid., p. 233). Eis por que surge a grande questão para Castoriadis, ou seja, o mundo histórico-social “sofre um encobrimento total” de tudo aquilo que ele é de fato. Em caso contrário, haveria uma destruição da “determinidade do ser e a idéia do ser como determinidade, que deve necessariamente transacionar-se em imutabilidade, 235 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 inalterabilidade dos eidé como totalidade, sistema e hierarquia fechados e determinados, excluindo que se possam aí introduzir outros eidé (...)” (Ibid., p. 234). Assim, a ruptura que a contemporaneidade realiza implica no aparecimento de “figuras outras”, de “determinações outras”, numa gênese lógico-ontológica. Ou como afirma Castoriadis, “pensar o que é como temporal exige pensá-lo como fazendo ser modos de ser (e de pensamento) outros” (Ibid., p. 237). É a própria história que “reduz a nada” tudo que sabemos (ou que foi dito) do ser. Essa história trava uma batalha de morte com o pensamento herdado. Mas, dessa forma, como conceber essa concepção de tempo que o pensamento herdado nos legou? Qual sua função de fato? Aqui se concentra uma das grandes contribuições de Castoriadis e que implica em mostrar que esse “tempo” faz parte da instituição imaginária da sociedade como tempo identitário. Não se trata, portanto, de uma ruptura que a contemporaneidade realiza nessa temporalidade. Não é uma passagem condicionada pelo tempo. É um fato (observar que Castoriadis expressa seu pensamento como descoberta, afirmação, tese) que contrasta e permite com que surja um pensamento sobre essa institucionalização da sociedade. Essa visão sociológica (e até antropológica) que Castoriadis lança sobre a formação social não parte de uma configuração intelectual sancionada – como o campo sociológico, por exemplo -, mas de uma ruptura, de um pensamento radical que tem como desafio conceber o tempo como gênese lógico-ontológica, de “pensar o que é como temporal (...), fazendo ser modos de ser (e de pensamento) outros” (Ibid., p. 237). Essa história, em si, reduz a nada tudo o que alguma vez foi dito sobre o ser e a necessidade de pensá-lo. Segundo essa exigência de Castoriadis, cai por terra o pensamento filosófico pois ele também é concebido (assim como outras instâncias que apagam ou anulam o tempo verdadeiro) como instituição que institui o tempo como identitário. Em contraposição a esse tempo identitário, há o tempo da alteridadealteração: O presente, o nun, é aqui explosão, cisão, ruptura – a ruptura do que é como tal. Este presente é como originação, como transcendência imanente, como fonte, como surgimento da gênese ontológica (Ibid., p. 238). 236 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Nota-se, nessa passagem, que o autor indica a “transcendência imanente” como uma característica desse tempo da alteridade-alteração. Esse tempo é em si revolucionário; não realiza algo, mas realiza sempre, incessantemente. Ele não cria uma transcendência na história, mas pela história, com a história. E na medida em que surge a instituição social-histórica, ocorre uma demarcação comum ou coletiva do tempo. O social-histórico é a origem incessante de alteridade que figura e se figura; ele comporta sua própria temporalidade como criação e “temporalidade específica que é cada vez tal sociedade em seu modo de ser temporal que ela faz ser sendo” (Ibid., p. 241). A instituição fixa, enrijece e escande essa temporalidade; na instituição a temporalidade “se inverte em negação e denegação da temporalidade”. Assim, o social-histórico é o movimento da auto-alteração e que só pode ser dando-se figuras “estáveis” através daquilo que se torna visível. Nesse sentido, em Castoriadis, bem como em Merleau-Ponty, há um questionamento da razão histórica herdada do Iluminismo. Estamos às portas do pós-moderno, já que uma nova concepção da história se avizinha. O acontecimento adquire um novo estatuto. Para nosso objetivo, as reflexões de Merleau-Ponty são particularmente interessantes porque se situam num período crítico, ou seja, a fase imediata ao pós-Segunda Guerra Mundial, onde se inicia o questionamento de padrões até aqui adotados. Trata-se de uma época onde ocorre uma virada do pensamento ou, pelo menos, uma tentativa de um novo posicionamento mais aberto e menos rígido de categorias importantes como a história, a revolução, a dialética, etc. Isto pode ser comprovado nas Conversas-1948, onde Merleau-Ponty já antevê uma nova fase para o pensamento ocidental: Podemos e devemos analisar as ambigüidades de nosso tempo e tentar, por meio delas, traçar um caminho que possa ser mantido com consciência e dentro da verdade. Sabemos porém demais a esse respeito para retomar pura e simplesmente o racionalismo de nossos pais (MERLEAU-PONTY, 2004, p.73). Esse questionar que Merleau-Ponty aciona não representa uma dissolução de conceitos até então herdados (uma queda no niilismo), mas a busca de um novo paradigma. Daí o por que dele contrastar o clássico com o moderno. Esse último implica em reconhecer a ambigüidade das coisas e em não “preferir a palavra razão ao exercício da razão”. Esse moderno que Merleau-Ponty indica, corresponde 237 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 a um conhecimento (e reconhecimento) da “incompletude e a ambigüidade em que vivemos” (Ibid., p. 74). Há toda uma intenção do filósofo em deixar o pensamento em suspenso, aberto, tenso. Ele crê que uma nova verdade – que é a verdade em si, a coragem em reconhecer essa ambigüidade e incompletude das coisas – nasce nesse período. Isto não é decadência, mas “consciência mais aguda e mais franca do que sempre foi verdade, portanto, é aquisição e não declínio” (Ibid., pp. 74, 75). Consciência do filósofo de uma fase de transição. Mas ao mesmo tempo, crença em que uma nova verdade ou paradigma possa surgir: A verdade é que o problema para nós é fazer, no nosso tempo e por meio de nossa própria experiência, o que os clássicos fizeram no tempo deles, (...) (Ibid., p. 76). Podemos enxergar no pensamento de Merleau-Ponty, em especial nesta fase inquietante do pós- Segunda Guerra Mundial, um despertar do conceito de pósmoderno. Já há um clima intelectual propício para tal inquietação epistemológica; um reconhecimento da crise daquele padrão de pensamento que havia nascido com o Iluminismo. A IMANÊNCIA HISTÓRICA Se a temporalidade é uma modalidade do sentido que deriva do tempo, que nova temporalidade – se assim crermos na condição pós-moderna – emergiu da época atual. Os indícios do pensar sobre essa temporalidade podem ser identificados em alguns pensadores. Jean-François Lyotard, por exemplo, identifica essa temporalidade como um tempo desmoronado, onde a “síntese totalitária” não tem mais lugar. Há, na sua apreciação, “cesura” onde se alternam instantes de entusiasmo e melancolia. Não eliminamos mais os estados contraditórios, ou melhor, eles não podem ser mais exorcizados em proveito de um sentido da história. Dessa “cesura” que a época atual nos legou, Lyotard redescobre outros modos de narração onde a imanência emerge como instância primeira. Há um julgamento que parte de lugar nenhum e que fala em nome de nada e de ninguém. Como o próprio Lyotard comenta, ela é uma “imanência necessitante e necessitada”. 238 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Mas que estranha temporalidade é esta que se assemelha à melancolia? É que ainda vivemos da lembrança do sentido histórico anterior. A melancolia pode ser entendida como uma nova temporalidade que não sabe ser sentida como tempo renovado; o homem teme abandonar a dimensão transcendental que outrora lhe concedia o gosto do absoluto. Sem a transcendência a reconciliação não surge mais como uma promessa, convive-se a todo o momento com um imanente que assombra. Como o próprio Lyotard assinala, a vanguarda transforma-se no “marginado” e não mais no “marginalizado” - este último como um produto do sistema; o primeiro surge como tomada de posição que não ausenta a “solidão desolada”. Em uma era onde todas as questões acharam uma resposta do discurso da tecnociência, só nos resta, então, “o sentimento melancólico de nosso ser-aí” (Apud GUALANDI, 2007, p. 152). Observando com atenção essas idéias de Lyotard, podemos perceber que não estamos distantes de Nietzsche ou de Michel Foucault. A proposta da genealogia nietzschiana parece que se converte na própria prática do saber no pósmoderno. Assim se expressa Foucault: A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imagina em conformidade consigo mesmo (FOUCAULT, 1979, p. 21). Ao destruir o próprio sentido histórico, a história genealógica tem como meta essa práxis da destruição, da fragmentação e do mostrar a história (portanto, a construção, a interpretação arbitrária) “efetiva” que não se apóia em nenhuma constância: “Tudo em que o homem se apóia para se voltar em direção à história e apreendê-la em sua totalidade, tudo o que permite retraçá-la como um paciente movimento contínuo: trata-se de destruir sistematicamente tudo isto” (Idem). O empreendimento de Foucault, portanto, parece levar ao extremo tudo aquilo que em Nietzsche representava uma crítica à razão centrada no sujeito: “Os desvelamentos feitos na teoria do poder enredam-se, assim, no dilema de uma crítica auto-referencial da razão que se tornou total” (HABERMAS, 2000, p. 140). O que permanece como fundamento de análise em Foucault é o diagrama. Esse, sim, age como uma “causa imanente não-unificadora, entendendo-se por todo o campo social” (DELEUZE, 2005, p. 46). Como uma “máquina abstrata”, o diagrama é a causa dos agenciamentos concretos que se produz no tecido social. O 239 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 movimento do diagrama, sua lógica, está no efeito que o atualiza, integra e diferencia. “Há correlação, pressuposição recíproca entre a causa e o efeito, entre a máquina abstrata e os agenciamentos concretos” (Idem). Ao se tratar do diagrama, mais que produção, temos a “atualização”. Reprodução de relações de forças (ou de poder) que são apenas potenciais, instáveis, evanescentes, antes de entrarem num conjunto macroscópico. Assim, nessa “atualização” há uma integração num duplo sentido: progressivo e diferencial. Progressivo que vai do princípio local até o global, “operando um alinhamento, uma homogeneização, uma soma de relações de força”; diferencial porque a multiplicidade diagramática atualiza-se tomando caminhos divergentes e repartindo-se em dualismos: É precisamente porque a causa imanente ignora as formas, tanto em suas matérias como em suas funções, que ela se atualiza segundo uma diferenciação central que, por um lado, formará matérias visíveis e, por outro, formalizará funções enunciáveis (Ibid., p. 47). O assombro diante dessas quebras de causalidades, diante dessas imanências móveis, se consuma ainda mais quando procuramos entender as abordagens de Jacques Derrida. Aqui, o mundo é apreendido através de uma filosofia da linguagem. Mas é uma filosofia que nada mais significa que “gramatologia” - uma ciência da escritura. O texto é liberto do contexto de origem e a escritura ganha autonomia tanto em relação ao autor, quanto ao objeto de que fala. Assim, essa autonomia da escritura garante que o texto possa ser lido de diversas maneiras, em diversos contextos. Há em Derrida, sem dúvida, um trabalho de corrosão da razão, bem como do significado de todo o saber. A força transcendental (Husserl) é negada para se afirmar “a produtividade da escritura, anônima e fundadora da história” (HABERMAS, 2000, p. 250). A virada desse saber que pretende desempenhar os trabalhos de Derrida nos desloca, assim, do logos para a ècriture. Descobre-se um imanente – a escritura – que é errante, alienada de seu sentido próprio, exilada. Mas o problema permanece, na medida em que a crítica da razão dominadora não recorre mais aos meios dessa própria razão. É aqui que Habermas se detém na crença de uma razão comunicativa que salva a razão da corrosão pósmoderna. Nietzsche, Adorno, Heidegger e Derrida vão além ao vislumbrarem um 240 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 campo crítico purificado da razão moderna. O que Habermas critica em Adorno e Derrida pode servir de identificação para o pós-moderno: Utilizam o fragmento como forma de representação e colocam qualquer sistema sob suspeita. Decifram de modo original o caso normal a partir de seus casos-limites; coincidem em um extremismo negativo; descobrem o essencial no marginal e no acessório, o direito no marginal e no acessório, o direito no lado do subversivo e do infrator e a verdade na periferia e no inautêntico (Ibid., p. 263). A crítica ao logos empreendida por Derrida ficou caracterizada como “desconstrução”. Destrói-se a hierarquia habitual de conceitos básicos, bem como ocorre uma erosão de contextos de fundação. O resultado disso tudo é uma equiparação entre filosofia e literatura. A positividade da crítica se desloca da “coerência lógica” para o “êxito retórico”. Talvez, Habermas exagere um pouco em sua análise sobre Derrida ao remetê-lo, simplesmente, a esse “êxito retórico”, mas acerta ao afirmar que seu objetivo é desmontar os suportes ontológicos construídos pela filosofia ocidental. O mundo se converte em um texto literário; os gêneros (filosofia, literatura, ciência, etc) se dissolvem num único texto e a crítica literária se converte na única crítica capaz de dar conta dessa nova leitura do mundo. Michel Foucault em As palavras e as coisas afirma que foi Nietzsche quem queimou as promessas mescladas de dialética e antropologia. Incêndio precoce, com certeza, mas que teve a continuidade com Heidegger. A superação dialética não resolve mais a questão da “razão e seu outro”. Como observa Habermas, agora ocorre uma relação de tensão: repulsão e exclusão recíprocas. Nem a auto-reflexão ou a práxis esclarecida apresentam uma saída para esse problema. Razão que ao aparecer como impotente vê nascer ao seu redor “subjetividades obtusas”, forças de anamnese que demandam outra observância (Cf. HABERMAS, 2000). OBSERVAÇÕES FINAIS A crise que afetou a razão moderna foi, essencialmente, uma forma de renúncia ao princípio da transcendência. Este princípio não é mais evocado para resolver as contradições fundamentais da realidade social. Houve uma derrocada da forma de se apreciar o próprio movimento do mundo social; na expressão mais acabada do materialismo dialético, temos a seguinte concepção: 241 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Mas o mundo real não permanece em repouso; sua grande lei é a lei do desenvolvimento e da troca, da transformação do velho estado qualitativo em outro novo, em virtude das tendências opostas que se encerram em cada objeto e fenômeno (RESENTAL;STRAKS, 1960, p. 331). A “máquina” (a dialética) que movia e impulsionava essas mesmas coisas rumo a uma “nova qualidade”, evaporou-se. Em relação a esta idéia, são evidentes agora os esforços de Sartre e Merleau-Ponty para salvar a dialética daquilo que eles já pressentiam: sua conversão numa dogmática que não mais compreendia o mundo ou muito menos trazia a esperança de um homem renovado. A crise da transcendência trouxe, concomitantemente, toda uma série de problemas não resolvidos e que assola o pensamento filosófico atual. A própria experiência histórica ganha ares de estranheza na medida em que não pode mais utilizar os padrões de análise da dialética histórica. O próprio Alberto Gualandi em sua obra sobre Deleuze mostra essa nova perspectiva: “O que acontece com a identidade dos objetos da experiência e de nossa própria identidade, se nenhuma Idéia transcendental nos traz a garantia da unidade e da permanência?” (GUALANDI, 2003, p. 44). Imagens assombrosas e estranhas ameaçam entrar em cena; “Alice ora grande, ora pequena, o tempo volta para trás e enrola-se em espiral” (Ibid., p. 45). Aquilo que Foucault havia identificado e inserido lado a lado como emergência epistemológica em fins do século XVIII – o tema transcendental e os novos campos empíricos -, ameaça desabar nos dias de hoje. E essa derrocada do edifício epistemológico moderno implica numa nova configuração (que ainda não temos) que totalize essas novas tendências. Ou não haverá mais nenhuma totalização possível? Foucault vê uma correspondência entre a filosofia transcendental (Kant) e os conhecimentos positivos. Seu “estruturalismo” da época d'As palavras e as coisas caracterizava uma epistéme que abarca essas frentes. Mas se essas últimas forem concebidas em perspectiva de desnível, podemos afirmar que hoje a fratura se ampliou. O que Foucault observa de inédito em Ricardo, entre outras coisas? Que a historicidade penetrou no modo de ser de sua economia. Nas palavras de Foucault: “O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação, 242 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 h será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua manifestação iluminada” (FOUCAULT, 1999, p.361). Aqui, sim, se amarram os temas da “plenitude do homem” e do “devir do tempo”. Então, provavelmente, podemos procurar as sementes dessa crise na própria razão histórica que não dá mais conta de explicar o esfacelamento dos próprios conteúdos históricos. É nesse sentido que os argumentos que Foucault desenvolve nos levam a um impasse e não esclarece, realmente, esse esfacelamento pós-moderno. Na bem da verdade, o nietzschianismo de Foucault já vê essa fragmentação na própria história. A epistéme moderna de Foucault se apresenta com os saberes tematizados no trabalho, na vida e na linguagem; mas eles primeiro recebem uma historicidade própria que os libera desse “espaço” contínuo que é a cronologia. Daí surgir o homem do século XIX como “desistoricizado”. Mas são muitas evidências que não sustentam a tese de Foucault. E ele próprio dá essa abertura meio paradoxal contra suas próprias idéias: “Haverá, pois, a um nível muito profundo, uma historicidade do homem que seria, por si mesma, sua própria história, mas também a dispersão radical que funda todas as outras” (Ibid., p. 512). Foucault joga a todo o momento com “esse nível mais profundo” e as “dispersões”; ele não nega uma história que funciona como “totalidade absoluta” (no século XIX). As “totalidades parciais” (as positividades) formadas pela história e nela depositadas, entram em contato umas com as outras sem que alcancem uma “totalidade absoluta”. Foucault nega o historicismo, já que este vê no fundamento de todas as positividades (e antes delas) a finitude que as torna possível. O historicismo não dá liberdade nem espaço para o “ser” das positividades que se constituem na epistéme moderna. É bem provável que o tema da crise tenha se esgotado. Essa afirmação parece se confirmar na medida em que nos aproximamos do neopragmatismo atual. Richard Rorty insiste na redefinição de um pensamento não mais universal ou romântico, mas que resolva os problemas criados pelas velhas idéias. Temos que chegar a um acordo intersubjetivo e introduzir idéias novas e surpreendentes, sem atribuí-las a uma fonte privilegiada (Cf. SOUZA, 2005, p. 266). Em Rorty não há esse abalo que encontramos nos pensadores da condição pós-moderna. O pragmatismo já havia realizado suas batalhas por uma simplificação do pensamento; nos dias atuais, como afirma Rorty, há simplesmente um “senso comum materialista e reformista”: 243 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Estamos ficando contentes em nos vermos como animais consertadores, que se fazem enquanto seguem em frente. A secularização da alta cultura, que pensadores como Espinosa e Kant ajudaram a realizar, formou em nós o hábito de pensar horizontalmente em vez de verticalmente – de entender como poderíamos providenciar um futuro ligeiramente melhor em vez de olhar para cima, para a estrutura suprema, ou para baixo, para as profundezas insondáveis (Ibid., p. 270). O percurso intelectual de Rorty, que Habermas (2000) mostrou bem em A virada pragmática de Richard Rorty, impede-o de um debate mais profundo com o tema da pós-modernidade. O que se passa é o inverso, ou seja, o neopragmatismo se configurou como um campo de saída possível para o impasse pós-moderno. Habermas trilha esse último caminho. Lyotard, por outro lado, aprofunda a crise ao assumir os impasses atuais como a “verdade” de seu tempo. O “entusiasmo” de nossos dias não seria mais um afastamento irremediável entre uma Idéia e aquilo que se apresenta por realizar, mas o afastamento entre as diversas famílias de frases e suas respectivas representações legítimas: Auschwitz, um abismo aberto quando é necessário apresentar um objeto capaz de validar a frase da Idéia dos direitos do homem; Budapeste 1956, um abismo aberto diante da frase da Idéia do direito dos povos; (...). Cada um desses abismos, e outros, deveria ser explorado com precisão, no interior de suas diferenças (LYOTARD, 1986, p. 96). Como na própria afirmação de Lyotard: hoje estamos no início de uma forma de representação onde se vê o infinito das finalidades heterogêneas. 244 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1985. ADORNO, Theodor W. 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Palavras-Chave: Notas de rodapé; Jörn Rüsen; Casa Grande & Senzala ABSTRACT This text analyses the footnotes in the book Casa Grande & Senzala by Gilberto Freyre, considering them not as mere appendix of the text, but as a rhetorical argumentative strategy used by historians to support their arguments on the historians’s works or to compare them. The text is divided into three topics: 1) the use of footnotes in historical text, 2) the historical text as rhetorical argumentative strategy, and 3) the use of footnotes by Gilberto Freyre in Casa Grande e Senzala. Keyword: Footnotes; Jörn Rüsen, Casa Grande & Senzala Introdução O objetivo desta pesquisa é analisar as pequeninas e subestimadas notas de rodapé presentes no texto historiográfico. A hipótese é que essas notas possuem uma importância fundamental, no texto histórico, exercendo várias funções de 1 Este texto foi resultado da pesquisa realizada na Universidade Estadual de Goiás “Os alicerces de Casa Grande & Senzala: análise historiográfica das notas de rodapé”, realizada durante em 20092010. Professor do curso de História da UEG-Anápolis e Doutor em Sociologia da UnB. ** Graduanda do curso de História da UEG-Anápolis e bolsista de iniciação científica do CNPQ. 249 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 natureza retórica e argumentativa, procurando, nesse sentido, convencer o leitor sobre a verdade ou sobre a plausibilidade do que está sendo afirmado pelo autor. Isso implica, necessariamente, um diálogo com os “narrativistas”, ou seja, o conjunto de autores que consideram a escrita da história como imprescindível para a reflexão teórica sobre o significado do trabalho executado pelos historiadores. Evidentemente, houve uma inversão de prioridades na análise do texto histórico. Em vez de se priorizar o texto principal, como é de praxe nas análises historiográficas, priorizar-se-á o texto secundário das notas de rodapé. Essa postura segue o “método indiciário”, proposto por Carlos Ginzburg como um paradigma do conhecimento histórico. Esse método foi inspirado na descoberta do crítico de arte Giovanni Morelli, ao perceber que, para distinguir uma obra de arte falsa da verdadeira, era fundamental examinar “os pormenores mais negligenciáveis: os lóbulos da orelha, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés” (GINZBURG, 1989, p. 144). A partir disso, Ginzburg mostrou um rol de disciplinas e práticas culturais que fazem uso de indícios para atingir o conhecimento proposto: os caçadores do neolítico, os adivinhos mesopotâmicos, os médicos da Grécia Antiga, os detetives modernos, os antropólogos, os historiadores. Dentro desta linha, as notas de rodapé podem ser consideradas indícios e sinais reveladores da forma de argumentar e de escrever de determinado autor. Em vez de ficar embasbacado pelo deslumbrante sorriso da Mona Lisa, far-se-á uma análise mais indiscreta e invasiva, olhando de perto para o lóbulo de sua orelha. Esse texto será dividido em três partes. Na primeira, far-se-á uma breve análise histórico-social das notas de rodapé e o papel que elas desempenham no texto histórico. Em seguida, far-se-á uma consideração dos elementos narrativos presentes no texto histórico, a partir, principalmente, das teorias de Jörn Rüsen. Finalmente, será feito um estudo empírico do uso das notas de rodapé num texto histórico, a partir da análise de Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. I. O uso das notas de rodapé no texto histórico: 250 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 O uso das notas de rodapé é um recurso textual comumente usado pelos historiadores com as seguintes funções: discorrer sobre temas considerados por demais periféricos para estar no texto principal, explicitar melhor alguns conceitos utilizados ao longo do texto, citar as fontes da pesquisa utilizadas no texto e sua localização, remeter-se a outros autores, buscando apoio para argumentação ou ressaltando a discordância. As notas de rodapé é um instrumento textual bastante antigo, seu uso documentado remonta aos comerciantes fenícios da Antiguidade que colocavam notas nos papiros, com o objetivo de aprimorar as explicações das transações comerciais. Seu uso era difundido entre os gregos e romanos. Na Idade Média elas eram utilizadas para explicar aos recém-convertidos e poucos alfabetizados líderes políticos europeus aspectos específicos da religião cristã (GAERTNER, 2002). No entanto, as modernas notas de rodapé estão relacionadas às inovações técnicas que acompanharam a difusão do livro no Ocidente, por exemplo, a utilização da ordem alfabética para ordenar verbetes de dicionários e enciclopédias, o uso do sumário e do índice para informar sucintamente ao leitor sobre os assuntos, a publicação de obras de referência sobre determinados temas, etc. A partir do século XVII, as notas de rodapé tiveram um significado especial para o conhecimento histórico, pois foram usadas como garantia da objetividade e da erudição crítica. Entre os historiadores, o surgimento da indução estava ligado à nota de pé de página. O termo ‘nota de pé de página’ não deve ser tomado literalmente. O importante era a difusão da prática de dar algum tipo de orientação ao leitor de um texto particular sobre aonde ir para encontrar a evidência ou informações adicionais, fosse essa informação dada no próprio texto, à sua margem (“nota lateral”), ao pé (“nota de página” ou “de rodapé”), ao final ou em apêndices especiais de documentos. (BURKE, 2003, p. 184). Esse método crítico exigia do historiador que citasse as fontes utilizadas na pesquisa documental, de forma que oferecesse ao leitor uma comprovação do que estava escrito, para que garantisse o rigor “científico” do texto e o afastasse dos ensaios históricos mal-documentados. Assim existia uma ligação entre as fontes e as notas de rodapé, uma vez que era ao fim da página que o leitor encontraria o “endereço” das fontes utilizadas. 251 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Posteriormente, a partir do século XVIII, as notas serviram também para o diálogo entre os diversos historiadores, ou seja, expressar nas notas de rodapé uma concordância ou discordância em relação a obras escritas por outros historiadores. No século XIX, com Ranke e seus seguidores, as notas atingem o seu apogeu no trabalho historiográfico, passando a ser um ingrediente fundamental da objetividade do trabalho do historiador. No século XX, a concepção histórica de Ranke foi demolida por várias tendências – marxistas, annales, weberianos –, mas nenhuma delas abriu mão das notas de rodapé. Apesar desse uso indiscriminado e secular, as notas de rodapé ainda não mereceram as devidas atenções por parte dos historiadores. Isso é bastante surpreendente, se levar em conta o fato de que, nos últimos 30 anos, depois que Lawrence Stone “ressuscitou a narrativa1”, apareceu uma grande quantidade de livros que analisaram a escrita da história2, mas praticamente nenhum deles considerou as notas como uma parte importante do texto histórico. O tema – notas de rodapé – é inusitado, porém não descabido dentro da tradição historiográfica. As notas de rodapé são partes do texto praticamente desprezadas pelos leitores, mas que, dependendo do autor, escondem verdadeiras preciosidades em meio a letras miúdas no fim de página ou de capítulo. Um dos estudos pioneiros sobre as notas de rodapé na historiografia é o trabalho de Anthony Grafton, As origens trágicas da erudição: pequeno tratado sobre as notas de rodapé. Neste livro, o autor compara o uso das notas de rodapé no texto histórico com a importância do banheiro nas residências: Como o banheiro, a nota de rodapé moderna é essencial à vida histórica civilizada; como o banheiro, ela parecer ser um assunto entediante para a conversação polida e chama a atenção, na maioria das vezes, quando funciona mal. Como o banheiro, as notas de rodapé descem suavemente pela tubulação – muitas vezes, recentemente, nem mesmo no pé da página, mas no fim do livro. (GRAFTON, 1998, p.17). Trata-se do artigo The revival of narrative (STONE, 1991), publicado em 1979 numa importante revista inglesa que provocou bastante polêmica. É evidente que antes do artigo, a discussão sobre narrativa na história já era feita por inúmeros historiadores. 2 Um levantamento despretensioso de obras históricas que incorpora no título a palavra “escrita” aponta para as seguintes publicações: Escrita da História (Michel Certeau), Como se escreve a história (Paul Veyne), A escrita da História (Peter Burke), Escrita, linguagem, objetos (Sandra J. Pesavento), A história escrita (Jurandir Malerba). Caso considerasse o termo “narrativa” como sinônimo de escrita, a quantidade de obras aumentaria de maneira assombrosa. 1 252 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Apesar desse pouco interesse do público em ler e, muito menos, de refletir sobre as notas, o autor destaca que as notas são o elo comum para duas tarefas consideradas básicas na historiografia: Examinar todas as fontes relevantes para a solução de um problema e construir uma nova narrativa a partir delas. A nota de rodapé prova que ambas as tarefas têm sido levadas a cabo. Ela identifica tanto a prova primária que garante a solidez da novidade da história quanto as obras secundárias que não minam a forma e a tese de sua novidade. (Idem, p. 16). Além dessas funções “metodológicas” de referenciar as fontes pesquisadas e a bibliografia lida, as notas têm uma função retórica importante no texto histórico: “convencem o leitor de que o historiador realizou uma quantidade aceitável de trabalho, o suficiente para mentir dentro dos limites toleráveis do campo” (idem, p. 30). Ironias à parte, a afirmação de Grafton mostra bem a evolução da historiografia que, no século XX, rejeitou o pressuposto novecentista de que “o texto convence, as notas provam” e passa a dar mais importância aos pressupostos retóricos presentes na escrita da história, inclusive nas notas de rodapé. Por isso, é urgente – diante da grande produção sobre narrativa – reavaliar o papel das notas de rodapé no texto histórico. Nesse sentido, as considerações de Jörn Rüsen sobre a teoria da História serão de extrema valia. II. O texto histórico como artefato argumentativo Jörn Rüsen é um historiador que possui uma grande influência entre os interessados pela teoria da História no Brasil. O reconhecimento mundial de suas reflexões sobre a teoria da História deve-se , principalmente, ao fato de ele ter produzido, talvez, a mais consistente resposta ao terremoto Metahistória, de 1973, que abalou as bases epistemológicas da disciplina História. Rüsen foi um dos que, aproveitando os escombros caídos no chão, procurou construir um novo templo de Clio, não tão sólido e duro como aquele construído no século XIX, mas um edifício flexível o bastante – como as construções japonesas – e capaz de suportar abalos sísmicos de grande magnitude. Evidentemente, suas reflexões têm outros méritos. O maior deles, talvez, foi tentar construir uma posição mediana entre os extremos: narrativa e pesquisa, 253 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 ciência e cultura, modernidade e pós-modernidade, objetivismo e subjetivismo, nomologia e hermenêutica, racionalidade e irracionalidade, Marx e Weber. Além disso, é um autor representativo de uma tendência dominante no final do século XX de pensar “teoria da História”, em vez de “a” teoria da História: ela deixa de ser específica a cada vertente historiográfica (Escola Metódica, Marxismo, Annales, etc.) e passa ser uma reflexão geral, válida para obras de todas as vertentes. Esse formalismo analítico é bem evidente quando Rüsen afirma que A teoria é o plano da ciência da história em que a visão de conjunto é adquirida. A teoria cuida para que o conjunto da floresta da ciência especializada, como constituição estrutural do pensamento histórico, não seja perdido de vista nos múltiplos processos de conhecimento histórico, em benefício das árvores dos processos particulares. (RÜSEN, 2001, p. 27). Aproveitando a ecológica metáfora do autor, deduz-se que para enxergar a floresta em vez das árvores isoladas, é necessário um lugar alto e estratégico o suficiente para livrar-se do ofuscamento produzido pela copa das árvores. Em Rüsen, esse local estratégico que o permitiu enxergar as diversas espécies de árvores – as diferentes matrizes teóricas – que formam a floresta da História é a sua bem conhecida matriz disciplinar. A Matriz Disciplinar são os cinco princípios básicos e fundamentais presentes no conhecimento científico produzido por historiadores profissionais. Em formato circular, os elementos da Matriz são os seguintes: 1) Interesses: consiste na já bem conhecida e aceita constatação de que o interesse pelo passado humano é resultante de uma inquietação do presente. Croce foi um dos pioneiros em formular essa idéia quando afirmou que “toda história é história contemporânea1” e, anos depois, na França, os fundadores dos Annales popularizaram isso com sua “históriaproblema”. A especificidade de Rüsen foi de mostrar esse interesse pela história como um antídoto à inquietação psicológica da passagem inexorável do tempo, que traz medo, dúvidas, velhice, doenças e morte. 1Croce afirmou: “o que constitui a história pode se assim descrito: trata-se do ato de entendimento e compreensão induzido pelas exigências da vida prática”. (CROCE, 2006, p. 26). Curiosamente bem semelhante à justificativa de Rüsen do interesse humano pela História: “as carências fundamentais de orientação da prática humana da vida no tempo, que reclamam o pensamento histórico” (RÜSEN, 2001, p. 30). 254 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 2) Idéias: ou perspectivas orientadoras do passado são as categorias, as perspectivas, os conceitos que os historiadores profissionais utilizam para interpretar e selecionar os acontecimentos do passado. Longe do empirismo historicista ingênuo do século XIX, Rüsen está afinado com as principais matrizes teóricas do século XX – Marxismo, Annales e Sociologia do Conhecimento de Weber – ao propor uma história conceitual. 3) Métodos de pesquisa empírica: são as fontes históricas e as técnicas de tratamento utilizadas pelos historiadores profissionais. Aqui se nota o realismo de Rüsen, quando afirma que não é possível produzir conhecimento histórico sem as “experiências concretas do tempo passado”. Na verdade, esse reconhecimento da importância das fontes históricas para a produção do conhecimento histórico é uma unanimidade entre as diversas tendências históricas – nem mesmo, “relativistas” como Hayden White ou Foucault abdicaram-se da necessidade do uso das fontes no trabalho histórico. 4) Formas de apresentação: é a transformação do conhecimento histórico num texto escrito, ou seja, uma “representação narrativa da continuidade temporal do passado, presente e futuro”. Rüsen é consciente do fato de que a escrita da história não é um relatório frio e objetivo da pesquisa. Ela está permeada de elementos poético-retóricos. Aqui a dívida de Rüsen com os narrativistas1 é clara e evidente, quando faz um elogio direto ao seu maior “rival”: “Hayden White os descreveu como ‘poéticos’ e alcançou, com isso, uma influência altamente benéfica sobre o debate na teoria da história” (RÜSEN, 2007, p. 25). Além dos elementos estéticos, a escrita da história incorpora elementos culturais, já que está voltada para um público de quem pretende satisfazer demandas por sentidos. 5) Funções de orientação existencial: são as diversas funções culturais que o texto histórico exercerá numa sociedade. Depois de pronta, a obra histórica Outro autor importante e pioneiro em reconhecer o papel específico da narrativa histórica foi Michel Certeau, que percebeu uma espécie de “distorção” na escrita histórica: “só uma distorção permite a introdução da "experiência" numa outra prática, igualmente social, mas simbólica, escriturária, que substitui a autoridade de um saber pelo trabalho de uma pesquisa. O que é que o historiador fabrica quando se toma escritor? Seu próprio discurso deve revelá-lo.” (CERTEAU, 1982, p. 95) 1 255 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 é apropriada para os mais diversos usos e funções: na produção de livros didáticos de História para o Ensino Básico, na produção de filmes e novelas históricos, na inspiração de obras arquitetônicas, na criação da moda, na elaboração de romances literários ou poesias, etc. Mas o mais importante do que tudo isso é que as narrativas históricas contribuem para a legitimação da identidade dos diversos grupos sociais. Como se percebe, não há nenhuma novidade substancial nesses cinco elementos apresentados por Rüsen. Mas como bem notou Pedro Caldas (2008, p. 08), Rüsen disse o óbvio que ninguém tinha dito antes. É lugar comum que o conhecimento histórico é produzido a partir de uma indagação do presente, que os historiadores usam conceitos e categorias para interpretar os fatos, que o trabalho metódico com as fontes é essencial na produção do conhecimento do passado, que existem elementos retóricos na narrativa histórica e que o conhecimento histórico é essencial para a fundamentação da identidade coletiva. No entanto, o modo como Rüsen concatenou cada um desses elementos, criando um modelo formal de análise do conhecimento histórica não foi, de modo algum, banal. A Matriz Disciplinar responde a uma secular pergunta – formulada pela primeira vez por Croce: “o que faz com um livro de história seja história”, ou seja, qual a diferença entre a História produzida por um profissional daquela produzida por amadores Para Rüsen, as narrativas históricas científicas terão os cinco elementos, enquanto as outras narrativas que tematizam o passado não terão um método de tratamento das fontes, conceitos ou uma narrativa bem fundamentada. Qualquer narrativa sobre o passado pode partir de interesses culturais e fundamentar a identidade de grupos, mas apenas a narrativa histórica “científica” faz isso de modo racional. Isso significa que o conhecimento histórico racional Não se contenta em apenas afirmar alguma coisa sobre o passado da humanidade, mas indica sempre as razões para tanto, por que se deveria aceitar tal afirmação e por que as que dizem outra coisa não convenceria. “Razão” quer, pois, designar o que caracteriza o pensamento histórico que se processo na forma de um debate movido pela força do melhor argumento. (RÜSEN, 2001, p. 21). Desse modo, a racionalidade do trabalho histórico estaria no debate entre os pares. No cotidiano da vida acadêmica, esse debate ocorreria nos seminários, nos simpósios, nas defesas de teses, nas conversas informais, nas resenhas; porém, 256 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 de maneira explícita ou implícita, o resultado desse debate é incorporado na narrativa histórica. E o local explícito, no texto, em que esse debate entre os pares aparece com nitidez é as letrinhas pequenas das notas de rodapé. No século XIX, as notas eram a garantia da cientificidade do texto histórico, ao fazer referência aos documentos utilizados pelo historiador no seu texto, permitindo a outrem conferir a veracidade de suas afirmações. Essa função ainda existe, mas agora a teoria da História de Rüsen permite vislumbrar, nas notas de rodapé, um papel importante na racionalidade do texto histórico, ao possibilitar ao leitor acompanhar o debate travado entre os pares. É geralmente, por meio de notas, que os historiadores citam outros historiadores que corroboram suas afirmações ou confrontam suas afirmações com as posições contrárias. É evidente que esse confronto ou diálogo pode acontecer no corpo do texto, por meio da citação direta; mas o diferencial das notas é o fato de elas possibilitarem um espaço institucionalizado socialmente para esse reforço de argumentação. O próprio Rüsen, em seu texto permeado de notas, fornece exemplos dessa função argumentativa das notas de rodapé. Assim, a afirmação do seu texto de que “a produção de determinadas carências é sempre também um processo de produção de novas carências” (idem, p. 57) é acompanhada da seguinte nota de rodapé “Assim, por exemplo, na antropologia de Karl Marx, como exposta no capítulo sobre Feuerbach na ‘Ideologia Alemã’” (idem, p. 57, nota 5). A afirmação no corpo do texto é perfeitamente clara, o que dispensaria a necessidade da nota. No entanto, a função desta nota não é a de dotar o texto de clareza, mas de reforçar a argumentação, buscando a autoridade de um clássico do calibre de Marx. É uma forma de persuadir o leitor a acreditar nas palavras do texto, buscando o aval de outro intelectual de peso. Por outro lado, as notas de rodapé são utilizadas também para marcar um distanciamento em relação a uma posição contrária. Apesar desse tipo de nota ser bastante rara em Rüsen, o que denota uma personalidade simpática e apaziguadora, é possível encontrá-la em alguns momentos, como quando ele discorda, amavelmente, da concepção de Jeismann: Jeismann propôs, em sua didática do ensino de história, como operações essenciais do aprendizado: análise, juízo objetivo, valoração. Creio que ‘experiência, interpretação e orientação’ são mais abrangentes e 257 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 fundamentais, sem ficarem restritas ao campo cognitivo da ciência da história, que parece ser o único interesse de Jeismann. (RÜSEN, 2007, p. 110, nota 22). A nota reconstitui com clareza o debate entre dois profissionais sobre quais são as operações essenciais para o aprendizado da história: Jeisman afirma que seriam “análise, juízo objetivo e valoração”; por outro lado Rüsen afirma que seriam “experiência, interpretação e orientação”. Para o leitor que não conhece Jeisman, a impressão é que Rüsen tem os melhores argumentos, já que ele conduz o debate. Enfim, baseado na formulação de Rüsen, segundo a qual a narrativa histórica é uma arena de argumentação, pretende-se, a seguir, analisar as notas como elementos argumentativos num autor prolixo como Gilberto Freyre. III. O uso das notas de rodapé por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala Casa Grande e Senzala, livro publicado por Gilberto Freyre em 1933, é um marco na história intelectual brasileira. Tornou-se um clássico literário, ultrapassando os limites restritos do campo das Ciências Sociais e da História: foi adaptado para o teatro, enredo da Mangueira no carnaval de 1962 e transformada em história em quadrinhos1. A obra foi traduzida para vários países e elogiada por intelectuais do quilate de um Barthes Febvre, Braudel e Fernando Henrique Cardoso2. Geralmente, os admiradores ressaltam os seguintes méritos da obra: foi a primeira a utilizar sistematicamente o conceito de cultura para interpretar a realidade brasileira, rejeitando o conceito de raça; fez a história da colonização brasileira sem priorizar os acontecimentos político-administrativos; utilizou fontes inusitadas e diversificadas; reforçou a influência do negro e do indígena na cultura brasileira; foi pioneira em fazer uma história do cotidiano brasileiro; utilizou uma forte base teórico-metodológica, baseando-se em autores como Weber, Dilthey e A adaptação do texto foi feita por Estevão Pinto (2005) e as ilustrações foram feitas por Ivan Wasth Rodrigues. 2 Necessário lembrar que os três últimos intelectuais citados prefaciaram diferentes edições do livro: Braudel a edição publicada na Itália, Febvre a tradução publicada na França e Cardoso a edição brasileira de 2006. 1 258 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Boas; interpretou o passado brasileiro de maneira não evolucionista e progressista; abordou temas inusitados, tais como o odor, o corpo, a sexualidade, dentre outros1, etc. No entanto, esses elogios não foram suficientes para que essa obra escapasse das críticas e das polêmicas. As críticas foram muitas e de diversos tipos: fraqueza metodológica, já que muitas de suas teses não se apoiariam em base empírica consistente; seu discurso é repleto de coloquialismo e linguagem chula, imprópria para um texto científico; sua motivação ideológica seria justificar o modo de vida patriarcal nordestino, do qual demonstraria um intenso saudosismo; seu modo ameno de abordar a escravidão brasileira serviria ao perverso propósito de defender uma falsa democracia racial brasileira; seus elogios à colonização portuguesa serviria aos propósitos imperialistas de justificar a colonização portuguesa na África e Ásia; seus limites interpretativos seriam supervalorizados, uma vez que transpôs elementos da realidade nordestina inadequadamente para toda realidade brasileira; sua análise foi feita da janela da Casa Grande, o que explica o seu tom patriarcalista; seu autor possui posições políticas conservadoras e direitistas. Na verdade, ser polêmico e suscitar discussões apaixonadas é a marca dos grandes livros, como O Capital, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, O mal-estar da civilização, dentre outros. Por isso, apesar das críticas e das polêmicas, não é possível negar que Casa Grande & Senzala é um grande e belo livro sobre a realidade histórico-sociológica brasileira. É um clássico, no sentido defendido por Gadamer2 em Verdade e Método. Desse modo, uma obra de tamanha dimensão merece ser lida e analisada com rigor. E de fato foi. As edições de Casa Grande & Senzala em língua portuguesa Cabe aqui citar a opinião de um dos grandes admiradores contemporâneos de Freyre – Peter Burke (2005, p. 144): “Foram feitas referências ocasionais ao som do passado por Johan Huizinga e Gilberto Freyre, que descreveu o rumor das saias nas escadas da casa grande no Brasil Colonial. Freyre, além disso, descreveu o odor dos quartos de dormir no Brasil do século XIX, uma combinação de cheiros de pés, mofo, urina e sêmen.” 2 O que é clássico é aquilo que se diferenciou destacando-se dos tempos mutáveis e dos gostos efêmeros; é acessível de modo imediato, mas não ao modo desse contato, digamos elétrico que de vez em quando caracteriza uma produção contemporânea, na qual se experimenta momentaneamente a satisfação de uma intuição de sentido que supera toda expectativa consciente. Antes é uma consciência do ser permanente, uma consciência do significado imorredouro, que é independente de toda circunstância temporal, o que nos induz a denominar algo de clássico, uma espécie de presente intemporal que significa simultaneidade para com qualquer presente. (GADAMER, 1997, p. 432). 1 259 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 já chegam ao espantoso número de 48, mais do que o dobro das de Formação do Brasil Contemporâneo, outro livro clássico da historiografia brasileira que possui 23 edições. O número de estudos sobre a concepção historiográfica de Freyre é impressionante, sendo impossível resenhá-los todos nos limites desse espaço. No entanto, ainda subsiste uma parte substancial de Casa Grande & Senzala que não foi analisada sistematicamente: as notas de rodapé. Na verdade, é possível afirmar que essa parte do texto foi pouco lida, já que pouquíssimos autores citam as notas em suas análises da obra. No entanto, as notas de rodapé são elementos fundamentais para a compreensão plena do texto; caso contrário, o autor não as teria escrito em tamanha quantidade. Freyre já foi chamado de “prefaciomaníaco” pela quantidade e tamanho de seus prefácios. No entanto, seria mais adequado chamá-lo de “notemaníaco” pela quantidade e densidade das notas de rodapé presentes em Casa Grande & Senzala. A tabela a seguir ilustra, quantitativamente, o espaço das notas de rodapé e dos prefácios no corpo principal do texto: Tab. 1 - Estrutura de Casa-Grande & Senzala (em número de páginas) Capítulos Corpo principal do texto: Quant. de pag. Corpo secundário do texto: Prefácios e notas Quant. de pag. Capítulo 1 54 Notas do capítulo 1 33 Capítulo 2 73 Notas do capítulo 2 26 Capítulo 3 74 Notas do capítulo 3 19 Capítulo 4 96 Notas do capítulo 4 30 Capítulo 5 53 Notas do capítulo 5 16 Seleção de prefácios 44 Total: 350 Total 168 (porcentagem) 67% (Porcentagem) 33% Fonte: confeccionada a partir da 31ª edição de Casa-Grande e Senzala (Editora Record, 1996) Nota-se que cerca de 1/3 de Casa-Grande & Senzala é composto por partes consideradas secundárias, como o prefácio e as notas de rodapé. É muita coisa para ser relegada a um segundo plano. Muitos aspectos interessantes da obra de Freyre poderão ser levantados no estudo sistemático dessas notas e prefácios. Nessa pesquisa, destacou-se, por meio da análise das notas de rodapé, uma característica fundamental da narrativa de Gilberto Freyre: o seu caráter dialógico e o seu estilo coloquial. Poucos autores no mundo levaram tão a sério a idéia, 260 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 posteriormente formulada por Rüsen, de que a racionalidade da narrativa histórica é garantida pelo diálogo entre o historiador e seus pares. No seu texto, principalmente nas notas de rodapé, Freyre conversa com uma infinidade de autores. Por isso, sua obra é o melhor exemplo para mostrar como as notas de rodapé contribuem para o reforço de argumentação do texto histórico. Freyre, como um bom antropólogo, mostrou ser uma pessoa sem preconceitos, como demonstra a sua famosa entrevista a revista Playboy, em março de 1980, em que confessa uma experiência homossexual1. Do mesmo modo, como intelectual, Freyre não se furtou a conversar com autores de diversas tendências teórico-metodológicas, inclusive com autores marxistas, geralmente os mais ferrenhos críticos de sua obra. Quando disserta sobre o peso do latifúndio escravista na caracterização social do Brasil, Freyre não tem pudor de apoiar-se no famoso livro de Caio Prado Júnior, Formação do Brasil Contemporâneo, inclusive elogiando com veemência a obra: E em um trabalho extraordinário, também se mostra de acordo com nossa interpretação e caracterização dos fatos de formação agrária da América Portuguesa o Sr. Caio Prado Júnior, ao destacar que na colonização portuguesa do Brasil o elemento fundamental foi “a grande propriedade monocultural trabalhada por escravos” [...] E ainda, em uma confirmação, para nós honrosa, da idéia esboçada por nós neste ensaio, desde 1933, sob forma do complexo casa-grande e senzala: ou do sistema patriarcal agrário, isto é, latifúndio, monocultura e trabalho escravo (FREYRE, 2006, p. 353, nota nº88). Ao mostrar no texto, por meio do texto da nota, pioneirismo e afinidade de idéias com o importante historiador brasileiro, Freyre adiciona ao texto autoridade na sua argumentação, mostrando que a sua interpretação do passado brasileiro não é solitária, nem descabida. Por outro lado, diálogo não significa concordância nem discordância plena: pode-se concordar ou discordar em partes. Isso fica evidente quando Freyre argumenta sobre a importância de se considerar a família patricarcal como unidade básica da colonização brasileira e leva em conta as admoestações de Caio Prado e Nelson Werneck Sodré sobre a dificuldade de se constituir família no Brasil colônia em bases sólidas e estáveis (Freyre, 1996, p. 64, nota 55). Ao levar em conta as considerações dos historiadores marxistas, aparentemente contrárias ao seu argumento, Freyre é obrigado a sofisticar a sua A entrevista está reproduzida no seguinte sítio eletrônico: http://bvgf.fgf.org.br/portugues/vida/entrevistas/playboy.html 1 261 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 argumentação, mostrando que o fato de haver poucas uniões matrimoniais formais não significava a ausência de um forte sentimento de família. Para corroborar sua tese, Freyre, nesta longa nota, cita exemplos empíricos (até os padres possuíam famílias informais, era grande o número de crimes em defesa da família) e estudiosos do assunto com idéias convergentes as suas (René Ribeiro, Donald Pierson) e as observações de uma testemunha ocular, o Frei Plácido de Messina que esteve em Pernambuco em 1842. Dialeticamente, num exercício retóricoargumentativo, Freyre demonstra que a tese dos dois historiadores marxistas sobre a fraqueza da família formal não invalida a sua da força da unidade familiar na colonização brasileira. O mesmo artifício é utilizado no diálogo com outro importante historiador da geração de 1930, Sérgio Buarque de Holanda, em relação à predisposição ou não do povo português para a agricultura. Holanda defende a tese de que os portugueses eram mais mercadores do que agricultores. Freyre, por sua vez, concorda em parte com seu colega, alertando somente para o perigo das generalizações, uma vez que o povo português “tornou-se um dos fundadores da moderna agricultura nos trópicos por meio de combinações de métodos e valores trazidos da Europa com métodos e valores indígenas” (FREYRE, 2006, p. 350, nota 85). Por outro lado, consegue-se também o reforço da argumentação por meio da discordância com outros estudiosos do tema. Numa de suas notas, Freyre dialoga com o historiador norte-americano Waldo Frank sobre quem era mais europeu: o português ou espanhol. Para Frank, os lusitanos são mais europeus do que os hispânicos, porque possuem uma fraca linhagem semítica e uma forte linhagem gótica. Já a posição de Freyre é inversa: Pensamos exatamente o contrário: que o português sendo mais cosmopolita que o espanhol, é entretanto dos dois talvez o menos gótico e o mais semita, o menos europeu e o mais africano: em todo o caso o menos definidamente uma cousa ou outra.” (Idem, 1996, p. 55, nota 13). É justamente na discordância que Freyre demonstra a sua melhor capacidade argumentativa. Um “duelo” interessante foi com o brasilianista Alexander Marchant, cuja obra Do escambo à escravidão, publicada no Brasil em 1943, que, utilizando informações do Tratados da Terra e Gente do Brasil, colocou em xeque a tese de Freyre da má alimentação dos brasileiros na época colonial, ao 262 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 afirmar que a alimentação dos baianos era rica em frutas e verduras. Freyre vai demolindo o argumento contrário a uma das suas principais teses aos poucos: primeiramente, ele aventa uma explicação vaga, sem forte base empírica: se houve então essa abundância desses e de outros produtos destinados à alimentação, parece que foi por um curto período durante o qual os primeiros colonos da Bahia puderam combinar com a grande lavoura tropical, inimiga da policultura, seu velho gosto pela horticultura (Idem, nota 113). Depois, como que reconhecendo a fragilidade do seu enunciado, Freyre aprimora a sua argumentação, amparando-se agora em documentos empíricos: No princípio do século XVII, Salvador padeceria – é verdade que concorrendo então para a escassez de alimentos a situação de guerra no norte – de falta até de farinha de mandioca, como indicam documentos recentemente publicados (Documentos Históricos do Arquivo Municipal – Atas da Câmara – 1625-1641). (idem) No entanto, a argumentação ainda não é totalmente convincente, porque, como o próprio Freyre reconheceu, trata-se de uma documentação referente a uma época de exceção e que, por isso, não poderia ser generalizada. Então Freyre aplica o seu golpe decisivo, desqualificando a obra de Fernão Cardim, que foi a base sólida dos argumentos de Marchant: Do próprio Cardim, aliás, deve-se ter em contra – insistamos neste ponto – seu caráter de ‘padre visitador’, excepcionalmente bem recebido nas cidades e engenhos, do mesmo modo que com relação aos tratados de Gandavo devemos nos recordar, com o arguto Capistrano de Abreu, que eram de certo modo propaganda para induzir europeus a virem para o Brasil como colonos. (idem). A estratégia final de Freyre foi utilizar Capistrano de Abreu, reconhecidamente um mestre na crítica documental, para mostrar que a interpretação do passado feita pelo brasilianista foi baseada numa fonte que também não era confiável, porque retratava a exceção e não a regra geral. Freyre foi pródigo no uso de notas de rodapé, porque a sua forma de argumentar sempre levava em conta o trabalho de historiadores ou de outros intelectuais de sua época ou de tempos mais remotos. Por exemplo, é comum dizer entre os estudiosos da historiografia brasileira que praticamente ninguém lia Manoel Bonfim1; pelo menos Gilberto Freyre leu, como revelam as notas 73 (idem, p. 23, nota 73) e 138 (idem, p. 400, nota 138) que, respectivamente, demonstra 11 Sobre essa tese em relação a Bomfim, ler VENTURA e SUSSEKIND (1985), REIS (2003) e MAIOR (1993). 263 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 uma leitura atenta de Brasil na América e América Latina: males de origem. Freyre não se furta em conversar mesmo com historiadores “inatuais”: Varnhagen, Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Paulo Prado, dentre muitos outros estudiosos da história brasileira, poetas, literatos e pessoas comuns. Desse modo, Casa Grande & Senzala foi um livro construído aos poucos. Desde 1933, cada edição o autor foi incorporando cada vez mais notas para refutar os críticos ou modificar o texto. Por exemplo, a nota 106 do capítulo 1 traz uma longa digressão de Freyre sobre uma correspondência recebida de São Paulo, que critica o emprego do termo “sistema” digestivo ao invés de “aparelho” como “asneira”. Freyre capitula-se passando a utilizar o termo “aparelho” nas edições posteriores, mas não antes de fazer uma erudita análise filológica do termo “sistema” em inglês, grego e francês, e reclamar da aspereza do crítico: “Daí nos parecer haver no mínimo lastimável exagero na qualificação da expressão ‘sistema digestivo’ como ‘asneira’” (Idem, 1996, 76, nota 106). Assim é o estilo de Gilberto Freyre: coloquial e despojado. Serviu-se de boa parte de suas novecentas e sessenta e quatro notas de rodapé em Casa Grande para dialogar com os pares, aprimorando a sua argumentação e a racionalidade do texto. Mas as notas também serviam como arma para vencer e humilhar o adversário. Se Rüsen disse que, no conhecimento histórico, vence aquele que tiver o melhor argumento perante os pares, Freyre foi o protótipo do historiadorargumentador. Conclusão Enfim, esta pesquisa visou basicamente mostrar a importância das notas de rodapé na análise do texto historiográfico. Longe de serem mero apêndices do texto, as notas têm uma função bastante importante dentro do conhecimento histórico: elas são, por excelência, o local em que os historiadores podem dialogar com seus pares e, assim, executar a proposta de Jörn Rüsen de utilizar o melhor argumento na interpretação do passado, garantindo assim o mínimo de racionalidade ao texto histórico. Na obra principal de Gilberto Freyre, as notas de rodapé demonstram bem o uso de notas de rodapé como reforço de argumentação. Essa constatação é 264 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 importante porque depõe contra aqueles que consideram Casa Grande & Senzala como um livro literário, ensaísta, repetitivo e sem metodologia. O livro possui os três princípios da Matriz Disciplina de Rüsen que conferem cientificidadeà obra histórica: conceitos e categorias, princípios de pesquisa e uma narrativa fundamentada racionalmente, já que procura sempre depurar-se no diálogo entre os pares para encontrar o melhor argumento. No entanto, não se deve pensar que as notas de rodapé possuem apenas um propósito racional em Freyre. Às vezes, elas são utilizadas, num monólogo, para ilações discutíveis, como, por exemplo, a afirmação de que a colonização da Amazônia brasileira só ocorreria com “O desenvolvimento e barateamento da técnica de ar condicionado e de outras formas de domínio do clima pelo homem civilizado” (, 1996: 57, nota 16). Além disso, a quase ausência de diálogo com os intelectuais pioneiros da Universidade de São Paulo pode ser revelador de um certo rancor de quem recebeu títulos e prêmios do exterior, mas foi preterido de lecionar na primeira universidade do País. O que mostra que a função das notas não é apenas argumentativa, mas também retórica. 265 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BURKE, Peter. O que é História Cultural Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. CALDAS, Pedro Spínola Pereira. “A arquitetura da teoria: o complemento da trilogia de Jörn Rüsen”. In FENIX: Revista de História e Estudos Culturais. Vol. 5, ano 6, n. 1. Janeiro/fevereiro/março de 2008. P. 1-9. CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. 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E-mail: [email protected] Revista de teoria: Professor, como o Flávio havia falado, nossos principais temas são trabalhar alguns pontos relevantes da teoria da história, dentre esses, a primeira pergunta que nós pensamos, uma vez que o senhor estuda e tem um grande conhecimento sobre Weber, sobre historiografia alemã, de forma geral, qual seria então a influência da historiografia alemã, principalmente do século XIX e do século XX, na teoria da história do Brasil hoje? Sérgio da Mata: Eu cheguei à Universidade justamente quando acabava o regime militar, no ano de 1986. Estudei na UFMG, onde fiz tanto a graduação quanto o mestrado. Para a maior parte dos que estudaram mais ou menos na mesma época, essa presença alemã na verdade não existia. Sempre houve e ainda há uma influência francesa muito forte. Sobretudo a influência da Escola dos Annales, evidentemente. Mas é de certa forma natural que fosse assim, porque justamente nessa época passa a haver mais obras disponíveis desses autores. Os nossos professores tinham lido esses autores ainda em francês, mas o grande boom da influência dos Annales se deu a partir da segunda metade da década de 1980. Nesse sentido, a imagem que nós tínhamos dos autores alemães era uma imagem invertida, ou melhor dizendo, era uma imagem filtrada pela recepção que os autores alemães, seja historiadores, seja teóricos, tinham tido na França. E que era quase uma não-recepção, porque entre os franceses há uma resistência em aprender alemão. Há muito mais alemães que falam francês do que franceses que 267 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 falam alemão, mesmo hoje em dia! Bom, o que isso significava na prática? Significava que a nossa visão de historiografia alemã, por exemplo a de fins do século XIX, que é a que mais me interessa, era um pouco deformada, sobretudo porque a historiografia alemã foi bastante influente na França em um certo momento. Nós sabemos que Michelet apreciava profundamente o trabalho de vários autores alemães. Era, certamente, também um grande admirador de Vico. Mas ele tinha uma grande admiração por Jacob Grimm. Suas Origens do direito francês foram diretamente inspiradas pelas Antiguidades jurídicas alemãs de Jacob Grimm. Se nós pensarmos na geração de historiadores franceses que criou a revista histórica, a Revue Historique, boa parte deles tinha estudado na Alemanha. Nas décadas de 1860, 1870, 1880, 1890, não havia dúvidas, na Europa, de que os principais historiadores, os grandes historiadores – estavam na Alemanha. Ela era o “grande laboratório”, nas palavras do próprio Gabriel Monod, um dos fundadores da Revue Historique. O afastamento entre a historiografia francesa e a alemã se inicia com a guerra de 1870. O grande impacto, porém, vem com a Primeira Guerra Mundial. Isso afetou diretamente os jovens estudantes de história, entre eles Febvre e Bloch, embora Bloch tivesse estudado na Alemanha. Bloch foi aluno de Karl Lamprecht em Leipzig e do grande historiador e teólogo alemão Adolf von Harnack, em Berlim. Eu quero crer que Bloch ainda continuou a manter uma relação mais tranqüila com os alemães. Febvre não. Em Febvre a gente percebe que a Primeira Guerra representou algo muito difícil, como havia representado para um homem que ele admirava profundamente, Henri Pirenne. Pirenne era belga, e a invasão da Bélgica pelos alemães foi algo que causou tremenda má impressão na época. A Bélgica era um país neutro, e, enfim, essas relações políticas entre os países acabavam impactando também as relações historiográficas entre as duas margens do Reno. E é claro que com a Segunda Guerra Mundial esse fosso se aprofundou ainda mais. Bom, então o que isso nos afeta, no Brasil? Isso nos afeta à medida que a influência francesa, em especial a dos Annales, aumentou muito no Brasil. Essa visão um pouco ligeira, rápida, superficial a respeito dos alemães se consolidou entre nós. Eu me lembro muito bem que, quando da minha graduação, a gente dizia assim: “história positivista do século XIX, escola histórica alemã, etc”, quando na verdade isso significa uma simplificação grotesca, porque as grandes obras sobre teoria do conhecimento histórico, as primeiras grandes obras, estavam 268 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 sendo produzidas na Alemanha a partir da década de 1880: Dilthey em 1883, a Historik de Droysen, Rickert, que lança o segundo volume da sua grande obra em 1902, os ensaios teóricos de Weber, que são do início do século XX, os trabalhos de Eduard Meyer, enfim, houve um verdadeiro boom de reflexão teórico-metodológica na Alemanha entre as décadas de 1880 e 1890. E a história participou ativamente disso. Então, essa visão caricaturesca de uma historiografia positivista, como dizia Febvre, que não queria saber das idéias, que não queria saber da teoria, não se sustenta, pois se havia um país que estava adiante dos outros nesse aspecto era a Alemanha. Infelizmente, este problema político-militar dos dois países acabou nos atingindo indiretamente, porque prevaleceu entre nós uma visão um pouco negativa demais da teoria da história alemã, isso no meu momento de formação. Eu fui para a Alemanha em 1998, e, até aquele momento, posso dizer que eu não percebia nenhuma grande diferença neste quadro. Continuava vigente aqui – vamos dizer assim – um “paradigma” dos Annales, e em algum momento se somou a influência italiana, vinda da micro-história. Mas quanto aos alemães, havia um grande silêncio. Quando muito, líamos autores como Marx, às vezes a Escola de Frankfurt, a qual tinha um impacto limitado, quase marginal, junto a nós historiadores. Claro que Marx a gente tinha que ler na época, mas muita gente nesse momento não estava tão próximo do marxismo. Quando voltei da Alemanha, em 2002, senti uma diferença imensa. Uma coisa curiosa é que eu saí daqui num momento que este diálogo estava sendo retomado. Comecei a ter contato com esses teóricos alemães lá na Alemanha mesmo, sem saber o que estava acontecendo aqui. Ao voltar, foi um verdadeiro susto. Já havia o Koselleck e também o primeiro volume da triloga do Rüsen, traduzido pelo Estevão Martins. Fica claro o quanto as traduções sempre são muito importantes, porque elas disponibilizam para o público universitário autores que só um ou outro professor conhece, ou que só um grupo que domina aquela língua conhece. Foi interessante esse movimento. Eu me arriscaria a dizer, e já disse isso outras vezes, que há uma retomada muito forte dessa influência alemã, no campo da reflexão teórica, em história da historiografia e em teoria da história. E acho que os franceses vão passar por um momento mais difícil agora. Acho que tende a haver uma certa inversão, a não ser para aqueles autores franceses que dialogam diretamente com os alemães. 269 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Revista Teoria: Paul Ricoeur... Sérgio da Matta: Em Ricoeur isso é evidente. Ele começa como um estudioso da fenomenologia de Husserl, depois caminha para o campo da hermenêutica, mas nunca perdeu o pé com a tradição husserliana. É um nome muito importante. Sempre foi um crítico dos Annales, crítico no sentido de “olha, eles são técnicos, mas eles não fazem uma teoria do conhecimento histórico”. Ele diz isso claramente, tanto que nunca foi muito citado pelos Annales. Quem levanta a bola de Ricoeur? Foi um crítico dos Annales, o François Dosse. E, de certa forma, o François Hartog, ao elaborar a idéia de “regime de historicidade”, está dialogando com Koselleck. Para mim, claro, é motivo de satisfação. Na Alemanha, ninguém estuda apenas uma disciplina na universidade, no sentido de que se você faz história então você só faz disciplinas na área de história. Lá você tem que fazer as disciplinas sempre em três áreas diferentes, e um mesmo número de disciplinas, embora uma dessas áreas seja sempre privilegiada (a Hauptfach). Então, normalmente, o pessoal de história faz muitas disciplinas de áreas afins: filosofia e sociologia, ou filosofia e estudos literários. Isso tende a dar para eles um cabedal teórico maior do que o dos franceses ou nós mesmos. Além do que é um país em que a tradição filosófica é muito forte. Sem falar que um dos campos da reflexão clássica da filosofia alemã a partir do século XIX é a história – não apenas a história como processo, mas a história como disciplina. Eles têm uma situação privilegiada, e eu acho natural que a gente estude esses autores. Revista de teoria: O professor Rüsen enfatiza muito que foi na Alemanha que surgiu essa discussão do processo de racionalização das disciplinas, de institucionalização. Sergio da Mata: Exato, essa institucionalização ocorre bastante cedo. A Historische Zeitschrift – Revista Histórica, a mais antiga revista histórica acadêmica, tem seu primeiro número editado em 1859, foi fundada por um aluno de Ranke, Heinrich von Sybel. Isso acontece bastante cedo, e é evidente que tem um impacto. Significa o quê? Não adianta um conjunto de pessoas produzirem um conhecimento original, é importante que haja um aparato institucional que dê condições a essas pessoas de continuarem trabalhando. Também contribuiu para isso o modelo de 270 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 universidade de Wilhelm von Humboldt, a universidade ancorada em ensino e pesquisa (embora isso já existisse na Universidade de Göttingen na segunda metade do século XVIII). Muito cedo, na Alemanha, a universidade se tornou o grande pólo de conhecimento. Não era o caso francês. No século XIX, muitos grandes historiadores franceses não eram professores universitários. Eram homens de Estado ou estavam em academias, não necessariamente em universidades. Revista de teoria: Nesse sentido professor, como seria, por exemplo, já que a historiografia francesa, de certa forma, foi muito influente no Brasil e continua influente. Como seria uma comparação de uma historiografia francesa com Foucault e o estruturalismo e a historiografia alemã? Sergio da Mata: Você pergunta se na Alemanha algum nome teve influência tão forte quanto Foucault na França? Revista de teoria: Não, mas uma comparação no Brasil mesmo, no sentido da relevância das duas, por exemplo, a relevância de Foucault sendo de uma historiografia francesa e a relevância da historiografia alemã. Sérgio da Mata: Bom, é evidente que o que eu estou dizendo não significa que alguns grandes nomes franceses não tenham se colocado. É uma coisa muito interessante. Eu estudei na UFMG, um dos primeiros lugares aonde Foucault deu aula no Brasil, onde ele esteve algumas vezes. O Brasil foi um dos primeiros países a receber a obra de Foucault e a traduzi-lo muito imediatamente. Vocês sabem que o seu primeiro grande comentador na língua inglesa foi um brasileiro. Um autor que vivia ainda na minha época de graduação, o José Guilherme Merquior. Foi um grande intelectual, um grande ensaísta brasileiro, e que era um diplomata de carreira. A tese de doutorado dele é muito importante, sobre o pensamento político de Weber e Rosseau. Ele foi orientado nada mais nada menos que por Ernst Gellner. Bem, quando fui para a Alemanha, eu me surpreendi porque que eles estavam começando a ler Foucault. É lógico que os grandes nomes o conheciam, mas na universidade, como um fenômeno mais generalizado, era bem recente a leitura de Foucault. Isso acontece um pouco, de certa forma, porque Habermas foi um grande crítico de Foucault. E Habermas exerceu, em alguns momentos, uma 271 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 influência quase imperial (no meu entendimento até negativa) na Alemanha. Eu fiz uma referência indireta a ele na minha fala de ontem, como um sátrapa moral. Habermas condenou muita gente ao ostracismo. Revista de teoria: Uma forma de controlar o mercado alemão de publicações... Sérgio da Mata: Controle do mercado de idéias, mais que pelo mercado editorial. Ele exerceu esse poder várias vezes, contra várias pessoas como Hermann Lübbe e Ernst Nolte. Em 1998 estourou uma grande crise entre um filósofo mais jovem, mas influente, Peter Sloterdijk, que denunciou Habermas duramente por utilizar seus contatos na imprensa a fim de deturpar o que Sloterdijk tinha escrito. Para voltar a Foucault: na Alemanha, por causa dessa crítica a Foucault, Habermas acabou influenciando um pouco negativamente demais. Eu não sou nenhum fã do pensamento de Foucault, mas reconheço a influência e a importância de vários livros que ele escreveu. A despeito disso, eu diria que há mais abertura dos alemães para os franceses do que o contrário. Isso não é de hoje, acontece há muito mais tempo – talvez com alguns momentos mais difíceis por causa das relações nacionais. Alguns intelectuais que eu admiro particularmente sempre leram e se fizeram influenciar por autores franceses. É curioso, os franceses sempre recebem muito bem os alemães que criticam a própria Alemanha: Nietzsche é muito evidente. Mas não só ele. É o caso do Norbert Elias, de toda a análise da sociedade de corte, do processo civilizador, e no qual a corte francesa tem um papel muito central. Mas quando se trata de um autor que mostra as entranhas do sistema francês, aí eles não traduzem, por exemplo: há uma tese de livre-docência muito importante de Lutz Raphael, sobre os Annales, e que não tem tradução até hoje na França e seguramente não vai ter: Die Erben von Bloch und Febvre. AnnalesHistoriographie und nouvelle histoire in Frankreich 1945-1980. Ele faz uma análise, numa perspectiva sociológica, desta escola enquanto uma estrutura de poder. A análise do Dosse o influenciou, mas ele foi mais fundo. Raphael vai utilizar um referencial teórico que, paradoxalmente, é francês, que é o Pierre Bordieu. Alguns nomes franceses chegam muito bem na Alemanha, e o Bordieu é um deles. Os alemães têm um imenso respeito pela sua obra. Ele não estava muito aí para essa coisa de “nós, os franceses”, ele dialogava com o pensamento norte-americano, alemão, enfim. 272 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Revista de teoria: Ontem, na palestra do professor Rodrigo Sá Motta, ele falou que toda produção historiográfica é voltada para os pares. Pessoalmente achei muito interessante. E para o senhor, qual a funcionalidade dessa produção do conhecimento histórico para a sociedade em si? Quais são os meios e até a gente pensou no sentido de inclusão de elementos estéticos e retóricos e se eles poderiam minar ou contribuir para a produção desse conhecimento enquanto científico? Sergio da Mata: Eu acho que as pessoas costumam ter uma posição muito taxativa com relação a isso, no sentido que ou a história não pode ser “popular” ou a história tem de ser estética: tem de valorizar o elemento de ornamentação do texto. Na verdade não tenho nenhuma posição muito rigorosa em relação a isso, porque acho que se trata de algo extremamente individual. Algumas temáticas com as quais a gente trata são temáticas difíceis, e eu não tenho a menor pretensão de que nós possamos fazer uma excelente teoria do conhecimento histórico querendo, de antemão, ser populares. Simplesmente porque essa área suscita problemáticas pelas quais o grande público não se interessa. Eu acho que se pode fazer uma teoria da história para ser entendida por quem estuda história. E nem sempre é o caso. Muitas vezes é o contrário: a legitimação de um teórico se dá pelo fato de que ele não se faz entender. Então o grande barato é você “entender” alguém que é inapreensível. O mito de alguns autores gira em torno do jargão que eles criam para si próprios. Há outros autores que teorizam e fazem teoria do conhecimento histórico sem jargão, de maneira que é profunda e ao mesmo tempo, se você estuda história ou se tem algum conhecimento histórico, você lê aquilo e é capaz de entender. Karl Popper dizia: “temos que escrever para sermos entendidos e não para não sermos compreendidos”. Se alguma dificuldade advém, ela deve advir da complexidade do objeto, e não do jargão que eu vou criar para tratar esse objeto. E então, transpondo essa questão para a historiografia em si, eu acho que grandes historiadores foram grandes estilistas, incontestavelmente. Febvre foi um deles, Braudel foi um deles. Os franceses já têm essa inclinação por conta do imenso prestígio que a literatura tem junto aos próprios franceses. Na França é uma questão fundamental escrever bem, enquanto na Alemanha normalmente não era assim – era fundamental ser “profundo”. Nietzsche criticou isso muito duramente 273 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 em vários textos e eu acho que ele foi uns dos autores que, maravilhosamente, atingiu as duas coisas. Isso não é uma obviedade: você conseguir ser profundo e, ao mesmo tempo, escrever um bom texto do ponto de vista formal. É o caso de uma geração filosófica alemã mais recente que, estava começando a estudar e a publicar na década de 1920, e que fugiu tanto da hermenêutica quanto da Escola de Frankfurt. Esse pessoal seguiu uma terceira via, agregada em torno de Joachim Ritter. A ela pertencem dois filósofos que admiro tremendamente, Hermann Lübbe e Odo Marquard. A forma como Marquard escreve é bárbara, ele filosofa de uma maneira bem humorada. Seus livros são sempre curtos, densos e, ao mesmo tempo, maravilhosamente bem escritos. Então acho que, na verdade, são falsas antípodas. Esses autores acabam mostrando que a questão estética na história, evidentemente, é um componente importante. Porque, no fundo, o que você está fazendo – para retomar a idéia de Wilhelm Schapp – é contar uma história. Se puder contar esta história de uma maneira atraente, tanto melhor. Eu sempre falo para meus alunos “quer queiramos quer não, os grandes historiadores não eram apenas grandes historiadores, eles eram grandes escritores”. Revista de teoria: Pensamos na funcionalidade do conhecimento histórico para a sociedade, e também para a própria academia, porque dentro da própria academia às vezes não se reconhece a funcionalidade e a relevância da teoria da história, ela é bem segregada, pelos menos lá na UFG reparamos que outros alunos de áreas distintas, da medieval por exemplo, tem um certo receio com a teoria da história. Sergio da Mata: São duas coisas, a primeira: a questão da relevância. A história corresponde a várias funções sociais. Uma delas é a construção de identidades. Em certo momento, se acontece algo diferente na minha vida, um dano qualquer, uma perda, isso vai interferir na minha existência, e eu vou ser algo diferente depois daquilo. Isso vale para as coletividades também, e o Lübbe explora isso muito bem. Uma das funções centrais do conhecimento histórico é portanto a criação e recriação identitária, individual ou coletiva. Esse é uma razão pela qual não vamos deixar de produzir conhecimento histórico, nunca. Seja pelas mãos daquele historiador autodidata, seja de um jornalista. Isso nunca vai deixar de ser “consumido”, pois há uma demanda social constante. Mas, e quanto à relevância para a nossa área? Qual é o risco de nós não refletimos sobre o nosso 274 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 conhecimento? Falo isso como alguém que, na época da graduação, não tinha essa percepção. Eu queria estudar história, mas: por quê se estuda a história? Como é que a história é feita? Devo admitir que isso, em absoluto, não me interessava. É evidente que as outras áreas estão interessadas em teoria e metodologia numa perspectiva muito pragmática; “o que isso pode trazer para mim em termos metodológicos, à práxis da pesquisa histórica?” O que não é ilegítimo. É natural que alguém que se interesse por História da Mesopotâmia veja nossa área como um meio. E é natural que aqueles que têm um pouco mais de interesse teórico vejam em nossa área um fim em si mesmo. Nós queremos estudar a história da historiografia e a teoria da história porque queremos entender melhor nossa disciplina e, num certo sentido, fazê-la melhor. Os grandes historiadores – não vou dizer todos – de certa forma estão atentos para que os teóricos dizem, sejam eles historiadores ou não. Os Annales estavam atentos a isso, os grandes historiadores alemães do final do século XIX não estavam de olhos fechados para que Dilthey ou Rickert estavam dizendo. Mesmos aqueles mais historicistas, no sentido mais tradicional, mais convencional. Tudo depende também de uma certa cultura filosófica da comunidade de historiadores. Diria que a nossa cultura filosófica é, em comparação com outras, relativamente pequena, embora eu ache que isso esteja mudando muito! A grande crise dos anos 1990, pós-modernismo, “acabou a história”, Fukuyama, tudo aquilo criou um grande vazio, e todo grande vazio tem de ser preenchido. As pessoas passaram a se preocupar mais com a teoria do conhecimento histórico. Então acho que esse quadro está num processo de mudança. Essa nossa conversa, com alunos de graduação, nunca aconteceria antes de meados dos anos 1990. Isso era muito restrito a pelos menos um departamento de história no Brasil, que era o da Puc-Rio, ou a problemáticas específicas do campo marxista. Alguns dos grandes nomes, como é o caso de Estevão Martins, estavam relativamente isolados. Igualmente, demos um passo extraordinário, com a criação da Associação Brasileira de Teoria da História e História da historiografia. Voltamos à questão institucional: não basta um grupo de pessoas terem boas ideias, você tem que agregar estas pessoas. O que, diante das agências fomentadoras, cria um elemento novo, e a sua área passa a ter um peso diferente junto a outras que estão muito mais organizadas. Nós estamos vivendo um crescendo, e eu fico satisfeito de estar vivendo isso. 275 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Revista de Teoria: Interessante todos os elementos que o professor citou, tanto de Teoria da História quanto de História da historiografia, que apesar de não ser a mesma coisa, são indissociáveis. Sérgio da Matta: Acho que aqui no Departamento de História da UFOP a gente vive uma situação muito feliz, talvez única, de ter quatro professores trabalhando na área, e agora com a chegada do quinto que é o Mateus Pereira. Uma coisa importante que aconteceu aqui, e que não acontece em outros lugares, foi a distinção das disciplinas uma das outras, as disciplinas da graduação. Normalmente, em metodologia da história, o professor tratava um pouco de tudo: história da historiografia, métodos, teoria do conhecimento histórico. Aqui nós distinguimos as disciplinas, nós diferenciamos mesmo. O responsável por História da Historiografia Geral vai trabalhar com historia da historiografia, e a disciplina Teoria da História, dada mais adiante, trata da teoria do conhecimento, hermenêutica etc. E metodologia da historia vai tratar realmente dos métodos. Quando eu cheguei à UFOP, existia a disciplina de Historiografia brasileira mas não existia (o que é muito comum na maior parte dos cursos de história) História da historiografia geral. Então nós criamos esta disciplina, porque é como estudar História do Brasil sem ter noções de História Moderna. Acredito ser uma tarefa para as outras instituições, para aqueles professores que estão lá, promover, fazer uma reforma do currículo, que não é uma coisa tão complicada assim e estabelecer mais claramente o escopo das disciplinas. Mesmo os alunos que não têm interesse na área de história da historiografia ou de teoria da história ganham com isso. Revista de Teoria: De certa forma facilita para a compreensão daquilo que está no momento tem uma diferenciação clara do que é teoria da historia e metodologia da historia. Sergio da Mata: É evidente, acho que aqui no departamento, nossos colegas têm muita consciência que não se trata de fagocitar as outras áreas; nós não queremos isso, não. Podemos estar a serviço de outras áreas. Revista de teoria: Quando o senhor fala da pós-modernidade, e é um problema que a gente teve até com o professor Pedro Caldas, que é a caracterização do que 276 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 vem a ser o pós-moderno e o moderno e a interferência desses dois conceitos hoje na teoria da historia. Sergio da Mata: Eu acho que o conceito de pós-moderno é um conceito epistemologicamente fraco. Ele é um label, uma marca, mais que um conceito. Eu não acredito que nós entramos em um novo tempo, uma nova era. Incertezas já houve antes. Uma grande era das incertezas, por exemplo, é o final do século XIX e início do século XX. Com Henri Bergson na França, de certa forma com o próprio Dilthey na Alemanha. Houve toda uma corrente chamada “filosofia da vida”, a Lebensphilosophie, no início do século XX, e que se tornou ainda mais forte depois da Primeira Guerra, e que vai se dar em um Oswald Spengler. Quer dizer: é próprio da sociedade moderna viver crises recorrentes de seus sistemas de pensamento. Thomas Luckmann e o Peter Berger mostram em Modernidade, pluralismo e crises de sentido que, na verdade, nós continuamos a viver numa era moderna. Porém, como entender a modernidade? O que a caracteriza? Ela é uma época de pluralização crescente: pluralização dos sistemas de referência, de sistemas intelectuais, de formas de teorizar o mundo, e cujas crises se dão exatamente por excesso de ofertas no mercado de idéias. Quando há excesso de oferta a grande questão é da busca por orientação: “Pra que lado eu vou? Qual a melhor opção metodológica? Qual a explicação é a mais adequada?” Na década de 1990, sobretudo por causa de alguns elementos macro-históricos (queda do socialismo, etc), acirrou-se a sensação dessa grande crise epistemológica. Mas no meu entendimento tal crise não é exclusiva da nossa época, não é definitiva, e provavelmente haverá outras. Estou me baseando muito na visão de Berger e Luckmann, a qual eu partilho, claro. Portanto não acredito no conceito de pósmodernidade, no sentido mais “denso” que a palavra possa vir a ter. Mas acredito que a crítica de vários autores que se identificam como pós-modernos teve a sua importância porque ela se colocou num momento em que as ciências humanas estavam engessadas em grandes sistemas interpretativos, que eles chamaram “grandes narrativas”, e que, num certo momento, tiveram um efeito reducionista, não há duvida. A crítica pós-moderna teve um efeito importante, mas que não é sem precedentes. Se vocês lerem o trabalho desse pessoal da “filosofia da vida”, do início do século XX na Alemanha, ou mesmo na França no mesmo período – 277 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Bergson – vocês vão perceber esse mesmo tom iconoclasta. Mas que volta e meia tem que acontecer para oxigenar um pouco, digamos assim, o campo intelectual. Revista de teoria: Nesse sentido, e aí é seguindo Ankersmit, a pós-modernidade, isso que se conceitua como pós-modernidade, seria o historicismo levado ao limite? Uma crítica historicista ao limite? Sergio da Mata: Então para quê falar em pós-modernidade, é o historicismo! É uma retomada. Revista de teoria: É uma volta. Sergio da Mata: Ernst Troeltsch já colocava isso no início do século XX. Eu acho que não há grande originalidade no pós-modernismo. Se você desce à essência do fenômeno, é apenas um vocabulário novo para velhas idéias. Não estou dizendo que a crítica deles não teve relevância, ela o teve em alguns momentos, devido a uma certa... a um excesso de otimismo cientificista na nossa disciplina. Na época que eu fiz a graduação, a maior parte dos livros terminava com uma série de tabelas, queriam quantificar a história. Então, havia essa leitura muito quantitativa, algo que já está realmente superado, embora, em algumas áreas, possa ser necessário. Quem trabalha com demografia histórica não pode escapar disso. Mas houve deturpações enormes. Um autor francês, Pierre Chaunu, tem um livro sobre La Mort à Paris. XVIe, XVIIe et XVIIIe siècles que usa métodos quantitativos de uma maneira muito mecânica, quase grotesca. Determinados fenômenos são de natureza qualitativa. Estamos falando de mentalidades, de subjetividades, ou de intersubjetividades ao longo do tempo. Quando eu tenho resistência ao pósmodernismo ou o quê se diz ser pós-modernidade, eu tenho resistência a algo de que falei ontem: essa visão de grandes rupturas na história, de que vivemos em um tempo definitivamente novo. Isso não passa de um frisson profético. Existe na vida social algo que se chama “instituições”, e que tendem a ordenar a vida social. Situações de relativa mudança, de crise, etc, sempre vão se colocar, mas imediatamente a própria sociedade produz mecanismos para restabelecer um certo equilíbrio, uma certa ordem. 278 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 Revista de Teoria: O ponto interessante é que o Sergio Paulo Rouanet fala em As Razões do iluminismo quando ele cunha o conceito de neomodernidade, no sentido de que ele está querendo caracterizar justamente as novas apropriações do que foi considerado como modernidade. Ou seja, prevalecendo tanto as continuidades além dessa ruptura que caracteriza a pós-modernidade e também vão romper com que foi a modernidade, é interessante perceber em sua fala essa busca de continuidade além de rupturas. Sérgio da Mata: Qual que é o drama do historiador? A história, tradicionalmente, foi e é compreendida como a disciplina da mudança. A partir de um certo momento, sobretudo por causa do contato com outras disciplinas das ciências humanas, percebeu-se que era importante dar atenção aos fenômenos que não mudam tão rápido, que resistem mais a mudar – não só por causa de Braudel. A história é, sempre, essa mistura de processos de transformação com dimensões da vida social que demonstram uma longevidade maior. Para comentar o que você falou, acho que o frisson pela mudança e pela grande ruptura pode ser um problema, da mesma maneira que uma certa obsessão pela permanência também o pode ser. Cabe ao historiador buscar o equilíbrio. Revista de teoria: Nesse sentido professor, você acha que é possível pensar uma nova filosofia da história, no sentido de que, por exemplo, o Rüsen faz com a Antropologia Histórica Teórica, com as constantes antropológicas? Acredita que seja um caminho viável, um ponto de tensão entre tantas rupturas e tantas continuidades? De buscar uma orientação no tempo? Sergio da Mata: Eu acho que essa tentativa existe. Mas isso marcou também a geração do Rüsen, não na época em que ele estava começando, mas na década de 1970 e 1980. Na Alemanha, a antropologia filosófica se tornou quase uma coqueluche, mas isso não teve qualquer impacto na França, não teve a menor influência na França e nem nos EUA. Eles têm horror à antropologia filosófica. Mas na Alemanha vários autores importantes, e eu me filio a alguns deles, não conseguem pensar a dinâmica social desconectada de constantes antropológicas, e isso marcou as ciências humanas como um todo na Alemanha num certo instante. Apesar de Heidegger sempre ter-se dito contra a antropologia filosófica, esta 279 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 corrente acabou tendo muita influência por lá. Iser foi buscar uma estrutura antropológica dos gêneros literários, Luckmann fez o mesmo para as formas de religiosidade, da mesma maneira que o Rüsen no âmbito do conhecimento histórico. É sempre um jogo arriscado porque se está sempre sujeito a contestações, a outras visões a respeito do que essas constantes viriam a ser. No entanto, é o que torna a coisa interessante. Não sei se eu concordo com as soluções que Rüsen apresenta, quando ele busca essas constantes. Eu procuraria outro caminho. Me seduz mais o pensamento do Wilhelm Schapp. Revista de teoria: Pensamos na questão do Weber, quando ele fala do método compreensivo, e gostaríamos de saber qual a relação entre esse método compreensivo dele e a hermenêutica contemporânea de Gadamer, que não sabemos se se poderia ser enquadrado em um método compreensivo. Quando falo em compreensivo penso mais em Dilthey, então há aí uma relação entre o método de Weber e de Gadamer? Sergio da Mata: Olha, verdade seja dita, Weber só incorpora essa preocupação hermenêutica relativamente tarde. As pessoas são levadas, erradamente, a acreditar que isso está cedo no trabalho dele por conta de traduções, porque ele usa muito o termo Bedeutung naquele famoso ensaio sobre objetividade, só que quando Weber fala em Bedeutung ele não está falando em sentido e sim em importância. O termo Bedeutung pode significar sentido, o sentido de algo – “Was bedeutet das?” – quanto pode significar também a importância de algo. Quando usa o termo nos seus primeiros ensaios teóricos, ele está mais ligado a Rickert, está querendo pensar por que alguns objetos se tornam importantes para o historiador e por que outros não. A questão inicial do Weber era essa, e era aí que Rickert entrava. O Weber tardio, a partir da década de 1910, começa a estabelecer esse diálogo com Dilthey. Isso se deu tarde por alguns motivos. Primeiro, ele era muito próximo de Rickert. E Rickert não tinha nenhuma simpatia pelo trabalho de Dilthey. A importância de Dilthey se coloca de uma maneira muito grande nesse início do século XX. Ele passa a ser mais referencial do que o próprio Rickert, porque Rickert escreveu muito para os historiadores, e Dilthey escreveu para as ciências humanas. Quando Weber passa a falar em “sociologia compreensiva”, isso se dá tarde na sua carreira. Em segundo lugar, o que Weber escreveu sobre 280 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 compreensão é pouco, e é relativamente ruim em comparação com o que outras pessoas estavam fazendo, por exemplo o próprio Dilthey e Georg Simmel. Quem colocou isso à mostra de uma maneira muito evidente foi Alfred Schütz. Num livro de 1932, Der sinnhalfte Aufbau der sozialen Welt, ele tentou articular Weber e Husserl. O que Schütz vai mostrar é o seguinte: Weber não tem uma teoria da compreensão dos fenômenos sociais e, a este respeito, está cheio de contradições. Schütz vai tentar refazer o que o Weber começou a fazer e não fez. Na verdade, é curioso que hoje em dia Weber seja muito festejado por ter iniciado a sociologia compreensiva, mas ele compreendia menos a compreensão do que Simmel, por exemplo. Como se criou o mito “Max Weber”, ele acaba sendo superestimado num aspecto que está longe de ser sua contribuição principal. Se você olhar em volta, percebe que havia gente fazendo isso melhor do que ele. Como Simmel, que, nesse sentido, era muito mais poderoso na força intuitiva. Revista de teoria: Por fim, pensamos em um último tópico, que seria a virada lingüística, que o senhor já citou que é Habermas, e ele identifica duas linhas que hoje conhecemos por virada lingüística, seria a de Wilhem Humboldt e a de Frege. Gostaríamos de saber então, como o senhor percebe essas duas linhas distintas de análise da linguagem para a produção do conhecimento histórico? Sergio da Mata: Há quem diga que a virada já virou. Há um artigo de Hubert Knoblauch chamado Das Ende der linguistischen Wende, (“O fim da virada lingüística”). É claro que há influência muito forte de um Rorty, que acabou muito difundido no Brasil bem como de alguém que estava ligado a ele que é o Hayden White. A idéia de que a linguagem constitui a vida social de certa forma trivial, uma vez que não há vida social sem alguma forma de linguagem. Mas usar a linguagem como uma chave para compreender tudo na vida social me parece limitador. Creio que um outro conceito, talvez mais denso, é o de comunicação. Até do ponto de vista da morfologia da palavra: comunic/ação é uma forma de agir no mundo. Quem se comunica não apenas emite sinais, ele age, ele interfere na esfera da existência ou da vida social. Pelo menos três pensadores muito influentes adotaram o conceito de comunicação como central. Habermas, na sua “teoria do agir comunicativo”, Niklas Luhmann, em sua “teoria dos sistemas”, e o próprio Luckman, que elaborou uma sofisticada teoria dos gêneros comunicativos. É claro 281 Revista de Teoria da História Ano 1, Número 3, junho/ 2010 Universidade Federal de Goiás ISSN: 2175-5892 que há distinções fortes entre os três autores, mas o conceito-chave aí não é “linguagem”, é algo mais complexo. Porque a comunicação também se dá por meios miméticos. Se, por exemplo, o telefone de seu colega toca durante a aula e o pessoal já olha, percebemos que este ato comunicou algo, embora não se trate de uma linguagem do ponto de vista formal. A linguagem é sumamente importante, é lógico, mas existe também o que está além da linguagem, uma vez que há formas de interferir na vida social comunicando algo sem fazer uso da linguagem do ponto de vista restrito. Eu acho interessante o que os teóricos da virada lingüística dizem, mas acho um pouco ligeira demais a idéia de que os historiadores vão resolver seus problemas centrais através de uma abordagem lingüística, que veja na linguagem o alfa e ômega da análise histórico-social. Revista de Teoria: Nós queríamos agradecer por ter tomado seu tempo e pela oportunidade da entrevista. Sérgio da Mata: Eu é que agradeço. 282