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BOÊMIA INTELECTUAL À FRANCESA EM MEIA-NOITE EM PARIS
Roberta do Carmo Ribeiro (UFG)
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Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir de que forma Russel Jacoby em Os
Últimos Intelectuais: A cultura americana na Era da Academia (1990) aborda a geração
de intelectuais boêmios norte-americanos radicados na Europa dos anos de 1920 e 1930,
como sendo precursora da geração Beat. Esses artistas se caracterizavam pela rebeldia e
desprezo pelas regras sociais burgueses, porém eram também letrados e profundamente
interessados na tradição erudita do Velho Mundo. Para estabelecer um paralelo com o
discurso de Jacoby, propomos uma análise do filme Meia-Noite em Paris (2011), do
cineasta Woody Allen, que enfoca a nostalgia das novas gerações acerca da era boêmia
dos intelectuais norte-americanos autoexilados em Paris, considerando-a como uma Era
de Ouro.
Palavras-Chave: Intelectuais, Geração Beat, boêmia
[...] Se alguém teve a sorte de morar em Paris, quando jovem, terá da cidade
uma lembrança para toda a vida. [...] para onde acorriam intelectuais e
artistas de praticamente todo o mundo ocidental em busca do ambiente no
qual se sentiam estimulados a produzir obras. Era quase necessidade para
essas pessoas estar no que consideravam o centro do mundo, que levava
celebridades e aqueles que viriam a ser célebres a povoar intensamente as
ruas, os cafés e os restaurantes de Paris. (HEMINGWAY, Paris é uma festa)
O nome do protagonista de A Rosa Púrpura do Cairo (1985) era Gil. Um
personagem de ficção foragido das telas de cinema. Woody Allen repete o nome desse
alter ego em Meia-Noite em Paris (2011). Trata-se dessa vez de um roteirista de cinema
que deseja ser escritor. Não enxerga sua atividade como detentora de relevo artístico.
Assim como o Gil do filme de 1985, esse Gil abandona seu oficio para perseguir um
sonho, nesse caso escrever “o grande romance americano” em Paris. Algo que, muito
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antes dele, Hemingway e Fitzgerald fizeram. Numa nova elaboração surreal, Woody
Allen faz seu herói voltar no tempo e encontrar seus ídolos. Historicamente, é
importante perceber que a ironia nesse caso se revela na comparação entre o presente e
o passado aos olhos de um viajante do tempo. Seus encontros com grandes ícones da
cultura, repletas de referências eruditas, são ao mesmo tempo engraçadas e nos faz
pensar na Idade do Ouro dos anos 1920. Meia-Noite em Paris (2011) não é somente
uma visão romantizada da “Cidade Luz”, é uma reflexão acerca da nostalgia dos tempos
de grandes artistas que viram em Paris uma forma de se realizarem em seus projetos
pessoais, e até mesmo impessoais, de modo que a capital francesa é mais do que
inspiradora por seu ambiente sofisticado.
Nos últimos tempos Woody Allen tem filmado longe de seu palco principal,
Nova Iorque. Aventura-se pela Europa em busca de novos cenários para as suas
histórias, mas sem deixar de lado a perspectiva do olhar americano em meio às cidades
do Velho Mundo. Possivelmente devido a questões financeiras e patrocínio, filmou em
Londres (“Match Point”, em 2005), Barcelona (“Vicky Cristina Barcelona”, 2008) e
Paris (“Meia-Noite em Paris”, 2011).
Woody Allen sempre demonstrou respeito e
admiração pela França. Afinal, foram os franceses os
principais responsáveis pela elevação do cineasta ao
status de gênio. Em Dirigindo no Escuro (2002),
Woody Allen brinca com isso. O que não é muito
diferente com o que acontece com o cinema, uma arte
contestada até mesmo pelo próprio Woody Allen; que
mais de uma vez declarou que esse tipo de expressão
artística é inferior a, por exemplo, a literatura. Não por
acaso, a mesma opinião de Gil, seu personagem e
alter ego em Meia-Noite em Paris.
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Figura 1. Cartaz internacional do filme Meia-Noite em Paris (2011)
Pouco é discutido sobre a vanguarda das revoltas que ocorreram em Paris
em 1968. Mas o fato é que milhares de cinéfilos foram os primeiros a se rebelarem
contra as autoridades civis em fevereiro desse ano, abrindo as portas para as grandes
manifestações que parariam o país em maio. Em meio às revoltas, protestos contra a
guerra do Vietnã, a defesa pelo direito das minorias, a classe trabalhadora e estudantil,
nascia um grupo que teve como motivação inicial protestar contra o afastamento de
Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa que ficava no porão do Palácio de
Chailot, da direção dessa instituição.
Desde meados dos anos de 1950 muitos jovens procuravam militar
intelectualmente, usando o cinema como modo de expressão. Um grupo se destacou,
passando a escrever críticas na revista Cahiers du Cinéma e, posteriormente, se
tornaram célebres cineastas. Os mais importantes foram François Truffaut, Claude
Chabrol e Jean-Luc Godard, fundadores do movimento da Nouvelle Vague, a Nova
Onda.
François Truffaut tinha um bom preparo intelectual, tornando-se o principal
pensador do grupo. Porém, em termos estéticos, Jean-Luc Godard tornou-se o mais
famoso e celebrado. Em 1982, no prefácio do livro de Richard Roud L’Homme de La
Cinemathèque Truffaut traça o perfil de Henri Longlois, colocando a sua participação
no maio de 1968 como ponto inicial das revoltas que percorreram a França. Isso se deve
primeiramente pelo fato de que a Cinemateca Francesa era patrocinada pelo governo.
Langlois administrava a cinemateca movida por uma paixão pessoal que ele tinha para
com o cinema. O General De Gaulle não gostava de seu jeito excêntrico enquanto chefe
e administrador da cinemateca. Desentendimentos à parte, Langlois foi demitido,
sobretudo, por sua forma de tratamento com relação à cinemateca.
1968. Há dez anos a França era governada por um velho autoritário e
anacrônico. Essa situação, que parecia natural aos que haviam aceitado ou
sofrido o regime marechal Pétain, era insuportável para os jovens franceses
nascidos depois da guerra. Na França do General De Gaulle, era preciso
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completar vinte e um anos para se tornar eleitor, enquanto o país se
americanizava e um jovem cantor de dezenove anos, Johnny Halliday, era
uma glória nacional antes de ter feito o serviço militar. Foi preciso que o
governo de De Gaulle se voltasse contra Henri Langlois e tentasse tirá-lo da
Cinemateca por ele criada para que se erguesse o vento da desobediência e
para que as ruas de Paris fossem tomadas pelos protestos. Com o recuo do
tempo, perece claro que as manifestações em favor de Langlois foram os
acontecimentos de Maio de 68 assim como o trailer é para o filme em cartaz:
um anúncio da programação seguinte. Tanto isso é verdade que depois da
primeira manifestação de 15 de fevereiro de 1968, que reunia exclusivamente
os “filhos da Cinemateca”, viram-se, ao longo das demonstrações seguintes,
as tropas contestadoras serem engrossadas por rostos desconhecidos, os dos
estudantes maoístas ou anarquistas, alguns dos quais iam ficar famosos. Seus
líderes, misturados a nós, observam e eventualmente criticavam nosso
amadorismo político. Revejo Daniel Cohn-Bendit empoleirado num poste na
rue de Courcelles nos criticando por dispersarmos prematuramente uma
manifestação enquanto um de nossos “camaradas”, que cuspira no rosto de
um policial, era detido por um camburão. (TRUFFAUT, 2005, p. 112-113)
Na manifestação de 15 de fevereiro de 1968 nomes importantes do cinema
francês marcaram presença. Entre eles Bernardo Bertolucci que, no Making Of do filme
Os Sonhadores (2003), narra o formato de violência que caracterizou o protesto. Michel
Piccoli, Alain Resnais e Pier Paolo Pasolini também fizeram parte do movimento de
manifestação.
Langlois retornou ao comando da Cinemateca Francesa, após De Gaulle
ceder devido as inúmeras cartas de protesto enviadas a Cahiers du Cinéma, por muitos
cineastas de renome internacional que aderiram ao movimento. Ele permaneceu
enquanto administrador até o seu falecimento em 1976.
Não é difícil perceber que Paris já foi palco de importantes acontecimentos
culturais, sejam eles de cultura de massa ou erudita. Em Meia-Noite em Paris a
produção aborda a questão da nostalgia, mostra a obsessão que temos pela Idade do
Ouro, ou seja, a ideia de que o passado é melhor. Talvez por ter lançado grandes nomes
no meio artístico nos anos 1920 essa impressão é fortemente difundida e muito
questionada já que nos deixou importantes referências culturais, seja na música, nas
artes plásticas, na literatura e até mesmo no cinema. No começo do século XX, Paris já
era conhecida por ser um lugar fértil e inspirador, no qual os artistas se encontravam
para discutir sobre os mais diferentes assuntos e pontos de vista.
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Nas primeiras décadas do século XX, essa boêmia artística parisiense
explodia, se transformando em algo que era quase que um movimento de
massas. Literalmente centenas de artistas, escritores e personagens históricos
mundiais cujas obras inovadoras (e, em alguns casos, personas provocantes)
são marcantes ainda hoje passaram através dos portais daquilo que o
historiador da literatura Donald Pizer classificou de “O momento Paris”. [...]
Como escreve Dan Franck, autor da obra histórica Boêmios, “Paris (...) se
tornou a capital do mundo. Nas calçadas, já não havia um punhado de artistas
(...) mas centenas, milhares deles. Era um florescimento artístico de uma
riqueza e qualidade incomparáveis. (...) Pintores, poetas, escultores e músicos
de todos os países, todas as culturas, clássicos e modernos, se encontraram e
se misturaram. (GOFFMAN; JOY, 2007, p. 220-221)
A boêmia para os jovens, segundo Robert Michels (apud JACOBY, 1990)
era uma etapa da vida caracterizada pela pobreza, pela liberdade e pelo ódio à
burguesia. Muito peculiar às características do movimento da contracultura no qual
surge um novo estilo de mobilização e contestação social que começa nos Estados
Unidos e parte para a Europa. A contracultura buscava criar um mundo alternativo e
romper com a cultura dominante. A boêmia possui dois elementos importantes a serem
pensados. As suas origens, o emprego, o desemprego e o ambiente urbano, já que a
boêmia é um fenômeno eminentemente urbano.
Mas a grandiosidade de uma cidade não sustenta sozinha uma vida boemia.
Os elementos urbanos precários, restaurantes populares, ruas congestionadas e aluguéis
baratos podem contribuir para promover uma vida boemia e por extensão artística.
Parece suficientemente claro que os cafés e as ruas urbanas abrigavam
intelectuais marginais, mas é difícil determinar como, ou se, este ambiente
influiu em suas obras e em suas vidas. Walter Benjamin se inspirou no
relacionamento entre a Paris do século XIX - suas ruas e galerias cobertas - e
os novos tipos de intelectuais, como o homem de letras que andava ao léu,
recolhendo no final da tarde a um café a fim de escrever matérias culturais
para a imprensa: “Na avenida ele se mantinha de prontidão para a próxima
ocorrência, dito espirituoso ou boato. Lá ele explorava toda a trama de seus
relacionamentos com os companheiros e com os homens da sociedade”.
Benjamin atribuía a este tipo de vida a popularidade de “feuilleton”, os
artigos de muitos jornais diários europeus nos quais os intelectuais expunham
suas opiniões sobre a cultura e a vida. (JACOBY, 1990, p. 42)
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O cenário das cidades influencia diretamente na vida cotidiana da sociedade
e nos costumes da vida boêmia. Os boêmios autoexilados na Europa tinham dentro dos
EUA uma tradição anterior, encarnada, sobretudo, no bairro de Greenwich Village, em
Nova Iorque. Um bairro que estabeleceu um estilo de vida, que não permaneceu
intocado por muito tempo. O processo de urbanização e transformação do próprio
significado de construção ganhou nos Estados Unidos da era da Depressão, via o New
Deal de Roosevelt, uma nova dimensão para a imagem de ruína e devastação modernas
nas mãos do empreiteiro Robert Moses. Quem era esse homem e qual papel exerceu
nesse cenário?
Robert Moses é o homem que tornou tudo isso possível. Quando ouvi Allen
Ginsberg perguntar, no final dos anos 50, “Quem era essa esfinge de cimento
e alumínio”, percebi de imediato que, se o poeta não o sabia, Moses era o seu
homem. Como nos versos de Ginsberg, o “Moloch que cedo penetrou em
minha alma”, Robert Moses e suas obras públicas entraram em minha vida
bem antes de meu Bar Mitzvah e ajudaram a colocar um término em minha
infância. Ele esteve presente o tempo todo, de forma vaga e sublimar. Tudo
de grande que se construiu em ou ao redor de Nova Iorque parecia de algum
modo ser obra sua: a ponte Triborough, a rodovia do West Side, dezenas de
avenidas em Westchester e Long Island, as praias de Jones e Orchard,
incontáveis parques, ampliações urbanas, o aeroporto de Idlewild (hoje
Kennedy), uma rede de diques e usinas elétricas colossais nos arredores das
cataratas do Niágara; a lista parecia não ter fim. (BERMAN, 1986, p. 276)
Ruas movimentadas e grandes vias expressas alterou a atmosfera intelectual.
Os encontros noturnos já não eram os mesmos. Os “efeitos colaterais” das mudanças
que vinham ocorrendo deu lugar a uma prática intelectual voltada para a academia e
consequentemente o declínio da boêmia se fez perceber que a época de Ouro dos anos
20 e época de Prata dos anos 30 estava terminada. Uma explosão suburbana
caracterizou o desaparecimento da boêmia. Contudo, a boêmia norte-americana no
Greenwich Village ainda respirava um pouco de vida e criatividade. A morte da boêmia
era consequência do “sucesso”.
Para Klonsky, o sucesso está matando a boêmia. Não somente o dólar invade
os velhos locais, pontos de encontro, mas a guerra provocou o abaixamento
dos “diques morais” da América puritana, permitindo a passagem de águas
boêmias. “Havia tanta liberdade no Village quanto antes; mas desde que ela
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foi “igualada e até superada pela liberdade da Rua Principal, para onde foram
o desafio e a revolta contra o convencionalismo” que outrora caracterizaram
Greenwich Village? Apenas os “círculos de jazz e drogas” e os hippies
continuam a evocar uma vida à margem, e talvez contra, a sociedade.
(JACOBY, 1990, p. 44)
Uma geração dos anos de 1960 comercializaram, popularizaram e, ao
mesmo tempo, destruíram a “ética boemia”. O que estava em questão era a “ética do
consumo”. Até mesmo o consumo duplicado de cigarros pelos boêmios intensificou o
consumo na América. A boêmia marcada pelo consumo e popularização não sobrevive
à Nova Iorque e São Francisco desembocando na contracultura dos anos 60. A sedução
das cidades fez com que a boêmia se mudasse para os campi universitários e enfrentasse
as estradas.
No contexto dos anos 50 o processo de suburbanização e o surgimento dos
beats ganha destaque. Os beats são os últimos boêmios do período das rodovias
interestaduais e se constituíam em um movimento cultural que surgiu, sobretudo, no
bojo da contracultura. Os beats marcaram um processo de ruptura e deslocamento
cultural. Em um momento no qual as vias expressas tomam conta dos bairros
tradicionais, os beats procuravam vislumbrar a cultura americana deixando de lado os
elementos urbanos.
Os beats, no entanto, são mais que uma lição sobre os riscos de prognósticos
culturais. Eles são os últimos boêmios e os primeiros membros da
contracultura dos anos 60. No relato sobre o desaparecimento da boemia, os
beats são os personagens desaparecidos. Eles introduziram a boemia na era
dos subúrbios, onde ela se difundiu e desapareceu. Se a boemia morreu de
sucesso, os beats tanto administraram os últimos ritos quanto inventaram
uma nova versão popular. Os estudos sobre os anos 60 mencionam de
passagem os beats, mas é necessário mais que uma menção passageira. Não o
marxismo e o maoismo revividos, mas a sexualidade, as drogas, o misticismo
e a loucura dos anos 60 devem muito aos beats. (JACOBY, 1990, p. 77)
Na França do século XIX surgia a concepção moderna de intelectual que
representava um grupo de pessoas eruditas, independentes e cheias de talento. A Paris
dos anos 1920 abrigou parte dos últimos intelectuais que viveram intensamente a Idade
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do Ouro. E foram os beats os “herdeiros espirituais” dessa onda de grupos que se
instalaram em Paris em busca de inspiração para seus trabalhos.
Ninguém melhor do que Ernest Hemingway, ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura de 1954, para narrar às histórias que ocorreram em Paris. O seu livro Paris é
uma festa (2012) é uma ode a cidade luz. Livro publicado após sua morte conta a sua
convivência e descrição do que foi o Montparnasse1 e o ambiente febril dos anos vinte.
Narra a vida que levava junto com expatriados que passavam o tempo a beber,
conversar e dançar nos bailes. Hemingway não esconde que os anos que passou em
Paris foram possivelmente os melhores de sua vida. Foi uma época produtiva e
inspiradora. Foi lá que aprendeu a escrever o gênero prosa sob a tutela da mecenas
Gertrude Stein e do crítico e poeta Ezra Pound.
Nascido em 21 de julho de 1899 em Illinois, nos Estados Unidos casou-se quatro
vezes e participou da Primeira Guerra Mundial como motorista de ambulância,
experiência que descreveu em Adeus as armas (1929), retornando dela definitivamente
como escritor. Tendo escrito O Sol Também Se Levanta (1926), Por Quem os Sinos
Dobram (1940), O Velho e o Mar (1952), Paris é uma Festa (1964) é possível afirmar
que quase toda a sua obra é, fundamentalmente, autobiográfica. Nos seus melhores
livros aparece sua experiência na Primeira Guerra
Mundial e o comportamento que criou um código moral
de sua época. A sua nobreza e sua simplicidade
aparecem em O Velho e o Mar, onde o personagem
título, um velho pescador, é seu alter ego. Não é preciso
citar referências diretas entre sua vida e obra, os seus
grandes livros conseguem transmitir a sua mensagem
claramente.
Figura 2: Ernest Hemingway
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Montparnasse é um famoso bairro localizado em Paris e durante o século XX foi um importante local de
encontro de intelectuais boêmios.
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Sua vida nunca deixou de ser marcada por intensos acontecimentos
ocorridos ao longo de sua carreira profissional e pessoal e, por este motivo, sempre
apareceu em seus livros detalhes de sua personalidade e talento. Um tema recorrente ao
longo de sua obra é o suicídio. Tornou-se célebre a frase do escritor Albert Camus que
diz que “só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio.” (CAMUS, 2010,
p. 19). Hemingway, talvez inconscientemente, concordaria.
Em 1928 o pai de Hemingway sofre de problemas de saúde e financeiros e
comete suicídio. Sua mãe era dona de uma personalidade dominadora e após a tragédia
envia ao filho a pistola com a qual o pai havia se matado. A família de Hemingway o
marcou profundamente.
Essa situação doméstica – a respeitabilidade burguesa e puritana do lar, um
pai inibido, cheio de ressentimentos, uma mãe autoritária e abusiva – marcou
profundamente Hemingway e elumina certos traços fundamentais de seu
caráter: sua revolta contra a respeitabilidade burguesa, sua hostilidade em
relação às mulheres, sua incapacidade de viver ou de descrever “a vida do
casal”. (PAIVA, 1990, p. 22)
A depressão nervosa e moral espreitava o escritor, tornando-o um indivíduo
solitário. Sua trajetória de sucesso não foi suficiente para preencher essa lacuna. Em 02
de julho de 1961 apanhou a espingarda e pôs fim a sua existência que havia se tornado
para ele um fardo. Possivelmente, Hemingway temia sua doença e a lenta decadência
intelectual que viria. Porém, é certo afirmar que além destes motivos, haviam também
os problemas causados pelo clima da sociedade contemporânea com as suas tensões, o
que para ele parecia o caminho para o holocausto da humanidade.
Acredito não ser preciso mencionar que a obra de Hemingway alcançou
uma maestria incontestável. Contribuiu notadamente na renovação da língua inglesa de
nosso tempo, trabalhou arduamente para conservar as relações vivas entre as palavras e
as coisas, entre linguagem e realidade.
Hemingway diria um dia, reinterpretando a expressão que Gertrude Stein
cunhara num destempero muito peculiar dela, ele se sentia membro de uma
geração criada com valores e perspectivas que já não significavam quase
nada no mundo do pós-guerra: uma geração perdida. Uma geração que
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precisava se reencontrar. E se reencontrar em Paris, é claro. (HEMINGWAY,
2012, p. 12-13)
Ainda que sua vida tenha sido turbulenta e cheia de fortes emoções
Hemingway nos deixa a imagem de um escritor envolvente que tem muito a nos dizer
sobre a vida e suas aventuras em Paris nos anos vinte. Como é apresentado em MeiaNoite em Paris, aparece-nos Hemingway como um testemunho de sua época. Mas é
fundamental perceber que a imagem que Woody Allen concebe de Hemingway em seu
filme carrega em si a sombra do conhecimento prévio
que o cineasta possuía do conjunto de sua carreira. É,
ao mesmo tempo, um valentão, glutão e alcoólatra, um
escritor dedicado e, sobretudo, um suicida em
potencial. Allen ironiza essa “verdade futura” no filme,
pois, a primeira vista aquele homem que mostra, cheio
de vida e fúria, jamais poderia ser indicado como
alguém que terminaria a vida temendo a decadência
física e intelectual.
Figura 3: Francis Scott Fitzgerald
A Geração Perdida contava também com outro escritor americano: Francis
Scott Fitzgerald (24/09/1896 – 21/12/1940). Um dos grandes nomes da literatura
americana do século XX, suas histórias foram reunidas nos Contos da Era do Jazz. Seu
maior sucesso literário, O Grande Gatsby (1925) conta a história da sociedade
americana em 1920, um período de glamour em uma mistura de proibições que logo
levaria a Grande Depressão. Escreveu também Suave é a Noite (1934) e O último
Magnata (1941).
Tão famoso por sua beleza física quanto pelo talento, viveu uma vida
movimentada, ao lado da esposa, Zelda Fitzgerald.
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Mais do que uma substância, tornou-se um verdadeiro elixir da revolta cujo
consumo era uma forma de desafiar a autoridade. Zelda e Scott tornaram-se
líderes desta revolta. Eram os profetas da intoxicação, os maravilhosos
meninos terríveis da década. (WESTBROOK, 1997, p.27)
Apesar dessa glamourização dos excessos, em paralelo, o casal teve
constante luta contra o alcoolismo. Scott e Zelda viveram o auge dos anos loucos. Não
era somente um casal bonito e famoso, eles representavam o símbolo da década de
1920. Fitzgerald era o alcoólatra talentoso. O álcool naquela época era um fomentador
da criatividade. O álcool era para os anos 1920 na Europa o que a maconha viria a ser
nos anos 1930 nos EUA. Claro que nem todos ficavam na erva. Muitos iam para
psicotrópicos mais pesados. Chegar ao extremo era um desafio que os boemios e os
beats tomavam como pessoal. Tanto nos limites do corpo quanto na entrega ao fazer
artístico. Esse é uma herança dos Fitzgerald que ressoa no conselho que Jack Kerouac
dá para Neal Cassady no manuscrito original de On the Road.
“Porra cara sei muito bem que você não me procurou só porque tá afim de
virar escritor e afinal de contas o que que eu teria a dizer a não ser que você
tem que se agarrar nisso com a energia de um viciado em benzedrina”, e ele
disse, “Sim, é claro, entendo exatamente o que você quer dizer e de fato já
tinha pensado nesses problemas, mas o caso é que eu almejo a realização de
todos esses fatores que dependem da dicotomia de Shopenhauer para
qualquer concretização íntima” (KEROUAC, 2012, p. 127)
Vivendo o auge na década de 1920, Fitzgerald viu repentinamente sua fama
logo se desmoronar em 1937. Sua esposa ficou louca permanecendo internada em um
hospital psiquiátrico. Extremamente endividado sua festa dos 1920 logo acabara.
É justamente esse aspecto que Woody Allen ironiza em Meia-Noite em
Paris. Apesar de serem a “alma da festa”, o casal Fitzgerald pode repentinamente
explodir, brigar e colocar todos em estado de alerta, por possíveis tentativas de suicídio,
violência mútua etc.
A Era do Jazz tão marcada por Fitzgerald tem um importante representante
na música e integrante da chamada Geração Perdida, Cole Albert Porter (09/06/1891 –
15/10/1964). Cole Porter era compositor nos Estados Unidos mas em decorrência da
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Primeira Guerra Mundial foi para Paris onde manteve contato com grandes
personalidades da época. Ficou famoso por sempre tocar em festas importantes,
sobretudo, em grandes encontros dos boêmios expatriados em Paris. Se o casal
Fitzgerald era a alma da festa, Porter era sua trilha sonora.
Rico, bonito e talentoso, Cole Porter não se preocupava em ser reconhecido
enquanto artista profissional. Pelo contrário. O que lhe interessava era tão somente ser o
autor da trilha sonora das festas. Falta de dinheiro nunca foi problema para o músico.
Durante praticamente toda a sua vida viveu com luxo por toda a Europa.
É exatamente esse o papel desempenhado por Porter em Meia-Noite em
Paris, o do músico amador pouco preocupado com a vida cotidiana. É, possivelmente, o
personagem que menos aparece dentre os boêmios retratados por Allen. É como a boa
trilha sonora de cinema. Só pode ser boa em dois
casos: quando é absolutamente marcante e quando é
absolutamente discreta. Nas cenas em que Porter
aparece é assim que ele é retratado. Marcante quando
Gil percebe que o Porter que toca na festa em que está
é o mesmo Porter que passou a vida inteira ouvindo. E
é discreto quanto está no grupo de rebeldes liderado
pelo valentão Ernest.
Figura 4: Cole Albert Porter
Fechando essa análise é importante lembrar que Porter, apesar de ser
reconhecido sobretudo como um compositor de música popular, sua trajetória artística o
coloca no panteão dos grandes músicos do século XX, merecendo uma cinebiografia
que foi definida por Roger Ebert, o único crítico de cinema a ganhar um Prêmio
Pulitzer, como “o mais original e encantador musical dos últimos anos”. Trata-se de DeLovely, onde Porter é interpretado por Kevin Kline. Nesse filme, que mistura passado,
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presente, memória e esquecimento, em paralelo com o Meia-Noite em Paris, vemos
Porter como um símbolo do atemporal.
Essa atemporalidade é a marca da cadência do jazz, um gênero marcado
pelo improviso e pelas longas frases musicais, que inspiravam, por exemplo, Kerouac a
criar o estilo livre de escrita beat. Mas essa liberdade não está relacionada com descuido
artístico. Pelo contrário. O improviso só pode ser feito por artistas de grande talento.
Fora disso é esteticamente irrelevante a amador. Sabendo disso, Woody Allen sempre
opta por usar jazz em suas trilhas sonoras. O objetivo é, dentre outros, dialogar com
essa atemporalidade da música, pois o jazz foi dos anos dourados, mas segue sendo
muito atual. Podendo perfeitamente ser o fraseado musical de um filme que procura
visitar o passado no presente, com a torre Eifel ao fundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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efervescente. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
DE-Lovely – vida e amores de Cole Porter (2004). Direção: Irwin Winkler. Musical.
Cor, som, 125 min.
GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à
cultura digital. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
HEMINGWAY, Ernest. Paris é uma festa. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
JACOBY, Russell. Os últimos intelectuais: a cultura americana na era da academia. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1990.
KEROUAC, Jack. On the road – o manuscrito original. Porto Alegre: L&PM, 2012.
MEIA-Noite em Paris (2011). Direção Woody Allen. Comédia. Cor, som, 100 minutos.
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PAIVA, Marcelo Whaterly (Org.). Hemingway por ele mesmo. São Paulo: Martin
Claret, 1990.
TRUFFAUT, François. O prazer dos olhos: textos sobre o cinema. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2005.
WESTBROOK, Robert. Mentiras íntimas. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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Figura 1: http://omelete.uol.com.br/programacao-da-tv/series-e-tv/programacao-da-tv-28-de-julho/ acesso em 28/08/2012.
Figura 2: http://pauldavisoncrime.blogspot.com.br/2012/08/ernest-hemingway-wartimespy.html acesso em 28/08/2012.
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Figura 4: http://www.otrcat.com/best-of-all-p-49155.html acesso em 29/09/2012.
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