La chute du ciel - R@U: Revista de Antropologia da UFSCar
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La chute du ciel - R@U: Revista de Antropologia da UFSCar
R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ! KOPENAWA, Davi & ALBERT, Bruce. La chute du ciel: paroles d’un chaman yanomami. Paris: Terre Humain, Plon. 2010. 819 pp. ! ! ! José Antonio Kelly Luciani 1 Professor do Departamento de Antropologia e do PPGAS da UFSC Pós-Doutor em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ Doutor em Antropologia, Universidade de Cambridge ! ! ! ! Por mais de uma década se sabia nos círculos antropológicos amazonistas que algo verdadeiramente incrível estava nascendo da parceria entre Davi Kopenawa e Bruce Albert. Algumas pistas já haviam aparecido (Albert, 1993; Albert & Kopenawa, 2003; Viveiros de Castro, 2007). A expectativa era mais do que justificada por esta obra magna sem paralelo na antropologia amazonista. A queda do céu entrará, sem dúvidas, para a história da antropologia ao lado de seus maiores textos e representa um divisor de águas na escrita antropológica amazonista. O livro tem mais de 800 páginas e 1000 notas de rodapé e, como sou um estudioso dos Yanomami, permito-me fazer um comentário mais extenso nesta resenha, que escrevi como um relato, mas principalmente como um tributo aos autores, pelos quais tenho uma profunda admiração. Se de certo modo apresenta-se como uma inversão da influente tese de Albert (1985), A queda do céu é, todavia, um projeto completamente diferente. Unidos por seus esforços em defesa do povo Yanomami frente à incessante devastação causada pelos projetos de desenvolvimento brasileiros, no final da década de 1980, Kopenawa, dando-se conta da necessidade de afetar as mentes do povo branco, pediu a Albert que o auxiliasse a reduzir o hiato cultural a fim de tornar a sua mensagem acessível a um público ocidental tão amplo quanto possível. Elaborado a partir de mais de 1000 páginas de entrevistas realizadas inteiramente na língua Yanomami abrangendo mais de uma década (de 1989 ao início dos anos 2000), o livro é, como diz Albert, “a história da vida de Kopenawa, 1 Este ensaio foi originalmente publicado no Journal de la Société des Américanistes, 2011, 97(1). Agradecemos ao autor por autorizar a sua publicação em português. Tradução de Messias Basques, Stéphanie Tselouiko & Clarissa Martins Lima. 172 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U autoetnografia e manifesto cosmopolítico” (:17), e trata basicamente do “malencontro histórico dos ameríndios com as franjas da nossa ‘civilização’.” (:17). Este é um escrito difícil de classificar em um gênero antropológico específico, pois é ao mesmo tempo um autorretrato indígena individual e coletivo em comparação dialética com a cultura dos brancos e uma crítica da civilização ocidental conduzida pela comunidade de espíritos yanomami através de um de seus porta-vozes. Também não seria exagero dizer que em meio a uma vasta literatura dedicada aos Yanomami, A queda do céu é a mais ampla e digna descrição deste povo amazônico, abrangendo com detalhes tópicos que vão da cosmologia ao xamanismo, da vida cotidiana à guerra, da liderança e das artes verbais à história do contato, à etnopolítica e às implicações gerais do crescente engajamento de um povo amazônico com o Estado-Nação e com forças econômicas globais. Narrado inteiramente por Kopenawa, A queda do céu faz tudo isso em uma linguagem não acadêmica que o torna extremamente esclarecedor e acessível a um grande público interessado em povos indígenas e no processo multifacetado que chamamos de “desenvolvimento,” presente nos quatro cantos do planeta. Trata-se, todavia, de um livro complexo e de interesse fundamental para os antropólogos e para as ciências sociais, em geral. Se é verdade que um dos principais objetivos da antropologia é abrir espaço para sentidos alternativos e nos instruir a respeito de outros universos conceituais que possam relativizar o nosso próprio universo, A queda do céu deve ser considerado como um grande feito antropológico. O pacto etnográfico !“Toda compreensão de uma outra cultura é um experimento com a nossa própria cultura” (Wagner 2010: 41). Isto vale para ambos os casos, e A queda do céu é um magnífico exemplo de uma dupla objetificação reflexiva e recursiva de si e do outro. O trabalho criativo do antropólogo e do indígena – os textos daquele e os sonhos deste –, investidos em suas respectivas formas de criatividade, esculpiram esse árduo caminho que remonta à origem de todo encontro etnográfico – nos quais “o equívoco deles a meu respeito não era o mesmo que o meu equívoco acerca deles” (ibid: 20) – para reconhecer e criar uma relação intelectual entre duas formas distintas de criatividade. Isto é parte do que Albert chama de “pacto etnográfico”, uma forma pós-malinowskiana da prática etnográfica com implicações radicais em vários sentidos. O pacto é uma lição central do livro, uma inspiração para muitos etnólogos cujas condições de campo podem variar em grau, mas não quanto ao caráter da formação de Albert como antropólogo. Confrontado como fora, desde 1975, com as imagens exóticas de um povo pouco contatado no tempo e no espaço e com os efeitos dramáticos da construção da Perimetral Norte, uma rodovia projetada para alcançar a Colômbia cortando a terra yanomami, o autor relembra a sua ansiedade inicial: 173 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ! ! Como podemos conciliar conhecimento não exotizante do mundo yanomami, análise dos prós e contras do funesto teatro do “desenvolvimento amazônico” e uma reflexão sobre as implicações da minha presença como ator-observador nesta situação de colonialismo interno? (:568) A solução de Albert: ! ! Primeiro, naturalmente, fazer justiça escrupulosamente à imaginação conceitual dos meus anfitriões, depois tomar em conta com rigor o contexto sociopolítico, local e global, no qual a sua sociedade está inserida e, por fim, conservar um procedimento crítico sobre o próprio quadro da observação etnográfica. (:569) O pacto também decorre do reconhecimento de que a “adoção” do antropólogo é de fato uma aposta, por parte dos indígenas, sobre as futuras possibilidades de mediação, em que a habilidade do antropólogo possa servir de contrapeso ao desequilíbrio de poder ao qual estão submetidas muitas comunidades indígenas, o que inclui a propagação de doenças, o roubo de terras, a migração forçada e uma miríade de formas de racismo e discriminação. Um pacto envolve duas partes, e para os indígenas o desafio consiste em: ! ! […] envolver-se em um processo de auto-objetificação através do prisma da observação etnográfica, mas sobretudo de uma maneira que lhes permita adquirir reconhecimento cultural e a conquista de um lugar legítimo no mundo opaco e virulento que se esforça para subjugar-lhes. Em retorno, o etnógrafo tem que assumir fielmente uma tarefa política e simbólica de mediação regressiva, à altura do débito de conhecimento em que ele incorreu, mas sem abdicar da singularidade de sua própria curiosidade intelectual (da qual depende, em grande parte, a qualidade e a eficácia de sua mediação). (:571) O pacto Kopenawa-Albert nos mostra que a tão falada “implicação política,” o “engajamento” do antropólogo, exige que se faça justiça, ao mesmo tempo, à “imaginação conceitual” de um povo e que seja assumida a responsabilidade pela mediação. Aqueles de nós que passam as suas vidas entre indígenas sabem como esses dois elementos costumam ser desagregados na escrita acadêmica, na prática profissional e nos valores institucionais. E, claro, a beleza, o drama e a força de A queda do céu seriam impossíveis fora deste pacto. ! ! ! ! 174 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U A escrita !Em A queda do céu a autoria é uma questão complexa, um verdadeiro experimento. Kopenawa é o narrador, o autor das palavras, da vida, da etnografia e o instigador do projeto. Albert é o autor da organização e dos esforços de tradução para tornar o pensamento e a experiência de Kopenawa acessíveis ao grande público. Esta não é uma tarefa simples e Albert optou por não desaparecer completamente do texto, mas por mostrar-se “discretamente,” como ele mesmo diz, mantendo assim a evidência da colaboração. Albert acompanha o leitor cuidadosamente através de notas de rodapé detalhadas e esclarecedoras; três anexos contextualizam o povo Yanomami, a região onde vive Kopenawa e os apuros do etnocídio provocado pelo garimpo ilegal de ouro nas terras Yanomami; um glossário geográfico e etnobotânico; títulos de capítulos e epígrafes habilmente selecionados. O livro também apresenta numerosos desenhos yanomami, tão belos quanto instrutivos, e fotografias que destacam Kopenawa, seu povo e sua trajetória. Albert também optou por uma tradução “à meia distância” a fim e evitar as ciladas tanto de um trabalho estritamente literal quanto de uma tradução improvável ou absurda. E ele deve ser elogiado por capturar detalhes retóricos que são, na maior parte do tempo, condensados em algo que se parece com simples sufixos yanomami. Outros dispositivos comuns da fala yanomami, como o efeito enfático que um enunciado negativo lança sobre o seu oposto, nos mantêm próximos do registro da poética yanomami, um traço que qualquer leitor familiarizado com línguas ameríndias irá apreciar. Em suma, as palavras traduzidas de Kopenawa conservam o tom metafórico da língua yanomami, a poética da analogia e as imagens da vida na floresta. “Muitas são as histórias de antropólogos que, por serem excelentes etnógrafos, acabaram se tornando nativos, ou que deveriam, e até poderiam fazer danças tribais, mas que não as descrevem, que poderiam se tornar possuídos por espíritos nativos, mas que não os discutem.” (Schneider in Wagner, 1972: viii). É porque nenhum dos antropólogos – Kopenawa e Albert – sucumbiu às tentações de se tornar indígena ou branco; é porque a apreensão de sentidos alternativos resultou numa dialética, que A queda do céu serve de apoio para ver nossa “cultura de ciência” e nossa “visão de mundo da mercadoria” a partir de uma perspectiva de fora: do xamã e dos espíritos yanomami. É por isso que o leitor ansioso por um toque de crítica pós-moderna ficará profundamente desapontado, assim como aqueles impressionados com as pílulas de estilo new-age das mensagens xamânicas por um mundo melhor. A queda do céu é um trabalho árduo, da mesma maneira que foi duro o trabalho de tornar-se xamã para Kopenawa e que continua a sê-lo defender o seu povo e o seu território. Kopenawa não faz gestos simplificadores quando descreve o panteão de espíritos yanomami e o seu funcionamento, tampouco as imagens da devastação e do etnocídio são diluídas. Perceber a escala da complexidade e do desequilíbrio é parte fundamental do esforço de nivelamento do livro. 175 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 Em seu post-scriptum, Albert deixa claro que a autoria foi motivo de reflexão em todo o processo de produção do livro. Talvez a melhor tradução seja a de Viveiros de Castro (2007): isto é exercício xamânico par excellence, talvez um internamente decomposto, onde Kopenawa fala da visão xapiri (espíritos yanomami) do mundo branco através da mediação de um antropólogo branco. Quem é o autor destas palavras, ditas por um xamã que nada mais é do que um veículo das palavras dos xapiri, e que aprendeu a compreendê-los por meio das instruções de seu sogro? Estas são as palavras de Omama, o criador Yanomami, como nos diz Kopenawa com certa frequência. Quantos autores e traduções estão envolvidos? A diversidade incontável de xapiri, o mestre xamã, o aprendiz, o antropólogo branco: eles estão todos envolvidos. Quem aqui é o público? O projeto é claramente dirigido aos leitores ocidentais, não obstante as interpretações de Kopenawa do mundo branco e suas exortações sejam repletas de orientações para o seu próprio povo, muitos dos quais vivem, atualmente, em um mundo “nem aqui, nem lá” de hibridismo amazônico indígena-branco. ! Kopenawa: filósofo, etnógrafo e mestre da metáfora Kopenawa é um observador parcimonioso e perspicaz, o que provém de seu interminável questionamento dos significados de seu próprio mundo e de sua interrogação incessante acerca dos pensamentos e das motivações dos brancos. O livro é marcado, em diferentes episódios, por esse esforço de compreensão que revela a propensão filosófica de Kopenawa. ! Eu penso em nossos ancestrais que, no tempo primordial, se transformaram em caça. Eu não me cansava de perguntar: onde os seres da noite tornaram-se realmente existentes? Como era o céu neste tempo primordial? Quem o criou? Para onde foram os espectros de todos os que morreram antes de nós? (:296) ! ! Eu contemplava a floresta machucada e, no fundo de mim, eu pensava: por que suas máquinas arrancaram todas estas árvores e esta terra com tanto esforço? Para nos deixar este caminho de pedras afiadas abandonadas ao calor do sol? Por que gastar assim o seu dinheiro, enquanto nas suas cidades muitas de suas crianças dormem no chão como cachorros? Por que vêm de todos os lugares ocupar nossa floresta e devastá-la? Cada um deles já não tem uma terra, onde a sua mãe lhes deu a luz? (:338-9). Neste sentido, o livro apenas ratifica o que eu já tinha visto. Em 2008, eu acompanhei Kopenawa em visitas a comunidades yanomami na Venezuela. Depois de muitas horas de reuniões com os seus pares venezuelanos, falando sobre demarcação de terras e política, em cada aldeia o encontrávamos junto aos anciões da comunidade, noite a dentro em entusiasmadas consultas sobre seus mitos e sua história. Ele é um etnógrafo consumado. O leitor também será tocado pela destreza que Kopenawa demonstra com a metáfora e por seu deleite com explicações; ambos caminham juntos em seu discurso. Kopenawa é um retórico 176 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U temperado que comanda a atenção de seus leitores assim como o faz com o público yanomami. No regime discursivo yanomami, é a metáfora que sustenta o olhar dos outros e nela está a habilidade de Kopenawa em fazer o desconhecido ressoar como o conhecido; de avançar até conexões imprevistas entre os mitos e os eventos atuais, que estão no cerne de sua influência. Isto não basta para explicar, pois é preciso entreter, e para tanto o orador deve recorrer à poesia e ao humor. Alguns exemplos bastarão para ilustrar o talento de Kopenawa. Falando das epidemias que mataram muitos de seus antepassados durante o período dos contatos iniciais: ! Em todo o caso, era suficiente que nossos ancestrais inalassem essa fumaça desconhecida para que morressem, como os peixes que ignoram o poder letal das folhas de veneno koa axihana utilizadas na pesca. (:250) ! Sobre a habilidade dos xamãs yanomami sonharem; o seu caminho para o conhecimento dos xapiri: ! ! Nós, no entanto, somos capazes de sonhar muito longe. As cordas de nossa rede são como as antenas de rádio, as quais transformam-se em caminhos que conduzem os xapiri e as suas músicas até nós, assim como as linhas telefônicas dos brancos. (:496) Da natureza da multiplicidade xapiri: ! ! Cada nome é único, mas os xapiri que eles designam são inumeráveis. Eles são como os espelhos que eu vi em um de seus hotéis. Eu estava sozinho na frente deles, mas, ao mesmo tempo, eu tinha muitas imagens idênticas de mim mesmo. (:99). Há um contraste trabalhado em todo o livro entre as visões xamânicas e os sonhos que dão acesso ao verdadeiro conhecimento das imagens da floresta – e, portanto, inacessível aos yanomami não iniciados e aos brancos – e a escrita dos brancos, bem como da aquisição de conhecimentos por meio dos livros e da educação formal: “Seu papel é o nosso pensamento, que se tornou, desde os tempos mais antigos, um livro interminável, tão grande quanto extenso.” (:554). Jorge Luis Borges reconheceria no xamanismo yanomami a realização de seu infinito livro de areia. No texto de Kopenawa vários elementos do discurso se repetem, sugerindo complexos significados através da forma. Eles também evocam o traço de um discurso feito originalmente na língua yanomami. “É Assim”: esta expressão dá inicio a centenas de descrições detalhadas, particularmente do mundo dos espíritos yanomami, em situações que se apresentavam inéditas para Kopenawa naquele momento, ou então algo evidentemente complexo para os que não veem os espíritos e que exige, 177 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 portanto, uma explicação meticulosa. Tal o entusiasmo dos leitores que se veem diante do “Mas isto não é tudo” nas Mitológicas de Claude Lévi-Strauss, aqui, a cada ocorrência de “É Assim” o leitor deve segurar firme o livro em suas mãos porque o que segue é uma amostra fascinante da etnografia yanomami. “Não é à toa”:2 O livro é, afinal, uma história de vida e Kopenawa narra com detalhes a sua progressiva passagem do desconhecimento total do mundo dos espíritos yanomami e do mundo dos brancos, até o seu aprendizado e maestria. Esta jornada revela que tudo tem uma razão, ou melhor, uma história. Coisas ou eventos que “Não [são] à toa” significam que são o produto do “pensamento de ninguém,” motivo pelo qual os leitores se darão conta de que nada é, na verdade, “à toa.” Uma característica produtiva do discurso yanomami, “Não é à toa” instrui os leitores sobre a humanidade imanente à floresta; sobre o ser animado por trás de cada coisa e de cada evento e que está na raiz de toda a capacidade de afetar ou de ser afetado; sobre a ecologia das relações entre humanos e nãohumanos. Mas a expressão também opera como um alerta aos leitores sobre a importância do que parece ter pouca ou nenhuma relevância para os brancos, evocando assim uma contra-explicação, uma história para que os brancos possam reconhecer algo que eles dizem não existir. “Outra gente”: um contraste nítido percorre todo o livro e pode ser resumido na oposição entre filhos e genros Yanomami de Omama, o criador, e os brancos, também criados por Omama, mas que foram iludidos por seu irmão malévolo Yoasi. As visões xamânicas e os sonhos yanomami levam ao conhecimento verdadeiro das imagens do mundo, conduzido pelas palavras dos xapiri, por eventos míticos e por tudo que está na raiz das coisas. O conhecimento dos brancos, condensado na leitura e na escrita, é “nublado,” “cheio de esquecimentos.” Tendo apenas os “olhos dos espíritos dos mortos,” os brancos não podem ver as verdadeiras imagens do cosmo. Cegos, os brancos são insensíveis à humanidade imanente. Esta é a definição de sua ignorância. A repetição de “os brancos são outra gente” parece-me revelar a percepção de Kopenawa de que os brancos construíram outro mundo para si mesmos, um em que a relação com os Yanomami não pode ser imaginada como um mal-entendido sobre significados compartilhados, mas antes como uma equivocação entre diferentes mundos conceituais (cf. Viveiros de Castro, 2004). “O valor”: Na língua yanomami, um simples morfema ‘në’, que evoca valor e um traço de algo animado. Acompanha muitos dos argumentos de Kopenawa e parece ser um elemento fundamental de uma política ameríndia da natureza que é distinta; parte de uma economia política de pessoas em um mundo habitado por muitos tipos de povos humanos e não-humanos. Trata-se de uma daquelas conceituações, totalmente abrangentes, que parecem ser a base do significado das relações sociais que envolvem a fertilidade, a mortalidade, a troca e a reciprocidade. Sua ocorrência em contextos 2 Nota dos tradutores: ou, então, “Não é sem razão”. 178 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U díspares sugere aos leitores a sua importância e o seu caráter “indefinível,” e os antropólogos fariam bem em investigar o seu significado. ! Parte I – Tornar-se outro !Os primeiros oito capítulos de A queda do céu podem ser lidos como uma série de exposições sobre etnografia espiritual: O conhecimento de Kopenawa e a sua habilidade para transmitir, através da descrição e da analogia, a complexidade dos xapiri, as camadas cósmicas e a mitologia é surpreendente. Nunca antes uma cosmologia ameríndia e sua dinâmica nos foram apresentados tão clara e detalhadamente. Talvez o aspecto mais pedagógico seja a maneira como o leitor acompanha a própria passagem de Kopenawa da ignorância ao conhecimento, de ser perseguido pelos sonhos na infância à sua iniciação ao xamanismo, com todas as suas dúvidas, hesitações, sofrimentos, surpresas, retrocessos e a tenacidade do seu anseio por conhecimento. Segundo Wagner, “um mito é ‘outra cultura’, mesmo para aqueles de sua própria cultura” (1978: 38), e é porque o mundo dos xapiri é outra cultura para os Yanomami que a jornada de Kopenawa naquele mundo torna-se compreensível para nós. Neste capítulo, tópicos clássicos da antropologia amazonista, como a relação íntima entre caça e xamanismo, perspectivismo e predação ontológica, aparecem antes de modo autodescritivo do que em termos analíticos, belamente entrelaçados às cenas da vida yanomami, igualmente reveladoras dos princípios de sua socialidade. Também se apresenta abundantemente claro que a ecologia yanomami é uma política sensível de manejo das relações com todos os seres espirituais que se encontram na raiz de cada característica e qualidade da floresta, dos humanos e do cosmo, em geral. Meteorologia, fertilidade, dinâmica da população animal, mas também sentimentos como fome e coragem, capacidades, como o pensamento claro e o discurso influente, começam e terminam em seres invisíveis e animados. A descrição de Kopenawa deste “mundo da humanidade imanente” é fundamental para o seu argumento, pois é a partir daí que ele dirige a sua crítica xamânica à objetificação ocidental da natureza e suas consequências extremas. O que Kopenawa descreve é complexo e tem-se a impressão de que ele poderia muito bem prosseguir indefinidamente. Os xapiri são minúsculos, poderosos, incrivelmente luminosos, bonitos, diversos, múltiplos e inconstantes. Os xapiri são magníficos, embora inicialmente assustadores, em muitos sentidos são ampliações de práticas Yanomami, de valores e materiais mundanos, não obstante também sejam radicalmente distintos em seus hábitos, gostos, capacidades e habitats, todos os quais são descritos até os últimos detalhes. Os temas dos espelhos dos xapiri, de sua luminosidade e ornamentação são recorrentes: os próprios xapiri; seus caminhos; os espelhos que montam; os pisos de suas casas; os telhados e as suas 179 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 clareiras na floresta. Tudo o que é espiritual é ornamentado, brilhante e dessubstanciado; imagens puras que refratam incessantemente uma a outra. Tornou-se clichê dizer que “os xamãs são os viajantes do tempo e do espaço.” A partir da narrativa de Kopenawa, suponho que seria mais apropriado pensar não em termos de uma viagem, mas de uma dimensionalidade que é sujeita à manipulação xamânica: menos uma questão de se mover em coordenadas temporais e espaciais fixas do que a possibilidade de mudar as próprias coordenadas. Refrações intermináveis de imagens e dimensionalidades variáveis, estas são as “implicações com o infinito” dos xamãs Yanomami, para usar a expressão de Mimica (1988). Viveiros de Castro (2007) já comentou, a partir de fragmentos desta etnografia, as qualidades perspectivistas das relações xapiri-humanos-animais. Eu apenas gostaria de acrescentar que o relato de Kopenawa revela um paralelo verbal ou acústico igualmente importante para o jogo de perspectivas visuais. Tão importante quanto ser visto pelos xapiri, atrair a sua atenção e evitar perdêla, é aprender a compreender, a ouvir e, principalmente, a responder aos seus cantos. A beleza dos cantos, a sua verdade e a necessidade de respondê-los quando aparecem, repetidamente, é um requisito necessário ao conhecimento xamânico. Se alguém deve morrer e tornar-se um espectro para que possa ver como um xapiri, deve-se também adquirir uma língua e uma garganta xapiri para se tornar capaz de reproduzir seus conhecimentos/cantos. Um jogo verbal de perspectivas está na origem da realização do próprio perspectivismo (Viveiros de Castro, 1992). Isto talvez já tenha sido prenunciado pela visualidade, mas a narrativa de Kopenawa sugere a possibilidade de uma retomada proveitosa deste aspecto. Por último mas não menos importante, o conhecimento xapiri e a prática xamânica são reiteradamente descritos como “visadas de longe,” “sonhos à distância,” “palavras antigas,” “as palavras dos outros (dos xapiri),”. Para conhecer é preciso tornar-se outro. Toda esta ênfase parece crucial para o esforço comparativo de Kopenawa, pois contrasta com a obsessão dos brancos com os seus livros, apenas ouvindo as suas palavras, incapazes de sonhar (de) longe. Eles sonham apenas consigo mesmos. Com toda a sua engenhosidade, Kopenawa entende que os brancos são presos ao próprio umbigo. ! Parte II – A fumaça do metal !Trata-se de oito capítulos nos quais o “malencontro” dos Yanomami com a expansão do estado brasileiro mostra a sua face mortal. Partindo dos relatos do primeiro contato, rapidamente transforma-se num conto sobre epidemias, o radicalismo evangélico, de mortes pela construção de estradas e pela mineração ilegal de ouro. Esta cronologia do etnocídio yanomami encontra a sua lembrança mais reveladora em um dos anexos de Albert, um relatório do massacre de Haximu, em 180 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U 1993, que resultou na morte de 16 Yanomami nas mãos dos mineradores ilegais de ouro, os garimpeiros. Cada capítulo tem início com uma ou várias epígrafes (recortes de jornal, comentários de militares e de missionários da News Tribes Mission) ilustrando o olhar dos brancos em diferentes episódios do contato e da expansão em direção ao território yanomami, conforme narra o corpo do texto. Isto dá ao leitor uma ideia da diferença radical entre o sofrimento Yanomami e a arrogância do progresso. A influência dos brancos no pensamento Yanomami é um tema que percorre o texto. “Nossos anciões amam as suas palavras. Eles eram verdadeiramente felizes assim. Seus espíritos não eram presos em outros lugares. Os propósitos dos brancos não haviam sido introduzidos entre eles. Tinham apenas seus próprios pensamentos, dirigidos aos seus parentes.” (:223) Há uma maneira importante segundo a qual se deve pensar, sempre pensar em alguém, um parente (cf. Surrallés, 2003). Parte das coisas às quais “Não é a toa” se opõe se refere ao produto do pensamento de alguém. O comentário de Kopenawa é pungente a esse respeito, pois revisita o contato com os brancos, ontem e hoje, dando mostras de que os yanomami têm se perdido, pensando em demasia sobre os brancos, seus objetos manufaturados e o seu estilo de vida. O público de Kopenawa agora inclui os próprios Yanomami, muitos dos quais estão experimentando o que pode ser a combinação adequada das culturas dos brancos e dos yanomami. A narrativa de Kopenawa, em si mesma, é como uma história às margens dos mundos branco e Yanomami. No período dos primeiros contatos, aqueles que viriam conviver com ele em sua nova casa, Watoriki, sofreram uma epidemia em massa que os deixou dizimados. Muitos anos depois, quando vivia próximo aos missionários da News Tribes Mission em Thoothothopi, uma segunda epidemia matou a maioria dos parentes próximos de Kopenawa, incluindo a sua mãe. A partir de uma visão retrospectiva, Kopenawa narra como os mais velhos foram enganados pela força sedutora dos objetos manufaturados que esconderam a fumaça das epidemias que, na teoria etiológica Yanomami, os devastou uma e outra vez. E o mais triste é que estas não são apenas imagens de um passado distante. A saúde Yanomami tem estado sob uma crise constante desde então. Os ritos funerários Yanomami são destinados a apagar todos os vestígios da pessoa morta, bem como estimulam a determinação de vingar a morte de um parente. Kopenawa deixa claro o quanto de sua determinação em defender o seu povo se alimenta da memória de seus parentes devorados pelas epidemias xawara trazidas pelos brancos. Kopenawa continua a viver próximo aos missionários da NTM. A narrativa de uma conversão pessoal e coletiva desinteressada e que nunca passou de uma fase experimental é contraposta aos relatos detalhados acerca da imposição obsessiva das palavras de Deus pela NTM, aos ataques ao xamanismo e de práticas etnocidas corriqueiras encontradas em toda a Amazônia. Curiosamente, 181 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 parte da razão do desencantamento yanomami é a impossibilidade de ver Deus e sua falta de resposta – elementos que na Primeira Parte aparecem de modo crucial para a legitimidade do conhecimento xapiri. Por fim, Deus parece ter sido incapaz de proteger o seu rebanho da epidemia em Thoothothopi: a religiosidade yanomami não tem espaço para a fé. Após as epidemias em Thoothothopi, Kopenawa foi praticamente privado de seus parentes próximos. Tal falta de relações é o que significa ser pobre ou desprivilegiado nos termos yanomami, um fato que apenas torna a saga de Kopenawa ainda mais notável. Sentindo-se solitário, ele começou a se mover para além de sua comunidade. Trabalhando para a FUNAI, ele viajou para outras partes do território Yanomami, tornando-se familiarizado com as terras dos brancos, passando períodos em Boa Vista, Manaus e até mesmo em Iauareté, na fronteira com a Colômbia e trabalhando entre os Maku! Nesta época, dentro e fora da FUNAI e sob diferentes administrações, ele foi empregado em uma diversidade de trabalhos: na localização de comunidades Yanomami remotas; como intérprete; como aluno de um curso de agente de saúde; participante da criação de um novo posto da FUNAI e, até mesmo, como limpador de piscinas em Manaus! Este foi um momento no qual ele vivenciou a tentação de tornar-se branco mas, principalmente, foi o início de sua inserção na micropolítica amazônica. Ele aprendera a decifrar como os diferentes atores governamentais e não-estatais buscam dirigir o futuro dos Yanomami. Uma arena política cheia de acusações recíprocas e reveladora dos diferentes interesses que afetam o território Yanomami, tais as empresas de mineração, as políticas militares e de segurança nacional e o apoio de agências não-governamentais. Este também é o período em que ele ouviu dizer, pela primeira vez, as palavras “demarcação de terras”, as quais marcam sua vida até hoje. A ampliação de sua experiência lhe permitiu compreender a extensão da devastação associada ao desenvolvimento brasileiro – oportunidade rara para os demais Yanomami –, além de ter acompanhado de perto os efeitos nefastos dos mais de 200 km de estradas construídas que assombraram o território Yanomami e a corrida pelo ouro que, no final dos anos 1980, atraiu mais de 40.000 garimpeiros, infligindo toda a destruição social e ambiental que dizimou cerca de 10 por cento da população Yanomami no Brasil. No meio disso tudo, Kopenawa deu uma guinada importante em sua vida. Decidido a se tornar xamã, ele suportou as exigências do aprendizado com a mesma determinação inabalável com a qual ele dirigiu sua vida em função da defesa de seu povo. Ele o fez, por um lado, sob a orientação de um grande homem e xamã, seu sogro Lourival – um homem amável e gentil que eu tive a oportunidade de conhever em Watoriki –; e, de outro, um grupo de ativistas indigenistas que constituíram a CCPY (ONG fundada por Bruce Albert e outros) e que foram fundamentais para a realização da demarcação do território Yanomami. Portanto, é uma visão xamânica de todos esses acontecimentos drásticos que continua a envolver o entendimento de Kopenawa. Relacionando a devastação local de sua terra a processos 182 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U socioeconômicos mais amplos, os xamãs Watoriki desenvolveram uma teoria da história e dos motivos do mundo dos brancos que resulta em um anúncio profético dos xapiri: o retorno ao cataclismo mítico da queda do céu que nos esmagará a todos, Yanomami e brancos, se estes não pararem de consumir a floresta e se não devolverem o petróleo, o ouro e os metais que Omama sabiamente escondeu nas profundezas. Ao “cozinhar” tais materiais do subsolo em suas indústrias, os brancos estão queimando o peito do céu, espalhando mais fumaças epidêmicas dos xawara, tudo a fim de produzir as suas amadas commodities. Nesta economia política nada vale mais do que as pessoas e o valor é uma coisa totalmente diferente: ! Todas as mercadorias dos brancos nunca serão suficientes em troca de todas as suas árvores, as suas frutas, os seus animais e os seus peixes. O pouco de papel de seu dinheiro nunca será numeroso o bastante para poder compensar o valor de suas árvores queimadas, de seu solo seco e de suas águas sujas... Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus pais (xamãs) mortos! (:373) ! ! Parte III – A queda do céu !Os últimos nove capítulos da narrativa de Kopenawa são centrados em sua experiência como um porta-voz para o seu povo, desde as suas primeiras reuniões com movimentos indígenas até os esforços feitos para que as suas denuncias alcançassem à Europa e aos Estados Unidos. A seção é aberta com um capítulo dedicado à importância da fala para a obtenção de respeito e de influência entre os Yanomami. Um percurso etnográfico precioso através dos gêneros do discurso yanomami – incluindo as arengas dos anciões hereamu e os diálogos cerimoniais wayamu – revela um Kopenawa humilde e extenuado acerca de suas possibilidades como um líder em sua própria comunidade. Aqui ele aparece hesitante, respeitoso dos mais velhos e temeroso de sua habilidade para encadear as palavras corretamente, para falar com firmeza e para comandar a atenção de seus ouvintes. A mesma hesitação marca o início de sua carreira exterior como um porta-voz. Sobre a sua primeira experiência, ele lembra: ! ! Eu mesmo nunca fiz discurso hereamu na minha própria casa!... Eu não sabia ainda fazer sair as palavras da minha garganta, uma depois da outra! Eu me dizia: como eu vou fazer? Como os brancos falam nestas ocasiões? De que maneira começar? (:407) Mais tarde, sentindo-se mais preparado, ele comenta como precisou explicar o sofrimento em torno da corrida do ouro. 183 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ! Era difícil. Eu tinha que dizer tudo isso em uma outra fala que a minha! Por enquanto, à força de indignação, a minha língua chegou a ser mais ágil e minhas palavras menos confusas… Desde então, eu nunca mais parei de falar aos brancos. Meu coração parou de bater rápido demais quando eles me olharam e a minha boca perdeu a sua vergonha. Se as palavras se emaranhassem na minha garganta deixando sair só uma voz hesitante, os que chegassem a me escutar diriam a si mesmos: “por que este índio quer falar conosco? Nós esperamos dele palavras sábias, mas ele não fala nada!”. Eu não quero que se pense: os Yanomami são idiotas, eles não tem nada a dizer… eles só sabem ficar imóveis, os olhos perdidos, atônitos e acuados. (:409) Entre as viagens feitas por Kopenawa, é dada atenção especial às suas impressões sobre o Stonehenge, a Torre Eiffel e o Bronx. Aqui vemos a capacidade xamânica de abranger tudo em seu discurso, quando Kopenawa aloca todos esses lugares e experiências relacionando-os a mitos de criação e à história dos brancos, ao mesmo tempo em que adquire o conhecimento dos espíritos que habitam as terras dos brancos. Tais viagens a lugares distantes são repletas de riscos, já que os xamãs não devem se afastar dos lugares dos quais seus espíritos auxiliares descendem, para que não morram. Kopenawa teve que elaborar formas criativas para contornar essa dificuldade agravada pela possibilidade real de que seus espíritos fujam dele ao retornar ao seu Watoriki, sentindo-se abandonados pelas viagens empreendidas por seu pai ausente. Os museus sempre parecem agitar um cordão dissonante na imaginação dos povos indígenas. Os Yanomami eliminam todos os vestígios de seus mortos e para Kopenawa sua exposição irrestrita em museus é algo inconcebível. Ele divaga sobre algo ainda mais importante: é isto que os brancos nos reservam? É isto que restará de nós depois de terem acabado com a floresta? Sem dúvidas, as viagens de Kopenawa enriqueceram a mitologia Yanomami. Do mesmo modo, viajar além-mar é sempre uma espécie de previsão. No Bronx, Kopenawa diz-se chocado com a exclusão social que os brancos parecem tolerar com total equanimidade: ! ! Portanto, se ao centro desta cidade [Nova Iorque] as casas são altas e lindas, em sua borda, elas estão em ruínas. As pessoas que moram nestes lugares não têm comida e suas roupas são sujas e rasgadas. Quando eu caminhei entre eles, eles olharam para mim com olhos tristes… Estes brancos que criaram as mercadorias pensam que eles são engenhosos e valorosos. Portanto, eles são avarentos e não cuidam dos que entre eles são desprovidos de tudo. Como eles podem pensar ser grandes homens e se acharem tão inteligentes? Eles não querem saber nada destas pessoas miseráveis que são seus pares. Eles os rejeitam e os deixam sofrer sozinhos. Eles nem olham para eles e se contentam, de longe, em lhes atribuir o nome de ‘pobres’. (:460) A cultura dos brancos e a sua inteligência assumem a forma da técnica e do artefato. Kopenawa, assim como outros Yanomami que conheci, surpreende-se com a falta de parentesco entre os brancos – engenhosos, mas infra-sociais. 184 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U Por vezes Kopenawa divaga se a genialidade do branco em produzir bens pode ser realmente considerada como uma prova de inteligência. Um dos exemplos mais interessantes de antropologia comparativa é um comentário extenso, em um capítulo apropriadamente chamado “O amor pelas mercadorias”, no qual se estabelece um contraste entre a sujeição das relações sociais dos brancos em prol da acumulação de bens e a propensão Yanomami em fazer com que as coisas fluam. Sua reflexão envolve a categoria indígena matihi, que engloba os ornamentos pessoais dos Yanomami, as cabaças onde guardam as cinzas dos mortos e, desde a chegada dos brancos, também os seus bens. As palavras de Kopenawa a esse respeito são belas e penetrantes: ! ! É assim. As mercadorias não morrem. É por isso que nós não as acumulamos em vida e nós nunca as negamos aos que pedem. Se nós não déssemos elas, elas continuariam a existir depois da nossa morte e apodreceriam sozinhas, negligenciadas no chão de nossa casa. Elas serviriam tão somente para dar pena aos que não sobreviveram e choram a nossa morte. Nós sabemos que vamos desaparecer e é por isso que cedemos facilmente os nossos bens... assim as mercadorias nos deixam rapidamente para se perderem no fundo da floresta com os anfitriões de nossas festas reahu ou com simples visitantes... Quando um ser humano morre, seu espectro não leva nenhum de seus bens nas costas do céu... Os objetos que ele confeccionou ou adquiriu são abandonados na terra e só atrapalham os vivos, revivendo a nostalgia de sua presença. Nós dizemos que estes objetos são órfãos e que, marcados pelo toque do morto, eles dão pena. (:435) É irônico que tanta violência tenha sido praticada contra os Yanomami em nome da alegação de que eles é que seriam um povo violento. É sabido que a imagem de povo violento, atribuída aos Yanomami, foi instrumentalizada pelos governos militares do Brasil e por aqueles interessados em suas terras para justificar sua invasão e sua inserção em um regime produtivo a serviço de um suposto desenvolvimento. A famosa obra de Chagnon (1968), reeditada várias vezes e que apresenta os Yanomami como um “povo feroz”, em nada contribuiu para o bem-estar deste povo. E parece que Kopenawa tem a intenção de restaurar a verdade. Tal como acontece com o seu comentário comparativo sobre os bens, ele distingue os ataques de vingança dos Yanomami das guerras dos brancos: o primeiro como uma necessidade equilibrada de apaziguar a raiva causada pela morte de um parente; o último como uma busca absurda de riqueza material em uma escala de matança incomparável com o acerto de contas um-contra-um yanomami. Mais uma vez, são as pessoas que contam aqui, ao contrário do petróleo, dos minérios e das commodities que alimentam a guerra dos brancos (Kopenawa se refere particularmente à primeira guerra do Iraque, nesta passagem). Há um forte contraste no que tange aos motivos e à escala: ! Eles vão à guerra com muitas pessoas, com balas e bombas que queimam todas as suas casas. Eles matam até mesmo as mulheres e as crianças! E não é para vingar seus mortos. Eles fazem as suas guerras simplesmente por palavras ruins, por uma terra que cobiçam ou para arrancar os minerais e o petróleo. (:474) 185 R@U ∣ Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 Kopenawa não subestima os diferentes meios rituais nos quais os Yanomami resolvem seus conflitos, incluindo os ataques de vingança. No entanto, estes meios controlam a acumulação de raiva. Clastres viu a “sociedade primitiva”, aquela “totalidade una”, como uma máquina de segmentação que impede o surgimento de um poder separado da sociedade. A ênfase de Kopenawa também está na segmentação da própria raiva; a prevenção da raiva prolongada e cumulativa que levaria a uma guerra em grande escala. Sua ressalva, contudo, é que atualmente toda a coragem dos Yanomami deve ser orientada para os seus verdadeiros inimigos: os brancos que devoram sua terra e seu povo. Apesar de todos os danos causados, Kopenawa tem o cuidado de evitar generalizações: ! ! Nós não somos os inimigos dos brancos. Mas nós não queremos que eles venham trabalhar em nossa floresta porque eles são incapazes de nos devolver o valor do que eles destroem. É isso o que eu penso. (:372) O livro termina com uma retomada da principal advertência de Kopenawa: a destruição do planeta pelos brancos e a aproximação da morte de todos os xamãs, os únicos que seriam capazes de evitar a queda iminente do céu: ! ! Se os seres da epidemia continuarem a proliferar, todos os xamãs vão morrer e ninguém mais poderá impedir o caos. Maxitari, o ser da terra, Ruëri, aquele do tempo coberto e Titiri, aquele da noite, vão se zangar. Eles chorarão sua morte e a floresta será outra. O céu se cobrirá de nuvens escuras e o dia nunca mais nascerá. Não pararia de chover. O vento de furacões soprará sem trégua. A floresta nunca mais conhecerá o silêncio... Isso já aconteceu, mas os brancos nunca se perguntam por quê. A terra se saturaria de água e começaria a se putrificar. Então as águas irão recobri-la pouco a pouco e os humanos devirão outros, como já aconteceu no primeiro tempo. (:535) Quando o céu cair nós seremos todos esmagados e enviados ao submundo. Os xamãs Yanomami sabem disso, pois já o viram desde o início do tempo. ! ! Se os brancos se tornassem mais informados, o meu espírito poderia recobrar a calma e a felicidade. Eu diria a mim mesmo: ‘muito bem! Os brancos adquiriram a sabedoria. Finalmente, eles se tornariam amigos da floresta, dos seres humanos e dos espíritos xapiri!’ Minhas viagens chegariam ao fim... Eu diria então aos meus amigos: ‘não me chamem tão frequentemente! Eu quero devir espírito e continuar a estudar com os xapiri! Eu quero somente devir mais sábio!’ Eu iria então me esconder na floresta com os meus anciões para beber a yãkoana até me tornar muito magro e esquecer a cidade. (:527) Podemos apenas esperar que A queda do céu seja traduzido, especialmente para o inglês, e que as palavras de Kopenawa se espalhem com a mesma velocidade e com a mesma força das epidemias canibais xawara: apenas se o pensamento dos brancos for ampliado os efeitos dos seus atos poderão ser anulados. Kushu ha! 186 Revista de Antropologia da UFSCar, v.5, n.1, jan.-jun., p.172-187, 2013 ∣ R@U Bibliografia ! ALBERT, Bruce. “L’or cannibale et la chute du ciel. Une critique chamanique de l’économie politique de la nature”, L’Homme, 126-128, pp. 35-70. 1993. ALBERT, Bruce & KOPENAWA, Davi. Yanomami. L’esprit de la forêt. Paris: Actes Sud-Fondation Cartier pour l’art contemporain. 2003. CHAGNON, Napoléon. Yanomamö. The fierce people. New York: Holt McDougal. 1968. MIMICA, Jadran. Intimations of infinity: the mythopoeia of the Iqwaye counting system and number. Posfácio de Roy Wagner. Oxford: Berg Publishers. 1988. SURRALLÉS, A. Au cœur du sens: perception, affectivité, action chez les Candoshi, Éditions du CNRS, Paris. 2003. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. From the enemy’s point of view: humanity and divinity in an Amazonian society. Chicago: University of Chicago Press. 1992. _______. “Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation”, Tipiti, 2 (1), pp. 3-22. 2004. _______. “La forêt des miroirs. Quelques notes sur l’ontologie des esprits amazoniens”, in: Frédéric B. Laugrand & Jarich G. Oosten (ed.), La nature des esprits dans les cosmologies autochtones. Québec: Les Presses de l’Université Laval, pp. 45-74. 2007. WAGNER, Roy. The curse of souw: principles of Daribi clan definition and alliance in New Guinea. Chicago: University of Chicago Press. 1972. _______. Lethal speech: Daribi myth as symbolic obviation. Ithaca: Cornell University Press. 1978. _______. The invention of culture. Chicago: University of Chicago Press. 1981. ! ! ! ! ! ! Recebido em 14 de Abril de 2013 ! Aprovado em 13 de Junho de 2013 187
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