Vol. I - Revista Diálogos

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Vol. I - Revista Diálogos
Revista de Estudos Literários, Lingüísticos, Culturais e da Contemporaneidade
Associada ao programa de pós-graduação PROFLETRAS
da UPE-Garanhuns
N.° 15 - ESPECIAL - 2015 - ISSN: 2236-1499.
UPE/Garanhuns - PE – Brasil
D.O.I: 10.13115/2236-1499
ANAIS DO
VOLUME I
AUTORES DE A a E
11 a 14 de maio de 2015
Universidade de Pernambuco – UPE
Campus Garanhuns
Ficha catalográfica
REVISTA DIÁLOGOS, n.° Especial 15 - III Encontro Nacional e II Encontro Internacional de
Literatura e Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 3 vols, campus Garanhuns.
(2015, Garanhuns, PE). Vol. I
Anais (recurso eletrônico) / III Encontro Nacional e II Internacional de Literatura e
Lingüística da Universidade de Pernambuco (UPE), 11 a 14 de Maio de 2015 – Garanhuns,
PE, UPE.
Disponível em: www.revistadialogos.com.br/anais
1. Letras – eventos 2. Lingüística 3. Literatura 4. Teoria Literária
ISSN: 2236-1499
CDU 869.0(81)
CDD B869
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO - UPE
Campus Garanhuns
REITOR
Prof. Dr. Pedro Henrique de Barros Falcão
VICE-REITORA
Profª. Drª. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcante
DIRETOR
Prof. Dr. Cloves Gomes da Silva Junior
VICE-DIRETORA
Profª. Ms. Rosângela Falcão
COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes
VICE-COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS
Profª. Ms. Dirce Jaeger
COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO
COORDENADORA
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof. Esp. Anderson de Souza Frasão (UFS)
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Profª. Ms. Dirce Jaeger (UPE)
Prof. Dr. Elcy Luiz da Cruz (UPE)
Prof. Esp. Erick Camilo da Silva Gouveia (UFS)
Profª. Drª. Jaciara Josefa Gomes (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Prof. Esp. José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
Profª. Drª. Maria das Graças Ferreira (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
COMISSÃO CIENTÍFICA
Profª. Drª. Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Prof. Dr. Carlos Reis (Universidade de Coimbra)
Profª. Drª. Jeane de Cássia Nascimento Santos (UFS)
Prof. Dr. Júlio Araújo (UFC)
Prof. Dr. Luiz Costa Lima (UERJ)
Profª. Drª. Rosângela Sarteschi (USP)
COMISSÃO EDITORIAL
Prof. Dr. Benedito Gomes Bezerra (UPE)
Prof. Dr. Jairo Nogueira Luna (UPE)
Profª. Drª. Silvania Núbia Chagas (UPE)
APOIO
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível superior – CAPES
Fundação de Amparo à Ciência e atecnologia do Estado de Pernambuco – FACEPE
SUMÁRIO
VOLUME I
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE COMO PROCEDIMENTO
ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO DE LEITORES.........................................................
23
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA EXPERIÊNCIA DE
LETRAMENTO LITERÁRIO............................................................................................ 30
Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA CONTEMPORÂNEA: LITERATURA
MENOR E AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ..............................................................................................................................
Adriano Carlos Moura (IFF)
40
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM ESTUDO SOBRE A
METALINGUAGEM EM “LISBELA E O PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS............ 50
Adriano Siqueira Ramalho Portela (UFPE)
MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC NOVEL À POESIA,
IDENTIDADE DE GÊNERO EM ANGÉLICA FREITAS...............................................
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
59
DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM................. 67
Alaíde Marie Correia Barros (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE MATERNA..........................
Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
74
ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA EXPERIÊNCIA DIDÁTICA
COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI SIMULADO............................................................ 86
Alberto Felix da Hora (UPE)
POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E OUTROS GÊNEROS
JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA... 98
Alberto Roiphe (UFS)
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA PRESSUPOSIÇÃO
DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”.......................................................................... 108
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA NOVELA
NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ
ELÉTRICA.......................................................................................................................... 119
Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM PROCESSO DE
RETEXTUALIZAÇÃO......................................................................................................
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
131
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A VARIÁVEL IDADE
EM MACEIÓ – AL.............................................................................................................
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
143
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?............................................................................
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira (UERN/CAMEAM)
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE OS
PERSONAGENS................................................................................................................
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
155
164
CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES E ENSAIOS............. 176
Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A FORMAÇÃO DE
LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA LEITURA DELEITE................................
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
184
METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A CIDADE DO
RECIFE POR CARLOS PENA FILHO.............................................................................. 189
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO: COMENTÁRIOS
ONLINE NO FACEBOOK..................................................................................................
Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS
LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA?....................................................
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
199
211
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE LÍNGUA NA
CONTEMPORANEIDADE................................................................................................ 222
Ana Cláudia Soares de Paiva (UNICAP)
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO ESCOLAR: DESAFIOS
DO TRABALHO COM A IMAGEM................................................................................. 230
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO GÊNERO
CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL.....................................................................
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)
239
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS MANUSCRITOS DE
SAUSSURE......................................................................................................................... 250
Ana Paula El-Jaick (UFJF)
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN BLIXEN E ELENA
FERRANTE........................................................................................................................
Ana Paula Raposo (UFMG)
256
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A ÓTICA DA
LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA ANÁLISE DA VOZ DO
NARRADOR E DAS PERSONAGENS EM CONTOS MODERNISTAS.......................
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)
266
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO? CONTRADIÇÕES,
DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO, RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO
SOBRE EDUARDO CAMPOS..........................................................................................
André Cavalcante (UFPE)
277
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA.................................................................... 287
André Cervinskis (UFPE)
O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES E VALORES: UMA
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO
CAMPOS NO PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE................................................................
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)
294
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA: UM OLHAR PARA
A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º
ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL............................................................................... 305
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM RAKUSHISHA DE ADRIANA
LISBOA............................................................................................................................... 317
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE PORTUGAL NO CORPO
DO LIVRO E DO VELHO: UM ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER
ESPANHÓIS, DE VALTER HUGO MÃE.........................................................................
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
327
O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE A OBRA A HORA
DA ESTRELA....................................................................................................................... 336
Antonia Gerlania Viana Medeiros (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva (UERN)
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA CONCEPÇÃO DE ESCRITA
INTERACIONAL...............................................................................................................
345
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM.................. 355
Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS DISCURSIVAS................
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
363
O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA................................................
Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
375
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA IRREVERÊNCIA...........................
Arturo Gouveia (UFPB)
383
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS DE VIRGINIA
WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE
EMPODERAMENTO DA AUTORIA FEMININA........................................................... 392
Asenati Araújo de Melo (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE ESTUDANTES DE
GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA
COMUNICAÇÃO VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?......................................................... 401
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Ledo (UFPE)
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA DA PARTICIPAÇÃO. 413
Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA................................................................................................ 423
Bruna Bandeira (UFPE)
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO BARUSCO NA CPI DA
PETROBRAS......................................................................................................................
Brwnno Gabryel de Araújo Silva (UFPE)
Rosilene Felix Mamedes (UFPB)
435
A PERSONAGEM LIA DE MELO, DO ROMANCE AS MENINAS, DE LYGIA
FAGUNDES TELLES, COMO RESISTÊNCIA FEMININA À DITADURA MILITAR 446
Caio Victor Lima Cavalcanti Leite (UPE)
Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
A INTEGRAÇÃO IBERO-AMERICANA: O DISCURSO A FAVOR DE UMA
IDENTIFICAÇÃO..............................................................................................................
Camila da Silva Lucena (PPGL/UFPE)
AS MISSIVAS DA IMPRENSA NORTISTA: RETRATOS LITERÁRIOS DA SECA..
Camila M. Burgardt (UFPB)
O REGRESSO AO PASSADO E AS RAÍZES MÍTICAS NA OBRA O SÉTIMO
455
465
JURAMENTO......................................................................................................................
Camilla Rodrigues Protetor (UPE)
Amara Cristina de Silva e Barros Botelho (UPE)
NARRATIVAS HOMOERÓTICAS NOS COMPÊNDIOS DE HISTÓRIA
LITERÁRIA BRASILEIRA...............................................................................................
Carlos Eduardo Albuquerque Fernandes (UFRPE/UFPB)
A METACOGNIÇÃO NA LEITURA E AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS:
UMA EXPERIÊNCIA COM ACADÊMICOS DO CURSO DE TURISMO DA
UNEB..................................................................................................................................
César Costa Vitorino (UNEB/FVC)
SOBRE O SAGRADO E O PROFANO EM BALADA DE SANTA MARIA
EGIPCÍACA, DE MANUEL BANDEIRA.........................................................................
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso (UFPB)
477
487
498
509
DE GÊNESIS A SHAKESPEARE: MISTICISMO E SIGNIFICAÇÃO DO NÚMERO
SETE.................................................................................................................................... 519
Clara Mayara de Almeida Vasconcelos (UFPB)
Eveline Alvarez dos Santos (UEPB)
ENSINO, ESCRITA E AUTORIA: A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO-AUTOR NO
CONTEXTO ESCOLAR....................................................................................................
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)
Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)
FERDINAND DE SAUSSURE E EUGÊNIO COSERIU: PROPOSIÇÕES SOBRE O
TEXTO................................................................................................................................
Clemilton Lopes Pinheiro (UFRN)
DISCURSO E IDENTIDADE: ASPECTOS DA CONSTRUÇÃO POÉTICA EM
PATATIVA DO ASSARÉ..................................................................................................
Dalva Patricia de Alencar (URCA)
Romão Alisson de Almeida Morais (URCA)
528
540
551
FORMA E SUBSTÂNCIA: REFLEXÕES SOBRE LÍNGUA, ORALIDADE E
ESCRITA A PARTIR DE SAUSSURE E DE HJELMSLEV............................................ 560
Dayanne Teixeira Lima (UFAL)
A EXPERIÊNCIA DO ENFRENTAMENTO NO ESPAÇO DA INTIMIDADE: UMA
LEITURA DO ROMANCE A PAIXÃO SEGUNDO G.H..................................................
Daysa Rêgo de Lima (PPGL/UERN)
DISCURSO CRONÍSTICO; IDEOLOGIA E MARGINALIZAÇÃO ÉTNICORACIAL. REPRESENTAÇÕES DISCURSIVAS EM ACD – VAN DIJK E
ALTHUSSER......................................................................................................................
Dayvison Bandeira de Moura (UA-PY)
Cacilda Rodolfo de Andrade ( UA-PY)
Edair Gonçalves (IFECT-SP)
OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA: RETRATO SÓCIOANTROPÓLOGICO
DO SERTANEJO NORDESTINO E DA GÊNESE DE ANTÔNIO CONSELHEIRO
571
578
COMO LÍDER MESSIÂNICO........................................................................................... 593
Deividy Ferreira dos Santos (UPE)
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO EM SALA DE AULA: UM CAMINHO DE
APROPRIAÇÃO NA ESCRITURA DE GÊNEROS TEXTUAIS..................................... 605
Dennys Dikson (UFRPE/UFAL)
Wanessa Gomes Teixeira Maciel (UPE)
ANÁLISE DE GÊNEROS DA ESFERA JORNALÍSTICA NO CURRÍCULO DE
PORTUGUÊS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE
PERNAMBUCO.................................................................................................................
Diana Pereira Costa Alves (UPE)
Ecia Mônica Leite de Lima Freitas (UPE)
616
ENSINO DE LITERATURA EM WEBQUEST: O IMAGINÁRIO E O CRIATIVO
EM ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS.......................................................................... 628
Diego Paulo da Silva (IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
ENTRE AS ESTRADAS QUE (NÃO) SE ABREM: TERRA SONÂMBULA,
LITERATURA E CINEMA................................................................................................ 639
Diogo dos Santos Souza (UFAL)
Victor Mata Verçosa(UFAL)
FORMAÇÕES DISCURSIVAS E IDENTIDADE DO SUJEITO PROFESSOR EM
“QUE RAIO DE PROFESSORA SOU EU?”, DE FANNY ABRAMOVICH..................
Djamara Virgínia Ferreira da Rocha Silva (UFCG)
Aloísio de Medeiros Dantas (UFCG)
DE SELFIE A MINICONTO MULTIMODAL: ENSINO DE GÊNERO DIGITAL EM
SALA DE AULA................................................................................................................
Dorinaldo dos Santos Nascimento (UFS)
Vanusia Maria dos Santos Oliveira (UFS)
648
659
LACUNAS E DISTORÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO “OFICINA DE
ESCRITORES”...................................................................................................................
Edilaine P. de Sousa (UPE)
Magna Kelly Sales (UPE)
670
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM PERNAMBUCO: OCORRÊNCIAS LEXICAIS
PARA CIGARRO DE PALHA E TOCO DE CIGARRO.....................................................
Edmilson José de Sá (CESA)
684
O RISO IRÔNICO NA POESIA DE ANGÉLICA FREITAS............................................ 695
Eduarda Rocha Góis da Silva (UFAL)
HISTÓRIAS DE RESISTÊNCIA: MEMÓRIA E IDENTIDADE NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL DE GRAÇA GRAÚNA E INALDETE PINHEIRO......................
Eidson Miguel da Silva Marcos (UFRN)
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
O MICROCONTO: UM PRODUTO DA ROMANCIZAÇÃO.........................................
Elias Coelho da Silva (UFPB)
704
713
A DESAGREGAÇÃO HUMANA EM MAÇÃ AGRESTE, DE RAIMUNDO
CARRERO..........................................................................................................................
Eliene Medeiros da Costa (UEPB)
725
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM LAÇOS DE FAMÍLIA, DE
CLARICE LISPECTOR...................................................................................................... 736
Elizabete Sampaio Vieira da Silva (PPGEL/UNEMAT)
Elisabeth Battista (UNEMAT)
ENTRE LENDAS E GUARANÁS: O IMAGINÁRIO SIMBÓLICO
BRASILEIRO...................................................................................................................... 746
Eliziane Navarro (PPGEL/UNEMAT)
Olga Maria Castrillon-Mendes (PPGEL/UNEMAT)
MAINHA, VOU NO SHOPPING: UM ESTUDO DA VARIAÇÃO DA LÍNGUA
NUMA PERSPECTIVA LINGUÍSTICA E GRAMATICAL............................................
Eloir Geneci Castro da Silva (UNICAP)
Carla Moreira de Paula (UNICAP)
756
A TÉCNICA MODERNA NA VISÃO DE HEIDEGGER: NOVAS PERSPECTIVAS
DE INVESTIGAÇÃO CIENTÍFICA NO CAMPO DA
LINGUAGEM..................................................................................................................... 764
Emmanuella Farias de Almeida Barros (UFPE)
AS GRAMÁTICAS E DICIONÁRIOS RENASCENTISTAS E O SABER
LINGUÍSTICO OCIDENTAL............................................................................................ 776
Enézia de Cássia de Jesus (UFAL)
AS DANÇAS DA LINGUAGEM, OS CAMINHOS DE UMA LEITURA POÉTICA....
Érica Thereza Farias Abreu (UFPE)
781
CIUMENTO DE CARTEIRINHA, DE MOACYR SCLIAR – UM JOGO FICTÍCIO E
INTERTEXTUAL............................................................................................................... 790
Everaldo Bezerra de Albuquerque (UFAL/PPGLL)
A LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS: UMA ABORDAGEM PEIRCEANA...........
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
798
VOLUME II
O NEOLOGISMO EM CANÇÕES DE GILBERTO GIL.................................................
Fabiana Vieira Barbosa (UFRPE/UAST)
Adeilson Pinheiro Sedrins (UFRPE/UAST)
OS SENTIDOS DO DISCURSO DO ENSINO PROFISSIONAL COMO ACESSO AO
EMPREGO NO BRASIL....................................................................................................
Fabiano Duarte Machado (PPGLL-UFAL)
O SAGRADO NA POESIA FEMININA DE ADÉLIA PRADO E DIVA CUNHA.........
Felipe Assis Araujo (UFRN/CERES)
SOBRE CIMENTO E SANGUE: APROXIMAÇÕES E DISTANCIAMENTOS
ENTRE O NOVO BRUTALISMO E A LITERATURA BRUTALISTA.........................
804
816
828
840
Felipe Benicio de Lima (PPGLL/UFAL)
TRADUÇÃO MULTIMODAL: ASPECTOS ESTRUTURAIS DE ASSASSIN’S
CREED................................................................................................................................
Felipe Cezar Menezes (UNEB)
Juliana Cristina Salvadori (UNEB)
Adolfo Paiva de Andrade (UNEB)
CONSIDERAÇÕES SOBRE O HIPER-REALISMO DE ANDRÉ SANT’ANNA..........
Felipe de Castro Cruz (UFPB)
Jéssica Rodrigues Férrer (UFPB)
852
863
TENDÊNCIAS DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA...................... 871
Felipe Vigneron Azevedo (IFF)
LITERATURA E NATUREZA EM MANOEL DE BARROS.......................................... 883
Fernanda Bezerra de Aragão Correia (UFS)
“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO.................................................................... 894
Flávio Passos Santana (UFS)
A PRESENÇA DOS GÊNEROS TEXTUAIS NAS QUESTÕES DE MATEMÁTICA
NO ANTIGO ENEM........................................................................................................... 906
Francielle Santos Araújo (UFS)
Fabíola dos Santos Lima (UFS)
RECLUSÃO E LIBERDADE NA TRAJETÓRIA FICCIONAL DE MAYOMBE............
Francigelda Ribeiro (UFMG)
Lila Léa Cardoso Chaves Costa (UFPI)
916
ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS: UMA ABORDAGEM INTERTEXTUAL E
MULTIMODAL DO GÊNERO.......................................................................................... 924
Francilene Leite Cavalcante (UNICAP/IFAL)
Roberta Caiado (UNICAP)
O LETRAMENTO ACADÊMICO E O TRABALHO DOCENTE: OS CONFLITOS
VIVENCIADOS NA ELABORAÇÃO DE UM MATERIAL DIDÁTICO IMPRESSO
DA EAD..............................................................................................................................
Francineide Ferreira de Morais (UFPB\PROLING\GELIT)
RODAS DE CONVERSA COMO EVENTO DE LETRAMENTO PARA A
PRODUÇÃO E REFACÇÃO TEXTUAL NA EJA...........................................................
Francisca Aldenora Moreno Fernandes (UFRN)
Ana Maria de Oliveira Paz (PPgEL/UFRN)
O GÊNERO ENTREVISTA: UMA PROPOSTA DE RETEXTUALIZAÇÃO DA
FALA PARA A ESCRITA.................................................................................................
Francisca Fabiana da Silva (UFRN)
936
948
960
ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: ALGUMAS REFLEXÕES............................... 971
Francisco Canindé de Assunção (SABERES)
DO CORDÃO À WEB: O CORDEL-NOTÍCIA NA INTERNET..................................... 981
Francisco Leandro de Assis Neto (UEPB)
AS TRANSPARÊNCIAS DO TERROR............................................................................
Gabriel D. M. Moura Freitas (GELISC/CNPq/UFPB)
993
A UTILIZAÇÃO DO CONTO E SUAS IMPLICAÇÕES NAS PRÁTICAS DE
ESCRITA E REESCRITA DE TEXTOS EM SALA DE AULA....................................... 1.002
Gabriela Ulisses Fernandes (UNEAL)
A PERFOMANCE NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA DE MARCELINO
FREIRE...............................................................................................................................
Gérsica Cássia Ferreira Leite (UFPE)
1.011
ETHOS DO COTIDIANO FEMININO DE TEXTOS LITERÁRIOS DAS AUTORAS
CONTEMPORÂNEAS BRASILEIRAS IVANA ARRUDA LEITE E MARTHA
MEDEIROS......................................................................................................................... 1.024
Giovanna de Araújo Leite (BARÃO EAD - Ribeirão Preto/SP)
VOCÊ VIU TU, SENHOR? COMPETIÇÃO DE TRATAMENTO EM CARTAS DO
SERIDÓ E CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO...........................................................
Gisonaldo Arcanjo de Sousa (UFRN)
1.037
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO À
LEITURA DE POEMAS LÍRICOS.................................................................................... 1.048
Helio Castelo Branco Ramos (IFPE)
INTENCIONALIDADE LINGUÍSTICA NAS CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS EM
OUT-DOORS NAS CIDADES DE OLINDA E RECIFE..................................................
Heloisa Pedrosa de Araújo (UFPE)
1.061
RESUMO DE LEITURA: UMA ANÁLISE DO DOMÍNIO DO DISCURSO
TEÓRICO À LUZ DO ISD................................................................................................. 1.070
Hermano Aroldo Gois Oliveira (UFCG/PÓS-LE)
A VOZ DO SILÊNCIO INDÍGENA: O EXERCÍCIO DO PODER IDEOLÓGICO
SOBRE A REPRESENTAÇÃO DE ATORES SOCIAIS..................................................
Ilka da Graça Baía de Araújo (UEG)
Gláucia Cândido Vieira (UFG/UEG)
GÊNERO E RELAÇÕES INTERÉTNICAS NA CONSTRUÇÃO FAMILIAR
AFRICANA EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ, DE PAULINA CHIZIANE.............
Ilka Souza dos Santos (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
A ABORDAGEM SEMIÓTICA COMO MÉTODO PARA ENSINO DE ANÁLISE
DO TEXTO LITERÁRIO...................................................................................................
Ingrid Cruz do Nascimento (UFPB)
Dalva Sales Carvalho Cunha (UFPB)
1.083
1.096
1.109
O CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO UM GÊNERO INSERIDO NO
CONTÊINER DAS PRÁTICAS DISCURSIVAS.............................................................. 1.113
Isabela Bastos de Carvalho (IFF/CEFET-RJ)
PLANO PLURIANUAL DE ALFABETIZAÇÃO NO SISTEMA PRISIONAL NO
ESTADO DE SERGIPE: APLICAÇÃO NO PROCESSO DE FORMAÇÃO INICIAL
DE ALFABETIZADORES E COORDENADORES DE TURMAS.................................
Isis Mota Rodrigues Dantas (SEED – Secretaria de Estado da Educação)
A VIDA ÍNTIMA DA MORTE SUBVERTIDA NA POÉTICA CONTEMPORÂNEA
DE HILDA HILST..............................................................................................................
Ivon Rabêlo Rodrigues (FAFIRE)
Edigar dos Santos Carvalho (UFPE)
REPRESENTAÇÕES LITERÁRIAS DA MILITÂNCIA POLÍTICA: NOS, OS DO
MAKULUSU, DE JOSE LUANDINO VIEIRA E UN FUSIL DANS LA MAIN, UN
POEME DANS LA POCHE, DE EMMANUEL DONGALA............................................
Jacqueline Fernanda Kaczorowski Barboza (USP)
OS LETRAMENTOS NO CIRCO DO FUXIQUINHO E O PAPEL DO PROFESSOR..
Jaécia Bezerra de Brito (UFRN/PROFLETRAS)
1.126
1.140
1.149
1.159
O ÍCONE METAFÓRICO PEIRCIANO NO POEMA MORTE E VIDA SEVERINA....... 1.170
Janicreis Gomes de Souza (UFPB)
Expedito Ferraz Júnior (UFPB)
A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM E O DISCURSO PEDAGÓGICO
DO PROFESSOR: UMA AULA MAGNA DE ARIANO SUASSUNA...........................
Janielly Santos de Vasconcelos(UFPB)
1.180
PRODUÇÃO DE CHAMADAS TELEVISIVAS: O ENSINO DA ESCRITA NUMA
PERSPECTIVA PROCESSUAL........................................................................................
Jária Suéldes Alves de Lima (UFRN)
1.190
O JOGO ENTRE AS REMINISCÊNCIAS E O DESVELAMENTO NOS POEMAS
DE BANDEIRA DE TEMÁTICA ONÍRICA....................................................................
Jefferson Cleiton de Souza (UFPE)
1.203
COLONIALISMO E PÓS-COLONIALISMO EM O ALEGRE CANTO DA PERDIZ,
DE PAULINA CHIZIANE.................................................................................................
Jeferson Rodrigues dos Santos (UFS)
Anderson de Souza Frasão (UFS)
1.211
REPRESENTAÇÕES DA MULHER AMAZÔNICA NO ROMANCE DE MILTON
HATOUM............................................................................................................................ 1.218
Joanna da Silva (UFAM)
INTERTEXTUALIDADE COMO METALITERATURA: ANÁLISE
COMPARATIVA DE VIDAS SECAS E “FAROESTE CABOCLO”................................
João Batista da Silva (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
1.231
CHARGES SOBRE O CARNAVAL: UM RISO CARNAVALESCO?............................ 1.243
Jociane da Silva Luciano (UFRN)
PRODUÇÕES TEXTUAIS DE ALUNOS GRADUANDOS INICIANTES EM
LETRAS..............................................................................................................................
Joelma da Silva Santos (UFPB)
1.255
GÊNEROS TEXTUAIS E ANÁLISE LINGUÍSTICA COMO PROCESSO DE
ORGANIZAÇÃO LINGUÍSTICA E IDENTIDADE SOCIAL.........................................
John Hélio Porangaba de Oliveira (UNICAP)
1.268
A ESTÉTICA NEOBARROCA NA CANÇÃO DE CHICO CÉSAR: UM LEITURA
DE A PROSA IMPÚRPURA DE CAICÓ.......................................................................... 1.280
Jonathan Lucas Moreira Leite (UFPB-PPGL)
A AMBIVALÊNCIA DA CONFISSÃO NA ESCRITURA DE MIA COUTO................
José Aldo Ribeiro da Silva (UEPB)
1.287
ENSINO DE LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTOS NAS SÉRIES FINAIS:
PROCESSOS DE RETEXTUALIZAÇÃO COM O GÊNERO MEMÓRIAS................... 1.300
José Aurélio da Câmara (UFRN)
VIOLÊNCIA, REPRESSÃO E FORMA EM AVALOVARA.............................................. 1.312
José Helber Tavares de Araújo (UFPB)
O JOGO DAS PALAVRAS NO POEMA “MY SWEET OLD ETCETERA”, DE E. E.
CUMMINGS.......................................................................................................................
José Vilian Mangueira (UERN)
1.325
ANALISANDO O DISCURSO E O HUMOR NAS CHARGES: DO MATERIAL
LINGUÍSTICO À MATERIALIDADE DISCURSIVA..................................................... 1.335
José Wellisten Abreu de Souza (PROLING-UFPB)
EQUÍVOCOS E CONTROVÉRSIAS DO LIVRO DIDÁTICO SOBRE O ENSINO DE
GÊNEROS PARA O ENSINO FUNDAMENTAL............................................................
Josefa Maria dos Santos (UPE)
Maria Alcione Gonçalves da Costa (UPE)
A TÉCNICA DO MONÓLOGO INTERIOR NA CONSTRUÇÃO DO SER DA
FICÇÃO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS...................................................
Josivaldo Silva Menezes (UPE)
1.348
1.361
A IMPORTÂNCIA DAS TIC NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE
INGLÊS............................................................................................................................... 1.371
Joyce Rodrigues da Silva Magalhães (IFAL/UFAL-PPGLL/ObservU)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
O IMAGINÁRIO FICCIONAL EM “A MORTE DE D.J. EM PARIS” DE ROBERTO
DRUMMOND..................................................................................................................... 1.382
Juceli da Cruz Carneiro (FAFICA)
O TRATAMENTO DADO ÀS VARIEDADES LINGUÍSTICAS NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO ENSINO FUNDAMENTAL (ANOS FINAIS)
APROVADOS PELO PNLD-2014..................................................................................... 1.393
Juciano Santos Soares da Silva (UFPE/FACEPE)
A PERSONAGEM ILUMINATA COMO A MANIFESTAÇÃO DA VOZ FEMININA
NA FICÇÃO DE LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA....................................................
Júlio César Martins de Sales (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.406
IMAGENS DE NAÇÃO EM ODETE SEMEDO E CONCEIÇÃO EVARISTO..............
Karina de Almeida Calado (PUC-Minas)
1.417
NOVAS TECNOLOGIAS E FORMAÇÃO DOCENTE.................................................... 1.432
Karina Kelly Amâncio (IFAL)
UMA ANÁLISE DA TEORIA ARGUMENTATIVA EM AVALIAÇÕES EM LARGA
ESCALA NO BRASIL – SAEB E PROVA BRASIL........................................................ 1.438
Karine Alves David (UFRN)
VIOLÊNCIA E EXCLUSÃO SOCIAL EM MARCELINO FREIRE: UMA ANÁLISE
CRÍTICA.............................................................................................................................
Karla Karine Claudino Tenório (UPE)
A INTERVENÇÃO DIDÁTICA NO PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL DE
ALUNOS PARTICIPANTES DA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA-OLP....
Karolynne Kaya Maria Amorim Moura (PPGE)
Adna de Almeida Lopes (UFAL)
1.450
1.463
CUTUCAR, CURTIR, COMENTAR, COMPARTILHAR: UMA ANÁLISE DOS
RELACIONAMENTOS AFETIVOS NA CONTEMPORANEIDADE NA REDE
SOCIAL FACEBOOK......................................................................................................... 1.476
Kassios Cley Costa de Araújo (UnP)
PRODUÇÃO DE TEXTO NA CONTEMPORANEIDADE –UMA VISÃO SOBRE O
ENSINO DE LINGUAS NA ERA DIGITAL………………….……………………...…. 1.486
Kathia Maria Barros Leite (UFAL/IFAL)
Rita de Cássia Souto Maior (UFAL)
GÊNERO TEXTUAL COMO EIXO NORTEADOR DO ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA................................................................................................................... 1.498
Katiane Silva Santos (IFAL)
UMA ANÁLISE DE CONCEITOS E CONCEPÇÕES NOS REFERENCIAIS
CURRICULARES PARA O ENSINO MÉDIO DA PARAÍBA: A PRESENÇA DE
BAKHTIN...........................................................................................................................
Keila Gabryelle Leal Aragão (UFPB)
Ayanne Mayelle da Silva Ferreira (UFPB)
A LINGUAGEM DO PROBLEMA MATEMÁTICO.......................................................
Kelly Jane da Silva Tcham (PIBIC/IFAL)
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
1.506
1.519
FACEBOOK E ENSINO DE GÊNEROS: UMA EXPERIÊNCIA MIDIÁTICA EM
REDE................................................................................................................................... 1.529
Laene Alves Pacheco Vaz (UPE)
Benedito Gomes Bezerra (UPE)
CRIADAS E MALVADAS: A IDENTIDADE VISUAL DAS LATINOAMERICANAS................................................................................................................... 1.541
Larissa de Pinho Cavalcanti (UFPE)
DESCONSTRUÇÃO E CONSTRUÇÃO DA REALIDADE EM “NOIVAS
PROIBIDAS DOS ESCRAVOS SEM ROSTO NA CASA SECRETA DA NOITE DO
TEMÍVEL DESEJO”..........................................................................................................
Laura Fernanda Vicente de Souza (FAFICA)
1.553
GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO NO
ESPAÇO VIRTUAL: O CASO DO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA........................
Laura Jorge Nogueira Cavalcanti (UFPE)
1.564
O USO DOS RECURSOS COESIVOS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS DO
GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO EM INGLÊS: PROBLEMAS ENFRENTADOS
PELO APRENDIZ..............................................................................................................
Leane Mayara da Silva Santos (UNEAL)
Delma Cristina Lins Cabral de Melo (UNEAL)
1.575
MECANISMOS DE COESÃO REFERENCIAL EM PRODUÇÕES ESCRITAS: UMA
ABORDAGEM NO CONTEXTO ESCOLAR................................................................... 1.587
Leonildo Leal Gomes (UFRN)
GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS E MANUAIS DO PROFESSOR: QUAL O
TRATAMENTO DADO ÀS QUESTÕES CONTEXTUAIS?........................................... 1.596
Lílian Noemia Torres de Melo Guimarães (UFPE)
BARROQUISMOS NA POESIA DE DRUMMMOND....................................................
Lindjane Pereira (UFPB)
Líllian Régis (UFPB)
A EXPERIÊNCIA DE LEITURA E O LEITOR EM FORMAÇÃO NO PRIMEIRO
CICLO DO ENSINO FUNDAMENTAL...........................................................................
Luana Machado (UFAL)
Léa Maria da Silva Borges (UFAL)
APOCALIPSES DA MODERNIDADE: O FIM DO MUNDO EM ENSAIO SOBRE A
CEGUEIRA E 2666.............................................................................................................
Lucas Antunes Oliveira (UFPE)
1.608
1.617
1.625
O CORVO DE EDGAR ALLAN POE – UMA ANÁLISE CONTRASTIVA DAS
TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS E FERNANDO PESSOA............................. 1.637
Lucélia Aparecida de Ávila Carvalho (IFTO)
UM CRIME DELICADO SOB A ÓTICA PÓS-MODERNA............................................ 1.648
Luciana Bessa Silva (FALS)
A ÁFRICA QUE HÁ EM NÓS... IMPRESSÕES E EXPERIÊNCIAS
COMPARTILHADAS NO ENSINO FUNDAMENTAL..................................................
Luciana Maria Carvalho Medeiros dos Santos (UFRN)
Valdenides Cabral de Araújo Dias (UFRN)
1.659
UM ESTUDO SOBRE MARCADORES DISCURSIVOS NO GÊNERO
COMENTÁRIO DE BLOG FUTEBOLÍSTICO PERNAMBUCANO.............................. 1.671
Lucineudo Machado Irineu (UNILAB)
Walison Paulino de Araújo Costa (UFRPE)
A REPRESENTAÇÃO DA MULHER EM O ESPELHO DIAMANTINO –
PERIÓDICO DE POLÍTICA, LITERATURA, BELAS ARTES, TEATRO, E MODAS
DEDICADO ÀS SENHORAS BRASILEIRAS.................................................................
1.679
Lucirley Alves de Oliveira (UFPE)
A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA ESCRITA DE ANA MIRANDA......................
Luiz Renato de Souza Pinto (IFMT)
AS LITERATURAS AFRICANAS E AFRO-BRASILEIRAS NA SALA DE AULA –
UM NOVO FAZER PEDAGÓGICO.................................................................................
Lygia Maria Andrade Figueira dos Santos (UFRRJ)
Viviane de Araújo Nascimento (UFRRJ)
1.689
1.697
VOLUME III
CONTRIBUIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA
PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO E A FORMAÇÃO DO LEITOR.......................
Mabel Cristina Azevedo dos Santos (PROFLETRAS – UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
1.707
O GÊNERO BLOG PEDAGÓGICO E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: POR
UMA PRÁTICA EDUCOMUNICATIVA DE LEITURAS DIALÓGICAS DA MÍDIA
POLÍTICA........................................................................................................................... 1.718
Manassés Morais Xavier (UFCG)
Maria de Fátima Almeida (UFPB)
LITERATURA AFRICANA DE LÍNGUA PORTUGUESA: UMA POSSIBILIDADE
DE DIÁLOGO ENTRE BRASIL E ANGOLA..................................................................
Marcela de Melo Cordeiro Eulálio (POS-LE/ UFCG)
Josilene Pinheiro-Mariz (POS-LE/ UFCG)
1.729
A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA MATERNA NA AULA DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA: OS MARCADORES CONVERSACIONAIS E A ALTERNÂNCIA
DE LÍNGUA.......................................................................................................................
Marcelo Augusto Mesquita da Costa (UFPE)
Kazue Saito Monteiro de Barros (UFPE)
1.741
O TRABALHO COM O GÊNERO POESIA, O TEXTO E A ORALIDADE NO
ENSINO..............................................................................................................................
Márcia Nadja Oliveira de Medeiros Galvão (UFRN)
1.752
MR. POTTER E A VOICELESS DO SUJEITO COLONIAL: IDENTIDADE, RAÇA E
MARGINALIDADE EM JAMAICA KINCAID...............................................................
Márcia Oliveira (UFPE)
1.762
O ETHOS QUE QUEREMOS E O ETHOS QUE PODEMOS.......................................... 1.772
Márcia Regina Curado Pereira Mariano (DLI – UFS)
CULTURA: VARIEDADES DA LÍNGUA NA CONCORDÂNCIA VERBAL E
INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA...................................................................................... 1.783
Márcione Teles de Melo Barros (ULHT)
CAMINHADO POR TERRAS HABITADAS POR FANTASMAS: A
PEREGRINAÇÃO DO NARRADOR NA OBRA ‘OS ANÉIS DE SATURNO’.............
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP)
1.794
OS NOVOS REALISMOS NOVOS EM PRODUÇÕES LITERÁRIAS DE LÍNGUA
INGLESA............................................................................................................................
Marcus V. Matias (UFAL)
1.800
O FEEDBACK COLABORATIVO NA PRODUÇÃO DO GÊNERO E-MAIL: UMA
EXPERIÊNCIA COM ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL II..............................
Maria Angela Lima Assunção (UFRN)
1.812
SEQUÊNCIA DIDÁTICA POR GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PROPOSTA PARA O
LETRAMENTO..................................................................................................................
Maria Aparecida Barbosa da Silva (UFPE)
Erivaldo José da Silva (UFPE)
SOLIDÃO E DESAMPARO EM OS CUS DE JUDAS DE ANTÓNIO LOBO
ANTUNES..........................................................................................................................
Maria Aparecida da Costa (UERN)
José Juvêncio Neto de Souza (UERN)
1.823
1.833
DO PRETEXTO PLÁSTICO À VERDADE PLÁSTICA: ANÁLISE DIALÓGICA DO
DISCURSO ESTÉTICO – POESIA, PINTURA E OUTROS GÊNEROS – LIÇÕES DE
ESPANHA........................................................................................................................... 1.841
Maria Bernardete da Nóbrega (UFPB)
O GÊNERO TEXTUAL CONTO COMO FERRAMENTA ARTICULADORA NAS
PRÁTICAS DE ESCRITA E REESCRITA EM SALA DE AULA................................... 1.851
Maria Claudicélia Curvelo da Silva (UNEAL)
A BUSCA DA IDENTIDADE CULTURAL NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
DAS PERSONAGENS EM MÁRIO DE ANDRADE.......................................................
Maria da Conceição José de Sousa (UNEMAT)
MUNDOS LENDÁRIOS: LENDAS NEGRAS E URBANAS NO CONTEXTO DA
SALA DE AULA................................................................................................................
Maria das Graças da Costa (UFCG)
Ana Rafaela Oliveira e Silva (UFRN)
EVENTOS DE LETRAMENTO: O USO SOCIAL DA LEITURA E DA ESCRITA
NA SALA DE AULA.........................................................................................................
Maria das Vitórias dos Santos Medeiros (UFRN)
Maria Marlene dos Santos (UFRN)
1.859
1.866
1.875
MOVIMENTOS DE CONSTRUCÃO DA IDENTIDADE FEMININA NO GÊNERO
PUBLICITÁRIO DA NATURA: PERSPECTIVAS DIÁLOGICAS................................. 1.887
Maria do Carmo R. da Silva (UFPB)
Julia Cristina de L. Costa (UFPB-PROLING)
A ESTETIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA: UMA LEITURA DE O MATADOR DE PATRÍCIA MELO........ 1.897
Maria Fernandes de Andrade Praxedes (UEPB)
MEMÓRIA E LITERATURA: TRAUMA, ESQUECIMENTO E PÓS-MEMÓRIA NA
REPRESENTAÇÃO DO MASSACRE DOS ÍNDIOS EM A LENDA DOS CEM, DE
GILVAN LEMOS...............................................................................................................
1.909
Mariá Gonçalves de Siqueira (UFPE)
ANÁFORAS ENCAPSULADORAS NA VOZ DO NARRADOR DE MENINO DE
ENGENHO.......................................................................................................................... 1.920
Maria José Cavalcanti de Andrade (UNICAP)
MUDANÇAS GRAMATICAIS DOS ITENS “E”, “AÍ”, “AGORA” NA FALA E
CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO.............................................................................. 1.929
Maria José de Oliveira (IFRN- Caicó/ UFPB-PROLING)
Camilo Rosa da Silva (UFPB-PROLING)
ANA CRISTINA CESAR: A CONSTRUÇÃO DE UMA DICÇÃO AUTORAL............. 1.942
Maria Lúcia Colombo (UNIR/IFRO)
Sônia Maria Gomes Sampaio (UNIR)
“A ESCRAVA ISAURA” E “ROSAURA, A ENJEITADA”: IMAGENS QUE SE
CONFUNDEM NA OBRA DE BERNARDO GUIMARÃES........................................... 1.952
Maria Rosane Alves da Costa (UPE)
ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO E CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS NO
DISCURSO JORNALÍSTICO............................................................................................
Maria Sirleidy de Lima Cordeiro (UFPE)
1.963
LETRAMENTO DIGITAL: PARA TC DE VZ EM KNDO NA AULA DE
PORTUGUÊS...................................................................................................................... 1.974
Maria Solange de Lima Silva (FCU/UNIFUTURO)
MAIS DO QUE “SENTIDO FIGURADO”: O EFEITO METAFÓRICO SEGUNDO
MICHEL PÊCHEUX..........................................................................................................
Mariana da Silva Gouveia (UFCG)
1.981
AQUILINO RIBEIRO E GUIMARÃES ROSA: PROPOSTAS LITERÁRIAS EM
DIÁLOGO........................................................................................................................... 1.988
Marília Angélica Braga do Nascimento (IFRN/UFC)
A VARIAÇÃO FONÉTICA DO [R] DO PORTUGUÊS BRASILEIRO NA FALA
DOS NATIVOS DE LÍNGUA INGLESA.......................................................................... 2.000
Marília Gomes Teixeira (UFPE)
UMA PEDAGOGIA PARA UM PAÍS MULTILÍNGUE..................................................
Marinázia Cordeiro Pinto (UFRRJ)
Michele Cristine Silva de Sousa (UFRRJ)
2.010
O TRANSPOSITOR SEM: CRITÉRIOS PARA DETERMINAÇÃO DO VALOR
MODAL EM ORAÇÕES ADVERBIAIS REDUZIDAS................................................... 2.021
Marta Anaísa Bezerra Ramos (UEPB)
Camilo Rosa Silva (UFPB)
UMA BREVE ANÁLISE DISCURSIVA EM MÚSICAS CRISTÃS...............................
Max Silva da Rocha (UNEAL)
José Bezerra da Silva (FACESTA)
2.033
DICIONÁRIO ELETRÔNICO: UMA PROPOSTA PARA O ENSINOAPRENDIZAGEM DE LÍNGUA....................................................................................... 2.044
Mayara Oliveira Feitosa (UFS)
Elaine Vieira Gois (UFS)
ANGÚSTIAS NO INFÉRTIL: CONSIDERAÇÕES SOBRE “NOS HAN DADO LA
TIERRA” DE JUAN RULFO…………………………………………….…...………….
Mercia Paulino Nicolau da Silva (UFPE)
ANÁLISE DIALÓGICA DO FILME FAHREINHEIT 451...............................................
Micheline Barros Chaves (UEPB)
DISCURSOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE: O QUE DIZEM OS
PROFESSORES EM FORMAÇÃO INICIAL A RESPEITO DA DOCÊNCIA...............
Mirelle da Silva Monteiro Araujo (UFPB)
2.052
2.062
2.075
A CRIAÇÃO DE ESTRATÉGIAS PERSUASIVAS NA CONSTRUÇÃO DE AULAS
ARGUMENTATIVAS........................................................................................................ 2.087
Nádia Mara da Silveira (IFAL)
O PROCESSO DE SUMARIZAÇÃO EM POSTAGENS DO FACEBOOK: O CASO
DA SÉRIE “JEAN COMENTA”........................................................................................
Nadiana Lima da Silva (UFPE)
Monique Alves Vitorino (UFPE)
DISCUTINDO A LEITURA A PARTIR DAS INICIATIVAS NA CIDADE DE
SERROLÂNDIA/BA..........................................................................................................
Naylane Araújo Matos (UNEB)
Juliana C. Salvadori (UNEB)
RETRATOS DA DESCOLONIZAÇÃO: O RETORNO DE DULCE MARIA
CARDOSO..........................................................................................................................
Nefatalin Gonçalves Neto (UFRPE/USP)
2.098
2.114
2.126
ATRAVÉS DA LITERATURA: LITERATURA SHAKESPEARIANA.......................... 2.138
Patrícia Gonzaga da Silva (UNEAL)
Rosangela Nunes de Lima (UNEAL)
LEITURAS DE TEMAS POLÊMICOS NA SALA DE AULA: POR QUE NÃO
FAZER?............................................................................................................................... 2.146
Patrícia Lira Guedes de Oliveira (UFPB)
A LÍNGUA EM INTERAÇÃO: UM ESTUDO DE CADEIA DE
GÊNEROS EM CONTEXTO DE CONCURSO PÚBLICO.............................................. 2.158
Patrícia Silva Rosas de Araújo (PROLING/UFPB)
Manassés Morais Xavier (UFCG)
A MOBILIZAÇÃO DE LINKS EM MATERIAL DE FORMAÇÃO CONTINUADA
DE PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO..........................................................................
Patricio de Albuquerque Vieira (UEPB)
2.168
LETRAMENTO CRÍTICO E O ENSINO DE INGLÊS: REFLEXOS DENTRO E
FORA DA SALA DE AULA.............................................................................................. 2.179
Paula Tenório dos Santos (IFAL)
A MECÂNICA, A POTÊNCIA E O ATO ENFÁTICO OU A PRODUÇÃO TEXTUAL
BARRETIANA...................................................................................................................
Paulo Alves (UFPB)
OLHARES SOBRE O FEMININO: A CONSTRUÇÃO DE UM DOCUMENTÁRIO
POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO DENTRO DE UMA EXPERIÊNCIA DE
ESTÁGIO SUPERVISIONADO........................................................................................
Pedro Felipe de Lima Henrique (UFPB)
Frederico de Lima Silva (UFPB)
2.186
2.198
ANÁLISE CRÍTICA DO CONTO “A CHINELA TURCA” SOB O VIÉS DA
ESTÉTICA DA RECEPÇÃO.............................................................................................. 2.210
Pedro Santos da Silva (UFS)
POLÍTICAS LINGUÍSTICAS EDUCACIONAIS NO ESTADO DE PERNAMBUCO:
INTERPRETAÇÕES DOS PROFESSORES ACERCA DOS PARÂMETROS DO
ESTADO.............................................................................................................................
Rafaela Cristina Oliveira de Andrade (UFPB)
Terezinha de Jesus Gomes do Nascimento (UFPB)
2.216
“A PROSA DOS MEUS VERSOS”: SENTIDOS DO REAL NA POESIA LÍRICA
MODERNA......................................................................................................................... 2.229
Raquel Brandão do Sêrro (Universidade de Coimbra)
A MODALIDADE COMO ESTRATÉGIA DISCURSIVA: DO ENFOQUE
SISTÊMICO-FUNCIONAL AO DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA.................... 2.240
Rebeca Sales Pereira (UFC)
A ABORDAGEM DOS GÊNEROS DISCURSIVOS EM SALA DE AULA................... 2.252
Renata Xavier Moreira (UFPB)
CARTÃO-POSTAL PUBLICITÁRIO: MARCAS TEXTUAIS E CONSIDERAÇÕES
SOBRE O GÊNERO...........................................................................................................
Renato Lira Pimentel (UFPE)
PERGUNTAS DO ALUNO AO PROFESSOR: FERRAMENTAS DE
APRENDIZAGEM E INTERAÇÃO..................................................................................
Renato Suellisom da Silva Medeiros (UFRN)
Marise Adriana Mamede Galvão (UFRN/DLC)
A NOÇÃO DE EXISTÊNCIA EM LA VIE EN CLOSE, DE PAULO LEMINSKI...........
Rodrigo Michell dos Santos Araujo (UFS)
2.259
2.266
2.277
CULTURA DIGITAL E ENSINO...................................................................................... 2.286
Rosana Cardoso Gondim (UNEB)
REPRESENTAÇÃO DAS MINORIAS NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
VIOLÊNCIA E (DES) ENCONTROS URBANOS............................................................ 2.297
Rosana Meira Lima de Souza (UFPE)
TODA NUDEZ (NÃO MAIS) SERÁ CASTIGADA: O DESNUDAMENTO DO
FEMININO EM NELSON RODRIGUES.......................................................................... 2.308
Rosana Trevisol Seibt (IFAL)
A PARTICULARIDADE ESTÉTICA NA OBRA UMA APRENDIZAGEM OU O
LIVRO DOS PRAZERES (1969), DE CLARICE LISPECTOR.......................................... 2.320
Rosilene Pimentel Santos Rangel (UFAL/ESTÁCIO FASE)
PRÁTICAS DE ESCRITA NO LETRAMENTO ESCOLAR: OS TEXTOS DA
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS DO
ENSINO MÉDIO................................................................................................................
Rosivaldo Gomes (UNIFAP/UNICAMP)
Eloiny Ptra Brasil Lazamé (UNIFAP)
2.328
A MULHER, O TRABALHO E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES FAMILIARES:
ASPECTOS TEÓRICOS MATERIALISTAS E DISCURSIVOS NO DISCURSO
MIDIÁTICO........................................................................................................................ 2.344
Samuel Barbosa Silva (UFAL)
ESTUDO ARGUMENTAL DO VERBO ARRUMAR........................................................ 2.354
Sandro Luis de Sousa (IFRN/UFPB)
A ESCRITA DE ANA CRISTINA CESAR: UMA POÉTICA NEOBARROCA.............
Sara de Miranda Marcos (UPE)
2.366
DEIXA IR MEU POVO: GÊNERO E CULTURA............................................................
Sarah da Silva Barretto (UPE)
Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (UPE)
2.379
ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: A IMPORTÂNCIA DE FALAR, OUVIR, LER E
ESCREVER TEXTOS EM LÍNGUA PORTUGUESA NAS AULAS DE
PORTUGUÊS...................................................................................................................... 2.388
Shania Jéssika Cavalcante Rodrigues (IFAL)
FRICÇÕES DAS VOZES LABIRÍNTICAS EM A DANÇA DOS CABELOS, DE
CARLOS HERCULANO LOPES......................................................................................
Shantynett Souza F. M. Alves (UNIMONTES)
2.400
O INTERDISCURSO COMO RELAÇÃO CONSTITUTIVA ENTRE FDS: O CASO
BOLSONARO E OS DIREITOS HUMANOS................................................................... 2.407
Sheila Alves de Oliveira (UFPE)
TEMPO, TRANSCENDÊNCIA, ENVELHECIMENTO: UMA LEITURA DA
CRÔNICA “NOS TRILHOS DO TEMPO” DE CAIO FERNANDO ABREU................. 2.418
Sidileide Batalha do Rêgo (UERN)
Antonia Marly Moura da Silva (UERN)
A RELAÇÃO SENSORIAL ENTRE O CORPO DO LEITOR E O TEXTO
LITERÁRIO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA ACERCA DO LETRAMENTO
LITERÁRIO NO CONTEXTO UNIVERSITÁRIO–
...........................................................
Silvio Nunes da Silva Júnior (UNEAL)
ESCRITA MULTIMODAL: UMA PROPOSTA DE MULTILETRAMENTO NO
ENSINO FUNDAMENTAL QUILOMBOLA...................................................................
Soraya Conceição Branco (URCA/UDCS)
Aluizio Lendl-Bezerra (URCA/ UDCS)
(RE) LENDO O ARQUIVO – A PROPÓSITO DAS BASES DOCUMENTAIS DO
2.426
2.434
DISCURSO “OFICIAL”.....................................................................................................
Sóstenes Ericson Vicente da Silva (UFAL)
Maria Virgínia Borges Amaral (UFAL)
TECENDO OS FIOS DA MEMÓRIA: PALAVRA E MEMÓRIA NOS ROMANCES
DE MIA COUTO................................................................................................................
Suelany C. Ribeiro Mascena(UFPE)
MÍNIMO, MÚLTIPLO E INCOMUM: O CONTO DE VERONICA STIGGER.............
Susana Souto Silva (UFAL)
2.442
2.454
2.464
ALFABETIZAÇÃO E/OU LETRAMENTO: COMO FUNCIONA A
APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESCRITA..................................................................... 2.472
Tamiris de Almeida Silva (IFAL)
Adriana Nunes de Souza (IFAL)
MODELO PARA DESARMAR: A ESCRITURA DE WALY SALOMÃO..................... 2.481
Tazio Zambi de Albuquerque (IFPB/USP)
SEMIOSES NÃO VERBAIS COMO TRAÇOS CONTEXTUALIZADORES DE
MICROCONTEXTO EM SALA DE AULA...................................................................... 2.489
Thaís Ludmila da Silva Ranieri (UAST/UFRPE)
O RESSUSCITÓRIO DE ODORICO-PARAGUAÇU E SUAS OUTRAS GENTES,
UMA ESCRITA PALIMPSESTICA..................................................................................
Thais Rabelo de Souza (UFPE/CAPES)
UM OLHAR ATENTO SOBRE O COTIDIANO FRAGMENTADO E O FAZER
LITERÁRIO CONTEMPORÂNEO: MARIO LEVRERO, DO DISCURSO VACÍO A
NOVELA LUMINOSA.........................................................................................................
Thays Albuquerque (UEPB)
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO INDIVÍDUO ATRAVÉS DO RELATO DE
FUNDO BIOGRÁFICO: UMA LEITURA DE AVÓDEZANOVE E O SEGREDO DO
SOVIÉTICO, DE ONDJAKI..............................................................................................
Thiago da Camara Figueredo (IFPE/UFPE)
LETRAMENTO BUROCRÁTICO: PRÁTICAS DISCURSIVAS E GÊNEROS
TEXTUAIS NA ESFERA ADMINISTRATIVA ESTATAL............................................
Valfrido da Silva Nunes (UFAL)
A SUBJETIVIDADE DO NARRADOR ORAL NA PÓS-MODERNIDADE..................
Vanessa de Santana Vila Flor (UNEB)
2.501
2.508
2.516
2.525
2.536
LUANDA: CENÁRIO AFETIVO DA DISTOPIA PÓS-COLONIAL: UMA LEITURA
DAS OBRAS DE AGUALUSA E ONDJAKI.................................................................... 2.549
Vanessa Riambau Pinheiro (UFPB)
SMARTPHONE, GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:
INTERAÇÕES MIDIÁTICAS NO APLICATIVO WHATSAPP.....................................
Vera Lúcia de Siqueira Lira (UPE)
SOB A TRIDIMENSIONALIDADE DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA, A
LEITURA DE MUNDO COM BASE NOS GÊNEROS JORNALÍSTICOS....................
2.559
2.570
Vera Lúcia Santos Alves (FASJ)
A ESCRITA PROCESSUAL E O FEEDBACK COLABORATIVO ENTRE PARES
NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA EM TURMA DO 6º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL............................................................................................................... 2.581
Vilma Abdias de Lima Bezerra (UFRN)
SER EMPREGADO DOMÉSTICO NO BRASIL É SER ESCRAVO: UMA
METÁFORA SISTEMÁTICA DA SEGUNDA ABOLIÇÃO...........................................
Vinícius Nicéas do Nascimento (UFPE)
LITERATURA ERÓTICA: OU ISTO É ERÓTICO OU AQUILO É
PORNOGRÁFICO EM HILDA HILST.............................................................................
Wanderly Alves Ferreira (UPE)
José Laécio de Oliveira (UPE)
Jairo Nogueira Luna (UPE)
2.592
2.601
LÉXICO REGIONAL/POPULAR DE ZÉ VICENTE DA PARAÍBA: GLOSSÁRIO
DA CANÇÃO “DESTINO DE VAQUEIRO”.................................................................... 2.612
Wellington Lopes dos Santos (UFPB)
CAMINHAR PARA DENTRO DE SI MESMO: A METALITERATURA EM
CONTOS DE MIA COUTO...............................................................................................
William Duarte Ferreira (UFRPE/UAG)
Nilson Pereira de Carvalho (UFRPE/UAG)
MOTIVAÇÕES SOCIOFONÉTICAS DO FONEMA LATERAL E FRICATIVO
PALATAL: CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DE ELE..........
Zaine Guedes da Costa (UFPE)
Rafael Alves de Oliveira (UFPE)
O VERBETE DE DICIONÁRIO COMO GÊNERO DISCURSIVO: UMA ANÁLISE
DISCURSIVA.....................................................................................................................
Zilda Maria Dutra Rocha (UERN)
Antônio Luciano Pontes (UERN)
2.623
2.634
2.645
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
23
PRÁTICAS DE LETRAMENTO: A LEITURA DELEITE
COMO PROCEDIMENTO ESTRATÉGICO NA FORMAÇÃO
DE LEITORES
[Voltar para Sumário]
Abda Alves Vieira de Souza (UFAL)
Maria Auxiliadora da Silva Cavalcante (UFAL)
Introdução
O Ministério da Educação (MEC) com a finalidade de melhorar o processo de
alfabetização vem adotando medidas para melhorar a aprendizagem da leitura e escrita no
país. Uma das iniciativas adotadas foi a criação do PNAIC (Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa) que é um programa cujo objetivo imediato é a alfabetizar
crianças até os oito anos de idade, foi implementado em 2013 pelo governo federal que
investiu na formação continuada visando formar 360 mil professores alfabetizadores até 2015.
A iniciativa do MEC partiu dos dados levantados pelo Censo 2010. Ao todo, são 15,2% as
crianças brasileiras em idade escolar que não sabem ler, nem escrever. O PNAIC traz em seu
conteúdo reflexões e sugestões de atividades de alfabetização, letramento e incentivo à
formação do leitor. Assim, percebemos a importância de assegurar um amplo debate sobre
possíveis repercussões causadas pelo Pacto no cotidiano das práticas de alfabetização. Nesse
sentido, o objetivo deste trabalho é refletir até que ponto as estratégias de formação
vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura desenvolvidas na
escola pelas professoras alfabetizadoras.
A formação de Professores Alfabetizadores PNAIC foi desenvolvida durante o ano de
2013. Nessa formação, atuamos como formadoras dos Orientadores de Estudos Estado da
Paraíba. Os orientadores de estudo tinham como função realizar a formação com os
professores dos municípios e acompanhar os resultados da aprendizagem. O processo de
formação continuada ocorreu durante todo o ano letivo com a participação de 43 orientadores
de estudo de dezoito municípios. Durante este período, tivemos a oportunidade de refletir
sobre as seguintes temáticas: currículo inclusivo; planejamento e organização de rotina na
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alfabetização; o último ano do ciclo de alfabetização; vamos brincar de reinventar histórias; o
trabalho com diferentes gêneros textuais em sala de aula; diversidade e progressão escolar;
alfabetização em foco – projetos didáticos e sequências didáticas em diálogo com os
diferentes componentes curriculares; a heterogeneidade em sala de aula e a diversificação das
atividades; progressão escolar e avaliação o registro e a garantia de continuidade das
aprendizagens no ciclo de alfabetização. É importante destacar, que os orientadores de
estudos realizaram a formação em seus municípios com os professores alfabetizadores,
trabalhando com as temáticas supracitadas realizadas em 09 encontros, com duração de 08
horas cada.
O ensino da leitura na sala de aula
Acreditamos que é necessário planejamento por parte dos professores na organização
do trabalho pedagógico de forma que promovam atividades que ajudem as crianças a
desenvolverem habilidades de ler e compreender textos. Por esse motivo, julgamos pertinente
refletir sobre o ensino de leitura, ainda que sucintamente.
Adotamos a concepção de leitura enquanto interação, como uma atividade interativa
entre o autor e o leitor, mediada pelo texto. Nesta perspectiva, o leitor não assume um papel
passivo diante do material escrito, antes, atua sobre ele na busca pela construção do sentido
daquilo que lê. Ou seja, a leitura não pode ser entendida sem considerar a compreensão do
texto, pois se não há a compreensão do material lido, houve apenas um processo de
decodificação. (ALBUQUERQUE; SANTOS, 2007)
A prioridade no trabalho com a leitura na escola tem sido a decodificação, isto é, a
escola tem investido em um ensino que tem como objetivo instruir as crianças na
aprendizagem do sistema de escrita alfabética, deixando os outros aspectos em segundo plano.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN/LP, 1997) postulam que
qualquer leitor mais experiente que consegue analisar sua própria leitura percebe que a
decodificação é apenas um dos procedimentos utilizados quando se lê.
Nesse sentido, o ensino/aprendizagem de estratégias de leitura é essencial para que o
aprendiz desenvolva uma leitura proficiente. Solé (1998) ao discorrer sobre a importância
dessas estratégias, explica que são operações regulares para abordar o texto, e destaca que elas
podem favorecer a compreensão textual. Tais estratégias podem ser cognitivas (operações
inconscientes) e metacognitivas (passíveis de controle consciente). Ainda de acordo Solé
(1998), esse momento em que o leitor monitora sua leitura, pode ser entendido com um
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“estado estratégico’, caracterizado pela necessidade de aprender, de resolver dúvidas e
ambiguidades de forma planejada e deliberada [...]”. Para isto, o leitor faz uso das estratégias
metacognitivas. Estas, conforme Kleiman (1997, p.50), são “operações (não regras),
realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido
de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação.” Cabe ressaltar que não é o fato de possuir
um grande repertorio de estratégias que levará o leitor a entender um texto, mas é necessário,
sobretudo, saber usá-las, pois estas se constituem como um caminho para atingir a
compreensão. (COUTINHO 2004)
Ensinar os alunos a utilizarem estratégias de compreensão leitora deve ser tarefa
primordial no ensino da leitura desde a educação infantil, antes mesmo das crianças
aprenderem a ler convencionalmente. (COUTINHO 2004; BRANDÃO, 2006). Como bem
coloca as autoras supracitadas, desde cedo, uma criança é capaz de dominar a língua com
bastante propriedade, mesmo que ainda não esteja alfabetizada, ela é capaz de compreender
aquilo que alguém lê para ela, considerando á adequação do texto à sua idade. Nesse
processo, a criança mobiliza e, ao mesmo tempo amplia seus conhecimentos linguísticos
relativos tanto ao funcionamento da língua, quanto ao vocabulário. Kleiman (1997, p. 60),
acrescenta que “quando o aluno ainda não é proficiente na leitura, é na interação que se dá a
compreensão”. Nesse sentido, Brandão (2006) aponta com muita propriedade, como deve ser
o ensino da leitura antes mesmo da alfabetização propriamente dita.
(...) desde a educação infantil, devemos ensinar nossos alunos a ler como alguém
que tenta montar um quebra cabeça. Desse modo, estaremos formando um leitor
que, diante de qualquer texto, procura encontrar e construir elos entre as peças,
identificando pistas para relacionar as partes, com vistas a elaborar um todo
coerente: uma imagem que faça sentido e que possa, afinal, ser interpretável e
compreendida. (p.74)
Portanto, é necessário que haja um investimento diário na sala de aula, por parte dos
professores, no ensino das estratégias de compreensão leitora, aliadas ao domínio ensino do
sistema de escrita alfabética e ao trabalho de produção diversos gêneros orais e escritos para
que os alunos se tornem alfabetizados e letrados.
Sabemos que os materiais didáticos e as práticas pedagógicas refletem diferentes
concepções de ensino-aprendizagem da língua materna. A importância do planejamento para
o ensino dos eixos do componente curricular Língua Portuguesa está inserida na perspectiva
de que esta é uma atividade que antecede a um ato intencional. A rotina escolar, nessa
dimensão, passa a ser um momento de escolhas e decisões didáticas e pedagógicas baseadas
na reflexão sobre como agir e sobre as suas possibilidades.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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Nesse sentido, a Leitura Deleite pode ser uma estratégia eficiente para favorecer o
gosto pela leitura, porque pode promover uma aproximação das crianças com o mundo
letrado, mesmo quando ainda não sabem ler. Tal atividade pode contribui para ampliar a
visão do mundo, estimular o desejo de outras leituras, nessa atividade, o professor pode
desenvolver com as crianças estratégias de leitura que ajudem a compreender o texto. Assim,
na rotina da sala de aula, seja qual for à idade dos alunos é fundamental que sejam garantidos
momentos diários de leitura pelo professor e pelas crianças.
A leitura deleite na rotina da sala de aula
Durante o ano nos encontros de formação continuada PNAIC uma das atividades
permanentes vivenciadas foi a “leitura deleite”, tal atividade, tinha como objetivo ler por
prazer, era feita como sugestão para que a leitura fosse realizada pelas professoras
diariamente em suas classes, tinha como finalidade incentivar nas crianças o gosto pela
leitura.
Neste trabalho, estamos apresentando a inserção da leitura deleite como estratégia
eficaz proposta pelo PNAIC, cujos resultados foram comprovados nos relatos de experiências
produzidos pelas orientadoras de estudo no final do ano letivo sobre os resultados da
formação e as repercussões na sala de aula.
O relato de experiência produzido por uma orientadora de estudo do município de
Campina Grande-PB traz o seguinte depoimento e de uma professora sobre inserção da leitura
deleite:
A professora contemplou os resultados positivos da realização de um trabalho
sistemático com a literatura infantil em sua sala de aula. Sabendo que a leitura
deleite se tratava de uma atividade diária, a professora passou a ler para seus alunos
e propiciar momentos de exploração dos livros do acervo disponibilizados pelo
Pacto. Os alunos internalizaram a rotina de leitura deleite e se encantaram pelo
fantástico mundo da literatura. Foi criado um colorido cantinho da leitura no final da
sala, lugar disputado pelos alunos que encontravam além dos livros, pensamentos
acerca do mundo da leitura.
A professora estabelecia metas de leitura, incentivando os alunos a ler; realizava
locações para que durante os finais de semana, os alunos não ficassem sem ler em
suas casas. Nesse período, a professora promoveu atividades de escrita a partir dos
livros lidos nas quais os alunos tiveram a oportunidade de opinar e até criar outros
finais para a história, como foi o caso do livro “A Pipa e a Flor”. A docente elaborou
cartazes com os livros preferidos da turma, organizou e apresentou gráfico de barras
registrando o quantitativo de livros lidos pelos alunos da turma, fazendo uma
interdisciplinaridade com matemática, realizou ainda, preenchimento de fichas de
leitura de pelo menos um livro bimestralmente (o livro preferido), promoveu
atividades de recontos orais e escritos dos livros do acervo enviado pelo MEC.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Com esse trabalho, os alunos envolveram-se em virtude da motivação recebida da
parte da docente e também dos próprios colegas, que entusiasmados relatavam suas
experiências com a leitura, a ponto de adentrarem a sala de aula querendo saber qual
seria a leitura deleite do dia, apresentando no olhar o brilho de quem havia
descoberto o prazer que os livros proporcionam aos leitores!
Toda a comunidade escolar percebeu e avaliou de forma positiva o trabalho da
professora que emocionada, faz menção aos comentários feitos pelas mães dos
alunos, especialmente dos que inicialmente não conheciam nem as letras.
A gestão da escola acompanhou o trabalho das docentes atendidas pelo Pacto e
salientou a satisfação com os resultados obtidos pelos alunos.
Em visita à escola, tivemos a oportunidade de ver a socialização dos trabalhos
desenvolvidos na turma, tivemos um retorno do nosso trabalho como orientadora de
estudo ao contemplar a transposição didática do que é estudado nos encontros de
formação para a sala de aula. (Na ocasião, gravamos vídeos com o depoimento da
gestora escolar, professora, e mães de alunos). Foi muito gratificante ver o brilho
nos olhos das crianças ao expressar quantas aprendizagens conquistaram neste ano!
O que motiva tanto à professora, quanto a nós que ora desenvolvemos a atividade de
orientadora de estudos. (relatório da orientadora de estudo de Campina Grande-PB)
Outra experiência relatada por uma orientadora de estudos do Município de CaturitéPB, mostra uma sequencia de atividades que foi desenvolvida em uma escola pública a partir
de uma leitura deleite que teve como objetivo proporcionar aos alunos momentos de leitura,
de alegria e fantasia possibilitando o enriquecimento do hábito de ler, reservado na rotina
semanal, como atividade permanente, a leitura deleite teve como intuito enfatizar os eixos:
leitura e oralidade. O relato produzido pela orientadora traz o seguinte depoimento da
professora:
A leitura deleite do livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos teve como objetivo
principal despertar nos alunos o hábito da leitura, bem como, desenvolver estratégias
de leitura necessárias para a compreensão de textos lidos, formando assim leitores
proficientes. Como essa leitura despertou grande interesse nos alunos, elaborei uma
sequência didática com o objetivo de enfatizar alguns direitos de aprendizagem nos
eixos da leitura e da oralidade. Percebi neste processo, um grande interesse por parte
dos alunos em relação à leitura, o que facilitou muito a inserção dos mesmos nas
atividades propostas. Sem dúvida a aprendizagem tornou-se mais significativa com a
participação efetiva de todos os alunos da turma. A sequência didática realizada
organizou-se do seguinte modo:
No primeiro momento, apresentei o livro “Eu sou o mais forte” de Mário Ramos,
mediante a discussão oral para levantamento de hipóteses sobre o assunto tratado no
texto. Depois abordei informações importantes como: título, autor, ilustrador e
editora. Tais procedimentos auxiliam na concentração e a atenção das crianças em
relação ao texto a ser lido. Prosseguindo, promovi uma roda de contação de história
e foi feito os seguintes questionamentos sobre o personagens o “lobo”: onde vive?
Quais são suas características? Se conheciam outras histórias em que o lobo
aparece? Todos respondiam e discutiam oralmente e assim os alunos expressavam
os conhecimentos prévios sobre a personagem do lobo fazendo inferências ao texto
apresentado.
Após a roda de contação de história trazidas pelas crianças, fiz a leitura do título e da
história: “Eu sou o mais forte” para a comprovação das hipóteses levantadas pelos
alunos ao mesmo tempo em que eles iam prevendo outras. Assim, fiz
questionamentos antes, durante e após a leitura. Uma das hipóteses que me chamou
atenção foi: “vai aparecer o caçador para acabar com o lobo”. Com isso, todos
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ficaram atentos aguardando a confirmação dessa hipótese que no final da história
não é confirmada.
Esses procedimentos metodológicos os levam a desenvolver estratégias de leitura
como a antecipação e o conhecimento prévio. Além disso, observei o quanto às
crianças participam do momento da leitura com entusiasmo.
Finalizando o primeiro momento, os alunos relataram oralmente o final da história
lida, apontando que “o lobo que queria ser o mais forte do bosque se deu mal ao dar
de cara com um animal mais feroz que ele um dragão”.
No segundo momento, sentamos em círculo no cantinho da leitura retomei a história
através do reconto oral da história: ‘Eu sou o mais forte” e logo após distribui o
texto fatiado, em duplas e solicitei que os alunos colassem a narrativa no mural
observando a sequência lógica e temporal da história e, ao mesmo tempo fazia a
leitura da fatia colada.
Nessa atividade, observei a interação entre os alunos, pois os que já liam com
fluência ajudava os que tinham dificuldades. Encerrando o segundo momento,
propus a turma a dramatização do livro: “Eu sou o mais forte”. Todos demonstraram
muito interesse e logo dizia que personagem queria representar. Houve uma grande
disputa pela personagem do lobo.
Iniciando o terceiro momento, realizei a escolha dos personagens que cada um iria
representar. Em seguida, sentamos no cantinho da leitura e realizamos a leitura
compartilhada do livro: “Eu sou o mais forte” neste momento cada criança leu uma
parte do texto em voz alta. Por fim, caracterizados com os respectivos personagens,
os alunos dramatizaram a leitura (Eu sou o mais forte), inclusive fizeram uma
apresentação no seminário final do PNAIC, com muita alegria, fantasia, imaginação
e entusiasmo! ( relato de uma professora contido no relatório da orientadora de
estudo de Caturité-PB)
Ao desenvolver essa sequência didática a partir de uma leitura deleite a professora
avaliou o resultado como satisfatório uma vez que conseguiu fazer com que as crianças
realizassem diversas vezes a leitura de um mesmo livro, sem que em nenhum momento se
recusassem a realizá-las. Sendo assim, as estratégias utilizadas foram eficientes para que os
alunos vivenciassem todas as atividades aprendendo com satisfação.
Considerações finais
Neste trabalho, tivemos como finalidade refletir até que ponto as estratégias de
formação vivenciadas no PNAIC contribuíram para a melhoria das práticas de leitura
desenvolvidas na escola pelas professoras alfabetizadoras.
Com base nos dados analisados, foi possível perceber nos relatórios produzidos pelas
orientadoras de estudos que a formação permitiu momentos de reflexão em relação à prática
pedagógica contribuindo para a implantação de mudanças significativas no cotidiano da sala
de aula, sobretudo nos planejamentos das aulas e na organização da rotina pedagógica.
Nos relatos apresentados sobre a inserção da leitura deleite na rotina diária das classes
de alfabetização de textos literários indicaram que tal atividade, proporcionou o
desenvolvimento do gosto pela leitura nas crianças, uma vez que as próprias ações das
professoras e suas rotinas diárias com o uso dessas leituras favoreceram o processo ensino e
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aprendizagem. Foi ainda, o ponto de partida de sequencia de atividades que tiveram a leitura
como eixo principal.
Referências
BRANDÃO, A. C. O ensino da compreensão e a formação do leitor: explorando as estratégias
de leitura. In: BARBOSA, M. L. Práticas de leitura no ensino fundamental. Belo Horizonte:
Autêntica. 2006.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua
Portuguesa. – Brasília. 1997.
COUTINHO, M. L. Praticas de leitura na alfabetização de crianças: o que dizem os livros
didáticos? O que fazem os professores? Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de
Pós-graduação em Educação. Universidade Federal de Pernambuco. 2004.
KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. Campinas: Mercado de Letras. 1995.
KLEIMAN, A. B. Oficina de leitura. São Paulo: Pontes. 1997.
RAMOS, M. Eu sou o mais forte. São Paulo: Martins Fontes. 2005
SOLÉ, I. Estratégia de leitura. Porto Alegre: ArtMed. 1998.
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GÊNEROS DIGITAIS E ENSINO DE LITERATURA: UMA
EXPERIÊNCIA DE LETRAMENTO LITERÁRIO
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Adriana Nunes de Souza (IFAL/UFAL)
O professor no universo das TICs
O mundo contemporâneo trouxe uma série de novos recursos fascinando a todos os
que têm acesso a eles: computadores, tablets e smartphones atraem com inúmeros aplicativos,
a Internet promove viagens virtuais fascinantes. Tais recursos são vistos por muitos
professores como vilões que distanciam o aluno do ato de estudar, são imagens que tornam a
leitura algo raro e desinteressante no cotidiano, são pesquisas irreais que se limitam ao copiar
e colar.
Entre esses docentes, muitos lecionam literatura e reclamam que os alunos não gostam
de ler, limitam-se a coletar resumos na Internet, repudiam os clássicos, têm um vocabulário
limitado. Inúmeros afirmam que a escrita abreviada da Internet é uma afronta à língua, que
homepages servem como um arquivo de trabalhos já prontos do qual o aluno apenas copia o
que deve ser entregue como atividade para nota sem nem mesmo ler, que os computadores,
tablets e smartphones afastam o jovem da leitura.
Entretanto, essa visão é enganosa, pois computadores, tablets e smartphones têm
criado inúmeros leitores, não o leitor escolar da literatura dissociada do cotidiano, alheia às
preferências individuais, mas um leitor dinâmico que cria novos caminhos, passeia pelos
textos, escolhe o que deseja ler: o leitor do hipertexto.
Esse novo leitor exige um novo professor, o qual retire a máscara do preconceito de
que as redes sociais e toda a Internet dificultam a aprendizagem da língua e da literatura – e
passe a encarar as TIC (Tecnologias da Informação e Comunicação) como aliadas, como um
recurso eficiente para o letramento literário.
Temos possibilidades imensas de pesquisa na rede mundial de computadores;
inúmeros aplicativos voltados à leitura, jogos apoiados em estratégias que necessitam de um
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alicerce em textos trazidos em cada uma de suas fases; redes sociais em que a interação ocorre
basicamente pela leitura; comunidades de leitores nas redes sociais; para que esse universo
passe a ser aliado da educação, basta haver a vontade de inserir esse novo mundo ao
construído na sala de aula, pensar não na imposição da leitura única dos clássicos, na aula de
história da literatura, no desrespeito ao gosto e na avaliação mecânica dos resumos para
pensar num ensino que una esse novo recurso ao respeito, à multiplicidade de leituras, de
gêneros, ao prazer de ler.
As TIC podem ser aliadas no processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a
leitura algo muito mais atraente para o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta.
Lembremos que a associação do novo à literatura pode criar um inovador e fascinante mundo
para o aluno: por que o docente deve começar o Mal-do-século (Segunda Geração do
Romantismo Brasileiro) com um texto de Álvares de Azevedo, tão distante do aluno – pela
linguagem do século XXI, se pode discutir inicialmente o estado de alma romântico e partir
de Exagerado de Cazuza para falar do sentimento de autodestruição e de um amor exacerbado
e idealizado. Isso, certamente, agradaria mais o aluno e o convidaria a navegar pelo texto.
Igual efeito a Internet (com as redes sociais, as homepages e os inúmeros aplicativos para
tablets e smartphones) pode trazer ao ensino da literatura e consequentemente à formação do
leitor.
A educação há muito se preocupa com a construção do conhecimento a partir da
realidade do aluno, assim, se as TIC são parte dessa realidade, deve-se vê-las como aliadas. O
professor, nesta nova realidade, precisa saber orientar os educandos sobre onde colher
informação, como tratá-la e como utilizá-la. Esse educador será o encaminhador da
autopromoção e o conselheiro da aprendizagem dos alunos, ora estimulando o trabalho
individual, ora apoiando o trabalho de grupos.
Gêneros digitais e ensino
Discutiremos o papel das TIC e dos gêneros digitais para o ensino da literatura, será
uma breve análise das tecnologias da informação e comunicação no ambiente escolar como
recurso fundamental do processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura algo mais
próximo da realidade do aluno e mais prazeroso, fazendo do ato de ler algo sempre atual e
encantador, contribuindo para o letramento literário e facilitando o trabalho docente.
O acesso à Internet e a disseminação do uso das TIC estão provocando uma revolução
no conhecimento. A forma de produzir, armazenar e disseminar a informação está mudando;
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um enorme volume de fontes de pesquisas é aberto aos alunos pela rede, bibliotecas digitais
em substituição às publicações impressas e os cursos à distância, por videoconferências ou
pela Internet, são hoje uma realidade.
Essa revolução precisa ser inserida na escola, em especial se pensarmos no ensino de
literatura, pois a Internet está possibilitando a adolescentes um maior contato com a leitura e a
escrita. Eles passam horas diante da tela, conversando nos bate-papos, redigindo postagens
para as redes sociais, escrevendo e lendo e-mails, visitando sites. Utilizar este gosto pela
navegação pode proporcionar ao aluno “um novo encontro com a literatura” (FREITAS,
2003, p. 170).
A Internet, o computador, os tablets e smartphones podem, portanto, ser aliados no
processo ensino-aprendizagem, tornando a literatura e a leitura algo muito mais atraente para
o discente, inserindo-a no mundo de que ele gosta. Lembremos que a associação do novo à
literatura pode criar fascinante mundo para o aluno, contribuindo para o hábito de leitura tão
desejado pelos professores.
Sabemos que essa preocupação com a formação do gosto e o hábito de leitura é
fundamental para o ensino de literatura. Incentivar a iniciação à pesquisa bibliográfica, por
meio da adequação do material de leitura à clientela escolar é objetivo frequente nos
planejamentos e a Internet é uma importante aliada para se atingir tal objetivo.
Sendo a escola um espaço privilegiado de interação social, ela deve integrar-se aos
demais espaços de conhecimento hoje existentes e incorporar os recursos tecnológicos e a
comunicação via redes, permitindo fazer as pontes entre conhecimentos se tornando um novo
elemento de cooperação e transformação.
Tal incorporação da Internet, das TIC, à escola gera uma ampla discussão sobre o
possível impacto do uso de dispositivos técnico-informacionais (como os tablets,
computadores e smartphones) na estrutura educacional, mas um ponto é fundamental: a
necessidade da criação de uma cultura educativa que integre os instrumentos, tanto no nível
da concepção quanto no da prática, considerando a complexidade da relação entre os
instrumentos informáticos e os conhecimentos e técnicas utilizadas pelo docente.
Para essa integração, no caso específico do ensino de literatura e da formação do
leitor, nosso foco nessa discussão, torna-se necessário discutir a questão dos gêneros textuais
que emergiram a partir da revolução do conhecimento que a tecnologia proporcionou.
A questão dos gêneros é bastante ampla e para comentá-la temos de pensar primeiro
de onde provêm os gêneros? Para Todorov (1981), a resposta é que vêm simplesmente de
outros gêneros. Um novo gênero é sempre a transformação de um ou de vários gêneros
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antigos: por inversão, por deslocamento, por combinação. Um texto atual deve tanto à poesia
quanto ao romance do século XIX. Nunca houve literatura sem gêneros; é um sistema em
contínua transformação. Saussure não afirmara: “O problema da origem da linguagem não é
outro senão o de suas transformações”?
Assim, podemos afirmar que a Internet nos trouxe novos gêneros, mas eles não são tão
variados assim, pois partem de outros já consolidados. Entretanto são importantes, são
frequentes no cotidiano do alunado e podem contribuir para a formação do leitor que, pelo
contato com estes e com outros gêneros, construirá um repertório de leitura que possibilitará a
análise e a crítica, além do reconhecimento de outros gêneros.
Lembremos que, para Todorov (1981), os gêneros existem como instituição,
funcionam como horizontes de expectativa para os leitores e como modelos de escritura para
os autores. Por um lado, os autores escrevem em função do sistema genérico existente, aquilo
que podem testemunhar no texto e fora dele, ou, até mesmo entre os dois. Por outro lado, os
leitores leem em função do sistema genérico que conhecem pela crítica, pela escola, pelo
sistema de difusão do livro ou simplesmente por ouvir dizer; no entanto, não é necessário que
sejam conscientes desse sistema.
Observamos, pois, que a diversidade de gêneros na escola, e não escolares (como a
redação escolar ou o livro didático), é fundamental para o ensino de literatura. As TIC, a
Internet em especial, como recurso didático são importantes, pois podem proporcionar um
contato com diversas modalidades textuais o que é defendido pelos PCN (Parâmetros
Curriculares Nacionais – publicados em 1997 – foram elaborados por equipes de especialistas
ligadas ao Ministério da Educação, têm por objetivo estabelecer uma referência curricular e
apoiar a revisão ou a elaboração da proposta curricular dos sistemas de ensino no Brasil e,
segundo o Ministério, visa à educação básica de qualidade).
A necessidade de trazer um amplo número de textos e modalidades textuais para a
escola, para a qual a Internet é aliada, faz-se presente não apenas por ser uma indicação dos
PCN, mas por ser a língua um organismo vivo, por ser um leitor completo aquele que
consegue passear pelos diversos gêneros, compreendê-los e efetuar realmente a comunicação.
Nesse sentido, é importante lembrarmos o pensamento de Bakhtin.
Perceber a utilização da língua como um processo com heterogêneas e múltiplas
maneiras de realização é fundamental para a compreensão do ponto de partida proposto por
Bakhtin para conceituar gênero do discurso. Para ele, o ser humano em quaisquer de suas
atividades serve-se da língua a partir do interesse, intencionalidade e finalidade específicos
dela, realizando enunciados linguísticos de maneiras diversas. A essas diferentes formas de
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incidência dos enunciados, o autor denomina gêneros do discurso, porque “cada esfera de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN,
2000, p. 277).
É válido comentarmos que essa relativa estabilidade, inerente ao gênero, chama a
atenção e deve ser compreendida como algo passível de alteração, aprimoramento ou
expansão. Tratando-se de linguagem, modificações podem ocorrer em função de
desenvolvimento social, de influências culturais, ou de outros tantos fatores com que a língua
tem relação direta. Ciente do caráter inesgotável das atividades humanas e seu constante
processo de evolução, torna-se impossível definir quantitativamente os gêneros, que se
diferenciam e se ampliam em seu uso.
Um dos aspectos marcantes dos gêneros, que alude de forma direta à questão do uso é
o fato de que devemos considera-los como um meio social de produção e de recepção do
discurso. Para classificar determinado enunciado como pertencente a dado gênero, é
necessário verificarmos suas condições de produção, circulação e recepção. É relevante
observar que o gênero, como fenômeno social, só existe em determinada situação
comunicativa e sócio-histórica; caso modifiquemos tais condições, é possível que um mesmo
enunciado passe a pertencer a outro gênero.
Bakhtin, com sua proposta de conceituação para os gêneros do discurso veio suprir a
necessidade de se compreender os enunciados como fenômenos sociais, resultantes da
atividade humana, caracterizados por uma estrutura pilar básica, suscetível a determinadas
modificações. Um gênero do discurso é parte de um repertório de formas disponíveis no
movimento de linguagem e comunicação de uma sociedade.
Indissociável da sociedade e disponível em sua memória lingüística, o domínio de um
gênero permite ao falante prever quadros de sentidos e comportamentos nas diferentes
situações de comunicação com as quais se depara. Conhecer determinado gênero significa ser
capaz de prever regras de conduta, seleção vocabular e estrutura de composição utilizada. É
essa competência sociocomunicativa dos falantes que os leva à detecção do que é ou não
adequado em cada prática social.
A vivência das situações de comunicação e o contato com os diferentes gêneros
exercitam a competência linguística do indivíduo. A saber: competência lingüística é um
conceito aprofundado, que possui certa complexidade, mas que aqui será recortado no sentido
de que todos nós somos aptos a, perante determinada estrutura e contexto, definir a qual
categoria um dado enunciado pertence. Essa competência é inerente ao ser humano social, que
interage, comunica, cria e recria. Na medida em que um indivíduo avança em grau de
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escolaridade, tende a tornar-se cada vez mais proficiente na operacionalização de variadas
categorias textuais. Da mesma maneira, experiência de vida e cultura geral fazem evoluir
linguisticamente os falantes.
Sendo assim, é fundamental percebermos o gênero como um produto social e como
tal, heterogêneo, variado e suscetível a mudanças. Devido à heterogeneidade dos gêneros do
discurso, resultado da infinidade de relações sociais que se apresentam na vida humana,
Bakhtin optou por dividir os gêneros em dois tipos: primário e secundário.
Os chamados gêneros primários são aqueles que emanam das situações de
comunicação verbal espontâneas, não elaboradas. Pela informalidade e espontaneidade,
dizemos que nos gêneros primários temos um uso mais imediato da linguagem (comunicação
imediata, como em uma reunião de amigos).
Nos gêneros secundários, existe um meio para que seja configurado determinado
gênero. Esse meio é normalmente a escrita. Logo, se há meio, dizemos que há relação mediata
com a linguagem, há uma instrumentalização. O gênero funciona como instrumento, uma
forma de uso mais elaborada da linguagem para construir uma ação verbal em situações de
comunicação mais complexas e relativamente mais evoluídas: artística, cultural, política.
Esses gêneros chamados mais complexos absorvem e modificam os gêneros primários.
Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular: perdem sua
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados
alheios.. (BAKHTIN, 2000, p.281)
Para melhor compreensão do fenômeno de absorção e transmutação dos gêneros
primários pelos secundários, Bakhtin traz como exemplo uma carta ou um diálogo cotidiano,
os quais, quando inseridos em um romance, desvinculam-se da realidade comunicativa
imediata, só conservando seus significados no plano de conteúdo do romance. Ou seja, não
são mais atividades verbais do cotidiano, e sim de uma atividade verbal artística, elaborada e
complexa. É importante lembrarmos que a matéria dos gêneros primários e secundários é a
mesma: enunciados verbais, fenômenos de mesma natureza. O que os diferencia é o grau de
complexidade e elaboração em que se apresentam.
Se os gêneros primários e secundários partem de uma mesma matéria, podemos
afirmar: os gêneros que emergiram a partir do advento da Internet também a utilizam e,
portanto, precisam ser discutidos, para isso as obras Marcuschi e Xavier são utilizadas como
referência.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
36
Para Marcuschi (2004), é certo que a Internet e todos os gêneros a ela ligados são
eventos textuais fundamentalmente baseados na escrita, assim, ela continua essencial apesar
da integração de imagens e de som. Por outro lado, a ideia que hoje prolifera quanto a haver
uma “fala por escrito” deve ser vista com cautela, pois o que se nota é um hibridismo mais
acentuado, algo nunca visto antes, inclusive com o acúmulo de representações semióticas.
As formas textuais emergentes nessa escrita são várias e versáteis. Entre os gêneros
mais conhecidos e que vêm sendo estudados podemos situar pelo menos estes (numa tentativa
de designar e diferenciar tais gêneros): e-mail, bate-papo virtual em aberto (inúmeras pessoas
interagindo simultaneamente, como ocorre nos grupos do WhatsApp), bate-papo virtual
reservado (chat), como acontece no Messenger, do Facebook); bate-papo agendado (ICQ),
algumas universidades utilizam esse recurso para o ensino à distância; aula virtual (interações
com número limitado de alunos tanto no formato de e-mail ou de arquivos hipertextuais com
tema definido em contatos geralmente assíncronos; bate-papo educacional (interações
síncronas no estilo dos chats com finalidade educacional, geralmente para tirar dúvidas, dar
atendimento pessoal ou em grupo e com temas prévios); lista de discussão e fórum.
Entre os mais praticados pelos jovens estão os e-mails, bate-papos virtuais e fóruns.
Em todos esses gêneros a comunicação se dá pela linguagem escrita, vemos assim que é
fundamental aproveitarmos esse recurso como auxiliar na formação do leitor e também na
aula de literatura.
O professor e os gêneros digitais
Todos esses gêneros podem ser utilizados pelo professor como apoio para o ensino de
literatura, podem-se criar perfis de personagens como Capitu, de Machado de Assis, o
discente teria uma interação com a personalidade virtual (o professor responderia às
mensagens); pequenas encenações ou fragmentos de textos literários podem ser publicados
em um blog e discutidos em um fórum; entre outras estratégias que insiram a literatura no
cotidiano discente.
Essa nova interação com o texto literário que a internet pode proporcionar é recurso
eficiente para o letramento literário e para a formação do leitor, por proporcionar o contato
com diversos gêneros: digitais ou não. Sendo eficiente, ela, entretanto, exige um professor que
não se limite ao livro didático ou aos clássicos, mas que se aproprie do conhecimento acerca
desses novos gêneros e os insira em sua prática.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
37
Para Pinheiro (2010), o professor precisa compreender que o estudante de hoje possui
uma lógica de raciocínio e atenção utilizada em várias atividades simultâneas, as tecnologias
proporcionam isso. O professor deve entender a realidade do discente enxergando as coisas
sob a perspectiva dele, caso contrário assumirá uma posição desfavorável em sala de aula e
isso poderá tornar o ensino ineficaz.
Se os gêneros digitais que a Internet proporciona são parte do cotidiano do aluno, o
professor precisa inseri-lo em sua prática como um elemento que proporcione a aprendizagem
e aproxime a literatura de seus discentes. O professor de literatura não será mais um mero
transmissor de conhecimentos, mas será um facilitador do letramento literário.
O professor se transforma agora no estimulador da curiosidade do aluno por querer
conhecer, por pesquisar, por buscar a informação mais relevante. Num segundo
momento, coordena o processo de apresentação dos resultados pelos alunos. Depois,
questiona alguns dos dados apresentados, contextualiza os resultados, os adapta à
realidade dos alunos, questiona os dados apresentados. Transforma informação em
conhecimento e conhecimento em saber, em vida, em sabedoria. (VIEIRA, 2012, p.
6).
Não apenas a leitura, mas a escrita será desenvolvida com a inserção dos gêneros
digitais na prática docente. Vemos em Marcuschi (2004) que a escrita tem fundamental papel
na construção dos gêneros digitais e que nestes há uma interação real. Pensemos nos fóruns de
discussão das redes sociais, em especial o Facebook, amplamente utilizado pelos
adolescentes. Eles podem constituir um bom recurso didático para a formação do leitor.
Nesses fóruns, o participante expõe suas opiniões sobre dado tema e com isso põe em prática
o que Bronckart denomina modalizações.
Bronckart afirma que as modalizações têm “como finalidade geral traduzir, a partir de
qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de
alguns elementos do conteúdo temático”. (BRONCKART, 1999, p. 330)
Portanto, as modalizações pertencem à dimensão configuracional do texto,
contribuindo para o estabelecimento de sua coerência pragmática ou interativa e orientando o
destinatário na interpretação de seu conteúdo temático.
Existem quatro funções de modalização inspiradas na teoria dos três mundos de
Habermas, são elas:

Modalizações lógicas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em
critérios elaborados e organizados a partir do mundo objetivo;
Nas fronteiras da linguagem ǀ

38
Modalizações deônticas: avaliação de alguns elementos do conteúdo temático apoiada em
valores, opiniões e regras do mundo social;

Modalizações apreciativas: avaliação de alguns aspectos do conteúdo temático, apoiada em
critérios provenientes do mundo subjetivo;

Modalizações pragmáticas: explicitação de alguns aspectos da responsabilidade de uma
entidade constitutiva do conteúdo temático (o narrador, por exemplo).
As modalizações relacionam-se ao gênero a que pertence o texto. É, pois, importante
estudarmos a teoria de Bronckart a fim de que possamos considerar a inserção de variados
gêneros na relação didática uma necessidade para que o aluno conheça as várias
possibilidades de expressão de uma mesma ideia, tornando-se, portanto, um leitor completo,
que reconheça os gêneros e interprete o mundo.
Observa-se que as TIC proporcionam ao jovem um amplo contato com a escrita e a
leitura, sendo aliadas para a formação do leitor, Chartier faz importante afirmação em A
aventura do livro: do leitor ao navegador:
Aqueles que são considerados não-leitores, leem, mas leem coisa diferente daquilo
que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de
considerar não-leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de
fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar-se sobre essas práticas
incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também
sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar
aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua
plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão
do mundo, as maneiras de sentir e pensar. (CHARTIER, 1998, p. 103-104)
Considerações finais
Como educadores, devemos nos despir dos preconceitos e do lugar comum que diz: as
TIC são um problema, que distanciam o jovem da leitura e vestir a idéia de que elas podem
constituir um aliado na construção do conhecimento.
Para ser esse professor que não se veste de preconceitos, mas utiliza os novos recursos
como aliados, é necessário qualificar-se, conhecer as redes sociais, os gêneros digitais da
internet e familiarizar-se com essa nova linguagem. É necessário mergulhar no mundo dos
adolescentes, conhecer suas leituras, aquilo que faz sucesso entre eles. É fundamental estudar
com profundidade as obras que serão trabalhadas para que se possa aproximá-la do aluno: seja
criando um perfil de personagens nas redes sociais, seja construindo um site, seja num fórum
ou em um bate-papo.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
39
Para isso, as políticas públicas precisam voltar-se à formação e atualização de
professores, de forma que a tecnologia seja de fato incorporada ao currículo escolar, e não
vista apenas como um acessório marginal. É preciso pensar em como incorporá-la ao
cotidiano da educação de forma definitiva.
Podemos afirmar, portanto, que as TIC são importante recurso para a introdução de
inúmeros gêneros textuais na sala de aula, garantindo a diversidade necessária para a
formação de um leitor completo e crítico, para a consolidação do gosto pela leitura e para o
letramento literário tão desejado por docentes em seus planejamentos.
Referências
AZEVEDO, A. Lira dos Vinte Anos. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
BAKHTIN, M. A. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem, textos e discursos: Por um interacionismo
sócio-discursivo. Tradução Anna Rachel Machado. São Paulo: EDUC, 1999.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao navegador. São Paulo, SP: Unesp,
1998.
MARCUSCHI, L. A. & XAVIER, A. C. Hipertexto e Generos Digitais: novas formas de
construção de sentido. Rio de Janeiro. Lucerna, 2004.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros Textuais Emergentes no Contexto da Tecnologia Digital.
Texto da Conferência pronunciada na 50ª Reunião do GEL – Grupo de Estudos Lingüísticos
do Estado de São Paulo, USP, São Paulo, 2002.
PINHEIRO, P. P. Direito Digital. 4ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação e do desporto do Brasil.
Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Autor, 1997.
TODOROV, T. Os Gêneros do Discurso. Coleção: SIGNOS. Edições 70, 1981.
VIEIRA, M. M. Educação e novas tecnologias: O papel do professor nesse novo cenário de
inovações. http://eduemojs.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14359/8641
(Acessível em 08 de junho de 2014).
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ESTUDO DELEUZIANO DE LITERATURA
CONTEMPORÂNEA: LITERATURA MENOR E
AGENCIAMENTO EM ANTÓNIO LOBO ANTUNES E
FERRÉZ
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Adriano Carlos Moura (IFF)
Introdução
A literatura contemporânea tem-nos apresentado grandes desafios sob a perspectiva
crítica, teórica e cultural. A ausência de modelos predefinidos, a democratização dos meios de
produção, criação e circulação de obras contribuíram para que a literatura passasse a não ser
mais privilégio de uma elite “letrada” e abastada, e se consolidasse também como uma “tarefa
do
povo”,
que
não
autor/produtor/enunciador.
atua
apenas
Apesar
de
como
não
receptor/leitor,
serem
mas
fenômenos
também
exclusivos
como
da
contemporaneidade, registros coloquiais, regionais e informais, ou seja, uma linguagem não
canônica, se intensificaram nesse período. O “povo” deixou de ser apenas personagem ou
leitor e assumiu a tarefa da autoria.
Este trabalho visa a um estudo de romances de dois autores contemporâneos da
literatura brasileira e portuguesa: Meu nome é legião de António Lobo Antunes e Capão
pecado de Ferréz . Ambos tratam de personagens excluídos social e economicamente. No
entanto, a linguagem do primeiro pauta-se pelo português lusitano legitimado pelo cânone
linguístico e crítico e por uma narrativa fragmentada pelo discurso de vários narradorespersonagens. O segundo, pelo português falado na periferia de São Paulo, estado situado num
país que viveu como “periferia” portuguesa durante quase quatro séculos.
Por meio dos conceitos de “Literatura menor” e “Agenciamento” dos filósofos Gilles
Deleuze e Félix Guattari, pretende-se refletir sobre os processos criativos e composicionais
das obras que compõem o corpus do trabalho, bem como possíveis problemas imbricados na
recepção pelo leitor e pela crítica.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
41
Antes de iniciar o estudo das obras a que se refere o parágrafo o anterior, faz-se
necessário uma exposição dos conceitos nos quais este trabalho se respalda.
Em Kafka por uma literatura menor, escrevem os filósofos: “Literatura menor não é a
de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior” (DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.35). O conceito de “Literatura menor” de Deleuze e Guattari é
elaborado a partir do estudo que os filósofos fazem da obra do escritor tcheco Franz Kafka,
judeu e alemão, morando em Praga, onde o alemão era uma língua “desterritorializada”,
própria à utilização por “minorias” como ciganos e judeus. Como afirmam os autores, algo
parecido com o uso que os negros norte-americanos fazem do inglês. Pertencer a um grupo
marginalizado e escrever numa língua dominante talvez seja a principal característica desse
tipo de literatura. No caso de Kafka, o alemão era uma língua dominante, mas em Praga, não
tão prestigiada quanto o tcheco. Imagina-se um escritor imigrante, radicado na França,
escrevendo em outro idioma que não o francês, ou num francês “contaminado” pelas
influências de seu idioma de origem.
A “literatura menor” se caracteriza ainda pela ligação do individual ao coletivo
conferindo um caráter político e revolucionário à literatura. Na literatura menor, o ambiente
social não serve apenas de pano de fundo para as situações vividas pelo personagem, mas para
conectá-lo à realidade de tantos outros num projeto de enunciação coletiva ou agenciamento
coletivo de enunciação.
Mas o que seria, então, um agenciamento na concepção deleuziana?
Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos,
um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de
corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de
outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados,
transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical
orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou
reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.
(DELEUZE e GUATTARI, 2014, p.112)
Como tipos territorializados de agenciamento há as instituições familiares, sociais,
jurídicas, educacionais, religiosas. Em O vocabulário de Deleuze (online), François
Zourabichvili escreve que os agenciamentos sociais são definidos por códigos
preestabelecidos, mas que são frequentemente afetados pelas investidas das ações do
indivíduo, que
aí introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração
involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os quais é
preciso incluir os agenciamentos artísticos). (ZOURABICHVILI, 2004, p.8)
A literatura é uma máquina abstrata, porquanto se constitui pelos dois tipos de
agenciamento: o de expressão (agenciamento coletivo de enunciação) e de conteúdo
(agenciamento maquínico). Para Deleuze o agenciamento é o objeto por excelência do
romance.
Literatura menor e agenciamento em Capão pecado
Na literatura menor, “tudo toma um valor coletivo” (DELEUZE e GUATTARI, 2014,
p.37). Capão pecado é um livro que, por mais que seja assinado por um autor, Ferréz, trata-se
do resultado de um projeto de enunciação coletiva, em que o português não canônico – a
linguagem de jovens marginalizados da periferia de São Paulo – é o código linguístico
utilizado para produção da obra. Parte dos enunciados que compõem o agenciamento
maquínico de Capão pecado carrega a sintaxe e o léxico de um português bem diferente do
escrito e falado nas academias e na maioria das obras consideradas canônicas. O português é a
“língua maior” por meio da qual se expressam autor e personagens, mas uma língua maior
que comporta inúmeras variantes.
Ora, ocorre que uma língua de literatura menor desenvolve particularmente esses
tensores ou esses intensivos. Wagenbach, nas belas páginas em que analisa o alemão
de Praga influenciado pelo tcheco, cita como características: o uso incorreto de
preposições; o abuso do pronominal; o emprego de verbos curingas ( DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.46).
Se ao analisar o alemão de Praga, o editor e escritor Klaus Wagenbach observa o
hibridismo linguístico em sua composição, além das transgressões às normatizações
gramaticais e sintáticas, o que o filósofo não escreveria sobre o português falado e escrito no
Brasil. Afinal, como bem cantado na letra de Sem tradução do compositor Noel Rosa, “Tudo
aquilo que o malandro pronuncia. Com voz macia é brasileiro, já passou de português”. O
português brasileiro, além de suas raízes europeias, é fortemente afetado pelas línguas
indígenas e africanas. Na fala do brasileiro, dificilmente escuta-se a utilização da ênclise. A
próclise é a forma usual do pronome oblíquo na fala cotidiana, fenômeno já poeticamente
abordado pelo escritor modernista Oswald de Andrade em seu conhecido poema
Pronominais: “Dê-me um cigarro/Diz a gramática/Do professor e do aluno/E do mulato
sabido/Mas o bom negro e o bom branco /Da Nação Brasileira/Dizem todos os dias/Deixa disso
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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camarada/Me dá um cigarro.” Além das misturas linguísticas e transgressões normativas, pode-se
afirmar que as variantes resultantes de diferenças regionais, classes sociais e grupos culturais
contribuem para uma formação ainda mais complexa do português falado e escrito no Brasil. No
fragmento a seguir, transcrito de Capão Pecado, percebe-se o uso de palavrões, gírias resultantes
de estrangeirismos, desobediência a normas básicas de concordância verbal, neologismos falados
por jovens ativos nos movimentos de intervenção cultural e musical como o hip hop e o grafite.
- É! O bar do Polícia é o point agora, cê tá ligado? Também, o lava-rápido lá de
perto da igreja fechou; lá dava umas duas mil pessoas, mano.
- O que pegava lá, Burgos, é que o som da equipe tinha uma puta qualidade, aqueles
manos da Thalentos são foda, além do equipamento eles agitam o pessoal pra
caramba.
- É, pode crê, eu vim lá da Funchalense agora, tava tomando umas brejas lá, com os
manos da Sabin. (FERRÉZ, 2013, p. 35)
As intensidades e tensões no interior de uma língua são as possibilidades além dos
limites da própria língua, suas potências sonoras, sintáticas e semânticas. O diálogo transcrito
acima, entre os personagens Zeca e Burgos, é a expressão da realidade sociocultural desses
personagens, moradores de Capão Redondo, um dos bairros mais pobres e violentos da
periferia de São Paulo. Os dois se encontram em um bar movimentado (point), para tomar
umas brejas (cervejas). Nesse bar, Zeca pensa em São Paulo, cidade cosmopolita, considerada
uma das mais badaladas do mundo, e compara a vida dos playboys com a que ele tinha.
No plano linguístico, o parágrafo seguinte apresenta um narrador heterodiegético cuja
língua não parece ser a de seus personagens.“Rael abriu os olhos lentamente, o sol que
entrava pelas frestas das tábuas irritava seus olhos, levantou e foi até a cozinha, onde sua mãe
estava preparando café, ela lhe perguntou algo, mas ele não ouviu direito...” (FERRÉZ, 2013,
p.36) Longe de buscar no narrador a pessoa do autor, porém não ignorando o fato de a língua
utilizada por este refletir-se na daquele, observa-se um abismo linguístico entre narrador e
personagens. Abismo semelhante ao do narrador de Vidas secas e o personagem Fabiano. O
pouco domínio sobre a linguagem formal ou até mesmo sobre a linguagem de maneira geral
talvez impossibilitasse o personagem Fabiano de narrar. Se Ferréz optasse por um narrador
autodiegético e atribuísse a Rael, Zeca ou a Burgos essa função, todo o romance seria escrito
com registro coloquial.
Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não
conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que
são forçados a se servir? Problemas dos imigrados, e sobretudo de seus filhos.
Problemas das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós
todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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linguagem, e de fazê-la escoar seguindo uma linha revolucionária? (DELEUZE e
GUATTARI, 2014, p.40)
Por mais que o texto de Deleuze e Guattari discorra sobre a obra de Kafka e de uma
realidade política, social e cultural bem diferente da de Ferréz, não é forçoso afirmar que os
que escrevem em um português diferente do prestigiado pelos círculos acadêmicos são ainda
classificados como uma literatura menor, não no sentido deleuziano do termo, mas “menor”
no plano estético da linguagem por meio da qual se expressam. Não fazem literatura. Ou
fazem o que se convencionou chamar de “literatura marginal”.
O professor Napoleão Mendes de Almeida já havia afirmado que a literatura brasileira
morrera com Machado de Assis em 1908, e que escritor é aquele que conhece o idioma, tem
erudição e cultura.
Certamente, o idioma de que fala Napoleão deveria ignorar as variantes regionais,
sociais e culturais, limitando-se à norma padrão. De acordo com Marcos Bagno, em
Preconceito linguístico, Napoleão se recusava a reconhecer Drummond como poeta por este
ter, em seu poema No meio do caminho, usado o verbo ter em vez de haver. Portanto o
preconceito de que trata o linguista em seu livro não se refere apenas aos usuários cotidianos
da língua, mas também aos que pretendem usá-la com fim literário.
O livro é comumente classificado como literatura marginal ou literatura de periferia.
Segundo Deleuze e Guattari, os critérios para a definição de literatura marginal, popular ou
proletária são muito difíceis e subjetivos enquanto não se passe pelo conceito mais objetivo
que é o de literatura menor. Para os filósofos é “a possibilidade de instaurar de dentro um
exercício menor de uma língua mesmo maior, que permite definir literatura popular ou
marginal.” (DELEUZE E GUATTARI, 2014, p. 39).
Mas marginal até quando? Nos anos 70, esse adjetivo era atribuído a uma literatura
praticada por autores – a maioria poetas – cujos textos estavam à margem do projeto
ideológico e financeiro do mercado editorial abalado pela censura da ditadura militar. Esses
poetas apresentavam uma literatura com proposta estética inovadora não apenas sob o ponto
de vista da linguagem, mas também pela forma de circulação. A literatura marginal composta
por Ferréz está além disso, pois, diferente da produzida por escritores oriundos em sua
maioria da classe média, as palavras que compõem a tessitura de Capão Pecado emergem de
um conjunto de vozes também marginalizadas. As partes do romance são abertas por textos
compostos por rappers amigos do autor.
Estar à margem dos bens materiais e culturais, dentre eles a universidade, bibliotecas e
livrarias é a realidade de moradores de bairros como Capão Redondo. Os produtos culturais
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produzidos pelos moradores de regiões como essas são comumente recusados em ambientes
onde impera a cultura considerada de bom gosto: a “literatura maior”. A que quando
transgrede, apenas o faz no plano do conteúdo e da forma, porém linguisticamente se mantém
espelho do seguimento social de onde surge e que dita os parâmetros do que pode ser
considerado literatura, conceito frágil e até hoje objeto de acaloradas discussões em círculos
acadêmicos.
Meu nome é legião – romance o qual analisaremos adiante – também retrata a
realidade de um grupo socialmente excluído, porém a língua falada por seus personagens e
narradores não apresenta as variações e transgressões de Capão Pecado. Os marginalizados
do romance de Antunes estão na capital da língua portuguesa – Lisboa –, sua sintaxe de
concordância e de colocação, assim como seu léxico não têm a diversidade caracterizadora do
texto que ecoa de personagens como Rael e Burgos do romance de Ferréz.
O português ditado pelas gramáticas parece uma língua estrangeira para um número
grande de brasileiros que vivem numa língua que não é sua , porque ignora seu jeito de falar
e de se expressar. Fala oprimida dos que não têm acesso à cultura erudita e acadêmica das
universidades ganha no livro de Ferréz uma postura opressora dos círculos que ignoram o
terceiro mundismo linguístico dos moradores de áreas marginalizadas como Capão Redondo
(SP). Para Deleuze e Guattari, o uso transgressor que escritores e outros artistas podem fazer
da língua é uma saída para a linguagem, para a música, para a escrita. Esses autores devem
servir-se do polilinguismo de sua língua (2014).
Agenciamento e rizoma em Meu nome é legião
Meu nome é legião, romance publicado em 2007 pelo escritor português António Lobo
Antunes, conta a história de oito garotos entre 12 e 19 anos, que roubam dois carros e
praticam crimes em um bairro afastado de Lisboa. Os três primeiros capítulos são narrados
por Gusmão, policial em fim de carreira, como se fosse um relato policial. No entanto, outros
personagens – que têm algum tipo de relação com os criminosos – assumem também o papel
de narradores, e suas vozes se sobrepõem umas às outras transformando a narrativa num
mosaico polifônico e rizomático.
No começo do livro, tem-se a impressão de que Gusmão, metalinguisticamente,
assumirá a função de autor. Chega-se a acreditar que o romance seguirá a forma de um relato
policial e que o autor se valerá desse personagem para levar adiante seu projeto narrativo,
apagando-se sob o simulacro do narrador, como faz Clarice Lispector com seu Rodrigo S.M.
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em A hora da estrela. Porém a palavra é tomada por uma prostituta de cinquenta anos que é
amante de um dos garotos. E da prostituta a palavra é tomada pelo pai de outro menino e
depois pela irmã e a mãe de outro. Em vários trechos do romance não se sabe exatamente a
quem pertence os enunciados, pois o discurso de cada narrador é entrecortado pelas vozes e
discursos de outros micronarradores que emergem de suas lembranças, presentificando-se na
narrativa tal qual fantasmas, dificultando ao leitor, a identificação do narrador/autor que as fez
emergir. Dessa forma, por meio dos personagens, não se consegue facilmente buscar o
narrador que media seus discursos. Se Gusmão redige o inquérito policial, ele é o autor
ficcional deste texto. Porém o narrador faz a seguinte revelação a seu leitor:
desde que comecei a escrever se é que pode chamar-se escrever ao que faço, já
garanti ser uma voz que dita umas ocasiões tão depressa que não a acompanho e
outras silencio horas a fio e eu de bico no papel” (ANTUNES, 2007, p.122).
Talvez, neste ponto, personagem/narrador tangencie o escritor, que também afirma
não ser o autor do que escreve atribuindo isso a uma voz desconhecida.
A Lisboa retratada em Meu nome é legião é uma capital de imigrantes africanos e
mestiços, que sofrem com o racismo e a discriminação. Sem panfleto, Lobo Antunes, ou a voz
a que narrador/personagem/ autor se refere, por meio de arranjos poéticos como “os mestiços
não choram porque o mecanismo das lágrimas não nasceu com eles que vantagem, dividem
tripas no seu idioma de consoantes compridas”, denuncia como vive a população pobre e
periférica da capital portuguesa.
Meu nome é legião é o agenciamento por excelência. Não narrador, mas uma
multiplicidade deles, com vozes que se entrecruzam, se complementam, se contradizem ou se
repetem para contar a história dos garotos delinquentes e de seus crimes. Enunciados que
agem uns sobre os outros, ou corpos que agem uns sobre os outros para ser mais preciso em
terminologia deleuze-guattariana, peças da grande máquina que é o romance, cujas
engrenagem são, além dos personagens-narradores, seu autor, Lisboa, os problemas dos
imigrantes e miseráveis lisboetas.
Para Deleuze e Guattari “a enunciação literária a mais individual é um caso particular
de enunciação coletiva” (DELEUZE e GUATTARI, p. 152). Afirmar-se não ser ele o autor do
romance, mas que este resulta de vozes que lhe ditam o que escreve, coloca Lobo Antunes na
posição de um autor que se assume como parte de um agenciamento coletivo de enunciação e
não como senhor dos enunciados; ao ponto de o livro parecer um ser autônomo.
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Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura
deve escrever em sua língua como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um
uzbeque escreve em russo. Escrever como um cachorro que faz seu buraco, um rato
que faz sua toca. (Ibdem)
Assim é a escrita de Lobo Antunes, como a de um cachorro que cava seu buraco, nos
quais insere suas construções metafóricas e sintáticas inovadoras. Os enunciados do romance
em inúmeros trechos não se completam, porque o diálogo entre os personagens é sempre
entrecortado por lembranças, anacolutos, frases incompletas, dificuldades com a linguagem e
com a comunicação. Ler Meu nome é legião é como estar em uma sala com mais de dez
pessoas falando ao mesmo tempo.
São outras vozes que oiço, finados de antes do meu nascimento num português de
pretos porque somos pretos e não temos um lugar que nos aceite salvo figueiras
bravas e espinhos, se contasse das vozes ao meu marido por mais que se inclinasse
para o chão (e inclinar-se-ia para o chão coitado).
Não entendia senão o vento nas ervas (ANTUNES, 2007, p. 153)
No trecho acima, tem-se o depoimento da mãe de um dos garotos presos, moradora de
um bairro de imigrantes e portugueses negros na periferia de Lisboa. Um bairro, assim como
Capão Redondo, abandonado pelas políticas do Estado e vítima da violência policial. O que
aproxima o texto de Antunes do conceito de “Literatura menor” é o fato de o autor permitir
que seus personagens falem sem mediações, criando com isso uma língua totalmente
agramatical e assintática. Conteúdo e expressão são determinados sempre de forma inovadora,
já que a possibilidade de criar enunciados novos é uma característica da literatura menor. No
caso de Antunes, feito numa “língua maior” sem a diversidade linguística de Capão pecado.
Para Lobo Antunes, cada livro representa uma experiência nova com a escrita,
perseguindo formas e expressões diferentes ou aprofundando experiências de obras anteriores.
Segundo Deleuze, em Crítica e Clínica “A literatura está antes do lado do informe, ou
inacabamento (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se
(...)”(DELEUZE, 2011, p. 11)
Quanto à recepção, Meu nome é legião não deve gerar rejeição no leitor brasileiro por
utilizar uma língua considerada vulgar por uma elite letrada (no trecho transcrito, há inclusive
uma construção mesoclítica). Para o leitor mediano, talvez pelo português com construções
comuns à sintaxe e semântica lusitanas. A todo um conjunto de leitores, independente do grau
de iniciação à leitura ou à Literatura, o romance apresenta grandes desafios devido a sua
elaboração formal, constituída de rizomas narrativos. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari
postulam que um rizoma conecta “cadeias semióticas, organização de poder, ocorrências que
Nas fronteiras da linguagem ǀ
48
remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p.15). Os
agenciamentos do romance produzem uma obra rizomática cuja leitura implica a disposição
do leitor para se aventurar numa selva sem trilhas, para atuar como um cartógrafo, traçando
linhas de leitura e conectando discursos e signos para que a leitura e a compreensão do texto
sejam possíveis.
Considerações finais
Tanto Meu nome é legião quanto Capão pecado apresentam traços característicos do
que se conceitua como agenciamento e literatura menor. Para Deleuze, o verdadeiro filósofo é
o que inventa conceitos e essa é uma das funções da filosofia. Os conceitos criados pela
filosofia valem pela possibilidade de serem aplicados, adaptados e relidos em situações
diferentes daquelas em que se originaram. A filosofia de Deleuze e Guattari, por seu caráter
transgressor, assim como é a literatura de Lobo Antunes e Ferréz, permite a análise dessas
duas obras que, independentemente dos critérios de gosto ou das definições do que é ou não é
literatura, apresentam desafios para leitores, professores e críticos: o desafio de ler e analisar
obras cujos procedimentos de composição e expressão são resultado das experiências sociais,
políticas, culturais e estéticas de autores cuja escrita assim como a vida é um devir, uma
atividade inacabada, sujeita a mudanças e que não se rende ao ditames das instituições.
O enunciado se faz de acordo com determinadas regras e faz parte do que os filósofos
chamam de máquina. Os agenciamentos sociais (família, universidade, religião, empresa, etc.)
são totalmente territorializados. Uma literatura considerada menor será sempre a de uma
língua desterritorializada, uma literatura onde o interesse individual está ligado ao “imediatopolítico” e o agenciamento de enunciação será sempre coletivo. É o que fizeram António
Lobo Antunes e Ferréz nos romances objetos deste estudo.
Referências
ANTUNES, António Lobo. Meu nome é legião. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 55ª ed. São Paulo: Edições
Loyola 2013.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução: Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34,
2011.
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49
DELEUZE e GUATTARI. Kafka:por uma literatura menor. 2ª ed. Tradução: Cintia Vieira da
Silva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
FERRÉZ. Capão Pecado. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2013.
ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Em
www.claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/agenciamento-deleuze. Acesso em 20 de
abril de 2015.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
50
O FILME DENTRO DO FILME. TEATRO, TV E CINEMA: UM
ESTUDO SOBRE A METALINGUAGEM EM “LISBELA E O
PRISIONEIRO”, DE OSMAN LINS
[Voltar para Sumário]
Adriano Siqueira Ramalho Portela 1
Osman Lins
Nascido em Vitória de Santo Antão, zona da mata pernambucana, Osman Lins é autor
de peças de teatro, contos, romances e ensaios. O romance “Avalovara”
2
(1973) é
considerado pelos pesquisadores e por seus leitores como a sua obra prima. Já no final da
vida, o vitoriense chegou a escrever direto para a mídia televisão, resultante dos “Casos
Especiais” 3, programa transmitido em 1978 pela Rede Globo. As narrativas foram: “A Ilha
no Espaço”, “Quem era Shirley Temple?” e “Marcha Fúnebre”. Depois vieram as adaptações;
em 1981 a TV Cultura exibiu “O Fiel e a Pedra” 4; Em 1993, a peça “Lisbela e o Prisioneiro”
– corpus do nosso estudo -, foi levada para a TV.
Lisbela e o Prisioneiro
A peça foi encenada pela primeira vez em 1961, no teatro Mesbla do Rio de Janeiro,
pela Companhia Tonia-Celi-Autran. O enredo se passa na cadeia pública de Vitória de Santo
Antão. Lisbela é filha do delegado, o Tenente Guedes, e noiva do advogado Noêmio. A jovem
se interessa por Leléu, uma mistura de conquistador com artista de circo. Na trama outros
personagens também ganham destaque, são eles: o soldado, corneteiro e apaixonado por fitas
Jornalista. Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.
O livro intercala oito narrativas que permeiam tempos e espaços distintos, tendo como ponto de partida uma
espiral e um quadrado.
3
A série de programas fez parte da programação da Rede Globo entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro
de 1995. No total foram 172 episódios. Diversos autores foram adaptados, como Machado de Assis, Graciliano
Ramos e Jorge Amado.
4
O romance foi adaptado por Jorge Andrade.
1
2
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
51
de vídeo, Jaborandi5; o soldado Juvenal, o cabo Heliodor, o carcereiro Citonho, os presos
Testa-Seca e Paraíba, o vendedor de pássaros e amante da mulher de Raimundinho; e o
matador Frederido Evandro. O eixo central da peça está no triângulo amoroso entre Lisbela,
Noêmio e Leléu; o conflito: Leléu é preso por tentar conquistar Lisbela e perseguido por ter se
envolvido com a mulher do matador Evandro.
Lisbela e o prisioneiro é peça indispensável no conjunto dramatúrgico Osman Lins.
Escrita sob os cânones da tradição cômico-popular, confere espaço a essa faceta do
autor, cujas obras apresentam, na maioria, forte tom dramático. (DIAS, 2011, p. 20).
De acordo com Sandra Nitrini, o texto é uma comédia de caracteres e com uma
estrutura tradicional, “com exposição, desenvolvimento, falso clímax, clímax, desfecho de
situações vivenciadas por personagens nordestinos muito bem amarrados”. (NITRINI apud
LINS, 2011, p. 113).
Osman adaptado
“Nem o produto nem o processo de adaptação existem num vácuo: eles pertencem a
um contexto – um tempo, um lugar, uma sociedade cultural”. (HUTCHEON, 2013,
p. 17).
O cineasta pernambucano, Miguel Arraes de Alencar Filho6, é - podemos dizer -,
quase um personagem de “Lisbela”. Guel Arraes, como é conhecido, é um profissional que se
mostra interessado no cruzamento das linguagens. Em 1993 ele dirigiu uma série da Rede
Globo, chamada “Terça Nobre”, onde os programas eram adaptações dos clássicos da
literatura nacional. Uma delas foi, justamente, “Lisbela e o Prisioneiro”. Em 2000, Guel
retomou o texto do vitoriense, só que dessa vez, a adaptação foi para o teatro, três anos mais
tarde, os mesmos atores da peça seguiram com o diretor para o cinema. No roteiro, Arraes
teve o suporte dos cineastas Jorge Furtado e Pedro Cardoso, na direção musical, a parceria foi
com o pernambucano e também cineasta e dramaturgo João Falcão. O filme levou mais de
três milhões de espectadores pagantes ao cinema, ocupando o sétimo lugar no ranking7. Isso
remonta a reflexão de Virgínia Woolf, no livro Os filmes e a realidade: “O cinema tem ao seu
5
Na adaptação para o cinema, a personagem Lisbela é que é apaixonada por cinema.
Cineasta e diretor de televisão. Filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes. Atualmente é diretor de
programas de entretenimento da Rede Globo de Televisão. Ele também dirigiu “O auto da Compadecida”
(1999); “Caramuru – A invenção do Brasil” (2000); “Romance” (2008); e “O bem amado” (2010).
7
Dados da Ancine referentes ao ano 2003 (www.ancine.gov.br).
6
Nas fronteiras da linguagem ǀ
52
alcance inúmeros símbolos para emoções que até hoje não encontramos expressão.” (1926, p.
309).
Diretor e equipe demonstram prezar pelo quesito intertextualidade, e o filme nos traz
um ícone em especial que finda por estabelecer o diálogo com o leitor e, posteriormente, com
o espectador, é a metalinguagem. Tanto Osman como Guel se utilizam dessa ferramenta em
seus trabalhos, tecendo um jogo de conhecimento e entretenimento.
Metalinguagem
“Metalinguagem é linguagem falando de linguagem” (1986, p. 32). Chalhub nos inicia
muito bem no tema, reforçando que todo enunciado que se referir à língua, linguagem e
termos relacionados é meditado metalinguístico, por exemplo: um filme que fala sobre filme,
uma canção que aborda outra canção, uma peça teatral que retrate outra peça. Neste estudo
vamos analisar as funções características do processo de comunicação com ênfase na função
metalingüística da linguagem em “Lisbela e o Prisioneiro”. O ponto de partida é o texto
original:
Lapiau – Se me lembro? Ora se! Peça formidável era aquela: “Meu Único
Progenitor”.
Leléu – E “A Paixão de Cristo”, rapaz. Aquilo é que era uma peça. Quarenta e dois
atos.
Lapiau – Quarenta e seis.
Jaborandi – Danou-se. Nem uma série.
(LINS, 2011, p. 45)
A primeira vista podemos até passar despercebido, mas parando para refletir,
compreendemos que “Lisbela” é um texto literário teatral e que, especificamente na citação
supracitada, está fazendo referência a outra peça de teatro. “Recentemente a especialização da
arte levou os artistas a dialogarem não com a realidade aparente das coisas, mas com a
realidade da própria imagem.” (SANT’ANNA, 1988, p. 8).
Na TV e, no cinema, principalmente, o uso da metalinguagem é mais presente, tendo
como alvo o envolvimento do espectador, despertando o seu interesse pela obra. Em “Lisbela
e o Prisioneiro” a diegese8 – tanto no produto veiculado na TV como nas telonas -, se dá,
diversas vezes, nos encontros dentro do cinema. É lá que eles assistem os filmes em preto e
Segundo João Batista de Brito, diegese é compreendida como “todo o universo fictício, temporal e
espacialmente concebido, manifestado ou implícito num filme; o que inclui, portanto, não só a sua narração,
como também os seus aspectos descritivos, subtendidos ou não” (1995, p.204).
8
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
53
branco, namoram, brigam, tentam se resolver, e também é o local onde acontece o desfecho
da história. No episódio que foi ao ar na Rede Globo, Guel Arraes usou imagens do cinema
mudo e de seriados de TV dos anos 50. Em uma das cenas o tenente Guedes entrega armas
aos soldados com a finalidade deles capturarem Leléu, esse trecho é alternado com imagens
do filme “Carlitos em Fuga”; e assim o diretor foi costurando o enredo e desenvolvendo seu
processo criativo.
Os experimentos que ocorreram na TV foram retomados e aprimorados para o
cinema. A diferença é que, no caso do filme, ele não recorreu aos clássicos originais
do cinema. Guel e equipe preferiram criar novas inserções, paródias
cinematográficas, com atores diferentes do elenco, digamos assim, do filme
principal, Lisbela e o Prisioneiro, o que fez surtir um efeito extremamente
interessante de um filme dentro de outro filme. (FIGUÊIROA e FECHINE, 2008, p.
235).
O diretor leva para a TV e para o cinema uma crítica aqueles que só enxergam o
nordeste como uma terra seca e sem valor cultural, como um espaço sem cor, sem graça, onde
nada pode acontecer; por meio do humor ele apresenta um nordeste colorido, um tanto
surrealista, com permissividade para o teatral. Com essa releitura, o Nordeste passa a ser o
espaço diegético texto-filme, onde Guel resulta por romper fronteiras quando passa a dialogar
com a contemporaneidade, deixando suas personagens, mesmo estando na zona da mata,
adeptas de características urbanas.
No artefato metalinguagem, a crítica ganha corpo, mostrando que situações que
acontecem lá fora, como nas tramas de Hollywood, podem ocorrer no Brasil, e porque não no
nordeste. Arraes aproveita o humor crítico de Osman Lins e acrescenta seu arsenal de técnicas
para mostrar o filme dentro do filme, unido o cômico à análise, provocando e, ao mesmo
tempo, levando o distanciando entre espectador e objeto, “uma vez que a comicidade se dirige
a inteligência pura, e a avaliação crítica é procedimento de um teatro épico consciente”.
(BERGSON, 2004, p. 3).
Na TV ele aproveita todos os espaços e chega a brincar com a “passagem de bloco”9.
Na transição para o terceiro intervalo, por exemplo, surge a locução: “Não perca no próximo
bloco. A moça que virou cobra, o valente que fez o diabo chocar um ovo, a mulher que deu à
luz um satanás; e se for mentira, eu cegue.” (FIGUEIRÔA e FECHINE, 2008, p. 239). Com
essa estratégia o diretor consegue prender a atenção do telespectador e fazer com que ele não
disperse e espere a volta do break10. Percebemos que os códigos passam a se relacionar, e o
9
Usado em programas de televisão, novelas e minisséries, a passagem de bloco é um formato de arte usada para
a transição entre o produto e o intervalo comercial.
10
Intervalo entre os programas de TV.
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54
off11 da passagem de bloco culmina por representar e informar que o próximo capítulo volta
em breve, ou seja, é o signo como signo de alguma outra coisa.
A metalinguagem é uma aposta antiga e que vem dando certo, a prova está em alguns
clássicos, como: “Oito e Meia” (1963), dirigido por Fellini. A película conta a história do
cineasta Guido Anselmi que está sem ideia para a realização do seu filme; ele acaba entrando
em crise, é internado e passa a misturar ficção com realidade. Dez anos depois estreia “A
Noite Americana”, de François Truffaut. O enredo mostra os bastidores de um set de
filmagem e uma tamanha confusão envolvendo atores, dublês e o diretor. E para encerrar a
nossa lista12, numa coincidência de intervalos de dez anos, o filme “Zelig” (1983), de Woody
Allen. A obra é uma pseudo-documentário sobre Leonard Zelig, interpretado pelo próprio
Allen. O protagonista costumava modificar a aparência para agradar quem se aproximava
dele. Esses feitos, essa vontade de mostrar, de descodificar os signos calha com uma das
teorias de Robert Stam, quando ele diz que “o cinema é em si é um instrumento filosófico, um
gerador de conceitos que traduz o pensamento em termos áudio-visuais.” (2006, p. 25).
Os números, já citados anteriormente, mostram que “Lisbela” fora um sucesso de
bilheteria e isto vem provar que o filme conseguiu estabelecer uma identificação com o
público; essa é uma das inúmeras possibilidades oferecidas pela metalinguagem. Ana Lúcia
Andrade explica que ao longo da história do audiovisual, o cinema norte-americano percebeu
o encanto que poderia exercer no público ao tratar a si mesmo na telona.
Para atingir esse grau de cumplicidade com o público, o cinema primeiramente
retratou seu próprio ritual, em um jogo de reconhecimento em que o espectador
assistia ao que lhe era mais familiar até então, enquanto ia formando seu inventário
imagético. (ANDRADE, 1999, p. 65).
Em “Lisbela” essa empatia com o público vem estampada na primeira cena, onde a
mocinha e Douglas13 estão no cinema. O espectador se identifica com o casal procurando o
lugar certo para sentar, um local que não fique nem muito perto da tela nem muito longe e
sim, com brechas para que possam ver bem. Lisbela mostra-se fascinada pelo mundo do
cinema e vai contando para o noivo como procedem as cenas da comédia romântica que
assistem; Douglas aparenta ter bem menos conhecimento em relação à sétima arte e está ali
mesmo é para namorar. Quando a mocinha principia a contar as cenas, passa-se a ter uma
11
Voz do narrador usada para cobrir uma imagem.
Lista com uma quantidade suficiente de filmes com a temática metalingüística está disponível em:
<http://cinetoscopio.com.br/2013/06/20/11-filmes-de-metalinguagem-no-cinema/>
13
No texto original, Douglas é o advogado vegetariano, o Dr. Noêmio.
12
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
55
interação com o espectador, o qual parece querer opinar, sugestionar. Ele acaba se
encontrando “dentro da narrativa”.
Lisbela – Eu adoro essa parte. A luz vai se apagando devagarzinho. O mundo lá fora
vai se apagando devagarzinho. Os olhos da gente vão se abrindo. Daqui a pouco a
gente não vai mais nem lembrar que tá aqui.
Douglas – É preto no branco.14
A narração em off, usada no especial para TV é aproveitada no cinema. A voz narra
trechos do filme em preto e branco, ao mesmo tempo atrelando aos momentos vividos por
Leléu e Lisbela. Outros elementos compõem essa intercalada, por exemplo, quando o vilão
Frederico Evandro aparece pela primeira vez, também aparece um vilão no filme que o casal
está assistindo; em seguida a narração volta e o processo metalinguístico continua. Em uma
das cenas, Frederico, ao chegar a casa, flagra sua mulher Inaura na cama com Leléu;
revoltado ele sai atirando e correndo para pegar o Dom Juan nordestino. No cinema o casal vê
o mocinho sendo perseguido pelo bandido. Entra o off: “Será que nosso herói vai partir para
o beleléu? Não perca no próximo episódio: as aventuras de um herói sabido contra o corno
matador”. (Transcrição do filme). Os enredos vão se cruzando, é como se a história que eles
assistem no cinema, fosse igualmente acontecendo na cidade onde estão.
Existem momentos em que a metalinguagem acontece em níveis variados, em uma
delas Lisbela está sozinha dentro do cinema, quando Leléu aparece; os dois, além de estarem
vivendo algo semelhante ao que acontece na película projetada, começam a conversar sobre
cinema e o contexto do diálogo se realiza na telona; quando eles estão falando sobre história
de amor, ao fundo o casal do filme vive momentos felizes.
Leléu – a senhora tem vontade de ser artista de cinema, é?
Lisbela – E meu filho, eu não sou nem americana pra ser artista.
Leléu – Minha filha, nunca ouviu falar em artista nacional, não?
Lisbela – Uma história de amor bonita mesmo, só nesses filmes.
Leléu – É? Quando a mocinha é nacional é bom que o beijo já vem traduzido.
Lisbela – Deixa de ser besta que eu não lhe dei essa ousadia.
(Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).
Perto do desfecho da obra, a metalinguagem se repete. Lisbela havia terminado o
relacionamento com Douglas e estava no cinema esperando por Leléu. O “herói” chega ao
final do filme que a mocinha estava assistindo. Percebendo algo de estranho, ela antecipa a
sua fala:
14
Transcrição do filme “Lisbela e o Prisioneiro”. Transcrição nossa.
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“Veio dizer que vai embora. É igualzinho no cinema. A mocinha está ansiosa esperando o mocinho e finalmente
eles se reencontram. Ele vem se aproximando e ela acha que é para dar um beijo. Mas aí ela vê que o rosto dele
está preocupado demais para isso.” (Transcrição do filme Lisbela e o Prisioneiro).
Até na cena da cadeia o diálogo metalinguístico é desenvolvido. Depois do beijo,
Leléu questiona se aquele fora o beijo do casamento, ela nega e diz que foi o da despedida; o
herói pergunta se ela não sabe que todo filme de amor se acaba em beijo. “Sei. Mas já acabou
a luz do cinema. E agora vai começar a minha vida”. (Transcrição). No desenlace da história,
quando Leléu e Lisbela estão no caminhão, o diretor reforça ainda mais suas técnicas e coloca
de vez o espectador na história.
Lisbela – Mas agora eu me sinto num filme de verdade.
Leléu – É? Lisbela e o Prisioneiro. O nosso filme nunca vai ter fim.
Lisbela – Espera um pouquinho.
Leléu – Que foi?
Lisbela – É que o melhor do cinema é o jeito como termina.
Leléu – E como é isso, heim?
Lisbela – Adivinha?
Leléu – Com todo mundo olhando.
Lisbela – É só no começo. Depois o filme acaba.
Leléu – Então tá bom da gente se apressar, porque o povo já entendeu que ta
acabando e é capaz de começar a sair sem prestar mais atenção na gente.
Lisbela (olhando para câmera) – Mas talvez nessa sala tenha pelo menos um casal
apaixonado que vai assisitir até o finalzinho. E mesmo depois que o filme acabar,
eles vão ficar parados um tempão até o cinema esvaziar todinho. E aí vão se
mexendo devagar como se estivessem acordando depois de sonhar com a história da
gente.
Leléu – tomara que eles tenham gostado.
Após o beijo, o cenário passa a ser a sala de cinema e na tela surgem Leléu e Lisbela,
entra lettering:15 “Fim”; as pessoas vão saindo até sobrar um casal na sala. Os dois são os
últimos a sair, são eles, justamente, Leléu e Lisbela. Guel, por fim, acaba conseguindo a
identificação ainda maior de um público em particular, os casais apaixonados que frequentam
o cinema. E para fechar com ainda mais elementos metalinguísticos, João Falcão utiliza uma
música de sua autoria junto com André Moraes e gravada pela banda Cordel do Fogo
Encantado16.
O amor é filme.
Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama.
Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica.
Da felicidade, da dúvida, da dor de barriga.
É drama, aventura, mentira, comédia romântica.17
15
Texto que surge na tela.
Foi um grupo musical brasileiro fundado na cidade de Arcoverde, Pernambuco.
17
O amor é filme. Disponível em: <http://letras.mus.br/lirinha/238132/>
16
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Para Betton18, a música é uma atividade importantíssima no cinema, ela consegue unir
funções estéticas e psicológicas, aumentando a capacidade expressiva do filme, criando
coques afetivos que exaltam a afetividade.
Conclusão
Podemos, se não for ousadia da nossa parte, ultimar que a própria obra “Lisbela e o
Prisioneiro” - seja ela peça de teatro, especial para TV ou cinema -, é, por si só,
metalinguística. Falar em “Lisbela” é se reportar, automaticamente, a uma linguagem
discorrendo sobre outra linguagem. Osman, no livro Guerra Sem Testemunhas, em suas
indagações em relação à Indústria Cultural questionou: “poderá um romancista, um poeta,
levar-lhes contribuições, não porém a eles aderir, abandonando o livro.” (LINS, 1978, p. 5).
Talvez o nosso escritor tenha morrido sem a conclusão para a sua reflexão; mas, o fato é que,
sem abandonar o texto original, “Lisbela” invade a Indústria, aproveita todas as
oportunidades, e contribui para os processos da literatura, do teatro, do cinema e das pesquisas
acadêmicas, tornando este artigo, quem sabe, em um possível documento metalinguístico. E
como num palimpsesto, cada um vai escrevendo a sua “Lisbela e o Prisioneiro”.
Referências
ANDRADE, Ana Lúcia. O filme dentro do filme: a metalinguagem no cinema. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1999.
BRITO, J. B. D. Imagens Amadas: ensaios de Crítica e teoria do cinema. São Paulo: Ateliê
Editorial, 1995.
CHALHUB, Samira. A metalinguagem. São Paulo: Ática, 2005.
BERGSON, Henri. O riso. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BETTON, G. Estética do Cinema. Tradução: Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes,
1987.
FALCÃO, João e MORAES, André. O amor é
<http://letras.mus.br/lirinha/238132/> . Acesso em: 18 jun. 2011.
filme.
Disponível
em:
FIGUEIRÔA, Alexandre; FECHINE, Yvana. Guel Arraes: um inventor no audiovisual
brasileiro. Recife: CEPE, 2008.
18
BETTON, G. Estética do Cinema.
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58
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Tradução: André Cechinel, 2º ed.
Florianópolis: UFSC, 2013.
LINS, Osman. Guerra Sem Testemunha. São Paulo: Martins, 1969.
LINS, Osman. Lisbela e o Prisioneiro. São Paulo: Planeta, 2011.
LISBELA e o prisioneiro. Direção de Guel Arraes. Rio de Janeiro. Globo Filmes, 2003. DVD:
son., color.
SANT’ANNA, A. R. d. Paródia e Paráfrase & Cia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1988 (Série
Princípios; 1)
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. New York
WOOLF, Virgínia. The movies and reality. New Republic, 1926.
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MUXE MARAVILHA E MULHER DEPOIS: DA GRAPHIC
NOVEL À POESIA, IDENTIDADE DE GÊNERO EM
ANGÉLICA FREITAS
[Voltar para Sumário]
Ágatha Costa Salcedo (UFAL)
Por compreender que o ser humano (seja ele artista ou não) é pertencente à cultura de seu
tempo e espaço, acho por bem ressaltar que a poesia de Angélica Freitas é marcada pelo contexto em
que a poeta está inscrita, não no sentido determinista, mas na compreensão de que sua poesia traz em
si a marca da existência no conturbado mundo contemporâneo (séc. XXI). Sua produção literária é
composta por dois livros de poesia – Rilke shake e Um útero é do tamanho de um punho, publicados
em 2007 e 2012, respectivamente – e Guadalupe – graphic novel publicada em 2012, em que assina o
roteiro e o cartunista Odyr é responsável pelas ilustrações.
Os temas abordados por Angélica Freitas são atuais, e se hoje encontram espaço de
locução, devem em parte ao percurso traçado por tantas outras mulheres que inseriram suas
personagens femininas e a representação (na literatura) das experiências e angústias
vivenciadas por mulheres. Em “A ficção brasileira no horizonte pós-moderno: recusa e
incorporação”, Tânia Pellegrini (2008) destaca que por volta dos anos de 1980 houve uma
crescente presença de novas temáticas relacionadas às experiências vividas nas grandes
cidades – naquele momento o tom de resistência à ditadura militar (1964-1985) havia iniciado
seu processo de arrefecimento.
A resistência à ditadura cede espaço à resistência a ideia hierárquica e ancestral
balizada pelo discurso cristão, masculino e branco. Assim como surgiam novos movimentos
sociais, pautados em bandeiras específicas (como a questão racial, a condição feminina, a
homossexualidade e a religião), surgiam, na literatura, novas vozes que representavam
espaços de locução para as novas formas de organização e pensamento.
Angélica Freitas é considerada uma das vozes mais significativas do feminismo na
literatura brasileira contemporânea, conseguindo aliar crítica à qualidade estética, não
perdendo em forma ao abordar questões que dizem respeito às mulheres contemporâneas.
Com traços típicos das produções pós-modernas, apresenta aos leitores e leitoras obras
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60
marcadas por uma ironia inteligente, imersas em referências e numa apropriação do popular
que resultam na transmutação de seu contexto em parte integrante de sua produção literária.
Este trabalho propõe um caminho interpretativo para a graphic novel Guadalupe e
para o poema “mulher depois” (do livro Um útero é do tamanho de um punho), buscando
investigar a maneira como Angélica Freitas imprimiu em sua obra seu posicionamento acerca
da questão da identidade de gênero, seja em forma quanto em conteúdo.
O feminismo atual não traz um consenso no que diz respeito a questão das mulheres
transexuais1, bem como das travestis, alguns grupos que se reivindicam feministas afirmam
que tais pessoas devem ser atreladas às questões LGBT’s, não às questões ditas femininas,
enquanto outros grupos entendem que a identidade de gênero é essencial na compreensão do
ser mulher, e que não é o fato de ter nascido com uma genitália “masculina” que impedirá que
uma mulher trans2 se reconheça em sua identidade de gênero feminina e seja reconhecida
pelas demais mulheres na luta contra uma sociedade heteronormativa, sexista e excludente.
A medida em que constrói suas personagens femininas, Angélica Freitas desconstrói a
ideia determinista que associa identidade de gênero ao sexo de nascimento. Esta ruptura é
claramente percebida no poema “mulher depois”:
queridos pai e mãe
tô escrevendo da tailândia
é um país fascinante
tem até elefante
e umas praias bem bacanas
mas tô aqui por outras coisas
embora adore fazer turismo
pai, lembra quando você dizia
que eu parecia uma guria
e a mãe pedia: deixem disso?
pois agora eu virei mulher
me operei e virei mulher
não precisa me aceitar
não precisa nem me olhar
mas agora eu sou mulher
(FREITAS, 2012b, p.35)
1
A pessoa transexual é aquela que recorre à prática das transformações corporais para atender a seu desejo de
viver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico. A transexualidade é, nesse sentido,
uma condição sexual que, segundo a definição médica, é denominada é, nesse sentido, uma condição sexual que,
segundo definição médica, é denominada de transexualismo, transtorno de identidade sexual ou de identidade de
gênero (VENTURA, 2010,p.11).
2
A partir deste momento, utilizaremos o termo “mulher trans” para nos referirmos a mulheres transexuais.
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A autora se apropria de um tom epistolar, compondo seu poema a partir de
fragmentos/desmembramentos de uma possível correspondência (um e-mail, talvez) enviada
por uma mulher trans que acaba de fazer sua cirurgia de mudança de sexo em um dos países
que são referência em cirurgias do tipo, a Tailândia.
O título escolhido para o poema, “mulher depois”, indica o ponto de vista da autora,
que reconhece a construção social das mulheres – relembrando a famosa frase de Simone de
Beauvoir, que afirmou que “ninguém nasce mulher, mas torna-se mulher” – incluindo nesta
construção as mudanças físicas (conseguidas por via cirúrgica) pelas quais uma mulher trans
passa. A autora rompe com a ideia normativa vigente na sociedade brasileira:
A concepção normativa expressa é que o normal é a coerência entre sexo-gênero,
implícita a compreensão de sexo e gênero a partir de aspectos biológicos, e que
quaisquer outras combinações que não sejam mulher/feminino, homem/masculino
são patológicas. Esse sistema sexo/gênero, que se fundamenta em uma base
biológica e na diferença sexual, estabelece, ainda, combinações entre seus elementos
a partir da matriz binária heterossexual que determina a complementaridade
“natural” dos sexos opostos e se converte em um sistema regulador da sexualidade
dos sujeitos (VENTURA, 2010, p.13)
Angélica Freitas assegura espaço de locução para esse grupo específico de mulheres,
trazendo para o público o ponto de vista de pessoas que normalmente se encontram à margem
na sociedade.
Reconhecemos em seu poema um traço característico do Brasil, em que para que uma
mulher trans seja reconhecida legalmente enquanto mulher, precisa ser diagnosticada como
indivíduo portador de transtorno de identidade de gênero, ou seja, precisa ser catalogada
enquanto “doente”, catalogação que permitirá passar por processos cirúrgicos, encarados por
muitas dessas mulheres como uma necessidade para que se alcance o reconhecimento de sua
identidade de gênero. Temos registrado o peso na normatividade, que encontra respaldo
jurídico para impor padrões, que cataloga tudo que dela diverge como patológico, tornando-se
apta a intervir, inclusive, na esfera privada dos indivíduos.
“mulher depois” possui destinatários (pai e mãe, representação da família tradicional,
base da sociedade atual), localização geográfica de quem o “escreve”, assim como traz
memórias que não deixam dúvidas de que se trata de um indivíduo que viveu em conflito com
a família (e a sociedade como um todo) por não corresponder ao comportamento esperado ao
sexo de seu nascimento (masculino).
Composto por três estrofes/momentos, a primeira com a ausência do eu lírico
enquanto ser de ação, em que se enfatiza as belezas de um país distante, a segunda destinada a
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lembranças de opressão, em que a mulher trans surge como figura sem voz, oprimida pela
figura paterna (representação do jugo patriarcal e normativo), e o terceiro momento, em que
surge como única voz, afirmativa em sua identidade de gênero e condição feminina
construída, vinculada a mudança de sexo.
O verbo parecer (da segunda estrofe “parecia uma guria”), conjugado no pretérito
imperfeito, é confrontado pelo verbo virar, conjugado no pretérito perfeito (indicando uma
transformação finalizada, reforçada pelo verbo que o antecede, operar), seguido do afirmativo
do verbo ser no tempo presente (“mas agora eu sou mulher”).
Em Guadalupe (2012) temos uma personagem travesti, trata-se de Minerva, que no
auge de sua carreira com drag queen se viu obrigada a abandonar a vida noturna na casa de
shows Divina Perla para cuidar de sua sobrinha Guadalupe, criança de 10 anos abandonada
pelos pais.
A história se desenrola quase em sua totalidade durante o dia em que a
protagonista, que dá nome a graphic novel, completa trinta anos, mesmo dia em que sua avó
Elvira (mãe de Minerva) morre ao colidir sua moto com uma quitanda. Em um dos primeiros
momentos, temos Guadalupe imersa em suas memórias infantis, como vemos abaixo:
(FREITAS, 2012a)
Temos o único momento em que Minerva faz uso de roupas e acessórios ditos
masculinos, ao se preparar para pedir empréstimo no banco, com o intuito de garantir
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estabilidade financeira, agora que se percebe responsável por uma criança. Ironicamente, o
empréstimo é conseguido no momento em que o gerente do banco reconhece Minerva,
tecendo-lhe elogios e desejando-lhe boa sorte na fase que estava por começar, a abertura de
uma livraria (na qual tia e sobrinha trabalhariam juntas)
Angélica Freitas trabalha, sutilmente, mais uma vez a desconstrução de ideias
naturalizadas de funções socialmente atribuídas como sendo de responsabilidade do homem
ou da mulher. Ao ser perguntada se passaria a ser a mãe da garota, Minerva demonstra que a
forma como será chamada não restringirá ou modificará o cuidado a ser dispensado com a
sobrinha, nem moldará suas ações.
O nome escolhido para a personagem Minerva reforça a ideia desta enquanto
representação da desconstrução do binário masculino/feminino, tendo em vista que a deusa
romana que lhe inspirou o nome é conhecida tanto por estar relacionada a atividades tidas
como femininas como com atividades tidas como masculinas.
Guadalupe decide realizar o que havia prometido à avó, enterrá-la em sua terra natal, a
cidade de Oaxaca. Guadalupe e Minerva fecham as portas da Minerva livros e seguem de
furgão, da Cidade do México para Oaxaca, levando o corpo de Elvira. Inicia-se então uma
espécie de roadmovie trapalhão e nonsense em que as personagens passam por um processo
de autoconhecimento e tomam decisões sobre o caminho que darão as suas vidas após o
término daquela missão.
As lembranças de infância de Minerva ressurgem durante a viagem, em que alguns
segredos são revelados, como a sexualidade de sua mãe:
(FREITAS, 2012a)
Elvira era lésbica, havia sido obrigada pela família a se casar, tratada como uma
selvagem indomável surpreendentemente domada pelo jugo das relações matrimoniais. Na
sequência acima temos a revelação, a foto de Juanita, seu grande amor.
Minerva narra a vida em Oaxaca, e o machismo de seu pai que embora tivesse amantes
não admitiu a descoberta do caso de Elvira com Juanita, chegando a agredir a esposa
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fisicamente. A figura paterna já se mostrara em seu machismo no momento em que descobriu
que seu filho era gay. Em meio ao toda a confusão, Mãe e filhos fogem da cidade e vão para a
capital do México.
Assim como “mulher depois” faz referência à Tailândia, Guadalupe também não se
passa no Brasil, é ambientado em terras mexicanas e se apropria de algo típico da cultura local
para ampliar suas possibilidades de discussão de gênero. Traz para a trama a experiência das
muxes, indivíduos (do sexo masculino) pertencentes comunidades de origem indígena (do
México) que se vestem de mulheres e possuem liberdade para constituir família tanto com
mulheres quanto com homens, além de transitarem pelos universos masculino e feminino.
(FREITAS, 2012a)
No meio da viagem, a dupla (sobrinha e tia) é ameaçada por forças do mal,
representadas por um vilão inábil que tenta a todo custo roubar a alma de Elvira para leva-la a
seu mestre. Esse vilão trapalhão mais parece uma releitura da personagem Malvado, do
desenho animado Ursinhos carinhosos, que nunca lograva êxito em suas investidas e nem
mesmo convencia o espectador de sua suposta maldade. É durante um embate entre o suposto
ladrão de almas e a dupla Guadalupe e Minerva que a história das muxes serve de inspiração
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para Angélica Freitas, que concede mais algumas pitadas de desconstrução a sua personagem
travesti.
Ao ingerir cogumelos mágicos, Minerva se torna a Muxe maravilha, heroína
totalmente desvinculada dos padrões estéticos alardeados pelos quadrinhos de super-heróis,
inclusive da mulher-maravilha, em quem também é ironicamente inspirada. Ao contrário da
super-heroína de corpo exuberante, que mais parece ter sido desenhada para satisfazer fetiches
de leitores, a Muxe maravilha de Angélica Freitas é composta por traços masculinos somados
a5 trejeitos socialmente associados ao feminino, e que ao vencer o vilão trapalhão, permite
que este fuja após entrega-la um espelho mágico que permite a quem se olhe nele enxergar
seu próprio futuro.
O espelho, objeto comumente associado às questões estéticas ou como símbolo da
passagem do tempo (e sua irreversibilidade) nos corpos de homens e mulheres, associado
quase sempre ao tempo que passou, na graphic novel surge como uma possibilidade de
autoconhecimento e possibilidade de mudanças. A autora ao utilizar a simbologia do espelho,
subverte-a, permitindo a suas personagens enxergar seus futuros vislumbrados a partir da
ideia de permanência e estabilidade.
Ao se ver vinte anos depois (imagem que não é mostrada ao leitor), Minerva decide
mudar sua vida, o que se percebe com sua intenção de passar a loja de livros para Guadalupe,
a quem presenteia com o espelho destacando a possibilidade de alterar o futuro a partir de
ações. O objeto perde seu poder no momento em que Guadalupe resolve largar tudo e não
voltar para Cidade do México. Ao fim da trama, Guadalupe está sozinha, e algum lugar do
mundo, olhando o mar e jogando o espelho para longe.
O ato de Minerva e Guadalupe, que ao enxergarem seus possíveis futuros resolvem
colocar em práticas planos há muito guardados, e que após a constatação desta necessidade
acham por bem se livrar do espelho, reforçam a ideia de que Angélica Freitas, enquanto poeta,
reconhece a literatura como meio de afirmar tanto a construção do ser mulher como a
necessidade de se construir o próprio destino.
A liberdade feminina, e sua necessidade, é o tema central de Guadalupe, seja
abordando a questão das travestis, seja tratando das decisões impostas pela idade e que
requerem coragem, como Minerva com mais de 50 anos escolher recomeçar, ou Guadalupe,
que aos trinta nos se nega a casar e permanecer trabalhando com o que abomina e vivendo
numa cidade com a qual não se identifica, e como a de ambas em realizar o desejo de Elvira,
de voltar para a terra da qual foi expulsa, e para os braços da mulher que amou .
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A maneira como Angélica Freitas une seu posicionamento político e o faz parte
integrante de sua produção literária, reafirmam seu lugar enquanto voz feminina e feminista a
literatura brasileira. Com isso ganham os leitores e leitoras, que em meio a tantas tentativas
de invisibilização dos conflitos existentes na sociedade contemporânea podem ter diante de
seus olhos uma obra literária que traz consigo o potencial reflexivo característico de uma obra
de arte. Os formatos escolhidos pela autora (poesia e graphic novel) garantem, inclusive, que
a discussão sobre liberdade feminina e identidade de gênero chegue a espaços antes deixados
de lado por teóricas e artistas feministas.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Reato
Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2010.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.
EISNER, Will. Narrativas gráficas. Trad. Leandro Luigi Del Manto. São Paulo: Devir, 2005.
FREITAS, Angélica. Guadalupe. São Paulo: Companhia das letras, 2012ª.
________. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012b.
GENEST, Émile; FÈRON, José; DESMURGER, Marguerite. As mais belas lendas da
mitologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
MAGALHÃES, Belmira. História e representação literária: um caminho percorrido. In:
Revista Brasileira de Literatura Contemporânea. Rio de Janeiro: Abralic, 2002.
PELLEGRINI, Tânia. Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo:
Annablume; FAPESP, 2008.
TREVISAN, João. Devassos no paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2011.
VENTURA, Miriam. A transexualidade no tribunal: saúde e cidadania. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2010.
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DECORAR OU APRENDER NO PROCESSO ENSINOAPRENDIZAGEM
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Alaíde Marie Correia Barros (IFAL - Campus Maceió)
Nádia Mara da Silveira (IFAL - Campus Maceió)
Introdução
A memória é um recurso natural do ser humano, pois desde a infância informações
são armazenadas, constituindo uma base de dados que compreende as experiências vividas
pelo sujeito. Na verdade, tudo que nos é pouco significativo, que foi decorado, mas não
necessariamente aprendido, pode vir a ser esquecido ou deixado de lado, porém, aquilo que
nos é relevante, marcante, torna-se inesquecível, ou seja, é armazenado na nossa memória de
longa duração.
“A verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem
capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.” (VYGOTSKI, 1991, p. 58). Assim
sendo, é notável que através das experiências cotidianas o ser humano pode evocar suas
lembranças quando em contato com um signo. Dessa forma, pode se imaginar similares que
não estão presentes e apenas remetem a um visualmente percebido ou em contato através de
quaisquer sentidos. Isso demonstra a importância da memória em simples ações rotineiras.
Interligando-se a memória, a linguagem torna possível o processamento de
informações captadas pelo indivíduo através do local em que este se insere. Na sala de aula,
há o constante estímulo para que inúmeros dados sejam captados pelos alunos e,
posteriormente, sejam utilizados no decorrer das disciplinas e exames. No entanto, é preciso
que demasiados assuntos sejam aprendidos e para isso, alguns alunos aplicam, algumas vezes
com excesso, o uso da memorização, comumente conhecida pela gíria “decoreba”.
No entanto, algumas disciplinas denominadas decorativas são de grande relevância
para a compreensão de assuntos abordados diariamente, desta forma, o estudante pouco
aproveita o conteúdo que lhe é apresentado, para posteriormente aplicá-lo, por acreditar que o
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sistema de notas pode avaliar o seu grau de conhecimento, quando este, na verdade, muitas
vezes é superficial.
A reprodução de um antigo método de aprendizagem como a memorização de
conteúdo, que pouco dinamiza as formas de ensino, ocorre quando os professores não buscam
modernizar e realizar interações com os novos recursos tecnológicos que podem ser
desenvolvidos em sala de aula e melhorar o desempenho dos alunos. Porém, apesar da grande
importância da condução do professor, cabe ao aluno estar ciente de que no processo de
aprendizagem ele pode ser prejudicado, até mesmo futuramente, quando lhe for requerido
informações das quais ele não consolidou.
As escolas se apegam mais e mais obstinadamente à sua ideia equivocada de que a
educação e ensino são processos industriais, a serem projetadas e planejadas em
pequenos detalhes e então impostas em professores passivos e em seus ainda mais
passivos estudantes. (HOLT, 1982, p.2).1 Tradução minha.
Antigamente, a concepção que se tinha das escolas era muito rígida e, certamente,
em gerações anteriores, os alunos precisavam, de acordo com os professores, lembrar-se de
cada detalhe do conteúdo visto. Ainda que hoje essa rigidez tenha sido abolida das escolas
brasileiras, muito ainda se é cobrado dos alunos uma vez que a ideia de conhecimento, para
alguns professores, é a repetição de conteúdo para que se consiga um sucesso superficial.
Uma das principais mudanças que a escola sofreu refere-se à participação do aluno
em sala de aula uma vez que, na aprendizagem atual, o aluno é sujeito ativo, quando
anteriormente era passivo, pois apenas recebia as informações do professor, sem contestá-las
ou complementá-las.
Contudo, infelizmente, o processo de aprendizagem não está totalmente alterado para
a melhor compreensão e facilitação da aquisição de conhecimento, mantendo, ainda, a falsa
ideia de que para aprender faz-se necessário a prática de memorizar, uma ideia popular entre
diversos estudantes e também professores. E, para melhor compreensão e aprimoramento do
processo de ensino-aprendizagem, é preciso entender como a memorização pode influenciar
no aproveitamento escolar.
Metodologia
1
The schools cling more and more stubbornly to their mistaken idea that education and teaching are industrial
processes, to be designed and planned from above in the minutest detail and then imposed on passive teachers
and their even more passive students.
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Desse modo, pretende-se, através de um estudo exploratório, que possibilita “ao
investigador aumentar sua experiência em torno de determinado problema” (TRIVIÑOS,
1987, p. 109), investigar o fato de que apesar de hoje haver uma maior participação dos
estudantes na construção do conteúdo trabalhado em sala de aula, já que os professores estão
adquirindo novas metodologias, a fim de tornar seus alunos formadores de opiniões, capazes
de construir ou participar ativamente do processo de aprendizagem, ainda existem educadores
exigindo a decoração do conteúdo, como um recurso necessário para a promoção do aluno no
seu processo de ensino e aprendizagem. Visa-se, portanto, verificar se a decoração de
conteúdo gera aprendizagem nos alunos.
Assim sendo, a fim de realizarmos este estudo exploratório, torna-se necessário um
levantamento bibliográfico, que consiste, no “conjunto de materiais escritos/gravados,
mecânica ou eletronicamente, que contém informações já elaboradas e publicadas por outros
autores.” (SANTOS, 2002, p. 31).
Contudo, salienta-se, ainda, que o presente trabalho se apoia na área da Linguística
Aplicada, afinal, “Há uma preocupação cada vez maior em LA com a investigação de
problemas de uso da linguagem em contextos de ação ou em contextos institucionais, ou seja,
há um interesse pelo estudo das pessoas no mundo” (MOITA-LOPES, 1996, p. 123). Além do
que, a Linguística Aplicada permite a integração com outras áreas, como por exemplo, a
psicologia cognitiva, possibilitando um estudo sobre a decoração de conteúdo e sua relação
com a aprendizagem.
Discursão teórica
Nas escolas é comum a prática de decorar entre os alunos, devido a constante
cobrança com exames que, geralmente, ocorrem bimestralmente nos ensinos fundamental e
médio, e ainda, principalmente, para ingressar na faculdade, através do ENEM. É fato que
nenhum estudante conseguirá aplicar todos os assuntos vistos ao longo dos anos letivos, de
todas as disciplinas requeridas, por isso o recuso mais comum para obter um desempenho
satisfatório e uma nota dentro do padrão, é decorar fórmulas, assuntos e conceitos. Porém,
questiona-se, até que ponto a avaliação poderá de fato medir o conhecimento de cada aluno se
alguns arquivam temporariamente informações que acreditam ser dispensáveis depois de
aplicadas em provas.
Vários resquícios de antigas metodologias de ensino são perpetuados por alguns
professores que permitem que o estudo adquira um caráter decorativo e cansativo. Não se
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tem, contudo, nenhum modo de classificar quais matérias deve ser ou não decoradas, ou de
que forma esse método pode afetar o aprendizado do aluno e até quando pode favorecê-lo.
Salienta-se que, a memória humana, tem a capacidade de adquirir, armazenar e
recuperar as informações que são recebidas diariamente por meio dos sentidos, por isso é que
podemos lembrar-nos de cheiros, faces, sequências numéricas e tantos outros dados que se
pode obter tanto diariamente quanto ao longo da vida. A linguagem, segundo LINDZEY;
HALL; THOMPSON (1977, p. 212) está ligada a memória, pois esta possibilita a
aprendizagem e o armazenamento de sons, palavras frases e até mesmo da gramática.
A percepção, que é definida como “processo de recepção, seleção, aquisição,
transformação e organização das informações fornecidas através dos nossos sentidos.”
(BARBER; LEGGE, 1976, p.11) é a primeira etapa para a consolidação da memória, que
implica na seleção para o armazenamento de dados.
Os especialistas acreditam que o hipocampo, juntamente com outra parte do cérebro
chamada de córtex frontal, é responsável por analisar essas diversas entradas
sensoriais e decidir se vale a pena lembrar-se delas. Se valerem a pena, elas podem
se tornar parte de sua memória de longo prazo. (MOHS, 2010, p. 4).
Deste modo, nem sempre pode se dizer que o cérebro armazena ou acessa tudo o que
se é percebido, mas apenas o que ele seleciona para lembrar. Esse processo de seleção prévia
é o que não nos permite lembrar todas as cenas de uma peça teatral, pois embora recebamos
as informações através dos nossos sentidos, nem todas podem ser acessadas.
Umas das divisões mais conhecidas são às memórias: primária e secundária, que são
também denominadas de curto e longo prazo, respectivamente. Elas dão prosseguimento ao
armazenamento sensorial, que faz uso da percepção, podendo ser visual, olfativa, tátil,
gustativa ou auditiva. A memória primária possui a duração de alguns poucos segundos, faz
contraste com a secundária devido a sua quantidade limitada de armazenamento.
A transformação gradual da memória primária em secundária torna possível o acesso
à informação por um tempo maior. Utilizando como exemplo um estudante que precisa
armazenar rapidamente informações e faz diversas repetições para tentar consolidá-las: “O
esquecimento instala-se infalivelmente se não se estuda regularmente: a memória não é um
gravador.” (LIEURY, 2001, p.90). Desde modo, é natural a transformação da memória a curto
para a de longo prazo, contudo não deve ser praticada a memorização excessiva como via de
facilitação de estudo.
Como apresenta Almeida (2002), a memorização pode ser usada como estratégia de
estudo para que o estudante que possui dificuldade em lembrar-se de um assunto possa
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organizá-lo e, por meio de pistas, acessá-los quando precisar. Desta forma, a memorização é
vista como ajuda, não atrapalhará no decorrer do processo de ensino.
A consolidação da memória sucede a aquisição delas, quando isso ocorre a
informação é estabilizada. De acordo com a ocasião, alguns dados são mais suscetíveis a
serem armazenados. As informações que são captadas ao longo da vida ficam armazenadas na
memória, podem ser acessadas por estarem possivelmente disponíveis através do processo de
evocação, que “consiste em extrair da memória um item específico.” (LINDZEY, HALL;
THOMPSON, 1977, p.218). E, portanto, o esquecimento pode ocorrer devido uma falha nessa
busca de informação, algumas vezes por distração ou como Schacter (2002, p. 184) enfatiza:
Tem sido estabelecido que o esquecimento possa ocorrer rapidamente numa escala
de tempo ou segundos, ao em vez de minutos, horas ou dias. O esquecimento rápido
foi atribuído à operação de curto prazo ou do sistema de memória de trabalho.
O esquecimento acontece de forma natural e juntamente com outras características
torna o homem diferente da máquina, para Izquierdo (1989) nós esquecemos mais do que
recordamos e isso pode ser causado pelo tempo, podemos esquecer-nos de números
aprendidos no dia anterior e ainda lembrar-se de um fato marcante que ocorreu anos atrás.
A memorização é utilizada e estimulada desde a infância, já que esta é uma das
formas para “exercitar” a memória, sendo esta trabalhada tanto no ambiente escolar quanto no
familiar. Porém não se deve fazer o uso dela de forma exacerbada, pois poderá ser prejudicial
ao desempenho escolar do aluno e a confiança que ele estabelece no método decorativo, uma
vez que a memorização de conceitos não significa a aprendizagem deles.
Considerações Finais
No Brasil, a busca por uma educação de qualidade precisa ser determinada pela
relação família-escola, no entanto, segundo Ribeiro (1991), para os pais, a frequência que o
aluno vai a escola é mais importante do que a qualidade de ensino. Desse modo, para o aluno
estar presente, mesmo que não prestando atenção nas aulas, se torna, algumas vezes, uma
obrigação desinteressante, porém fundamental.
Pais e educadores priorizam a memorização como um recurso essencial para que a
aprendizagem ocorra, esquecendo-se de outros recursos predominantes que podem promover
a interação e possibilitar a aprendizagem, como a brincadeira, o jogo, o lúdico. Contudo, é
importante não condenar a prática da memorização, sendo ela possível de ser evocada e então
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aplicada além de conceitos, como por exemplo, na resolução de uma questão. Afinal, como
foi dito anteriormente, ela nós é necessária desde a infância, portanto utilizada durante toda a
vida. Porém, a memorização pode assumir um aspecto cansativo para quem a utiliza, quando
muita exigida, e acaba sendo um desestímulo no ensino fundamental, tornando desinteressante
o processo de aquisição de informações.
Quando se fala em escolas, no nosso país, aparentemente, as que são privadas se
tornaram mais eficazes para a formação dos alunos que, posteriormente, irão ingressar na
faculdade. E, apesar de que a memorização seja um problema tanto em escolas públicas e
privadas, estamos em um círculo de problema muito maior na educação brasileira, já que: “O
único (e último) momento em que se tenta fazer uma avaliação do domínio cognitivo dos
alunos é por ocasião do vestibular aí se constata o seu baixo desempenho” (Ribeiro, 1991, p.
19). A mudança de didática estrutural e a atualização de métodos de ensino são da
responsabilidade das escolas fundamentais para melhor aproveitamento e aplicação de
métodos que possam ser aproveitados pelos estudantes.
Uma proposta para facilitar a aquisição e compreensão seria promover a interação
por meios de jogos, com o fim de estimular o estudante a se interessar pelo assunto
ocasionalmente trabalhado com e pelo professor. Além do que, a interação entre os
participantes promoveria um ambiente mais agradável para estudo. Afinal, os dois processos,
a assimilação e, posteriormente, a acomodação, conforme Piaget (1975) pode ocorrer de
forma mais simples e natural por meio de uma dinâmica.
E ainda, a ausência da memorização não é uma opção, pois ainda que ela seja
utilizada de forma antiquada pelos estudantes e professores, ela, como dito anteriormente, é
necessária desde a infância e quando aplicada nos estudos como alternativa e não como
indispensável, se torna um dos métodos auxiliares dos alunos no decorrer do processo de
aprendizagem sem que atrapalhe o mesmo.
Hoje, com todo o acesso a tecnologia e a programas que facilitam o dia a dia em sala
de aula, há recursos disponíveis que facilitam a aprendizagem; é importante deixar de
restringir os objetivos do ensino. Assim, torna-se de maior relevância que o estudante consiga
compreender o que está sendo aplicado em sala de aula e assumir uma postura crítica.
Referências
ALMEIDA, Leandro S. Facilitar a aprendizagem: ajudar os alunos a aprender e a pensar.
Psicologia Escolar e Educacional, 2002 Vol.6, n.2 155-165. Disponível em:
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73
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-85572002000200006 Acesso
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HOLT, John. How children learn. Revised Edition. Cambridge: Da Capo Press, 2009.
IZQUIERDO, Ivan. Memórias. Estudos Avançados, 1989, Vol.3, n.6. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141989000200006 Acesso
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LIEURY, Alain. Memória e aproveitamento escolar. Edições Loyola, 2001.
LINDZEY, Gardner; HALL, Calvin S.;THOMPSON, Richard F. Psicologia. Editora
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MOITA LOPES, Luiz Paulo. Oficina de Linguística Aplicada. Campinas: Mercado das
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PIAGET, Jean. O Nascimento da inteligência na criança. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar;
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RIBEIRO, Sérgio Costa. A pedagogia da repetência. Estud. av.[online], vol.5, n.12. 1991.
SANTOS, Antônio Raimundo. Metodologia Científica: a construção do conhecimento. 5 ed.
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Houghton Mifflin Harcourt, 2002.
VYGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. 4º ed. São Paulo, Martins Fontes, 1984.
TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à Pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1988.
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OS GÊNEROS DIGITAIS NO ENSINO DE LÍNGUA DE
MATERNA1
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Albanyra dos Santos Souza (UFRN/CERES/DCSH)
1. Introdução
Os estudos linguísticos das últimas décadas têm colocado em pauta muitas questões
em torno do ensino de línguas, principalmente relacionadas ao trabalho com os gêneros do
discurso que materializam as práticas sociais situadas. Além disso, novas práticas discursivas
decorrentes das tecnologias da informação estão atraindo os alunos à nova realidade social e,
consequentemente, à produção e utilização de novos gêneros discursivos próprios de
ambientes midiáticos, aqui denominados de gêneros discursivos digitais.
Diante disso, o presente artigo baseia-se nas considerações de Bakhtin (2000) acerca
dos gêneros do discurso, nos postulados de Marcushi (2005) com relação aos gêneros
emergentes e, ainda, nas ideias de letramento (KLEIMAM, 1995; TFOUNI, 1988; SOARES,
2002), letramento digital (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), multiletramentos e multisemioses
(ROJO, 2013).
Objetiva-se com o estudo, desenvolver uma pesquisa quantitativa de coleta de dados,
ao mesmo tempo em que utilizamos a abordagem qualitativa para a interpretação dos dados,
configurando nossa pesquisa como quantitativo-qualitativa. Isso, para atender ao nosso
propósito de evidenciar quais os gêneros discursivos digitais que estão sendo usados pelos
alunos.
Diante disso, a nossa pesquisa torna-se relevante à medida que contribui tanto para as
teorias dos gêneros do discurso quanto para o campo da Linguística Aplicada.
A partir dessa abordagem, o artigo apresenta a seguinte divisão: i) na primeira seção,
apresentamos o nosso trabalho; ii) na segunda seção, apresentamos uma discussão teórica
Pesquisa realizada no curso de Pós-Graduação “Ensino e Aprendizagem de Línguas”, na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte – CERES – Currais Novos/RN.
1
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sobre a significação dos gêneros do discurso e sua constituição, seguida de conceituações
sobre os gêneros discursivos digitais; iii) na terceira seção, expomos os procedimentos
metodológicos adotados para o desenvolvimento do estudo; iv) na quarta seção, são
apresentadas as análises dos dados coletados e os resultados da pesquisa; v) por fim, na quinta
seção, tecemos as conclusões alcançadas com o estudo.
2. Os gêneros do discurso e sua constituição
Bakhtin (2000) afirma que a utilização que fazemos da língua dá-se por meio de
enunciados orais e escritos que emanam de uma ou de outra esfera da atividade humana. Os
enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada esfera através da sua
construção temática, estilística e composicional. Cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, assim chamados de gêneros do discurso.
O surgimento dos gêneros do discurso se dá mediante a necessidade de uso da língua
em uma dada esfera social. Esta, por excelência, comporta um conjunto específico de gêneros
que vão modificando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se transforma e fica
mais complexa.
Com relação à caracterização dos gêneros, Bakhtin (2000, p. 281) faz uma distinção
entre gêneros primários e secundários, afirmando,
Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre os
gêneros do discurso primário (simples) e o gênero do discurso secundário
(complexo). O gênero secundário do discurso – o romance, o teatro, o discurso
científico, o discurso ideológico, etc. – aparecem em circunstância de uma
comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente
escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante o seu processo de formação, esses
gêneros secundários absorvem e transmutam os gêneros primários (simples) de todas
as espécies, que se constituíram em circunstância de uma comunicação verbal
espontânea. Os gêneros primários, ao se tornarem componentes dos gêneros
secundários, transformam-se dentro destes e adquirem uma característica particular:
perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos
enunciados alheios [...] (Grifos do autor).
Essa distinção entre os gêneros primários e secundários, para o autor, é considerada de
grande importância, uma vez que a natureza do enunciado deve ser estudada por meio de uma
análise de ambos os gêneros, caso contrário, corre-se o risco de não entender os aspectos
essenciais do enunciado, ou seja, a inter-relação existente entre os dois gêneros, juntamente ao
seu processo histórico de formação.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
76
2.1 Os gêneros do discurso digitais na contemporaneidade
A plasticidade e dinamicidade da linguagem torna-se a maior responsável pelas
mudanças sociais, políticas e culturais geradas pela capacidade de criatividade do ser humano.
Essas transformações são decorrentes da necessidade de comunicação e do uso
particularmente acelerado de equipamentos tecnológicos e de novas Tecnologias de
Informação e Comunicação (TICs). Com essas mudanças, o uso da língua nas diversas esferas
sociais passa por um processo de adaptação e construção de novos gêneros para adequar-se a
esse novo contexto de uso da língua.
Nos ambientes virtuais, os gêneros surgem em função de um novo tipo de
comunicação “conhecida como Comunicação Mediada por computador (CMC) ou
Comunicação Eletrônica e desenvolve uma espécie de ‘discurso eletrônico’” (MARCUSCHI,
2005, p. 15). Esse fator é preexistente do uso acelerado das tecnologias computacionais nas
últimas décadas do século XX, uma vez que favoreceu, enormemente, ao uso da escrita
eletrônica, e consequentemente, o que o autor chama de “cultura letrada” (Ibid., p. 14),
“cultura eletrônica” (Ibid., p. 15) e “letramento digital” (Ibid., p. 15). O surgimento desses
novos gêneros possibilita a categorização do que chamamos de gêneros digitais, entendidos
como o uso de discursos eletrônicos que circulam nos ambientes virtuais, mediados pelo uso
das tecnologias digitais e ainda um fenômeno sócio-histórico situado de uso da linguagem.
Marcuschi (2005, p. 33) ao tratar sobre os gêneros em ambientes virtuais afirma que
eles se caracterizam pela sua interatividade de múltiplas semioses, pois
tendo em vista a possibilidade cada vez mais de inserção de elementos visuais no
texto (imagens, fotos) e sons (músicas e vozes) pode-se chegar a uma interação de
imagem, voz, música, e linguagem escrita numa integração de recursos
semiológicos.
Assim, do ponto de vista formal e estrutural, esses gêneros digitais podem ser
considerados mais envolventes para serem utilizados em sala de aula como recurso de ensino
de Língua Portuguesa. Será mais atrativo para o aluno, por exemplo, estudar um gênero que
trate sobre literatura com os recursos semióticos, do que ler esse mesmo gênero em um livro
didático, pois, de certa forma, esse novo gênero estudado no espaço digital, acaba sendo
distinto do gênero de texto comum estudado na escola, até mesmo por sua característica de
contemporaneidade.
Marcuschi (2005), em seu trabalho, apresenta uma lista dos gêneros digitais mais
conhecidos e estudados até então, assim denominados: E-mail; Chat em aberto (bate papo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
77
virtual em aberto – room chat); Chat reservado (bate papo virtual reservado); Chat agendado
(bate papo agendado ICQ); Chat privado (bate papo virtual em salas privadas); Entrevista com
convidado; E-mail educacional (aula virtual); Aula chat (chat educacional); Vídeoconferência
interativa; Lista de discussão (mailing list); Endereço eletrônico; Weblog (blog; diários
virtuais).
Esses são apenas alguns gêneros digitais tratados por Marcuschi (2005, p. 29), como
“emergentes”. Essa categorização se dá, segundo o autor, por esses gêneros terem sido
emergidos nas três últimas décadas na mídia eletrônica, através da Comunicação Mediada
pelo Computador (CMC).
Nesse estudo, buscamos identificar os usos sociais não somente dos gêneros
apresentados pelo autor, mas, também de novos gêneros digitais que se fazem presentes
atualmente tanto no contexto escolar como fora dele e que são utilizados pelos alunos e pelo
professor.
3. Aspectos metodológicos
A metodologia usada para a identificação dos gêneros discursivos digitais conhecidos
e usados pelos alunos em sala de aula toma como base o método sociológico do Círculo de
Bakhtin, a considerar aspectos comunicativos sociais aliados aos gêneros do discurso na
interação verbal. Além disso, a análise considera também os gêneros emergentes nos
ambientes virtuais, assim posto por Marcuschi (2005), bem como as teorizações acerca dos
multiletramentos e as multissemioses apresentadas por Rojo (2013).
Assim sendo, o estudo baseia-se em uma análise de dados por meio de uma pesquisa
quantitativo-qualitativa, partindo de questionários direcionados aos alunos do 3º ano do
Ensino Médio de uma escola pública da cidade de Parelhas/RN. O questionário aborda
questões relativas aos usos dos gêneros digitais dentro da escola, a fim de identificar quais são
os gêneros que circulam nos ambientes virtuais mais conhecidos e usados pelos alunos dentro
do espaço educacional e a sua importância para o ensino e aprendizagem.
Respondidos os questionários, os resultados foram representados em forma de gráficos
e tabelas, interpretados tal qual está dado nos questionários e analisados com base nos
pressupostos teórico-metodológicos aqui apresentados.
4 Resultados da pesquisa
Nas fronteiras da linguagem ǀ
78
O uso das novas tecnologias tem permitido novas práticas de leitura e escrita, antes
feitas por meio do papel. Isso porque, os ambientes virtuais possibilitam não apenas a
interação com textos escritos, mas também a habilidade de construir sentido em textos
multimodais e multissemióticos (ROJO, 2013). Essa realidade se faz presente também no
contexto educacional, marcado principalmente pela necessidade de se adequar às novas
formas de interação, como percebemos nos resultados aqui apresentados.
De acordo com os dados obtidos na pesquisa realizada com a turma, os gêneros
digitais estão se tornando cada vez mais importantes para a aprendizagem escolar, e o seu uso
passa a ser uma alternativa de construção de conhecimento.
Inicialmente os alunos foram questionados quanto ao uso do computador, se tem
computador em casa ou o usa cotidianamente. 90% confirmaram o uso, tendo apenas 10%
uma posição diferente, conforme pode ser visto no gráfico 1:
Gráfico 1 – Acesso ao computador ou à internet cotidianamente.
Fonte: Autoria nossa.
Com esses dados, observamos que não estão todos os alunos imersos no mundo
digital, e consequentemente essa minoria não tem acesso aos gêneros digitais da mesma forma
que os demais alunos. Por outro lado, se 90% dos alunos estão envolvidos com o uso do
computador, essa maioria usa com frequência os gêneros digitais. Mas, será que essa maioria
é conhecedora do uso que faz dos gêneros digitais?
Ao perguntamos se eles já ouviram falar em gêneros digitais, obtivemos os seguintes
dados:
Gráfico 2: Conhecimento quanto aos gêneros digitais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
79
Fonte: Autoria nossa.
Nessa questão, enquanto 70% confirmam conhecer os gêneros digitais, 30% dos
alunos afirmam não ter ouvido falar em gêneros digitais, embora, conforme visto no gráfico 1,
90% dizem usar ou ter computador em casa. Isso indica que, apesar usarem os gêneros
digitais no seu cotidiano, essa minoria de alunos não os reconhecem socialmente como
gêneros ou não entendem que já os usam.
Esse resultado, particularmente, aponta para a necessidade de incluir nas práticas
metodológicas escolares o trabalho com os gêneros digitais, uma vez que eles se multiplicam
a cada situação de interação, e são usados com mais frequência em função das tecnologias.
Ora, se nosso aluno, hoje, está conectado aos avanços tecnológicos e multimidiáticos, nada
melhor que aproveitar essa relação de proximidade para torná-lo conhecedor dos tipos de
enunciados que ele mesmo produz ou tem contanto constantemente.
Em outro momento, quando questionados sobre onde usavam os gêneros digitais – na
escola, no trabalho ou nos encontros com os amigos – os alunos afirmaram que:
Gráfico 3: Onde são usados os gêneros digitais?
Fonte: Autoria nossa.
Os lugares em que os gêneros digitais são mais usados pelos alunos é nos encontros
com os amigos, conforme afirmam 95% deles, sendo no trabalho quase não usados, apenas
por 10%, e na escola usados pela maioria, 70%.
Nesses ambientes, os gêneros livremente citados pelos alunos foram:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
80
Tabela 1: Gêneros usados pelos alunos em ambientes específicos.
Na escola
Vídeos
Fotos
Mensagens
Pesquisa
Textos
E-mail
Slides
Música
Torpedos
Filme
No trabalho
3
3
3
2
2
1
1
1
1
1
Fotos
Cadastro
Nos encontros com os amigos
1
1
Música
Mensagem
Fotos
Vídeos
Textos
Conversa
Torpedo
Imagem
Chat
Notícias
Reportagem
Áudio
8
7
7
5
2
2
1
1
1
1
1
1
Fonte: Autoria nossa.
Os gêneros digitais mencionados pelos alunos enquanto os mais usados no espaço
escolar foram vídeos, fotos e mensagens, cada um com 3 votos. Em seguida, temos os gêneros
pesquisa e texto, com 2 votos, e com apenas 1 voto os gêneros e-mail, slides, músicas,
torpedo e filme. Já no ambiente de trabalho, os alunos citaram apenas o gênero foto e
cadastro, tendo 1 voto para cada deles. Diferentemente de ambientes em que há encontros
com os amigos, pois nesses espaços os alunos citaram a música como o gênero mais usado, 8
votos, mensagens e fotos, 7 votos, vídeos, 5 votos, texto e conversa, 2 votos, e 1 voto para os
gêneros torpedo, imagem, chat, notícia, reportagem e áudio.
Essa escolha nos revela que, mesmo estando em um ambiente educacional, os alunos
mantêm comunicação com os amigos, fato facilitado pelo uso do celular na escola. Esses
gêneros também foram mencionados enquanto os mais usados nos encontros com os amigos,
como podemos perceber na tabela 1, sendo a música o gênero digital mais usado nesse
ambiente. A pouca ocorrência de gêneros digitais em ambientes, como no trabalho, dá-se pois
estamos lidando com alunos que ainda não alcançaram a maioridade, e consequentemente,
como está subentendido, a maioria deles não trabalha.
Partindo para ambientes mais específicos, os alunos foram solicitados a responder com
relação aos gêneros digitais em sala de aula, se o professor faz uso desses gêneros. Vejamos
os dados obtidos com base nos questionários, conforme o gráfico 4:
Gráfico 4: Os gêneros digitais em sala de aula.
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81
Fonte: Autoria nossa.
De acordo com os dados do gráfico 4, apenas uma pequena parcela de alunos afirma
não usar os gêneros digitais em sala de aula, 5% deles, enquanto 95% confirmam o uso, e
apresentam as situações metodológicas vivenciadas na aula com esses gêneros. Vejamos na
tabela 2 a seguir:
Tabela 2: Situações de uso dos gêneros em sala de aula.
Situações em que os gêneros são usados em sala de aula
Assistir filmes
Ouvir músicas
Estudar textos
Assistir vídeos
Explicar o conteúdo
Preencher a lista de presença diária
Discutir notícias
10
2
2
2
2
2
1
Fonte: Autoria nossa.
Essas informações nos mostram que são vários os momentos em que os gêneros
digitais são usados pelo professor em sala de aula e que, mesmo com pouca expressividade,
eles estão sendo incluídos no ensino de língua materna, de modo especial ao gênero filme, este
enquanto o mais recorrente nas aulas de língua portuguesa, tendo ele 10 votos. Nas demais
situações mencionadas, os gêneros digitais são usados para ouvir músicas, estudar texto,
assistir vídeos, explicar o conteúdo e preencher a lista de presença, tendo estes 2 votos, e
com apenas 1 voto, o momento de discussão de notícias.
Os alunos foram questionados ainda quanto ao uso de alguns gêneros, préestabelecidos, próprios da modalidade virtual, usados na sala de aula e fora dela.Vejamos os
gráficos a seguir:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
82
Gráfico 5: Gêneros digitas usados na escola
Mensagens Fórun
VídeoIntantânea 5% conferência Blogs
26%
5%
2%
Torpedo
8%
Sala de bate
papo
8%
E-mail
20%
Vídeos
26%
Fonte: Autoria nossa.
Nesse gráfico percebemos que os gêneros digitais mais usados na escola, enquanto
gêneros emergentes da cultura digital, conforme Marcuschi (2005), são os blogs e os vídeos,
sendo ambos 26% mais usados. Seguindo a ordem decrescente de uso, o e-mail foi o terceiro
gênero considerado mais usado, 20%, seguido do gênero sala de bate papo, com 8%, fotos e
mensagens, 5%, e com apenas 2% o gênero vídeoconferência.
Foi importante para a pesquisa, ainda, observar quais os gêneros próprios da
modalidade escrita que estão sendo usados na modalidade virtual, tanto na escola quanto fora
dela.
Gráfico 6: Gêneros usados na escola na modalidade virtual
Fonte: Autoria nossa.
A letra de música foi considerado o gênero da modalidade escrita mais usado na
escola na modalidade virtual, com 13%, seguido dos gêneros artigo de opinião, resenha de
livro, filme e fotos/imagens, todos com 12%. Além disso, em ordem decrescente de uso, temos
o gêneros gráfico, com 9%, a notícia, com 8%, a crônica, 7%, histórias em quadrinhos, carta
e propaganda, com 6%, a entrevista, com 5%, e a reportagem, com 4%.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
83
Quando perguntados sobre a preferência de gênero, digital ou impresso, para ler uma
notícia de jornal, os dados obtidos foram:
Gráfico 7: Preferência entre o gênero digital ou impresso.
Fonte: Autoria nossa.
Enquanto 10% dos alunos afirmam preferir ler uma notícia em um jornal impresso,
75% deles afirmam ser a notícia de jornal digital a favorita, e ainda justificam essa preferência
com enunciados do tipo: “É mais rápido e prático”; “Pela facilidade”; “Por facilitar a
interpretação”; É mais fácil e compacto, posso ler em qualquer lugar”; “Tenho mais
acesso”. Essas respostas são indícios do quanto os gêneros digitais são importantes como
recursos metodológicos para a prática de ensino do professor, bem como refletem as novas
formas de ler que são subjacentes às práticas de escrita da contemporaneidade.
Além disso, nas aulas de Língua Portuguesa, especificamente, para que a
aprendizagem aconteça, é imprescindível que as práticas de ensino estejam adequadas à
realidade dos alunos, às suas vivências e aos seus costumes. Esse tipo de prática visa
potencializar habilidades e competências do aluno para atuação social de forma mais efetiva,
garantindo-lhe sucesso nas interações mediadas pelos gêneros discursivos digitais com os
quais ele se depara no ambiente digital. Logo, o aluno que tem contato com esses gêneros na
escola estará mais apto, ou letrado digitalmente (SHEPHERD e SALIÉS, 2013), para agir
socialmente por meio deles.
Quando indagados sobre a importância dos gêneros digitais para o aprendizado e,
ainda, a contribuição desses gêneros em comparação aos gêneros impressos, os alunos
responderam que aqueles: “Facilitam o estudo de qualquer assunto”; “Torna a aula mais
interessante”; “São melhores, práticos e fáceis de usar”; “Ajuda no conhecimento de novos
gêneros usados no dia a dia”; “Proporciona sair da rotina”; “Ajuda a completar o que às
vezes faltam nos livros, jornais ou revistas”. Vejamos os dados quantificados no gráfico 12:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
84
Gráfico 12: Os gêneros digitais contribuem para o aprendizado?
Fonte: Autoria nossa.
85% dos alunos afirmaram que os gêneros digitais contribuem para no seu
aprendizado, ao passo 10% deles alegam que essa contribuição se dá em partes, resposta essa,
a qual subentende-se, que se não usados em um contexto de ensino específico os objetivos de
aprendizagem não serão alcançados.
Percebemos então, a partir das respostas que há uma multiplicidade de gêneros digitais
sendo usados e construídos em favor dos avanços tecnológicos. A inclusão desses gêneros
nas aulas de Língua Portuguesa se faz cada vez mais necessária e urgente de forma que os
alunos assumam uma posição de, além de usuários, conhecedores e reconhecedores dos
gêneros discursivos digitais existentes, bem como do seu uso e do próprio processo de
construção do gênero, tanto no que diz respeito a sua estrutura composicional, tema e estilo.
Os resultados nos revelam que alguns gêneros digitais estão sendo mais usados hoje na escola,
como é o caso do blog (gráfico 5), além de fotos, vídeos e mensagens (tabela 1).
5. Conclusão
Os resultados apresentados e discutidos nesse estudo serviram para compreendermos
que, hoje, inicialmente, a questão não é trabalhar as práticas de letramento (KLEIMAM,
1995; TFOUNI, 1988; SOARES, 2002) de um só gênero discursivo digital como se ele ainda
não fosse usado pela comunidade discente. Pelo contrário, é relevante estar atento a grande
diversidade de gêneros que surge em função das novas tecnologias e usá-los em sua
variedade, pois, como pudemos perceber, os alunos não usam apenas um gênero digital na
escola ou em outros ambientes sociais, eles estão usando vários deles ao mesmo tempo. Por
isso, aqui, não cabe destacarmos o mais usado pelos alunos, apenas podemos dizer que hoje,
nos contextos educacionais, especificamente na sala de aula, são usados frequentemente
gêneros como o blogs, a letra de música, fotos, vídeos e mensagens, a sala de bate papo,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
85
fotos/imagens, além do artigo de opinião e dos filmes, com mais frequência, porém sem
exclusividade.
Isso mostra que os alunos estão se tornando cada vez mais usuários de uma grande
quantidade de gêneros digitais, embora não tenham ainda o conhecimento pleno de questões
como nomenclatura, composicionalidade, assim como discutidas nas seções anteriores, claro,
salvo algumas exceções. Esse dado se justifica pela grande variedade de gêneros usados ao
mesmo tempo em uma só mídia, o computador.
Referências
BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
_______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (1934-1935). Trad.
Bernadini, et. al. 4. ed. São Paulo: Unesp, 1998.
MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. ______;
XAVIER, A. C. (orgs.). Hipertexto e gêneros digitais. Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2005,
p. 13-67.
LIMA. M. B.; GRANDE, P. B. Diferentes formas de ser mulher na hipermídia. In: ROJO, R.
(org.). Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 3758.
KLEIMAN, A. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: _______
(Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da
escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 15-61.
ROJO, R. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: ______. (org.).
Escol@ concectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 13- 36.
SHEPHERD, T.; SALIES, T. Linguística da Internet. São Paulo: Contexto, 2013.
SOARES, M. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educ. Soc.,
Campinas, Vol. 23, n. 81, 2002, p. 143-160. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935>. Acesso em 18 de maio de 2014.
TFOUNI, L.V. Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso. Campinas: Pontes, 1988.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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ORALIDADE E ARGUMENTAÇÃO EM FOCO: UMA
EXPERIÊNCIA DIDÁTICA COM O GÊNERO TEXTUAL JÚRI
SIMULADO
[Voltar para Sumário]
Alberto Felix da Hora (UPE)1
Introdução
É evidente a necessidade e a relevância do trabalho com gêneros textuais orais nas
aulas de língua portuguesa na educação básica.
Não há o menor sentido linguístico em se atribuir maior importância ao ensino da
modalidade escrita ou da oral, pois nos comunicamos em situações de uso real, social e
cultural fazendo uso de ambas as modalidades da língua, numa concepção de língua como
prática social e histórica e um meio pelo qual os usuários da língua interagem uns com os
outros. Essa interação se dá por meio de textos que se manifestam linguisticamente na forma
de gêneros textuais diversos orais e escritos.
Quanto à necessidade de exercitarmos a nossa capacidade argumentativa por meio da
fala e da escrita, bem como da constância desse uso, Marcuschi (2005, p. 31) corrobora
“Sabemos que a argumentatividade é um aspecto essencial no uso da língua. Isso pode ser
treinado e analisado em suas formas peculiares de ocorrer na fala e na escrita”.
A oralidade deve ser abordada no ensino da língua portuguesa, constituindo, portanto,
um eixo que possibilite o trabalho com a linguagem, desenvolvendo nos alunos um domínio
linguístico capaz de exercer seu papel sociocomunicativo, via modalidade oral, nas diversas
situações de uso da linguagem dentro e fora do espaço escolar.
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma experiência didática com o
gênero textual júri simulado, para trabalhar os domínios da oralidade e da argumentação oral
numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental. Para tanto, nos embasamos no Interacionismo
Mestrando do Profletras da UPE – Garanhuns. Especialista no Ensino de Língua Portuguesa. É docente de
Português Jurídico na Faculdade ASCES – Caruaru. É professor de Língua Portuguesa na Secretaria de
Educação Estadual de Pernambuco. Email: [email protected]
1
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
87
Sociodiscursivo (ISD) defendido por Bronckart (1999) por conceber a linguagem como
fenômeno indissociável da interação social, nas concepções de ensino de gêneros textuais
abordadas por Marcuschi (2005, 2008) e nos estudos de Koch (2011) e Pinto (2010) sobre
argumentação. O procedimento metodológico adotado foi uma sequência didática para o
ensino do gênero textual júri simulado conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004).
As atividades pedagógicas, vivenciadas por meio da sequência didática com o júri
simulado, proporcionaram avanços no domínio linguístico discursivo dos discentes quanto ao
uso de argumentos por meio da oralidade.
O presente trabalho pretende detalhar como as atividades foram desenvolvidas,
pontuando, inclusive, as contribuições efetivadas na turma, como também as dificuldades
apresentadas.
Dessa forma, acreditamos que a experiência didática com o gênero júri simulado nas
aulas de Língua Portuguesa podem trazer diversas contribuições para o desenvolvimento oral
argumentativo dos discentes.
1. O ensino dos gêneros textuais
Tradicionalmente a palavra gêneros foi sempre utilizada pela retórica e pela teoria
literária a fim de caracterizar os gêneros clássicos, tais como: o lírico, o épico e o dramático,
ou até mesmo os gêneros modernos, como o romance e a novela, entre outros.
Essa noção ganhou importante extensão a partir das ideias defendidas por Bakhtin em
meados do século XX, que passa a incorporar a palavra gênero na referência aos textos usados
nas situações cotidianas de interação por meio da comunicação oral e verbal.
Schneuwly (2004, p. 25) resume desta forma o posicionamento Bakhtiniano:

cada esfera de troca social elabora tipos relativamente estáveis de
enunciados: os gêneros;

três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção
composicional;

a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática,
o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor.
A partir da visão estabelecida por Bakhtin, percebe-se que os textos produzidos, orais ou
escritos, oferecem um conjunto de características relativamente estáveis, configurando-se em
diversos gêneros textuais, que podem ser caracterizados por três aspectos ou elementos
básicos: o tema, a estrutura e os usos específicos da língua.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
88
É perceptível a magnitude da proposta de adoção dos gêneros textuais como objeto de estudo
e ensino nas escolas, sobretudo, por nos possibilitar o uso das diversas formas de expressão
oral/escrita que circulam socialmente.
É perfeitamente possível elaborarmos construções informais e formais, textos coesos e
coerentes tanto na modalidade escrita quanto na oral.
Afirmar que a escrita é formal, complexa, enquanto a fala é informal e simples não é
suficiente, nem tampouco coerente linguisticamente, pois, como afirma (Koch 2012, p. 78),
“existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da
escrita, dependendo da situação comunicativa”.
Ora, se analisarmos do ponto de vista dos usos sociais da língua, fica perceptível que
língua falada e língua escrita não são responsáveis por domínios estanques ou dicotômicos.
Segundo Marcuschi (2008, p. 37), “Há práticas sociais mediadas preferencialmente pela
escrita e outras pela tradição oral (...) Oralidade e escrita são duas práticas sociais e não duas
propriedades de sociedades diversas”.
Cabe, portanto, aos docentes, nas atividades que visam desenvolver a capacidade de
uso linguístico dos seus alunos, oferecer ambas as modalidades reconhecendo a função social
e os usos dos gêneros textuais orais e escritos.
2. Oralidade em foco
O oral se ensina, mas não conseguiremos formar alunos competentes linguisticamente
em relação ao uso oral, enquanto as aulas apresentarem propostas genéricas de discussões nas
salas de aula. Quanto a esse aspecto Barbosa (2000, p. 154) aduz que:
Essas práticas acabam sendo pouco producentes (...) o que deveria estar em questão
são as diferentes formas de dizer, determinadas por diferentes situações
comunicativas (...) em vez de aulas que tematizem o falar ou a oralidade de uma
forma geral, pode-se e deve-se tomar os gêneros orais públicos como objetos de
ensino.
Para encontrar caminhos para ensiná-lo, vejamos o que os PCNs apontam em relação
ao processo de escuta de textos orais, espera-se que o aluno no Ensino Fundamental:
 Amplie, progressivamente, o conjunto de conhecimentos discursivos, semânticos e
gramaticais envolvidos na construção dos sentidos do texto;
 Reconheça a contribuição complementar dos elementos não verbais (gestos,
expressões faciais, postura corporal);
 Utilize a linguagem escrita, quando for necessário, como apoio para registro,
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89
documentação e análise;
 Amplie a capacidade de reconhecer as intenções do enunciador, sendo capaz de aderir
a ou recusar as posições ideológicas sustentadas em seu discurso. (PCNs, 1998, p.
49)
Dolz & Schneuwly (2004) destacam a relevância de também se considerar no trabalho
com gêneros orais - além dos meios linguísticos e prosódicos - os meios não-linguísticos da
comunicação oral (meios paralinguísticos, cinésicos, posição dos locutores, aspecto exterior e
disposição dos lugares).
A adoção de uma sequência didática com o gênero textual júri simulado oportuniza
aos docentes de Língua Portuguesa trabalharem tanto os recursos linguísticos da
argumentação quanto os meios não-linguísticos da comunicação oral. Os alunos vivenciando
as funções de juízes, julgadores, defensores e promotores, notadamente, utilizarão recursos
paralinguísticos (qualidade da voz, elocução), cinésicos (movimentos, gestos, olhares e
atitudes corporais diversas), posição dos locutores (ocupação de local adequado e espaço
pessoal), aspecto exterior (vestimentas adequadas) e disposição dos lugares (sala adequada,
iluminação, disposição das cadeiras e mesas).
A proposta de ensino das práticas de oralidade deve estimular os alunos a desenvolver
as capacidades de uso da língua em diferentes realidades e finalidades, levando-os a uma
reflexão mais sistemática sobre as práticas de linguagem e o planejamento e avaliação do
discurso oral.
3. Retórica e argumentação
O homem, como ser social, sempre esteve em contato com a natureza e também em
pleno relacionamento com os seus pares. Esse relacionamento social e linguístico entre os
homens fomenta a necessidade comunicativa e, por conseguinte, a comunicação com o intuito
de convencer o outro, a necessidade de argumentar para fazer valer o seu ponto de vista
acerca de um tema.
Na sociedade atual, cada vez mais, o indivíduo precisa se posicionar sobre temas
polêmicos, opinar, avaliar, fazer escolhas, julgar. E para isso, por meio do discurso, sempre
dotado de uma carga de intencionalidade, tenta fazer valer suas opiniões, com o propósito de
conduzir o interlocutor a compartilhar das suas convicções. Koch (2011, p. 17) afirma que “o
ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia”.
Os primeiros estudos acerca da retórica surgem com Aristóteles (384-322a.C.) -
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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pensador e filósofo grego – na sua obra intitulada Retórica encontramos subsídios para
explicitar as teorias mais recentes sobre argumentação.
Ao discutir a retórica como forma de persuasão, Aristóteles buscou aplicar as técnicas
da retórica para a construção da noção de justiça, levando em conta que a noção de justiça não
existe, é construída.
Vejamos como Pinto (2010, p. 36) traduz a definição de retórica segundo Aristóteles,
“a retórica é um instrumento e pode ser usada a serviço tanto do bem quanto do mal,
importando assim a verossimilhança dos fatos”. O que se está querendo aqui afirmar é que a
Retórica argumenta para persuadir as pessoas a agirem no mundo, mas não é natural, é coisa
inventada, pois não existe na natureza.
A partir dos estudos retóricos de Aristóteles, há um alargamento no campo de atuação
da retórica, para além do espaço jurídico e filosófico, se fazendo presente em todas as
situações ou espaços em que se faz necessário convencer alguém.
A grande contribuição de Aristóteles foi demonstrar que o raciocínio jurídico não se dá
pela demonstração matemática e exata da noção de justiça. O conceito de justiça é, em certa
medida, uma invenção retórica que, partindo daquilo que a comunidade tem como valor justo,
pela argumentação é efetivada, o que pluraliza a noção de verdade e que permite nos valer do
dizer popular de que “cada caso é um caso”.
Em 1958 Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca lançam um livro que veio
representar um marco sobre o estudo da retórica “Tratado da argumentação: a nova retórica”.
A obra rompe com o conceito positivista e racional preconizado por Descartes, que
desconsiderava o verossímil como um possível critério a ser utilizado na argumentação. Os
autores resgatam a importância da verossimilhança e da dialética, contrapondo-as à
obrigatoriedade do raciocínio e da pura verdade. Sobre esse aspecto Pinto (2010, p. 44)
comenta:
Para Perelman & Olbrechts-Tyteca, a noção de evidência, no intuito de caracterizar
a razão, pode ser fundamental para a teoria da argumentação, mas deve ser entendida
numa escala proporcional e não deve ser decodificada como uma verdade absoluta.
A argumentação, para Perelman, está ligada a um tipo de ação discursiva, a qual
pretende conseguir a adesão do auditório, mas só por meio da linguagem. A persuasão e o
convencimento são elementos que devem atuar de forma paralela à argumentação. A
persuasão se dirige de forma particular a um auditório particular, já o convencimento se
estende, a partir do particular, a um auditório abstrato, universal, coerente com a regra de
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justiça aceita pelo maior número possível de pessoas (valores universais), criando
jurisprudência.
Assim a Nova Retórica é mais que uma teoria da argumentação: trata-se, pois, de uma
análise crítica do Direito, na qual se constata a carga de elementos sociais subjetivos e
objetivos que fundamenta as decisões jurídicas, as quais são tópicas e marcadas por valores
sociais ante a norma jurídica. O Direito deve ser um parâmetro, cujo valor da solução trazida
pela argumentação deve estar em conformidade ao apontar uma resolução que não apenas está
de acordo com a lei, mas é razoável, aceitável, equitativa.
4. A sequência didática com o júri simulado
A pertinência do trabalho, nas aulas de português, com gêneros orais organizados a
partir de sequências didáticas, encontra fundamentação nas ideias de Dolz, Noverraz e
Schneuwly (2004) de que é possível ensinar os alunos a se expressarem oralmente em
situações públicas escolares e extraescolares.
Dolz & Schneuwly (2004, p. 97) definem sequência didática como “um conjunto de
atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral
ou escrito”.
Os representantes da Escola de Genebra defendem que a sequência didática pode
apresentar a seguinte organização:

Apresentação da situação: objetiva expor aos alunos um problema de comunicação bem
definido, além de preparar os conteúdos dos textos que serão produzidos.

Produção inicial: papel diagnóstico, verifica-se os conhecimentos prévios dos alunos, ampliase o repertório dos alunos a partir da aproximação deles com o gênero em estudo, inicia-se
atividades de oralidade nas aulas;

Módulos: divididos em seções, abordam as características da situação de produção, da
organização textual, dos aspectos linguístico-discursivos e dos meios não-linguísticos;

Produção final: visa verificar os avanços dos alunos durante o percurso do trabalho com a
sequência didática.
A experiência de trabalharmos oralidade e argumentação nas aulas de Língua
Portuguesa numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental começou com um levantamento
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prévio sobre o que os alunos conheciam sobre o júri, após ouvi-los realizamos uma exposição
mais detalhada acerca do gênero em tela, destacamos os atores envolvidos, seus respectivos
papéis sociodiscursivos e os meios linguísticos e não-linguísticos presentes no domínio
jurídico. Finalizamos a aula informando que nas próximas atividades iriamos assistir a um
filme sobre julgamento, a fim de levá-los a compreender melhor o papel dos operadores do
direito e do júri popular. Desde o início, a perspectiva de atuar no júri simulado deixou-os
interessados.
Na aula seguinte apresentamos a temática do julgamento: O trabalho infantil. A
problematização a ser julgada: Permitir ou proibir o trabalho de um jovem de 12 anos como
fretista, aos sábados, na feira livre da cidade? Vale a pena destacar que essa atividade é muito
comum na cidade e no cotidiano dos jovens da escola. Tivemos a preocupação de indagá-los
sobre a problematização e ficou evidente que apenas 5% (dois alunos) dos discentes eram
contra o trabalho de jovens na feira livre da cidade, eles afirmaram que “lugar de criança é na
escola”. Já a maioria que se declarou a favor do frete, alegou questões financeiras e frases do
tipo “é melhor trabalhar do que roubar”, alguns fizeram uma ressalva “desde que não seja um
trabalho forçado”.
Na sequência apresentamos e debatemos o regulamento do júri, definimos que seria
melhor realizá-lo no fórum da cidade, por apresentar uma estrutura propícia ao evento,
inclusive procuramos conscientizá-los sobre a importância de gravar o evento para avaliarmos
posteriormente as nossas participações, além de guardarmos como uma lembrança da
atividade escolar. Os alunos concordaram com a proposta, só que em virtude da reforma do
fórum, realizamos o evento no auditório da Câmara de Vereadores da cidade por ter uma
estrutura física confortável e similar à do fórum.
No regulamento ficou estabelecido o local, a data e horário do evento, funções e
formação dos grupos (Juízes = 5 alunos; Promotores = 8 alunos; Defensores = 8 alunos e
Julgadores = 21 alunos). Aos juízes coube a organização do júri, elaboração de pauta, discurso
de abertura e condução do julgamento, cronometragem do tempo e da mediação dos
confrontos e discussões (o famoso protesto); os julgadores ficaram responsáveis pela decisão
final, na qual cada membro do júri popular deu seu voto, justificando o porquê de sua decisão
de acordo com o que foi apresentado e argumentado pela defesa e acusação; Aos promotores e
defensores coube a tarefa de apresentarem teses e argumentos convincentes a fim de persuadir
o júri popular, inclusive com a oitiva de testemunhas. O regulamento definiu o tempo de
atuação da acusação e da defesa, levando em consideração as seguintes etapas: Teses iniciais:
15 minutos para cada grupo; réplica: 10 minutos para cada grupo e tréplica de 5 minutos. Três
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protestos por grupo. Cada protesto com duração máxima de 1 minuto, não sendo permitido
protestar durante as tréplicas.
Destinamos 2h/aulas para apresentar e explicar os critérios de avaliação. Para isso foi
entregue a cada participante uma planilha de avaliação contendo as expectativas de atuação
dos 4 grupos. Os juízes foram avaliados com base na elaboração do roteiro, saudação às
partes, contextualização do caso em julgamento, trabalho em equipe, cronometragem,
manutenção da ordem, tratamento isonômico às partes, segurança na aplicação das regras,
intervenção coerente nos protestos, vestimentas, postura corporal e linguagem adequada ao
evento. Os promotores e defensores foram avaliados com base na vestimenta, saudação às
partes, trabalho em grupo, contextualização do caso, organização e apresentação da tese,
linguagem adequada ao evento, capacidade de atrair a atenção da audiência, linguagem e
oralidade (postura, fala, entonação, gestos, movimentos, comunicação persuasiva), utilização
e exploração das testemunhas, uso da linguagem argumentativa para refutar e contraargumentar, utilização de exemplificações, perguntas retóricas, analogias e citações. Os
julgadores foram avaliados em função do comportamento adequado ao evento (atenção,
silêncio, não comunicação com os outros membros do júri popular, vestimentas), linguagem
adequada ao evento, capacidade linguística de explicar e justificar o voto, linguagem e
oralidade (fala – entonação – gestos).
Solicitamos dos alunos uma atividade em grupo. A realização de entrevistas gravadas
com personalidades da cidade escolhidas por eles, a fim de questioná-las sobre o que acham
do trabalho dos jovens na feira livre da cidade, aos sábados. Essa atividade contribuiu para a
ampliação do ponto de vista dos alunos sobre o tema do júri e ocupou 2h/aulas na sequência
didática.
Destinamos 3h/aulas para a sessão com o filme Tempo de Matar. Houve debate acerca
da temática abordada no filme, bem como o estudo da linguagem e postura adotadas pelos
operadores do direito. Apresentamos, na aula seguinte, um vídeo para o estudo da postura,
fala, entonação e da linguagem persuasiva. Destinamos, ainda, 2 h/aulas para pesquisas no
laboratório de informática sobre as leis e argumentos relacionados ao trabalho infantil,
inclusive criamos um grupo no Facebook (projeto júri simulado) para a interação dos
participantes durante a realização da sequência didática. Outra iniciativa interessante e que
rendeu bons resultados foi a participação colaborativa de um professor da escola com
formação em Direito (fez o papel de orientador da promotoria) e de um ex-aluno do colégio,
estudante de Direito (fez o papel de orientador da defensoria). Esses colaboradores reuniramse em 1h/aula com seus respectivos grupos para orientá-los acerca da atuação argumentativa,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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inclusive participaram do júri simulado e puderam apoiar e orientar os grupos nos intervalos
entre as teses iniciais, réplicas e tréplicas.
Destinamos 2h/aulas para uma apresentação em PowerPoint sobre o uso dos
operadores argumentativos nos textos escritos e orais.
Realizamos, uma semana antes do júri, visita prévia ao local do evento para
familiarizar os alunos com o espaço físico, locais específicos de atuação dos grupos e explicar
acerca da sequência do júri simulado. A culminância da sequência didática ocorreu com a
realização do júri simulado totalizando 18 h/aulas.
5. Resultados
Passemos, agora, a pontuar os aspectos mais significativos da performance
apresentada pelos grupos durante o júri simulado.
A atuação dos juízes foi satisfatória quanto ao trabalho em grupo, vestimentas,
cronometragem, isonomia no tratamento aos grupos, entonação e gestos, zelo pela
manutenção da ordem. Porém durante o protesto proferido pelos defensores nas teses iniciais
da promotoria os juízes não se pronunciaram (protesto aceito ou negado). Durante o tempo de
fala da defensoria nas teses iniciais, a defensora teve o seu turno de fala interrompido pelo
promotor, neste instante a atuação do juiz foi providencial ao tocar a sineta e advertir o
promotor “Se usa protesto!”. Outro aspecto positivo na atuação dos juízes foi sempre alertar
as partes sobre o tempo restante de fala “gostaria de avisar que a promotoria só tem mais um
minuto!”. Quanto a essa mensagem houve apenas um momento em que a fala do juiz ganhou
um tom de informalidade quando afirmou: “Quero avisar ao povo da defensoria que só falta 1
minuto!”. Porém o mesmo juiz no momento seguinte advertiu dizendo: “Quero informar à
parte da defensoria que só falta 1 minuto!”.
A atuação da promotoria foi marcada pelo argumento de que existem leis no país,
destaque para a Lei 8.069/1990, elas estão para proteger as crianças e os adolescentes, deram
ênfase ao argumento de que quem deve trabalhar para sustentar o menor é o adulto (pai e
mãe) e não o contrário. Exploraram, ainda, os riscos (exposição ao sol, peso e acidentes), e as
ações sociais do governo (Escola Aberta e o PETI). Dos 8 promotores, 4 utilizaram
parcialmente os recursos (entonação, movimentação, discurso persuasivo). Vejamos alguns
trechos da atuação da promotoria:
“como podemos observar as leis proíbem o trabalho de crianças...então e aí vamos rasgar as
leis?”; “Então como ele só pode trabalhar como aprendiz...não tem ninguém ensinando...além
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do carro ser pesado...uns 40 quilos um jovem não tem condições de carregar de manhã no sol
quente...as vezes passando fome!”; “Por que que a mãe e o pai não vão trabalhar...se eles têm
um físico melhor.”; “Eu vou seguir na mesma tecla...será que eles (gesto na direção da
defensoria) queriam que os seus filhos trabalhassem na feira livre? Eu acho que não!”; “Pela
ordem Excelência! Nós vamos fazer primeiro as perguntas à testemunha da defensoria.”
Pergunta a testemunha da defesa “O lugar da criança é carregando frete na feira ou na
escola?”; “A testemunha da defesa falou que ele cursou a faculdade, fez estudos, e ele não
conhece outra pessoa que trabalhava no frete...e então ele não passa de uma exceção porque
na maioria dos casos quem trabalha no frete na feira mal conseguia terminar seus estudos!”.
A atuação da defensoria foi marcada pelo argumento de que vivemos num país de
desigualdades sociais, o trabalho do jovem na feira é digno, em nada atrapalha a sua atividade
estudantil, não é sistemático nem forçado e ainda garante uma ajuda financeira para o jovem
e/ou sua família. Todos os 8 defensores utilizaram muito bem os recursos (fala – entonação –
movimentação – linguagem persuasiva). Vejamos algumas passagens da atuação dos
defensores:
Protesto da defensoria: “A senhora está falando de criança de 12 anos, porém a Lei 8069/1990
afirma que com 12 anos completos estamos falando de adolescente.”; “Há mais de 80 anos
que a feira livre tem existência em nossa cidade e com ela surgiu o chamado frete. Segundo o
historiador, também professor de Língua Portuguesa, Ubiratan Ferreira de Carvalho, quando
criança ele presenciava esses jovens trabalhando não só como fretista, mas também em outras
funções”; “Até hoje nunca houve evidências ou dados de algum acidente ou morte de algum
desses jovens por trabalharem como fretista!”; “não é um trabalho forçado, não atrapalha nos
estudos, pois rebatendo também o que a promotoria falou, o programa Escola aberta ele é
aberto de manhã e à tarde...ele poderia trabalhar de manhã e ir ao projeto escola aberta à
tarde!”; “Vossa Excelência, eu gostaria de chamar nossa testemunha!”; “Bom senhores
julgadores...vejamos bem! Esse policial militar que na sua adolescência trabalhou no frete, e
pelo que foi dito, nunca lhe prejudicou...pelo contrário foi...lhe ajudou a ser mais responsável
e independente”; “Senhores julgadores, peço que reflitam um pouco! O que é mais nocivo ou
perigoso, esse jovem trabalhar e ganhar o seu dinheiro dignamente ou proibi-lo de fazer...e aí
ele roubar ou furtar?”; “o pobre vai trabalhar porque tem necessidade. Estamos falando aqui
de um mundo real onde existem muitas necessidades. O mundo ideal que a lei rege não é
esse!”; “Eu gostaria de reforçar um pouco a fala da Drª Defensora, só recebe o Bolsa Família
quem está estudando, portanto se o fretista está estudando ele vai receber, mas todos nós
sabemos que o bolsa família não dá pra sustentar o jovem e muitas vezes ele quer ter seu
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próprio dinheiro para consumi-lo e não deseja pedi-lo a ninguém!”.
A atuação dos julgadores definiu o resultado do júri simulado com 18 votos a favor da
defensoria (liberação do trabalho do jovem de 12 anos, aos sábados, na feira livre da cidade) e
3 votos contrários. Os membros do júri popular apresentaram ótimo comportamento quanto à
atenção, silêncio, não comunicação entre os integrantes julgadores, porém apenas 6
integrantes demonstraram pleno desenvolvimento da capacidade linguística de explicar e
justificar o voto.
6. Considerações finais
O objetivo deste artigo foi apresentar uma experiência de sequência didática com o
gênero textual júri simulado numa turma do 9º ano do Ensino Fundamental, proporcionando
um desempenho linguístico satisfatório quanto à oralidade e à argumentação oral dos
discentes.
É relevante destacar a necessidade de realizar, ao longo do ano letivo, mais de um júri,
para que haja um rodízio dos alunos em relação às funções desempenhadas. Notadamente a
sequência didática contribuiu para avanços significativos no domínio linguístico discursivo
dos discentes quanto ao uso de argumentos por meio da oralidade.
É importante, ainda, que os professores tenham a consciência da necessidade de gravar
os eventos relativos ao ensino do oral na escola, com o propósito de poder avaliar melhor os
desempenhos atingidos e redimensionar novas atividades de ensino por meio dos gêneros
orais.
Diante disso, percebemos que trabalhar os aspectos da oralidade e da argumentação
por meio de uma sequência didática com o júri simulado possibilita ao professor de Língua
Portuguesa um trabalho com inovação, criatividade e interatividade, capaz de contribuir para
a formação discursiva competente dos discentes.
Referências
BARBOSA, Jacqueline Peixoto. Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de língua
portuguesa: são os PCNs Praticáveis?. In: ROJO, Roxane (org.). A prática de linguagem em
sala de aula: praticando os PCNs. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2000.
BRASIL/MEC. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:
Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.
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KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Argumentação e linguagem. 13. ed. São Paulo: Cortez,
2011.
________. A inter-ação pela linguagem. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
MARCUSCHI, L. A. Oralidade e ensino de língua: uma questão pouco falada. In: DIONÍSIO,
Ângela Paiva; BEZERRA, Maria Auxiliadora (org.). O livro didático de português: múltiplos
olhares. 3. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
________. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 4 ed. São Paulo: Cortez,
2008.
PINTO, Rosalice. Como argumentar e persuadir? Práticas: política, jurídica e jornalística.
Lisboa: Quid Juris – Sociedade Editora, 2010.
SCHNEUWLY, Bernand; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas,
SP: Mercado de Letras, 2004.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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POEMAS TIRADOS DE NOTÍCIAS, MAPAS, TABELAS... E
OUTROS GÊNEROS JORNALÍSTICOS: PROCEDIMENTOS
LÚDICOS EM AULAS DE LITERATURA
[Voltar para Sumário]
Alberto Roiphe (UFS)
Introdução
O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do
curso de Letras-Português do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de
Sergipe, possui, desde 2014, um projeto intitulado “Leitura, Escrita e Autoria: o jornal em
sala de aula” e coordenado pelos professores Alberto Roiphe, responsável pela área de ensino
de literatura, Taysa Mércia dos Santos Souza Damaceno e Wilton James Bernando-Santos,
responsáveis pela área de ensino de língua portuguesa.
Os trabalhos realizados neste projeto ocorrem em duas etapas. A primeira se constitui
da orientação dos alunos de Letras quanto à sua atuação em sala de aula. A segunda etapa está
centrada na atuação, de fato, desses mesmos alunos em salas de aula do Ensino Médio da rede
pública de ensino do estado de Sergipe.
O que se pretende evidenciar, neste texto, é, justamente, de que maneira os alunos de
Letras são orientados a atuar em sala de aula, nos minicursos ministrados pelos três
coordenadores do projeto, destacando-se, como exemplo, um atividade desenvolvida durante
o minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”, a ponto
de se questionar: Em que medida procedimentos lúdicos podem contribuir para aulas de
literatura?
Os procedimentos e suas improváveis fontes
O minicurso de literatura “O jornal como mote: práticas de leitura e escrita literária”
teve como foco a relação entre gêneros jornalísticos e gêneros literários, de forma a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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instrumentalizar os alunos de Letras à criação de atividades lúdicas sempre relacionando os
dois campos de produção.
Para tratar dos gêneros presentes no campo jornalístico, a referência teórica
motivadora ao desenvolvimento do minicurso foi o ensaio “Os gêneros do discurso”, de
Mikhail Bakhtin, no qual o teórico russo estabelece três categorias, a saber, para caracterizar
tal noção:
Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem.
Compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão
multiformes quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a
unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em forma de
enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse
ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições
específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção
composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a
construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e
são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da
comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada
campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. [grifos do autor]
(BAKHTIN, 2003, p. 261-262)
Considerando-se, portanto, as três categorias estabelecidas por Bakhtin, o tema, a
construção composicional e o estilo, é possível afirmar o jornal traz, como se sabe,
privilegiadamente, uma multiplicidade de gêneros.
O procedimento realizado, no âmbito do minicurso de literatura, teve como motivação a
convergência proposta por Manuel Bandeira (2009, p. 110), no seu conhecido “Poema tirado de uma
notícia de jornal”, no qual o autor modernista une, evidenciando já no título, o gênero que se
encontrará em seu texto, um “poema”, e o gênero que deu origem à sua criação “uma notícia
de jornal”.
Para a atividade desenvolvida no minicurso, cada um dos alunos de Letras recebeu um
envelope, contendo um gênero do campo jornalístico, como notícias, mapas, tabelas etc, e um
gênero do campo literário, um poema.
Em primeiro lugar, com os envelopes em mãos, os participantes foram convidados a
observar minuciosamente os gêneros jornalísticos e, da mesma forma que sugere a educadora
francesa Josette Jolibert (1992), em sua obra Former des enfants lecteurs et producteurs de
poèmes, para a criação de poemas a partir de cartões-postais, produziram descrições, contendo
os aspectos ali observados, utilizando-se, evidentemente, de adjetivos, frases nominais,
períodos curtos, estruturas comparativas e uma sucessão de percepções anunciadas a partir de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
100
seus sentidos.
Em segundo lugar, aproveitando as anotações feitas nas descrições, os alunos
passaram a criar poemas que mantivessem a mesma estrutura do poema contido no envelope,
isto é, o poema criado por um aluno deveria conter as características rítmicas, lexicais,
sintáticas etc do poema encontrado no envelope.
É preciso lembrar que, para a montagem dos envelopes, foram escolhidos,
inicialmente, recortes contendo tanto os textos jornalísticos como os poemas em função da
abordagem temática. Sendo assim: para o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004,
162), que afirmando de início “O preço do feijão/não cabe no poema”, foi escolhida uma
tabela de cotação preços, que contém os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e
outros produtos; para o poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), foi escolhido, no
jornal, um mapa meteorológico, acompanhado de uma legenda, incluindo as condições
climáticas em diversas regiões do Brasil; para o poema concreto “Velocidade”, de Ronaldo
Azeredo (1971, p. 25), foi escolhida uma fotografia também com uma legenda, mas, nesse
caso, em forma de lide. O conteúdo da fotografia mostrava três rapazes em suas bicicletas,
trafegando por calçadas esburacadas. Tais rapazes estão, diante dos buracos do chão, em
posições corpóreas que lembram, ironicamente, manobras de participantes de campeonatos de
bicicross.
Levando-se em conta as condições sugeridas para a criação dos poemas, caberia
acrescentar, nesse ponto da descrição da atividade, o que já alertava Nelly Novaes Coelho, em sua
obra O ensino de literatura, na metade dos anos 1960:
Lembramos, apenas, o perigo de cairmos na exageração, ao adotarmos, por exemplo,
o difundido “método da imitação”, recomendado por muitos pedagogos. Exageração
que poderá levar os alunos a uma “esterilização” interior, dando uma “forma” ao seu
pensamento e sufocando-lhe a inspiração. Sem dúvida, o processo de leitura e
comentário dos bons autores, seguido de uma reelaboração do tema, é bastante
proveitoso. Porém é preciso que não se chegue ao extremo de provocar na mente do
aluno o enraizamento de “ideia e frases feitas.” [grifos da autora] (COELHO, 1966,
p. 33-34)
Embora o procedimento de descrever um gênero jornalístico e transpor tal descrição
para a estrutura do poema possa lembrar a redação imitativa, é importante lembrar que a
passagem da leitura para a escrita pode se tornar um exercício do pensar sobre a
caracterização da sequência verbal e visual presentes em ambos os gêneros envolvidos na
atividade. Por esse motivo mesmo e, a fim de provocar alterações nas estruturas
composicionais entre as criações dos alunos de Letras e não manter as mesmas temáticas,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
101
durante a elaboração da atividade, foram montados envelopes, não só em função da
aproximação temática entre os gêneros jornalísticos e literários, mas também em função da
alternância entre os três temas apresentados, isto é, foram preparados envelopes contendo, por
exemplo, o poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar, e a imagem das bicicletas. Foram
preparados ainda envelopes incluindo um recortes com o poema “Mapa”, de Mário Quintana,
e com a tabela de cotação de preços, extraída do jornal. Enfim, uma oportunidade de se
perceber diferentes construções a partir de cada nova combinação entre um gênero literário e
um gênero jornalístico.
Dos recortes e às produções
Para a avaliação dessas produções, foram consideradas as especificidades da
linguagem poética, que trazem em si recursos como a sonoridade, o ritmo, as rimas, as
anáforas, dentro outros recursos relevantes.
O poema abaixo, tomado como exemplo de produção realizada para a atividade
proposta, é de autoria do estudante de Letras da UFS, Pedro Santos da Silva. Intitulado “Não
há água”, o texto do aluno foi elaborado a partir da descrição do um mapa meteorológico do
Brasil e do poema “Não há vagas”, de Ferreira Gullar (2004, 162).
NÃO HÁ ÁGUA
23° cabe em Teresina.
23° cabe em São Luiz (1930)
Ainda cabem nesse país!
22° em:
Salvador;
Natal;
Recife;
João Pessoa;
Cuiabá;
24° em Macapá.
Ainda cabe nesse poema
Boa Vista com insuportáveis 27°
Como também cabe
24° em Fortaleza.
– porque nesse poema, Senhores
Há espaço para “calor ou frio”
Só não cabe mais nesse poema
15° em São Paulo
Lá Senhores secas não há
São apenas alguns metros
Abaixo do nível do Mar...
Observando-se que, na poesia, a estrutura formal tem uma importância considerável,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
102
sobretudo porque está ligada diretamente ao sentido do poema, nota-se que, de forma geral, o
texto, distribuído em três estrofes, como ocorre com o original, expõe as variadas
temperaturas encontradas nas diversas regiões do país.
Essas evidências ressaltam, já de início, o caráter lúdico da criação do poema. Algo
que lembra o que afirma Johan Huizinga, em Homo ludens, quando mostra que a afinidade
entre a poesia e o jogo “se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora” (1996, p.
147-148), considerando que “na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um
tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico”
(Idem, Ibidem, p. 148)
O jogo proposto pelo aluno, na sua criação, fica claro também, quando se percebe, a
seguir, que ele mantém, de certa forma, a estrutura do poema original, ao mesmo tempo em
que altera a sua temática.
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Ferreira Gullar
Comparativamente, nota-se que o aluno alterou o título do poema “Não há vagas”, de
Ferreira Gullar, para “Não há água”, permitindo-se observar que, na relação entre o título e o
texto, construído a partir de um mapa meteorológico, como se afirmou acima, e repleto de
informações sobre as diversas temperaturas no Brasil, a água que falta é a água das chuvas.
Essa ideia se confirma, quando se encontra, na primeira estrofe, a enumeração de nomes de
capitais do país e suas correspondentes temperaturas, o que contribui para registrar o ritmo do
poema. O verbo “caber” tem seu sentido alterado daquele empregado no texto de Gullar, já
que nunca é precedido do advérbio “não”. Sendo assim, a brincadeira sugerida pelo aluno, é
que tudo cabe no poema. Esse atitude, em seu processo de criação, faz lembrar novamente
Johan Huizinga que, ao defender a tese de que o texto poético e o jogo apresentam elementos
comuns, afirmando a poesia não “possui apenas uma função estética ou só pode ser explicada
através da estética” (1996, p. 134).
Na segunda estrofe, a enumeração, e o ritmo, têm continuidade, mostrando que o
aluno transportou sem dificuldades a imagem do mapa, no sentido amplo do termo, de forma a manter
o sentido do verbo “caber” e, consequentemente, a coerência de seu poema, do qual parece oferecer
lições de linguagem.
Nos versos da terceira e última estrofe, o aluno altera significativamente a estrutura do
poema original, a fim de reforçar sua afirmação, já anunciada no título, de que “Não há água”.
Por isso, ressalta as possibilidades de alternâncias na temperatura, mostrando que “Há espaço
para ‘calor ou frio’, e, em seguida, finaliza o texto, explicando as circunstâncias climáticas de
São Paulo:
Só não cabe mais nesse poema
15° em São Paulo
Lá Senhores secas não há
São apenas alguns metros
Abaixo do nível do Mar...
Tal circunstância, entretanto, quando relacionada ao título do poema, exibe
ironicamente não somente a falta de chuvas, mas a consequência disso, a falta de água
potável, realidade atual da capital paulista, onde nem a paisagem seca, como afirma, traz a
água: São apenas alguns metros / Abaixo do nível do Mar...”.
Em outro poema desenvolvido, nesta mesma atividade, a partir de uma tabela de
cotações de preços, contendo os valores do algodão, arroz, boi, café, cana-de-açúcar e outros
Nas fronteiras da linguagem ǀ
104
produtos, e do poema “Mapa”, de Mário Quintana (2013, p. 69-70), o autor, Cássio Augusto
Nascimento Farias, respeita a estrutura do texto original, a ponto de manter alguns de seus
versos, ao mesmo tempo em que troca a palavra “mapa” pela palavra “cotação”, alterando
completamente outros valores do poema: os semânticos.
As cotações
Olho as cotações das cidades
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Dos preços médios do leite
Que jamais entenderei...
Há tanta coisa esquisita
Tanta nuança de preços
Há tanta cidade bonita
Nas cotações que não entenderei
(E há uma porcentagem engraçada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando entender, um dia desses,
Os dados somados das cotações
Nas confusões da economia,
Serei um pouco da loucura
somada, deliciosa
Que faz com que teus resultados
Pareçam mais um olhar
Suave mistério das mesas vazias
Cotações do meu desentender
(Desde já tanto tentar entender!)
E talvez da minha fome
Essa transposição da palavra “mapa” para a palavra “cotação”, por coerência, gera
outras alterações. Por isso, o nome da cidade onde o poeta viveu (ruas de Porto Alegre) vira
nome de produto (preços médios do leite) e as características da cidade (“esquina esquisita”,
“rua encantada”) viram características do produto e de sua comercialização (“coisa esquisita”,
“porcentagem engraçada”), como se pode confirmar, comparando-se o poema do aluno de
Letras ao poema de Quintana que deu origem ao exercício:
O MAPA
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
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105
(É nem que fosse meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita
Tanta nuança de paredes
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar
Suave mistério amoroso
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...
O que se torna curioso é que os versos mantidos nas duas estrofes iniciais de ambos os
poemas, por exemplo, permitem leituras com duplos sentidos. No poema do aluno, tem-se a
interpretação voltada para a cotação:
Olho as cotações das cidades
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo
(É nem que fosse meu corpo!)
No poema de Quintana, a interpretação se volta, evidentemente, para o mapa:
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse meu corpo!)
O poema do aluno é finalizado, assim como havia acontecido no anterior, por uma
ironia marcada por termos como “confusões da economia”, “Serei um pouco da loucura /
somada, deliciosa”.
Na invenção do aluno, o que se manteria como anáfora na penúltima estrofe do poema
Nas fronteiras da linguagem ǀ
106
original, “Cidade de meu andar / (Deste já tão longo andar!)”, é descontruído e reconstruído,
pela brincadeira com as palavras “entender” e “desentender”:
Cotações do meu desentender
(Desde já tanto tentar entender!)
O último versão, então, dá ênfase à temática escolhida pelo aluno. Por isso, “repouso”
se transforma em “fome”: possibilidade lúdica e, criticamente, lúcida para o leitor sentir e
pensar por meio da linguagem poética.
Esses dois exemplos mostram que o procedimento proposto na atividade exige do
aluno uma análise do poema original para a construção de seu próprio poema, o que se
aproxima do que afirma Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia, quando diz que “a
análise descobre o poema” (2000, p. 37). Dessa forma, não é difícil observar que o aluno
estuda o poema original por meio da confecção de seu próprio poema. Não se pode esquecer
ainda que, por meio do procedimento proposto no minicurso, foram estudados também os
gêneros jornalísticos que serviram como fonte para a criação dos poemas.
Considerações finais
Os resultados preliminares dos procedimentos realizados durante o minicurso de
literatura, no âmbito do PIBID Letras-Português da UFS, mostram que o poema, um gênero,
geralmente, distante da Educação Básica em práticas de leitura e de escrita, como se
demonstrou, pode se tornar um objeto de estudo, justamente, por meio de exercícios de leitura
e de escrita. Para tanto, torna-se necessário o desenvolvimento de atividades que incentivem
os professores em formação e, consequentemente, seus alunos, ao trabalho específico com a
linguagem poética. Ficou evidente durante o minicurso que tais aproximações geram maior
interesse por meio de atividades lúdica, entretanto, o desdobramento dessas ações, em escolas
de rede pública de ensino do estado de Sergipe, por meio de exercícios propostos pelos alunos
de Letras da UFS é que poderão confirmar a consequência de trabalhos como esse com alunos
no Ensino Médio.
Referências
AZEREDO, Ronaldo. “Velocidade”. In: Revista de Cultura Vozes. Concretismo. Ano 1, 1971.
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107
BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. “Os gêneros do discurso”. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação
verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 261-269.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
COELHO, Nelly Novaes. O ensino da literatura. São Paulo: FTD, 1966.
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 14ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4ª ed. Tradução de João
Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.
JOLIBERT, Josette et al. Former des enfants lecteurs et producteurs de poèmes. Paris:
Hachette, 1992.
QUINTANA, Mário. Rua dos cataventos & outros poemas. Porto Alegre: LP&M, 2013.
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108
INTERPRETANDO EM CONTEXTOS: UMA ANÁLISE DA
PRESSUPOSIÇÃO DISCURSIVA NO GÊNERO “FRASES”
[Voltar para Sumário]
Aleise Guimarães Carvalho (S.E.E.-PB)
Alessandra Magda de Miranda (S. E.E.- PB)
Introdução
As construções linguísticas, materializadas tanto na forma escrita quanto falada,
carregam consigo conteúdos semânticos que, em alguns casos, não estão explicitamente
revelados, mas implicitamente inseridos nas sentenças. De acordo com Ducrot (1987), o
pressuposto é um dos conteúdos implícitos que é descrito por meio do componente. Moura
(2006) se apropria desta classificação em relação à pressuposição, acrescentando apenas a
ideia de que, além da estrutura linguística (semântica), a pressuposição depende também do
contexto (conhecimento compartilhado entre os sujeitos participantes do discurso), contexto
este de natureza semântica. Para este estudo, nos utilizaremos da classificação apresentada por
Moura para a classificação da pressuposição.
Um gênero discursivo bastante relevante para a análise dos sentidos implícitos é o
gênero “frases”. Este se encontra em revistas populares, nas quais a edição dedica uma seção
especificamente para publicar as “frases” que foram ditas por pessoas públicas (artistas;
celebridades; políticos) durante a semana, caso a revista seja de circulação semanal.
O gênero “frases” é constituído da ‘fala’ do locutor/autor (pessoa pública), mais a
contextualização apresentada pelo editor da revista com a finalidade de situar o leitor de que
contexto, situação física, psicológica, a frase foi extraída. Ainda, em alguns casos, a revista
publica uma imagem da pessoa que fala.
Diante do exposto, pretendemos, com este estudo, descrever os sentidos pressupostos
presentes em três “frases” publicadas pela Revista Veja e, em seguida, observar se, a partir da
contextualização da fala, os pressupostos são mantidos, modificados e/ou anulados. Neste
sentido, verificaremos se a contextualização da edição das “frases” em análise comporta-se
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
109
como contexto dinâmico, tal qual é referido por Moura, uma vez que, para o autor, cada
sentença gera um novo contexto e este elimina ou não os contextos anteriormente aceitos.
O corpus para este trabalho foi selecionado de maneira aleatória. Inicialmente foram
selecionadas dezesseis “frases” publicadas pela Revista Veja durante três meses consecutivos.
Todas elas apresentavam informações pressupostas, no entanto, para este estudo escolhemos
apenas três delas.
Esta pesquisa é, portanto, de cunho qualitativo, a qual tem como principais
pressupostos teóricos os postulados de Ducrot (1987); Moura (2000); Pedrosa (2007; 2011),
entre outros.
1. Considerações teóricas
1.1
Uma breve discussão acerca da pressuposição
Para tratar da pressuposição, seguiremos, neste estudo, as abordagens apresentadas
pelo linguista Heronides Moura (2006), o qual trata deste fenômeno linguístico na interface
entre a semântica e a pragmática.
A partir de exemplos, Moura (idem) expõe dois níveis nas informações contidos nas
sentenças exemplificadas. O primeiro nível é o posto, e o segundo, o pressuposto. De acordo
com o autor supracitado, o posto é a informação contida no sentido literal de uma sentença, já
o pressuposto é a informação inferida da enunciação, “a aceitação de verdade do posto leva à
aceitação da verdade do pressuposto” (ibdem).
Ducrot (1987), precursor do estudo da pressuposição, admite que o pressuposto não
pertence ao enunciado da mesma maneira que o posto, mas ocorre de formas diferentes, no
entanto o posto é o que é afirmado enquanto que o pressuposto é o que é apresentado como
pertencendo ao domínio comum dos participantes do diálogo.
Percebemos, então, que Moura corrobora com Ducrot na diferenciação destes dois
níveis, uma vez que ambos afirmam que o posto é o que está dito, enquanto que o pressuposto
é a informação compartilhada entre os participantes do diálogo, informação esta interpretada a
partir de marcadas linguisticamente inseridas na sentença.
Para Moura (idem), a compreensão da pressuposição ocorre, se as proposições forem
aceitas tanto pelo falante quanto pelo ouvinte. A este fenômeno, o autor chama de
conhecimento compartilhado. Assim sendo, “a pressuposição deve ser parte do conhecimento
compartilhado dos interlocutores” (ibdem, p. 17).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
110
Além da marca linguística, existem alguns outros fatores que nos permitem confirmar
se de fato existe a pressuposição dentro de determinada sentença. Moura (idem), respaldandose em Ducrot (1987), apresenta o mecanismo de negação do posto para comprovação da
pressuposição, ou seja, a negação do posto não afeta a necessidade de aceitarmos como
verdade o pressuposto. Ao negar a “informação afirmada no posto, o pressuposto ainda
permanece válido” (ibdem, p. 16).
Na primeira versão sobre o estudo da pressuposição, Ducrot (idem) afirma que o
critério comprobatório de classificação da pressuposição é o de que no momento em que o
enunciado é submetido à negação ou à interrogação, os pressupostos continuam inalteráveis.
Ducrot reexamina este estudo e afirma que “quando não se pode transformar, negativamente
ou interrogativamente, um enunciado, pode-se encadear a partir dele” (ibdem, p. 38).
Moura não aborda o mecanismo do encadeamento proposto por Ducrot, mas, além dos
testes com a negação e interrogação, apresenta os testes com o uso do operador modal e do
verbo factivo. Desta forma, em qualquer que seja o caso duvidoso de pressuposição, basta
aplicar estes testes e a evidência de pressuposição se confirmará.
Em algumas sentenças, a existência de expressões já evidencia o implícito
pressuposto. Moura (idem) lista sete tipos de expressões que ativam a pressuposição, a saber:
a)
Descrição definida (pressuposto de existência): “o uso de uma descrição definida
pressupõe a existência do ser a que ela se refere” (idem, p. 17).
b)
Verbos factivos: lamentar; sentir; compreender; saber; adivinhar.
c)
Verbos implicativos: conseguir; esquecer.
d)
Verbos de mudança de estado: deixou de; parou de; começou a; iniciar em.
e)
Verbos interativos: a ação já tinha acontecido anteriormente.
f)
Expressões temporais: depois de; antes de.
g)
Sentenças clivadas: “sentenças em que uma sentença simples é dividida em duas
orações a fim de destacar um certo constituinte da sentença” (ibdem, p. 21).
1.2
Refletindo sobre contexto
Diferentemente de Ducrot (1987), Moura (idem) afirma que a pressuposição depende
do contexto e não somente da estrutura semântica e, portanto, a pressuposição funciona a
partir de contextos compartilhados entre os participantes da conversação. Assim sendo, as
palavras e/ou expressões ativadoras de pressuposição impulsionam a informação
compartilhada favorecendo o fluxo conversacional. “A determinação ou não do pressuposto
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
111
de uma sentença depende do contexto conversacional e do conhecimento compartilhado dos
interlocutores” (ibdem, p. 23).
Desta feita, os participantes do discurso assumem como verdadeiros o conhecimento
compartilhado entre eles como também o contexto pelo qual a sentença está referida e daí
constata-se a pressuposição.
Em muitos casos, este contexto é modificado por meio da dinâmica conversacional, ou
seja, à medida que a conversação avança, pode acontecer de o contexto referido ser alterado
conjuntamente. A esta mudança do contexto, alterado pelo processamento da conversação,
Moura (idem) classifica de contexto dinâmico.
De acordo com Moura (idem, p. 46), “o contexto pode ser aumentado de duas
maneiras: (1) pela incorporação dos pressupostos das sentenças enunciadas; (2) pela
incorporação de informações novas contidas nas próprias sentenças enunciadas”. Diante da
inserção de novos contextos à conversação, os pressupostos, que inicialmente foram
comprovados, podem permanecer ou, até mesmo, serem eliminados.
Em alguns casos, acontece a eliminação da pressuposição a partir do uso de dois
conectivos, “e” e “ou”. Este processo é classificado de filtro. Mas, em algumas sentenças,
esses conectivos não filtram a pressuposição contida na sentença simples e ocorre a
permanência do pressuposto na sentença composta. Esta permanência é classificada de
projeção da pressuposição. (MOURA, 2006)
Além destes dois processos, ainda podemos citar os bloqueios e os furos. Os bloqueios
impedem a preservação dos pressupostos das sentenças simples e geralmente são ativados
pelos verbos de atitude proposicional (acreditar; querer; imaginar; sonhar; dizer; contar; falar;
retorquir), os furos preservam (deixam passar) esses processos evidenciados, em sua maioria,
por verbos factivos, operadores modais e a negação. (ibdem)
Mesmo diante da classificação destes processos anteriormente citados (filtros;
bloqueios; furos), os quais são compreendidos somente mediante entendimento semântico,
para a afirmação da pressuposição, valerá não somente esta classificação, mas,
principalmente, a definição do contexto, uma vez que, em alguns casos, a classificação
semântica não é suficiente para a compreensão da pressuposição.
No tópico seguinte, abordaremos algumas considerações a respeito do gênero “frases”,
gênero este que nos servirá de corpus para análise das pressuposições e do comportamento
destes implícitos mediante contextos dinâmicos.
1.3
Gênero “frases”
Nas fronteiras da linguagem ǀ
112
Discutindo sobre gêneros discursivos, Bakhtin (2010 [1992], p. 262) afirma que a
imensa quantidade de texto se justifica pelo fato de serem “inesgotáveis as possibilidades da
multiforme atividade humana” e que a cada esfera destas atividades e ações humanas é
integral um grande número de gêneros do discurso, sendo estes maleáveis e dinâmicos. Esta
diversidade textual cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e torna-se mais
complexo uma determinada esfera social.
No caso do nosso estudo, exploraremos a pressuposição em algumas “frases” que
estão publicadas na Revista Veja. Este gênero, assim como todos os demais, possui
características peculiares. É um gênero de tamanho curto, geralmente veiculado em jornais e
revistas. “Estruturalmente, compõe-se na ‘fala’ dos locutores/autores [...], mais o contexto
recuperado [...] do editor” (COSTA, 2009, p. 121).
As “frases” são sempre publicadas a partir de um recorte feito pela edição da revista
ou do jornal a partir de uma fala maior do locutor. Depois deste recorte, a edição situará o
leitor informando qual o contexto e a situação física, psicológica etc., pela qual a “frase” foi
extraída. Segundo Pedrosa (2007), as revistas sempre publicam este gênero com uma forma
padrão, primeiro a ‘fala’ escolhida e depois, logo abaixo da fala, a contextualização.
Para a autora (2007, p. 157), os contextos podem ser classificados de três formas:
contexto informativo (aquele contexto que traz apenas informações sobre a situação, sem que
esteja explícita a opinião do editor); contexto atrelado (aquele que não é suficiente para a
compreensão da fala tendo de recorrer ao contexto de “fala” anterior); e contexto
interpretativo ou tendencioso (aquele que identificamos explicitamente, através de marcas
linguísticas, a opinião do editor).
Segundo ela, é através do contexto que o leitor conhece a “fala” retextualizada.
No primeiro processo, o editor seleciona a ‘fala’ do locutor a partir de um evento
comunicativo mais amplo e a retextualiza segundo critérios bem subjetivos, pois
verificamos que as ‘falas’ não são transcritas, como o uso das aspas poderia sugerir,
mas retextualizadas segundo preferências lexicais, sintáticas, semânticas,
pragmáticas e ideológica do editor (PEDROSA, 2004, p. 2).
Então, “poderemos afirmar que só podemos tratar do gênero discursivo “frases”,
considerando-o em seu conjunto construtivo: ‘fala’ do locutor + contexto do editor”
(PEDROSA, 2007, p. 158). Portanto, é com base nesta constatação que analisaremos a
pressuposição contida em algumas “frases”, ou seja, consideraremos a fala do locutor como
também o contexto do editor.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2.
113
Análise do corpus
Conforme vimos anteriormente, o gênero “frases” é composto de duas partes e a
análise a seguir, visa descrever os pressupostos inseridos no gênero como um todo (fala +
contextualização), observando se esse apresenta sentenças compostas, analisando, em seguida,
se ao inserir novos contextos, a pressuposição inicial é anulada, alterada ou reiterada. Desta
maneira, observaremos se este fenômeno semântico pode ser considerado como característica
do gênero discursivo em estudo.
“Frase” 01:
“A classe C não tem medo de dar vexame.”
GABY AMARANTOS, a Beyocé do Pará,
rainha do movimento musical tecnomelody,
antes conhecido como tecnobrega.
A fala da “frase” acima pertence a uma cantora precursora de um novo movimento
musical, o qual se espalhou pelo restante do Brasil a partir da população de baixa renda do
Estado do Pará.
Essas informações do parágrafo anterior são informações que, possivelmente, estão
compartilhadas entre o enunciador e seus interlocutores. Com base na aceitação de verdade
deste conhecimento compartilhado, podemos considerar que há uma primeira informação
pressuposta nesse texto, ou seja, a pressuposição de que existe uma classe C. Ainda
conseguimos interpretar outra pressuposição na fala da cantora, a de que a classe C dá
vexame. Por já conter uma negação no posto, apliquemos, então, o teste da interrogação para
verificar a comprovação desses pressupostos:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
114
Posto: “A classe C não tem medo de dar vexame.”
Pp. 1: Existe uma classe C.
Pp. 2: A classe C dá vexame.
Int.: A classe C não tem medo de dar vexame?
Através do posto interrogado, comprovamos a existência dos dois pressupostos na fala
da personagem, pois estes implícitos se mantiveram inalterados mesmo com a interrogação do
posto.
Ao observar a contextualização da revista -“Gaby Amarantos, a Beyocé do Pará,
rainha do movimento musical tecnomelody, antes conhecido como tecnobrega”- percebemos
que nela não há informações pressupostas, e que todos os fatos informados apenas reforçam o
conhecimento compartilhado entre os participantes do discurso. Desta maneira, o novo
contexto não modificou e nem ratificou nenhuma da pressuposição inicial da fala da
personagem da “frase”.
“Frase” 02:
“Agora sou só família, trabalho
e eu mesma. Ando ocupada demais
para um namoro sério.”
PARIS HILTON, celebridade, depois de acabar com
o último namorado e antes de engatar com o próximo.
Na primeira sentença da fala da atriz Paris Hilton -“Agora sou só família, trabalho e eu
mesma.”- existe uma marca temporal “agora”, considerada, gramaticalmente, como um
advérbio, que aponta bem na linha do tempo, o momento referido pela atriz. Ao afirmar que
agora Paris Hilton é só família, trabalho e ela mesma, a atriz deixa uma informação
pressuposta, a de que antes ela não era só família, trabalho e ela mesma, ou seja, existia algo a
mais.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
115
Ao ler a segunda sentença -“Ando ocupada demais para um namoro sério.”- o novo
contexto nos informa que, o algo a mais implícito na primeira sentença, nos permite
interpretar que ela se referia a “um namoro sério”. Desta maneira, uma das outras coisas que
existiam em sua vida, além de família, trabalho e ela mesma, era a um “namoro sério”. Assim
sendo, por causa da segunda sentença proferida por Paris Hilton, percebemos que existe uma
intensificação da informação inicialmente pressuposta.
Com a contextualização da revista, ao afirmar -“Paris Hilton, celebridade, depois de
acabar com o último namorado”- este novo contexto confirma a interpretação da
pressuposição de que existia um namoro na vida da atriz e, portanto, confirmamos a
pressuposição dita inicialmente, a de que antes a Paris Hilton tinha um namoro e não só
família, trabalho e ela mesma.
Com a sequência da contextualização da revista, ao dizer -“e antes de engatar com o
próximo”– este novo contexto ainda confirma a pressuposição inicial, isto por causa da
expressão “e antes”, no entanto, argumentativamente, desfaz o que foi dito pela celebridade
ao afirmar que ela engatou um novo relacionamento. Passamos, portanto, a interpretar que a
atriz não é só família, trabalho e ela mesma, uma vez que, conforme a informação apresentada
pela revista, possivelmente ela tenha assumido outro relacionamento.
“Frase” 03:
“Esta é a festa mais sexy do mundo
no canal mais sexy do mundo.”
DR. ROBERT REY, o cirurgião plástico brasileiro que é sucesso em
Hollywood, falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!
Na fala acima, podemos interpretar que alguns pressupostos são ativados a partir de
descrições definidas. No momento em que o enunciador afirma -“Esta é a festa”- deixa
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116
pressupor a existência de algo, e, neste caso, pressupõe a existência de uma festa. Conforme
Moura (2006, p. 18), “esse tipo de pressuposição é chamado também de pressuposto de
existência”.
Consideramos, portanto, que a primeira pressuposição contida na fala do Dr. Robert
Rey é a de que existe uma festa. O segundo pressuposto de existência nesta frase é o de que
existe um canal.
Outras pressuposições podem ser interpretadas neste texto, por causa do uso da marca
linguística “mais”. Ao considerar que existe uma festa e esta é a mais sexy do mundo, a
palavra “mais” ativa o pressuposto de que existem outras festas que são sexy. Da mesma
forma acontece na segunda parte da sentença, quando o médico cirurgião afirma –“no canal
mais sexy do mundo”– a palavra “mais” aciona o pressuposto de que existem outros canais.
Para comprovação destas pressuposições, neguemos e interroguemos o posto e
verifiquemos a permanência dos pressupostos:
Posto: “Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo.”
Pp. 1: Existe uma festa.
Pp. 2: Existe um canal.
Pp. 3: Existem outras festas que são sexy.
Pp. 4: Existem outros canais.
Neg.: Esta não é a festa mais sexy do mundo não é o canal mais sexy do mundo.
Int.: Esta é a festa mais sexy do mundo no canal mais sexy do mundo?
Comprovamos que, tanto com a negação do posto, quanto com a interrogação, os
quatros pressupostos continuam inalterados. Consideramos, portanto, que os quatros são
pressupostos contidos na fala da “frase”.
A contextualização da revista, nesta “frase”, ao dizer –“falando do show trash Sexo a
3”– ela classifica, nominalmente, a festa que havia sido referida pelo Dr. Rey em sua fala. Em
seguida, a contextualização também nomeia o canal pelo qual tinha se referido o médico
cirurgião plástico. Ao afirmar – “falando do show trash Sexo a 3, que apresenta na RedeTV!”
– a revista considera que o leitor possui o conhecimento de que a RedeTV é um canal de TV
brasileiro e, desta forma, confirma o pressuposto de que existe um canal.
Portanto, com a contextualização da revista, somente dois dos quatro pressupostos
foram confirmados: o pressuposto 1 - existe uma festa - e, depois do novo contexto,
consideramos que esta festa é chamada de Sexo a 3; e também reitera a pressuposição 2 -
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
117
existe um canal - e, a partir da contextualização, conhecemos que o canal referido é a
RedeTV. Os demais pressupostos contidos na fala do Dr. Rey, não foram anulados, alterados
e nem reiterados pela contextualização da revista.
Diante das três “frases” analisadas, consideramos que houve reiteração de pelo menos
um pressuposto em duas delas. Somente em uma “frase” observamos que a contextualização
anula o pressuposto ao ativar outro pressuposto e em apenas uma outra “frase” a
contextualização da revista não interferiu na pressuposição. Desta forma, no corpus analisado,
o novo contexto, inserido a partir da contextualização da revista, em sua maioria, ratificou os
pressupostos inseridos nas falas das celebridades, sendo a anulação e não interferência
ocorrida na minoria das “frases”.
3.
Algumas considerações
Como pudemos observar, o gênero “frases” possui bastante relevância no que
concerne à análise dos implícitos pressupostos, uma vez que, a partir de marcas linguísticas,
faz-se possível interpretar todas as informações contidas nas falas das celebridades, mesmo
que estas não tenham sido inseridas de maneira proposital.
Com a análise deste gênero como um todo, ou seja, fala + contextualização,
comprovamos que, de fato, a contextualização da revista ativa novos contextos e este, em
muitos casos, interfere na pressuposição da fala, mesmo que esta interferência seja apenas
para ratificar a pressuposição.
Assim sendo, a análise do corpus atingiu nossas expectativas, pois, como proposto
inicialmente, descrevemos os pressupostos inseridos nas “frases”, aplicando os testes a fim de
possibilitar sua comprovação e, posteriormente, observamos o comportamento dos novos
contextos inseridos a partir da contextualização da revista, verificando se estes anulavam,
alteravam ou reiteravam os pressupostos contidos na fala das pessoas públicas.
Diante destas considerações, observamos que a contextualização ora interfere na
pressuposição, e ora não, nos revelando que, mesmo não sendo recorrente em todos os textos,
consideramos que o contexto dinâmico influência na compreensão e interpretação do texto
como um todo. A partir do novo contexto, novas informações são inseridas e estas permitem,
muitas vezes, maior clareza no entendimento do dito e não dito na fala da personagem.
Além disso, a análise do fenômeno da pressuposição, a partir da inserção de novos
contextos, tornou-se bastante relevante para este estudo, uma vez que o aparecimento de
novos contextos é uma característica intrínseca do gênero “frases” por causa de sua
Nas fronteiras da linguagem ǀ
118
construção composicional. A partir da contextualização da revista, as informações
pressupostas podem ser confirmadas ou anuladas permitindo a compreensão de que a
pressuposição discursiva pode ser considerada um fenômeno característico do gênero
estudado.
Sem dúvidas, o gênero em questão é riquíssimo para ser explorado no campo dos
estudos linguísticos, visto que este apresenta a seleção (recorte) das falas de celebridades;
inserem-se considerações da revista em relação às determinadas falas; e, ainda, escolhe-se
imagem ilustrativa da pessoa pública. Todos esses critérios são bastante relevantes para o
estudo em todas as áreas da Linguística e para o meio acadêmico.
Referências
BAKHTIN, Milhail Mikhailovitch. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. (1ª
edição 1992). Tradução: Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010,
p. 262-306.
COSTA, Sérgio Roberto. Frases. In: Dicionário de gêneros textuais. 2. ed. ver. ampl. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Revisão técnica da tradução Eduardo Guimarães.
Campinas, SP: Pontes, 1987.
MOURA, Heronides M. de Melo. Significação e contexto: uma introdução a questões de
semântica e pragmática. 3. ed. Florianópolis: Insular, 2006.
PEDROSA, Cleide Emília Faye. “Frases”: caracterização do gênero e aplicação pedagógica.
In: DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel Machado; BEZERRA, Maria
Auxiliadora (orgs.). Gêneros Textuais e ensino. 5. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007, p. 151 –
165.
______. Locutores: a construção de sua identidade no gênero midiático. In: Congresso
Nacional de Lingüística e Filologia, 8; Congresso Internacional de Estudos Filológicos e
Lingüísticos, 1. 2004, Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.pos.ufs.br/letras/images/stories/File/Artigos/LOCUTORES_A_CONSTRUCAO
_DE_SUA_IDENTIDADE_NO_GENERO_MIDIATICO.pdf>. Acesso em: 04 dez. 2012.
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119
A ESCRITA DEMOCRÁTICA E RUMOREJANTE DE UMA
NOVELA NACIONAL, EM A BICICLETA QUE TINHA
BIGODES: ESTÓRIAS SEM LUZ ELÉTRICA
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Alice Botelho Peixoto (PUC Minas. CAPES)
Em A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, do escritor angolano
Ondjaki, acompanhamos as peripécias de um menino em busca do seu sonho, ganhar um
concurso nacional de estórias, cujo prêmio é uma sonhada bicicleta colorida.
Surpreendentemente, a novela infanto-juvenil não nos coloca atrás da bicicleta, um sonho
comum a muitas crianças. Vamos guiados pela voz do menino-narrador em busca de uma
ideia para escrever a sua estória. Vamos procurar o segredo nos bigodes do tio Rui, de onde
saem as boas ideias para as boas estórias.
O assunto é introduzido nas primeira páginas, ainda não numeradas, onde lemos um
breve diálogo entre o sobrinho que pede licença ao tio para “falar dos restos de letras que a tia
Alice tira do teu bigode à noite?” (ONDJAKI, 2012)1. Diálogo que é respondido também com
um bilhete, assinado pelo “Tio Manuel também Rui”. O paratexto, na orelha do livro, traz a
seguinte dedicatória do autor, Ondjaki, aos escritores Luís Bernardo Honwana, moçambicano,
e Manuel Rui, angolano: “o corpo deste texto é um abraço de amizade e de saudade”
(ONDJAKI, 2012). A filiação reclamada pelo autor, Ondjaki, às literaturas angolana e
africana é explicita. Na narrativa, associamos logo a dedicatória feita ao escritor angolano
Manuel Rui, ao personagem, “tio Manuel também Rui”, que atua, na trama, também como
escritor. Assim, expectativa e mistério introduzem a estória dessa novela infanto-juvenil.
É em torno da expectativa de situar a novela de Ondjaki dentro do sistema literário
angolano e do mistério desses “restos de letras” a cair do bigode do tio Rui que formulamos
nossa problemática. Concordamos com a interpretação da pesquisadora Inocência Mata que
entende certas narrativas angolanas contemporâneas como a “'escrita da nação', embora não
mais numa perspectiva nacionalista” (MATA, 2008, p. 75). Se sabemos que a temática
1
Todas as citações de A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica se referem à edição de 2012 e
serão indicadas a partir de agora apenas pelo número da página.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
120
nacional está presente na literatura angolana em diferentes épocas, é necessário situar em que
fase do relacionamento, entre a literatura e a nação, está a obra estudada. Para tanto, vamos
pelo caminho escolhido pelo menino-narrador, o da própria escrita. A partir da filiação à
literatura africana e, especificamente, à angolana, declarada na dedicatória, interrogamo-nos
sobre a representação ficcional da nação angolana. Procuramos entender como a língua escrita
se torna a expressão de uma língua nacional, tanto na língua literária do escritor Ondjaki,
quanto na língua que os personagens encenam nessa busca por uma estória. Finalmente,
discutiremos sobre como, no exercício da criação ficcional, se materializa o que Barthes
considera um “rumor da língua” (BARTHES, 1988).
Abordaremos a representação da nação proposta por Ondjaki apoiando-nos nas
reflexões da pesquisadora das literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata que
analisa a “escrita angolana pós-colonial” como “uma escrita de ruptura.” (MATA, 2008,
p.75). Entendemos que o corte com o passado colonial, expresso na literatura angolana
contemporânea, caracteriza-se pelo abandono dos temas relacionados a terra-mãe-Angola por
romper com uma escrita marcada pela utopia de uma nação, que valorizava uma essência
tipicamente angolana. No entanto, a nação independente do jugo colonial não é aquela tão
sonhada. Uma literatura da distopia aparece na pluma principalmente do escritor Pepetela,
marcando a cisão entre a “escritura da terra”, dos poetas da geração da revista Mensagem, e
“escrita da História”, referente à produção angolana pós-colonial. Essa “ruptura” de gerações
literárias se dá mais na abordagem literária das questões relativas à nação do que no assunto
em si. Ou seja, continua-se falando de Angola, do país e do povo, muitas vezes de forma
política, mas não mais de forma idealizada. É nessa linha que identificamos uma temática
nacional na novela em estudo, no intuito de compreender a relação de filiação d'A Bicicleta
ao trabalho do escritor Manuel Rui.
Essa “escrita da nação” traz referências explicitas ao contexto da guerra civil dos anos
80 e 90, como a falta de luz, indicada no subtítulo. Notamos que a guerra faz parte da vida dos
personagens quando o menino-narrador nos conta que “Era hora do noticiário e explicaram
coisas da nossa guerra, falaram também da falta de água e de uma falta de luz que também
poderia acontecer devido aos combates de Cambambe.” (p.43). Apesar da nota de esperança
expressa pelo tom infantil da estória, não há a utopia de outrora. Embora, eventualmente, a
obra permita uma interpretação por um viés ideológico, por exemplo, quando há denúncia de
situações precárias, o que prevalece no texto literário é a apropriação de um dado
acontecimento, contexto extra-textual (histórico ou atual), que se torna ambiente da estória. A
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121
pesquisadora Tânia Pellegrini nos esclarece sobre a relação da arte literária com o real e
explica o realismo como:
um modo de representar as relações entre o social e o pessoal que não se limita a um
simples processo de registro e/ou descrição, pois sempre depende, para sua plena
elaboração, da apreensão das formas de percepção e de representação artística,
mutáveis ao longo da história. Nesse sentido, trata-se de um modo de compreensão
estética do mundo social que o representa em profundidade, e não uma forma de
representação presa apenas a aspectos aparentes ou a possibilidades dadas pela
linguagem em si. (PELLEGRINI, 2009, p.33).
Na trama d'A Bicicleta que tinha bigodes, Ondjaki elabora uma imbricação de
contextos, real e fictício, sugerindo uma espécie de mise en abyme, ou efeito de espelhamento,
onde ficção e realidade estão uma dentro da outra, ao infinito, num movimento em que a
literatura fala dela mesma e a obra se volta sobre seu próprio processo criativo. No geral, o
termo mise en abyme refere-se:
aos casos em que a obra representa no texto a leitura dele próprio ou a escritura dele
próprio. […] A representação pode propor o que é chamado de 'reduplicação
repetida', ou 'ao infinito', na qual o fragmento posto no procedimento de “mise en
abyme” comporta nele mesmo uma representação que entretém uma relação de
similitude com o todo. [...] Oferecendo ocasiões para uma reflexão metadiscursiva, a
obra pode refletir sobre o desenvolvimento complexo que é sua própria elaboração
[…]. Além da dimensão lúdica do processo de mise en abyme, destacamos sua
capacidade de produzir uma infinidade de “trompe-l'œil” […] e podemos dizer que
essas representações espetaculares são sintomáticas de períodos de crise da
representação, ou seja, de momentos onde a mimésis duvida de sua própria aptidão
de falar verdadeiramente do mundo, e se volta para o que toda representação
comporta de ilusão e de enganação. [...] [Essa estratégia de mise en abyme] usa de
procedimentos variados para se situar mais perto do gesto da criação literária,
apreendida no seu movimento de reflexibilidade de um texto que se torna
“metatexto”. (GEFEN, 2003, p. 211-212, tradução nossa).2
É nesse sentido, de um “metadiscurso”, de um “metatexto” e de uma “reduplicação
repetida” que lemos a referida dedicatória, na orelha do livro, ao escritor angolano Manuel
Rui. Nesse fragmento posto no procedimento de “mise en abyme”, o autor Ondjaki que, logo
“[...] on parlera « mise en abyme » pour caractériser tous les cas où une œuvre représente dans le texte sa
lecture ou son écriture […]. À la limite, la représentation peut proposer ce que l’on nomme réduplication
répétée, ou à l’infini, dans laquelle le fragment mis « en abyme » comporte lui-même une représentation ayant
cette relation de similitude avec le tout. […]. En offrant des occasions de réflexion métadiscursive, l’œuvre peut
réfléchir au cheminement complexe dont relève son élaboration […]. Par-delà sa dimension ludique, aptitude à
produire une infinité de « trompe-l’œil » […] on peut avancer que ces représentations spéculaires sont
symptomatiques de périodes de crise de la représentation, c’est-à-dire de moments où la mimèsis se met à douter
de son aptitude à parler véritablement du monde, pour se replier sur ce que toute représentation comporte
d’illusion et de mensonge. […] Jean Ricardou a montré dans les Problèmes du nouveau roman (1967) comment
ce courant littéraire avait usé de procédés variés de mise en abyme pour se situer au plus près du geste même de
la création littéraire, saisie comme dans son mouvement même par la réflexivité d’un texte devenu
« métatexte ».”
2
Nas fronteiras da linguagem ǀ
122
em seguida, coloca ênfase na sua função de escritor, se declara influenciado pelo mais velho:
“tu sabes: (quase) todos nós, dos anos 80, somos um pouco a ficção e a realidade do teu
Quem me dera ser onda”. Ou seja, na novela, quando Ondjaki reitera a estratégia ficcional
de seu mais velho, fazendo com que a sua ficção também encene questões do contexto sóciopolítico angolano, assim como a novela de Manuel Rui, a obra se volta sobre ela mesma. Há
um movimento reflexivo no texto de Ondjaki que trata do fazer literário pela evocação do
escritor Manuel Rui, no paratexto, pela reiteração de sua estratégia, na trama, e pela
encenação da própria criação literária: ao transformar o escritor em personagem e ao usar o
narrador como investigador desse processo de criação literária encenada pelo tio Rui e, pelo
próprio narrador que escreve a sua estória.
Assim, o diálogo com o texto de Manuel Rui, também uma obra literária curta, instiga
a interpretação. Situamos ambos escritores – embora sejam de gerações, idades, diferentes –
no mesmo movimento literário angolano, analisado por Inocência Mata como a “escrita da
História”, o que implica uma relação da obra com o contexto sócio-político angolano.
É neste contexto, de reinterpretação de um corpo nacional que se apresenta
fracturado em termos de memórias que a ficção angolana tem sido expedita no
processo de cerzimento identitário: Pepetela, Boaventura Cardoso, Manuel Rui; mais
recentemente João Melo, Roderick Nehone, João Tala, Ismael Mateus, Ondjaki,
entre poucos outros.” (MATA, 2008, p. 81).
Identificamos, de fato, a permanecia da discussão sobre a identidade nacional
angolana, na novela de Ondjaki. O processo de criação literária, encenado na obra com o
personagem Manuel Rui, concretiza na escrita literária a língua nacional angolana pelo
movimento reflexivo da obra observado anteriormente. Observamos ainda, no processo de
encenação da escrita, a opção pelo sotaque angolano com a incorporação das letras
estrangeiras ao alfabeto português e de palavras locais, como veremos adiante. Por isso, a
figura do escritor Manuel Rui e do personagem em homenagem, o também escritor tio Rui, é
fundamental. O escritor é na estória, e para ela, o catalisador da abstração da língua, aquele
“que é escritor e inventa estórias e poemas que até chegam a outros países muito
internacionais.” (p.9).
Tio Rui é desde o início escolhido como “patrocinador” da empreitada de construção
da estória, que incluí ter a ideia, primeiro, e escrevê-la, em seguida. Há uma ênfase no
carácter inventivo da escrita de uma estória: “para ganhares tens de inventar uma estória.”
(p.11).
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123
- Tou masé3 a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui, aquele que escreve
bué4 de poemas.
- Isso não é batota5?
- Batota porquê?
- E as outras crianças?
- Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua. Eles que
descubram também o escritor da rua deles. (p.11).
No diálogo acima, entre o narrador e o personagem adulto CamaradaMudo, o menino
elege o tio Rui como patrocinador oficial e legítimo da estória que ele quer escrever para
ganhar o concurso, porque o tio Rui é o escritor “minha rua”. Pedir essa ajuda ao escritor
profissional não invalidaria sua candidatura, já que as outras crianças também podem pedir
ajuda ao “escritor da rua deles”. Ao sugerir que existiria um escritor por rua em Luanda, tio
Rui se torna o representante de todos eles por atuar nessa trama. Da mesma forma, a estória
que está sendo contada é representativa, pois é a estória contada entre todas as outras de todas
as crianças que tentam ganhar o concurso. Nessa perspectiva, em que um caso individual
contribui para representar o coletivo, tio Rui sugere ao seu pupilo que escreva a estória dele:
“- Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma estória, é só uma vontade.” (p.
64), diz o sobrinho ao tio, pedindo uma ideia. Ao que o escritor responde: “- Essa é a tua
estória. Podias escrever sobre isso.” (p. 64).
Logo, se aderimos ao jogo sugerido pelo autor que implica uma relação entre o texto e
o contexto, é válida a analogia entre a escrita literária, representada na trama pela busca da
estória para ganhar o concurso, e a função da literatura no processo de escrita da história,
apontada por Inocência Mata. A estudiosa considera que “A actual produção [literária
angolana] persegue, e realiza, um 'inventário de diferenças e conflitos' para se insurgir contra
a privatização da História pelas sucessivas dominâncias” (MATA, 2008, p. 76). A literatura
atuaria, então, na democratização da história contando a estória de cada um, como tio Rui
ressalta: “essa é a tua estória” (grifo nosso). Nesse sentido, a busca do menino por uma ideia
para a estória do concurso representa a busca pela própria história, “contra a privatização da
História”.
Dessa forma, fica explícito que “Tio Manuel também Rui” estabelece uma relação
direta entre a escrita, ficcional e histórica, e a literatura angolana dentro da novela infantojuvenil A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica, quando é claro o jogo entre
ficção e realidade, num processo de auto-referenciação explicado pela mise en abyme. No
No glossário ao fim da obra, Masé: “Mas + é”.
“Bué: grande número ou quantidade”.
5
“Batota: qualquer forma de trapaça, falcatrua”.
3
4
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plano da escrita literária, para compreendermos a deferência do escritor mais novo ao mais
velho, destacaremos algumas características da escrita de Manuel Rui e do seu famoso Quem
me dera ser onda, analisado pela professora Maria Teresa Salgado (2011) à luz do conceito
de carnavalização bakhtiniana, de paródia e de realismo grotesco.
Sobre Manuel Rui, ressaltamos:
Como afirma Luiz Kandjimbo (1997), a ficção de Manuel Rui é marcada por um
realismo social que assegura ao escritor o manejo de instrumentos capazes de tornar
risíveis as situações enfocadas. O riso e a ironia são as armas com que esse escritor
angolano disseca o cotidiano das gentes simples ou critica o modo de vida dos mais
abastados. (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 46).
Escolhemos, pois, entender a novela de Ondjaki, no rastro da escrita de Manuel Rui,
de um “realismo social”, também como “a compreensão estética do mundo social”, no sentido
em que nos fala Pellegrini.
Nesse caminho, somos induzidos a nos questionar sobre a representação literária de
uma situação angolana mais ampla e percebemos em Ondjaki um tom irônico, que pode
provocar o riso por sua dose de ridículo, em certas cenas da novela, como no diálogo seguinte
acerca do atropelamento do sapo Raúl, irmão do sapo Fidel.
- Só uma coisa, camarada General.
- O que foi, camarada Rui?
- O camarada motorista deve sofrer uma atualização.
- Como assim? Uma multa?
- Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa a ser chamado de Dez.
- Isso é que não – o GeneralDorminhoco ficou furioso. - Sapos não contam! Só
pessoas ou cães vacinados.
- Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um sapo chamado Fidel,
não conta para mudar o nome do seu motorista?
Nós, as crianças, rimos baixinho.
O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista passou a chamar-se
Dez. (p. 25).
Nessa cena, os nomes próprios dos sapos Raúl e Fidel, o camarada General que é
GeneralDorminhoco e seu motorista, chamado Nove, que passa por uma atualização nominal,
são uma sátira ao formalismo dos regimes militares, em geral, mas também fazem referência
aos regimes de esquerda adotados em alguns países africanos após a independência, como foi
o caso em Angola. Assim, as referências a um contexto extraliterário são explícitas e várias.
A personagem Isaura, amiga do narrador, marca a outra filiação do escritor Ondjaki
em referência também declarada a uma personagem do escritor moçambicano Luís Bernardo
Honwana. Na Bicicleta, assim como no conto de Honwana, Nós matamos o Cão-Tinhoso,
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Isaura tem uma relação especial com os animais. Na novela angolana, ela é uma menina que
dá nome aos bichos do seu quintal de presidentes ou de pessoas “importantes”, em referência
ao contexto da história mundial recente. Estão presentes o gafanhoto SamoraMachel, a lesma
Senghor, o cachorro AmílcarCabral ou AmílcarCãobral, os também gafanhotos Mobutu e
Khadafi e ainda os papagaios, pai e filho, JãoPauloSegundo e JoãoPauloTerceiro e o gato
Gandhi, antes chamado de Tátecher6.
Os personagens humanos também recebem nomes significativos, como o
CamaradaMudo. Tudo escrito junto, com o “m” de mudo em letra maiúscula, mostrando que
substantivo e adjetivo compõem um nome próprio único. “Camarada” remete a forma de
tratamento utilizada pelo partido-governo socialista, não só de Angola. No caso, o Movimento
Pela Libertação de Angola (MPLA) chegou ao poder com o intuito de construir um país
socialista, de partido único e economia planificada, com a independência em 1975. O partido
está até hoje no poder com o presidente, engenheiro de formação, mas que já não é mais
camarada, Eduardo Santos que foi empossado pela primeira vez em 1979. Logo, um
CamaradaMudo, pelo designação de camarada remete ao contexto econômico e político de
Angola nas primeiras décadas do pós-independência. O adjetivo mudo, que acoplado ao
substantivo forma o nome próprio desse personagem, aparece mais como uma crítica ao
regime do que como uma característica do personagem, denunciando assim esse sistema que
falhou na construção da nação sonhada pelos poetas como o primeiro presidente angolano,
Agostinho Neto. Da mesma forma, não parece gratuito dar nomes de ditadores aos
gafanhotos, pragas em certas regiões africanas, assim como as ditaduras sanguinárias e
silenciadoras. Devemos, pois, atentar para produção de sentido na ficção, a partir das
referencias extraliterárias.
Interessante perceber, nesse contexto, como o status do escritor é visto pelas crianças,
quando o tio Rui vence a discussão anterior contra o GeneralDorminhoco, uma voz anônima
diz: “- Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor. Assim nenhum general vai
querer me enganar – alguém falou.” (p. 26). Manuel Rui, autor de Quem me dera ser onda é,
6
Samora Machel: líder na luta de independência e primeiro presidente de Moçambique, socialista. Léopold
Sédar Senghor: poeta e escritor, desenvolveu o conceito de negritude de Aimé Césaire e foi o primeiro
presidente do Senegal, da independência em 1960 a 1980, também simpatizante do socialismo. Amílcar Cabral:
poeta e líder pela luta de independência da Guiné Bissau e do Cabo Verde, também teve participação no MPLA.
Khadafi: ditador da Líbia, deposto e morto em 2011, tinha sua própria filosofia de governo. Mobutu: um dos
governantes mais ricos do mundo, apoiado pelos EUA, deu o golpe militar que tirou do governo Patrice
Lumumba. O ditador Mobutu nomeou o antigo Gongo belga de Zaire. Atualmente, chama-se República
Democrática do Congo. João Paulo II: papa polonês de 1978 a 2005. Gandhi: líder pacifista na luta de
independência da Índia. Margaret Tatcher: primeira ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990, conhecida como a
dama de ferro.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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de fato, escritor e advogado em Luanda. Mais uma vez, Ondjaki reforça o jogo entre ficção e
realidade na sua obra.
A aproximação com a novela de Manuel Rui se dá, assim, na manifestação literária de
um olhar crítico da realidade social e política de Angola. Além disso, em Ondjaki, as
situações infantis trazem para perto do leitor, numa primeira instância, um cotidiano lúdico,
marcado pela esperança, mesmo que infantil, mas sem a utopia de outrora. Mas não só, pois
aqui o lúdico da invenção infantil se transforma em crítica e denúncia social, como
observamos no trecho a seguir:
Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as primeiras luzes da manhã.
Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas
frases dos poetas, “luz fresca”, como a água da Avó regar as plantas verdes de
manhã, isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a minha Avó, que é muito
engraçada, regava mesmo assim.
- Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na barragem, Avó?
- Assim mesmo.
- Tipo que és do teatro dos jardineiros?
- Tipo – a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a mangueira sem água
nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia anterior ou quê.
- Assim estás a regar como, Avó?
- A regar só. As plantas sabem.
A regar só. A Avó ficava bué de tempo a “regar só”. Mesmo deixava passar esse
tempo com se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num pedido de pingos.
(p. 39-40).
“A regar só”. A economia de palavras provoca um efeito lírico na cena, pois faz da
pequena expressão uma frase fértil de sentidos, aludindo a significados possíveis que trazem
esperança. Embora o gesto em si não provoque efeito algum, regar sem água não abastece as
plantas, ele enche a situação da falta de água de esperança ao se transformar numa espécie de
oração escondida, como confirma o menino-narrador, ao contar: “E olhava o céu num pedido
de pingos.” E ao perguntar: “- Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as
torneiras?” (p. 40).
Ainda nessa cena, o humor do menino-narrador imprime um tom bem humorado à
narrativa, ao instigar o riso numa situação trágica de falta d'água. A narração expõe aspectos
cômicos do cotidiano, apontando para o fingimento óbvio, mas também para o fingimento
escondido na rotina, e denuncia, assim, o modo disfarçado de lidar com as práticas religiosas
tradicionais, muitas vezes, perseguidas pelos regimes dos generais e camaradas. Abusando do
que pode ser engraçado, o narrador ressalta com ironia a confusão de valores na época da
guerra civil, ao terminar dizendo que seria melhor que a Avó pedisse água à companhia de
abastecimento “na conta de seres mais-velha respeitada”, quando sabemos que “ser mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
127
velho” é um status colocado em xeque desde a época da colonização. Logo, a cena representa
com justeza o tom impresso ao longo da obra.
A novela encena certos costumes angolanos, valendo-se do passado recente do
período de guerra civil. A busca pela ideia para escrever a estória do concurso aparece como a
força motriz da trama e representa o processo criativo da escrita literária. “Escrever a estória,
com um bocadinho de esforço, talvez dois ou três podem conseguir, mas a ideia é como uma
raiz invisível que faz crescer a planta.” (p. 44). A literatura toma parte na escrita de uma
história ainda não registrada e mais democrática, ao encenar a própria escrita de uma estória
que referencia o contexto de construção da nação angolana.
Assim, para entendermos o lugar da escrita e da linguagem literária como
concretização de algo que é nacional, é fundamental atentarmos para o lugar ocupado pelo tio
Rui e pela própria escrita na trama. Tio Rui traz consigo, em seus bigodes, a escrita. Por seu
papel, ele é admirado pelas crianças que demonstram curiosidade e encantamento com a
profissão de escritor, aquele que tem ideias e escreve. A visão das letras caindo concretiza de
forma lúdica, para as crianças, o processo criativo: ter ideias, pensar, e escrevê-las,
comunicar. A escrita se materializa ao sair dos bigodes do mais velho, colocando o gesto da
criação literária mais próximo das crianças, dos leitores, e do próprio texto que fala dele
mesmo, como explicado anteriormente sobre a estratégia de mise en abyme.
A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece que sorria
devagar, eu olhava a Isaura que olhava para eles e eu olhava de novo: na outra mão
dela, a tia Alice tinha uma pequena caixa de madeira, com desenhos que eu já vi
num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio Rui. Ela
esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo acontecia: pequenas letras caíam do
bigode para a caixa, eram vogais de “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, mas também sobras de
“k” e “w”, alguns “t” e dois “h”. Ela escovava e a caixa guardava aquelas letras
soltas. Parece que aquilo dava comichão, o tio Rui mexia os lábios, queria tocar no
bigode mas a tia Alice não deixava.
- Isso é mesmo possível ou é feitiço?
- Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de escritor – a Isaura falou
baixinho. (p. 48).
Nesse momento, a linguagem é percebida como algo material pelas crianças, quando
elas espreitam os “restos de letras” caindo do bigode do tio Rui. A abstração de uma língua
nacional se concretiza com a visão dessas letras caindo: “eram vogais” da língua portuguesa,
“mas também sobras de 'k' e 'w'”. Essas últimas, incorporadas ao alfabeto da língua
portuguesa e usadas na grafia de algumas palavras do português com sotaque angolano,
constroem a “nossa língua toda desportuguesa...”, segundo Ondjaki, na orelha do livro. E a
criação literária acontece.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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Considerações finais
Bakhtin associa à composição do gênero romance, o trabalho com uma língua nacional
única que é “estratificada” na e para a composição do romance. Ora, em certos romances
angolanos, que apresentam uma temática nacional, como n'A Bicicleta que tinha bigodes,
percebemos que essa estratificação atende não apenas à formação de um contexto social ou de
um personagem, como explica Bakhtin, mas associa a linguagem à formação de uma língua
nacional própria e diversificada. O sotaque português angolano, constituído por ks, ws etc
torna-se a língua nacional angolana formada com o sotaque das línguas africanas.
Essa língua nacional angolana torna-se rumorejante, no sentido de Roland Barthes, ao
incorporar em si as marcas das línguas africanas. No silêncio da escrita e da leitura, o “rumor
da língua” é introduzido pelos sinais gráficos, das letras que caem na caixa mágica e na
incorporação das palavras angolanas listadas no glossário. Mas é quando o mais velho dá
licença ao mais novo para nos contar a estória que podemos exemplificar o pensamento do
semiólogo e crítico literário. Respondendo à pergunta do sobrinho colocada no início da trama
e desse breve estudo, tio Rui diz: “Podes, com palavras pode-se mesmo traduzir a voz do
silêncio. Com bigodes e a fazer de guiador de uma bicicleta que desce para cima sem travões.
Podes, sim senhor, falar dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear.”
Dessa forma, o rumor está concretizado na literatura como a tradução de uma “voz do
silêncio”, quando “uma bicicleta que desce para cima sem travões”. A língua se torna
rumorejante ao assumir “esse não-sentido que faria ouvir ao longe um sentido agora liberto de
todas as agressões de que o signo, formado na 'triste e selvagem história dos homens', é a
caixa de Pandora. É sem dúvida uma utopia; mas a utopia é que muitas vezes guia as
pesquisas de vanguarda.” (BARTHES, 1988, p. 94).
Para Barthes, a liberdade de sentido que um signo poderia assumir é uma utopia. No
entanto, é justamente a utopia que guia “as pesquisas de vanguarda”. Assim, “pesquisas de
vanguarda”, guiadas pela utopia, seriam capazes de libertar o sentido. A literatura, enquanto
forma de arte, faz essas “pesquisas de vanguarda” e liberta o sentido para “com palavras
traduzir a voz do silêncio”. Na estória d'A Bicicleta que tinha bigodes, o sonho e o desejo
guiam a escrita. O menino-narrador persegue as letras, a palavra, a linguagem e finalmente, a
escrita, imbuído do sonho de ganhar a bicicleta, para, ao libertar a escritura (BARTHES,
1998, p. 50), encontrar sua língua nacional.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
129
Percebemos, assim, na narrativa de Ondjaki, a encenação de um jogo de
representatividades. Primeiro, o mote da trama é a busca de uma ideia para a estória que deve
ganhar o concurso nacional. O concurso nacional elege a melhor estória, entre todas as outras,
e premia o ganhador com uma bicicleta nas cores da bandeira angolana. Em seguida, dentro e
fora da narrativa, temos um escritor, aquele que tem as ideias e escreve as estórias, escolhido
para representar todos os outros: o tio Rui da “minha rua” e o Manuel Rui, como o escritor
angolano, representante desta literatura. Finalmente, metaforização e metalinguagem ficam
claras na novela, quando os escritores, Manuel Rui e Ondjaki, se tornam personagens para
encenar a escrita: uma estória, a de uma rua, para representar todas as outras, de todas as
outras ruas, sendo escrita para falar da escrita e da literatura.
Logo, a novela infanto-juvenil de Ondjaki escreve, em língua nacional, a
representação literária da nação angolana. E age de forma democrática na literatura e na
históira, pois “Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, e aquela caixa tinha só
restos de palavras, bocadinhos de sonhos, letras que nunca conseguiram ser palavras nem
mesmo frases de o tio Rui escrever os livros dele.” (p. 39).
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética. São Paulo: Unesp, 1993, p. 71-163.
BARTHES, Roland. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
HONWANA, Luís Bernardo. Nós matámos o Cão-Tinhoso. Porto: Edições Afrontamento,
1998.
FONSECA, Maria Nazareth Soares; MOREIRA, Terezinha Taborda. Panorama das literaturas
africanas de língua portuguesa. In: Cadernos Cespuc de pesquisa, Belo Horizonte, PUC
Minas, n. 16, p. 13-69, set. 2007.
GEFEN, Alexandre (org.). La mimèsis. Paris: GF Flammarion, 2003.
MATA, Inocência. Narrando a nação: da retórica anticolonial à escrita da história. In:
PADILHA, Laura Cavalcante; RIBEIRO, Margarida Calafate. Lendo Angola. Lisboa: Edições
Afrontamento. 2008, p. 75-86.
ONDJAKI. A Bicicleta que tinha bigodes: estórias sem luz elétrica. Rio de Janeiro: Pallas,
2012.
PELLEGRINI, Tânia. Realismo: a persistência de um mundo hostil. In: Revista brasileira de
literatura comparada, n. 14, p. 11-36, 2009. Disponível em:
http://www.abralic.org.br/revista/2009/14/63/download. Acesso em 10 de julho de 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
130
RUI, Manuel. Quem me dera ser onda. União dos Escritores Angolanos, 1989.
SALGADO, Maria Teresa. Carnavalizar é preciso: uma leitura da paródia em “Quem me dera
ser onda”. In: Mulemba, Rio de Janeiro, UFRJ, v. 1, n. 5. p. 67-78, dez. 2011. Disponível em:
http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_5_5.php
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
131
A PRODUÇÃO DE TEXTOS EM SALA DE AULA: UM
PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO
[Voltar para Sumário]
Aline Peixoto Bezerra (UERN)
Introdução
O trabalho com a língua materna em sala de aula, conforme postulam os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1998), deve ter como base o texto, o qual proporcionará ao aluno o
contato direto com as mais variadas situações concretas de uso da língua. O ensino da língua
esteve diretamente ligado ao tradicionalismo: uso do texto como pretexto para apresentar os
aspectos gramaticais, o ensino descontextualizado e distante da realidade dos alunos; na
atualidade, ainda conforme os PCNs (1998), as propostas de transformação das práticas de
ensino se consolidam no uso da linguagem, por conseguinte começa-se a levar em
consideração fatores que possibilitem ao alunado não só interagir diretamente com o objeto
estudado como questionar a realidade social em que está inserido.
Para tanto, tornaram-se objeto de estudo deste trabalho os textos produzidos pelos
alunos do 7º ano do Ensino Fundamental II durante as oficinas de leitura e produção de texto.
Fizemos um trabalho intervencionista com um grupo de 40 alunos do sétimo ano do Ensino
Fundamental II na Escola Estadual Centenário de Mossoró/RN. Para tanto, o nosso corpus é
constituído de um texto – histórias em quadrinhos – produzidos pelos alunos durante as
oficinas de produção textual; a coleta dos dados foi feita paulatinamente, durante 15
encontros, os quais tinham duração de duas horas e meia (referente a três hora/aula) no turno
vespertino de novembro a dezembro de 2014; esse espaço foi usado para a aplicação dos
questionários, realização das oficinas de produção de texto, aplicação das atividades de
retextualização e de reescrita textual. Escolhemos, por sua vez, analisar aleatoriamente uma
produção para que os resultados não tivessem interferências preestabelecidas. Trabalhamos
com apenas um texto em um universo de 20 em virtude do tempo e do espaço que este artigo
requer.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
132
Usamos metodologicamente o método qualitativo – interpretativo e intervencionista.
Para respaldar a pesquisa faremos uma abordagem bibliográfica dos principais estudiosos do
tema proposto, seguidamente, apresentaremos as oficinas e o passo a passo da intervenção
feita junta ao alunado. A última etapa tem caráter interpretativo – analisamos os textos finais
dos alunos. Dentre os vários gêneros com os quais lidamos no nosso cotidiano escolhemos
para trabalhar com o alunado as narrativas de aventura e a história em quadrinhos de modo
que possibilite ao aluno transitar entre esses dois gêneros retextualizando-os.
Há nas atividades de retextualização um aspecto importantíssimo a ser destacado, pois
para transmitirmos de uma modalidade textual para outra, segundo Marcuschi (2010),
devemos inevitavelmente passar pelo processo de compreensão dos textos, dos gêneros
retextualizados. Portanto, o processo de retextualização não é uma passagem suspostamente
artificial de um gênero em outro, mas um processo de conhecimento e compreensão
aprofundados acerca dos gêneros que passam pela transformação textual. Neste sentido,
escolhemos falar sobre a retextualização, pois consideramos que, ao retextualizar, o aluno
desenvolve várias habilidades textuais, entre elas, destacamos as atividades de leitura,
compreensão e escrita.
Por conseguinte, este trabalho surgiu das inquietações advindas do contexto da sala de
aula, em especial nas aulas de Língua Portuguesa, pois os alunos demonstravam dificuldades
em produzir textos, esquematizá-los, entendê-los. Diante dessa constatação, este trabalho
apresenta a seguinte questão de pesquisa: Qual o lugar da retextualização na sala de aula de
Língua Portuguesa como uma ferramenta eficaz às aulas de leitura e produção de texto?
O presente trabalho está dividido em três partes que estão assim constituídas: na
primeira parte fazemos um aparato teórico acerca das principais teorias linguísticas sobre os
gêneros textuais e os processos de retextualização, na segunda descrevemos a metodologia
utilizada para a coleta de dados, as etapas de produção, bem como os sujeitos envolvidos; na
terceira analisaremos o texto produzido pelos alunos em dupla.
A retextualização como essencial à leitura e produção de textos
Consideramos o trabalho com a retextualização uma atividade que conduz o alunado à
leitura, compreensão e produção de textos, de modo que lhes oportunizamos elaborações
textuais que vão além da tipologia clássica (narração, dissertação e descrição). Nos contextos
mais atuais, lidamos com a emergência da informação, com alunos mais dinâmicos, modernos
e ligados às novas tecnologias; com isso observamos que as práticas de ensino ligadas à
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
133
redação (dissertação) escolar, texto como pretexto para o ensino da gramática, já não
satisfazem a esse novo contexto social e educacional.
Nos gêneros textuais, dispomos de uma gama de possibilidades para um ensino mais
dinâmico e eficaz e, por meio desses, temos a retextualização, procedimento de grande valia,
que permite o trabalho com gêneros diversos que consiste em transmudar um texto em outro,
seja oral ou escrito. Mais precisamente, a retextualização configura-se, para Dell’Isola (2007,
p. 36), na “refacção ou a reescrita de um texto para outro, ou seja, trata-se de um processo de
transformação de uma modalidade textual em outra, envolvendo operações específicas de
acordo com o funcionamento da linguagem”. Logo, é a mudança do gênero, trata-se de um
processo minucioso, de muito rigor, no qual deverão ser levados em consideração vários
aspectos dos gêneros e, por isso, caracteriza-se como um trabalho relevante para as aulas de
língua materna.
Marcuschi (2010, p. 48) apresenta um quadro de possibilidades de retextualização: 1.
Fala → escrita; 2. Fala → Fala; 3. Escrita → Fala; 4. Escrita → Escrita. Para o autor,
retextualizar é rotineiro, pois já lidamos o tempo inteiro com essas reformulações na nossa
sociedade, no entanto, não se configuram como atividades mecânicas. E é a respeito da
retextualização, especificamente na modalidade da escrita para a escrita, que constituímos o
nosso trabalho intervencionista.
A retextualização tem se mostrado um excelente mecanismo para o trabalho com os
gêneros, pois a tarefa de transformar um texto escrito em outro demanda uma série de
atividades que levará o aluno a um processo pormenorizado dos textos em transformação;
nesse procedimento transformacional, o alunado, inevitavelmente, compreenderá as condições
de produção e recepção dos textos.
Com o recurso da retextualização, a elucidação do texto torna-se muito importante, um
dos primeiros objetivos a ser vislumbrado pelo leitor é o da compreensão textual, tendo em
vista que sem essa se compromete o desenvolvimento da atividade.
As atividades de retextualização englobam várias operações que favorecem o
trabalho com a produção de texto. Dentre elas, ressalta-se um aspecto de muita
importância que é a compreensão do que foi dito ou escrito para que se produza
outro texto. Para retextualizar, ou seja, para transpor de uma modalidade para outra
ou de um gênero para outro, é preciso, inevitavelmente, que seja entendido o que se
disse, ou quis dizer (...). Antes de qualquer atividade de retextualização, portanto,
ocorre a compreensão. (DELL’ISOLA, 2007, p.14).
Essa mesma questão importantíssima na retextualização – o processo da compreensão
– também é mencionada por Marcuschi (2010, p. 47), “pois para dizer de outro modo, em
Nas fronteiras da linguagem ǀ
134
outra modalidade ou em outro gênero o que foi dito ou escrito por alguém, devo
inevitavelmente compreender o que foi que esse alguém disse ou quis dizer”. Portanto, nessa
atividade de transformação textual, o aluno é instigado primeiro a compreender o texto base.
A manutenção do tema é outro ponto a ser preservado no durante o processo da
retextualização, “É importante observar que o gênero escrito, a partir do original, deve
manter, ainda que em parte, o conteúdo do texto lido”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 46). Com
relação ao falseamento, Marcuschi (2010, p. 102) apregoa que é bastante comum, “trata-se de
uma espécie de acréscimo, não de um fenômeno linguístico e sim da falsidade dos
enunciados”, no entanto, o estudioso ainda destaca que alguns falseamentos no processo da
retextualização podem ser considerados muito mais como interpretação do texto base do que
mesmo como um falseamento.
Sem dúvidas, o trabalho com a retextualização é desafiador, entretanto, como explica
Dell’Isola (2007, p. 27), é uma atividade muito produtiva em sala de aula, leva os alunos a
pensarem (forma, função, elementos que caracterizam os gêneros, linguagem, veiculação,
dentre outros) sobre gêneros sugeridos pelo professor; destarte, “a retextualização não deve
ser vista como tarefa artificial que ocorre apenas em exercícios escolares, ao contrário, é fato
comum na vida diária. Ela pode ocorrer de maneira bastante diversificada”. A autora ilustra e
defende que o nosso alunado no dia a dia encontra-se diante de vários processos de
retextualização, com isso torna-se importante a mobilização da escola em começar a pensar na
eficiência das atividades envoltas com a retextualização; e justamente por ser familiar ao
aluno a inserção da retextualização é bem aceita por esse público, favorecendo as práticas
docentes durante todo o processo da retextualização.
O professor, por sua vez, deve orientar e acompanhar cada etapa da retextualização,
conduzir os alunos a refletirem sobre os gêneros que serão produtos da escrita. Destacamos a
importância da retextualização de gêneros escritos, uma vez que envolve o aluno na prática de
leitura, escrita e compreensão textual e, ainda, na mudança de um texto escrito em outro, com
o desafio de manter o sentido original e alterar o formato para o novo gênero retextualizado.
Essa importante atividade envolve aspectos complexos com relação ao estudo e compreensão
de texto; sem dúvidas, com um trabalho contínuo em sala de aula, os alunos terão mais
condições de refletir sobre o objeto estudado, sobre si e sobre a sociedade.
Nessa constante, mostraremos o resultado de um trabalho intervencionista feito numa
escola de ensino fundamental da rede pública de Mossoró/RN, nos próximos capítulos. E para
conduzir a nossa análise estamos no embasando nas teorias de Marcuschi (2010) e Dell’Isola
(2007).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
135
Fases e Sujeitos da Pesquisa
O público alvo da intervenção são alunos da rede pública de ensino, oriundos, em sua
maioria, da periferia da cidade. Na escola, encontrávamos alguns alunos com dificuldades
básicas de ler e escrever, medo de se socializar com os demais colegas, a ausência durante
semanas à escola. Mas, esses fatores não eram característica dominante, pois a escola era
muito reconhecida na cidade como organizada, rígida, pontual com a sua missão, há cinco
anos se destacava em primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
(IDEB) municipal e, com isso, normalmente, os estudantes que a escolhiam eram aqueles que
estavam interessados em adquirir conhecimentos.
A escola, por sua vez, oferece um espaço físico muito bom, com salas de aula bem
iluminadas e ventiladas, carteiras em bom estado, quadro a lápis, materiais disponíveis –
como livros, folhas, tesoura etc. –, merenda, uma equipe pedagógica muito presente e disposta
a ajudar, tínhamos um auditório que estava em reforma, portanto, não havia como utilizá-lo
para a apresentação dos textos, assim, todas as oficinas e a culminância do projeto
aconteceram nas salas de aula da escola.
Para dar início à pesquisa, aplicamos um questionário com 40 (quarenta) alunos da
escola que escolhemos para efetivar o projeto com o objetivo de averiguarmos vários
elementos que seriam importantes antes de iniciarmos a intervenção, em especial, diagnosticar
o perfil dos alunos e também para nos auxiliar na escolha dos gêneros a serem
retextualizados. Logo após observação do questionário, fizemos a escolha dos gêneros
(narrativa de aventura e história em quadrinhos) e seguidamente iniciamos as oficinas com a
turma, as quais seguiram respectivamente a seguinte formatação:

Oficinas com o gênero narrativa de aventura
1.
Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula narrativas de aventuras
(foi feito um trabalho socializador);
2.
Foram apresentadas outras narrativas de aventuras para os alunos com o
objetivo de interpretá-las, discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero;
3.
Os alunos foram estimulados a produzir narrativas de aventura (essas histórias
poderiam fazer intertextualidades com os heróis da antiguidade como também com os
contemporâneos);
Nas fronteiras da linguagem ǀ
136
4. Os textos produzidos foram entregues à professora, que fez as devidas observações
necessárias para dar continuidade às atividades; destacamos que nesse momento os textos
também passaram pela reescrita textual.

Oficinas com o gênero história em quadrinhos (HQs)
1.
Os alunos foram motivados a trazer para a sala de aula histórias em quadrinhos
(foi feito um trabalho socializador);
2.
Socialização das histórias em quadrinhos lidas e comentadas pela turma;
3.
Foram apresentadas outra HQs à turma com o objetivo de interpretá-las, ,
discuti-las e aprofundar o conhecimento sobre o gênero.

Retextualização:
1.
Foi proposto um trabalho de transformação da narrativa inicialmente
produzida para uma história em quadrinhos;
2.
A produção dos alunos foi analisada pela professora, a qual passou novamente
pelo processo de reescrita textual (a professora intermediou a formatação das falas, a estrutura
e disposição do texto final);
3.
Por fim, foi feita a escrita final (retextualização) das HQs.
As produções de textos na sala de aula – análises das atividades de retextualização
O corpus desta pesquisa é constituído por uma HQ produzida pelos alunos do sétimo
ano do Ensino Fundamental, a escrita aconteceu no decorrer das oficinas dadas pela
professora intervencionista da turma. Nesta análise , de acordo com o que já mencionamos,
verificamos os processos apontados por Dell’Isola (2007): a Retextualização, a Identificação
e a conferência, nos textos retextualizados pelos alunos. Destacamos que esses fatores durante
a observação dos textos não são mostrados respectivamente. Apresentamos a definição destes
referendados em Dell’Isola (2007), vejamos:
Retextualização: escrita de um outro texto, orientada pela transformação de um
gênero em outro gênero; Conferência: verificação do atendimento às condições de
produção: o gênero textual escrito, a partir do original, deve manter, ainda que em
parte, o conteúdo do texto lido; Identificação, no novo texto, das características do
gênero – produto da retextualização. (DELL’ISOLA, 2007, p. 42).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
137
E com base nesses conceitos trazidos pela autora apontaremos nas produções textuais
dos alunos a efetivação ou não dos pontos mencionados, optamos por fazer recortes da HQ,
em virtude do seu tamanho. E para preservar a identidade dos alunos escolhemos mencionar
os autores como dupla 1 (D1). Os alunos escolheram escrever a Narrativa de aventura sobre
um dos mais clássicos personagens da literatura brasileira: Dom Quixote (personagem criado
por Miguel de Cervantes), o lendário Dom é o protagonista/herói da história que tem como
título Sancho o galo Dom Quixote e a galinha. Vejamos a narrativa:
Ao longo daquele dia, Dom Quixote viajou inclinado sobre a cabeça do seu cavalo, porque os ossos lhe
doíam tanto que não podia endireitar-se. Ao entardecer, apareceu na beira da estrada uma venda, que era o lugar
onde se hospedavam os viajantes, e então Sancho disse:
- Alegre-se, Senhor, que aí adiante vejo uma venda.
Dom Quixote levantou a cabeça, olhou ao longe e respondeu:
- Essa não é uma venda, mas um castelo.
Estou lhe dizendo, senhor, é uma venda.
- É um castelo!
- É uma venda.
- Um castelo.
Passaram nisso um tempão, sem que nem Dom Quixote nem Sancho Dessem o braço a torcer. Quando
chegaram a venda estavam abarrotados, mas assim mesmo o vendeiro arrumou um par de camas num palheiro
para que pudessem passar a noite. Antes de sair Sancho bebeu uma caixa de vinho e adormeceu que nem uma
pedra.
Em compensação, Dom Quixote continuou acordado durante muito tempo, porque havia começado a
pensar que naquele castelo viva uma linda princesa.
“Com certeza apaixonou-se por mim ao me ver chegar” dizia isso a si mesmo, “e essa noite virá
confessar-me o seu amor. Mas não posso a responder, porque meu coração pertence a Dulcínea”.
De tanto pensar, passou mais de três horas de olhos abertos que nem coruja.
De repente, ao bater a meia noite, ouviram-se passos além da porta do palheiro e Dom Quixote
murmurou: “aí meu Deus a princesa”.
Mas ao abrir a porta só o que ele viu foi uma simples e pequena galinha com uma simples coroa no
pescoço. Ele achou a coroa que a galinha tinha muito bonita e a partir dela ele se lembrou de Dulcínea.
Com carinho e voz mansa Dom Quixote chamou a galinha dizendo:
- Vem cá querida galinha...
Dom Quixote não pensou duas vezes e pulou em cima da galinha e ela aperreada fazia: cóco cóco có
Mas Dom Quixote de tanto tentar conseguiu segurar a galinha. Ao amanhecer Dom Quixote mandou
uma carta com uma coroa para Dulcineia; dias depois ela devolveu a coroa com uma carta dizendo que havia se
casado.
Certo dia Sancho saiu para alimentar o seu cavalo, e Dom Quixote ficou sozinho com a galinha, sem ter
o que fazer Dom Quixote resolveu falar com ela, no meio da conversa ele tropeçou e acabou caindo no chão
encostando sua boca no bico da galinha.
A galinha se transformou em uma princesa, mas devido o encanto ao invés de cabelos ela tinha penas,
Dom Quixote logo a pediu em casamento, mas ela disse que só aceitaria se casar se ele a beijasse novamente
para ela voltar a ser galinha. Ele aceitou a proposta e a beijou. Mas com o beijo os dois viraram galinha e galo.
Ao voltar Sancho encontrou a galinha e o galo, estranhou a situação, procurou Dom e logo percebeu o
que tinha acontecido. Sancho ficou com a galinha e o galo e juntos viveram felizes para sempre viajando pelo
mundo e conhecendo novos lugares.
Podemos perceber a intertextualidade do texto criado pela dupla 1, alunos de trezes
anos de idade, com partes da história do livro de Cervantes, sem dúvidas, com essa referência,
podemos afirmar que os alunos tiram proveito das oficinas, nas quais a professora
Nas fronteiras da linguagem ǀ
138
intervencionista leu trechos e comentou sobre a construção das narrativas com base na história
de Cervantes. Considerada um dos elementos da textualização, a intertextualidade, é o
fenômeno pelo qual, considera-se que em um texto está inserido ou faz referência a outro
texto seja para validar o que “o novo dito”, seja para levar o humor, ou mesmo criticar; o que
destacar-se é que o autor do texto lança mão de um texto ou conceito social existe para
re/formular o seu dito. Assim, “a intertextualidade é, pois, uma das propriedades constitutivas
de qualquer texto, ao lado da coesão, da coerência, da informatividade, entre outras”.
(ANTUNES 2009, p.164)
O texto, por sua vez, foi reconstruído e apresenta um final bem diferente da história do
livro, segue a formatação de uma narração e cumpre, impreterivelmente, ao que foi proposto:
criar uma Narrativa de aventura. Essa narrativa serviu de texto base para a retextualização em
HQ.
No tocante a produção final (HQ), averiguamos que se trata de uma efetivamente de
uma história em quadrinhos, pois o texto segue o formato em quadros sequenciados um após
o outro com imagens ilustrativas, balões, personagens, fatos sobrepostos entre si narrando
uma história ficcional coerente.
Cereja e Magalhães (2007) apresentam o conceito de
quadrinhos como uma arte de sequências, com desenhos ilustrativos que são usados para
narrar uma história, “sempre que duas imagens são desenhadas uma após a outra, criando uma
sucessão de quadros, uma sequência gráfica, trata-se de uma história em quadrinhos”; à vista
disso identificamos no texto final características pertencentes às HQs em geral.
Vejamos como a D1 transformou essa narração em uma HQ, a dupla inicia o texto
com uma legenda na qual relata a viagem de Dom Quixote, a legenda é um recurso muito
usado nas histórias em quadrinhos, caracteriza-se por ser um texto relativamente pequeno que
serve para informar alguma coisa ou para ligar os quadrinhos entre si. Esse recurso foi
intensamente utilizado na história analisada, acreditamos que isso se deve ao fato de que o
texto base é uma narração com um narrador em terceira pessoa e possivelmente, os alunos
tiveram dificuldades de transpor o discurso indireto em direto, logo usaram o recurso para
deixar os quadrinhos interligados como também para deixar a história mais coerente. Mesmo
assim, conferimos na HQ a manutenção do tema colocado no texto base.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
139
Seguem a história em quadros com balões que é um dos elementos característicos dos
quadrinhos, os balões podem apresentar diversos formatos Cereja e Magalhães (2007)
apresentam alguns formatos que podemos seguir: balão-grito, balão-uníssono, balão-imagem,
balão-pensamento, balão-fala e outros. O balão-fala é o mais comum de todos, na HQ
observamos que é este tipo de balão que prevalece na produção. Destacamos dois balões
usados na história, o balão-grito e o balão-pensamento, pois observamos que a dupla
conseguiu compreender os elementos próprios da HQ colocando-os em prática. Ocorreu no
produto final da D1 a transformação de um gênero textual escrito em outro, portanto a
retextualização aconteceu efetivamente.
Na HQ também encontramos o uso de onomatopeias – as quais representam o som das
imagens e interjeições – expressões que indicam estados emotivos. Vejamos:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
140
A dupla também fez uso do recurso do balão-pensamento. Vejamos:
A HQ feita da D1 atende aos três critérios elencados por Dell’Isola (2007), portanto o
texto produzido pelos alunos com base na Narração Sancho o galo Dom Quixote e a galinha
apresenta-se como uma tarefa realizada com êxito. Nessa atividade os alunos demonstraram
talentos em escrever, desenhar, sintetizar o assunto, escolher os pontos mais relevantes para a
HQ, seleção da linguagem própria ao público alvo da história, escolha humorizada de recontar
uma história cânone na sociedade; dentre outras habilidades que sem dúvidas os alunos
desenvolveram durante a feitura do texto final e, concluem a HQ mantendo o assunto da
narrativa inicial.
No final da HQ encontramos a palavra fim, algo muito comum nas mais consagradas
histórias em quadros. Observemos:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
141
Dessa forma, no decorrer da retextualização os alunos refletem acerca dos elementos
dos gêneros e, “em todas as etapas está prevista uma reflexão de como a sociedade produz e
consome textos de diversas naturezas. (...) Dessa forma, estarão estabelecendo relações
existentes entre a linguagem e as estruturas sociais”. (DELL’ISOLA, 2007, p. 81). O espaço
da retextualização, na sala de aula, se mostra como um recurso auxiliador no
desenvolvimento/aprimoramento de habilidades e competências dos alunos na escola e na
sociedade, o faz refletir o gênero, a produção em si, como também a sociedade e os meios de
produção desta.
A prática desafiante da retextualização leva o alunado não só ao conhecimento
sistemático da língua, mas também aos seus usos, de como os sujeitos manifestam a
língua/linguagem por meio de textos na sociedade. Estamos inserindo-os nas mais diversas
modalidades da língua, dos gêneros escritos ou mesmo orais – dependendo da condução e
escolha dos gêneros trabalhados durante um processo de retextualização na escola (um
professor pode, por exemplo, trabalhar com textos orais), ampliando a visão dos alunos sobre
as práticas sociais, re/significando as produções dos discursos/textos veiculados.
A retextualização na sala de aula como bem fala Dell’Isola(2007) é desafiante, e
trabalho com o gênero de forma mais participativa promoveu-nos exercitar e conhecer mais
sobre a língua/linguagem, por isso destacamos a relevância dessa atividade em sala de aula.
Não vamos furtar a responsabilidade da escola em promover o conhecimento, pois “para boa
parte das crianças e dos jovens brasileiros, a escola é o único espaço que pode proporcionar
acesso a textos escritos”. (PCN, 1998, p. 25). Portanto, cabe à escola propor atividades
didáticas de modo que venha oportunizar a construção do saber.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
142
Referências
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.
DELL’ISOLA, Regina. Retextualização de Gêneros Escritos. Rio de janeiro, Lucerna 2007.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização, 10. Ed.
São Paulo: Cortez, 2010.
CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. 3.ed. reform. São Paulo: Atual,
2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
143
A PALATALIZAÇÃO DAS OCLUSIVAS ALVEOLARES E A
VARIÁVEL IDADE EM MACEIÓ - AL
[Voltar para Sumário]
Almir Almeida de Oliveira (UFAL)
Introdução
Este trabalho tem como proposta refletir as correlações existentes entre a palatalização
das oclusivas alveolares [t] e [d] em contextos fonológicos seguintes à vogal anterior alta [i] e
a variável idade em Maceió, o que representa um fenômeno bastante característico dessa
região e se contrapõe, por exemplo, as palatalizações realizadas no Sul e Sudeste do Brasil,
que apresentam a oclusiva em posição precedente à vogal alta. Assim, e com base nas
orientações
teóricas
e
metodológicas
da
Sociolinguística
Variacionista
(LABOV,
2008[1972]), busca-se entender os percursos históricos que tem sofrido este fenômeno
linguístico, uma vez que a maior frequência de sua realização por mais jovens ou por mais
velhos pode indicar que a variável linguística é sensível à idade e, consequentemente, estar
passando por um processo de extinção, estabilização ou expansão.
1. Sociolinguística Variacionista
Desde que a sociolinguística surgiu nos EUA, nos anos 1960, as discussões acerca da
variação da língua ganharam espaço, pois, por milênios as questões variáveis da língua
receberam unicamente um tratamento filosófico ou partiam de uma observação empírica sem
rigor científico. Em 1972, William Labov publica Padrões Sociolinguísticos, o que representa
a consolidação de um ramo da sociolinguística que trata dos fenômenos de variação e
mudança linguísticas. Resumindo uma série de pesquisas realizadas nos últimos anos, a obra
mostra que os processos de variação/mudança estão relacionados às questões de valor social,
o que lhe possibilita uma descrição quantitativa da variação linguística e social.
O estudo da variação linguística propõe uma relação biunívoca entre as variáveis
linguísticas (sintáticas, morfológicas, fonéticas, lexicais e discursivas) e as variáveis sociais
Nas fronteiras da linguagem ǀ
144
(idade, sexo, escolaridade, classe social, etc.) de modo a explicar como os fatores
sociais/externos interferem na produção linguística.
A partir da concorrência de variantes e da sobreposição de uma em relação à outra é
que se dá a mudança linguística. Desse modo, os termos mudança e variação
linguísticas estão estreitamente relacionados, pois “com o advento da Teoria da
Variação, evidencia-se que toda mudança na língua advém de uma variação, mas
nem toda variação implica mudança” (SANTOS & VITÓRIO, 2011, p. 19).
Labov (2008 [1972]) descreve dois tipos básicos de mudanças em função da classe
social: a vinda de baixo (change from below) e a vinda de cima (change from above). A
mudança vinda de baixo geralmente é introduzida pela classe social baixa e seus falantes a
desenvolvem abaixo do nível de consciência. Após essa variante atingir seu nível de
expansão, passa a ser uma regra para a comunidade de fala e todos os indivíduos devem
compartilhar as mesmas normas e atitudes em relação ao seu uso. Como esse processo iniciase com a classe menos favorecida, existe uma resistência da sociedade para aceitar a nova
variante porque transfere a ela o status da classe que a inicia. Já as mudanças vindas de cima
são introduzidas pela classe dominante, com nível pleno de consciência. Labov nesse sentido
explicita:
Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em
modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na
medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam
então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123).
Igualmente à variante vinda de baixo, recai também sobre a variante vinda de cima o
status de seus falantes, mas ao contrário da discriminação que ocorre com a primeira, a vinda
de cima é bem aceita na sociedade. A negociação ativa da relação de um indivíduo com as
estruturas sociais é que fornece os valores sociais de identidade. Fatores como sexo, origem,
ser brasileiro, argentino, etc. devem ser considerados como construções sociais.
O valor social (negativo ou positivo) resulta das relações do indivíduo com as
estruturas sociais que determinam o prestígio das variantes linguísticas e a identidade social
dos falantes e de suas comunidades de fala. É curioso observar que a identidade é bilateral,
pois ao mesmo tempo em que o indivíduo informante, a partir de suas escolhas linguísticas,
revela uma identidade individual de acordo com a comunidade de fala a qual pertence, define
os traços que podem identificar a mesma comunidade.
2. Comunidade de fala
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
145
O princípio laboviano de que a língua é um objeto de heterogeneidade ordenada, a
partir da homogeneização partidarizada pelas comunidades de fala impõe um tratamento de
análise que localiza especificamente as forças sociais condicionantes da variação linguística.
Numa comunidade de fala, a língua constitui-se pela complexa relação entre seus
elementos a partir da reconstituição de estágios anteriores e da combinação de
formas do passado com novas formas, condicionadas às dimensões sociais e
espaciais. Uma investigação que se propõe a identificar e a descrever as diferenças
de uma língua deverá atentar para as suas dimensões externas e internas e considerálas sua complexidade, dinamicidade e integração. (BUSSE, 2012, p. 91)1.
Desse modo, Labov (2008 [1972]) busca realizar análises correlativas entre os
aspectos linguísticos de algumas comunidades de fala, como as de Nova York ou da ilha de
Martha’s Vineyard, no intuito de identificar as forças sociais condicionantes dos processos
linguísticos. Para esse fim, ele relacionou as variáveis internas – os fenômenos linguísticos –
com as variáveis externas –, condicionantes sociais como sexo, idade, escolaridade, classe
social, profissão, etc. – o que lhe possibilitou traçar estatísticas de realização linguística de
cada comunidade de fala, bem como notar a força dos valores sociais atribuídos às diferentes
variantes linguísticas, condicionando, desta forma, as escolhas linguísticas dos falantes.
Como o objetivo da sociolinguística variacionista é estudar a língua em uso, a língua
livre de controles e que é usada casualmente – a língua vernácula –, o pesquisador deve
buscar dados da fala usual, ou não, – dependendo de seus objetivos de estudo – mas que
revelem os contrastes significativos das escolhas linguísticas, pois os falantes de uma
comunidade de fala compartilham traços linguísticos de valor diferentes dos outros grupos
sociais; apresentam uma frequência de comunicação entre si e têm as mesmas normas e
atitudes em relação à linguagem.
Dessa forma, se estabelece a identidade de uma comunidade de fala, bem como do
falante que nela está conscientemente inserido. Aliás, Labov (2008 [1972]) reconhece que em
nível de aquisição de linguagem há uma inconsciência por parte do falante que não escolhe
por se inserir em uma língua ou qualquer uma de suas variações, mas defende que este falante
tem consciência da comunidade de fala a qual participa e de seu prestígio social. “[...] os
mecanismos usuais da sociedade produziram diferenças sistemáticas entre certas instituições
ou pessoas, e que essas formas diferenciadas foram hierarquizadas em status ou prestígio por
acordo geral.” (LABOV, 2008, p. 64)
1
Todas as traduções apresentadas neste trabalho são de minha responsabilidade.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
146
Ao surgir uma nova variante linguística, ela entra em conflito com as que já estão em
uso e a partir de um julgamento de valor de prestígio dessa variante – embora esse possível
julgamento muitas vezes se dê inconscientemente pelo falante –, ela vai criar uma fricção
linguística no plano sincrônico da língua e pode provocar uma mudança linguística
perceptível com o decorrer do tempo. Mesmo que as mudanças linguísticas sejam apenas
percebidas em seus aspectos históricos, constante e diariamente tem-se uma verdadeira luta de
valores das variantes nos seus diferentes níveis. Não se tem como prever qual variante vai
prevalecer ou cair em desuso, mas pode-se observar que as formas que ganham prestígio
tendem a prevalecer.
Estas variações podem ser induzidas pelos os processos de assimilação ou
dissimilação, por analogia, empréstimo, fusão, contaminação, variação aleatória, ou
quaisquer outros processos em que o sistema linguístico interaja com as
características fisiológicas ou psicológicas do indivíduo. A maioria destas variações
ocorre apenas uma vez e se extinguem tão rapidamente quanto surgem. No entanto,
algumas são recorrentes e, em uma segunda etapa, podem ser imitadas mais ou
menos extensamente, e podem se difundir a ponto de formas novas entrarem em
contraste com as formas mais antigas num amplo espectro de uso. Por fim, numa
etapa posterior, uma ou outra das duas formas triunfa, e a regularidade é alcançada.
(LABOV, 2008, p. 19)
O surgimento de uma variante não depende, necessariamente, da inexistência de uma
outra equivalente, mas unicamente dos valores sociais que lhes são atribuídas. Assim, a
proposta de investigação da Sociolinguística Variacionista que surge a partir dos anos 1960,
nos EUA, busca explicar os fenômenos de variação e mudança linguísticas, relacionando os
aspectos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e discursivos) com aspectos
sociais (idade, sexo, classe social, localidade, etc.) e o valor de prestígio que daí resulta e
impulsiona a variação.
É desse lugar, e assumindo este perfil sociolinguístico que realizo a coleta, a
interpretação e análise dos dados, buscando encontrar e explicar possíveis regularizações
linguísticas no processo de palatalização das oclusivas alveolares [d] e [t] no contexto
fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] na fala de falantes nativos de Maceió.
3. As faces da variação
A Sociolinguística Variacionista é uma das mais importantes correntes linguísticas
surgidas no século passado, fortemente influenciada pelas teorias sociológicas busca explicar
de modo quantitativo e estatístico os fenômenos da variação linguística, até então tratadas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
147
apenas como especulações, não havendo, por exemplo, nenhuma metodologia que desse conta
da volatilidade dos processos sociais de produção da língua. Inclusive, se se pode destacar
algum ponto marcante da sociolinguística laboviana, com certeza será sua organização
metodológica que relaciona os aspectos internos da língua com os fatores sociais externos.
Hoje, parece óbvia essa associação entre os recursos sociais e linguísticos para explicar os
fenômenos variáveis da língua, mas não era tão fácil pensar isto há quase cinquenta anos
atrás.
No entanto, o maior trabalho de Labov (2008 [1972]) não foi apenas relacionar
quantitativamente os aspectos internos da língua com fatores sociais – até porque apenas
números não dão uma explicação efetiva às questões basilares – mas notar que todos os dados
estatísticos resultantes dessa relativização social-linguística apontavam para o fator abstrato
da identidade: o prestígio. É justamente a partir da noção de prestígio, que está
intrinsecamente relacionado com a ideia abstrata de identidade, que se dá o jogo de valores
decisivos acerca do que permanece na língua e do que dela se extingue.
Foi isto que ficou evidente quando Labov (2008 [1972]) pesquisou os falantes nativos
de Martha’s Vineyard, onde notou que os que mantinham a alta centralização da vogal [a]
eram justamente as pessoas mais velhas e/ou aquelas que demonstravam um sentimento maior
de apego à ilha e se identificavam com ela.
Fica evidente que o significado imediato desse traço fonético é “vineyardense”.
Quando


o fato de que pertence à ilha: de que ele é um dos nativos a quem a ilha realmente
pertence. Nesse sentido, a centralização não é diferente de nenhum dos outros traços
subfonêmicos de outras regiões que são distinguidas por seu dialeto local. (LAVOV,
2008, p. 57)
De modo semelhante, a pesquisa também feita por Labov (2008 [1972)] com os
funcionários das lojas de departamento de Nova Iorque mostrou que a presença ou ausência
do [r] em final de palavras estava diretamente relacionada com o público a que a loja atendia,
se de classe alta, o funcionário produzia a variante de prestígio, se de classe trabalhadora, a
variante estigmatizada; o que sugere uma identificação do funcionário com aquela classe
social com a qual se relaciona – o que ele chamou de estilo. Um fato importante que ratifica
esta posição é a decisão de alguns trabalhadores de abrir mão de reivindicar aumento salarial
em função da garantia de permanência naquele local de prestígio. Pois, “alguns incidentes
refletem uma disposição dos vendedores a aceitar salários muito mais baixos da loja com
maior prestígio” (LABOV, 2008, p. 68)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
148
Sem dúvida, a percepção de prestígio e estigma que rodeia as variantes linguísticas
condiciona as escolhas do falante, dependendo do status social ao qual está almejando e do
grupo social ao qual compartilha traços de identificação pessoal. “Crer que há um modo
prestigioso de falar a própria língua implica, quando alguém pensa não possuir esse modo de
falar, tentar adquiri-lo” (CALVET, 2009, p. 77).
Não há como se fazer uma escala de identificação do sujeito com os grupos e práticas
sociais que estão ao seu redor, nem como determinar todas as relações de poder capazes de se
fazer presente em seu contexto diário, havendo apenas especulações teóricas que levam a
determinadas conclusões. Só se pode saber, por exemplo, se uma forma linguística é ou não
de prestígio por observar como os falantes agem em relação a ela, pois quando os falantes a
buscam é de prestígio, quando a evitam é estigmatizada, o que está diretamente relacionado à
noção de classe e valor social.
Se a mudança se origina no grupo de mais status socioeconômico, converte-se em
modelo de prestígio para todos os membros da comunidade. Outros grupos, na
medida em que mantêm contatos com os usuários desse modelo de prestígio, passam
então a adotar a forma modificada. (LABOV, 2008, p. 123)
A negociação ativa da relação de um indivíduo com as estruturas sociais é que fornece
os valores sociais de identidade, na medida em que essa negociação é sinalizada através da
linguagem e de outros meios semióticos. Fatores como origem, idade, profissão, escolaridade,
etc. devem ser considerados como construções sociais. Assim, os indivíduos devem ser vistos
como agentes inscritos em uma gama de práticas sociais através das quais eles constroem suas
identidades.
4. Variantes e variáveis
Para Labov, (1972) a língua é inerentemente heterogênea, o que significa dizer que ela
se realiza na e através da variação. A variação linguística é definida entre elementos variáveis
e variantes, sendo as variáveis tratadas sob um aspecto interno e externo, que dizem respeito,
respectivamente, ao conjunto de informações linguísticas que caracteriza uma regra e às
estratificações sociais, tais como idade, sexo, escolaridade, etc.
A palatalização das oclusivas alveolares se tornou variável na fala dos maceioenses em
contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta [i] quanto a realização da consoante
oclusiva
em
formas
linguistas
como
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2
149
2:44), conservando

havendo a palatalização da consoante [t].
Desse modo, pretendo relacionar, de acordo com a metodologia variacionista, essas
regras variáveis contrapondo-as com o aspecto externo idade, a fim de identificar os valores
sociais que são estabelecidos a cada uma dessas variantes. Daí a necessidade de se trabalhar
com dados estatísticos quantitativos, de correlacionar as variantes linguísticas com os
aspectos da vida social dos informantes, pois desse modo se pode mensurar adequadamente as
forças que estão em jogo nos processos dinâmicos da língua.
Métodos estatísticos podem ser utilizadas para avaliar e comparar diferentes efeitos
de contexto, bem como para detectar e mensurar tendências ao longo do tempo. As
técnicas estatísticas também permitem que correlações sejam feitas entre as
características sociais e linguísticas. (TAGLIAMONTE, 2006, p. 73)
Para Labov (2008 [1972]), o modo mais simplificado de conceituar a variável
linguística é tê-la como duas ou mais formas de dizer a mesma coisa com o mesmo valor de
verdade. Ele se refere à capacidade alternativa que algumas formas linguísticas permitem,
como a alternância entre as formas palatalizada ou oclusiva da consoante [d], em
formal da língua, portando a mesma carga semântica, porém, duas formas linguísticas
distintas, seja quão menor essa distinção, jamais se tornarão idênticas e o fato de uma
sobressair à outra prova justamente isto, pois a forma vitoriosa prevalece porque carrega em
seu interior uma carga valorativa maior que a excluída, uma vez que “nenhuma mudança
acontece no vácuo social” (LABOV, 2008, p 21).
E é justamente para identificar essas forças valorativas sociais que atuam sobre as
variantes linguísticas e direcionam os processos de variação e mudança linguística que se
realiza a sociolinguística variacionista. A correlação quantitativa entre as variáveis
linguísticas e sociais coletadas a partir do uso real e efetivo da língua permite ao pesquisador
notar quais as forças sociais são atuantes no processo de variação linguística.
As variáveis externas são as responsáveis por carregarem os valores sociais que
condicionam as variáveis internas promovendo a variação e a possível mudança ou extinção
das formas variantes em jogo. Cada uma dessas variáveis externas deve fornecer informações
suficientes para revelar as origens da variação e em que direção está caminhando, pois é
2
O código se refere à escolaridade, idade e sexo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
150
através da correlação de fatores sociais às regras linguísticas que o sociolinguista encontra as
regularidades de ocorrências e afere as circunstâncias e valores sociais que interferem na
produção linguística do informante.
A variável idade tem como utilidade, deste modo, aferir a disposição das variantes no
tempo, o que pode determinar se uma forma linguística está caminhando para estabilização,
sobreposição ou extinção. A variável idade pode ser analisada em tempo real, em que a coleta
de dados de se dá com os mesmos informantes nas mesmas condições contextuais em dois
momentos cronológicos distintos que devem ser separados por pelo menos vinte anos,
garantindo a mudança de uma faixa etária para outra, ou seja, uma coleta de dados com duas
décadas de distância da primeira, permite que o informante jovem já seja adulto, enquanto
também permite que o informante originalmente adulto já possa ser idoso.
A ideia é que, porque as noções básicas de sistema fonológico do falante foram
estabelecidas em sua juventude, quando ouvimos falantes que tem 75 anos de idade,
hoje temos uma ideia sobre como as normas da comunidade eram quando eles eram
crianças (70 anos atrás). Da mesma forma, quando ouvimos falantes que tem 45
anos de idade hoje, temos uma ideia sobre o que as normas comunitárias foram
quando eram crianças (40 anos atrás). E assim por diante. Desta maneira,
sociolinguistas modelam a passagem do tempo. (MEYERHOFF, 2006, p. 134)
Esta pesquisa pode demonstrar facilmente se uma variante está caindo em desuso ou
em está em expansão, pois se for constatado que as pessoas de maior faixa etária produzem
em maior número a variante de controle, isto indica que tal variante está caindo em desuso,
uma vez que as pessoas mais jovens a evitam; por outro lado se a variante de controle for
mais usada por jovens, pode indicar que ela está em expansão. Evidentemente, há o problema
ao se considerar a pesquisa em tempo aparente de se está lidando com pessoas diferentes, que
consequentemente podem ser afetadas de modos distintos pelas forças sociais.
5. Um objeto a se observar
No meu caso, por uma questão de praticidade, vou utilizar a pesquisa em tempo
aparente em que considero três faixas etárias de informantes nascidos e vividos em Maceió,
elas vão de 16 a 35 anos, de 36 a 55 anos e de 56 a 80 anos. Com isto, busco descobrir os
caminhos que a palatalização das oclusivas alveolares está tomando em Maceió, se em
processo de expansão, estabilização ou extinção.
Embora minha pesquisa de doutorado deva contar com informações de 48
pessoas estratificadas de acordo com idade, sexo e escolaridade, neste trabalho aqui faço
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
151
apenas um recorte a fim de analisar, nos dados, as ocorrências do processo de palatalização
das oclusivas alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta. Como ainda
estou em processo de coleta e transcrição de dados, tenho em mãos apenas 15 áudios a serem
analisados, sendo 5 áudios para cada faixa etária, que as nomeio como faixa A, a que vai de
16 a 35 anos, B, de 36 a 55 e C, 50 a 80 anos.
Os dados foram rodados no Goldvarb X a fim de verificar relevâncias e pesos relativos
das variáveis, tendo como variável dependente a palatalização da oclusiva alveolar, que a
codifico com número 1, em oposição a forma oclusiva 2. A idade recebe os códigos A, B e C
e sexo F e M, para feminino e masculino.
Pelo que pude perceber, todos os informantes desta análise produziram, ao menos em
algum momento da entrevista alguma forma palatalizada, embora essas realizações tenham
uma frequência de uso bastante variável, havendo um informante, por exemplo, (1EMAF) que
chegou a produzir em sua fala 42 formas lexicais em que as oclusivas alveolares [t] e [d] se
realizam após a vogal anterior alta [i], aparecendo apenas uma forma palatalizada
Desse
modo,
eu
considero
as
formas
oclusivas:
prestígio na Comunidade de fala de Maceió, em oposição a forma palatalizada:
[

rrega uma
marca social de estigma. Para isso, eu analiso 299 realizações de formas lexicais em que as
consoantes [t] e [d] são produzidas após a vogal anterior alta [i] produzidas por 15
informantes, sendo 7 mulheres e 8 homens.
Conforme pode-se verificar no gráfico abaixo há uma frequência de uso bem maior da
forma de prestígio, a oclusiva, em detrimento a forma palatalizada.
Gráfico1: uso total das variáveis Palatal e Oclusiva
Nas fronteiras da linguagem ǀ
152
Pelo gráfico acima, fica evidente a preferência dos informantes pela forma oclusiva,
mas será que isto sempre foi assim ou se pode perceber algum movimento de ascensão ou
decesso no decorrer do tempo? Procurando compreender como o uso dessa regra variável
presente na comunidade de fala maceioense tem se comportado diacronicamente, relaciono o
a variante de controle ao fator idade no Goldvarb X, o que trouxe tais resultados:
IDADE
A – 16 a 35
B – 36 a 55
C – 56 a 80
Realizações
17
31
23
Percentual
11.3
47
28.0
Peso relativo
0.32
0.76
0.59
Tabela 1: contraposição de variante dependente com a variável idade
É bastante interessante observar na tabela como há uma oscilação entre as
diferentes idades, ficando a faixa B como a mais produtiva da palatalização das oclusivas
alveolares em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta, havendo uma diferença com
a faixa C não muito grande, mas com expressiva distância da faixa A. Ou seja, os dados
apontam para uma variante evitada pelas pessoas mais jovens e mais produzida pelos
informantes com mais de 36 anos. O que não pode ser suficiente para afirmar que há um
processo de extinção da variante, pois, como se pode ver, essa variante não foi tão produtiva
com os informantes da faixa C, o que pode evidenciar uma variante se comportando como
pêndulo, ora ganhando mais uso, ora sendo evitada, de qualquer forma o que está claro é que
os mais jovens evitam esta forma linguística, constatando-se um estigma da variante.
Este estigma da variante se torna mais proeminente quando confrontamos a variável
sexo, pois as mulheres apresentaram menor frequência de uso e consequentemente um menor
peso relativo que os homens.
SEXO
Masculino
Feminino
Realizações
36
35
Percentual
30,3
19,4
Peso relativo
0.59
0.44
Tabela 2: contraposição da variante de controle com o sexo.
Ao se comparar as realizações, entre homens e mulheres, da palatalização das
oclusivas alveolares vê-se como ambos produziram um número bastante próximo de
palatalizações M=36 e F=35, mas quando se analisa essas produções considerando as
realizações de acordo com cada sexo se vê que a produção dos homens é mais proeminente,
chegando a ser produzido com mais de 30% de frequência nos homens, e com pouco menos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
153
de 20% pelas mulheres, o que vai refletir no peso relativo da variante, apresentando um
número consideravelmente maior para os homens em relação às mulheres. De modo que esses
dados confirmam, dentro da teoria assumida, que a variante em estudo porta estigma social e é
conscientemente evitada pelas mulheres.
A
7%
13%
Feminino
Masculino
Idade/Freq.uso
B
28%
67%
C
42%
15%
Tabela 3: contraposição das variáveis idade e sexo com a variante de controle
Ao intercruzar as variáveis idade e sexo a fim de verificar como esta percepção de
estigma da variante se faz presente nos informantes de diferentes idades, se confirmou que os
informantes mais jovens realmente utilizam em menor frequência a forma palatalizada da
oclusiva alveolar em contexto fonológico seguinte à vogal anterior alta e que as mulheres
mais jovens são as que menos produzem esta variante, enquanto os homens entre 36 e 55 anos
são os principais usuários desta forma linguística, o que confirma, teoricamente, que na
comunidade de fala analisada, esta forma linguística é percebida como marca de estigma e
conscientemente evitada.
6. Conclusão
Dessa forma, posso encerrar este trabalho afirmando, diante dos dados coletados e
analisados, que a palatalização das oclusivas alveolares [t] e [d] em contexto fonológico
seguinte à vogal anterior alta vem passando por um recorrente processo de estigmatização
social, comprovado pelos menores usos dessas formas pelos jovens e ainda mais pelas
mulheres jovens.
Evidentemente, esta análise é prematura e conta com uma pouca quantidade de
informações linguísticas, uma vez que foram apenas 15 áudios analisados, mas suficientes
para mostrar algumas tendências sociais destas variantes linguísticas na comunidade de fala
maceioense e como elas vem se comportando diacronicamente em relação a cada uma das
faixas etárias analisadas.
Conforme haja o progresso da pesquisa, novas informações devem ser acrescidas às
discussões sobre a palatalização das oclusivas alveolares na comunidade de fala maceioense,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
154
bem como suas pertinentes reflexões acerca dessas realizações linguísticas e dos caminhos
que este fenômeno vem percorrendo diacronicamente.
Referências
BUSSE, S. Investigações geossociolinguísticas: considerações para uma descrição dos
fenômenos da variação. Revista Letras e Línguas. Vol. 13, Nº 24, p 89-116, Jan./Jun. 2012.
CALVET, L. J. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002.
LABOV, W. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008.
MEYERHOFF, M. Introducing Sociolinguistics. New York: Routledge, 2006.
SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. Teoria da variação e mudança linguística. In:
COSTA, J.; SANTOS, R. L. A.; VITÓRIO, E. G. L. A. (orgs). Variação e mudança
linguística no estado de Alagoas. Maceió: Edufal, 2011.
TAGLIAMONTE, S. Analysing Sociolinguistic Variation. New York: Cambridge University
Press, 2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
155
UTILIZANDO A MULTIMODALIDADE EM COMUNIDADE
REMANESCENTE QUILOMBOLA: NOVOS DESAFIOS?
[Voltar para Sumário]
Aluizio Lendl-Bezerra1(URCA/UERN)
Marcos Nonato de Oliveira2(UERN/CAMEAM)
Considerações iniciais
Muitos são os desafios impostos aos professores de língua portuguesa, este século de
mudanças trouxe com ele a necessidade de transformações das práticas linguísticas de sala de
aula, a quebra do tradicionalismo e o uso de novas metodologias para o ensino.
Nesta senda, este artigo se propõe a compreender as prática de ensino de produção de
texto de língua portuguesa na comunidade remanescente quilombola Lagoa dos Crioulos,
localizada na zona rural da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará.
Essa trabalho é resultado da parte inicial do projeto de extensão ALT – Ampliando
Linguagem e Tecnologias, vinculado à Universidade Regional do Cariri em parceria com a
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, que tem como objetivo rever as práticas de
letramentos em escolas públicas e propor intervenções com base teórica nas metodologias de
ensino no ambiente citado.
Dessa forma, esta pesquisa está circunscrita ao estudo do texto na perspectiva da
coesão referencial, ainda tivemos como suporte metodológico a pesquisa-ação e a sequência
didática do Grupo de Genebra.
Assim, buscamos compreender as propostas de produção de texto a partir de uma
abordagem multimodal simples, neste caso, as histórias em quadrinho produzidas com lápis e
papel, sem auxílio de ferramentas digitais.
Gêneros Textuais e multimodalidade: breve consideração
1
Professor da educação básica e do curso de Letras da Universidade Regional do Cariri e Mestrando em Letras
do Programam de Pós- graduação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Campus CAMEAM –
Pau dos Ferros/RN.
2
Professor Doutor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte, Campus CAMEAM – Pau dos Ferros/RN.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
156
Entende-se por gênero textual os textos que são úteis para a comunicação no cotidiano.
Marcuschi (2008) nos alerta para a diferença entre tipo textual e gênero textual, onde o
primeiro “(...) caracteriza-se muito mais como sequências linguísticas” e englobam “(...)
cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção”. Entendido o que é tipo textual - a estrutura linguística a qual o texto se
enquadra -, gênero textual são os modelos de texto usado no ato pragmático, assim, podemos
diferenciar esses dois conceitos tão próximos.
A propósito, as histórias em quadrinhos – populares HQ’s – quanto ao tipo textual são
sequências narrativas que unem linguagem verbal e não verbal, enquadrando-se também nos
gêneros multimodais. Esse gênero costuma ser propagado em jornais impressos, livros
didáticos, avaliações externas e internet, para o público em geral – em específico.
O conjunto de elementos que compõem a sequência narrativa das histórias em
quadrinhos (balões, frases, imagens) reproduzem marcas da oralidade e fornecem dados ao
leitor para que se possa fazer a compreensão da história proposta. Esse gênero ajuda no
entendimento do contraste entre a fala e a escrita. A imagem desenhada é o elemento de base
das histórias em quadrinhos dispostas para o leitor através das vinhetas, que contam a
narrativa – ficcional ou real – obedecendo a uma ordem temporal. A linguagem visual (ou
icônica) está ligada à estética da HQ, como o formato dos quadrinhos, montagem das tirinhas,
gestos dos personagens, ideogramas e metáforas visuais (VERGUEIRO, 2006).
Esses recursos marcam visualmente a fala entre os personagens ou gestos através das
onomatopeias, por exemplo, que contribuem para que o leitor chegue a compreensão dessa
interação entre as linguagens, assim este uso combinado contribui para a comunicação
sociointerativa, usando imagens e palavras simultaneamente.
As histórias em quadrinhos são um dos primeiros gêneros que os leitores iniciantes
têm contato, mas ainda são vistas por docentes como uma “leitura fácil”, que, aos olhos dos
mesmos, não estimulam o pensamento crítico-reflexivo. Os alunos, ao trabalharem com o
gênero HQ em sala, tornam-se mais empolgados pelo simples fato de fazerem parte do seu
cotidiano. O leitor de histórias em quadrinhos é capaz de diferenciar os aspectos mais formais
ou informais da língua a partir dessa leitura, de fazer a associação do signo verbal e signo
visual com rapidez para compreender a história ali presente. Dionísio (2005) reafirma a ideia
de que,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
157
Todo professor tem convição de que imagens ajudam na aprendizagem, quer seja
como recurso para prender a atenção dos alunos, quer seja como portador de
informação complementar ao texto verbal (DIONÍSIO, 2005, p. 195).
Vergueiro (2006) aborda a importância da relação entre as palavras e imagens
dispostas nas histórias em quadrinhos, utilizando-se da argumentação de que juntas ampliam a
interação entre os códigos verbal e não verbal. Se fossem trabalhadas isoladas e não de forma
complementar, talvez não atingissem tal proficiência. Cabe ao docente avaliar os elementos
que envolvem o texto multimodal e o gênero HQ, visando a possibilidade de maior interação
dos alunos.
Sabemos que cada leitor traz consigo uma vivência e experiências diferentes e quando
ele adentra no texto, descobre a interação texto-leitor. A linguagem não verbal é de suma
importância por reforçarem esta ideia anterior e servir de base para a organização da
linguagem verbal. Apresenta-se assim, a concepção de letramento (SOARES, 2003), ação que
envolve o ensinar e aprender a leitura e escrita, no contexto de suas práticas sociais. Assim
seguindo o pensamento da autora podemos inferir que hoje se faz necessário educar os alunos
para que eles aprendam também a leitura visual, entender toda a estrutura que remete ao
entendimento do texto, destacando que o texto visual também é uma unidade carregada de
significação.
Perspectivas metodologicas para o ensino da multimodalidade
Essa sessão se inicia destacando que as práticas linguageiras são osprincipais
instrumentos de interação social, essa assertiva é destacada nas reflexões de Dolz &
Schneuwly (2014) e ilustra nossa forma de concepçãodo ensino da língua, compreendendo
que os eventos comunicativos são construído a partir do contato com os gêneros textuais que
nos circundam.
Assim, à escolha do nosso locus buscamos um ambiente que, a nosso ver, precisasse
de atenção mais específica, na busca de minimizar diferenças sociais que por ventura a
linguagem estivesse associada. Centrada primordialmente na resolução dos problemas em
contexto escola (Moita-Lopes, 1996), logo, configurando um enfoque aplicado em linguística.
A comunidade remanescente quilombola Lagoa do Crioulos localizada na zona rural
da cidade de Salitre, interior do estado do Ceará, é nosso ponto de partida. É uma comunidade
oficialmente reconhecida pela Fundação Cultural de Palmares. Entendemos por remanescente
quilombola na mesma observação de Treccani (2006),como um vestígio e resquício no
Nas fronteiras da linguagem ǀ
158
patamar histórico da identidade de negros, índios e mestiços. Logo, é uma comunidade com
história e cultura própria que foi transmitida geração-a-geração que hoje não constituem
apenas dessas raças, mas de muitas outras que se identificam com a cultura e a história.
É uma comunidade de meio porte, nela funciona a Escola de Ensino Fundamental João
Rodrigues da Fonseca, que é mantida pelo governo municipal. A estrutura física ainda não
segue um padrão desejável, as salas são quentes e pouco ventiladas – situação da maioria das
escolas municipais do estado do Ceará.
Como esse trabalho trata-se de uma pesquisa-ação e ainda está em fase inicial,
decidimos ter como nosso foco apenas a turma de nono (9º) ano do ensino fundamental II.
Esse turma é composta de trinta e dois (32) alunos, desse número, apenas quatorze (14) fazem
parte da comunidade, os demais alunos são das regiões circunvizinhas.
Para tanto, essa pesquisa parte de um processo observatório, acreditamos nesse
enfoque metodológico, pois ele nos permitiu ver o comportamento dos participantes a partir
de uma nova luz e, ainda, nos mostrou novos aspectos do contexto estudado. Justificamos
ainda à medida do entendimento de Damas e De Ketele (1985) que destacam que a
observação não é um processo com fim em si mesmo, mas a serviço de uma atividade mais
complexa. Como nossa abordagem é parte inicial para compreender um contexto que não é
nosso, mas que tem como foco uma atividade de intervenção ancorada naquilo que foi
anteriormente tido como objeto de análise. Logo, como processo de mobilização da nossa
atenção.
Nossas observações foram realizadas durante o período de quinze (15) dias. Para que
não houvesse resistência, entregamos um ofício para a coordenação escolar, ainda, para a
professora da turma explicando que as atividades realizadas na escola faziam parte de um
projeto de extensão vinculado a Universidade Regional do Cariri (URCA) e Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN) que tinha como objetivo desenvolver atividade de
ensino e pesquisa na referida escola.
Nesta senda, os pesquisadores Schneuwlyet ali (2004) apresentam a sequência didática
como gênero discursivo, essa sequência foi adaptada, tendo em vista a necessidade de
desenvolver a capacidade comunicativa dos sujeitos, criando contextos de produções reais
para o desenvolvimento de letramentos múltiplos.
Os autores propõem uma sequência de módulos de ensino, ela se organiza em nossa
proposta da seguinte maneira:
Definição da
situação de
comunicação
Modulo I
Módulo II [...]
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
Produção
inicial
Revisão I
159
Produção
final
A ideia dessa sequência didática (adaptada) proposta pelos pesquisadores do Grupo de
Genebra é propor atividade de ensino sistemática, com o objetivo possibilitar um aprendizado
progressivo e a partir de práticas sociais e históricas de linguagem. Confrontados com esse
objetivo, o nosso surge com a necessidade de desenvolver práticas de leitura e produção de
textos que vinculem mais de um modo linguístico, que possibilite o contato com múltiplas
linguagens, com a complementação entre linguagens que são possibilitadas por textos que
relacionam linguagem verbal e não-verbal, ou seja, que surjam de uma perspectiva
multimodal de ensino.
Nessa mesma direção, elaboramos nesse trabalho apenas a parte inicial
dessasequência. Trata-se de dois momento (a) e (b), em (a) definição da situação de
comunicação, mostramos para os alunos que o trabalho seria desenvolvido em três (3) etapas.
Perguntamos o que eles achavam do gênero História em Quadrinho (HQ) e se eles já
produziram. Não nos foi surpresa que eles já conheciam, “tamanha a popularidade das
histórias em quadrinhos” (VERGUEIRO, 2014, p. 07), tão pouco a adesão rápida ao gênero.
Contudo, também não nos trouxe admiração quando os alunos relataram que não haviam
produzido HQs. Em (b) foi a solicitação da produção inicial, essa etapa tem como real
objetivo perceber o quanto os alunos conhecem do gênero e conhecer um pouco do que eles
pensam da comunidade local. Vale destaque a atenção e a vontade dos participantes de
produzir os HQs.
Os elementos citados acima são importantes para mostrar como nossa proposta foi
configurada, ainda deixa evidente que a sessão que se segue – Discussão e análise – tem como
foco os aspectos observados na aula de português e a produção inicial dos alunos.
Discussão e análise
Pensar em produção de textos é pensar que eles são produzidos por sujeitos em
processo de construção. Esse processo requer do professor práticas de ensino que possibilitem
o contato com as multiplicidades de formas de linguagens.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
160
Neste sentido, formos norteados pelo interesse de compreender como se desenvolve as
sequências de ensino que levam à produção de textos. Um olhar sobre o que acontece nas
práticas de sala de aula em uma comunidade remanescente quilombola.
Durante quinze (15) dias estivemos presente nas aula de português do 9º ano do ensino
fundamental II, esse passo foi importante para que nós pudéssemos reconhecer as práticas de
letramentos utilizadas pelo regente de sala.
Nessa perspectiva, observamos que não houve enfoque em nenhum tipo de texto
multimodal. As aulas ainda estavam vinculadas ao tradicionalismo e ligadas ao livro didático,
onde poucas vezes eram desenvolvidas atividades paralelas à ampliação do repertório
comunicativo dos alunos.
Destacamos, a necessidade de multiletramentos, tendo em vista que eles preparam os
alunos para situações comunicativas reais. Essa postura exige do professor mudanças para
uma atitude mais contemporânea para o ensino da escrita.
Essa proposta vem ampliar o conceito de ensino, principalmente ampliando a noção de
diversidade de semioses que doravante ocorreram em atividades em sala de aula.
Observemos a figura HQ 01 do aluno JRF:
Figura HQ 01.
No quadrinho (a) podemos observa a composição que é feita a partir do que é colocado
em destaque nos balões: “lagoa dos criolos e minha terra natal comunidade cheia de coisas
legais.” É clara a satisfação em ser um remanescente quilombola, é mostrado com orgulho
quando JRF diz ser sua terra natal.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
161
É evidente que na parte verbal do texto o aluno em nenhum momento faz referência às
questões do campo, isso só é entendido quando, no desenho, é construído a imagem de um boi
em uma espécie de curral e de um homem com um chapéu. Logo, desse conjunto, podemos
inferir que Lagoa dos Crioulos trata-se de uma comunidade rural. Essa assertiva só é possível
quando levamos em consideração as múltiplas linguagens contidas nas HQs. Quando
associamos um todo construído por coesão3responsável por atribuir sentindo ao texto.
A linguagem, assim, assumida em uma esfera de práticas sociais significativas
promove a materialidade multimodal desde um contexto informal até uma situação de
completa formalidade. Assim, os apoios na oralidade que constam nessas produções serão
abordado em módulos de ensino e propostas de revisão de textos no decorrer da pesquisa.
Tendo em vista que o nosso foco é construir com os aprendentes textos multimodais e que os
processos de composição verbal e composição visual, no que se relaciona a sua sintaxe.
Servem de análises para momentos posteriores.
Figura HQ
02.
A figura HQ 02trata-se de uma história popularmente conhecida no comunidade
quilombola, ressaltamos, com isso, que todo texto é formado dentro de determinado gênero
em função das intenções comunicativas.Podemos perceber que um boi foi transformado em
uma pedra – sendo encantado, conhecida como Pedra da Sereia.
Na imagem HQ 02 do aluno FRO também há a construção de uma forma de
referenciação4 entre o que é dito e o que é desenhado. Podemos observar que FRO faz uma
3
[...] coesão é, pois, uma relação semântica entre um elemento do texto e algum outro elemento crucial para sua
interpretação. (KOCK, p. 16, 2008)
4
Kallmeyer et al (apud KOCK, p. 34, 2008) falam que a referência tem sido usada [...] na trilha de Halliday,
significando a relação de sentido que se estabelece entre duas forma na superfície do textual.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
162
referência do que é enunciado verbalmente como: “vaqueiro”, “boi” e “pedra da sereia” com o
que é desenhado. Nesse sentido, o verbal e o visual se complementam na construção do
sentido, produzindo imagens da realidade. Essas representações são importantes, pois
compreender um texto é entrar em contato com todos os recursos utilizados na sua construção.
Considerações finais
A forte massificação no uso dos gêneros mais tradicionais na escola não propõe um
ensino de língua que esteja em acordo com os novos alunos deste século. Ainda a necessidade
de ser planejar aulas a partir de sequências de ensino bem estruturada e sistemática. Assim,
quando pensamos em desenvolver esse projeto, buscamos sequenciar as ações de sala de aula
em busca de uma aprendizagem satisfatória.
Acreditamos que a escola precisa ser cosmopolita na tentativa de aproximar os alunos
das atividades linguísticas em uso, bem como a gêneros que não são popularmente
encontrados nas escolas, mas que é possível de encontrar no uso cotidianos dos alunos,como é
o caso das histórias em quadrinhos.
Desse modo, essa pesquisa inicial buscou compreender as práticas de ensino em uma
comunidade com status diferenciado, na tentativa de desenvolver metodologias aparadas por
um suporte teórico e que fosse possível ser inserido da prática cotidiana do professor.
Em sequência, buscamos inserir os uso de estratégias textuais para a compreensão das
tirinhas produzidas, bem como justificar determinados acontecimentos ocorridos no texto, tal
como o apoio na oralidade.
Referências
DAMAS, M. J.; DE KETELE, J. M. (1985) Observar para Avaliar, Coimbra, Livraria
Almedina, 1985.
DIONÍSIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramentos, in KARWOSKI, A. M.;
GAYDECZKA, B; BRITO, K. S. (orgs.) Gêneros textuais: reflexões e ensino. São Paulo:
Parábola Editorial, 2005, 119 – 132.
DOLZ, J.; NOVERRAZ, M; SCHENEWLY, B. Sequências didáticas para o oral e a escrita:
apresentação de um procedimento, in: DOLZ, J.; SCHENEWLY, B. Gêneros orais e escritos
na escola. Trad. e Org.: R. Rojo e G. S. Cordeiro. Campinas. Mercado de Letras, 2004 [1998],
pp. 149 – 185.
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163
KOCK, I. V.; ELIAS, V. M. Ler e compreender os sentidos do texto. Segunda edição. São
Paulo. 2010.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
SOARES, M. B. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2003[1995].
TRECCANI, G. D. Terras de quilombo: entraves do processo de titulação. Belém: Programa
Raízes, 2006.
VERGUEIRO, W. O uso do HQs no ensino. In:BARBOSA, A; RAMOS, P; VILELA, T.;
RAMA, A.; VERGUEIRO, W. (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de
aula. 4 ed., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
164
ESPELHAMENTOS IMPERFEITOS: OS REFLEXOS ENTRE
OS PERSONAGENS
[Voltar para Sumário]
Amador Ribeiro Neto (UFPB)
Rafael Torres Correia Lima (UFPB)
O texto literário é um campo, complexo de sentido, em que há constante diálogo entre
os signos pertencentes a ele. Machado (2003) diz que, primeiramente, faz-se necessário
conhecer a linguagem como um conjunto, cujo objetivo é o de comunicar através de signos.
Lótman (1978), também semioticista, por sua vez afirma que a arte deve ser percebida como
linguagem pelo prévio fato de unir um emissor e um receptor. Dessa forma, a obra Budapeste,
de Chico Buarque, é um texto específico da arte literária que deve ser compreendida como
linguagem para que possamos interpretá-la por meio dos signos. Todos os elementos contidos
na obra têm importância significativa. Ao observarmos, por exemplo, a capa do romance
Budapeste, verificamos que o dorso do livro é composto por um título semelhante ao da capa,
chamado Budapest. Acreditamos que seja um “espelhamento imperfeito”. Definimos este
como um objeto que reflete ou representa algo de modo incompleto, defeituoso ou mesmo
inverso. No romance Budapeste, há diversas relações que remetem à questão dos “espelhos
imperfeitos”, como: José Costa – Zsoze Kósta; Vanda e Joaquinzinho – Kriska e Pisti. Neste
artigo, iremos verificar o movimento de reflexo entre os personagens presentes na obra.
A primeira relação (Costa – Kósta) é marcada por diferenças de identidades, que
classificamos em nacionais/linguísticas e compositivas; ou seja, apesar de ser uma única
pessoa, é possuidora de determinada identidade dependendo do lugar em que está situada. O
protagonista, desta maneira, perde o seu vínculo com o local de nascimento; está sempre
renascendo de acordo com a situação em que se encontra. O espelhamento pode “simboliza[r]
a sucessão de formas, a duração limitada e sempre mutável dos seres” (CHEVALIER, 2009,
p. 394). Costa, além de desprender-se nacionalmente, atravessa, constantemente, de um país
para outro; daí ocorrer sempre esta “sucessão de formas”, pois, em Budapeste, Costa
transforma-se em Kósta. No Rio de Janeiro, ele é marido de Vanda, falante da língua
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
165
portuguesa e prosador; em Budapeste, é namorado de Kriska, falante do húngaro e poeta.
Estes formatos se tornam alteráveis e restritos, porque dependem do local em que o
personagem esteja. Mas, estas mudanças nunca acontecem de modo que Costa/Kósta se sinta
confortável com a circunstância, já que “os atuais conflitos estão, com frequência,
concentrados nessas fronteiras, nas quais a identidade nacional é questionada e contestada”
(WOODWARD, 2009, p. 23). Em Budapeste, ele não atinge a pureza da língua húngara,
sucedendo de haver sempre um “sotaque” que anuncia o “acento estrangeiro”. Por outro lado,
no Brasil, ao retornar de Budapeste, Costa estranha o país de nascimento:
as pessoas que eu topava, por mais que rissem e balançassem os corpos, não me
pareciam afeitas ao ambiente. Às vezes eu as via como figurantes de um filme que
caminhassem para lá e para cá, ou pedalassem na ciclovia a mando do diretor. E as
patinadoras seriam profissionais, ganhariam cachê os moleques de rua, ao volante
dos carros estariam os dublês fazendo barbaridades na avenida. Acho que eu tinha
conservado uma lembrança fotográfica, e agora tudo o que se movia em cima dela
me dava a impressão de um artifício (...) mesmo o oceano, na minha memória,
estivera a ponto de se estagnar. (BUARQUE, 2003, p. 153-154, grifos nossos).
Reparemos como as imagens contempladas por ele estão fora de lugar. O narrador tem
a sensação de que a multidão que passa próximo a ele não está ligada ao ambiente, ou seja, é
como se estivesse numa terra estrangeira. Costa se encontra confuso neste lugar, como
localizado dentro de um “filme”, em que somente é capaz de memorizar representações
fotográficas de um país obsoleto, pois, agora, toda novidade, ou tudo que não é (re)conhecido
por ele, é simulação. Intrigante notar que a impressão que ele tem é a de que está em uma
criação artística, como se fizesse parte de um processo fictício; e não é a primeira vez que ele
se sente participando de uma atividade de criação. Quando Costa estava em um hotel, em
Budapeste, ele relata que “não me aborrecia caminhar assim num mapa, talvez porque sempre
tive a vaga sensação de ser eu também o mapa de uma pessoa” (BUARQUE, 2003, p. 56). O
fato de ele apresentar-se como um mapa, expressa uma ambiguidade, visto que este objeto é
uma reprodução gráfica. Adquire, assim, o sentido de que Costa se autodenomina “mapa” por
escrever biografias, isto é, construir graficamente a vida de uma pessoa; ao mesmo tempo em
que pode significar que ele seja esta pessoa representada graficamente. A partir desses
diferentes sentidos, podemos perceber como a identidade composicional do escritor anônimo
também possui o seu duplo.
No Brasil, Costa é ghost writer de biografias. Escreve, exclusivamente, narrativas.
Enquanto que em Budapeste, além de ser um escritor anônimo de prosa, passa a compor
poesia. Esta mudança pode ter sido ocasionada pelo fato de Costa espelhar ele mesmo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
166
(Kósta), pois, segundo Chevalier (2009), o espelho é capaz de provocar uma imagem
invertida. No caso do protagonista, o inverso da prosa seria a poesia. Ele relata que “não sabia
escrever poesia, e todavia estava escrevendo um poema sobre andorinhas” (BUARQUE,
2003, p. 133). Acreditamos que pelo fato dele dominar com maior perfeição a língua nativa
(portuguesa), tornou-se um ser prolixo. Por outro lado, a língua magiar teria que ser escrita de
modo sucinto, uma vez que não a tinha totalmente no controle. Daí, como a poesia é expressa
mais concisamente que a prosa, ele somente consegue elaborá-la em uma língua estrangeira.
A relação entre Budapeste e Rio de Janeiro se insere diretamente neste contexto, pois naquela
cidade Costa não se incomodava com o silêncio, que pode atribuir à concisão da fala, por
exemplo, quando ele chega a Budapeste, entra em um táxi e fica “um minuto em silêncio
dentro do carro” (BUARQUE, 2003, p. 47, grifos nossos), ou quando encontra Kriska e
permanecem “cada qual com o seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, (...)
segui observando o seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais
silencioso (...) eu imerso no silêncio dela” (BUARQUE, 2003, p. 61, grifos nossos). Há um
outro instante em que Costa afirma que “me apeguei àquele silêncio” (BUARQUE, 2003, p.
62, grifo nosso), além da sua relação com o Danúbio, “negro e silencioso” (BUARQUE,
2003, p. 70, grifo nosso). Todavia, no Rio de Janeiro e nos encontros anônimos, Costa tem
atitudes contrárias ao silêncio, este o incomoda constantemente, por exemplo, em sua casa, a
televisão fica continuamente ligada, principalmente quando Vanda não está presente, pois “ao
silêncio de Vanda não voltando, preferia tiroteio e ronco dos motores” (BUARQUE, 2003, p.
77); ou quando ele está em um encontro em Melbourne onde ele “fervia, falava, falava, teria
falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som” (BUARQUE, 2003, p. 21,
grifos nossos). Estes contínuos deslocamentos pelos países realizados também podem ser
compreendidos como refletores desta dupla identidade, uma vez que “é a viagem em geral que
é tomada como metáfora do caráter necessariamente móvel da identidade (...), posicionandoo, ainda que temporariamente, como o ‘outro’” (SILVA, 2009, p. 88). É mais um movimento
que determina Costa ser considerado um prosador em Budapeste e um poeta no Rio de
Janeiro, assumindo diferentes identidades.
O espelhamento manifesta-se, da mesma forma, no âmbito familiar do protagonista. A
família carioca e budapestense reflete-se uma à outra, tendo como intermediário José Costa.
Sobre a família carioca, Costa e Vanda são pessoas antagônicas. Por um lado, Costa
conserva-se no anonimato; por outro, Vanda dedica-se à busca pela fama. Ela,
constantemente, ofusca o marido. Quando Costa passa a viajar constantemente, e Vanda a
viver sem a presença do marido, ela ganha mais notoriedade no seu emprego. Vanda
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167
fora transferida para São Paulo (...) porque o telejornal da noite era gerado em São
Paulo (...) e de segunda a sexta a Vanda ia ao ar em rede nacional. Era um upgrade
na carreira, disse ela, tanto assim que em Higienópolis todo mundo parava na rua,
chegava a ser chato. Disse que por outro lado adorava a efervescência cultural da
cidade, tinha ido a um catatau de exposições. Frequentava restaurantes magníficos
no fim da noite, de tarde malhava na academia. Sem contar que três vezes por
semana tinha fonoaudióloga, porque apresentara problemas de fadiga nas cordas
vocais. Pensava em alugar um apartamento, mas ao mesmo tempo se sentia mais
protegida num residence. Disse também que exigiu da gerência a troca do colchão, e
com isso estava melhor da coluna. (BUARQUE, 2003, p. 81).
Este “upgrade” significa que ela agora se tornou visível no seu ramo de trabalho, que
pode ser representado também por ter “clareado os cabelos, e esticara os cachos, e usava
rímel, pingentes nas orelhas, uma camisa de colarinho, um paletó de homem, com ombreiras”
(BUARQUE, 2003, p. 76, grifos nossos). O clareamento, que alude a um efeito de luzes, e o
esticamento, que Vanda fez em seu cabelo, vão de encontro com o “cabelo preso” do início da
obra. É como se ela estivesse se libertado de Costa e ligada a um outro momento da sua vida
pessoal e profissional. Quando estica os seus cabelos, podemos entender que ela conseguiu se
firmar no emprego, ou seja, que houve uma ascensão no seu emprego, devido a sua mudança
de visual. Prova disso, é que os cabelos adquiriram luzes, foram realçados. Os cachos, que
podem representar um enrolamento pessoal e profissional, passam a não mais existir. O rímel
nos olhos contrasta com a anterior sombra com que ela se maquiava. O rímel serve para
colorir os cílios. Vanda agora tinha cores, diferentemente do começo, em que ela possuía uma
sombra sem nenhuma cor, ou melhor, com uma cor escura. Também podemos entender que o
cílio é uma parte do corpo que serve para esconder os olhos e o rímel é útil para curvar os
cílios, dando destaque aos olhos ao invés de escondê-los. O pingente nas orelhas vai de
encontro com o colar de miçangas que ela usava. O pingente é um brinco que fica pendente na
orelha. O “pender” pode ser deduzido, no caso de Vanda, como uma pessoa que se tornou
decidida, realizada e determinada para aquela sua função. Da mesma forma, podemos pensar
nas “ombreiras” que, por ampliação de sentido, é entendido como uma entrada, servindo para
dar passagem, que em relação à Vanda, é marcada pela saída de um jornal local para o
ingresso em um jornal nacional.
Já Joaquinzinho é o filho de Costa e Vanda. Ele “ia completar cinco anos e não falava
nada, falava mamãe, babá, pipi” (BUARQUE, 2003, p. 30-31). Esta sua carência na fala
reflete a inexistência de voz que o ghost writer tem sobre os seus escritos. Chevalier (2009)
diz que os espelhos provocam a reflexão das ações dos homens. Com isto, percebemos que
Joaquinzinho se torna reflexo de Costa no sentido de que os dois não possuem opinião
Nas fronteiras da linguagem ǀ
168
manifesta. Aquele não estabelece nenhuma conversa com o pai, mesmo na insistência deste.
Por exemplo, quando está a procura da esposa e pergunta ao filho “cadê a mamãe?, cadê a
mamãe? Começou a chorar alto” (BUARQUE, 2003, p. 78). Entretanto, a criança imita o pai.
O narrador relata que
pela madrugada ele [Joaquinzinho] pegou a mania de balbuciar coisas sem nexo,
inventava sons irritantes, uns estalos nos cantos da boca; eu não tinha sossego nem
minha cama, me segurava, me mordia, finalmente estourei: cala a boca, pelo amor
de Deus! Calou, e a Vanda saiu em sua defesa: ele está só te imitando (BUARQUE,
2003, p. 31).
A realização da imitação demonstra que o filho é o espelho do pai, pois ele tenta
reproduzir fielmente o que Costa falava quando estava dormindo. Era como se Joaquinzinho
tentasse copiar o pai, e como este era um ghost writer que não se manifestava publicamente, o
filho também não se revelava abertamente. Contudo, são “espelhamentos imperfeitos”, pois a
privação de Costa sucedia pela escrita, não assumindo ostensivamente o que produzia, e o de
Joaquinzinho ocorre pela fala, que somente é articulada no colóquio entre ele e a mãe. A
própria empregada do casal já havia pronunciado que “bebê que se vê refletido no espelho
fica com a fala empatada” (BUARQUE, 2003, p. 32, grifos nossos). Entendendo que o
reflexo é a imagem do pai, a palavra “empatada” pode significar tanto “impedida” como
“igualitária”. Joaquinzinho tem dificuldades em se expressar, ou seja, a propriedade da fala é
um estorvo (impedida) para o garoto; assim como a apropriação da escrita é para Costa.
Nenhum dos dois se apodera publicamente da palavra.
Além disso, Costa transforma-se em um pai ausente, pois passa a morar em Budapeste
e quando retorna ao Rio de Janeiro o seu filho não o reconhece. Eles se encontram
casualmente em uma loja de sucos, onde Joaquinzinho estava acompanhado de outro jovem.
Costa conta que “eram jovens musculosos, de cabeças raspadas e abundantes tatuagens, um
com répteis que lhe subiam pelos braços, o outro com uma espécie de hieróglifos espalhados
no peito nu. Mastigavam sanduíches de boca aberta” (BUARQUE, 2003, p. 155, grifos
nossos). Reparemos que Joaquinzinho já não é mais uma criança. Este fato marca, de maneira
imperfeita, o tempo em que Costa esteve no país estrangeiro. A musculosidade dos jovens
pode representar, mais especificamente no filho de Costa, a força em superar situações
difíceis, como a ausência dos pais (visto que Vanda também era distante, pois trabalhava
como repórter de um jornal em São Paulo e estava sempre viajando). Daí a “cabeça raspada”
ter o sentido de que a memória (cabeça) fora suprimida (raspada), não havendo o
reconhecimento do pai, e a tatuagem seria a única coisa duradoura e permanente. Sendo que,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
169
em Joaquinzinho, o desenho no corpo, segundo Costa, é um hieróglifo, o que sugere uma
pessoa enigmática, ligando-o ao pai que, por ser um ghost writer, tem o seu trabalho como
algo obscuro. A tatuagem é um sinal que pode revelar o possuidor da mesma, mas o hieróglifo
traduz uma dificuldade em decifrar quem é este sujeito; talvez, por isto, Costa demora a
reconhecê-lo. Ademais, o espelhamento também está presente neste desenho marcado no
corpo, porque a figura reflete a ambiguidade que são os dois personagens, Joaquinzinho e o
seu pai. Eles têm características misteriosas e ocultas: um em relação à fala, o outro à escrita.
Além disso, a imagem é exposta em um “peito nu”, podendo demonstrar que o jovem está
desprovido, por isso a nudez, de qualquer sentimentalismo, pois o “peito” é onde está
localizado o coração, podendo ser entendido, simbolicamente, como o lugar das emoções. O
outro jovem, companheiro de Joaquinzinho, usufrui de uma tatuagem de réptil no braço,
significando que é um sujeito que tem uma personalidade rasteira, assim como o animal,
também podendo ser interpretado como um mau caráter. Como a imagem está no braço,
demonstra que ele produz poderosa influência em Joaquinzinho, talvez seja por isto que
ocorre a perseguição à Costa. Já no fato dos jovens estarem “mastigando um sanduíche de
boca aberta”, percebemos que a ação de “mastigar” significa a mesma coisa que “triturar” ou
“destruir”; o “sanduíche” é feito com duas fatias de pães e como Costa e Joaquinzinho são
personagens espelhados, podemos assimilá-los aos pães, cada um seria uma banda; na
mastigação de “boca aberta”, julgamos a “boca” tendo sentido de “início” e como ela está
“aberta”, pensamos que a abertura pode ser entendida como “receptivo a uma conversa” ou de
um “diálogo entre os dois”. Portanto, Joaquinzinho estaria destruindo qualquer princípio de
diálogo entre ele e o pai, ao comer o pão.
Como nem o garoto e nem Costa se identificam, os dois jovens resolvem perseguir o
ghost writer ao sair da loja e Joaquinzinho
veio andando com um cigarro na boca e me fez um sinal com os dedos, pedindo
fogo. Apalpei o bolso onde costumava levar cigarros, estava vazio, mas ele
continuava a avançar, praticamente se colou em mim. Era um palmo mais alto que
eu, meus olhos batiam no seu peito, e por instantes imaginei que poderia decifrar os
hieróglifos ali tatuados. Depois olhei os olhos com que me fitava, e eram os olhos
femininos, muito negros, eu conhecia aqueles olhos, Joaquinzinho. Sim, era meu
filho, e por pouco não pronunciei seu nome; se lhe sorrisse e abrisse os braços, se
lhe desse um abraço paternal, talvez ele não entendesse. (BUARQUE, 2003, p. 156157, grifos nossos).
Apenas neste momento é que Costa reconhece o filho. Esta identificação é feita por
meio do “olhar” de Joaquinzinho. O “olho”, aqui, representa o órgão de esclarecimento,
porém, segundo o protagonista, a revelação é apresentada somente para ele. Por outro lado,
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Costa põe em dúvida o fato de Joaquinzinho não reconhecê-lo, “talvez ele soubesse desde o
início que eu era o seu pai, e por isso me olhava daquele jeito” (BUARQUE, 2003, p. 157).
Por fim, eles acabam se separando e não conseguem mais se avistarem.
Conforme estamos defendendo, a família de Costa, no Brasil, é o “espelhamento
imperfeito” da família na Hungria. Assim sendo, Joaquinzinho equivale a Pisti e Vanda à
Kriska. Então, iremos, agora, verificar como a mãe e o seu filho budapestense estão
relacionados com Costa e seus respectivos espelhos brasileiros.
O narrador compara Pisti a Joaquinzinho, dizendo que “Pisti regulava com meu filho,
apesar de miúdo, e puxara a mãe no rosto largo com as maçãs saltadas, nos lábios finos, nos
cabelos escorridos porém negros, no tom imperativo” (BUARQUE, 2003, p. 65-66, grifos
nossos). O fato de ele “regular”, ou seja, harmonizar com Joaquinzinho, comprova a reflexão
que há entre eles, pois significa que são comparáveis, tendo características aproximadas, mas
não necessariamente semelhantes, o que indica possíveis diferenças. O tamanho reduzido de
Pisti dá a entender que é atento aos detalhes; as companhias de um “rosto largo”, dos “lábios
finos” e dos “cabelos escorridos” mostram que, além de ser amplamente (largura) ousado, tem
uma linguagem afiada e sem volteios, não é à toa que, constantemente, ofende Costa. A
negritude dos cabelos talvez denote que é um indivíduo complicado, até porque está associado
ao “tom imperativo”, demonstrando o caráter dominador. Outro vínculo que chama a atenção
é a paronimia das palavras “Pisti” e “Peste”. Se relacionarmos estes dois nomes e pensarmos
em “peste” como um signo brasileiro regionalizado, então, Pisti pode ser uma pessoa geradora
de problemas.
Diferentemente da amizade com seu filho, Costa tem uma convivência com Pisti mais
perturbadora. Constantemente, este quer rebaixar aquele, talvez com o intuito de mostrar a
passividade de Costa perante todas as circunstâncias. Por exemplo, quando Kriska ia preparar
a refeição, o garoto convidava o protagonista para jogar bola e “escalava-me como goleiro,
batia uma saraivada de pênaltis e apreciava que eu me atirasse no terreno pedregoso e
encharcado” (BUARQUE, 2003, p. 66). Outra atitude que demonstrava todo o desprezo que
Pisti sentia por Costa é a do riso. O garoto está incessantemente zombando da conduta do
outro. Quando Costa iniciou as aulas na casa de Kriska,
dia sim, dia não, o filho dela rondava por ali, mexia nas coisas, ria da minha cara,
não sossegava enquanto Kriska não o despachasse para a cama. Divertia-se, Pisti, ao
ver um homem grande olhando figuras em álbuns coloridos, um homem gago
aprendendo a falar guarda-chuva, gaiola, orelha, bicicleta (BUARQUE, 2003, p. 63,
grifos nossos).
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171
Pisti costumava ficar próximo de Costa, não com o objetivo de admirá-lo, mas para
desprezá-lo, diferentemente de Joaquinzinho que tentava imitar o pai. A distração do garoto
budapestense era menosprezar o ghost writer. Outros meios em que exprimia este desdém
eram com palavras grosseiras, com o intuito de mostra a improficuidade de Costa. Este chega
a Budapeste e fica hospedado na casa de Kriska, que o arruma um emprego. Para praticar o
seu domínio do magiar, ele passa a corrigir os exercícios de escola de Pisti. Entretanto,
quando Costa fala a palavra “középiskola”, o menino o recrimina, denominando-o de “idiota”
por pronunciar erroneamente. O signo “idiota” remete a alguém sem valor, revelando a
inutilidade de Costa para o filho de Kriska. Desse modo, o garoto se torna o “espelhamento
imperfeito” de Joaquinzinho, pois este é o filho de Costa, no Brasil, e aquele é uma espécie de
afilhado, em Budapeste. A diferença entre eles está, justamente, no trato em que é dado ao
protagonista, que é o intermediário.
O outro espelhamento, que destacamos, é entre Vanda e Kriska. O nome completo
desta é Fülemüle Krisztina. A palavra “fülemüle” é a mesma dada a uma ave migratória,
sendo que, no caso de Kriska, não havia mudanças de países e nem linguísticas; ela é uma
pessoa purista, como são percebidas pelas advertências comunicadas à Costa, quando o
ensinava a língua húngara: “para ajustar o ouvido ao novo idioma, era preciso renegar todos
os outros” (BUARQUE, 2003, p. 64) e “me recomendou evitar outros idiomas durante o
período letivo” (BUARQUE, 2003, p. 71). Após conhecer o ghost writer, Kriska passa por
transformações que eram acompanhadas de acordo com o progresso ou regresso do
aperfeiçoamento linguístico dele em Budapeste. O uso de determinado tipo ou privação da
roupa, por ela, é um dos meios que revela o seu relacionamento com o aprendizado de Costa.
A natureza do novo homem moderno, desnudo, talvez se mostre tão vaga e
misteriosa quanto a do velho homem, o homem vestido, talvez ainda mais vaga, pois
não haverá mais ilusões quanto a uma verdadeira identidade sob as máscaras.
Assim, juntamente com a comunidade e a sociedade, a própria individualidade pode
estar desmanchando no ar moderno (BERMAN, 2007, p. 136, grifos nossos).
A identidade de Kriska está interligada a de Kósta, quando este se encontra em
Budapeste. Ela age de acordo com o desenvolvimento linguístico dele e, quanto mais avanço,
menos roupa é usada por ela. Como eles estão intrinsecamente unidos, não há uma
individualidade a ser observada, mas ações comuns aos dois. Por exemplo, nos momentos em
que ele ascendia na língua magiar, Kriska se sentia mais a vontade para usar roupas curtas e
se despir, por outro lado, quando Costa não lembrava ou errava o idioma local, ela ficava mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ
172
reservada. Portanto, o domínio da língua húngara significava a conquista de Kriska. O
narrador diz que nas aulas iniciais do idioma
me fazia passar sede, porque eu falava, água, água, água, água, sem acertar a
prosódia. Os pães de abóbora, um dia trouxe à sala uma fornada deles, passou-os
fumegantes sob o meu nariz e jogou tudo fora, porque eu não soube denominá-los.
Mas antes de fixar e de pronunciar direito as palavras de um idioma, é claro que a
gente já começa a distingui-las, capta seu sentido (...) e um dia descobri que Kriska
gostava de ser beijada no cangote. Aí ela tirou pela cabeça o vestido tipo mariamijona, não tinha nada por baixo, e fiquei desnorteado (BUARQUE, 2003, p. 4546, grifos nossos).
A façanha de já conseguir apreender o significado de algumas palavras, forneceu,
também, a capacidade de mostrar o gosto de Kriska em receber beijos. Consequentemente, a
roupa comprida deixou de pertencê-la, isto é, à medida que Costa desvendava a língua
estrangeira, Kriska é revelada, como é percebido no ato de desnudamento desta. Em outra
situação, em que os dois estão juntos, Costa receia falar algo que não seja a língua húngara,
visto que, provavelmente, esta conduta implicaria em uma mudança de atitude de Kriska. Ele
diz que “num movimento único tirou o vestido pela cabeça (...). Tive medo de, num arroubo,
puxá-la contra o peito e falar as coisas que eu só sabia falar na minha língua, enchendo seus
ouvidos de palavras indecorosas, quiçá africanas” (BUARQUE, 2003, p. 68). Notemos que as
palavras pertencentes à língua estrangeira seria uma obscenidade, agredindo moralmente
Kriska, que, possivelmente, recomporia. Ela costumava exibir-se a Costa que, para este, era
entendido e comparado com as imagens utilizadas nas aulas para apreender o idioma, pois ela
teria que ser observada e lida. O protagonista relata que “desconfio que o tempo inteiro estava
se mostrando, como nos álbuns me mostrava estrelas e cavalos, mas olhando Kriska em
movimento eu aprendia mais” (BUARQUE, 2003, p. 64). Costa a equipara a ilustrações.
Logo, é visível a conexão entre Kriska e o aprendizado húngaro. Permanecer ao lado dela
traduz preservar o vernáculo budapestino. “Um mês em Budapeste, na verdade, significava
um mês com Kriska, porque sem ela eu evitava me aventurar na cidade; receava perder, no
vozerio da cidade, o fio do idioma que vislumbrava pela sua voz” (BUARQUE, 2003, p. 6465, grifos nossos). Privar-se de Kriska denota a perda do idioma.
Depois de passar um bom tempo no Brasil, Costa decide retornar a Budapeste. Ao
chegar neste país, que enfrentava um forte inverno, ele procura por Kriska, mas ao interfonar
e não ser atendido, acaba desmaiando em frente a casa dela. Ao acordar,
despertei de pijama num divã, debaixo de cobertores, a cabeça enfaixada, olhei para
Kriska e tive um pouco de medo de seus lábios delgados. Desatei a falar da minha
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penúria, da minha condição de sem-teto em Budapeste, me disse perseguido político
em meu país e repetidas vezes a ouvi suspirar. Mas era por causa do meu húngaro,
tão precocemente deteriorado, que ela se condoia. E me fez calar, magoada com
razão, porque o idioma assim desaprendido, para ela, devia ser como a branca pele
dela que eu teria esquecido tão depressa (BUARQUE, 2003, p. 122-123, grifos
nossos).
Não obstante Costa fantasiar algumas misérias, ela fica desgostosa pela fragilidade que
ele apresentava no domínio do húngaro. Reparemos que Kriska estava desgostosa porque o
esquecimento do idioma significava, consequentemente, o esquecimento dela mesma. Então,
mais uma vez, percebemos a relação direta entre ela e o idioma. Após este acontecimento,
Costa vive na despensa da casa. A palavra “despensa” tem uma ligação paronímica com
“dispensa”. Daí, existe a possibilidade de pensarmos que, devido ao descuido com a língua
húngara e, por conseguinte, com Kriska, Costa se torna uma pessoa dispensável. Ela abdicava
de falar com ele e, como a língua está relacionada à roupa da própria personagem, de
apresentar-se de maneira descomposta. Assim, “falar, quase não me falava, (...) da mesma
maneira que nem o cachecol despia na minha frente. (...) Daí que meu pobre húngaro (...) só
podia caducar” (BUARQUE, 2003, p. 123). Kriska, notando que ele estava prestes a perder
tudo que havia aprendido, resolve arranjá-lo um emprego. Com isto, Costa reaprende o
idioma magiar e a reconquista. Neste caso, ela, que andava recatada, agora “usava uma saia
bem curta (...) e tornara a me querer bem.” (BUARQUE, 2003, p. 127), significando que não
estava mais decepcionada.
Entendemos, a partir de todas as ações realizadas por Kriska, que ela crescia
juntamente com ele. Diferentemente de Vanda, que desejava chegar à fama independente do
seu marido, enquanto que Kriska acompanhava Costa no seu desenvolvimento e regressão.
Elas se tornam um “espelhamento imperfeito”, visto que uma é a mulher de Costa no Brasil e
a outra em Budapeste; são comparadas por ele em circunstâncias diferentes, por isso o
espelhamento, e é imperfeita por não terem objetivos iguais quando se trata do ghost writer,
ou seja, uma é oposta a outra em relação à Costa, que é o ponto de conexão entre as duas. Ele
fala que “deitei-me com Kriska, e para melhor abraçá-la me lembrei de Vanda” (BUARQUE,
2003, p. 68), como se fossem uma só. Quando estava no Rio de Janeiro, Costa conta que ao
lembrar que, antes de conhecer seu [de Kriska] corpo, chegara a suspeitar de
qualquer coisa errada nele, tão diferentes seus movimentos dos de Vanda. A não ser
quando andava de patins (...). Às vezes, (...) eu lhe sugeria que os calçasse; era uma
maneira de melhor (...) me recordar da Vanda (BUARQUE, 2003, p. 94).
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Portanto, nos dois momentos, Costa tenta assimilar uma mulher com a outra, fazendo
com que as duas fossem o espelho da outra.
Os espelhamentos não se encerram apenas entre os personagens. Existem, também,
entre os escritos de Costa e em meio ao próprio romance Budapeste. Todos os reflexos
possuem como intermediário o ghost writer, pois ele é a relação direta que há entre os
personagens. Tratando-se da primeira ligação (José Costa - Zsoze Kósta), vimos que “o
sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando
fragmentado; composto não de uma única identidade, mas de várias identidades, algumas
vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 2006, p. 12). Portanto, na obra estão
presentes questões de identidades referentes à nacionalidade e à composição escrita adotada
por Costa. Na simples mudança de nome há significados que abrangem toda a história do
personagem. Sobre a segunda comparação, colocaremos como Joaquinzinho – José Costa –
Pisti. Aqui, os dois garotos se relacionavam com o escritor de maneiras distintas; o primeiro,
por ser o filho, tenta refletir o próprio pai através de imitações imperfeitas da língua húngara e
do silêncio público, que se correspondia com os escritos anônimos de Costa, nunca sendo
pronunciado em público a não ser no próprio ocultamento; do outro lado existe Pisti, que não
era filho de Costa, porém tratado como tal, mas aquele repugnava este. Ele não tentava imitar
o ghost writer, mas humilhá-lo com deboches. Enquanto Joaquinzinho queria aproximar-se de
Costa, Pisti desejava afastá-lo. Na terceira descrição realizada, Vanda – José Costa – Kriska,
há em comum o fato de ser mulheres que Costa se relaciona, uma no Brasil e a outra em
Budapeste; a diferença entre elas é que o crescimento profissional e relacional de Vanda não
estava em simetria com o de Costa, ao passo que o de Kriska era progressivo com o dele.
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Tradução de Carlos Felipe Moisés; Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.
BUARQUE, Chico Budapeste. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 23. ed. Tradução de Vera da Costa e Silva
et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Tradução de Tomaz Tadeu
da Silva; Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
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175
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.
MACHADO, Irene. Escola de Semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da
cultura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais.
9. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. 9. ed. Organização de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. p. 7-73.
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CARPENTIER E A MÚSICA: ENTRE SONATAS, ROMANCES
E ENSAIOS
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Amanda Brandão Araújo Moreno (UFPE)
“nenhuma música lhe era humanamente indiferente”
É comum no âmbito da crítica e da teoria literárias isolar um aspecto da obra de
determinado autor e analisá-lo de forma pontual a fim de melhor esmiuçar o tal aspecto desde
um ponto de vista relacional, seja com outra obra do mesmo autor ou com um outro conjunto
de obras que possam relacionar-se com a primeira, alvo maior da análise. É certo que muitas
vezes essa prática privilegia um método que acaba por negligenciar outras questões, também
importantes, do projeto literário de um escritor. Por outro lado, essa metodologia oferece
aportes mais densos e melhor embasados em teorias específicas. Há, entretanto, alguns temas
presentes em obras de determinados autores que são constitutivos de sua produção como um
todo, o que implica que tocar nesses assuntos leva a um comentário geral do projeto do autor.
O tema desse ensaio, acredito, é um desses motivos através dos quais se pode pensar todo um
conjunto de obras de um só autor através de um mote: trata-se das relações entre música e
literatura no projeto literário de Alejo Carpentier. Não se pretende, aqui, comentar a
tecnicidade da presença da música nos livros de Carpentier, haja vista a falta de ferramentas
da teoria musical por parte da autora deste ensaio. Pretende-se, isso sim, apontar alguns
momentos da literatura carpenteriana em que falar do texto é também falar de música. Nossa
intenção é dar destaque a algumas relações propostas pelo autor cubano entre os dois fazeres
artísticos, seja em forma de texto, em sua tessitura propriamente dita, seja como estrutura que
subjaz ou complementa o texto. Estarão presentes, neste ensaio, referências não apenas a
obras da ficção carpenteriana, mas também a textos teóricos e ensaísticos do autor.
Como é sabido, Alejo Carpentier é um autor cubano nascido nos primeiros alvores do
século XX. Filho de um arquiteto francês e uma professora russa, passou muitos anos de sua
vida transitando entre a América e a Europa, fatos que o lavaram ao plurilinguísmo, a uma
educação que não se restringia aos moldes europeus –apesar de baseada neles– e a uma
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relação pouco trivial com várias culturas. No cenário literário, Carpentier é considerado um
dos precursores da novelística atual e um dos principais exponentes do romance hispanoamericano do século XX. O autor somou seus esforços aos daqueles que contribuíram para a
discussão em torno da ideia de América. Suas obras dialogam com ressonâncias históricas ou
literárias que de alguma forma tangenciam a temática ou fazem dela seu assunto principal. O
continente americano figura em seus textos como uma realidade maravilhosa, dotada de
privilégios estéticos extraordinários se comparados com os fornecidos pela Europa. Carpentier
tratou de assumir a experiência latino-americana em sua totalidade, “o mito passou a ser o
próprio real, compreendido na simultaneidade de suas perspectivas prováveis” (JOSEF, 1993,
p. 101); o autor procurou criar uma unidade entre os temas americanos e a cultura universal,
integrando as ciências e as artes no romance. A busca realizada é não apenas da própria
identidade, mas a de toda a Hispanoamérica.
Carpentier acreditava e propunha que todo escritor deveria conhecer pelo menos uma
arte paralela àquela que se dedica, pois isso enriqueceria seu mundo espiritual e sua produção
literária (DE VAN PRAAG, p. 225). A “arte paralela” escolhida pelo autor foi a música. Essa
escolha dificilmente pode ser considerada arbitrária: seu pai, além de arquiteto, fora músico
(violoncelista). Sua mãe também deixara uma veia musical como herança. Desde criança, o
garoto Alejo foi posto em contato com a primeira arte e, durante muito tempo, quis dedicar-se
a ela. Aos sete anos de idade já tocava ao piano prelúdios de Chopin. Antes de escolher a
carreira de escritor, sua ambição era tornar-se compositor. Além de dominar alguns
instrumentos, Carpentier também era especialista em teoria musical e isso se expressa em
vários – senão todos – de seus romances. Alguns títulos, inclusive, remetem diretamente a
esse viés tão caro ao autor: Concierto Barroco (1974), El arpa y la sombra (1979), La
consagración de la primavera (1978), La música en Cuba (1946) e Ése músico que llevo
dentro (2007) são alguns exemplos. Tanto na vida quanto na obra do autor cubano a música
ocupou um lugar privilegiado: Carpentier foi também crítico musical, organizador de
concertos musicais em Havana e testemunha das vanguardas artísticas de sua época durante
seu período de estadia na Europa (de cujo cenário intelectual nunca se desvinculou
totalmente). Carpentier advogava por uma união entre música e literatura que, por sua
afinidade, ofereceria ao escritor as condições suficientes para o desenvolvimento de sua
concepção vital (RUIZ BAÑOS, 1986, p. 65).
De acordo com Carlos Paz Barahona (2005, p. 73), “la música en la obra de Alejo
Carpentier se filtra por entre los espacios de la palabra, adquiriendo funciones complejas
dentro del texto”, e por isso mesmo é difícil precisar em qual de seus romances Carpentier dá
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178
mais espaço aos temas musicais. Em alguns deles a música aparece como estrutura subjacente
ao enredo; em outros, ela compõe parte expressiva da temática desenvolvida. O que é certo é
que em todos seus romances é possível estabelecer alguma relação mais ou menos aparente
com o tema. Em Os passos perdidos (Los pasos perdidos, no original, publicado em 1953),
um dos romances mais expressivos e bem cotados do autor, o personagem principal é um
músico que trabalha numa grande cidade produzindo músicas comerciais. Frustrado com sua
rotina, decepcionado com sua vida pessoal e profissional, aceita um trabalho extra oferecido
por um antigo conhecido. Sua tarefa era viajar para a selva venezuelana, mais especificamente
nas altas extensões do rio Orinoco, e encontrar alguns instrumentos indígenas de origem
primitiva para compor um museu organológico da universidade em que trabalhava o colega
em questão. À medida que penetra e se integra aos labirintos da selva, a viagem se converte
em uma profunda reflexão sobre as etapas históricas mais significativas da América e sobre a
origem da música.
O personagem principal de Os passos perdidos, nos anos iniciais de sua formação de
musicólogo, criara a “teoria do mimetismo mágico-rítmico”, a qual supunha que o nascimento
da expressão rítmica primitiva se devia ao afã de arremedar o passo dos animais ou o canto
dos pássaros. É por causa dessa teoria que o convite é feito ao personagem e se empreende a
viagem. O contato com uma realidade bastante diferente da qual já se havia habituado, os
silêncios da floresta e os ruídos que se desdobravam destes e o posterior encontro dos
instrumentos procurados fizeram com que a teoria musical do personagem fosse diversas
vezes reformulada, até que sua versão definitiva se esboça a partir do que o personagem
chama de “grande revelação”: o nascimento da música lhe ocorrera através do som entoado
pela boca de um feiticeiro que afugenta os “mandatários da morte” do corpo de um homem
que morreu devido à picada de uma cobra. A cena é composta pelo corpo, as pessoas que só
observam e o feiticeiro. Este tange uma maraca e estabelece um diálogo com os tais
mandatários. Ocorre que nesse diálogo as vozes que se alternam não são apenas a do próprio
feiticeiro, mas também da entidade ali presente através da garganta do primeiro. “Entre
‘ambos’ hay diálogo, fricción, combate. De ese roce surgen trinos, portamentos,
contratempos. Las sílabas repetidas forman un ritmo. Las notas que aparecen entre dos trinos
forman una breve melodía. No es música aún, pero tampoco es ya palabra” (PEZZELLA,
2014, p. 206). Nas palavras do personagem:
Estou em morada de homens e devo respeitar seus Deuses... Mas então todos
começam a correr. Atrás de mim, sob uma massa de folhas penduradas nos ramos
que servem de teto, acabam de estender o corpo inchado e negro de um caçador
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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mordido por um crótalo. Frei Pedro diz que morreu há várias horas. No entanto, o
Feiticeiro começa a sacudir uma cabaça cheia de cascalho – único instrumento que
conhece essa gente – para tratar de afugentar os mandatários da Morte. Há um
silêncio ritual, preparador do ensalmo, que leva a expectativa dos que esperam por
seu apogeu. E na grande selva que se enche de espantos noturno, surge a Palavra.
Uma palavra que já é mais do que palavra. Uma palavra que imita a voz de quem
diz, e também a que se atribui ao espírito que possui o cadáver. Uma sai da garganta
do ensalmador; a outra, de seu ventre. Uma é grave e confusa como um subterrâneo
fervor de lava; a outra, de timbre médio, é colérica e destemperada. Alternam-se.
Respondem-se. Uma repreende quando a outra geme; a do ventre torna-se sarcasmo
quando a que surge da goela parece coagir. Há como que portamentos guturais,
prolongados em uivos; sílabas que de repente se repetem muito, chegando a criar um
ritmo; há trinados interrompidos de subido por quatro notas que são o embrião de
uma melodia. Mas vem em seguida o vibrar da língua entre os lábios, o ronco para
dentro, o arquejo em contratempo sobre a maraca. É algo situado muito além da
linguagem, e que, no entanto, está muito longe ainda do canto. Algo que ignora a
vocalização, mas já é algo mais que palavra. A ponto de se prolongar, parece
horrível, pavorosa, essa gritaria sobre o cadáver rodeado de cães mudos. Agora, o
Feiticeiro o encara, vocifera, golpeia com os calcanhares no chão, no mais
desgarrado de um furor imprecatório que já é a verdade profunda de toda tragédia –
intento primordial de luta contra as potências de aniquilamento que se atravessam
nos cálculos do homem. Trato de me manter fora disso, de guardar distâncias. E, no
entanto, não posso furtar-me à horrenda fascinação que essa cerimônia exerce sobre
mim... Ante a teimosia da Morte, que se nega a soltar sua presa, a Palavra, de
repente, abranda-se e desanima. Na boca do Feiticeiro, do órfico ensalmador,
estertora e cai, convulsivamente, o Treno – pois isto e não outra coisa é um treno -,
deixando-me deslumbrado pela revelação de que acabo de assistir ao Nascimento da
Música (CARPENTIER, 2009, p. 200)
A origem da música é um tema recorrente em Os passos perdidos e na obra de
Carpentier como um todo. Mas não se trata de qualquer música. Carpentier tenta abordar uma
música universal, uma que escapa ao olhar puramente ocidental ou europeu. O autor tentar
alcançar a Música primordial, comum a todos os homens. Existe uma constante tentativa de
universalização do particular, a constante mescla de culturas para alcançar a Cultura, a mescla
de músicas para chegar à Música. Essa proposta está em praticamente todas as suas obras,
mas talvez tenha especial desenvolvimento em La consagración de la primavera, a qual se
relaciona diretamente com um ballet de Stravinsky, A sagração da primavera. Nesse
romance, ritmos afro-cubanos contrapõem-se e mesclam-se com o eruditismo de Stravinsky,
corroborando para a teoria carpenteriana da universalidade da música. A ação começa ao final
da década de trinta do século passado, em um hospital de descanso dos feridos em brigadas
internacionais e culmina na Batalla de Playa Girón, fato histórico que comoveu Carpentier. O
próprio autor classifica La consagración de la primavera como seu romance mais longo e
ambicioso, por seu caráter político-revolucionário, que traz um novo olhar sobre a Revolução
Cubana.
Outro romance de Carpentier que traz a música como parte essencial é El acoso. Nesse
caso a música se manifesta não apenas como tema, mas como estrutura subjacente ao enredo.
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Trata-se de “um estudo psicológico dos efeitos do medo, causado pela perseguição, revolta e
injustiça. Durante os 46 minutos que dura a execução da Heróica de Beethoven, as
personagens culminam seu fatum” (JOSEF, 1986, p. 153, grifos da autora). Toda a estória se
desenrola num teatro enquanto é reproduzida a terceira sinfonia do famoso compositor. A
estória, assim como a música em questão, desenvolve-se em vários temas: um introdutório,
que se desenrola no ritmo rápido de um allegro, o qual, minutos depois, será reduzido ao
ritmo lento do adagio e crescerá, numa última parte, num andante animado. O uso que
Carpentier faz da música e a relação estrita que impõe confere ao romance uma nova
dimensão.
Em Concierto barroco também se apresenta um novo encontro entre a literatura
carpenteriana e a música. Dessa vez o relevo é dado à ópera e a relação que se estabelece, em
primeira instância, é com o compositor Vivaldi, que teria escrito a primeira ópera já conhecida
sobre a América. O livro problematiza essa questão, dado que a partitura completa da obra
vivaldiana não foi encontrada, como nos diz o romance de Carpentier. Em Concierto barroco
se vê “la convergencia de músicas diferentes en congregación de elementos, donde a la
música tradicional europea se une la diversidad instrumental americana, un nuevo tratamiento
del ritmo y la facilidad creadora de la improvisación” (BARAHONA, 2005, p. 78).
Como já dissemos, o conjunto dos romances carpenterianos pode ser relacionado à
música. José Antonio Sánchez Zamorano reforça essa opinião, quando diz que
La crítica, en repetidas ocasiones, ha puesto de manifiesto el hecho de que
Alejo Carpentier traslade a su narrativa ordenaciones y esquemas relacionados, en
principio, con el ámbito de la composición musical. Ya en su primer novela, EcuéYamba-O (1933), se rastrean algunas transposiciones: la materia narrativa aparece
distribuida siguiendo ciertas simetrías, tendentes a cerrar la estructura – lo que
constituye uno de los principios básicos del arte musical -, y se usa la técnica de la
recurrencia temática – en música, variaciones sobre un tema-.
Sin entrar en repetidas discusiones sobre sus nombres, se puede llegar a
convenir que casi la totalidad de las obras posteriores de Carpentier se adapta a
estructuras de tipo musical. Así, se ha concebido El reino de este mundo (1949)
como una suite de ballet. Los pasos perdidos (1953) se ha puesto en relación con una
cantata. El acoso (1956) puede considerarse como sonata – o como sinfonía -. El
siglo de las luces (1962) se aproximaría al poema sinfónico. El recurso del método
(1974) y Concierto barroco (1974) se ajustarían, respectivamente, a las cualidades de
la ópera bufa y del “concerto grosso” (ZAMORANO, 2014, p. 327)
As conexões de Carpentier com a música não se expressam apenas, porém, em seus
romances, mas também em textos teóricos sobre o tema. O autor foi o primeiro a escrever, por
exemplo, uma história da música em Cuba, seu país natal, onde foi organizador de eventos
musicais. Em La música en Cuba traz um apanhado da história musical da ilha e suas inter-
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
181
relações com os acontecimentos culturais e sociais do país. Trata-se de um volume profundo,
de análise consistente que ainda hoje não foi superado. Escreveu também vários ensaios sobre
a música na América Latina, embora não se limitasse ao cenário americano.
Ése músico que llevo dentro, traduzido para o português do Brasil como O músico em
mim (2000), traz uma série de ensaios do autor, subdivididos em: a) Sobre compositores –
nesse espaço o autor traz um panorama de opiniões e contrapontos entre grandes nomes da
música do seu e de outros tempos, são comentados nomes canônicos, como Mozart e
Bethoven, Chopin e Wagner. Há um grande espaço para Stravinsky e Villa-Lobos, para
Mahler, Schumann, Puccini, Rossini, Debussy, entre vários outros; b) Intérpretes – nesse
apartado o autor se estende menos, traz alguns nomes, sempre relacionando-os aos
compositores a que davam vida; c) Musicologia – nessa parte estão reunidos vários textos de
opinião, resenhas, críticas musicais e ensaios sobre a música em geral (não só a erudita) os
quais traziam uma perspectiva teórica acurada. Aqui há espaço para a ópera, para sinfonias e
para o jazz; d) A música no teatro – a quarta parte se dedica, como o título tão claramente
indica, à música no teatro, com especial ênfase à ópera; e) Reflexões sobre a música – no
bloco de número cinco se condensam textos menos teóricos sobre a música, nos quais se
expressam problemas frequentes quanto ao tratamento do tema, quanto à profissionalização
do músico, sua relação com a juventude e uma série de questões variadas em torno da
atmosfera musical; f) Ensaios – à última parte do livro cabem apenas dois ensaios, um sobre o
folclorismo musical e outro intitulado “Música e emoção”.
Como se pode constatar, Carpentier deu espaço às mais variadas expressões da música
em suas obras e em sua trajetória artística: em seus romances, o conhecimento musical lhe
servia como subsídio para a estrutura da forma, como mote temático e como plano de fundo;
em seus ensaios, discursou sobre a música a partir de diversos matizes, gerando variadas
nuances, desde a mais teórica à mais reflexiva e desprendida de questões formais. A atuação
de Alejo Carpentier frente à Música reforça a frase de Jorge Luis Borges, a qual dizia que
“todas las artes propenden a la música, el arte en el que la forma es el fondo” 1. Reforça
também a afirmação de Eduardo Rincón sobre Carpentier, em prólogo a O músico em mim:
“poderíamos dizer que nenhuma música lhe era humanamente indiferente”2. À guisa de
conclusão, repetimos as palavras de Sagrario Ruiz Baños (1986, p. 66) ao falar de Carpentier:
um homem que conheceu tão a fundo o mundo da música não podia deixar de ser sensível às
possibilidades expressivas que essa arte lhe oferecia e, assim, um grande conhecedor dos
1 Em “Notas sobre Walt Whitman”.
2 Em prólogo à edição brasileira de O músico em mim, p. 14.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
182
fenômenos musicais, elaborou uma construção literária em que ambas artes, Música e
Literatura inter-relacionadas, oferecem um monumento perdurável de representatividade
humana. Carpentier parece personificar à perfeição esse escritor que realiza a simbiose entre o
musical e o literário de forma coerente.
Referências
BARAHONA, Carlos Paz. Juego, símbolo y fiesta en Concierto Barroco de Alejo Carpentier,
una mirada desde la música. Disponível em <http://www.vinv.ucr.ac.cr/latindex/rfl-31-1/rfl31-1-06.pdf > Acesso em 20.jun.2014.
CARPENTIER, Alejo. La aprendiz de la bruja. Concierto Barroco. El arpa y la sombra.
México: Siglo XXI editores, 1998.
CARPENTIER, Alejo. O músico em mim. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
CARPENTIER, Alejo. Os passos perdidos. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
CHORNIK, Katia. Ideas evolucionistas en “Los orígenes de la música y la música
primitiva”: un ensayo inédito de Alejo Carpentier. Disponível em
<http://www7.uc.cl/musica/cita/Resonancias/26/Chornik.pdf> Acesso em 20.jun.2014.
FRANCIS, Norbert. La ruta de Alejo Carpentier: teoría de los orígenes de la música y los
géneros estéticos. Tamkang Journal of Humanities and Social Sciences, 28, 123-162 (2006).
Disponível em <https://oak.ucc.nau.edu/nf4/pdfs/CarpentierFinal.pdf> Acesso em
20.jun.2014.
JOSEF, Bella. O espaço reconquistado: uma releitura. Linguagem e criação no romance
hispano-americano contemporâneo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
JOSEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática, 1986.
LEAL, Bartolomé. Memorialistas y viajeros. Alejo Carpentier: “Ese músico que llevo
dentro”. Disponível em
<http://www.mauroyberra.cl/contenido/Bartolome/columnaramona/archivos/Alejo%20Carpen
tier.pdf> Acesso em 20.jun.2014
PEZZELLA, Daniel. Significación de la música en “Los pasos perdidos”, de Alejo
Carpentier. Disponível em <http://www.cienciared.com.ar/ra/usr/10/177/hln2.pdf> Acesso em
20.jun.2014.
PRAAG, Jacqueline Chantraine de van. El acoso de Alejo Carpentier estructura y
expresividad. Disponível em <http://cvc.cervantes.es/literatura/aih/pdf/03/aih_03_1_026.pdf>
Acesso em 20.jun.2014.
RUIZ BAÑOS, Sagrario. La música como expresión humanística en una novela de Alejo
Carpentier: estructura fugada de “La consagración de la primavera”. Anales de Filología
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
183
Hispánica. Vol. 2. 1986. Disponível em <http://revistas.um.es/analesfh/article/view/58831>
Acesso em 14.jun.2014.
VILLANUEVA, Carlos (org.). Ciclo de miércoles: El universo musical de Alejo Carpentier,
enero 2012 [introducción y notas de Carlos Villanueva]. - Madrid: Fundación Juan March,
2012. Disponível em
<http://www.march.es/Recursos_Web/Culturales/Documentos/Conciertos/CC762.pdf>
Acesso em 20.jun.2014
ZAMORANO, José Antonio Sánchez. “El siglo de las luces” una sonata de Alejo Carpentier.
Disponível em <http://institucional.us.es/revistas/philologia/5/art_24.pdf> Acesso em
20.jun.2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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PRÁTICAS DE LETRAMENTO NOS ANOS INICIAIS: A
FORMAÇÃO DE LEITORES ATRAVÉS DO MOMENTO DA
LEITURA DELEITE
[Voltar para Sumário]
Amara Rodrigues de Lima (SEEL – Recife)
Introdução
Ensinar a ler e escrever não é uma questão simples, garantir que todas os estudantes
tenham acesso aos conhecimentos necessários para garantir um processo de alfabetização e
avancem nas suas aprendizagens não tem sido uma tarefa fácil, porém possível.
Saber ler e escrever, fazer uso da leitura e da escrita de uma forma funcional nas
diferentes situações do cotidiano, na atualidade, são necessidades precípuas tanto para o
exercício da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de
desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político. Logo é dever do Estado
proporcionar, por meio da educação, o acesso de todos os cidadãos ao direito de aprender a ler
e escrever (MORTATTI, 2004, p. 15).
Nesse sentido a escola pode ser vista como um espaço importante para apresentar aos
alunos o universo do mundo da leitura e contribuir na formação de leitores autônomos
capazes de ler para: aprender a fazer algo, aprender assuntos do seu interesse, informar-se
sobre algum tema e ter prazer na leitura.
É possível perceber no cotidiano da escola que muitos avanços ocorreram em relação
ao trabalho com leitura na sala de aula, especialmente quanto à qualidade dos textos
disponibilizados para as crianças através dos Programas Federais (PNBE/ PNLD Obras
Complementares) Programas que promove o acesso à cultura e o incentivo à leitura por meio
da distribuição de acervos de obras literatura, com o proposito de atrair os estudantes para o
universo da literatura de forma lúdica. (BRASIL, 2012, p. 38)
No entanto, tem-se constatado que persiste um grande número de alunos com
dificuldade de entender o que leem, mesmo quando já estão em etapas mais avançadas de
escolarização. Os baixos resultados apresentados em compreensão leitora, nas provas
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
185
aplicadas em larga escala como Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB),
Sistema de Avaliação da Educação Básica de Pernambuco (SAEPE), Provinha Brasil, entre
outras, apontam a necessidade de um maior investimento no ensino desse objeto de
conhecimento.
O trabalho com leitura na sala de aula tem sido uma das temáticas abordadas no
PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, desenvolvido por meio de
parceria entre o MEC, universidades federais e secretarias de educação. O material elaborado
para subsidiar a formação dos professores tem entre outros objetivos levar os mesmos a
conhecerem os recursos didáticos distribuídos pelo MEC entre os quais (livros do PNBE e as
Obras Complementares aprovados no PNLD) e planejar situações didáticas em que tais livros
sejam usados.
A leitura-deleite, vem sendo discutida quanto à sua importância e possibilidade
pedagógica nas formações do PNAIC e tem passado a fazer parte da rotina da escola. E é
visando discutir acerca do desenvolvimento dessa atividade como uma estratégia na formação
de leitores no Ensino Fundamental que apresentaremos, neste artigo, um relato de experiência
realizado com sessenta e cinco alunos do primeiro ao quinto ano da escola Municipal Córrego
do Euclides, localizada no Córrego do Euclides, bairro do Recife – PE.
1.
Um pouco mais de leitura
Alfabetizar para ser leitor, para se apropriar da escrita e da leitura de forma autônoma,
criativa, para experienciar a leitura e a escrita com seus múltiplos saberes é um grande
desafio. Os acervos disponibilizados através do PNBE, PNLD Obras Complementares e
Programa Manoel Bandeira de Leitores, têm oportunizado as crianças um convívio íntimo e
cotidiano com os livros, proporcionando um acesso privilegiado à cultura escrita,
apresentando-se, assim, como uma ferramenta poderosa no processo de letramento. Para
Soares (1998), o indivíduo letrado faz uso da escrita envolvendo-se em práticas sociais de
leitura e de escrita, respondendo adequadamente às demandas sociais.
Acreditamos que para formar indivíduos capazes de usar eficientemente a leitura é
necessário que a escola planeje o ensino da leitura e de estratégias adequadas a compreensão
textual, enquanto objeto de conhecimento, que possibilita a aquisição de novas aprendizagens.
Fazer uso de recursos, no cotidiano escolar, que contribua para fazer dos alunos bons
leitores é um grande desafio. Nesse sentido, defendemos que a escola seja um espaço onde a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
186
leitura possa também ser deleite. Segundo o Aurélio “deleite” pode ser definido como “gozo
íntimo e suave – prazer intenso, pleno – delícia”. (AURÉLIO, 2001)
Acreditamos que ler por prazer é o que nos faz leitores de fato, ou seja, é o que nos
impulsiona a buscar mais e mais textos, é o que nos dar o direito de negar um texto, escolher
outro texto, enfim interagir com a leitura. Na escola, parece, muitas vezes, haver certa
desvinculação entre leitura e prazer.
Segundo Solé, (1998) diferentes pesquisas tem demonstrado que há pouca variação
nas atividades desenvolvidas no ensino da leitura nas salas de aula, que de maneira em geral,
giram em torno da leitura em voz alta pelos alunos, de um texto ou de fragmentos, enquanto
outros acompanham, de elaboração de perguntas relacionadas ao texto e ficha de trabalho com
aspectos de sintaxe morfológica, ortografia, vocabulário e eventualmente a compreensão da
leitura.
Na verdade, não defendemos que ler na escola seja sempre para deleite. No entanto, é
fundamental que possa ser, também, deleite, para que essa instituição passe a constituir-se, de
fato, como um espaço de formação de leitores. Assim, defendemos que o espaço escolar seja
palco para a de condução de projetos de leiturização em que o leitor seja encarado como um
agente ativo de construção de sentidos.
Para formar leitores, objetivo que vem sendo cada vez mais verbalizado no meio
educacional, será necessário desconstruir práticas onde o leitor não tem voz e o professor é o
único sujeito que conduz o processo, e reconstruir as concepções sobre texto e sobre leitura.
Em primeiro lugar, será preciso reintegrar as preocupações com o ensino das estratégias de
leitura e as preocupações com a formação do leitor.
Solé (1998) define as estratégias de leitura como procedimentos cognitivos e
metacognitivos complexos, já que implicam a capacidade de refletir e planejar nossa própria
atuação enquanto lemos. Nesse sentido planejar um ensino que garanta que os estudantes,
durante a realização da leitura de textos diversos consigam ativar os conhecimentos prévios,
realizar inferência, previsão/ levantar hipótese acerca do texto lido, pode contribui para a
formação de leitores autônomos.
Para isso, é preciso que a leitura seja uma prática constante nas atividades escolares, a
fim de que o aluno − leitor em formação − domine as habilidades de leitura acima referidas.
2.
Relatando a experiência
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
187
Uma forma de tornar rotineiro o ato de ler na escola é a sugestão da “leitura deleite”:
sempre um livro é lido para os alunos, sempre há um cantinho disponível para que os alunos
mergulhem na leitura de livros diversificados. Pensando na formação de leitores que não só
sintam o desejo de ampliar os saberes e informações proporcionados pela leitura, mas que
também tenham prazer na leitura desenvolvemos durante o ano letivo de 2014 um projeto de
leitura com um grupo de 65 alunos de turmas do 1º ao 5º ano de uma Escola Pública da
Cidade do Recife. Durante esse período foram realizadas à leitura de diversos livros que
fazem parte do acervo da escola, construído com as obras do PNBE e PNLD Obras
Complementares, entre os quais destacaremos os livros abaixo.
Figura 1 - Capas dos livros lidos para os alunos durante os momentos de leitura deleite
No primeiro momento da atividade, antes da leitura, o livro era apresentado às
crianças buscando motivá-las a ouvir a história. No segundo momento a partir da leitura do
título buscávamos resgatar os conhecimentos e experiências prévias dos alunos sobre a
história, lançando questões que os levassem a refletir acerca do título. No terceiro momento a
leitura era realizada, em alguns dias pela professora em outros por algum aluno escolhido
previamente. Durante a leitura buscava-se desenvolver um entonação que prendesse à atenção
das crianças. Depois da leitura fazíamos a recapitulação oral da história, tentando fazer com
que as crianças compreendessem os principais acontecimentos, suas causas e consequências.
Considerações finais
As atividades realizadas no desenvolvimento do projeto e apresentadas neste texto
mostraram alguns aspectos importantes no que refere ao ensino inicial da leitura, levando em
consideração as discussões atuais acerca do tema.
Acreditamos que o ensino inicial da leitura deve garantir a interação significativa e
funcional da criança com a língua escrita. Isso implica que o texto escrito esteja presente de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
188
forma relevante no cotidiano da sala de aula e que a criança seja envolvida em atividades
significativas de uso da leitura e da escrita no espaço escolar.
Defendemos que a estratégia da leitura deleite é um instrumento que pode contribuir
para formação de leitores, pois por meio dessa estratégia, as professoras podem estimular os
alunos a ler mais e a socializar suas leituras favorecendo assim, o contato com bons textos.
Ressaltamos, ainda, que a inserção da literatura em sala de aula não pode ser algo
ocasional, acidental e nem pode fazer parte de um preenchimento de tempo sem
intencionalidade. O professor precisa realizar atividades constantes, planejadas, em que os
estudantes tenham acesso ao texto literário e possam refletir coletivamente sobre tais textos.
Foi possível observar que os alunos, quando chamados a participar, de forma ativa,
mostram que têm capacidade de atuar em todo o processo de construção do conhecimento,
demonstrando que são criativos e, principalmente, que se percebem agentes no processo de
construção do conhecimento. Em todos os momentos foi possível perceber a interação das
crianças através do interesse em participar dos momentos de leitura.
Assim foi possível constatar o desenvolvimento dos alunos, o que demonstra que
embora algumas crianças apresentem dificuldades, como o caso de um aluno com deficiência
cognitiva, quando inseridos em atividades sistemáticas de ensino, com a intervenção adequada
dos professores, são capazes de avançar na aquisição dos conhecimentos.
Enfim a proposta de trabalho vivenciada a partir da exploração desses livros nos
mostra que muitas são as possibilidades, para que de forma prazerosa, sejam desenvolvidas
atividades significativas e desafiadoras que contribuam para construção de conhecimentos
acerca da leitura.
Acreditamos que um trabalho nesta perspectiva possa contribuir para a formação de
ouvintes ativos que se engajem na aventura de construir sentidos dos textos lidos pela
professora e futuramente tornem-se leitores ativos.
Referências
BRASIL. Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Formação do Professor
Alfabetizador – Caderno de Apresentação – Brasília – 2012.
MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e Letramento. São Paulo: Unesp, 2004.
SOARES, Magda. Letramento um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
1998.
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METADE ROUBADA AO MAR, METADE À IMAGINAÇÃO:A
CIDADE DO RECIFE POR CARLOS PENA FILHO
[Voltar para Sumário]
Amarino Oliveira de Queiroz (UFRN)
Este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
(Carlos Pena Filho)
O advento da cidade e a participação do poeta no centro desse debate proporcionaram o
registro de diferentes lugares de observação. Discorrendo sobre o tema, Nestor García
Canclini (1998) sugere um mapeamento desse olhar argumentando que o antropólogo chega à
cidade a pé, o sociólogo de carro, pela pista principal, e o comunicólogo de avião, cada um
deles construindo uma visão diferenciada e, por conseguinte, parcial do objeto observado.
Uma quarta e importante perspectiva seria tratada, ainda, por Canclini: aquela vivenciada pelo
historiador, cuja aquisição seria resultado não de uma entrada, mas de uma saída do ambiente
da cidade, partindo de seu centro antigo e seguindo em direção aos seus limites
contemporâneos. Cabe perguntar, portanto: quais poderiam ser as estratégias do poeta diante
dessa questão?
Na Modernidade, a situação do poeta urbano seria definida pelo sentido do
deslocamento: ao tomar conhecimento do seu não locus, o poeta da cidade se disporia na
condição de uma voz outra, a que o escritor mexicano Octavio Paz (1993) descreveria como
uma modulação indefinida, inconfundível, que se converte em diferença original. Já em
Charles Baudelaire, no final do século XIX, a expressão da tragédia do destino humano,
mesclada a uma visão mística do universo constituiria matéria para a poesia na cidade
ocidental moderna. Quase cem anos mais tarde, o poeta pernambucano Carlos Pena Filho
referenciaria, de forma laudatória, a empresa baudelaireana:
A CHARLES BAUDELAIRE
Carlos também
Embora sem
Flores nem aves
Vinho nem naves,
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Eu te remeto
Este soneto
Para saberes,
Se acaso o leres,
Que existe alguém
No mundo, cem
Anos após,
Que não vaiou
E nem magoou
Teu albatroz.
Em nossos dias, contudo, a experiência daquele flâneur que perambulava nas
metrópoles do início do século XX parece não ser mais possível. Para Micael Herschmann
(2000), é como se agora as cidades grandes tivessem se transformado “em um vídeo-clipe, ou
melhor, em uma montagem frenética de imagens descontínuas”, cabendo ao observador
atentar para o fato de que isso “não tem necessariamente um sinal negativo, ou implica uma
perda da experiência coletiva”. Ao contrário, poderá abrir espaço para um esforço de
compreensão da cidade além das “territorialidades exclusivas, bem definidas e/ou isoladas”,
em que o outro “já não é territorialmente distante ou alheio, mas parte constitutiva da cidade
que habitamos”.
Contemporâneo do Modernismo literário brasileiro, Carlos Pena Filho nasceu na cidade
do Recife em 17 de maio de 1929. Filho de pais portugueses realizou seus primeiros estudos
em terras lusitanas, complementando-os na cidade natal, onde também se diplomou advogado.
Publicou em 1952 O Tempo da Busca, seu primeiro livro de poesia, ao qual se seguiram
Memórias do Boi Serapião, A Vertigem Lúcida e Livro Geral, desaparecendo tragicamente
em 1960 na mesma cidade, vítima de um acidente de automóvel.
O ambiente urbano recifense encontrou no poeta um observador atento que tanto
descreveu com ironia e doçura a sua paisagem (Não é que somente em luas,/ o Recife farto
seja; é farto, também de igrejas), como realizou a crônica do cotidiano de sua gente mais
simples (Na cidade que amanhece/ vai a humilde tecelã/ para a fábrica onde tece/ o azul desta
manhã) ou a provocação às elites (...de brasileiros sabidos,/ portugueses sabidões/ que na vida
leram menos/ que o olho cego de Camões,/ mas que em patacas possuem/ muito mais que Ali
Babá/ e seus quarenta ladrões).
Para o sociólogo Gilberto Freyre (1999), em prefácio à edição póstuma de um dos livros
de Pena Filho, “de nenhum poeta do Brasil se pode dizer ter sido, mais do que ele, de sua
cidade, de sua província, de sua região, de sua tradição regional e, ao mesmo tempo, mais, a
seu modo, moderno”. Assim avaliado, o poeta Carlos Pena Filho foi, “tanto quanto Bandeira,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
191
quanto Cardozo, quanto Mauro Mota, quanto João Cabral, cantor por excelência do Recife:
cidade por ele mais amada do que por qualquer outro, poeta ou não-poeta”.
Em longo poema sobre o Recife, entretanto, Carlos Pena Filho revelaria textualmente
aqueles a quem identificaria como “os cantores da cidade”:
Hoje a cidade possui os seus cantores
que podem ser resumidos assim:
Manuel, João e Joaquim.
No Jardim Treze de Maio
Manuel vai ficar plantado
Para sempre e mais um dia
Sereno, bustificado,
Pois quem da terra se ausenta
Deve assim ser castigado...
Os versos que se sucedem, carregados de imagens recorrentes à poesia de Manuel
Bandeira, vão fluindo naturalmente, como um rio, em direção ao universo poético de João
Cabral de Melo Neto:
Água, lama, caranguejos,
Os peixes e as baronesas
E qualquer embarcação,
Está sempre e a todo instante
Lembrando o poeta João
Que leva o rio consigo
Como um cego leva um cão.
Mas vieram de longe as águas
Que aqui no Recife estão,
Já comeram areia e pedra
Lá bem perto do sertão
E é por isso, talvez,
Que escuras e tristes são.
Quase que num só fôlego, o poema de Carlos Pena Filho busca desenhar outro mapa da
cidade em cujos alicerces, fundados sobre a lama dos manguezais e cardozianamente
recobertos pela cor “púrpura de jambeiros” parecem querer sustentar, pedra a pedra e verso a
verso, o horizonte de “coqueiros roxos, azuis, verdes de mar” vislumbrado pelo poetaengenheiro Joaquim Cardozo em sua obra:
O poeta Joaquim que foi
Fazer uma estação de águas
Nos olhos do seu amor
E trouxe nos seus, acesos,
Os cajueiros em flor.
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Mas antes mesmo de prestar reverências a Bandeira, a Cabral e a Cardozo através de sua
poesia, Carlos Pena Filho já havia promovido, na abertura de seu Guia Prático da Cidade do
Recife, uma espécie de fundação física e poética da cidade:
No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros
Do frio sono das pedras.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis
Plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.
O olhar do poeta possibilita aqui a visualização daquilo que Leandro Konder (1994)
definiria como a preocupação de descobrir uma resposta para a instituição da cidade a partir
de sua própria origem física, ressubstanciada no que ele chama de olhar poético e olhar
filosófico. O primeiro deles valeria como advertência para a recuperação, na cidade, de sua
própria humanidade. Humanidade esta que, no caso de Carlos Pena Filho, se desdobra
também numa re-geografia afetiva (Olinda é só para os olhos/ Não se apalpa, é só desejo./
Ninguém diz: é lá que eu moro./ Diz somente: é lá que eu vejo). Um olhar filosófico que não
coincidiria necessariamente, ainda em palavras de Leandro Konder, com um olhar poético,
mas que abarcaria aspectos mais abrangentes, para além daqueles que a síntese poética
pudesse situar. Nestes termos, num misto de sarcasmo e ternura, canta o poeta Carlos:
Na avenida Guararapes
O Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antônio
Tanto se foi transformando
Que, agora, às cinco da tarde
Mais se assemelha a um festim,
Nas mesas do bar Savoy
O refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp
São trinta homens sentados
Trezentos desejos presos
Trinta mil sonhos frustrados.
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Ainda que versos como estes não engendrem automaticamente o sentido da cidadania, a
cidade passaria a ser, reiterando a afirmativa de Konder, o lugar onde melhor poderia ser
travada a luta pela efetivação desse exercício:
Mas não é só junto ao rio
Que o Recife está plantado,
Hoje a cidade se estende
Por sítios nunca pensados,
Dos subúrbios coloridos
Aos horizontes molhados.
Horizontes onde habitam
Homens de pouco falar
Noturnos como convém
À fúria grave do mar.
Amigo pessoal e estudioso da obra do poeta, ao referir-se ao Guia Prático da Cidade do
Recife, o escritor Edilberto Coutinho (1983) afirmou que Carlos Pena Filho foi “um poeta
político, interessado em cada aspecto da vida de sua cidade” e que essa obra é, “por vezes
uma representação exagerada, satírica e, portanto, crítica, da realidade; uma espécie de
autêntico ‘antiguia’, se pensarmos nos roteiros oficiais de atrações turísticas” posto que nela,
precisamente, o poeta Carlos “trata também do ‘povo marginal,/ escuro e anfíbio’ que habita
os mangues do Recife, (...) entre outros habitantes menos privilegiados de sua cidade”:
Recife, cruel cidade,
Águia sangrenta, leão.
Ingrata para os da terra,
boa para os que não.
amiga dos que a maltratam,
inimiga dos que não
Este é o teu retrato feito
com tintas do teu verão
e desmaiadas lembranças
do tempo em que também eras
noiva da revolução.
A aparentemente contraditória queixa do poeta, associando à cidade as figuras de “águia
sangrenta” e “leão”, da mesma forma que evoca nostalgicamente a imagem de uma “noiva da
revolução” talvez pudesse encontrar analogia no estereótipo do caráter rebelde de sua gente,
atribuído ao fato de vir o Recife colecionando, ao longo de sua história, uma trajetória de
insurgência civil frente às manobras das oligarquias que desde o advento das Capitanias
Hereditárias ocupam expressivo espaço no gerenciamento político da cidade e do Estado,
observável ainda em vários aspectos de suas manifestações culturais e perceptíveis inclusive
na literatura que produziu e produz. Talvez se pudesse estender esse esboço de compreensão
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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da cidade considerando as diversas convulsões sociais pelas quais passou, como a Guerra dos
Mascates, a Revolução Praieira ou a Revolução Pernambucana de 1817, chegando ao
desmonte político promovido pelas frentes populares ao conquistarem a prefeitura, no pleito
do ano 2.000, dissolvendo em votação direta a alternância no poder cristalizada pelos políticos
representantes das oligarquias rurais canavieiras em aliança com muitos de seus ex-opositores
históricos, feito que se manteve ao longo dessa primeira década do século XXI.
Quem sabe, pelo estudo da estrutura de suas festas de carnaval, referência poética para o
próprio Carlos Pena Filho. Também ele desenvolveu densa atividade como letrista de música
popular, como em A Mesma Rosa Amarela, poema composto para servir de letra a frevo-debloco de Capiba, um dos mais importantes compositores pernambucanos do século XX,
parceiro de vários outros poetas e escritores. Re-formatada em ritmo de bossa-nova, gênero
emergente em todo o país na virada dos anos 50 para os 60, esta canção talvez constitua o
mais conhecido exemplo do Carlos Pena Filho letrista de música popular. Objeto de variados
registros fonográficos locais e nacionais a partir de 1960, ano de desaparecimento do poeta,
com destaque para aquele apresentado pela cantora e compositora Maysa, o sucesso de A
Mesma Rosa Amarela representaria ainda, juntamente com as outras parcerias musicais do
poeta com Capiba, um marco no diálogo entre literatura e música em Pernambuco, ampliando
o circuito de penetração da obra poética de Carlos Pena Filho:
Você tem quase tudo dela:
o mesmo perfume,
a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Só não tem o meu amor.
Mas, nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela:
o mesmo perfume,
a mesma cor,
a mesma rosa amarela...
O carnaval do Recife preservaria, ao longo do século XX, muitos elementos
característicos de seus primórdios no século anterior, sobretudo no que diz respeito à
participação espontânea dos diversos segmentos sociais e à pluralidade das manifestações
culturais. Baseados na região portuária, local de fundação da cidade, e arregimentados por
corporações de trabalhadores em instituições conhecidas como clubes de rua, a grande
maioria existente até os dias atuais, várias entidades de classe desfilavam em cortejo pelas
vias públicas, promovendo entre si entusiasmada competição. Grupos de dançarinos
estrategicamente posicionados levavam ao fervo a multidão, fazendo o passo, ou seja,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
195
dançando o frevo ao som dos metais de bandas militares ou fanfarras arregimentadas para a
brincadeira.
Mais do que uma atividade alternativa de lazer em que se abria espaço para a livre
expressão e a crítica social, essa festa consistia, pelo seu tom dionisíaco, num contraponto ao
bem comportado entrudo, celebração carnavalesca introduzida no Brasil pela colonização
portuguesa e cultivada pelas elites da época, resguardadas em salões de festa e outras áreas
privadas. O clube carnavalesco dos “Vassourinhas”, por exemplo, fundado e conduzido
originalmente pelos trabalhadores da limpeza urbana, seria responsável pelo hino espontâneo
do carnaval da cidade, o Frevo dos Vassourinhas, bem como pela verdadeira catarse coletiva
que acomete os foliões já em seus primeiros acordes.
Talvez a problematização acerca de um caráter “rebelde” da cidade do Recife pudesse
ser orientada, ainda, a partir dos embates culturais e literários reivindicando a existência de
um surto modernista local e autônomo na década de 20 do século passado, chegando à
discussão, já posterior à presença física do poeta Carlos Pena Filho, de questões relacionadas
com uma cultura erudita brasileira baseada nas raízes nordestinas, onde os produtos artísticos
e literários traduziriam o cruzamento verificado entre o artesanato, a literatura de Cordel, as
manifestações populares e a cultura hegemônica. Nisto parecia estar fundado o pensamento
armorial, cujas bases estéticas foram defendidas por Ariano Suassuna em seu movimento
homônimo a partir de 1970, e sumariamente questionado pelo olhar proposto através do
Movimento Mangue, já nos anos 90.
A partir do levantamento de questões como as expostas acima é que a cidade do Recife,
a “águia sangrenta, leão” do poeta Carlos, talvez pudesse ser mais amplamente avaliada. A
propósito, o primeiro dos dois Manifestos Mangue, assinado por Fred Zero Quatro e Renato L
e publicado no início da década dos 90, dispõe de algumas idéias sinalizadoras para uma
possível re-significação da cidade:
Mangue - O Conceito
Estuário: parte de um rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas
margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou
subtropicais inundadas pelo movimento dos mares. Pela troca de matéria orgânica
entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais
produtivos do mundo (...)
Manguetown - A Cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após
a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a
crescer desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição
dos seus manguezais. Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção
Nas fronteiras da linguagem ǀ
196
de “progresso”, que elevou a cidade ao posto de metrópole do Nordeste, não tardou
a revelar sua fragilidade (...)
Mangue - A Cena
(...) Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da
cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo é engendrar “um
circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede
mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica
enfiada na lama (...)
Essa atitude mangue, manifestada esteticamente a partir da música e com passagens
pela escultura, a pintura, o cinema, a moda, as artes cênicas e a literatura, representou mais do
que uma possibilidade de ressignificação da cidade que Carlos Pena Filho cantou. O próprio
poeta lançou mão de recurso extraliterários, como é o caso de sua já referida aproximação
com a música, em parceria com Capiba, ou o namoro constante com a pintura, metaforizado
através da insistente alusão às cores em seus versos (rosa amarela, subúrbios coloridos, verdes
intervalos), que se fundiam, inclusive, como em novas cores para novas palavras (verdágua,
ourazul, azulverde). A evocação do azul intenso do céu nordestino e o verde dos mares e dos
canaviais, entretanto, constituiriam as presenças mais recorrentes, através das quais o poeta
usa as "tintas do seu verão" para pintar, poeticamente, a cidade, a amada e a si próprio:
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
Em seu já mencionado Livro de Carlos, Edilberto Coutinho afirma ser “a cor, entre elas
o azul, seguido do verde”, um elemento recorrente e fundamental dentro da obra de Carlos
Pena Filho. Uma estatística levantada pelo crítico Renato Carneiro Campos aponta para
quarenta como sendo o número de vezes em que a palavra azul aparece nos versos de Pena
Filho. Neles, lembra Coutinho, “a amada é bela e azul, assim como, num certo carnaval, se
viu o poeta dependurado nos cabelos azuis de fevereiro”. Sua linguagem, plena de oralidade e
essencialmente musical, tem sempre um forte apelo pictórico, visual, plástico, “como se ele
realmente às vezes pintasse com palavras”.
Ao pintar de azul seus versos e sapatos, o poeta Carlos revelaria também outros tons
dessa cidade do mangue, “onde a lama é a insurreição”, como afirmaria na
contemporaneidade um seu outro cantor, Chico Science. Ao depor sobre o conceito de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
197
pluralidade usando a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama como metáfora, a
movimentação mangue acabaria por perturbar a idéia de uniformidade de expressão e
comportamentos característicos da cidade que interpretações mais apressadas poderiam
sugerir, injetando “um pouco de energia na lama” e estimulando “o que ainda resta de
fertilidade nas veias do Recife”, conforme se fez registrar em seu primeiro manifesto. É o que
se pode verificar nesses fragmentos do olhar lançado por Chico Science sobre um Recife tão
próximo e ao mesmo tempo tão distante do poeta Carlos, em que “a cidade não pára, a cidade
só cresce/ o de cima, sobe/ e o de baixo, desce”, mas onde “eu me organizando, posso
desorganizar” ou “desorganizando, posso me organizar”, porque basta “um passo à frente/ e
você não está mais no mesmo lugar”.
Tanto o Recife de Chico, “onde estão os homens-caranguejo”, numa evocação ao
geógrafo pernambucano Josué de Castro, como a cidade de Carlos, de Manuel, de João, de
Joaquim, por “bela e azul e improcedente” parecem não renunciar “ao privilégio de ser bela e
azul” e permanecem, conforme anuncia a arquiteta paulistana Raquel Rolnik (1995),
“ocupando e conferindo um novo significado para um território” e “escrevendo um novo texto
(...) como se a cidade fosse um imenso alfabeto, com o qual se montam e desmontam palavras
e frases”.
Recife, a palavra, vem do árabe al-raçif e significa calçada, rua, caminho revestido de
pedras. Interpretadas mais livremente, tais definições encontram analogia no vocábulo tupi
paranampuca, ou paranambuca, isto é: pedra furada, quebra-mar, arrecife, enfim; palavra
que, aportuguesada, deu nome ao Estado do qual a cidade de Carlos veio a ser a capital. O
Recife assim, cidade, espaço de múltiplas convivências por onde o poeta trafega como
cidadão comum encontra também, através da poesia, substância para a sua própria
significação. Antimusa para alguns, “metade roubada ao mar, metade à imaginação”, fez-se
musa e cidade para o poeta Carlos, recifissignificada:
MARINHA
Tu nasceste no mundo do sargaço
Da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
Dormem peixes de prata em teu regaço.
Descobri tua origem, teu espaço,
Pelas canções marinhas que semeias
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso o teu olhar é triste e baço.
Mas teu segredo é meu, ah não me digas
Onde é tua pousada, onde é teu porto
Nas fronteiras da linguagem ǀ
198
E onde moram sereias tão amigas.
Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
Pois não entenderá essas cantigas
Que trouxeste do fundo do mar morto.
Referências
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da Modernidade.
Tradução de Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1998.
COUTINHO, Edilberto. O Livro de Carlos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
FREYRE, Gilberto. Prefácio in PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu,
1999.
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ,
2000.
KONDER, Leandro. Um olhar filosófico sobre a cidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994.
PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução Wladyr Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993.
PENA FILHO, Carlos. Livro Geral. Recife: Editora Liceu, 1999.
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense,1995.
ZERO QUATRO, Fred; L. Renato. Manifesto Mangue. Disponível na Internet:
www.hotlink.com.br/users/lucasm/cultura.htm Data de acesso: 2 jun 2000.
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DIALOGISMO INTERDISCURSIVO E INTERLOCUTIVO:
COMENTÁRIOS ONLINE NO FACEBOOK
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Ana Carolina A. de Barros (UFPE)
Introdução
Entendemos que as relações comunicativas são dadas mediante a palavra, em
construções textuais elaboradas e presentes em diferentes esferas sociais, mas também que
toda palavra é proferida de alguém para alguém. Ao mesmo tempo em que essa palavra busca
um destinatário, apresenta eco de outros já-ditos presentes na memória interdiscursiva de uma
comunidade “marcada” social e historicamente.
Considerando, para tanto, que também existe uma “realidade” de atualizações e (re)
significações é que este trabalho se constrói, pois partimos da ideia que há uma
heterogeneidade que é construída linguisticamente e que faz dessa rede, múltipla e
multifacetada, estar embebida em relações dialógicas, seja entre interlocutores ou entre
discursos, em situações reais de uso, configurando uma natureza que aponta para o irrepetível
em uma cadeia enunciativa não marcada por início e fim.
O trabalho aqui desenvolvido encontra-se organizado em três sessões: “Da
comunicação humana: aspectos da enunciação”; “Do diálogo entre interlocutores e
discursos”; “Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários
online no Facebook”, assim elaborado em uma tentativa de compreender como o processo
dialógico está intrinsecamente presente nas enunciações entre discursos e entre os
interlocutores. Para tanto, tomou-se como corpus analítico os quatro comentários online
postados na fan page da Época, em relação ao suicídio assistido da americana Brittany
Maynard, e como pressupostos teóricos recorreu-se a:
Bakhtin (1997;2006) Benveniste
(1995;2005), Cunha (2000;2011), Flores (2012) e Santos (2013).
1
Da comunicação humana: os aspectos da enunciação
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200
A comunicação humana dá-se mediante o verbo, a palavra, não existindo, porém, sem
considerar nas extremidades os interlocutores, aqueles que seriam, de maneira simplista, a
cargo de uma compreensão ainda que “rasteira”, o “autor” do discurso enunciado e o
“receptor” desse discurso, mesmo que situado no plano “imaginário” e do ideal,
são
necessários e cruciais para que as instâncias das produções enunciativas, instauradas em
diferentes momentos, contextos, situações e historicamente constituídas, ganhem vida e
realizem-se no plano da linguagem, mediados por uma língua que diz e é utilizada por
enunciadores diversificados.
Por isso, é só pela e na linguagem que o homem institui-se como sujeito, veiculando
informações, criando visões de mundo e por ela sendo constituído, mas é através dela
também, permanentemente configurado pelos óculos sociais que demandam e possibilitam
certas realizações por meio das interações que convergem sempre em direção a um outro que
não eu, sendo esse, preenchido com papeis e cargas de valorativa significação, já que o meu
dizer dirige-se socialmente e estabelece constante interação com a palavra do(s) outro(s).
Considerando este quadro, começa-se a pensar em enunciação, em palavra, palavra
cheia de vida e, por isso, flexível, plástica, dinâmica e mutável; palavra que existe em
momento único, particular e no irrepetível da enunciação, em que o sujeito é considerado e
reconhecido, já que a enunciação é realizada ou configurada em momentos “reais”, ou seja,
em situações cotidianas de interlocução sob condições concretas, e indicando que a palavra
dita é sempre nova, e embora configure-se como a “mesma palavra”, já , no entanto, constituise em uma outra instância de significação, pois o “aqui”, “agora” e “eu/tu” são únicos (cf.
BENVENISTE 1995; 2006).
Bakhtin, em seus estudos, enuncia dizendo que as palavras partem de um “um” para
“outro um”, o nosso interlocutor, e que, para tanto, é importante considerar uma série de
questões circundantes que podem tornar-se cruciais para que a enunciação seja significativa,
pois leva-se em conta que o importante já não é mais o somente dito, mas o porquê do dito.
Assim, também salienta que “toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo
fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte” (2006, p. 115).
É, pois, essa palavra enunciada que interessa, a palavra que se realiza e atualiza na
interlocução, atendendo a propósitos sociais mais imediatos e ao meio no qual emerge, esfera
fundamental para a configuração da enunciação, posto que ela não é desprendida do território
em que a faz fértil e no qual se anuncia.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
201
A enunciação é completamente dependente da situação social na qual está inserida, de
um meio social que a envolve e envolve o indivíduo; é fenômeno realizado entre
interlocutores quer reais quer potenciais, mas sempre necessários para a construção de uma
ponte em que de um lado está situado o “eu” e do outro lado um “tu” que tornam essa
realidade fundante para a força enunciativa.
Tal realidade dialógica é essencial para a linguagem, pois este diálogo, entendido
como todas as possibilidades de trocas verbais comunicativas que ocorrem nas interações, em
fluxo contínuo, múltiplo, no entanto, completo para aquela instância enunciativa, está em
evolução e é pertencente a um corpo socialmente constituído, e como bem ressaltou Bakhtin
(2006, p.130), “a estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação
como tal só se torna efetiva entre falantes”.
O sujeito desconsiderado por Saussure, quando nos referimos aos signos estudados em
uma cadeia que estabelece “exclusivamente” relações internas, assume aqui um papel de
relevância, pois entende-se a importância de considerar os elementos que estão fora da língua,
isto é, situados em uma exterioridade. O sujeito, agora salientado, não um sujeito
individualizado e limitado às suas próprias fronteiras, e sim, situado temporalmente e
pertencente a um quadro histórico-social-ideológico que torna possível a emersão de sentidos
em uma interlocução; não estando, porém, o sentido na palavra, ele é construído na relação
entre
interlocutores, nos jogos possíveis, em uma “ação esperada”, em atitude de
responsividade que mostra um sujeito agente, mantenedor de uma relação com todos os
diálogos, discursos e caminhos possíveis que situam esse locutor em um fio, apontando para o
antes, já-dito, e para o depois, o novo.
É salutar dizer que esse aspecto do sentido, em Bakhtin, como afirmar Flores (2009,
p.154), se instaura sobre “uma tensão permanente entre a estabilidade do sistema e a
instabilidade da enunciação”, isto é, direciona para o fato do que consideramos consolidado
no signo, nas possibilidades do sistema ao qual recorremos linguisticamente, mas também ao
seu aspecto de flexibilidade, dependente da situação de enunciação, sugerindo, assim, que há
uma dimensão sendo tecida e/ou construída na própria interlocução.
Torna-se, então, importante compreender que a enunciação depende, para sua efetiva
constituição, de acordo com Benveniste (1995), de um “eu” que é construído em uma
relação de intersubjetividade com o “tu”, como também o fato de essas palavras nunca serem
as mesmas, posto que atualizadas por pertencerem a momentos/situações enunciativas
diferentes, ou é como Bakhtin salienta (2006),quando refere-se ao irrepetível e ao novo em
Nas fronteiras da linguagem ǀ
202
uma cadeia com outros enunciados que devem ser tomados em articulação com o que está
fora da língua para construção do “tema”, caracterizando-se pelo que é individual e único.
2
Do diálogo entre locutores e discursos
O enunciado na perspectiva bakhtiniana, como reflexo das relações interlocutivas que
se efetivam em situações concretas, não existe apenas enquanto um sistema invariável ou
rígido, que estaria em essência ligado à significação, ao intralinguístico, mas, sim, enquanto
uma zona de contato entre a realidade e a língua, ligado, pois, a instância de produção.
Não há, nesses termos, uma língua separada de um caráter idelogicamente construído,
isto é, uma língua dotada de neutralidade, posto que lidamos com uma realidade histórica e
social em que os dizeres estão intrinsecamente articulados a outros ditos em uma cadeia
dialogicamente constituída de enunciados, e que como o próprio Bakhtin (1997, p.292) aponta
“cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no
discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte.”, ou seja, mesmo que haja uma ação
responsiva retardada, em algum momento ou em algum grau serão encontradas ressonâncias
daquilo que foi compreendido quer através do que se ouve/diz quer através daquilo que se
lê/escreve.
Dessa maneira, compreende-se que a palavra do outro está inserida em graus
diferentes e plurais em todos os enunciados, formando cadeias dialógicas, não havendo, por
assim dizer, um enunciado que seja o gerador de todos os outros, como também não é
possível de maneira ampla determinar ou delimitar a finitude de tais enunciados.
Os interlocutores são, na verdade, participantes de esferas sociais e encontram-se
historicamente situados, dessa maneira, participam de um processo ocupando a condição de
agentes. Assim, a visão e o pensamento de Bakhtin direcionados à enunciação se revestem do
aspecto sociointeracional, pois, potencialmente, o sujeito é constituído e moldado nas relações
com os outros por meio da linguagem.
O dialogismo ou o dialógico, aqui entendido, poderia aproximar-se daquilo que Clark
& Holquist (1998, p.36) definem por diálogo como “o extensivo conjunto de condições que
são imediatamente moldadas em qualquer troca real entre duas pessoas, mas não exauridas em
semelhante intercâmbio”, ou seja, há sempre trocas que são efetuadas por interlocutores e
respostas que são dadas e se perpetuarão em outras realidades enunciativas que não findam na
corrente de enunciações, mas que atendem a possibilidades de respostas àquilo que foi ou
àquilo que será em outras relações de interlocução.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
203
Seria, então, o dialogismo próprio à linguagem humana, posto que ela configura-se
heterogênea, múltipla; é o “lugar” em que os discursos são construídos através dos discursos
dos outros como uma forma de herança passível de recuperação na comunidade da qual se faz
parte, pois somos sujeitos construídos na interação, na linguagem e revestidos por contextos.
Dentro desse quadro, daquilo que é estabelecido como primazia nos estudos de
Bakhtin e sua inclinação para uma heterogeneidade discursiva, entre aquilo que se diz,
instaurando-se também a esfera do “já-dito”, envolvendo a comunicação verbal humana, o
discurso seria construído sobre outros discursos, fundamentando-se nos dizeres de outros que
são (re)elaborados e ressignificados, entretanto, constitutivos de uma “memória discursiva”.
Poderíamos, assim, a partir do que se diz e do “já-dito”, elencar dois tipos de
construções dialógicas mais específicas: o dialogismo interlocutivo e o dialogismo
interdiscursivo. Segundo Cunha e Freitas (2009), essas duas “estruturações” dialógicas
refletem-se pelo caráter mesmo heterogêneo da linguagem, em que “o dialogismo
interdiscursivo se dá de forma marcada, através de ‘ilhas textuais’”, e o dialogismo
interlocutivo invocaria “a memória discursiva do leitor para outros eventos discursivos”. Dito
de outra maneira, há um processo que se volta em uma relação dialógica para o “já-dito” e
outro para um determinado interlocutor, real ou virtual, ao qual a minha enunciação é dirigida.
Essas palavras, os já-ditos, seriam “resultado” daquilo que foi construído no percurso
histórico, ideológico, social de uma comunidade, não são, portanto, neutras e nem se
encontram alojadas no seu potencial enquanto “sistema”, “estrutura”, ou seja, estão
embebidas do discurso do outro, do que é anterior. Já considerando o que se refere ao
interlocutivo, pode-se dizer que não há enunciação desprendida de um sujeito com o qual se
interage, isto é, a enunciação é destinada à alguém, assim como esse mesmo dizer é revestido
pela possibilidade de quem constitui o outro, em uma espécie de réplica, isto é, de uma atitude
responsiva em prol da compreensão, o que pode apontar para aquilo que Barthes (1978, apud
AUTHIER-REVUZ, p.9, 2011) pertinentemente marca :“ o homem falante [...] fala a escuta
que ele imagina para sua própria palavra”.
Bem se vê, então, que esses “dois dialogismos”, ou uma heterogeneidade na
linguagem, é constitutiva do próprio dizer, faz parte da natureza enunciativa que se revela
dialógica como condição, que reporta à uma memória e ao mesmo tempo instaura-se ou
institui-se na interação com o outro, com um interlocutor. Ao mesmo tempo mostra-se como
resposta ao “já-dito” e como previsão em resposta à compreensão do nosso outro interlocutivo
e que, mesmo mostrando-se distintas, podem estabelecer relações estreitas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
3
204
Gênero e circulação social: o interdiscursivo e o interlocutivo nos comentários
online no Facebook
A comunicação humana realiza-se por meio enunciados que se configuram em
materialidades textuais, quer sejam orais ou escritos, em todas as dimensões e em diversas
instâncias das esferas discursivas. No entanto, tais organizações enunciativas são dadas
mediante os gêneros, compreendidos enquanto tipos relativamente estáveis de enunciados (cf.
BAKHTIN, 1997), pois eles passam por transformações ao longo do tempo, adaptando-se às
exigências históricas e comunicativas, porém mantêm a essência e os objetivos interacionais,
aquilo que permite aos falantes reconhecê-los e fazerem uso quando detentores de um
conhecimento sobre suas particularidades e funções.
Os gêneros constituem-se, assim, em entidades comunicativas pertencentes a práticas
sociais já estruturadas, isto é, culturalmente construídas, porém passíveis de dinamicidade,
conforme as necessidades e mudanças sócio-históricas. Dentro dessa dinâmica, escolhemos
para a análise os comentários online postados no Facebook, uma Rede Social. Eles, os
comentários, configuram-se como um constructo, pois socialmente elaborados e
compartilhados, isto é, são produtos socioculturalmente formados, e pertencem a uma
dinâmica interlocutiva atual que integra, agora, o uso em certos “Ambientes virtuais”.
O Facebook possibilitou a construção de um corpus interessante para demonstrar
como os diálogos entre os interlocutores e os diálogos entre discursos se efetivam nas práticas
enunciativas, ou seja, como os ditos estão ligados em uma cadeia discursiva através dos
comentários online.
Os comentários a serem analisados estavam inseridos dentro da esfera jornalísticas e
remetem a um momento discursivo especial. Compreende-se o “momento discursivo”, nas
palavras de Moirand (2007 apud CUNHA, 2011, p.122), como “a diversidade de produções
discursivas que surgem na mídia a propósito de algo que ocorreu no mundo e que se torna na
e pela mídia um acontecimento”.
Assim, o acontecimento eleito refere-se ao suicídio assistido1 da americana Brittany
Maynard, de 29 anos, em 1o de novembro de 2014, que sofria de câncer no cérebro, em estado
terminal. A análise feita, baseia-se, como já dito, em comentários. Estes, porém, foram
1
Acontece quando paciente, em estágio terminal, não consegue concretizar sozinho seu desejo/vontade de
morrer, solicitando o auxílio a uma outra pessoa. A assistência ao suicídio é geralmente feita por prescrição
medicamentosa através de doses letais, por meio da indicação de uso da substância e de maneira indolor; a
administração, no entanto, é feita pelo próprio paciente.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
205
retirados da fan page da Época, no dia 03.11.14, quando a notícia foi vinculada. Abaixo, o
print da notícia.
Figura 1- Notícia na fan page da Época
(Fonte: Facebook – nov/2014)
Com a veiculação da notícia da morte da americana, Brittany, que optou por suicídio
assistido, muitos comentários foram publicados no Facebook como manifestação dos usuários
dessa Rede Social em relação ao fato. Partimos da ideia de que esses comentários na fan page
da Época, por serem enunciados, estão articulados e intrinsecamente relacionados como elos
que fazem parte de uma corrente discursiva contínua e formadora, assim, de uma grande rede.
Tomamos os pressupostos de Bakhtin para proceder às análises, dentro de um quadro
que se detém ao dialogismo interdiscursivo e ao interlocutivo, já que nessa teia, os discursos
remontam tanto a outros discursos previamente estabelecidos e presentes na memória de uma
determinada sociedade, como também tais discursos, por não acontecerem no vácuo,
direcionam-se a outros, nossos “outros comunicativos”, ou seja, estão indexados a um
interlocutor, real ou não, mas sempre “construído” em uma posição que suscitaria
responsividade.
Tomamos como amostra de análise, para “verificação” daquilo que acontece
efetivamente através dos comentários postados, quatro exemplares selecionados mais ou
menos aleatoriamente. Ao que se segue:
Figura 2- Comentário 1
(Fonte: Facebook- nov/2014)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
206
Considerando esse comentário, poderíamos observar que o que aí se mostra enunciado
é uma relação diretamente estabelecida entre interlocutores em uma atitude “imediatamente”
responsiva, quando o “autor” com comentário 1 manifesta-se ao dizer que “já começou o
contra e o favor”. Vê-se, dessa maneira, uma tentativa de complementação, confronto,
negação ou mesmo um não julgamento perante aquilo que foi vinculado, a morte assistida ou
suicídio assistido, e tal posicionamento parte em direção a um outro ou a muitos “outros”. No
final do comentário, seu “autor” acaba assumindo um posicionamento que efetivamente
gerará outras respostas, ao dizer “Que esteja melhor. Apenas isso. ”, abrindo prontamente
possibilidade para que sequências de respostas sejam dadas. Aqui, portanto, encontramos uma
ponte clara com aquilo que Bakhtin (1997; 2006) sustenta em seus estudos, ao dizer que nos
enunciados é que as relações dialógicas tornam-se possíveis, pois esses enunciados espalhamse através de movimentos contínuos e sucessivos, apoiando-se, contudo, também em relações
historicamente situadas.
O comentário aqui assinalado, comentário 1, certamente funcionará como “gatilho”
para o surgimento de respostas que serão destinadas ao próprio comentário 1 ou a “outros”
comentários anteriormente publicados, pois ao emitir um juízo prenhe de valor, explicitando-o
através de suas escolhas, mais ou menos conscientes, falando de um determinado lugar,
deseja-se encontrar no outro também respostas, isto é, verificamos a partir dessa
responsividade a presença do dialogismo interlocutivo. Pela natureza dos comentários online
e seu abrigo, o Facebook, há uma estreita proximidade entre os pares, dada a dinâmica do
gênero, coincidindo como nos dizeres bakhtinianos em “ecos” em que “cedo ou tarde, o que
foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no
comportamento subsequente do ouvinte” (BAKHTIN, 1997, p.292), e como é passível de
verificação no comentário seguinte.
Figura 3- Comentário 2
(Fonte: Facebook- nov/2014)
No comentário 2 encontramos relações também com os já-ditos, não exclusivamente
com o posicionamento imediatamente anterior, mas sim, configurando-se como participante
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
207
ou mais um nó em uma eterna cadeia dialogal que se mostra estreitamente articulada e que,
por isso, está atrelado a uma série de discursos elaborados e (re)atualizados, pois como bem
salienta Bakhtin (ibidem p.414-415) “Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e
não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro
ilimitado)”. Observamos, então, que esse enunciado surge também em resposta a dizeres
anteriormente construídos, e organizado em uma espécie de breve narrativa, “pincela” uma
experiência pessoal e diretamente vivenciada. O interlocutor posiciona-se em relação à atitude
de Brittany Mayanard ao declarar que a disposição dela foi “uma decisão muito corajosa”,
agindo interlocutivamente, mas não só.
O “autor” do comentário 2 parece mostrar-se estrategicamente favorável à ação da
americana, configurando-o como um ato de bravura, o que sugeriria o seguinte: aquele que
comete suicídio assistido, pelas circunstâncias ou estado terminal, desde que dotado de
consciência, teria o direito em optar pelo suicídio. O “autor” ainda do comentário 2, inclinarse-ia, com certa adesão a essa prática, pois, segundo suas percepções: “a pessoa fica em uma
situação que ninguém jamais gostaria de ver [...] é terrível ficar em cima de uma cama”.
Poderíamos apontar, no comentário 2, também ressonância/consonância/eco a outros
discursos, como os das entidades defensoras do “direito à morte” ou mesmo do que
configuraria o discurso de dignidade e autonomia dos pacientes humanos que se encontram
em estado terminal, ou seja, encontramos também evidenciado o dialogismo interdiscursivo.
Há, sem dúvidas, a necessidade de os interlocutores ativarem uma memória discursiva que
contribuirá de maneira tal para os processos de significação.
O comentário 3 parece, então, reconhecer, de alguma forma, aquilo que estaria
presente na memória interdiscursiva, mediante as relações estabelecidas com o comentário 2,
por exemplo, quando enuncia, dizendo:
Figura 4 – Comentários 3 e 4
(Fonte: Facebook- dez/2014)
No comentário 3, observa-se uma atividade enunciativa bem marcada e com
posicionamento claramente definido: “suicídio não tem perdão, com certeza não foi pro reino
Nas fronteiras da linguagem ǀ
208
dos céus”, em resposta aos interlocutores com os quais está interagindo nesse contexto
discursivo, dialogismo interlocutivo, mas além disso, pois é também possível recuperar a base
“ideológica” de onde emergiria seu discurso. O “autor” do comentário 3 fundamenta-se, em
linhas gerais, a preceitos cristãos, configurando um exemplo de dialogismo interdiscursivo
quando se refere ao suicídio, pois a vida, para o cristianismo, é crida enquanto dádiva/presente
de Deus, posta nas mãos dos homens para que dela cuidem, cabendo, apenas a Deus, crido
também como “fonte da vida”, Aquele “quem tira a vida e a dá”.
O comentário 4, como em resposta mais “diretamente” ligada ao que é exposto pelo
comentário 3, mostra-se inconformado e constrói seu enunciado através de palavras repletas
de valor, ideologia e carga semântica, já que “sem acento apreciativo, não há palavra”
(BAKHTIN, 2006, p.136), fazendo-a dela viva. O comentário 4 também se liga a outros jáditos, retomando, certamente, palavras de outros nessa heterogeneidade e dinâmica
interlocutiva e, por isso, dialógica. Em atitude responsiva e mais imediata ao que exposto de
forma contundente pelo comentário 3, faz o autor do quarto comentário taxar o comentarista
3 de doente, manifestando-se interlocutivamente.
Além disso, e em certo grau, poderíamos verificar que o comentário 4 também ativa
um discurso de viés cristão quando enuncia o seguinte: “quem é digno de quê?..E dobre seus
joelhos, ore”, pois, de acordo com a tradição bíblica, diz-se que não são os humanos dignos de
coisa alguma, pois pelo pecado, destituídos estariam da glória de Deus. Assim, não há que se
julgar, recuperando, assim, relações dialógicas de ordem do interdiscurso.
O que percebemos, ainda que em breve análise, é que todo discurso encontra pontes
com discursos anteriores, discursos esses que fazem parte da memória de uma determinada
cultura ou de um determinado grupo social e que ecoam em outros dizeres, configurando-se
como um dialogismo interdiscursivo, mas não só, pois foi possível, de maneira mais explícita,
entender que esses ditos estão orientados ou orientam-se a alguém, configurando-se como
dialogismo interlocutivo.
Essas configurações dialógicas tornaram-se mais facilmente observáveis por meio dos
comentários online e nas possibilidades imanentes das réplicas. Com nossos interlocutores,
nossos outros, travamos sempre diálogos e formamos teias, colaboramos com a tessitura de
um fio ininterrupto no qual somos pontos da trama em um tecido discursivo e, por isso,
dialógico, pois inerente à linguagem humana é.
5 Considerações finais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
209
Consideramos, neste artigo, os comentários online como fonte que auxiliaria a
“revelar” o dialogismo presente em diversas instâncias discursivas, pois ele é característico da
linguagem humana que se utiliza de um sistema completamente articulado e vinculado à
diversidade de práticas sociais interacionais. Essas são historicamente situadas e emergem
através dos já-ditos, em uma dinâmica que ao mesmo tempo em que se revela como resposta a
outros enunciados e funciona como gatilho para outras enunciações, situam-se em uma
memória discursiva, em que vozes de outros manifestam-se.
Passamos a verificar, através desses usos reais, mediante os comentários no Facebook,
um verdadeiro trânsito de vozes que ao circular, cruzam-se,
gerando uma cadeia de
responsividade, marca da relação dialógica, em que fluxos resultantes de direções diversas
remetem para o antes e para o depois na construção enunciativa, favorecendo a morada das
marcas do socialmente constituído e elaborado, propiciando a formação de uma rede
discursiva ininterrupta em que essas vozes não são consensuais, mas mostram-se em
“verdades” quer através do dialogismo interlocutivo quer mediante o dialogismo
interdiscursivo, passível de verificação em comentários online, como os aqui selecionados a
partir de suas publicações, em uma dinâmica construídas pelo uso da linguagem.
Referências
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interlocutiva e interdiscursiva – no coração do dizer. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1,
p. 6-20, jan./mar. 2011. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/ index.
php/fale/article/viewFile/9215/6365 Acesso em: 27/12/2014.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12a ed. São Paulo, Hucitec, 2006.
___________. Estética da Criação Verbal. 2a ed. São Paulo: Martins Fonte, 1997.
BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. São Paulo: Pontes, 1995.
___________. Problemas de Linguística Geral II. São Paulo: Pontes, 2006.
CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CUNHA, Dóris de Arruda C. da. A noção de gênero: algumas evidências e dificuldades.
Revista do GELNE. V.2, n.2, 2000.
___________. Formas de presença do outro na circulação dos discursos. Bakhtiniana, São
Paulo, v. 1, n.5, p. 116-132, 1º semestre 2011. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/5185/5085. Acesso em: 26/12/2014
Nas fronteiras da linguagem ǀ
210
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à Linguística da
Enunciação. São Paulo: Contexto, 2012.
FREITAS, Virgínia Célia Pessoa de; CUNHA, Dóris de Arruda C. de. Dialogismo
Interdiscursivo e Interlocutivo - Um estudo enunciativo da charge. In: XVII Congresso de
Iniciação Científica e I Congresso de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação,
2009, Recife. Resumos do XVII Congresso de Iniciação Científica e I Congresso de Iniciação
em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação, Recife: 2009 Disponível em:
http://www.contabeis.ufpe.br/propesq/images/conic/2009/anais%20% 28
E%29/conic/n_pibic/80/098011676SCNP.pdf Acesso em:27/12/2104
PANCERA, Nelzi Kszan. Linguagem, Enunciação, Enunciado – Ponto de partida para o
ensino de Língua Portuguesa. EDUCERE – Revista da Educação, Curitiba, v.2, n.1, jan/jun.
2002. Disponível em: http://revistas.unipar.br/educere/article/view/834 Acesso em:
26/12/2014
SANTOS, Eliane Pereira dos. O gênero comentário online: dimensão social e verbal. 2013.
194f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro de Ciências Humanas e Letras,
Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
211
O CONCEITO DE GÊNEROS TEXTUAIS NO ENSINO
MÉDIO: O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS DE
LÍNGUA PORTUGUESA?
[Voltar para Sumário]
Ana Cátia Silva de Lemos
Maria Margarete Fernandes de Sousa
Introdução
O ensino de gêneros no ensino brasileiro tem ganhado espaço, a partir das
concepções adotadas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Esses
documentos pautam o ensino da língua materna e indicam o uso dos gêneros como um
meio para o desenvolvimento da competência textual dos alunos.
Com base nesse aspecto, os livros didáticos de língua portuguesa se apoiam no
uso dos gêneros como forma de tornar o aprendizado uma prática interativa e
contextualizada, como indicam os PCNs.
Para chegar ao conceito de gêneros, adotado pelos PCNs, é preciso investigar o
conceito de texto defendido por esse documento. Pois há uma relação deste com a
definição de gênero pregada.
Segundo os PCNs do ensino médio brasileiro, o texto é o resultado dos
“diálogos” que faz com as diversas situações que seus interlocutores vivenciam. Mas
precisamente seu sentido, segundo os Parâmetros, depende dessas relações:
O sentido de um texto e a significação de cada um de seus componentes
dependem [...] da relação entre sujeitos, construindo-se na produção e na
interpretação. Essa parece ser a condição mesma do sentido do discurso,
obrigando-nos a considerar não apenas a relação entre interlocutores, mas
também a desses sujeitos no meio social (p.44).
Nota-se que essa definição é “banhada” pelo conceito bakhtiniano de dialogismo
que norteia a concepção de gênero do teórico russo. Acreditamos que a definição de
texto adotada pelos documentos oficiais defende esse ponto de vista, pois
posteriormente patrocinará o conceito de gênero como formas materializadas dos textos,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
212
que constituem conjuntos caracterizados pela estrutura composicional, traços estilísticos
e aspectos sociais.
Ressaltamos que os documentos analisados neste trabalho referem-se aos PCNs
do ensino médio, pois é nesta etapa escolar que o ensino com gêneros é mais priorizado,
sobretudo devido ao Exame Nacional do Ensino Médio, que foca suas competências no
aprendizado a partir de práticas sociais do aluno.
O conceito de gêneros nos PCNs não adota um posicionamento sobre que
gêneros devem ser priorizados no ensino médio: gêneros textuais ou gêneros do
discurso? Comentamos esse aspecto, pois foi um dos problemas encontrados na
concepção de gêneros dos livros didáticos analisados.
Por isso, julgamos importante investigar a concepção de gêneros adotada e
ensinada pelos livros didáticos selecionados. Os livros analisados foram escolhidos a
partir do guia do Programa Nacional do Livro Didático – 2014 (PNLD-2014).
São, portanto, coleções modernas que já passaram pela avaliação inicial do
Ministério da Educação. Neste trabalho avaliamos as concepções de três livros de três
coleções diferentes. Analisamos os seguintes manuais:
1. Coleção Viva Português – Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso;
Sílvia Letícia de Andrade. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio);
2. Coleção Língua portuguesa: linguagem e interação – Carlos E. Faraco;
Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino
médio);
3. Coleção Português Linguagens – William R. Cereja; Tereza C.
Magalhães. Volume 1 ( 1ºsérie do ensino médio).
Escolhemos essas coleções por serem algumas das mais selecionadas em anos
anteriores do PNLD, foram ainda escolhidos apenas o volume um de cada coleção, pois
são nestes volumes que estão as informações e conceitos iniciais sobre gêneros.
Em nossa análise podemos observar que apenas uma das coleções refere-se à
gêneros textuais e as outras à gêneros do discurso, apesar de alguns autores não
demarcarem essa diferença, ela é ainda motivo de discussão no meio acadêmico. Nos
livros didáticos observamos que uma coleção não faz distinção entre essas abordagens
de gênero, podendo ocasionar uma dificuldade na apreensão do conceito.
Além disso, é possível perceber, nos conceitos apresentados, diversas “vozes” de
autores conceituados nos estudos sobre gêneros, tais como Swales, Bazerman e,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
213
obviamente, Bakhtin. Algumas vezes esses conceitos misturam essas teorias de tal
forma que a definição de gêneros fica comprometida.
Para que isso fique mais claro, é necessário explicar melhor as abordagens de
gênero que encontramos nos conceitos dos livros analisados, por isso abaixo listamos e
apresentamos algumas dessas teorias.
Teorias de gênero
Um dos autores que ressoam nas definições encontradas nos livros didáticos é
John M. Swales, o modelo que ele propõem para a análise de gêneros está galgado em
pressupostos linguísticos e nas práticas sociais que envolvem esses pressupostos, ou
seja, ele não considera apenas os aspectos linguísticos, mas também as influências do
ambiente social em que os gêneros estão inseridos.
A definição de gêneros que Swales (1990) vai utilizar está embasada em cinco
critérios de análise: classe de eventos comunicativos; propósito comunicativo;
prototipicidade; lógica própria dos gêneros; comunidade discursiva.
Segundo Hemas; Biasi-Rodrigues (2005), esses critérios são definidos da
seguinte forma:
“O gênero é uma classe de eventos comunicativos, sendo o evento uma situação
em que a linguagem verbal tem um papel significativo e indispensável (p.113)” Esse
evento é formado pelo participantes do discurso e têm relação direta com o ambiente em
que o discurso é produzido.
Um dos conceitos mais importantes para a teoria de Swales (1990) é a definição
de propósito comunicativo. Ainda segundo as mesmas autoras, “os gêneros têm a
função de realizar um objetivo ou objetivos”(HEMAS;BIASI-RODRIGUES, p.114)
apesar do autor reconhecer que os propósitos nem sempre estão explícitos nos textos, os
textos sempre apresentarão intenções que os identificarão em uma classe ou
comunidade.
O critério de prototipicidade para Swales (1990) considera que os gêneros têm
características comuns, como traços linguísticos ou sociais, por exemplo. A definição de
gêneros apresentada pelos PCNs, como vimos, aponta marcas textuais de
reconhecimento dos gêneros.
O quarto critério sustenta que os gêneros têm uma lógica própria que é
reconhecida pela comunidade que o utiliza. Ou seja, segundo Hemas; Biasi-Rodrigues
Nas fronteiras da linguagem ǀ
214
(2005, p.114) existem algumas convenções esperadas e manifestadas no gênero que são
realizadas em função de um propósito.
O quinto critério considera a terminologia criada pela comunidade discursiva
para um fim específico e próprio. Para Swales (1990), a análise de gêneros deve levar
em consideração o comportamento comunicativo dos membros, pois o nome dos
gêneros pode se manter estável, enquanto o gênero em si muda suas práticas sociais.
Para finalizar a caracterização da abordagem de Swales, é crucial apresentar o
conceito de comunidade discursiva, que norteia sua teoria. Segundo Hemas; BiasiRodrigues (2005, p.115):
A noção de comunidade discursiva é empregada em relação ao ensino de
produção de texto como uma atividade social, realizada por comunidades que
têm convenções específicas e para as quais o discurso faz parte de seu
comportamento social.
Segunndo Swales (1990) a comunidade discursiva pode ser caracterizada pelos
seguintes critérios: Objetivos públicos em comum; Mecanismos de comunicação
próprios entre os membros da comunidade; Utilização dos mecanismos de comunicação
para prover a informação; Um conjunto de gêneros utilizado para realização específica
de seus objetivos; A existência de um léxico específico; Uma hierarquia nos membros
que estabelece conhecimento mais elaborado em uns do que em outros.
Outra teoria de gêneros que podemos observar nos conceitos dos livros didáticos
analisados foi o conceito de gênero como ação social de Charles Bazerman e Carolyn
Miller. Bazerman (2011) critica o conceito de Swales (1990), pois nesta abordagem o
gênero é visto de maneira resumida, em uma fórmula textual, para Bazerman e Miller o
gênero deve ser visto como ação social.
A teoria de Bazerman é muito influenciada pela teoria dos atos de fala de Austin,
por isso, seu foco é a interação na comunicação. Para Bazerman (2011), quando nos
comunicamos textualmente há sempre grande probabilidade de sermos mal
interpretados para diminuir essas possibilidades Bazerman acredita que estabelecemos
padrões comunicativos, que se tornam reconhecidos em nosso meio.
Assim, Bazerman (2011, p.32), estabelece que “As formas de comunicação
reconhecíveis e autorreforçadas emergem como gêneros”. Logo ele estabelece que:
Gêneros são [...] fatos sociais sobre tipos de atos de fala que as pessoas
podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem
nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras
suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados
com vistas a seus propósitos práticos (2011, p.32)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
215
Dessa forma, Bazerman e os seguidores dessa corrente desprezam abordagens
genéricas que não consideram o aspecto social como um dos mais fortes na definição de
gêneros, visto que para eles não adianta definir os gêneros através de aspectos textuais e
desconsiderar o ambiente social em que eles foram gerados.
Assim como Bazerman (2011), Miller (1994b) acredita que os gêneros
dependem da interação que orienta as práticas comunicativas e sociais, tornando-as
mecanismos padronizadas em nosso cotidiano. Para a autora:
O indivíduo deve reproduzir noções padronizadas de outros, sejam eles outros
institucionais ou sociais, ao passo que a instituição, sociedade ou cultura tem de
oferecer estruturas pelas quais os indivíduos possam fazê-lo (MILLER, 1994b, p.72)
Assim, a autora reafirma que gênero não é uma prática estruturada, mas uma
ação social, pois é através dela que os indivíduos podem criar padrões por meio de suas
ações e práticas reconhecidas na sociedade.
Sem dúvidas os estudos de M. Bakhtin sobre os gêneros são referência nas
pesquisas até hoje. Por ter sido pioneiro nessa área Bakhtin se tornou mais do que
referência ou um ponto de partida, ele é essencial para a compreensão de outras teorias.
Um dos aspectos que se faz necessário explicar é justamente uma das questões
que motivou este artigo, quando se fala em gêneros eles são textuais ou discursivos?
Bakhtin (2000) apresenta os gêneros do discurso como tipos relativamente estáveis de
enunciados.
Para Bakhtin (2000), o enunciado é a entidade concreta da comunicação, pois
está amparado em situações de aspectos sociais, nesse sentido o discurso para Bakhtin
representa a interação social e exemplo mais notório da comunicação humana. Logo, o
termo discurso, neste autor, não representa ideologia.
Talvez por isso Marcuschi (2008) diferencia esse termo caracterizando-o como:
“Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico,
discurso religioso, etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não
abrangem um único gênero, mas dão origem a vários deles” (p.24).
Dessa forma, Bakhtin não objetiva construir definições fechadas sobre gêneros,
pois a única tipologia que cria é para definir gêneros primários e gêneros secundários.
Estes são os gêneros mais complexos que se utilizam dos gêneros mais simples para se
constituírem.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
216
A partir desses conceitos analisamos as definições de três manuais didáticos com
a intenção de avaliar como o conceito de gêneros é apresentado aos estudantes do
ensino médio.
Conceito de gêneros no ensino
A Coleção Viva Português (Elizabeth Campos; Paula Marques Cardoso; Sílvia
Letícia de Andrade) apresenta a noção de gêneros a partir do conceito de organização
que, conforme exposto, está presente nas concepções genéricas que consideram o
gênero sob a ótica do texto. Observemos como se dá essa conceituação no livro
didático:
Além disso, notamos que as autoras tratam dois gêneros distintos como
sinônimos, pois elas consideram que as tirinhas e a história em quadrinhos são o mesmo
gênero, quando sabemos que, dependendo da situação de comunicação, esses elementos
são gêneros distintos.
Podemos observar que há uma tentativa de definir os gêneros a partir das
características comuns que eles partilham, assim como Swales (1990) ao definir como
critério de gênero a prototipicidade. Apesar disso, a definição do livro prossegue com
características que podemos ligar a autores de correntes diferentes.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
217
Com esse trecho, observamos uma preocupação com os participantes da cena
enunciativa, fato que deve ter levado as autoras a definir gêneros sob a ótica do
discurso. No entanto, por terem se valido de características de ordem textual, podemos
encontrar um problema nessa definição: que teoria foi utilizada para a escolha do
conceito?
Além disso, as autoras classificam discurso como “um conjunto de elementos
que compõem um ato de comunicação”, sabemos que essa informação está incompleta,
pois para as teorias do discurso, ele é caracterizado como um ato representativo de uma
ideologia (PÊCHEUX,p.125).
O segundo livro analisado pertence à Coleção Língua portuguesa: linguagem e
interação – Carlos E. Faraco; Francisco M. Moura; José H. Maruxo Jr. Volume 1. Neste
exemplar, o gênero é imediatamente caracterizado como gênero do discurso.
É possível notar que, apesar de iniciar sua explicação com um título que
qualifica gênero ao discurso, os autores mencionam os objetivos das figuras
Nas fronteiras da linguagem ǀ
218
enunciativas, ou seja, mesmo ligado à enunciação, os gêneros têm uma propriedade
textual, relacionada ao propósito comunicativo.
Mesmo tendo, inicialmente, relacionado os gêneros ao discurso. Os autores
prosseguem sua definição e usam indistintamente os termos gênero textual e gêneros do
discurso.
O termo “esferas de circulação” nos remete ao conceito de comunidades
discursivas de Swales (1990). O termo pode fazer referência também às esferas
comunicativas, mencionadas por Bakhtin/Voloshinov (1981), no entanto as esferas
mencionadas por este autor estão vinculadas mais a critérios discursivos/ideológicos, o
que não necessariamente se assemelha aos exemplos do livro didático.
O terceiro manual analisado pertence à Coleção Português Linguagens –
William R. Cereja; Tereza C. Magalhães. Neste livro, observamos que os autores
optaram por definir gêneros com conceitos da abordagem sociorretórica, pois, além de
qualificar os gêneros como do texto, os autores fazem uma breve diferenciação entre
gêneros textuais e sequências textuais.
Julgamos pertinente essa distinção, uma vez que, na história da educação
brasileira, havia uma grande problemática em torno disso. Com esse exemplo,
observamos que as diferenças, em torno desses termos, podem está bem estabelecidas.
Para os autores dessa coleção, uma das características do gênero textual é “a(s)
sequência (s) textual (is) predominante (s)”, esse fato chamou nossa atenção, dado que
nas outras coleções nada foi mencionado a respeito.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
219
Notamos que conceitos importantes como propósito comunicativo são
retomados nessa definição, que também elenca as situações e os contextos como
características importantes na definição de gêneros. Ao prosseguir com a explicação os
autores citam, indiretamente, Bakhtin, ao mencionar “formas mais ou menos estáveis”.
É importante ressaltar que este manual procura definir gêneros, a partir do uso e
das diversas situações de comunicação que a sociedade nos apresenta, ele tenta também
conceituar gêneros por meio de critérios sociorretóricos, fato que julgamos como uma
estratégia didática no ensino, para que talvez os alunos se confiem em características
textuais no reconhecimento dessas práticas.
Nesse caso, é imprescindível o papel do professor pra esclarecer que sem o
aspecto social e as convenções culturais o gênero não poderia sequer existir, sendo
necessário, portanto, enfatizar a união dessas duas marcas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
220
Considerações finais
A partir dos dados apresentados, acreditamos que a confusão terminológica que
existe no âmbito acadêmico sobre a definição de gêneros (do texto ou do discurso) é
reproduzida no meio escolar, de maneira ainda mais delicada, pois nesse ambiente
diversas teorias são mescladas, a fim de se obter um conceito de fácil apreensão.
Além disso, observamos que em nenhum dos manuais há indicações explícitas
sobre os teóricos que serviram de “inspiração” para suas definições, apesar de que para
um estudioso mediano do assunto será possível identificar as inferências, como
marcamos em nossa análise.
Julgamos que no ambiente acadêmico as pesquisas adaptam a terminologia mais
adequada para seus pontos de vista, no entanto, no meio escolar essa confusão em torno
da conceituação entre gêneros textuais ou discursivos pode gerar uma deficiência na
apreensão da definição de gêneros.
Acreditamos, portanto, que para tentar solucionar esse problema talvez fosse
necessário adotar, pelo menos, no ambiente escolar a terminologia de Gêneros,
simplificando e buscando definições mais claras e objetivas.
Referências
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Martins Fontes, 2000.
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Silvana Mabel Serrani. 3.ed. Campinas: UNICAMP, 1997.
SWALES, J.M. Genre Analysis: English in Academic and Research Settings.
Cambridge: 1990.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
222
O PAPEL DA TEORIA BAKHTINIANA NO CONCEITO DE
LÍNGUA NA CONTEMPORANEIDADE
[Voltar para Sumário]
Ana Cláudia Soares de Paiva1 (UNICAP)
Discursões introdutórias
O século XX é marcado dentro dos estudos da linguagem por abordagens que
possibilitam olhares plurissignificativos acerca do fenômeno Língua. É sabido também da
larga ruptura que os estudos estruturalistas de Saussure provocam no modo de conceber a
língua. Segundo a concatenação de Saussure (MUSSALIM, 2009), a língua é constituída por
uma superfície bivalente, marcada por um viés social e por outro individual. Na concepção do
teórico suíço esses vieses não são opositores nem excludentes, mas são modulações que não
são possíveis de serem aglutinadas em um primeiro estudo de estruturação de um sistema
linguístico, fazendo-o, portanto, optar pela moldura social de língua compartilhada pelos
usuários.
A partir desse recorte, Saussure desenvolve uma conjuntura ideológica do signo, a
qual propaga um conceito de signo mediante uma ótica de representação direta de um dado
elemento. Segundo essa concepção, a língua é tida como ferramenta de transparência do ato
comunicativo, na qual o sujeito pode estruturalmente desenvolver uma mensagem, a qual
expressa para o outro a totalidade de sentido pretendido pelo enunciador. Dessa forma, a
língua é um instrumento objetivo, desarticulado da subjetividade do eu que enuncia,
requerendo apenas dos sujeitos o domínio e o compartilhamento do mesmo sistema, afim de
que o ato comunicativo seja entendível.
Segundo essa proposta saussuriana, observa-se que as principais análises eram
desenvolvidas tendo por prioridade revelar o conteúdo de uma sentença. Nesse momento,
nasce uma proposta estruturalista do conteúdo, em que a principal atenção recai sobre o
significado pleno do posto verbalmente. A língua como ferramenta social de comunicação,
1
Mestranda do curso de Ciência da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
223
conseguia mediante a proposta de Saussure, condensar as concretudes do mundo real sem
nenhuma interferência das relações sócio-cultural-ideológica que circundam o sujeito. Dessa
forma, a língua adquire o status de ferramenta autônoma e autossuficiente, pois é pela e
simplesmente arrumação lexical dentro de uma construção que é possível veicular dentro de
uma prática de comunicação um dito, cuja totalidade de sentido está exposto na sentença.
Ainda acerca desta língua completa e de significado objetivo, destacamos o que comenta
Mussalim (2009, p.69):
Tentemos entender a diferença. O que conta na concepção de comunicação
utilizada por Saussure é que os interlocutores tenham pleno controle sobre os
elementos pertinentes dos signos linguísticos mediante os quais se comunicam.
Espera-se, em outras palavras, que os falantes usem os signos linguísticos que
compõem suas mensagens de modo tal que se reconheçam nesses signos todos os
traços pertinentes que permitem identifica-los. Essa concepção de comunicação, que
é a própria concepção saussuriana, basta para distinguir língua e fala e para
estabelecer como a fala depende da língua, mas reduz de certo modo o processo de
interpretação a uma questão de discriminação dos signos que se transmitem, e nada
nos diz sobre o que acontece quando interpretamos (2009, p.69).
O dialogismo bakhtiniano revela a subjetividade da língua
O filosofo Russo, Mikhail Bakhtin, também tece suas investigações no campo da
linguagem em um período paralelo ao de Saussure, no entanto, o que marca os estudos
bakhtinianos é a forma como esse teórico se reporta em direção à língua. Em um cenário,
cujas abordagens filosóficas enxergavam a língua/gem como um instrumento externo ao
indivíduo, como uma ferramenta de uso totalmente previsível e calculável, florescer uma
abordagem que rompesse com esse padrão não era tarefa fácil. É diante dessa sistematização
enrijecida da língua, que Bakhtin e seu Círculo concentram atenção no campo da literatura.
Em suas abordagens dentro desse campo, o Círculo evidencia a incompletude da língua sob
uma ótica da estruturação. É nesse reconhecimento, que Bakhtin dirige seus estudos
considerando o indivíduo que atualiza a língua, bem como todo o entorno que circunde o
sujeito da linguagem.
Com esse novo enfoque, o filósofo Russo, apresenta para os estudiosos da linguagem
que a objetividade de Saussure não dava conta do posto em uma relação de discurso, pois
segundo Bakhtin, o dito materializado pela linguagem agrega as marcas de quem o diz, bem
como toda constituição sociocultural e axiológica que determinaram a postura de indivíduo
social. Dessa forma, estar em contato com um discurso não é apenas um processo de
compreensão da mensagem, mas um ato que é marcado por relações de poder, de escolhas, de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
224
apreciações ideológicas entre outros, os quais determinam a estruturação do dito, bem como
os valores que são intencionados e diluídos em cada novo ato comunicativo.
Diante dessa percepção sobre a materialização linguística, Bakhtin apresenta alguns
eixos, os quais dão concretude ao seu pensamento. Nesse momento, chamamos a atenção para
dois dos seus eixos: o dialogismo e a responsividade.
Na contramão da voz unívoca do estruturalismo, o dialogismo revela que não é
possível construir uma mensagem desassociada das determinações sociais, pessoais e
estruturais. É nessa interação de constituintes que é possível validar uma prática discursiva
que seja funcional. Mediante tal consideração, observa-se que a prática linguageira não é um
ato objetivo e transparente, mas um ato de densas implicações, as quais só são desmistificadas
se forem considerados todos os determinantes que atravessam o eu discursivo. A partir dessa
desmistificação, Bakhtin evidência que a língua/gem é um ato que se estruturaliza a partir de
relações de subjetividade, o que determinará a sua opacidade.
Diante dessa subjetividade que atravessa o discurso, o sujeito interage com essa prática
tendo por âncora todos os princípios socioideológicos que o povoa, os quais interferiram na
maneira de compreensão e resposta do que lhe é apresentado. A essa resposta, acrescenta
Faraco:
Toda compreensão de um texto falado ou escrito, implica uma
responsividade, e consequentemente, em um juízo de valor. O que isto quer dizer é
que, ao se apropriar de um determinado texto, o leitor se posiciona em relação a ele,
por meio de atitudes distintas: pode concordar ou não, pode adaptá-lo, pode
acrescentar ou retirar informações, pode exaltá-lo. Ou seja, sua reação consiste numa
resposta, o que caracteriza uma ação responsiva (FARACO ,2006, p. 210)
Essa subjetividade dialógica está marcada no texto pela relação EU-TU-OUTRO, que
determina qual seja a prática de discurso. Segundo Bakhtin, todo discurso é sempre enunciado
tendo como respaldo um Tu, o qual estabelece um contínuo com o Eu, e nessa duplicidade
desenvolvem relações de compreensão, o que atribui ao discurso o potencial funcional e
válido em um dado momento da prática comunicativa. Esse princípio dialógico evidencia as
marcas que o Eu e o Tu enunciativo promovem em seus ditos, marcas que são recuperadas e
relacionadas às vozes outras que serviram de âncora para o posto desvelado no discurso. Tal
olhar sinaliza para um discurso que é sempre múltiplo de vozes, mesmo quando nenhuma
marca restringe ou explicita essa voz.
Da subjetividade pessoal a plurissignificação do signo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
225
Segundo os estudos desenvolvidos por Bakhtin, é possível observar que o sujeito se
constitui socialmente através de percepções individuais, as quais são organizadas por meio da
linguagem. Diante desse reconhecimento particular do mundo, depreende-se da obra de
Bakhtin, a percepção que tal autor dá aos fatores externos (culturais sociais, geográficos e
econômicos) na configuração de cada indivíduo. O autor discute em seus estudos que esse
processo de constituição individual é interativo, e que se dá por vias plurais e por
acomodações particulares. Desse modo, o filósofo da linguagem mostra em terrenos da
objetividade que a construção compreensiva do dito não poderá ser total se desconsidera o
singular que tais construtos condensam da particularização pessoal. Diante dessa constatação
evidencia-se as fissuras da língua autônoma e sua ineficiência em dar conta do holístico que
povoa a construção de um dito.
Diante dessa percepção interativa evidenciada por Bakhtin entre Sujeito e Língua,
pode-se compreender que o estudioso considera a língua em uso pela ótica da enunciação, em
que cada construção tem um Tu particular, o qual interfere na forma como o Eu vai
desenvolver seu discurso, fazendo de cada dito, um novo, pois não se é possível manter o
mesmo valor semântico-ideológico, visto que cada sujeito tem uma visão de mundo e valor
diferenciada.
A partir desse princípio subjetivo que envolve a língua, o estudioso Russo, afirma que
esse processo é materializado no contato da construção com o sujeito, mediante um processo
de representação/refração, segundo esse princípio, cada construção produz um efeito dentro
do processo de comunicação social, pois cada indivíduo possui uma base ideológica própria,
particularizada pelas relações de mundo de cada um.
Isto quer dizer que a compreensão da palavra no seu sentido particular
depende da compreensão da palavra no seu sentido particular depende da
compreensão da orientação que é conferida a essa palavra por um contexto e uma
situação precisos. “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial”. As formas linguísticas vazias de ideologia são
apenas sinais da linguagem. Por outro lado, não há interlocutor abstrato, pois não
teríamos linguagem comum com tal interlocutor. (MARIA TEREZINHA, 2008, p.
184)
Mediante a compreensão de que cada sujeito desenvolve do signo um sentido novo,
observa-se que a ideia de signo saussuriano não dá conta dessa multiplicidade de sentidos,
pois como é constatável atualmente a palavra, o enunciado, o discurso desenvolve um
propósito e um sentido sempre novo a depender da funcionalidade pretendida, pois um
Nas fronteiras da linguagem ǀ
226
mesmo evento poderá conter vozes, as quais poderão ser reveladas por uns e desconhecidas
por outros, desencadeando sentidos múltiplos e efeitos também plurais.
Com essa multiplicidade de sentidos que a palavra pode apresentar a partir da situação
comunicativa e de seus atores discursivos, os estudos do Círculo sinalizam as relações
axiológicas que circundam o signo, visto que todo ato de dizer implica em um juízo por parte
do locutor. Ou seja, tudo o que é posto em funcionalidade por meio da linguagem agrega um
olhar particular e valorativo do mundo. Com esse novo enfoque em torno do signo, Bakhtin
propõe o conceito de Signo Ideológico. Conceptualização que serve de base para toda uma
teoria do Discurso.
O que une Bakhtin a uma teoria do Discurso?
A proposta de estudo do Círculo bakhtiniano é inovadora e de larga contribuição
acerca da composição e funcionalidade da língua. No entanto, suas ideias demoram a serem
conhecidas e postas em atividade dentro de uma concepção linguística por diversos fatores.
Os mais significativos, decorre de ser uma abordagem que nasce dentro de um campo
literário-filosófico, proposta em que não há uma concepção autoral particular, estudo que é
tentado ao emudecimento mediante o silenciamento dos estudiosos em um cenário de guerra
civil. Diante desses embates, a proposta de Bakhtin não ganha a mesma força que é veiculada
ao estruturalismo na primeira metade do século XX.
No entanto, paralelo aos estudos da objetividade linguística, outros olhares começaram
a ser postos sobre o fenômeno Língua, indagando e sinalizando para fatores que integram e
determinam essa atividade. A pluralidade de enfoques proporcionou conhecer o objeto de
maneira que contemple a sua totalidade, visualizando todos os princípios que agem e
determinam sua funcionalidade. Toda essa multiplicidade teórica serviu para tornar conhecido
a multifacetada Língua e o quanto esta precisa de uma proposta de estudo que dialogue todos
esses olhares e permita uma interação com a língua de modo que seus usuários compreendam
toda a sua dinamicidade e poder.
É nessa perspectiva de integração teórica, se assim podemos conceituar, que a análise
do discurso se propõe a estudar as práticas de interação comunicativa. É conhecido, que nos
seus primeiros anos esta abordagem não se diferenciou muito de uma proposta conteudista,
pois suas análises pouco apresentaram acerca da participação social, das relações de poder,
dos interesses subjetivos, das interferências situacionais e contextuais. No entanto, nas últimas
décadas do século XX a Análise do Discurso com um viés Crítico adquiriu um olhar mais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
227
pontual acerca da atualização da língua. Nesse período, os estudos do discurso passaram a
considerar que os sujeitos constroem seus ditos a partir de uma continuidade de vozes que o
travessa e determina o seu posto em funcionamento dentro de uma atividade de comunicação.
A partir dessa ininterrupção que marca a continuidade do discurso, é possível perceber a
influência que a teoria dialógica bakhtiniana desenvolveu na construção das bases filosóficas
dessa abordagem teórica. Para Bakhtin, a língua é uma atividade e produto que se integra
dentro de cada novo uso e que este processo é sempre irrepetível, visto que o sujeito é a soma
de outros, os quais estão sempre marcados no seu discurso através de suas escolhas, de seus
posicionamentos, enfim, da própria maneira de atualização discursiva.
Ancorada nessa concepção filosófica, a Análise Crítica do Discurso entende que a
construção discursiva seja o resultado de uma atividade, de uma ação social, a qual dialoga os
constituintes subjetivos e objetivos de uma Língua e os dos sujeitos-colaboradores, em que
cuja interação promulga um ato discursivo, o qual é efetivado com uma finalidade
sociocomunicativa.
Sabido que a Análise do Discurso é constituída em duas vertentes, as quais se
encontram em alguns pontos e se distanciam em outros, priorizamos nesse artigo, a
abordagem anglo-saxã de van Dijk. Ao delimitarmos os caminhos da Análise Crítica do
Discurso, podemos ver, nas análises das atividades linguageira, o quanto a proposta do círculo
é válida e como esta é posta em exercício dentro das pluralidades de interação comunicativa
da sociedade do século XXI. Na proposta de van Dijk, é possível perceber como o conceito de
subjetividade, de valor, de refração e de dialogismo de Bakhtin dão sustentabilidade a sua
abordagem.
Van Dijk (2012) desenvolve uma abordagem centrada a partir da subjetividade do euenunciante. O autor discute que não é o espaço sociocultural por si mesmo que determinará a
produção e a interpretação do discurso, mas como esses espaços são representados
mentalmente pela cognição individual de cada sujeito. Com essa nova maneira de perceber a
construção do contexto, constate-se que esse é dinâmico e subjetivo. Tais princípios são
possíveis não porque a cultura ou a sociedade muda, mas porque o sujeito está imerso nessas
práticas.
Mediante essa subjetividade mental do contexto, van Dijk (2012) discute que o mesmo
ato discursivo, proferido no mesmo grupo sociocultural produzirá efeitos e compreensões
diversas diversificas, visto que nenhum sujeito tem os mesmos modelos mentais. O autor
também chama a atenção a respeito desse conhecimento por parte do locutor, o que o leva a
produzir um ato discursivo mediante os possíveis modelos de contexto de seus interlocutores
Nas fronteiras da linguagem ǀ
228
e portanto produzir um discurso que seja compreendido de modo pleno ou aparente pelo
interlocutor, tal ação dar-se-á mediante a intenção de quem enuncia. A isso afirma van Dijk:
Embora na maioria das formas de discurso entre membros de uma mesma
comunidade os modelos mentais sejam suficientemente semelhantes para garantir o
sucesso da comunicação, convém ressaltar que os modelos mentais incorporam
necessariamente elementos pessoais que tornam únicas todas as produções e
interpretações – e portanto tornam possível o mal-entendido – mesmo quando eles
têm muitos elementos socialmente compartilhados. Vemos, portanto, que a
compreensão do discurso envolve a construção, controlada pelo contexto, de
modelos mentais baseados em inferências fundamentadas no conhecimento. (VAN
DIJK, 2012, p. 93)
Como foi possível depreender dessa abordagem, não é suficiente no processo de compreensão
e produção discursiva, que os sujeitos dominem apenas a língua enquanto estrutura, mas que
sejam capazes de interagir com os modelos episódicos que constituem seus modelos de
contexto para assim conseguir alcançar o que é preestabelecido no posto linguístico, visto que
muito do que é intencionado não está marcado por meio da palavra, mas sim, recuperável
através das estruturas subjetivas do contexto.
Considerações finais
Como se constatou ao longo desse estudo, a língua foi objeto de vários estudos ao
longo de um século. Estudos que propuseram sempre um olhar inovador e revelador acerca
desse objeto. Ao priorizarmos o enfoque bakhtiniano, pudemos perceber o quanto sua
proposta é ampla e como busca dar conta da funcionalidade da Língua em seu exercício. Ao
tentar estabelecer um elo entre a proposta do círculo e Análise Crítica do Discurso, observa-se
o quanto os eixos daquela (representação/refração, dialogismo, axiologia do signo,
subjetividade, multiplicidade de sentidos) são incorporados dentro de uma perspectiva
contemporânea de compreensão e funcionalidade da língua. Dessa maneira, é possível
concluir que a proposta de uma análise do discurso tem origem com os estudos de Bakhtin,
embora limitada aos textos literários e ultimamente difundida através de um enfoque mais
linguístico, mas mantendo toda a base filosófica herdada do filosofo Russo e seu Círculo.
Referencias
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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229
VAN DIJK, Teun A. 1943- Cognição, discurso e interação; (org. e apresentação de Ingedore
V. Koch). – 7. Ed. São Paulo: Contexto, 2011.
VAN DIJK, Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradutor Rodolfo
Ilari. – São Paulo: Contexto, 2012.
ELICHIRIGOITY, M. (2008). A formação do sentido e da identidade na visão bakhtiniana.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 181-206, 2008.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin.
– São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
MAGALHÃES, L. (2007). Introdução ao pensamento de Bakhtin. Locus: revista de história,
Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 210-215, 2007.
MUSSALIM, Fernanda. Introdução à linguística: fundamentos epistemológicos, volume 3/
Fernanda Mussalim, Anna Christina Bentes, Organizadoras – 4. ed. – São Paulo: Cortez,
2009.
PIRES, V; TAMANINI-ADAMES, F. (2010). Desenvolvimento do conceito bakhtiniano de
polifonia. On-line. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es/ >. Acesso em 16
de Julho 2014.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
230
QUESTÕES DE MULTIMODALIDADE EM CONTEXTO
ESCOLAR: DESAFIOS DO TRABALHO COM A IMAGEM
[Voltar para Sumário]
Ana Cláudia Soares Pinto (UFPB)
Considerações iniciais
Para Dionísio (2005, p.3), os recentes avanços tecnológicos têm oportunizado o
surgimento de novas formas de interação que implicam na necessidade de revisão e ampliação
das interações humanas e de alguns conceitos no âmbito do processamento textual e das
práticas pedagógicas que lhe são decorrentes, uma vez que imagem e palavra mantêm relação
cada vez mais próxima, cada vez mais integrada. As imagens, na sociedade contemporânea,
passam a compor o sentido dos textos juntamente com a modalidade escrita, deixando de
apresentar caráter meramente ilustrativo, não sendo raro “os casos em que textos visuais são
responsáveis pela sistematização de informações não contidas no texto escrito” (DIONÍSIO,
2006 p.21).
Com as facilidades do avanço tecnológico, recebemos grande quantidade de
informação veiculada pelos diferentes meios de comunicação que se utilizam de várias
linguagens no processamento textual. Precisamos, pois, atribuir sentido a textos constituídos
por linguagens variadas consubstanciadas em palavras, imagens, cores, gestos, entre outros,
que se integram na construção do sentido do texto. Consequentemente, temos a necessidade
de uma formação com mais ênfase na modalidade visual, mais focada no letramento visual,
ou seja, na comunicação e na recepção de mensagens visuais.
Essa tendência cada vez mais orientada para o visual com o uso de múltiplas
modalidades é uma marca constante da sociedade contemporânea e, consequentemente, do
contexto escolar – em nossas salas de aula. Mas, até que ponto essas modalidades são
exploradas de fato pelo seu caráter multimodal ou são meros pretextos para o uso da
modalidade dominante, na sala de aula, ou seja, a linguística?
Sabemos que, apesar desse atual contexto da sociedade contemporânea e do uso
intensivo da imagem pelos alunos fora do ambiente escolar (cartazes, entretenimento,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
231
publicidade, por exemplo) ainda é bastante questionada a sistematização de seu uso para fins
pedagógicos.
É no âmbito da compreensão desse novo paradigma linguístico que nos propomos a
apresentar, nesse trabalho, uma reflexão sobre o trabalho com o texto imagético na sala de
aula de Língua Portuguesa. Para tanto, objetivamos identificar o posicionamento de uma
professora do Ensino Fundamental sobre os desafios encontrados no uso desses textos
(imagéticos) em sala de aula.
Os dados considerados, neste estudo, referem-se a respostas de uma entrevista
semiestruturada a partir de tópicos como: contribuição da imagem para o ensino de Língua
Portuguesa; escolha da imagem; objetivo da aula a partir da imagem; participação dos alunos;
presença da imagem no livro didático etc., tópicos que visam caracterizar as representações
sobre seu agir docente.
Sob a orientação teórico-metodológica da multimodalidade e do contexto visual, este
trabalho apresenta três seções além desta introdução. Primeiramente, é apresentada uma
caracterização geral do fenômeno da multimodalidade focalizando alguns conceitos que nos
ajudarão na análise dos dados. Em seguida, apresentamos informações sobre o contexto dos
dados apresentados, interpretamos os resultados e, então apresentamos algumas considerações
finais trazendo para a discussão a necessidade de se compreender de que modo o trabalho com
a imagem é visto ou representado em contexto escolar.
Multimodalidade
Falar em multimodalidade não é somente falar em múltiplos modos de transmitir
mensagem e conhecimento através de fotografia, pintura, desenhos, gráficos, etc. A
multimodalidade também está na língua/linguagem, como afirma Kress e Van Leeuwen:·.
Linguagem, por exemplo, é um modo semiótico porque pode se materializar
em fala ou escrita, e a escrita é um modo semiótico também, porque pode se
materializar como (uma mensagem) gravada em uma pedra, como caligrafia
em um certificado, como impressão em um papel, e todos esses meios
adicionam uma camada a mais de significado. (Kress & Van Leeweun,
2001)
Assim, todo texto pode ser multimodal, mesmo que só tenha texto escrito. O simples
destaque do título, os usos de diferentes tipos de letras, tamanho e cor tornam qualquer texto
escrito multimodal.
A noção de multimodalidade das formas de representação que compõem uma
mensagem foi introduzida por Kress & Van Leeuwen (1996) na área da Semiótica Social,
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232
buscando compreender todos os modos de representação no texto linguístico. Sendo assim os
autores propõem que se pense numa linguagem constituída como multimodal, em que o
sentido advenha da relação textual estabelecida entre os diferentes modos utilizados para sua
constituição e não que se pense isoladamente em cada um deles.
A multimodalidade encontra-se, portanto, nas múltiplas linguagens que utilizamos em
situações de comunicação. Quando falamos, por exemplo, utilizamos, além da fala, gestos,
movimentos corporais, entoações, etc. que vão ajudar a construir o sentido do texto que
estamos elaborando. Na escrita, a multimodalidade ocorre quando temos o texto escrito
incorporado a uma imagem ou outra linguagem visual, como desenhos, fotografias, gráficos,
cores, etc. Em relação à manifestação escrita, a própria disposição da escrita no papel já é
considerada visual, conforme acentua Descardeci (2002, p. 20-21) “em uma página, além do
código escrito, outras formas de representação como a diagramação da página (layout) a cor e
a qualidade do papel, o formato e a cor (ou cores) das letras, a formatação, etc. interferem na
mensagem a ser comunicada.”
Dessa forma, a perspectiva da multimodalidade revela que a prática da leitura e/ou
análise de textos não deve se pautar somente na mensagem escrita, pois esta constitui apenas
um elemento representacional que coexiste com uma série de outros, como a formatação, o
tipo de fonte, a presença de imagens, tabelas, etc. Estes recursos visuais também constituem
formas de expressão do conteúdo do texto e nos orientam na condução da leitura, fazendo-nos
enxergar que os sentidos somente serão reconstruídos pela leitura eficiente do conjunto dos
modos semióticos presentes no texto e não, apenas, com base em uma única modalidade.
O ensino como trabalho: o professor como trabalhador
Pensar em uma conceitualização para o termo trabalho implica aceitar as condições
sócio-históricas subjacentes ao conceito. Machado (2007), com o propósito de explicitar a
concepção de “trabalho do professor” faz uma acurada explanação do assunto, tomando como
ponto de partida os motivos de discutir essa noção, explorando em seguida os diferentes
significados atribuídos ao termo até chegar ao valor que tem essa expressão atualmente. Dessa
forma, com base em Bronckart (2004) e Machado (2007) apresentamos nossa reflexão acerca
da concepção de trabalho do professor. Antes, porém, uma definição do termo trabalho
apresentada por Bronckart (2004/2006) apud Machado (2007, p.78) que define trabalho
como:
[...] um tipo de atividade ou de prática. [...] um tipo de atividade própria da
espécie humana, que decorre do surgimento, desde o início da história da
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humanidade, de formas de organização coletiva destinadas a assegurar a
sobrevivência econômica dos membros de um grupo: tarefas diversas são
distribuídas entre esses membros (o que se chama de divisão de trabalho);
assim, esses membros se vêem com papéis e responsabilidades específicas a
eles atribuídos, e a efetivação do controle dessa organização se traduz,
necessariamente, pelo estabelecimento de uma hierarquia.
Nesse mesmo texto, Machado (op.cit., p. 78), afirma que tal definição é insuficiente
para que se compreenda o trabalho do professor. O trabalho do professor só emerge como
objeto de estudos no final da década de 90. Foi nesse contexto que a abordagem ergonômica
passou a ser empregada, como “um instrumento adequado para enfocar a complexidade da
atividade educacional enquanto trabalho e o real funcionamento do professor enquanto
trabalhador” (MACHADO, 2007, p. 90).
Um dos problemas apresentados por Bronckart (2006, p.203-204) para definir a
prática do professor é a sua relativa opacidade, ou seja, “a dificuldade de descrevê-lo,
caracterizá-lo e, até mesmo, de simplesmente falar dele.” Frente a essa realidade, Machado
(2007, p.93) defende que
O trabalho docente, resumidamente, consiste em uma mobilização, pelo
professor, de seu ser integral, em diferentes situações – de planejamento, de
aula, de avaliação -, com o objetivo de criar um meio que possibilite aos
alunos a aprendizagem de um conjunto de conteúdos de sua disciplina e o
desenvolvimento de capacidades específicas relacionadas a esses conteúdos,
orientando-se por um projeto de ensino que lhe é prescrito por diferentes
instâncias superiores e com a utilização de instrumentos obtidos do meio
social e na interação com diferentes outros que, de forma direta ou indireta,
estão envolvidos na situação.
A partir deste fragmento que caracteriza o agir docente, nos chama atenção a primeira
parte da definição apresentada pela autora (em função de nossos objetivos, enfocaremos tais
aspectos neste artigo) que situa o professor no interior de sua disciplina como alguém que cria
meios para a aprendizagem de conteúdos e para o desenvolvimento de capacidades a eles
relacionadas.
Na análise dos dados, apresentaremos segmentos de respostas dadas por uma
professora do Ensino Fundamental com relação ao trabalho com o texto imagético em sala de
aula. Tais respostas referem-se ao trabalho interpretado pela própria professora que comenta o
seu trabalho. Desse modo, ao analisar esses segmentos podemos identificar representações
sobre o trabalho para que possamos melhor compreendê-lo.
Contexto de realização da entrevista
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O texto proveniente da entrevista semiestruturada, teve como participantes, uma
professora do Ensino Fundamental (participante da pesquisa) e esta pesquisadora e foi
produzido no dia 07 de janeiro de 2013 com tempo de duração de aproximadamente 07
minutos na residência da própria professora que concedeu a entrevista.
Esta pesquisadora é estudante de segundo ano de Doutorado, com experiência no
ensino médio e também superior, estando no momento afastada de suas atividades
profissionais para realização do Doutorado. Em relação à participante da pesquisa, a
professora é recém - graduada em Letras, cursando, atualmente, Especialização em Língua
Portuguesa e atuando em uma Escola da Rede Privada, no Ensino Fundamental. A escolha da
participante deu-se devido ao contato que a pesquisadora já teve com ela em virtude de ter
sido sua professora ainda no Curso de Letras, quando teve conhecimento do seu trabalho
(mesmo
sem ter concluído o curso, a aluna já ministrava aulas, regularmente) que
contemplava a utilização dos textos imagéticos em sala de aula.
No que diz respeito ao conteúdo temático, foi utilizado o tema “o trabalho com a
imagem em contexto escolar”.
Sobre as respostas da professora
A entrevista, embora composta por seis questões, (ver Apêndice I) apresentou muita
repetição de informações, fato este que creditamos a forma de estruturação.
Ou seja,
estruturalmente organizamos a primeira questão com um caráter de tópico “maior” no qual
buscávamos informações variadas para termos uma visão geral das suas impressões sobre o
trabalho, objetivávamos que a professora falasse o mais naturalmente possível e de forma
ampla como de fato o fez. As demais questões propostas, porém, elaboradas de forma mais
específica tendo em vista informações mais pontuais, apresentaram, pois, uma repetição do
que já havia sido tematizado na pergunta de abertura.
Para fins de análise neste trabalho, tendo em vista o objetivo traçado, nos deteremos
apenas na observação de três questões. Vejamos segmentos da resposta dada à primeira
questão ao perguntarmos sobre o trabalho com a imagem e a contribuição deste para o
desenvolvimento linguístico dos alunos:
Ex 1: primeiramente é preciso que eu diga que ensino numa escola
particular... e há uma cobrança muito maior/.../é:: em relação a tudo... então
uma das exigências, é a utilização da imagem ... eles acreditam/
coordenação/supervisão/que assim estão trabalhando de maneira moderna...
atual...não só o texto verbal/certo? mas aí... em um momento ou outro...no
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fim das contas acabam exigindo um estudo mais formal/tradicional...
conteudístico/ digamos assim... o que gera uma contradição...é prá trabalhar
mas não é importante como conteúdo...entende? tem que cobrar outras
coisas... então... me colocando como educadora dessa escola é um desafio
defender esse trabalho/.../ mas vejo que isso não é um problema dessa escola
conciliar essas contradições é sempre um problema para nós professores.
A partir da análise do exemplo 1 acima percebemos que a professora não responde
diretamente à pergunta feita. Na sua fala é possível identificar que há entraves de ordem
institucional e/ou pedagógica que dificultam ou não favorecem o efetivo trabalho com a
imagem. Um conjunto de mudanças precisa acontecer no ambiente educacional para que o
texto multimodal seja efetivamente explorado.
Observamos, no exemplo, alguns segmentos que são usados pela professora,
claramente, para justificar a situação de desconforto vivida por ela individualmente, o que ela
remete a uma insatisfação comum a todos os professores – conciliar essas contradições é
sempre um problema para nós professores. Logo, há um conhecimento compartilhado e
cristalizado na classe dos professores. Percebemos ainda uma sensação de rotina de algo
“institucionalizado”- a professora justifica o seu agir como uma forma de agir já realizado por
outros e também reapropriado por ela.
O discurso está organizado em torno do estabelecimento de orientações genéricas para
a realização das atividades a serem a trabalhadas com os textos imagéticos. Demonstra
também como a professora tem compreensão das diretrizes escolares como normas explícitas
para o seu trabalho (isto claro... dentro dos métodos estabelecidos pela instituição escolar).
Semelhante ao que foi analisado acima, no exemplo a seguir, a professora procura
assinalar uma prática baseada em um discurso generalizante, sem considerar, no entanto, as
particularidades locais de sua realidade. A utilização do “é preciso” denota que a professora
dá sua opinião utilizando-se do coletivo demonstrando um caminho que julga necessário para
todos os outros professores.
Ex. 2: a interpretação do texto imagético requer certa prática, tanto da parte
do educador quando do aluno é um processo lento e o aluno quer entender de
cara às vezes consegue mas nem sempre/ é preciso que agucemos a
curiosidade deles nessa prática e a gente vai tentando até ... enfim
“O aluno quer entender [...] e às vezes consegue, é preciso que agucemos a curiosidade
deles [...] e a gente vai tentando”. Esse segmento nos faz refletir com Freitas (2005) que
destaca o fato de o perfil do aluno atual ser diferenciado e ressalta a necessidade de melhorar
a formação inicial e continuada dos professores. Podemos perceber que há uma lacuna, o
aluno quer aprender e o professor tenta ensinar, está posto que lhe falta formação e
direcionamento para tal. Ainda que as teorias da multimodalidade e dos novos letramentos
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não tenham feito parte de nossa formação inicial ou continuada, somos cobrados quanto a sua
inserção em nossas aulas.
Na segunda pergunta objetivávamos saber sobre o seu objetivo ao preparar uma aula
de leitura a partir de uma imagem. O fragmento a seguir é ilustrativo da resposta à essa
questão:
Ex. 3: então:: o objetivo principal é que o aluno perceba que o texto não está
só na palavra... que como diria Vigotsky a palavra sem sentido não pode ser
considerada palavra... assim é com o texto não verbal/ não é qualquer imagem/
não é qualquer desenho que o aluno interpreta por isso que se deve ter
cuidado... uma imagem jogada sem nenhum objetivo não vai ter sentido
algum pra aquele aluno
Novamente o discurso da professora parece estar deslocado do contexto real no qual
trabalha e relacionado com um modelo teórico que deve seguir. Pudemos observar a presença
de um discurso bastante objetivo e impessoal considerando de forma superficial o contexto
em que atua.
Utilizando-se de fontes enunciativas (como diria Vigotsky), a professora determina
vozes que direcionam sua formação ou sua prática funcionando como uma orientação sobre a
atividade a ser realizada. Embora percebamos que há pouca correlação entre o que é citado e o
que foi perguntado – objetivo de uma aula com a imagem.
O exemplo seguinte servirá para ilustrar a preocupação da professora em apropriar-se
do discurso de alguém como forma de justificar ou associar seu próprio modo de agir.
Ex.4: apesar de trabalhar muito com o texto imagético acredito que ainda não
consigo trabalhar de forma concreta esse tipo de texto/na verdade nem sei
porque / é... que muitas vezes acabo desviando o olhar para os conhecimentos
conteudísticos, é um processo longo... /.../ recentemente muitos estudiosos
estão privilegiando essa ferramenta na sala de aula... segundo eles a imagem
ativa uma função muito importante para o intelecto do jovem ou
adolescente/.../ quem sabe... pensar num trabalho que estimule os alunos a
desenvolver melhor suas capacidades cognitivas...
Semelhante ao Ex.3, há novamente uma referência a fontes enunciativas (muitos
estudiosos) que estão associadas a sua prática e/ou formação docente orientando ou servindo
como uma base teórica a ser considerada no trabalho com a imagem. Percebemos claramente
neste fragmento a ausência de uma formação específica para o trabalho com a imagem no
momento em que a professora usa “nem sei porque”, demonstra pouca propriedade sobre o
tema com o uso de expressões muito genéricas.
Considerações finais
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
237
É preciso que a escola trabalhe de fato,com outras formas de linguagem e a
diversidade cultural para desenvolver outros letramentos nos estudantes. Como a
multimodalidade já está inserida no cotidiano dos estudantes, o diferencial na escola será a
promoção da consciência crítica, como interagir socialmente por meio de tais conhecimentos
em diferentes contextos e com diferentes objetivos.
Com base nos resultados ora apresentados e de maneira limitada, haja vista não
contarmos com outros dados, constatamos que a concepção da professora sobre o trabalho
com a imagem é, na verdade, aquilo que é desejado ou teorizado sobre tal trabalho, isto é,
algo que a professora encara como um discurso ou uma orientação a ser seguida e que
generaliza como válido para todos, como uma afirmação de verdade absoluta, definida, sem
permitir contestação. Isso nos fez perceber a postura de uma professora passiva sempre
agindo em conformidade com um “padrão” a ser seguido.
Nesta perspectiva, nossos resultados confirmaram a relativa opacidade que permeia o
trabalho do professor. Isto porque, entre outras coisas, o professor como um trabalhador,
qualquer que seja a profissão, carrega consigo representações sociais (coletivas) que as
internaliza de forma particular, reconfigurando essas representações sempre que necessário. A
dificuldade da professora em se implicar no discurso, observada em nossos dados, pode
revelar traços constitutivos dessa representação social confirmando quão enigmática e opaca é
a prática do professor.
A nosso ver, compreender o agir docente pelo discurso do próprio docente é
fundamental, especialmente porque pode nos apontar elementos constitutivos do seu trabalho
difícil de ser identificado por outro observador, por outro lado, permitindo que se analise o
trabalho do professor de forma mais ampla e fundamentada, neste artigo, especificamente, que
repensemos as práticas de realização do texto imagético em sala de aula.
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RJ: Vozes, 2007.
APÊNDICE 1:
Entrevista
1. Fale sobre o seu trabalho com o texto imagético em sala de aula e como este pode
contribuir para o desenvolvimento linguístico dos alunos.
2. Mas exatamente qual é o seu objetivo ao preparar uma aula de leitura a partir de uma
imagem?
3. Como você avalia a participação/recepção dos alunos nessas aulas?
4. O que você entende/adota como pré- requisito para escolher uma imagem para ser
trabalhada com seus alunos? Baseada em que você faz sua escolha?
5. Como são exploradas (ou não) as imagens no livro didático em suas aulas? Há alguma
orientação no livro didático para a abordagem desse tipo de texto ( o imagético)?
6. Sente que faz um trabalho satisfatório com este tipo de texto ou não? Por quê?
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
239
A PESQUISA EM METACOGNIÇÃO PARA UM ESTUDO DO
GÊNERO CRÔNICA NO ENSINO FUNDAMENTAL
[Voltar para Sumário]
Ana Lúcia Farias da Silva (UFRRJ)1
1. Introdução
A pesquisa em cognição traz um suporte importante para o professor no trabalho com
o texto de gêneros literários, pois inaugura uma possibilidade de colocar o sujeito educando e
sua subjetividade no centro dos estudos cognitivos. O suporte da cognição e, mais
recentemente da metacognição, revela um trabalho focado nas intersubjetividades, emoções e
sentimentos que o texto desperta no aluno leitor. Por acreditar que antigas concepções de
ensino e parâmetros curriculares limitavam o papel do aluno na escola e questionarem isto,
promovendo novas reflexões, é que novos estudos surgiram, na área de cognição, e passaram
a pesquisar novas possibilidades de trabalho na sala de aula que valorizassem a figura do
aluno, enquanto aprendiz , assim como entender de que forma o indivíduo constitui-se,
posiciona-se em uma determinada prática e, enquanto aprendiz, ressignifica seu discurso,
como afirma Gerhardt (2006).
De todas as competências culturais, ler é, sem dúvida, a mais valorizada na sociedade,
então, cabe à literatura tornar o mundo mais compreensível, transformando o aspecto da sua
materialidade em textos com os quais convivemos, sobretudo, na escola. De acordo com
Cosson (2006), o letramento feito com textos literários proporciona um modo privilegiado de
inserção no mundo da escrita, pois conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma.
Com relação a esse posicionamento acima, Cosson (2006) comenta a importância do
letramento literário baseado em textos de gêneros literários na escola, assim, o letramento
literário precisa da escola para acontecer. Para Zilberman (2003), o professor, ao promover
um letramento literário de qualidade no aprendiz, dá o direito para que ele, o educando,
experimente o texto literário e vá muito além da leitura, mas também que possa se apropriar
1
Mestranda de Letras da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
240
da literatura, tendo dela a experiência literária.
Nas discussões sobre o caráter plural da leitura do texto de gêneros literários, muitos
autores demonstram que a literatura exige uma leitura diferenciada, ou seja, que é preciso um
olhar que vá além da decodificação da escrita ali registrada, um olhar de percepções
múltiplas, de trocas de impressões partilhadas que o texto literário promove no leitor. Então,
se a leitura do texto literário dissemina sentidos variados, sugerindo amplas relações
dialógicas do texto com o leitor, é preciso haver um processo que valorize a importância do
trabalho com o ensino do texto de gêneros literários na escola, no sentido de capacitar o
aluno, através de atividades que possibilitem a ele um constante letramento literário.
Se consideramos a escrita como um processo que cabe à escola desenvolver nos
alunos, validando as intensas e diversificadas semioses que são produzidas por eles nas aulas
de língua materna, reconhecemos, com isso, que diversos tipos de conhecimentos são
acionados quando se parte para o ato de escrever e estão diretamente associados ao contato
que o sujeito teve e tem durante toda a sua vida com atividades que exijam dele leitura e
prática da escrita. Segundo Dahlet (1994), mesmo os escritores proficientes e profissionais no
campo da escrita admitem que escrever é um ato que exige muito trabalho e dedicação, sendo
uma atividade complexa que implica em relacionar as consciências linguística, cognitiva e
social.
Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a
fim de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam
um texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um
determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se
cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado
ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma
problemática do cotidiano.
2. A crônica “escolar” e o valor da leitura da literatura
A justificativa para a questão do estudo do gênero crônica escolar, apoia-se na escolha
que se deu a partir da análise de currículos seguidos pelas escolas públicas do ensino
fundamental, do sexto ao nono ano no Estado do RJ. Juntamente à análise dos currículos, se
deu o estudo de livros didáticos mais adotados nas escolas neste segmento de ensino, em que
o gênero textual de maior destaque
que ali é
reproduzido é a crônica. No entanto,
percebemos que o tipo de crônica transcrito nos livros didáticos são os de natureza escolar, de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
241
autores referência na escrita desse gênero, como Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Luis
Fernando Veríssimo, Millôr Fernandes, Rubem Braga, Moacyr Scliar, Paulo Mendes Campos,
Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, entre outros.
Caracterizamos esse tipo de crônica com o adjetivo “escolar”, pois elas se associam e
se assemelham pelas condições de produção e meios de circulação em que são apresentadas.
Se pensarmos nos dias de hoje, popularmente, somente o livro didático e alguns poucos
jornais veiculam esses textos chamados de crônica, que é um gênero fronteiriço, que oscila
entre jornalismo e literatura, ficção e história, prosa e poesia. Mas a característica
predominante nos textos do gênero crônica reproduzidos nos livros didáticos de ensino
fundamental é a marca de um finalidade didático-moralizante que apela para reflexões sobre a
natureza do ser humano, suas atitudes e comportamentos frente a um fato da rotina, cotidiano
e que suscita inclusive, uma espécie de entretenimento.
O gênero crônica, ao longo dos tempos veio se corporificando numa escala histórica
que vai do uso documental, do registro de viajantes da época das grandes descobertas
territoriais pelo mundo afora, até o registro jornalístico de fatos do dia a dia, seja social,
esportivo ou filosófico. Ou seja, do pragmatismo histórico de Fernão Lopes ao singelismo e
humor de Millôr Fernandes, a crônica veio assumindo um formato que hoje a democratiza,
através de sua produção nos meios digitais, em que qualquer um pode se habilitar a escrevê-la
e ousar em publicá-la nas redes sociais.
Os textos de crônica costumam ser leves, de fácil compreensão, pois a linguagem
empregada beira às vezes a informalidade típica das conversas do cotidiano de qualquer
pessoa. São simpáticas, bem apreciadas, de textos com começo-meio-e-fim, bastante propício
à leitura em ambiente escolar e tantas vezes humorísticas, engraçadas e sutis, tornando um
fato rotineiro algo de grande valor existencial, como bem exploram os narradores reflexivos
nas histórias de crônicas. Esse caráter da narração reflexiva nas crônicas aproximam-as até
mesmo do texto opinativo.
Os jovens, no ensino fundamental, leem Literatura a sua maneira e de acordo com as
possibilidades que lhes são oferecidas. Sabe-se que fora da escola, ocorrem escolhas muito
aleatórias pelos jovens, que selecionam livros a partir de uma capa, do que se lê entre seus
colegas, bem como do número de páginas. Observando essas escolhas feitas pelos jovens, fora
do ambiente escolar, consta-se, assim uma desordem própria da construção do repertório de
leitura dos adolescentes. A ausência de referências sobre o campo próprio da literatura e a
pouca experiência de leitura – não só de textos de gêneros literários – fazem com que os
jovens leitores se deixem in-
Nas fronteiras da linguagem ǀ
242
fluenciar por detalhes nem sempre importantes de certos tipos de leitura, não pertencentes à
Literatura, enquanto objeto de valor. No entanto, também não se pode descartar totalmente
aquilo que os jovens vêm se interessando como leitura, pois a recepção, a reprodução e a
circulação da literatura via público-leitor não podem ser estudadas como um fenômeno
isolado das outras produções culturais, sobretudo na contemporaneidade desse mundo digital
e globalizado.
Eco (1993) também ressalta o caráter da Literatura como bem simbólico e que deve-se
apropriar dela a fim de que haja uma proliferação ilimitada de leituras que a obra pode
suscitar. A partir dessa consideração de Eco (1993), nos reportamos à escola como um lugar
de compartilhamento de impressões sobre um texto lido, pois é no ambiente escolar que o
texto, bem escolhido pelo professor, pode favorecer uma experiência literária de grande valor
para os aprendizes. Também o mesmo texto, quando bem explorado por um trabalho que vise
não mais a superficialidade textual, mas a profundidade do discurso literário ali inserido e
registrado, ele passa a ter um efeito de que se espera da Literatura na escola, isto é, integrar o
aluno ao discurso literário, através do seu contato que se inicie na leitura, passe pela
compreensão daquela obra, a sua contextualização frente ao momento literário que se quer pôr
em estudo e ultrapasse os múltiplos sentidos que se dá ao texto literário.
Por meio da leitura do texto literário, o polo da leitura por se constituir num terreno
fluido e variável, a partir dela, origina-se a concretização de sentidos múltiplos, originados em
diferentes lugares e tempos. Nesse raciocínio, hoje, a noção de texto se amplia. Segundo
Barthes (1988), o texto hoje se dirige a um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se
contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original. Esse argumento utilizado por
Barthes (1988) vem a reformular o que já havia tratado Bakthin (1981), ao desenvolver o
conceito de polifonia, chamando a atenção para a dimensão dialógica do texto, apontou para
sua pluralidade discursiva, que vai além dos limites da estrutura interna de um texto de caráter
literário, estendendo-se à leitura e, em seguida, á sua recepção e compreensão literária.
Bakthin (1981) e Barthes (1988) ressaltam a importância das vozes que cruzam um
texto literário e suas múltiplas impressões de sentidos a ele conferido pelo leitor. Também na
sala de aula, as conferências múltiplas de sentido precisam ser apontadas ao texto, no trabalho
com a valorização da leitura conferida pelo aluno aprendiz. O objetivo perseguido nas práticas
escolares é o de formar leitores críticos, e, para tal fato, os próprios documentos oficiais
curriculares das últimas décadas, como os PCNs, tem demonstrado uma preocupação nesse
sentido de promover uma leitura com maior fruição e desempenho.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
243
Qualquer produção de linguagem situada, oral ou escrita pode ser considerada texto,
porém, a propriedade mais básica de todo texto é a sócio-comunicativa, porque diz respeito à
função que o texto cumpre num dado contexto social. O contexto sociocultural em que o texto
se insere determina a construção de seu sentido, uma vez que, além dos aspectos lógicosemânticos, envolve também aspectos cognitivos, pois “é no partilhar de conhecimentos entre
os interlocutores que o texto passa a fazer sentido” (BEAUGRANDE; DRESSLER, 1983).
Partindo da reflexão acima, privilegiamos o trabalho com o gênero crônica escolar, a fim
de situar o aprendiz e delimitar para ele as características sócio-comunicativas que tornam um
texto aplicável a este gênero, ou seja, deixar claro para o aluno que faz-se uso de um
determinado gênero de texto na tentativa de atender às necessidades da situação e de se
cumprir as funções sociais a que se destina, que no caso do gênero crônica escolar, está ligado
ao entretenimento, ludismo, humor, dialogismo e reflexão subjetiva do narrador frente a uma
problemática do cotidiano.
2.1
Como a literatura é reproduzida em documentos oficiais e currículos
O que se tem observado é que esses mesmos documentos oficiais curriculares
apresentam uma característica que lhes é comum, ou seja, o fato de querer impor às escolas de
nível fundamental, um trabalho muito automatizado e limitado com a leitura, pois quando
falam de proficiência, só levam em consideração o formatação do aluno para que ele tenha
desempenho favorável em avaliações externas que, no fundo, não aferem nada além da
compreensão superficial de um texto, que muitas das vezes nem é um texto de gênero
literário.
A prática escolar em relação à leitura literária tem sido a de dar ênfase às atividades de
metaleitura, como o estudo do texto e seus aspectos históricos-literários, caracterização de
estilo, deixando, assim, em segundo plano o trabalho mais importante que é a leitura em si do
texto literário. O fato é que os jovens, somente inseridos em atividades de metaleitura, não
serão motivados a ler de forma integral. As tarefas produzidas a partir da metaleitura são
necessárias na escola, entretanto, não podem ser somente o único recurso ao trabalhar com o
texto de gênero literário.
Nesse aspecto, as atividades de metaleitura, ainda que importantes na escola, somente
fazem o aluno aprendiz a refletir sobre alguns dos aspectos da escrita, como organização da
língua e fatores ligados à história e à estrutura dos textos literários. Embora seja difícil fazer
com que os alunos, ainda não leitores, realidade clara em nossas escolas hoje,se interessem até
Nas fronteiras da linguagem ǀ
244
mesmo pelas tais atividades de metaleitura. Parece, portanto, extremamente urgente motiválos à leitura dos textos de gêneros literários, promovendo atividades que tenham para eles uma
finalidade clara e não exatamente escolar, por exemplo, que ele se reconheça como leitor, que
compartilhe com outros alunos e o próprio professor, suas impressões de leitura do texto,
evitando a leitura de obrigatoriedade; ler somente porque a escola pede, transformando a sua
leitura numa obrigação, perdendo, com isso, o caráter do prazer de ler.
2.2
A posição do aluno aprendiz frente ao texto literário e os estudos na área de
cognição
Ao ser trabalhado com diversidade de atividades, a leitura de um determinado gênero
literário na escola acaba direcionando o aluno-aprendiz para o desenvolvimento de uma
conduta muito mais responsável e crítica em relação ao texto literário, como construir um
saber sobre o próprio gênero, bem como levantar hipóteses de leitura, perceber características
discursivas intrínsecas a um determinado gênero e até mesmo estratégias narrativas. Há nessa
perspectiva uma concepção cognitiva do uso que se faz da leitura na escola.
Com o desenvolvimento das pesquisas em ciências cognitivas, nos anos 90, surge uma
nova análise do processo de ensino aprendizagem, pois se passou a dar ênfase ao caráter de
natureza social e educacional do ensino de línguas com as quais o aluno tem contato no
ambiente escolar.
Apoiado nessa visão, o ensino de línguas ultrapassa a ideia de que elas seriam somente
“produtos sociais da linguagem” (SAUSSURE, [1916] 2001), atribuindo a elas a dimensão de
construtos semióticos, atingidos por valores identificados nas intersubjetividades em que os
indivíduos se envolvem cotidianamente em suas vidas, conforme afirma Gerhardt (2013).
Assim, essa visão cognitiva muito mais ampliada e focada na subjetividade do aluno,
situa-o no centro do processo de ensino e aprendizagem. O pensamento cognitivo, ao validar
os processos de subjetivação e as semioses que esse aluno constroi e desenvolve, aponta para
novas práticas didáticas que valorizem e reconheçam o aluno como um aprendiz, sobretudo ao
ressaltar a importância de seus conhecimentos prévios.
Ainda, segundo a opinião de Gerhardt (2013), questões como normatividade
(característica inerente à instituição escolar, existente por uma convenção social-histórica),
comprometimento conjunto e situatividade assumem papeis consistentes no novo cenário
educacional, ao mensurar o que significa ser um aprendiz e o que as situações de
aprendizagem significam para esse aprendiz. De posse dessa reflexão, conclui-se que a escola
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
245
ainda prende-se a uma visão muito institucionalizada, e que ao longo do tempo promoveu,
com suas antigas práticas, uma espécie de silenciamento do aluno, porque não reconhecia as
potencialidades cognitivas com as quais esse indivíduo educando chegava à escola.
Se o objetivo é, pois, motivar o aluno, levando em consideração suas habilidades
cognitivas, despertar nele o gosto para a leitura do texto literário e criar um saber sobre a
literatura, é algo que cabe à escola. O papel do professor como mediador das atividades que se
direcionem à leitura, é tarefa que deve permear o contexto das práticas escolares de leitura
literária.
Entretanto, o que é normalmente reproduzido pelos livros didáticos de Língua
Portuguesa no ensino fundamental, é o trabalho fragmentado do texto literário, servindo
apenas de pretexto para análises gramaticais normativas e que não promovem nenhum tipo de
reflexão em relação a própria linguagem. E como a leitura, na sua integridade se perde, em
função da fragmentação do texto literário, também esse modelo anula, em grande parte, a
própria natureza da leitura do texto literário. No trecho abaixo, Chartier explicita alguns
aspectos sobre a leitura do texto literário:
não é somente uma operação abstrata de intelecção; ela é engajamento do corpo,
inscrição num espaço, relação consigo e com os outros e a materialidade, segundo a
qual o texto é dado ao leitor, que contribui largamente para modelar suas
expectativas, além de convidar à participação de outros públicos e incitar novos
usos. (CHARTIER, 1994. p.16).
As considerações feitas sobre a leitura do texto literário na escola apoia-se também na
dimensão plural acerca da diversidade escolar que cada comunidade é inserida, pois cada
escola apresenta uma realidade, cada grupo de alunos se insere num determinado contexto
social e possuem saberes prévios bem distintos. Portanto, fica claro que não é possível
desenvolver um trabalho eficiente com os textos do gênero literário, se não houver a
conscientização de que não é possível admitir que a simples atividade de leitura seja
considerada a atividade escolar de leitura literária.
Refletindo sobre o leitor e o espaço que lhe é conferido pela escola pública, Geraldi
(1985, p.87) afirma que “no microcosmo da sala de aula (...) talvez sejamos nós, professores,
o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala
de aula, biblioteca escolar, frequência a bibliotecas públicas são algumas das formas para
iniciar este circuito”.
Para a execução didática eficiente de tal tarefa, que é o trabalho com o texto do gênero
crônica, é preciso levar em consideração atividades relativas ao ensino desse gênero,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
246
considerando os saberes prévios dos alunos, de forma a dotá-los de uma melhor capacidade
escrita, inclusive, promovendo uma possível consciência autoral no aprendiz. Essas atividades
têm um caráter de reformulação qualitativa no ensino de um gênero, a crônica, bem como
apostam no protagonismo autoral, literário e metacognitivo do aluno.
3. O trabalho didático com o gênero crônica “escolar” e as estratégias metacognitivas
Devido a seu traço dissertativo, ensaístico e opinativo, muitas crônicas convidam o
leitor a um posicionamento crítico a partir da situação abordada na narrativa. E esse aspecto é
o que mais chama a atenção nos textos de crônica inseridos nos livros didáticos. Tirando o
aspecto de base interpretativa a que as questões dos livros se agarram e que são somente
superficiais no trabalho com a linguagem, aproveitar esses textos de crônica escolar em
atividades que suscitem o uso das habilidades cognitivas e metacognitivas do aluno aprendiz,
passa a ter um valor didático bem mais aplicável e consistente, pois insere o aluno no contexto
literário, discursivo e linguístico.
Não só a leitura da crônica escolar, nesta abordagem, se torna importante, mas também
colocar o aluno frente a esse texto, confrontar os saberes prévios e conhecimentos individuais
que cada aprendiz traz consigo, arranjar e reformular questões linguísticas e gramaticais. A
produção escrita de um texto no formato da crônica escolar é outra atividade didática
fundamental, quando o aprendiz percebe a importância da sua escrita, como uma prática
social, bem como ele na prática escrita, melhora seu desempenho. Outra condição necessária
que se deve explorar é fazer com que o aluno enxergue a atividade escrita como uma prática
que se faz necessária para toda a sua vida e que a melhor saída é trabalhar o seu convívio com
ela da forma mais natural possível.
É preciso mensurar para o aluno o valor da escrita, pois é uma das formas do indivíduo
se fazer notado enquanto sujeito ativo na sociedade. Os próprios estudos linguísticos mais
recentes apontam para uma nova metodologia de ensino que considera essencial ter a escrita
como uma prática constante, como afirma Moita Lopes (1994). Com isso, a escola assume um
papel importante na orientação do indivíduo para a prática da escrita, ao encarar a escrita
como um processo, pois escrever é um processo que envolve inúmeras fases. A visão da
linguística a esse respeito nos demonstra que
A escrita é uma ativdade que envolve várias tarefas, às vezes sequenciais, às vezes
simultâneas. Há também idas e vindas: começa-se uma tarefa e é preciso voltar a
uma etapa anterior ou avençar para um aspecto que seria posterior (GARCEZ,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
247
2002,P.14).
Assim sendo, o processo de escrita da crônica por parte do aprendiz engloba também
uma atividade cognitiva sequencial e o uso de estratégias metacognitivas na produção dessa
escrita, podem ser traduzidas em etapas de arranjar, rearrumar a linguagem e construir um
significado para seu texto, isto é, para que ele assuma a condição de ser inserido num dado
gênero, como a crônica escolar. Neste momento, o aprendiz põe em ação uma consciência
metalinguística acerca de sua escrita e esta também é considerada uma habilidade
metacognitiva, pois a atividade metalinguística
aparece pelas atitudes reflexivas e
intencionais na construção do texto.
Logo, o trabalho com o texto do gênero crônica escolar, baseado no uso de estratégias
metacognitivas, torna o aprendiz capaz de produzir esse gênero, compreendido a partir de sua
intencionalidade discursiva, suas condições de produção e suas peculiaridades linguísticas que
o tornam um texto dessa natureza. Consequentemente a isso, a escola assume a sua condição
de ensino natural e realiza a tarefa de trabalhar a escrita do indivíduo como um processo
gradual, desmistificando assim, a velha ideia de que escrever é um dom.
Conclusão
Apresentamos neste artigo um estudo com base nas pesquisas da área da Cognição e
Metacognição, aplicado ao trabalho do professor, em sala de aula, com o gênero crônica
escolar, que, configurada nesse padrão seria, portanto, uma narrativa breve com pouca tensão,
um texto ligeiro (no sentido de rápida leitura). Outro ponto importante para se entender este
tipo de crônica, muito publicada em nossos livros didáticos de Língua Portuguesa no ensino
fundamental, é o fato de sugerir grande aproximação entre autor e público, pois, conforme
afirma Candido (1992), “fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”.
Neste trabalho, refletiu-se ainda sobre o ensino da crônica enquanto gênero literário
escolar e a aplicabilidade de uma proposta de intervenção em sala de aula do ponto de vista
cognitivo e que leve em consideração o aluno enquanto aprendiz, detentor de uma
subjetividade. Assim, a proposta aqui apresentada traz o aluno para o centro do cenário
educacional, priorizando as suas identidades situadas, a fim de compreender as formas como
esses aprendizes constroem significados múltiplos em relação à leitura do texto literário e a
sua consequente produção escrita.
Em suma, apresentamos, neste artigo, os saber (es) do aluno sobre o gênero crônica,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
248
como esses saberes se constroem individual e coletivamente no ambiente escolar, bem como o
que esse gênero pode representar para esse aluno, sobretudo por ser um gênero muito comum,
previsto pelos currículos escolares do 9º ano do ensino fundamental.
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250
LÍNGUA DISCURSIVA [E FORMAS DE VIDA] NOS
MANUSCRITOS DE SAUSSURE
[Voltar para Sumário]
Ana Paula El-Jaick
É comum se responsabilizar Ferdinand de Saussure pela paternidade da ciência da
linguagem, a linguística. O mais intrigante, contudo, é que o DNA era atestado em corpo
textual alheio. Afinal de contas, é sabido que foram notas de alunos, feitas durante cursos que
Saussure professava em Genebra, que fizeram nascer o Curso de linguística geral1 – ou seja,
não foi de próprio punho que nasceu a obra que o fez notório entre seus pares, pois o CLG é
um livro escrito depois da morte do autor, por Charles Bally e Albert Sechehaye, em 1916, a
partir das referidas anotações. Desse modo, é evidente a dificuldade de recuperar o
pensamento de Saussure (quer dizer, é difícil recuperar o pensamento de qualquer autor, mas,
no caso dele, isso se torna ainda mais crítico). Porém, a publicação de material que se
encontrava restrito à consulta na Biblioteca pública e universitária de Genebra, material esse
que vem a ser um conjunto de manuscritos descobertos em 1996 na estufa do hotel da família
de Saussure nessa mesma cidade, faz renascer o autor.
Antes de começar qualquer análise acerca dos manuscritos de Saussure, quero ressaltar
a grande beleza desses textos devido a seu sopro confessional: Saussure escreve com uma
mão hesitante, transbordando dúvidas. Nos manuscritos, então, vemos o mestre genebrino
tateando através da complexidade do objeto que elegeu para investigar; vemos o linguista
expondo (à sua revelia, visto que esse não era um material para ser publicado) suas dúvidas a
seus discípulos. Encontramos, assim, um Saussure em busca das “verdades fundamentais” da
linguagem humana; um Saussure buscando argumentos para fixar um ponto de vista legítimo
sobre a linguagem.
Nos manuscritos, conforme teorizaram os prefaciadores Bouquet e Engler, Saussure
percorre três campos de saber: uma epistemologia para essa nova ciência que é a linguística;
uma reflexão prospectiva sobre a disciplina linguística a ser ministrada em cursos de
1 Doravante CLG.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
251
graduação; e (o ponto a que mais darei destaque neste meu escrito) uma especulação analítica
sobre a linguagem que o próprio Saussure chamou, por vezes, de filosófica (Bouquet; Engler,
2002, p.12).
Previno então meus leitores de que, se avisei sobre a dificuldade da reconstrução do
pensamento saussuriano, por outro lado devo dizer que a novidade trazida pelos manuscritos
pode, também, ser profícua para se ler um Saussure, digamos assim, “pós” estruturalista, isto
é, para se ver um autor a partir de novo ponto de vista segundo o qual este já percebia
questões sobre a linguagem humana que foram postas tempos depois de sua ideia de língua
como sistema de signos. Nesse sentido, vou aproximar Saussure de dois desses autores (pósmodernos), J. Derrida e L. Wittgenstein, para mostrar um Saussure que parece ter reconhecido
uma linguística inessencial – ou, nos termos de autores ditos pós-estruturalistas, uma
linguística discursiva, uma linguística do acontecimento, uma ideia de linguagem como forma
de vida.
De fato, pretendo trazer elementos dos manuscritos para se pensar em lampejos de
formulação por uma linguística saussuriana do acontecimento (entendendo acontecimento
como uma possibilidade de fixar a linguagem de forma apriorística, posto que ela acontece no
ato de fala). Isso se dá quando Saussure procura corrigir alguma tentativa de se pensar o
sentido como podendo ser apriorístico e material. Em vez disso, o que Saussure afirma haver
é um sentido sem lastro essencial; afinal, um elemento só diz seu valor diante de outros
elementos de mesma ordem. Além disso (questão que foi ressaltada exaustivamente por um
dos maiores comentadores de seus manuscritos, Loïc Depecker (2012)), e mais importante:
Saussure enfatiza em seus escritos que o valor deve ser entendido, antes de tudo, como tendo
um caráter social.
Os valores estão, logo, na diferença das relações entre os signos, na différence das
significações estabelecidas pelas relações entre os signos, “mais a atribuição anterior de certas
significações a certos signos ou reciprocamente. Há, então, antes de tudo, valores
morfológicos: que não são ideias e também não são formas” (Saussure, 2002, p.31). Isso quer
dizer que, num certo sentido, os valores não existem – pois sequer eles são a forma, já que
eles só existem na relação com outras formas. O que há é negação: a diferença das “figuras
vocais” (que, no CLG, são definidas como “imagens acústicas”) somadas à différence dos
sentidos valorados no sistema linguístico:
Todo o estudo de uma língua como sistema, ou seja, de uma morfologia, se
resume, como se preferir, no estudo do emprego das formas ou no da representação
das ideias. O errado é pensar que há, em algum lugar, formas (que existem por si
Nas fronteiras da linguagem ǀ
252
mesmas, fora de seu emprego) ou, em algum lugar, ideias (que existem por si
mesmas, fora de sua representação) (Saussure, 2002, p.32).
Podemos dizer, então, que, para Saussure, a língua é diferença: a língua é um “oceano
de diferenças” – a essência da linguagem é negativa, diferencial. Propositadamente lancei
mão do termo francês différence aqui para estabelecer uma relação no mínimo instigante com
outro francês – que, a rigor, veio a desconstruir Saussure: o filósofo da desconstrução Jacques
Derrida. É conhecido o jogo de palavras que Derrida faz com différance/différence. Derrida
joga esse jogo com o intuito de mostrar como essa diferença só acontece e pode ser percebida
na escrita, uma vez que, na fala, ela desaparece (a pronúncia da expressão francesa é a mesma
nos dois casos). Ele propõe, dessa forma, um novo conceito de escrita a que ele chama de
grama ou différance:2 “A différance é o jogo sistemático das diferenças, dos rastros de
diferenças, do espaçamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros” (Derrida,
2001, p.33). A différance é o jogo das diferenças que faz com que um elemento sempre remeta
a outro e, assim, nada mais haja que diferenças e rastros de rastros [trace]. De acordo com o
próprio Derrida: “A différance não é nem uma palavra, nem um conceito” (Derrida apud
Stone, 2000, p.88) – e, ouso dizer, é um herdeiro daquilo que Saussure rabiscou em seus
manuscritos. Então, ousarei dizer mais: a diferença saussuriana se aproxima da errância
derridiana, posto que as formas-sentido, os valores são erráticos, flutuantes:
1º Um signo só existe em virtude de sua significação; 2º uma significação só existe
em virtude de seu signo; 3º signos e significações só existem em virtude da
diferença dos signos (Saussure, 2002, p.37).
O que há, de acordo com Saussure, é diferença de formas e diferenças de significações
– ou seja, “coisas já negativas em si mesmas” (Saussure, 2002, p.42). Como já disse
repetidamente, meu objetivo aqui é atentar para esse Saussure pós-estruturalista que já previa
a necessidade de se ater ao emprego (vou deliberadamente chamar de uso) das formas – para
só então ser possível o estudo de uma língua. Realmente, Saussure afirma não haver formas
que pairam “fora do seu emprego” – eu diria: fora do seu uso. Pensar que haveria formas
materiais é quase como pensar na realidade da quadratura do círculo.
Pensar a língua em seu uso aproxima Saussure das perspectivas da linguagem
ordinária, que busca discutir os problemas centrais da tradição filosófica através da análise da
linguagem comum. Entre tais perspectivas encontra-se a do assim chamado segundo
2 “Obviamente, não se trata de recorrer ao mesmo conceito de escrita e de inverter simplesmente a dissimetria
que colocamos em questão. Trata-se de produzir um novo conceito de escrita. Pode-se chamá-lo grama ou
différance” (Derrida, 2001, p.32).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
253
Wittgenstein. Essa aproximação se torna ainda mais palpável quando pegamos a afirmação de
Saussure de que a forma fora de seu emprego é vazia e a juntamos ao aforismo
wittgensteiniano segundo o qual a linguagem fora de uso é “quando a linguagem entra em
férias” (Investigações Filosóficas § 38).3
Pensar a língua em seu uso também pode aproximar Saussure daqueles que entendem
a linguagem como presença – ou seja, a língua existe na efemeridade da pronunciação,
quando abrimos a boca para falar (uma vez, duas vezes, quinhentas vezes...). A língua não é
um ente concreto – para Saussure, a língua é (Saussure, 2002, p.35). Não há uma essência
para além da aparência da língua – as expressões linguísticas valem no uso que se faz delas.
Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é
também admitir que a delimitação das unidades linguísticas têm fronteiras, limites plásticos,
móveis. A questão da delimitação, de fato, recorre nos manuscritos saussurianos. Saussure
pretende delimitar unidades linguísticas – mas, para tal, é preciso que essa unidade seja
significativa: a unidade linguística, diz Saussure, só pode ser determinada por sua
significação. Não obstante, a significação só se dá pela diferença: “É a diferença que torna
significativo, e é a significação que cria também as diferenças” (Saussure apud Depecker,
2012, p.74). Não obstante, para que a unidade linguística seja significativa, é preciso verificar
seu valor: “É o próprio valor que fará a delimitação; a unidade não é delimitada
fundamentalmente” (Saussure apud Depecker, 2012, p.74).
Admitir que o objeto estudado pelo linguista só pode ser definido em seu uso é
também admitir que é no plano discursivo que ocorrem todos os tipos possíveis de mudança
com a linguagem – tanto modificações no plano gramatical, quanto no plano fonético etc.
(Saussure, 2002, p.86). Nessas modificações também se incluem os neologismos, pois é
apenas se pensarmos na língua como uma linguagem discursiva – falada de improviso – que
se faz possível produzir formas novas.
É claro que podemos vislumbrar certa equivocidade de Saussure nesta formulação.
Assim, ao mesmo tempo em que podemos concluir que as entidades reconhecidas como
elementos da linguagem, simplesmente, não existem, por outro lado, em outras passagens,
esses elementos (conforme também está presente no CLG) são da ordem da mente –
significado e significante (traduzidos por “significação” e “signo”, Saussure, 2002, p.22) são
entidades presentes em nossa consciência. Nesse sentido, na seção “II. Antigos Item”,
Saussure escreve: “A frase só existe na fala, na língua discursiva, enquanto a palavra é uma
3 Doravante vou me referir à obra Investigações Filosóficas como IF.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
254
unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental” (Saussure, 2002, p.105, grifo
nosso). Vemos que a segunda parte do seu desenvolvimento (ou seja, “enquanto a palavra é
uma unidade que vive fora de todo discurso, no tesouro mental”) parece contradizer a
discursividade que o linguista havia formulado anteriormente.
Para além dos sentidos contrários passíveis de serem interpretados aqui, entendo que o
interessante é vermos um Saussure que se coloca perguntas – antes de afirmar uma teoria da
linguagem. Na parte intitulada “Nota sobre o discurso”, Saussure faz uma afirmação e uma
pergunta numa mesma frase: “A língua só é criada em vista do discurso, mas o que separa o
discurso da língua ou o que, em dado momento, permite dizer que a língua entra em ação
como discurso?” (Saussure, 2002, p.237)
Ele próprio esboça uma resposta em que podemos vislumbrar o linguista pensando em
voz alta. Ele responde à sua própria pergunta afirmando que os conceitos estão revestidos de
uma forma linguística no sistema. Porém, há um jogo através do qual tais conceitos formarão
o DISCURSO – e aí vem a pergunta: qual é esse jogo (Saussure, 2002, p.237)?
A resposta de Saussure é que a língua não tem substância, não tem matéria. Daí que as
“entidades” linguísticas não têm um fundamento absoluto. As entidades linguísticas são, tão
somente, “LUGARES de diferença”. A linguagem não é essencial; nada nela é da ordem do
necessário. Antes, estamos no campo da antimatéria; estamos no campo das possibilidades.
Afinal de contas, como Saussure reconhece: a língua é um objeto por demais complexo.
Referências
BOUQUET, S; ENGLER, R. “Prefácio”. In: SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística
Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.
DEPECKER, L Compreender Saussure a partir dos manuscritos. Tradução de Maria Ferreira.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
DERRIDA, J. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
SAUSSURE, F. de. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet
e Rudolf Engler. Tradução: Carlos Augusto Leuba Salum; Ana Lucia Franco. São Paulo:
Editora Cultrix, 2002.
______. Curso de linguística geral. São Paulo, Editora Cultrix, s/d [1916]
STONE, M. Wittgenstein on deconstruction. In: CHARY, Alice & READ, Rupert (Orgs.) The
new Wittgenstein. London: Routledge, 2000.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. Tradução: José Carlos Bruni. São Paulo:
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
Abril Cultural, 1975 (Coleção Os Pensadores).
255
Nas fronteiras da linguagem ǀ
256
DA LIBERDADE MASCULINA: REFLEXÕES SOBRE KAREN
BLIXEN E ELENA FERRANTE
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Ana Paula Raposo (UFMG)
Na realidade editorial contemporânea, basta se folhear um livro para perceber que o
texto não se apresenta sozinho, existem aparatos textuais que o cercam. Esses aparatos se
encontram dentro e fora do livro, como aponta o teórico da Literatura Gérard Genette, em sua
obra Paratextos editoriais. Genette faz distinção de paratextos peritextuais e epitextuais: os
peritextos encontram-se na obra e os epitextos encontram-se fora da obra – geralmente, em
algum tipo de suporte midiático.
Neste ensaio, tento refletir sobre a imagem de escritora de Karen Blixen, a partir dos
epitextos, considerando também os postulados da crítica biográfica.
A sedução do arquivo
Durante anos, a crítica literária se ocupou em buscar o significado único e finito de obras
literárias. Até que o leitor ganhasse espaço nos estudos literários, as diversas correntes de
teoria e crítica literárias buscavam o sentido do texto tal que o autor desejava. Acreditava-se
então que o escritor guardava o segredo da obra.
Com o desenvolvimento de outros pensamentos teóricos, a pesquisa nos arquivos
mostra-se eficiente e sedutora. Sedutora, pois remete à promessa de se achar a origem da obra
literária, de se alcançar a 'real' intenção do autor, de se encontrar a verdade da obra literária,
desvendar o segredo que o autor guarda. A pesquisa nos arquivos será eficiente à medida que
tomarmos o arquivo como uma figura epistemológica, intercambiando outras práticas
disciplinares, como a arquivística, por exemplo.1
Para não cair na armadilha de desvendar os segredos do autor, é preciso estar ciente de
que o discurso que se contrói a partir deles não é linear, como deseja a historiografia. Dois
conceitos iluminam o caminho contrário ao caminho do discurso histórico: o conceito de ruína
1
MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 15.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
257
de Walter Benjamin e o conceito de resto de Giorgio Agamben, pois “constituem-se em
potência crítica do arquivo, evidenciando a não coincidência entre os fatos literários, os
documentos e materiais do arquivo, e as interpretações que se fazem dele”.2
Essencialmente, a crítica biográfica propõe o mesmo olhar crítico aos arquivos, para
que se evite a famosa questão: “A arte imita a vida? Ou a vida a imita a arte?”. Sobretudo nos
estudos do gênero biográfico, em que as discussões perpassam também pelos polos da
realidade versus ficção.3
Finalmente, é importante destacar que a pesquisa nos arquivos e nas fontes primárias
promove a interdisciplinaridade, além de problematizar “categorias canônica dos estudos
literários, tais como: texto, obra, autor, valor estético universal [...]”.4 A investigação dos
paratextos perpassa igualmente por essas categorias, é pensando nelas que oriento este ensaio.
O epitexto
Na década de 1980, Gérard Genette escreve Palimpsestos: a literatura de segunda mão, livro
em que cunha o termo paratexto. Nesta obra, Genette afirma que os paratextos “fornecem ao
texto um aparato (variável) e por vezes um comentário”5 e que são “espaços privilegiados da
dimensão pragmática da obra, isto é, da sua ação sobre o leitor – espaço em particular do que
se nomeia sem dificuldade, a partir dos estudos de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, o
contrato (ou pacto) genérico.”6
Mais tarde, ao desenvolver o termo em Paratextos editoriais, Genette define o
paratexto como “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus
leitores, e de maneira mais geral, ao público”,7 constituído de nome de autor, título, prefácio,
ilustrações, notícias de jornais, resenhas etc. Mas não se trata somente de um lugar de
transição – se trata também de um lugar de transação em que se permite ao autor e ao editor
fornecer ao leitor informação e interpretação para “uma melhor acolhida do texto” e para
“uma leitura mais pertinente”.8 Esses limiares do texto – que convidam o leitor a manusear,
folhear e finalmente ler – abordam instâncias que são discutidas pela crítica literária.
2
MARQUES. O que resta nos arquivos literários, p. 199.
SOUZA. A crítica biográfica, p. 19-20.
4
MARQUES. O arquivo literário como figura epistemológica, p. 20.
5
GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 13.
6
GENETTE. Palimpsestos: a literatura de segunda mão, p. 14. (grifo do autor)
7
GENETTE. Paratextos editoriais, p. 9.
8
GENETTE. Paratextos editoriais, p. 10.
3
Nas fronteiras da linguagem ǀ
258
Enquanto o peritexto editorial se ocupa dos paratextos no livro, o epitexto “não se
encontra anexado materialmente ao texto no mesmo volume, mas que circula de algum modo
ao ar livre, num espaço físico e social virtualmente ilimitado.”9 Basicamente, os epitextos
públicos são os meios de que o leitor usa para tomar conhecimento de um livro, “uma
entrevista do autor – quando não por meio de uma resenha num jornal ou de uma
recomendação boca a boca [...]”. Tendo em mente que o paratexto adiciona comentário ao
texto e ajuda na circulação da obra, o epitexto talvez seja a potência que mais atinge o
público.
É preciso reconhecer que além dos epitextos públicos (entrevistas, conversas, debates
e colóquios etc.) Genette coloca outros elementos epitextuais como epitextos privados. O que
os distingue é a intenção de publicação, pois em razão do caráter íntimo dos diários e das
correpondências, elas não têm como destinatário final o público.
No epitexto público, o autor dirige-se ao público, eventualmente por meio de um mediador; no
epitexto privado, dirige-se primeiramente a um confidente real, percebido como tal e cuja
personalidade influi nessa comunicação, chegando a modificar sua forma e conteúdo.10
Dessa forma, a principal diferença é o destinatário dos epitextos. Nos epitextos
públicos, o destinatário nem sempre é o leitor, mas o público do veículo de comunicação em
que se publica a entrevista, por exemplo. Genette chama atenção para os fragmentos deixados
pelo autor nestes epitextos públicos, fragmentos de informação que adicionam comentário ou
modos de interpretação da obra. Uma afirmação do autor me parece relevante:
[...] o epitexto é um conjunto cuja função paratextual não tem limites precisos, e no
qual o comentário da obra se difunde indefinidamente num discuso biográfico,
crítico ou outro, cuja relação com a obra é às vezes indireta e, no caso extremo,
indiscernível.11
Os fragmentos encontrados no peritexto em que há reflexões do próprio autor sobre a
literatura e sobre processo de composição são os pontos fundamentais de que se vale a
pesquisa na crítica biográfica.12 Eneida Maria de Souza reforça essa ideia e afirma que este
tipo de pesquisa “desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o
9
GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 303.
GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 327.
11
GENETTE. Paratextos Editoriais, p. 305.
12
FREITAS. O escritor e seu ofício em busca da Teoria da Literatura, p. 190.
10
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
259
feixe de relações culturais”13, uma vez que a crítica biográfica está entre a teoria e a ficção,
documento e literatura.
Voltada aos aspectos editoriais, a teoria de Genette estima, por vezes, as circunstâncias
publicitárias. Destaco a entrevista, neste caso, colocada pelo autor como um “jogo social” em
que a necessidade de se “lançar” a obra ao público se torna presente. Por esta razão, as
entrevistas com autores têm caráter descritivo, há necessidade de se fazer leitura de partes da
obra, descrever o enredo etc. Assim, pelo mesmo motivo, é possível identificar “clichês
intercambiáveis, estoque de questões típicas para o qual rapidamente constituiu-se um estoque
de respostas típicas [...]”.14 Aos romancistas, se pergunta principalmente sobre os traços
biográficos da obra ou sobre a existência de chaves na obra, por exemplo.
Gostaria de salientar que, apesar do cunho editorial/publicitário que se tem na obra de
Gérard Genette, a matéria-prima é a mesma para os estudos da crítica biográfica. Essas fontes
primárias podem ser um meio de se investigar a literatura, problemas sociais, as ligações
externas da produção do escritor etc., como também podem intermediar a Teoria Literária e o
objeto de estudo. Se pensarmos no gênero da entrevista, as teóricas Eneida Maria de Souza e
Rachel Esteves Lima acreditam que, uma vez que ela está fora do espaço privado, como o da
correspondência, por exemplo, o entrevistado assume um aspecto “performático”, que
contribui para a imagem e os mitos da instância do escritor.15
A imagem do escritor
No começo do século XX, os formalistas russos tentaram afastar do texto literário
aspectos como o contexto histórico, social e biográfico de um autor com a intenção de, na
teoria literária, estudar o texto a partir de valores puramente estéticos. No final da década de
1960, Roland Barthes com "A morte do autor" e Michel Foucault com "O que é um autor?",
impulsionados pelo formalismo russo, colocam em discussão o conceito de sujeito/autor. O
desaparecimento do autor desdobrou-se em propostas de noções literárias como autor ideal,
autor-indivíduo, função-autor, autor como leitor, leitor como autor etc. No entanto,
posteriormente à publicação de “A morte do autor”, Roland Barthes reconhece “a presença do
autor não mais como ausente do texto, mas na condição de ator e de representante intelectual
13
SOUZA. Crítica cult, p. 111.
GENETTE. Paratextos editoriais, p. 318.
15
LIMA. A Entrevista como gesto (auto) biográfico, p. 41.
14
Nas fronteiras da linguagem ǀ
260
no meio acadêmico e social.”16 Barthes recorre à psicanálise lacaniana, à semiologia e ao
teatro de Brecht para identificar o autor como sujeito crítico.
A partir do momento em que um autor assume a personagem de escritor, isto é, “uma
identidade mitológica, fantasmática e midiática”17, as imagens deste sujeito são construída a
partir de diversas leituras, anacrônicas ou sincrônicas, aí incluídas também as imagens dos
autores ausentes ou mortos. O ponto central aqui é o deslocamento do autor, da assinatura de
uma obra para o escritor, figura intelectual e agente cultural. O autor constroi sua imagem
partindo do imaginário de escritor.
Me parece interessante somar à questão da imagem do escritor o uso de pseudônimo
pelos escritores, baseando-me na discussão que Genette promove no capítulo “Nome de
autor”. Acreditando ser o pseudônimo um possível espaço de criação de um escritor, Genette
afirma: “Claro está que o pseudônimo é uma atividade poética, e algo como uma obra. Se
você sabe mudar de nome, sabe escrever.”18 Portanto, para Genette, o pseudônimo pode ser
um modo de reforçar a autenticidade do autor, para enfraquecer ou contestar sua imagem. O
pseudônimo também atiça a curiosidade do leitor e Genette cita o estudo de Jean Starobinski
sobre o pseudônimo de Stendhal: “quando um homem se mascara ou adota um pseudônimo,
sentimo-nos desafiados. Esse homem se recusa a nós. E, em contrapartida, queremos saber.”19
Genette ainda sugere que o uso do pseudônimo pode ser um modo de distinguir a figura do
autor da figura do homem privado.
A contadora de histórias
Isak Dinesen é pseudônimo de Karen Blixen, escritora dinamarquesa que produziu ao
longo de sua vida uma série de contos e um livro de memórias, Out of Africa, que tem origem
nos anos em que a autora viveu na África, de 1914 a 1931. Hannah Arendt dedica um capítulo
à Blixen no livro Homens em tempos sombrios e sem delongas explicita que a condição de
escritora nunca foi de fato um desejo dela: “Ela ‘outrora nunca quis ser uma escritora’, ‘tinha
um medo intuitivo de ficar presa’, e qualquer profissão, por designar invariavelmente um
papel definido na vida, seria uma armadilha, escudando-a contra as infinitas possibilidades da
própria vida.”20 Enquanto Ezra Pound clama “Make it new!”21, Blixen declara ser “uma
16
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116.
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 116.
18
GENETTE. Paratextos editoriais, p. 53.
19
STAROBINSKI. Stendhal pseudonyme. Citado por GENETTE. Paratextos editoriais, p. 49.
20
ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 87.
21
COMPAGNON. Os cinco paradoxos da modernidade, p. 9.
17
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
261
contadora de histórias e nada mais”,22 adotando técnicas romanescas, o que dificulta que seja
enquadrada em escolas literárias.
A entrevista que desenrola os fios investigativos de Hannah Arendt foi publicada pela
coletânea The Paris Review Interviews Writers, em 1977. À época desta entrevista, todas as
obras mais importantes já tinham sido publicadas nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, principalmente as duas obras que a estabelecem como escritora renomada: Seven
Gothic Tales (Sete Histórias Góticas) e Out of Africa (A fazenda africana).23 Usarei da
mesma entrevista, de Eugene Walters, para desenrolar meus próprios fios investigativos.
O entrevistador, Eugene Walters, abre a entrevista citando as lendas que surgiram nos
Estados Unidos da América acerca da escritora:
Ela é na verdade um homem, ele é na verdade uma mulher, ‘Isak Dinesen’ é na
verdade uma colaboração de irmã e irmão, ‘Isak Dinesen’ veio aos EUA na década
de 1870, ela é parisiense, ele mora em Elsinore, ela fica geralmente em Londres, ela
é uma freira, ele é muito hospitaleiro e recebe jovens escritores, ela é dificíl de se
ver e vive reclusa, ela escreve em francês, não, em inglês, não, em dinamarquês...24
Percebo que a especulação do, até então, misterioso escritor, também é agravada
devido ao pseudônimo. Enquanto os EUA criavam hipóteses, a imprensa dinamarquesa
procurava descobrir quem era o escritor dinamarquês que se recusava em escrever na língua
nativa. Destaco duas objeções relativas à recusa: a primeira, a recusa à imagem pública, nos
EUA; e a segunda, a recusa à identidade nacional, na Dinamarca. No caso de Isak Dinesen,
acredito que essas duas objeções tenham um fator comum: a possibilidade de liberdade de
escrita. Além disso, o pseudônimo masculino corrobora esta ideia. Principalmente ao
relacionar a recepção da primeira obra mais conhecida, Seven Gothic Tales, na Dinamarca: a
autora recebeu duras críticas como perversa e pervertida. 25
As formas narrativas de Dinesen se assemelham às formas de narrativas orais e,
pessoalmente, este é um dos aspectos mais encantadores em sua obra26. Isak Dinesen escreveu
majoritariamente short stories, gênero que, de acordo com Walter Benjamin, “se emancipou
da tradição oral [...], que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa
perfeita vem à luz do dia a partir das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas”
22
ARENDT. Homens em tempos sombrios, p. 88.
Seven Gothic Tales é publicada nos EUA em 1934 e Out of Africa em 1937.
24
WALTERS. Isak Dinesen, p. 4. (Tradução minha.)
25
THURMAN, A vida de Isak Dinesen, p. 295.
26
Conferir DINESEN, Isak. The Blank Page. In: GILBERT, Sandra M; GUBAR, Susan. The Norton anthology
of literature by women: the traditions in English. New York ; London: W. W. Norton, 1985.
23
Nas fronteiras da linguagem ǀ
27
262
. Toda a sua obra é influenciada pela contação de histórias e a autora muitas vezes é
chamada de “Sherazade dinamarquesa”. Em um de seus contos mais belos, é feita referência
às mil e uma noites: “Certamente, eu já contei muitas histórias, muito mais que mil e uma”. 28
Na entrevista, Dinesen declara que:
Mas antes, eu aprendi como contar (grifo meu) estórias. Porque, veja só, eu tinha o
público perfeito. Os brancos não conseguem mais ouvir uma estória contada. Eles
ficam impacientes ou sonolentos. Mas os nativos têm um ouvido manso. Eu contava
estórias constantemente, de todos os tipos. E todos os tipos de bobagens. Eu dizia
“Era uma vez um homem que tinha um elefante de duas cabeças...” e aí eles ficavam
ansiosos para ouvir mais. “Mas Mem-Sahib, como ele encontrou o elefante e como
ele o alimentava?”. Eles amavam essas invenções. Eu os encantava fazendo rimas;
eles não têm rimas, sabe, nunca as tinham descoberto. Eu diria coisas como
“Wakamba na kula mamba” (“a tribo Wakamba come cobras”), o que na prosa os
teria enfurecido, mas os divertia na rima. Depois, eles diziam “Por favor, MemSahib, fale como a chuva!”, e então eu soube que eles gostavam, porque a chuva lá é
preciosa para nós.
Sirvo do ensaio de Walter Benjamin para elucidar a predileção pelas narrativas orais. Acredito
que esta predileção esteja vinculada à experiência e à vivência, aos moldes benjaminianos.
Em diversas passagens de Out of Africa, a narradora nos mostra a importância da contação de
histórias, do calor da lareira, dos ouvidos atentos e da experiência compartilhada neste
momento. Ser “uma contadora de histórias e nada mais”, é dar conselhos, é preservar a
memória, é ser humana.
Acredito piamente que, dentre os fatores analisados, Dinesen buscava enfraquecer sua
imagem de escritora, fugindo da responsabilidade de ser uma representante da cultura, uma
intelecual, criando sua imagem como uma ‘simples’ contadora de histórias. Paradoxalmente,
um contador de histórias carrega a responsabilidade da memória coletiva e cultural – logo,
pressuponho que a afirmação de Dinesen é um modo de se desviar da imagem ‘pedante’ de
escritora, mas assumindo as mesmas responsabilidades.
A outra contadora de histórias
Elena Ferrante é pseudônimo de uma escritora napolitana, que publicou na década de
1990 sua primeira obra. Após o sucesso da primeira obra, adaptada para o cinema italiano
ainda em 1990, a escritora passou mais de dez anos sem publicar outra obra, à espera de cair
no esquecimento. Não se sabe a idade da autora ou seu nome verdadeiro, e da mesma forma
27
28
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov, p. 221.
GILBERT; GUBAR. Isak Dinesen, p. 1391. (Tradução minha)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
263
que o pseudônimo masculino de Blixen gerou especulações, Ferrante tem gerado na grande
mídia especulações similares às da Dinamarquesa.
Outro ponto de contato entre as escritoras é o alcance mundial depois das publicações
em língua inglesa mas teve sucesso semelhante. Em 2012 foi publicada em inglês pela Europa
Editions. Enquanto a recepção italiana não tem dúvidas de que é um homem, julgando ser,
Domenico Starnone, o público americano tem certeza de ser uma mulher. O crítico literário
James Wood publicou no The New Yorker, uma resenha defendendo que “honestidade brutal”
na escrita de Ferrante é pertentencente a um feminino a que um homem dificilmente chegará.
Numa entrevista recente, no entanto, Ferrante admite ser uma mulher.
Como a dinamarquesa Blixen, mais do que escritora, Ferrante diz que se vê como uma
contadora de histórias, em outra entrevista, todas dadas por e-mail e por intermédio de seus
editores, a escritora diz que: “O que escrevo está cheio de referências a situações e
acontecimentos que são reais e verificáveis, mas organizados e reinventados como se nunca
tivesse acontecido”.
O editor italiano de Ferrante, negou a ideia de que, numa Itália obcecada por
celebridades, o anonimato de Ferrante foi uma inteligente jogada de relações públicas. Diz
ele: "Não ter um autor significa que ela não ir na TV, não vai a festivais, não coleta prêmios,
então você não pode entrar em sua neles, que tipo de estratégia de marketing é issa?”. Mas
para alguns teóricos, essa é uma grande estratégia, datando inclusive das primeiras tradições
de pseudônimos masculinos usados por escritoras na era vitoriana. Michel Foucault, em “O
que é um autor?”, já havia dito que “o anonimato literário não nos é suportável; nós não o
aceitamos senão a título de enigma”.
A teórica Catherine A. Judd expõe outro ponto de vista no ensaio “Male pseudonym
and Female Authority in Victorian England”. Com o advento do pós-estruturalismo e,
principalmente, das teorias de Michel Foucalt, Judd analisa o pseudônimo masculino a partir
da revisão de teorias literárias feministas, nos anos 1990. Esse movimento desloca o olhar da
situação social em que as escritoras se encontravam para a coragem de resistir ideologias
hegemônicas dentro do mercado literário. Desta forma, a autora argumenta que o uso do
pseudônimo é uma forma de manipulação e de criação de mito de autoria, um meio de ter
vantagem na carreira literária. A autora refuta, desta forma, três pontos disseminados por
teóritcas como Elaine Showalter, Susan Gubar e Sandra Gilbert. São eles: a) a crença que o
mercado literário era preconceituoso, sendo necessário o uso do pseudônimo masculino; b) a
necessidade de proteção da identidade, principalmente pela desaprovação da família de que a
mulher tenha uma carreira literária e c) o consenso iniciado no século XX de que o
Nas fronteiras da linguagem ǀ
264
pseudônimo marcava androgenia, para que a mulher se sentisse “masculinizada antes de pegar
na caneta ‘fálica’”.29
Não tenho dúvida de que o pseudônimo foi também uma estratégia editorial para
Karen Blixen, mas para Elena Ferrante ainda é cedo para dizer.
Referências
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Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1994.
29
JUDD. Male pseudonym and Female Authority in Victorian England, p. 251.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
265
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Nas fronteiras da linguagem ǀ
266
O USO DOS PROCESSOS EM TEXTOS LITERÁRIOS SOB A
ÓTICA DA LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL: UMA
ANÁLISE DA VOZ DO NARRADOR E DAS PERSONAGENS
EM CONTOS MODERNISTAS
[Voltar para Sumário]
Anderson de Santana Lins (CELLUPE -UPE)1
Maria do Rosário B. da S. Albuquerque (CELLUPE -UPE)2
Introdução
O estudo científico da linguagem humana possui dois sustentáculos: o formalismo e o
funcionalismo. Para o eixo formalista, a língua é uma estrutura autônoma, fechada em si
mesmo; em oposição, o eixo funcionalista concebe a língua enquanto fenômeno social, sendo
influenciada por fatores pragmáticos. Trata-se, portanto, de um mesmo objeto de estudo
investigado sob lentes distintas.
A Linguística Sistêmico-Funcional faz parte da corrente funcionalista da linguagem.
Foi proposta pela Escola de Sidney por Michael K. A. Halliday e seguidores. Trata-se de um
quadro teórico-descritivo embasado no uso linguístico. Ou seja, para esta linha de
pensamento, a gramática da língua não é desprezada bem como os fatores externos a ela (tais
quais os diferentes contextos de uso). Assim, tal arcabouço teórico serve-nos para análise de
textos pertencentes aos mais variados gêneros através da qual nossa comunicação é
concretizada.
O presente artigo busca analisar contos brasileiros: “Um ladrão” de Graciliano Ramos
e “O ladrão” de Mário de Andrade, associando-os à teoria proposta por Labov (1972) que
propõe uma estrutura para a narrativa, baseada na oralidade. O objetivo é, pois, investigar tal
estrutura e sua relação com as escolhas léxico-gramaticais, inseridos no sistema de
transitividade proposto pela Linguística Sistêmico-Funcional.
Graduando em Letras (UPE Campus Mata Norte). Pesquisador do CELLUPE – Centro de Estudos Linguísticos
e Literários e do Projeto ‘Língua em Uso em diferentes contextos sociais’ (LINUS – CELLUPE).
2
Professora Ajunto da Universidade de Pernambuco, Campus Mata Norte. Líder do Grupo de Pesquisa –
Centros de Estudos Linguísticos e Literários da UPE(CELLUPE). Professora orientadora do Projeto ‘Língua em
Uso em diferentes contextos sociais’ e coordenadora do Laboratório de Língua em USO - LINUS.
1
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
267
Assim, pretende-se investigar como as escolhas léxico-gramaticais representam o
narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a
linguagem literária. Feito isso, nos é possível a identificação das atividades humanas
expressas no supracitado gênero literário e da realidade que se retrata na e pela linguagem,
afinal, é através da linguagem que falamos de nossas experiências, de pessoas, objetos,
abstrações, sentimentos e relações existentes em nosso mundo exterior e interior.
A Linguística Sistêmico-Funcional e Transitividade: estabelecendo conceitos
A Linguística Sistêmico-Funcional (doravante, LSF), é uma abordagem proposta por
Michael K. A. Halliday cujos estudos iniciaram-se na segunda metade do século XX, sob
influência das pesquisas antropológicas desenvolvidas por Malinowski, ainda no início do
referido século. Conforme lembram Fuzer e Cabral (2014, p. 17), foi a partir de tais
investigações que a concepção de língua enquanto manifestação cultural primária de um povo
passou a vigorar dentro dos estudos científicos da linguagem. Assim, evidenciou-se a
intrínseca relação entre língua e contextos de usos.
Fuzer e Cabral (2014, p. 19) explanam acerca da colocação dos “termos ‘sistêmico’ e
‘funcional’ que caracterizam essa abordagem.” Isso porque, para a LSF, a língua é uma
organização de sistemas interconectados cujas funções nos servem para a edificação de
significados, revelando o nosso mundo, seja ele externo (físico) ou interno (psicológico).
Cometemos – ao utilizar a língua – várias escolhas diante das probabilidades
oferecidas por tais sistemas linguísticos. No mais, é funcional porque “explica as estruturas
gramaticais em relação ao significado, às funções que a linguagem desempenha em textos.”
(Idem).
O privilégio dos estudos da LSF é, segundo Souza (2006, p. 37), com os “produtos
autênticos da interação social, aos quais ela [a LSF] chama de texto.” Afinal, Para Halliday &
Mathiessen (2004, p. 3):
When people speak or write, they produce text. The term ‘text’ refers to any instance
of language, in any medium, that makes sense to some one whok nows the language.
To a grammarian, text is a rich, many-faceted phenomenon that ‘means’ in many
different ways. It can be explored from many different points of view.3
3
As traduções são de minha responsabilidade: Quando as pessoas falam ou escrevem, produzem texto. O termo
"texto" refere-se a qualquer instância da linguagem, em qualquer meio, que faz sentido para alguém que conhece
a língua. Para um gramático, o texto é um fenômeno multifacetado e rico que "significa" de muitas formas
diferentes. Ele pode ser explorado a partir de muitos pontos de vista diversos.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
268
É importante ressalvar que, dentro dessa abordagem, um texto – seja ele oral ou escrito
– é inserido em dois contextos (cultural e situacional). Ou seja, é produto da interação entre os
contextos de usos:
O contexto de cultura é a soma de todos os significados possíveis de fazer sentido
em uma cultura particular. Dentro do contexto de cultura, falantes e ouvintes usam a
linguagem em contextos específicos, conhecidos na lingüística funcional como
contexto de situação. A combinação dos dois tipos de contexto resulta em
semelhanças e diferenças entre um texto e outro. Os textos que acompanham uma
compra de cereais não são os mesmos em uma cidade do interior e em uma capital,
por exemplo. (SOUZA, 2006, p. 37)
A LSF é, portanto, uma perspectiva teórico-descritiva gramatical que busca, por meio
de análises textuais, evidenciar como, onde, porque e para que o homem usa a língua e, sem
refutar o contexto no qual o sujeito falante está inserido.
Quando utilizamos a língua, realizamos, inconscientemente, três funções simultâneas,
conforme Halliday & Mathiessen (2004, p. 29-30): a ideacional, a interpessoal e a textual.
Isso significa dizer que toda língua natural, no quadro da teoria sistêmico-funcional, cumpre a
com a finalidade de traduzir toda a experiência do mundo humano (exterior ou interior).
Os citados teóricos afirmam que todas as línguas dedicam-se a esta função,
denominada ideacional. Por meio dela compreendemos a língua enquanto representação.
Subdivide-se em duas: experiencial, responsável pela materialização da representação do
mundo do sujeito falante; e lógica, cuja responsabilidade se dá através das “combinações de
grupos lexicais” (FUZER e CABRAL, 2014, p. 33).
O sistema de transitividade, à luz da LSF, encontra-se apregoado à metafunção
ideacional da linguagem. Diferentemente da noção de transitividade proposta pela Gramática
Tradicional, através da qual o verbo é caracterizado pela presença – ou não – de um
complemento, a transitividade, para as teorias desenvolvidas no campo da LSF, “constitui-se
como um recurso léxico-gramatical para representar ações e atividades, construídas na
gramática (...)”, conforme esclarece GOUVEIA (2009, p. 30).
Todas as experiências vivenciadas pelos seres humanos – seja ela de caráter
psicológico ou físico – só são transformadas em construções linguísticas devido ao sistema de
transitividade. É importante salientar que todas as atividades, atos ou estados que envolvem
estas experiências são organizadas, dentro do sistema linguístico, em seis tipos de processos:
materiais, mentais, relacionais, comportamentais, existenciais e verbais. Por razões espaciais,
apresento de forma breve os conceitos que os norteiam.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
269
Os processos materiais são responsáveis pela materialização das experiências de
mundo externo dos participantes – Ator e Meta. São os processos do fazer, do agir, isto é:
“dão conta de mudanças no mundo material que podem ser percepcionadas, comprovadas,
vistas.” (Ibdem, p. 31).
Os processos mentais explanam as experiências de mundo interno (psicológico),
indicando afeição, cognição, desejo ou percepção. Envolvem dois participantes –
Experienciador e Fenômeno.
Os processos relacionais são responsáveis por promover uma relação entre dois seres
que se diferem. Usamo-la para caracterizar esses seres de acordo com suas características.
Esse tipo de oração classifica-se em: intensivas, possessivas e circunstanciais. Todas se
subdividem em: atributivas e identificativas.
Os processos comportamentais são usados para definir o comportamento humano
fisiológico. Estão entre os materiais e os mentais. O participante é o Comportante, podendo
haver o Comportamento.
Quanto aos processos existenciais, estes são responsáveis por representar quaisquer
coisas que existam ou ocorram. O participante é chamado de Existente, podendo ser um
humano ou objeto ou até mesmo uma ação.
Os processos verbais, por fim, dão norte ao dizer humano, constituindo o discurso de
um indivíduo. Geralmente, envolvem quatro participantes: Dizente, Verbiagem, Receptor e
Alvo.
A estrutura da narrativa na visão laboviana
A estrutura da narrativa é outra base teórica utilizada nesta pesquisa. Desenvolvida por
Labov & Waletsky em 1967, a teoria discute sobre a estrutura das narrativas orais. O
propósito desta pesquisa é, pois, unificar tal abordagem, estudando a estrutura genérica do
conto literário moderno, com base nos citados teóricos. Afinal, sabe-se que há uma forte
ligação entre a oralidade e a ficção modernista brasileira.
Labov (1972, p. 354, grifo do autor) propõe um estudo aprofundado do que ele intitula
“narratives of personal experiencce, in which the speaker becomes deeply involved in
rehearsing or even reliving events of his past.”4. Ou seja, as narrativas de experiência pessoal
são compreendidas como um meio de resgatar eventos situados no passado do narrador.
4
Tradução: narrativas de experiência pessoal, nas quais o falante torna-se profundamente envolvido na narração
ou mesmo nos acontecimentos revividos de seu passado.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
270
De acordo com o autor, a experiência revivida se dá “by matching a verbal sequence
of clauses to the sequence of events which (its is inferred) actually occurred.” (Ibidem, p. 359360).5
No tocante à estrutura da narrativa, é de amplo conhecimento que não há um consenso
entre os estudiosos, como aponta Hanke (s/a, p. 118), na delimitação de aspectos obrigatórios
de um texto narrativo. Na concepção laboviana, porém, uma narrativa completa possui: a)
abstract; b) orientation; c) complicating action; d) evaluation; e) result or resolution; f) coda.
(Labov, 1972, p. 363). Em termos gerais, sintetiza-se assim a estrutura da narrativa:
Abstract (Resumo)
“Do que se trata?”
Orientation (Orientação)
“Quem? Como? Onde? Quando? O quê?”
Complication (Complicação)
“O que aconteceu?”
Evaluation (Avaliação)
“E daí?”
Result (Resultado)
“Qual o desfecho?”
Coda
“Então, o que aconteceu?”
Quadro 01: A estrutura da narrativa proposta por Labov e Waletsky (1967)
Análise e discussão dos resultados
Nesta seção encontram-se os resultados dos dados fornecidos através do programa
computacional WordSmith Tools: quantidade de processos e sua distribuição ao longo das
narrativas analisadas. Foram observadas as escolhas léxico-gramaticais que representam o
narrador e as personagens nos contos em questão e qual a relação dessas representações com a
linguagem literária contida nos textos modernistas.
As tabelas e os gráficos (ver Anexo) evidenciam com clareza algumas particularidades
dos textos analisados: “Um ladrão”, de Graciliano Ramos, e “O ladrão”, de Mário de Andrade
(doravante T1 e T2, respectivamente).
Um olhar atento às escolhas feitas pelos narradores de ambos os textos, ao tecerem
suas respectivas narrativas, revelam os processos materiais como, de um modo geral, os mais
recorrentes ao longo dos contos. Entretanto, a razão pela qual esse fenômeno ocorre é bastante
diferenciada, levando em conta as entrelinhas das narrativas.
No Resumo dos textos ocorre o seguinte: em T1, a maior frequência dos processos
materiais aponta para um narrador onisciente preocupado em mostrar ao leitor que um ladrão
5
Tradução: pela combinação de uma sequência verbal de orações com a sequência de acontecimentos (que se
infere) efetivamente ocorreram.
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271
precisa de habilidades para realizar seu ofício, deixando claro que o protagonista não as tem.
Estas habilidades, portanto, se materializam na linguagem por meio de processos responsáveis
pela tradução do mundo físico, do fazer humano: “acompanhar”, “aventurar-se”, “andar”,
“cometer”, “entrar”, “pisar” e “correr”.
Em T2, são os comportamentais que surgem com certa recorrência: isso nos faz crer
que o objetivo do narrador onisciente é enfatizar o desespero das pessoas ao tomarem
consciência de que algo errado estava acontecendo na vila onde ocorrem as ações da
narrativa, atribuindo-lhes comportamentos humanos e criando um suspense na trama,
envolvendo o leitor sem que este perceba.
Na Orientação, em T1, o resultado encontrado é coerente com o que se esperava
encontrar, pois é nesta seção da narrativa que o narrador apresentará as personagens, os
espaços e o tempo das ações. Assim, é por meio dos processos relacionais – os mais
recorrentes – como “havia sido”, “era”, “tinha” e “estava” que o narrador classifica, indica ou
caracteriza os participantes envolvidos na oração.
Além dos relacionais, os comportamentais e materiais exercem uma função importante
na Orientação do primeiro conto. Tais processos explicita o modo como o ladrão age diante
da situação em que se metera. Os exemplos típicos desses processos foram: “esconder”,
“escutar”, “fixar” e “enfeitar” (comportamentais); mas também “andar”, “passar” e “mexer”
(materiais).
Em T2, porém, o resultado foi diferente: os processos materiais, seguidos pelos
relacionais, se destacaram no que concerne à frequência no texto. Isso ocorre porque, à
medida que vão surgindo, as personagens estão em movimento, realizando algum ato: “(...)
porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo.” (ANDRADE,
s/a, p. 32, grifo meu). Esse fenômeno atribui ao texto de Mário de Andrade uma
particularidade: movimento. A quantidade de personagens é maior que o conto de Graciliano
Ramos, afinal, na ânsia de ajudar a capturar o ladrão, as personagens saem de suas casas,
assustadas, e são reveladas aos leitores.
A Complicação, em ambos os textos, apresenta uma maior concentração dos
processos. Nos dois casos, os materiais se sobressaem. Percebemos, com isso, o valor de tais
processos na constituição dos textos narrativos. Eles exercem extrema importância, afinal,
traduzem as ações das personagens, trazendo dinamicidade à narração.
Em T1, não poderia ser diferente: os processos materiais funcionam como a força
motriz catalisadora do desenrolar da narrativa. Porém, os comportamentais registraram uma
considerável ocorrência. Tal acontecimento denuncia a função primordial de tais processos
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272
numa narrativa ficcional, “emprestando um traço comportamental” aos personagens
envolvidos. (FUZER e CABRAL, 2013, p. 78).
Com a mesma notoriedade surgem os processos mentais presentes na Complicação,
em T1: revelam a percepção, dentre outros fatores, que o ladrão possui do mundo ao seu
redor. O narrador nos mostra um personagem consciente de suas ações, dissecando suas
afeições, sues medos e desejos:
Encolheu-se mais, olhou a janela do prédio fronteiro, imaginou que por detrás da
janela alguém o espreitava (...). De repente sentiu grande medo, pareceu-lhe que o
observavam pela frente e pela retaguarda, achou-se impelido para dentro e para fora
do jardim, a rua encheu-se de emboscadas. (RAMOS, 1985, p. 24, grifo meu).
Porém na Complicação, em T2, há mais processos materiais, seguidos de mentais e
relacionais. Além disso, apresenta um significativo número de processos verbais que ajudam
o narrador durante verbalização das personagens. Processos como “dizer”, “contar”,
“perguntar”, “responder”, “insultar” e outros dessa natureza reforçam o discurso direto
presente na obra.
Os processos materiais mais recorrentes aqui foram: “correr”, “recuar”, “abrir”, “virar”
e “ir”. Eles reafirmam o caráter de agitação e alvoroço que acomete as personagens cujas
nuances psicológicas são pormenorizadas através dos processos mentais, sendo os mais
usados “ver”, “querer” e “saber”. Os processos existenciais aparecem aqui com mais
frequência do que no conto anterior. Os mais comuns são “haver” e “ter”. Estes cumprem a
função de representar a existência de algo, nesse caso, um suposto ladrão que amedronta a
vizinhança de uma vila.
Na Avaliação dos contos analisados, a distribuição dos processos diverge: em T1, os
materiais sucedidos pelos comportamentais, relacionais e mentais são os mais recorrentes; ao
passo que em T2, os materiais, seguidos pelos relacionais, mentais e comportamentais são os
mais frequentes.
É preciso ressalvar que os processos materiais, em ambos os contos, na Avaliação,
permanece como fio condutor. Revela a indispensável habilidade do narrador ao apresentar o
mundo marginalizado, esmiuçando-o através da linguagem. Outro ponto importante é que,
durante a Avaliação, o narrador busca responder à questão “por que a história foi contada?”,
“O que a narrativa em questão tem de extraordinária?” ou “Por que ele merece ser narrada?”.
Em T1, por exemplo, o narrador está sempre buscando enfatizar o quanto o
personagem central é despreparado, carente e solitário. Além disso, ele nos mostra a
cosmovisão do ladrão, apontando alguns valores sociais e religiosos do personagem. Para
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
273
isso, recorre aos processos comportamentais e relacionais. “Desconfiar”, “reconhecer”,
“ouvir” e “mastigar” são alguns dos exemplos de processos comportamentais; “ser”, “ter” e
“ficar” são exemplos dos relacionais que constroem o significado na Avaliação.
Na obra marioandradiana, em T2, a Avaliação ocorre por outro motivo: o narrador
onisciente procura caracterizar os vários personagens que compõem o conto. Atribuí-lhes
nuances, identifica-lhes em termos de espaço e tempo:
Chegava o entregador da “Noite”, batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada,
comia de pensão, tão rica! Vinha o mulato da marmita pois entrava! E depois dizque vivia sempre com doença chamando cada vez era um médico novo, que tinha
só... quinze? Dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro. O jornaleiro negava
zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão dizia
nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa. (ANDRADE,
s/a, p. 39).
Isso significa dizer que os processos relacionais são, oportunamente, usados pelo
narrador. “Ser”, “ter” e “estar” foram os mais recorrentes.
No Resultado e Coda, o narrador finalizará sua narrativa. Os processos materiais,
portanto, são notórios. É preciso informar as ações finais: o que aconteceu e como terminou.
Para isso, o narrador recorre aos processos capazes de traduzir nossas ações externas. Em T1,
“girar”, “fazer” e “voltar” são alguns dos processos materiais encontrados.
Além desses, no conto de Graciliano Ramos (T1), destacam-se os processos mentais,
seguidos pelos comportamentais. O caráter psicológico do conto ganha ênfase no Resultado e
Coda. O personagem central é acometido por lembranças, sonhos e desejos tão intensos a
ponto de colocar tudo a perder. “Pensar”, “sentir” e “lembrar” traduzem as vivências internas
do ladrão.
Em T2, o Resultado e Coda apresentam – além dos materiais “trazer”, “ir” e “pegar” –
os processos comportamentais, sucedidos pelos relacionais, são importantes na tessitura
textual. O suposto ladrão que causara pânico nos moradores passa a ser uma dúvida. Escapa à
lente do narrador. O que resta são personagens que se veem presos a uma casual
confraternização. O narrador, portanto, apregoa-se a esta situação inusitada e revela-nos, por
meio da linguagem, usando os processos comportamentais – como, por exemplo, “rir”,
“reunir”, “despedir” e “olhar” – e relacionais – como “ter”, “ficar” e “estar”.
Em suma, a investigação do uso dos processos em contos modernistas revela a
imprescindível relação entre os processos materiais e textos narrativos. Evidenciou-se, porém,
que processos comportamentais, relacionais e mentais são igualmente indispensáveis a tais
textos, uma vez que corroboram para a edificação de significados.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
274
Considerações Finais
A partir da distribuição dos processos nos textos analisados, é possível afirmar que as
escolhas léxico-gramaticais evidenciam comprometimento social, típico do modernismo
brasileiro, presente nas obras. Se no texto de Graciliano o narrador nos revela o retrato da
sociedade dentro da casa esmiuçada pelo ladrão, o de Mário de Andrade revela-se nos espaços
sociais que norteiam a obra: a vila, os vizinhos, as casas, as personagens.
A análise dos contos ficcionais, sob a ótica da transitividade, à luz da LSF, nos permite
concluir que podemos ampliar nosso olhar diante dos fatos linguísticos e, dessa forma,
aprofundarmo-nos cada vez mais nos textos, buscando responder como, por que, para quê o
autor realizou uma determinada escolha léxico-gramatical, sem desprezar os diversos
contextos que levaram a sua produção.
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SOUZA, Maria Medianeira de. Transitividade e construção de sentido no gênero editorial.
Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal de Pernambuco. Programa de PósGraduação em Letras. Recife: 2006. Disponível em:
http://www.pgletras.com.br/2006/teses/tese-maria-medianeira.pdf, acessado em: 19 de agosto
de 2014.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
275
Anexos
Material Mental Comportamental Relacional Existencial
Resumo
07
03
04
Orientação
10
11
16
22
06
Complicação
189
60
79
29
08
Avaliação
72
31
50
39
06
Resultado
36
13
08
02
01
Coda
02
02
01
Quadro 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos
Verbal
01
03
05
08
01
02
Total
15
68
370
206
61
5
Resumo
Orientação
Material
03
22
Mental Comportamental
01
04
01
04
Relacional Existencial
01
12
-
Verbal Total
09
01
40
Complicação
164
50
31
48
11
19
323
Avaliação
Resultado
Coda
44
30
03
24
06
-
22
12
01
30
09
02
06
-
11
02
-
137
59
06
Quadro 02: Distribuição dos processos no conto "O ladrão" de Mário de Andrade
Gráfico 01: Distribuição dos processos no conto "Um ladrão" de Graciliano Ramos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
276
Gráfico 02: Distribuição dos processos no conto “O ladrão” de Mário de Andrade
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
277
GUERREIRO DO POVO BRASILEIRO?
CONTRADIÇÕES, DES/CONTRA/IDENTIFICAÇÃO,
RESISTÊNCIA E MEMÓRIA NO DISCURSO SOBRE
EDUARDO CAMPOS
[Voltar para Sumário]
André Cavalcante1 (UFPE)
1. Situando a discussão
Em 2014, no Brasil, estávamos voltando a nossa atenção às eleições
presidenciais, os presidenciáveis, debates políticos, alianças políticas, etc, que
desencadeariam no futuro da nação. Porém, no dia 13 de Setembro desse mesmo
ano morre tragicamente, em um acidente aéreo, o então presidenciável Eduardo
Campos, ex-governador do estado de Pernambuco. Muito se foi falado sobre esse
fato, notícias em telejornais, jornais virtuais e impressos, além também do
surgimento de muitos discursos nas redes sociais. Tais discursos perdura(ra)m um
longo tempo e por ter ocorrido muito próximo das eleições e também por se tratar
de alguém que almejava ser presidente e “não desistir do Brasil2” esses discursos
sobre Campos são dificilmente desvinculados dos dizeres sobre as eleições
passadas.
Hoje, se digitarmos seu nome no buscador Google, encontramos
cerca de 57 milhões de resultados, além das páginas do Facebook e Twitter.
Nesses textos, tsão encontradas diversos sentidos, sobre um Eduardo político,
sobre um herói ou até mesmo um “novo Eduardo”, discursivizado algum tempo
após a sua morte.3 Não pretendo, neste trabalho, falar sobre o sujeito empírico
nem sobre discursos de determinados órgãos ou personalidades brasileiras, mas as
1
Mestrando em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE. É integrante do
Núcleo de Estudos em Práticas de Linguagem e Espaço Virtual (NEPLEV), também da UFPE e Bolsista
da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE).
2
Aqui parafraseio um dos slogans de Campos durante a fase que era um dos presidenciáveis.
3
Bem próximo da morte desse político, observei a repetição sobre um Eduardo Herói, que aparentemente
todas essas matérias diziam o mesmo e que a partir de um determinado tempo, a partir das contradições
inerentes à prática discursiva, esses dizeres sobre Campos ficaram mais diversificados. Nas análises,
aprofundarei esse tema.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
278
discursivizações sobre o ex-governador de Pernambuco quando do período
eleitoral de 2014.
Focando nesses dizeres sobre esse sujeito, observarei
a construção discursiva que alça Eduardo Campos à herói, mas também outros
sentidos, contra/desidentificações, resistências a um sentido dominante, assim
como o funcionamento das noções Resistência e Memória, como são vistas na
Análise do Discurso de linha Pecheutiana. Portanto, faz-se necessário, explanar
brevemente sobre a teoria que nos dá suporte teórico-metodológico para esse
pesquisa.
2. Teorizações em torno da teoria materialista do discurso
O lugar teórico de onde falo, a AD, desde sua fundação, na França, por
Michel Pêcheux (1969), propõe uma nova forma de perceber a linguagem e traz
ao centro de suas discussões algumas noções deixadas de lado a partir do corte
saussureano: sujeito, sentido e história.
Uma vez que o paradigma dominante da época era o estruturalismo, essa
perspectiva teórica pretendia analisar a linguagem por outro viés que não a análise
conteudística, assim, o discurso torna-se o objeto de estudo dos analistas do
discurso. Portanto, para romper com os estudos acerca da linguagem na década de
60 do século passado, Pêcheux [1969 (2014, p. 79)] critica o modelo “reacional”,
representado pelo behaviorismo e ao modelo “informacional”, de Jakobson, e
define o discurso com “efeito de sentidos” (ib. idem, p. 81) entre interlocutores.
Visto que a ideologia que interpela os indivíduos em sujeitos do seu discurso, é
inevitável produzir discurso sem estar afetado por ela. É a ideologia que produz os
efeitos “lapalissade”, as evidências subjetivas e de sentido.
A evidência que constitui o sujeito é de base ideológica (via teoria
marxista) e inconsciente (psicanálise lacaniana). Através dos esquecimentos 1 e 2,
dos quais Pêcheux (1975 [2010, p. 161-162]) teoriza, o sujeito pensa ser origem
do seu dizer e que só existe uma forma de linearizar esse discurso. Essas são
ilusões necessárias para a prática discursiva, para tanto, também é produzida
impressão que o sentido é unívoco. Assim, a AD propõe que sujeito e sentido se
constituem mutuamente. Orlandi (2013) discutindo as bases da AD diz que
A ideologia [...] não é vista como um conjunto de
representações, como visão de mundo ou como ocultação da
realidade. Não há aliás realidade sem ideologia. Enquanto
prática significante, a ideologia aparece como efeito da relação
necessária do sujeito com a língua e com a história para que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
279
haja sentido. E como não há relação termo-a-termo entre
linguagem/mundo/pensamento essa relação torna-se possível
porque a ideologia intervém com seu modo de funcionamento
imaginário. São assim que as imagens que permitem que as
palavras “colem” com as coisas. Por outro lado [...] é também a
ideologia que faz com que haja sujeitos. O efeito ideológico
elementar é a constituição do sujeito. Pela interpelação
ideológica do indivíduo em sujeito inaugura-se a
discursividade. Por seu lado, a interpelação do indivíduo em
sujeito pela ideologia traz necessariamente o apagamento da
inscrição da língua na história para que ela signifique
produzindo efeito de evidência do sentido (o sentido-lá) e a
impressão do sujeito ser a origem do que diz. Efeitos que
trabalham, ambos, a ilusão da transparência da linguagem. No
entanto, nem a linguagem, nem os sentidos nem os sujeitos são
transparentes: eles têm sua materialidade e se constituem em
processos em que a língua, a história e a ideologia concorrem
conjuntamente. (ORLANDI, 2013, p. 48)
Portanto, é a ideologia que guia toda a teoria do discurso, interpelando os
indivíduos à sujeitos e produzindo a impressão de sentido-lá, sentido posto.
Afetado por ela (a ideologia) é que ocorrem as discursivizações, mas para tanto é
necessário que os sujeitos inscrevam seus discursos em um domínio de saber, uma
Formação discursiva (FD), sendo ela “o que pode e deve ser dito” em uma
determinada conjuntura. (PÊCHEUX, 1975 [1990, P. 27]) A inscrição do dizer em
uma FD pode ocorre através de três tomadas de posição diferentes. Quais sejam:


A identificação plena (o bom sujeito): Quando há uma correspondência entre
o sujeito enunciador e a forma-sujeito da FD, o sujeito universal da FD, que
regula os dizeres que pertencem a esse domínio de saber; (PÊCHEUX, 1975
[2010 p.199])
A contra-identificação (o mau sujeito): ocorre quando “o sujeito da
enunciação ‘se volta’ contra o sujeito universal” (Idem, ibidem, p.199).
Ocorrendo, portanto, um questionamento, distanciamento, do sujeito
enunciador da Forma-Sujeito (Idem, ibidem. p. 199-200)
 A desidentificação: nesta tomada de posição, o sujeito desidentifica-se
com a FD que estava inscrito para identificar-se com outra FD. Pêcheux diz
que não há dessassujeitamento, pois não há “fim das ideologias” (Idem, ibidem,
p.201).
Assim, o sujeito já, inconscientemente, produz sentidos que não são mais
permitidos na FD de onde ele enunciava anteriormente. No percurso da teoria,
essas noções foram revistas pelo próprio autor em uma fase de reconfiguração da
teoria.
Na
próxima
sessão
retornaremos
à
essa
questão.
Nesse trabalho, iremos analisar, como já dito, como ecoam alguns sentidos
nos discursos sobre4 Campos, através da memória, assim como as tomadas de
posição e resistências dos sujeitos nas discursividades encontradas na rede. Uma
vez que foi apresentada brevemente nossa posição teórica, partiremos para
4
Aqui penso o “discurso sobre”, conforme Mariani. Irei apresentar essa noção nas análises.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
280
análise, lugar onde também teorizaremos outras noções que guiarão nossa
pesquisa.
3. O discurso sobre um herói ou a heroicização (temporária) ?
As discursividades que se materializam na rede surgem e desaparecem
com grande facilidade, e com pouco tempo outro assunto é o mais comentado do
momento. Por isso, nosso corpus está inserido numa temporalidade específica e
coincide com o período eleitoral para presidente do Brasil. Observaremos, como
já dissemos, o discursos sobre Eduardo Campos e as formas de se
contra/des/identificar com esses discursos, assim como o funcionamento da
memória nesses discursos e as possibilidades de resistência aos sentido dominante
sobre um (não)herói.
O discurso sobre foi trabalhado por Mariani em sua tese de doutoramento,
segundo a autora, eles
são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos,
portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da
memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois
ao falarem de um discurso de (discurso-origem), situam-se
entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo
de transmissão de conhecimentos, já que ao falar sobre transita
na co-relação entre o narrar, descrever um acontecimento
singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes
já reconhecidos pelo interlocutor [...] contribui na constituição
do imaginário social e na cristalização da memória do passado
bem como na constituição da memória do futuro. (MARIANI,
1996, p. 64)
No trabalho de Mariani, o corpus de análise são discursos jornalísticos
sobre o comunismo, que eram “autorizados” por uma instituição, situando o leitor
em relação aquele discurso, sedimentando uma memória do passado e do futuro,
cristalizando os sentidos sobre esse dizer. Em nosso trabalho, os discursos em que
tem Campos como herói, cujo efeito-fundador5 são os dizeres sobre ele, após sua
morte. Por um determinado tempo esses discursos apresentavam uma univocidade
5
Estamos chamando de efeito fundador as dicursivações produzidas a partir da acidente aéreo que
ocasionou a morte do Eduardo Campos, observando-o como um marco para os dizeres discursivizados a
partir de então. Aqui retomo a noção de discurso/ efeito fundador trabalhado por ORLANDI(1993),
porém, esse efeito não instaura efetivamente novos sentidos, mas reorganiza-os no fio do discurso como
um ponto de referência.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
281
de sentidos, provocados por uma repetibilidade de dizeres.
Nas sequências discursivas (SD) 1 e 2, traremos recortes de matérias sobre
esses discursos.
SD1. Eduardo Campos é enterrado aos gritos de "guerreiro do povo brasileiro"6
SD2.Mais de cem horas após o acidente aéreo que resultou na morte de Eduardo
Campos e de mais seis pessoas, o corpo do ex-governador de Pernambuco foi
enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes, no Cemitério de Santo
Amaro, em uma sepultura simples, sem luxo, rodeada apenas de flores e placas de
mármore com identificação. Fogos de artifício e gritos de "Eduardo, guerreiro
do povo brasileiro" marcaram o encerramento da cerimônia. 7
Em SD1, título de uma matéria de um site, trazendo o discurso do outro
através das aspas, marca o olhar de alguns sujeitos em relação ao político
pernambucano, as identificações com seu discurso e muitas vezes uma filiação
àquela redes de sentidos produzidas por esse sujeito. Tal fato chamou a atenção da
grande mídia que cobriu várias matérias a esse respeito, muitos outros políticos
estavam presentes na cerimônia e a partir da morte dele, muitos discursos foram
produzidos, sobretudo, nas redes sociais. Muitos lastimosos e outros produzindo
sentidos outros, apagados pelo uníssono que ainda ecoava e produzia sentidos:
“Eduardo, Guerreiro do povo brasileiro.”. Esses discursos iam se repetindo, se
repetindo, até produzir um efeito de sentido único, mas que se ligava também a
outra memória, como em SD2.
SD2, além de ser produzida dentro de uma mesma formação discursiva
que SD1, FD18, repetindo também os gritos produzidos no velório de Campos,
como se fosse dizeres importantes a serem divulgados naquela época, também traz
6
Outras matérias de mesmo funcionamento. Eduardo Campos recebe em funeral homenagem de
'um guerreiro'postado em 18/08/2014 00:12 / atualizado em 18/08/2014 07:30 e Sob gritos de
"guerreiro do povo brasileiro", corpo de Campos é enterrado da
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-08/sob-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileirocampos-e-enterrado-no-recife em 17/08/2014 18h55
http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-e-enterrado-aosgritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em 17/08/2014 19h06
7
Recorte extraído de http://jovempan.uol.com.br/noticias/brasil/politica/eleicoes2014/eduardo-campos-eenterrado-aos-gritos-de-guerreiro-do-povo-brasileiro.html 17/08/2014 18h43 - Atualizado em
17/08/2014 19h06
8
Aqui, de forma metodológica, estamos chamando FD1 os sentidos produzidos sobre Eduardo Campos
como herói.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
282
o nome do avô “Miguel Arraes”, evocando a memória do parentesco entre os dois
pernambucanos.
É importante distinguir memória da noção de interdiscurso, ambas
trabalhadas na AD, para tanto, traremos Indursky, refletindo sobre esses temas,
aponta:
A reflexão sobre memória sempre esteve presente no quadro da Teoria
da Análise do Discurso, muito embora, nos textos fundadores, esta
nomeação ainda não tivesse tido lugar. Pensava-se sobre memória,
mas sob outras designações, como, por exemplo, repetição, préconstruído, discurso transverso, interdiscurso. Estas noções foram
formuladas no âmbito da Teoria da Análise do Discurso e encontramse reunidas em Semântica e Discurso (Pêcheux 1975[1988]). Todas
remetem, de uma forma ou de outra, à noção de memória. Mais
exatamente, trata-se de diferentes funcionamentos discursivos através
dos quais a memória se materializa no discurso.
Portanto, a memória já tinha sido trabalhada em Les Vérités de la Palice9,
porém pensada através do funcionamento de outras noções, ainda, para a mesma
autora, (idem, p. 70-71)
uma característica essencial da noção de memória tal como ela é
convocada pela AD: o sujeito, ao produzir seu discurso, o realiza sob
o regime de repetibilidade, mas o faz afetado pelo esquecimento, na
crença de ser a origem daquele saber. Por conseguinte, a memória de
que se ocupa a AD não é de natureza cognitiva, nem psicologizante. A
memória, neste domínio de conhecimento, é social. E é a noção de
regularização que dá conta desta memória. [...] se há repetição é
porque há retomada / regularização de sentidos que vão constituir uma
memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do
discurso revestida da ordem do não-sabido. São discursos em
circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sóciohistórico, que são retomados, repetidos, regularizados.
Assim, pela repetibilidade de sentidos vindos do interdiscurso, eles são
regularizados no fio do discurso, constituindo uma memória social, sentidos são
retomados, a fim de constituir um imaginário cristalizado sobre algo, como
sempre estivesse presente. Podemos ver a memória do parentesco de Eduardo
Campos com Miguel materializada textualmente nos discursos sobre esse político,
Campos, na SD2 “enterrado há pouco ao lado do avô, Miguel Arraes”. Na
SD3, essa mesma memória é trazida, porém de forma imagética e verbal.
9
Tradução brasileira: “Semântica e Discurso”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
283
SD3.
10
Aqui se trata de uma homenagem encontrada em diversas cidades de
Pernambuco em que há a fotografia do avô e do neto, ambos ex-governadores de
Pernambuco. Nessa SD, a posição das fotografias provoca uma impressão de
continuidade, como se um seguisse plenamente o passo dos outros, um sucedendo
o outro11, e mesmo que eles tenha falecido, “os sonhos não morrem jamais”,
dando mais ima vez um efeito de que há algo a ser continuado, um sonho. Ainda
conforme Indursky, “se a memória discursiva se refere aos enunciados que se
inscrevem em uma FD, isto significa que ela diz respeito não a todos os sentidos,
como é o caso do interdiscurso, mas aos sentidos autorizados pela Forma-sujeito
no âmbito de uma formação discursiva” então, esses dizeres fazem parte do que se
pode/deve dizer na FD1. Quando um dizer não se inscreve em um domínio de
saber, a forma-sujeito não dá conta mais de regular todos aqueles saberes que
deveriam/poderiam ser enunciados, consistindo em outra tomada de posição, a
desidentificação, dessa maneira, esse sujeito-enunciador já se identificou
(inconscientemente!) com outra FD e sua respetiva forma-sujeito, como
percebemos em SD4.
SD4. Me assusta muito um cara como Eduardo Campos tornar-se mártir
politico agora... Muitos Brasileiros, principalmente os nordestinos, demonstram
uma grave incoerência no tratamento desta tragédia. Falando de politica e
Imagem encontrada no Google imagens a partir da chave “Outdoor Eduardo Campos”.
Não é difícil encontrar eleitores que associam a figura de um ao outro, como se fossem semelhantes,
ambos heróis.
10
11
Nas fronteiras da linguagem ǀ
284
administração publica, Pernambuco é um estado jogado as traças! Fora a orla e
poucos metros em entorno das avenidas praianas, que também não é nada além do
mínimo, medíocre e sujo, Pernambuco não tem nada! É um estado lindo por
natureza, porém carece de tudo! Não tem um serviço descente! Não tem
segurança, não tem educação, não tem saúde, não tem transporte, não tem
saneamento,
nada.
Se você acha que em são Paulo tudo é ruim, pergunta pra quem morou lá como é
que funciona. Enfim: Também sinto muito pelas vidas que se perdem de maneira
tão trágica e entendo a repercussão, claro, devido a ilustre vitima: O
presidenciável Eduardo Campos. Mas, menos, menos... Bem menos Brasil... Não
se iluda meu povo. Guerreiro mesmo é você!
Neste comentário, comentário da matéria da SD2, além do sujeito
inscrever seu dizer em outra FD, a FD2, onde outros sentidos são permitidos,
sentidos que negam a imagem de Eduardo Campos como herói, percebemos
também a resistência, pois havia nesse restrito tempo, anterior a algumas notícias
sobre (possíveis) improbidades políticas de Campos surgirem, poucos resistências,
nas redes, à construção discursiva de heroicização desse político. Ao inscrever o
discurso em outra FD, há uma
possibilidade de, ao se dizer outras palavras no lugar daquelas
prováveis ou previsíveis, deslocar sentidos já esperados. É
resignificar processos interpretativos já existentes, seja dizendo
uma palavra por outra, seja incorporando o non sens, ou
simplesmente dizendo nada. (MARIANI, 1996, p. 24)
Os sentidos dominantes próximo do fatal acidente aéreo, repetiam sentidos
de um herói memorável, assim como o avô, Arraes. Os sentidos mais esperados
eram os que ratificavam esses dizeres, porém, outras discursividades rompiam
com esses dizeres, dizendo: “Me assusta muito um cara como Eduardo
Campos tornar-se mártir politico agora...” Ou, “Pernambuco não tem... um
serviço que preste.” Portanto, não se deveria iludir-se pois, “guerreiro é você
mesmo”. Essas marcas linguísticas, materializam sentidos outros e, como dito,
resistências, possíveis pelos furos/brechas na língua. Para Pêcheux,
Apreender até seu limite máximo a interpelação ideológica como ritual
supõe reconhecer que não ritual sem falhas; enfraquecimento e brechas,
“uma palavra por outra” é a definição de metáfora, mas é também o
ponto em que o ritual se estilhaça no lapso (e o mínimo que se pode
dizer é que os exemplos são abundantes, seja na cerimônia religiosa, no
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
285
processo jurídico, na lição pedagógica ou no discurso político...). (Idem,
ibidem, p.278)
Essas falhas na interpelação e a impossibilidade de uma forma-sujeito
homogênea, fazem Pêcheux produzir algumas retificações no percurso da teoria,
observando que as resistências ocorrem na/pela língua, através das “quebras de
rituais”, pelo “questionamento de uma ordem”, etc. (PÊCHEUX, 1990, p.17) Para
tanto, necessita-se duas coisas: “ousar se revoltar” e “ousar pensar por si mesmo”
(PÊCHEUX, 2009, p.281)
4. Tentativa de um efeito-fecho
Observamos, então, que um fato, em termos discursivos, pode ser
interpretado como efeito fundador, podendo produzir diferentes filiações de
sentidos. Assim,
O fundador busca a notoriedade e a possibilidade de criar um
lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio
da história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da
história
para
reorganizar
os
gestos
de
interpretação.
(ORLANDI, 1993, p. 16).
Portanto, o acidente aéreo em que estavam envolvidos o ex-governador
pernambucano e outras pessoas foi marco histórico que pôde reorganizar vários
dizeres sobre esse político. Reorganizando os gestos de interpretação e de práticas
discursiva sobre o sujeito Campos. Porém, esses dizeres não podem ser
considerados novos, pois já estava inserido no interdiscurso e através da memória
é que eles foram regularizados no discurso.
Analiticamente, mobilizei duas FDs, em que alguns sujeitos estavam mais
identificados com a FD1 e outros com a FD2, sendo elas hetoregêneas, mas
antagônicas. Assim, ao inscrever seus dizeres nessas FDs, os sujeitos tinham uma
tomada
de
posição
diferente,
identificação,
contra-identificação
e
desidentificação. Nessas últimas maneiras de se relacionar com uma FD, é onde
podem ocorrer as resistências aos sentidos dominantes.
Alçar Campos a posição de herói, mesmo que por um
determinado tempo, é uma construção discursiva em que se foi necessário a ilusão
de sentido único, regularização da memória no dizer, não sendo possível escapar
das resistências e contradições inerentes ao discurso.
5. Referências
Nas fronteiras da linguagem ǀ
286
MARIANI, Bethânia. O comunismo imaginário: práticas discursivas da imprensa
sobre o PCB (1922-1989). Tese de doutorado. IEL/UNICAMP. Campinas, 1996.
ORLANDI, E. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 11ª edição.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2013.
______. (org.) Discurso fundador. Campinas, SP: Pontes, 1993.
PÊCHEUX & FUCHS (1975). A propósito da análise automática do discurso:
atualizações e perspectivas. In: GADET & HAK (orgs.). Por uma análise
automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
PÊCHEUX, M. (1969). Os fundamentos teóricos da análise automática do
discurso de Michel Pêcheux. In: GADET & HAK (Orgs) Por uma análise
automática do discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
______. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3ª ed.,
Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
______. (1982). Delimitações, inversões, deslocamentos. Trad. brasileira de José
Horta Nunes. Cad. Est. Ling., nº 19, Campinas, jul./dez, 1990, p. 7 - 24.
______. A Semântica e o Corte Saussuriano: língua, linguagem, discurso. In:
BARONAS, R.L. Análise do discurso: apontamentos para uma história da noçãoconceito de formação discursiva. São Paulo: Pedro & João Editores, 2007.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
287
POESIA E MITO EM LUCILA NOGUEIRA
[Voltar para Sumário]
André Cervinskis (UFPE)
O processo de personificação lírica desenvolvido por Lucila Nogueira inclui recursos
dramáticos monologais que navegam desde a atmosfera clássica a um contexto de
performance pós-moderna. Esse artigo analisará a voz mitológica e performática na lírica pósmoderna de Lucila Nogueira, especialmente em seus livros Ilaiana (1997), Imilce (2000),
Amaya(2001) A Quarta Forma do Delírio (2002) e Estocolmo (2004).Se os três primeiros
tratam da raiz mítica da península ibérica, a partir tanto da Dama de Elche como da mulher
espanhola de Aníbal Barca, Imilce, e também da ficcionalizada galega ligada à ancestralidade
da autora, os dois últimos cuidam da mitologia celta e escandinava, igualmente a partir de
figuras femininas como a druidesa Veleda e a Völva rainha do lago Mälaren.
Voz e performance se conjugam para a enunciação mítico-feminista da autora, sendo
sua personalidade traço fundamental da sua poesia, muito especialmente nos livros analisados.
A autora segue a trajetória Oretania / Levante / Galiza / Bretanha / Escandinávia proposta
como fio condutor de busca da origem étnica e artística de Lucila Nogueira através das
figurações femininas alegóricas de que se utiliza na formação de vozes ancestrais e
contemporâneas a delinear a condição da mulher em várias épocas em confronto com o
arquétipo feminino vital matriarcal de diversas culturas, na busca obsessiva de uma geografia
mítica de si mesma.
Nesse sentido, percebemos também a forte questão de gênero que permeia toda esta
obra, quando a mulher é a protagonista de uma narrativa lírica em que a figura masculina é o
mito determinante, no caso, Aníbal Barca. Lucila usa como matéria-prima de sua obra o
universo feminino, em meio às guerras, do contexto da expansão romana, negando-o, já que
empresta vozes a essas mulheres que, em suas sociedades, não gozavam de nenhum tipo de
autonomia, muito menos a chancela da cidadania. Ela posiciona-se contra o Estado,
representado pelo Império Romano, e contra as guerras impetradas pelos homens, que rouba
das mulheres seus maridos e filhos, deixando-as numa situação de desamparo, num mundo
Nas fronteiras da linguagem ǀ
288
dominado pelo patriarcalismo. Seu discurso de Lucila constitui um contraponto à mudez
feminina do mundo clássico. Assim, ela retoma a tradição ocidental, pela via do desacordo
com o contexto ideológico romano e, pelo endosso textual, reatualiza a dicção grega em sua
obra.
A autora, Lucila Nogueira publicou mais de dezessete livros de poesia. Tem, entre
seus títulos mais conhecidos, Almenara (1979), com o qual ganhou seu primeiro prêmio
literário Manuel Bandeira, Governo do Estado de Pernambuco, 1978, premiação que obteria
novamente em 1986 com o livro, Quasar (1987). Seu livro Zinganares (1998) foi publicado
em Lisboa. Sobre este livro, foi elaborada e defendida uma dissertação na PUC-RS, pela
mestra Adriane Hoffmann. Foi escritora residente em Saint-Nazaire, França, em 1999, quando
escreveu o livro A quarta forma do delírio (2001). Ao lermos suas obras, percebemos a
influência inegável de diferentes culturas como elementos importantes em seu processo de
criação.
No caso específico desses livros, o discurso poético se sustenta a partir da
formulação mítica que desdobra a voz lírica em alegorias que passam a conviver como
estátuas vivas com o universo dos leitores desse fantástico imaginário da autora carioca
radicada no Recife. A linguagem poética, expressa por um uso seqüencial de unidades
submetidas a poucos paradigmas, insiste na representação dos mesmos elementos emotivos,
os quais se intensificam pelo espelhamento interno também do significante. A mimese interna
e ao aprofundamento da interiorização são especificações linguísticas e psicológicas
peculiares ao gênero lírico. A função poética da linguagem, que projeta o princípio de
equivalência do eixo da contiguidade, mostra que a estrutura do poema é uma das formas de
representação da existência, segundo José Guilherme Merquior (apud HOFFMAN, 2001, p.
23). O discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a partir do mito. Corroborando
essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de performance e teatralização da
voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na densidade do significado do
signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm se esforçado, sobretudo os
pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da performance.
Assim, o livro Imilce (2000), na verdade um poema em 4 vozes é um canto de
tristeza e desencontro das mulheres e filhos dos soldados que vão às guerras, em todas as
épocas. Fala também dos conflitos políticos que encadeiam tragédias humanas, como em
todas as guerras. As personagens são o próprio Aníbal, a sua mãe, seu filho e Imilce, esposa
dele. Interessante que somente os amantes têm seus nomes revelados. Como se a autora
quisesse destacar mesmo a dor e o dilema das mulheres que amam e esperam a volta dos
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amados. As estrofes simetrizadas em torno do eixo vertical possibilitam ao leitor uma leitura
dupla, pois há a possibilidade de lerem-se os versos por inteiro, como normalmente se
procede, ou primeiro a sua metade esquerda e depois a metade direita.
Nesse livro, como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império
Romano e de Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha,
Cástulo, Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos:
romanos, mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do
Império Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o
domínio praticamente universal do Império Romano na antigüidade. Todo o texto, segundo
Durand (1989, p. 148), contém de forma subjacente, um mito. Imilce não possui nem de
forma subjacente, mas de forma emergente. Percebemos a referências às mitologias judaicocristã (ao pé do Líbano/ os homens de púrpura/ sidônios do deserto/ Canaã/ muros de Jericó)
e greco-romana (cabeleira de Vênus e Verbena - p. 48); mas há referências a outras
específicas, como a ibérica, dos ciganos mesmo de épocas específicas, como a inquisição e as
cruzadas: minha mãe viu fogueiras no caminho (...) e disse na loucura: inquisidores; viu
soldados diferentes (...) lutando/ contra os mouros do oriente/ e disse na loucura:/ são
cruzadas (NOGUEIRA, 2000). Imilce é poesia de fogo e de luz. Várias são as passagens em
que há uma referência implícita ou explícita ao fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me
seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna
e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio
ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares
acesos na comédia dos deuses; ... levando em cada mão um candelabro [...] era dia e era
noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras nos caminhos... ;... não vive sem azeite
tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo... (NOGUEIRA, 2000). O fogo de
Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses do Olimpo. Na mitologia
judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para rituais de purificação: eles
sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário); [..].cavalguei/ minha
fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões crucificados de Cartago
(NOGUEIRA, 2000).
Como que situando o enredo, a autora cita toda a extensão do Império Romano e de
Cartago; por isso, nomes de lugares como Creta, Tiro, Bitínia, Chipre, Espanha, Cástulo,
Marrocos, Pirineus, Alpes, Oretania, Malta, Alicante; e mesmo os povos antigos: romanos,
mouros, gregos, são freqüentes no texto. Cada lugar demonstrando o poderio do Império
Romano e o destino que o resultado das Guerras Púnicas infligiram ao mundo: o domínio
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praticamente universal do Império Romano na antigüidade.
Desse modo, Imilce é poesia de
fogo e de luz. Várias são as passagens em que há uma referência implícita ou explícita ao
fogo, ao sol, à luz: (voz de Imilce): o amor me seca os lábios: tudo ferve (p.13); meu corpo é
um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre
as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo); (voz do filho de Aníbal): os filhos
são as cinzas de um naufrágio [...]; e os altares acesos na comédia dos deuses; ... levando em
cada mão um candelabro [...] era dia e era noite/ e a chama acesa; minha mãe/ viu fogueiras
nos caminhos... ;... não vive sem azeite tanto fogo;... que minha mãe jogou dentro do fogo...
(NOGUEIRA, 2000). O fogo de Prometeu que iluminou Atenas, não obstante a ira dos deuses
do Olimpo. Na mitologia judaico-cristã, mais próxima de nossos dias, o fogo é usado para
rituais de purificação: eles sucumbirão/ depois de Cristo/ hebreu/ crucificado num calvário);
[..].cavalguei/ minha fantasia hebraica/na língua cananéia/ de meus pais [...]; leões
crucificados de Cartago (NOGUEIRA, 2000).
Por sua vez, Amaya (2001) é um dos livros da teatralogia ibérica, que inclui Imilce
(2000) e Ilaiana (1997). Nele, a escritora realiza um diálogo intercultural a partir de suas
raízes galeo-lusitanas. Em Amaya (2001) a autora, impressionada na vida real com a
descoberta de seu sangue galego, parte ao reconhecimento mítico e geográfico de si mesma.
Faz o percurso ao contrário de seus ancestrais, no rumo que vai do norte de Portugal à cidade
de Padrón, passando por outros sítios como Sanxenxo, Combarro, Finisterra. Imerge na
cultura galega cercada pela paisagem dos hórreos e eucaliptos que sempre povoaram seus
sonhos de infância, procura vivenciar o histórico e o psicológico da imigração dupla : da
Galiza a Portugal, da Lusitânia ao Brasil. Recorre à figura real de Teresa Susabila, que se
funde literariamente com a ficcionalizada Amaya, cuja personificação a autora chega a ponto
de incorporar bordando esse nome em seu casaco de uso diário.
Ilaiana - Enigmas de Elche, publicado em 1997, é um livro composto por quarenta
poemas, que relaciona aspectos temáticos, formais e epigráficos à origem histórica do título
da obra. Os versos são distribuídos em quatro quadras decassílabas e um dístico ao final.
Esses dois últimos versos que inauguram e concluem o poema, completando sua estrutura
cíclica e regressando à matriz temática (“A Dama de Elche”, mito da deusa-sacerdotisa da
região da Galícia, Espanha). Ilaiana (1997), que completa junto com Imilce (2000),
Ainadamar (1996) e Amaya (2001) a denominada tetralogia ibérica, em que a autora recorre
a mitos e temas culturais luso-hispânicos, trata do mito da “Dama de Elche”, deusasacerdotisa do período pré-espanhol (celta). Com influências de mitos semelhantes, “em
pedra talhada ou policromada, ricamente vestida e adornada, ostentando uma toucada – suas
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291
tranças?, elaboradíssima, ela tem o olhar fixo na eternidade. Preservada desde sua milenária
existência, anônima ela e anônimo o seu criador. Pergunta a voz poética: fui a deusa e o
touro subterrâneo/ Inanna Astarte Isis ou Cibele/ Uni Tanit fui Juno ou fui Demeter/ que
nome me chamavam os iberos? (NOGUEIRA, 1997). Dessa forma, a voz da Dama de Elche
perpassa toda
obra, assumindo identidades
múltiplas,
traduzindo
em versos
o
interculturalismo de sua obra:
E eu contemplei atônita o semblante/ da moça igual à dama na estação/ desceu em
frente às águas de Alicante/ império de tartéssicas visões./ Mulher sacrificada na
pirâmide/virgem sacerdotisa que foi mãe/ nômade – proletária – navegante/ que céu
te despencou na corda vã? Grego ou cartiginês esse semblante/no trem com seus
dois filhos pela mão/grega cartaginesa ou babilônica são de Creta ou da Síria essas
feições? (Poema IV)[...] Foi aqui que eu plantei um CANDELABRO/ de Chipre e o
consagrei à luz da lua/ meu pente de marfim veio de Samos/ e os fóceos esculpiram
minhas tranças (Poema VIII) (NOGUEIRA, 1997, p. 18.22)
Mas a autora tem consciência plena de sua identidade, mesmo imiscuindo-se em
inúmeras culturas, como demonstram esses versos: Esta ilha de ferro é meu RECIFE/ com
seus guanches atlantes e tupis/ esta ilha é meu corpo e meu abismo/ meu poder de sonhar e
de existir (NOGUEIRA, 1997, p. 25)
Já A Quarta Forma do Delírio (2003) trata dos mitos celtas da Bretanha, como os
da Távola Redonda, Rei Artur e o Santo Graal. Resultado de uma residência artística realizada
pela autora em Saint-Nazaire (França), em 1999. Região anteriormente dominada pelos celtas,
o Norte da França, juntamente com a Ilha da Grã-Bretanha, desenvolveu toda uma cultura
miscigenada, com elementos pagãos e cristãos, resultado da incursão do cristianismo em
terras dos chamados “povos bárbaros’ na Idade Média. Com sensibilidade aguçada, a autora
vai perceber tais influências, visíveis nos seguintes versos: (Esta era a escada dos druidas/ e
eu sou a Veleda a druidesa/ meu canto tem poder/ de dissolver tempestade/ guardiãs do
santuário de Teutates/ ninfa celta/ sacerdotisa armoricana/ imagem de Bretanha (Fala de
Veleda); Ouve o canto da druida/solitária/ tu estás sob a minha/ proteção/ visão que eu
atraí/armoricana/ eu me chamo Merlin/ o Encantador (Fala de Merlin) (NOGUEIRA, 2003,
p. 41.44). Pois, como afirma Lourival Holanda na orelha deste livro:
Lucila cruza – no sentido fecundo – caminhos reais que agora dão uma outra
gravidade à memória de seu imaginário poético. O impacto da praia rochosa de Saint
Marc. Os caminhos imemoriais por onde nossas lembranças se cruzam: os índios
brasileiros que por ali Montaigne recebeu. Hoje, é Lucila recebendo os eflúvios
poéticos de celtas, de Carnac, da beleza bárbara da Bretanha.
(NOGUEIRA, 2003 – orelha)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
292
Finalmente, Estocolmo (2004) vem representar o fechamento do ciclo Mítico
Performático, a partir de falas deambulatórias pelas ruas da capital sueca, que dialogam com
vários tempos e personagens do século XVIII, culturas arcaicas desde os livros de Odin sobre
as quais paira a alegoria da volva, figura emblemática que se confunde com a própria poesia
em seu uso de sibilas para profetizar. Ao mesmo tempo, verifica-se que é um porto de
chegada da autora, em sua odisséia pessoal, integrada nesse ano à comunidade sueca pelo
nascimento de seu neto Alexander. A filha e neta de portugueses e galegos que se torna mãe e
avó, no percurso de volta dos vikings que são referenciados em todo o livro, inclusive em suas
vestimentas e visual punk pós-moderno.
Assim, podemos dizer que o discurso narrativo-literário em Lucila Nogueira dá-se a
partir do mito. Corroborando essas assertivas e alargando um pouco o quadro lingüístico de
performance e teatralização da voz, Glusberg (1987) afirma que “a performance se perde na
densidade do significado do signo e se conserva o significante”. De fato, os pesquisadores têm
se esforçado, sobretudo os pesquisadores semiológicos, para detectar o sentido da
performance.
As vozes femininas, sejam elas celtas, galegas ou escandinavas se transpõem para os
livros de maneira tanto figurativa (metáforas e metonímias) quanto temáticas (vozes de mitos
ancestrais que ecoam no inconsciente coletivo). O fundamental é que esta passagem do
semântico para uma espécie de estado vital do significante, tal como a aparição de novos
signos, seja adotada em várias religiões e mitos de iniciação (GLUSBERG, 1987), ambos
bastante fortes em Lucila Nogueira. Já para Zaul Zumthor, autor canadense que aprofundou o
conceito de performance para a cultura e especialmente a literatura, afirma que, se houvesse
uma ciência da voz, ela não estaria centralizada em uma única forma de conhecimento, pois
deveria abranger, em princípio, a fonética e a fonologia, além da antropologia, da História e
da psicologia da profundidade. Em seu estudo, o teórico refere-se à voz do ser humano real, e
não à do discurso, uma vez que o texto literário é uma voz que está dentro de um suporte
escrito, portanto mediado ele já é uma representação.
Diretamente vinculada à voz poética, a performance é uma ação oral-auditiva pela qual a
mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, no tempo presente, em que o
locutor assume voz, expressão e presença corporal (física), enquanto o destinatário, que não é
passivo, também se inclui como presença corporal dentro da performance.
A lírica de Lucila Nogueira, reverberando o eco ancestral de mitos, enseja-se nesse
panorama. Os cinco livros selecionados para o estudo desse artigo são repletos de elementos
identitários tão diversos quanto a cultura ibero-galego-celta-escandinava. Embora plenamente
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293
enraizada no Brasil, suas inúmeras viagens a outros países ajudaram-na na concepção poética
das vozes mitológicas das culturas tão diversas que hoje convivem local e globalmente,
constituindo-se numa verdadeira geografia mítica pós-moderna.
Referências
ACADEMIA BRASILIRA DE LETRAS. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional, 2008.
CERVINSKIS, André. De Imilce a Medellín: a poesia de Lucila Nogueira. Olinda: Livro
rápido, 2008.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.
FIORIN, José Luiz. Elementos da Análise do Discurso. Sâo Paulo: Contexto, 2005.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
HOFFMAN, Adriane Ester. A Moderna Lírica Mitológica em Lucila Nogueira. Olinda: Livro
Rápido, 2007.
MATTELART, Armand & NEVEU, Érik. Introdução as Estudos Culturais. São Paulo:
Parábola, 2004.
MIELIETINSKI. E. M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
NOGUEIRA, Lucila. Amaya. Recife: Bagaço, 2001.
_______. Ilaiana. Recife: Cia. Pacífica, 1997.
_______. Imilce. Recife: Cia Pacífica, 2000.
_______. A Quarta Forma do Delírio. 2ª. Edição, Recife: Bagaço, 2003.
_______. Estocolmo, Recife : Ed.Livro Rápido, 2004.
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987.
REIS, Carlos. Fundamentos y técnicas del análisis literario. Madrid, Ed. Gredos, 1981.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 1986.
ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. São Paulo: Ed. HUCITEC, 1997.
_______. Performance, Recepção, Leitura. Trad.: Gerusa Pires Ferreira & Sueli Fenericli.
São Paulo: Ed. HUCITEC, 2000.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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O ENUNCIADO COMO ZONA DE DIÁLOGO ENTRE VOZES
E VALORES: UMA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO
JORNALÍSTICAS DA IMAGEM DE EDUARDO CAMPOS NO
PERÍODO PRÉ E PÓS MORTE
[Voltar para Sumário]
Andre Cordeiro dos Santos (UFPE)1
1. Iniciando o diálogo
Toda enunciação efetiva, seja qual for a sua forma,
contém sempre, com maior ou menor nitidez, a
indicação de um acordo ou de um desacordo com
alguma coisa.
(Bakhtin, 2006, p. 109)
Nesse excerto, Bakhtin nos diz que toda enunciação efetivada comporta uma posição
valorativa do enunciador em relação ao objeto de enunciação e, consequentemente, já que
para o filósofo a enunciação é a unidade da comunicação real, que a linguagem carrega
sempre consigo posições avaliativas do sujeito. Nesse sentido, sempre que há uso de
linguagem, há posições valorativas que se constituem a partir de relações dialógicas. Portanto,
olhar a linguagem, nessa perspectiva, requer levar em consideração os valores que se fazem
constituintes dela.
As relações dialógicas, no entender dos integrantes do chamado Círculo de Bakhtin2,
dizem respeito a relações de sentido que se instauram na instância de discurso por meio de
diálogos que ocorrem dentro da enunciação, envolvendo diferentes aspectos que se fazem
determinantes de sentido. Esse diálogo é determinado, segundo Bakhtin (1993, p. 71), pelos
momentos básicos da constituição da linguagem que são o eu-para-mim, o eu-para-o-outro e
o outro-para-mim. Esses momentos constituem a base arquitetônica do pensamento
bakhtiniano que se foca principalmente no caráter dialógico da linguagem e este caráter
perpassa todos outros: o social, o histórico e axiológico.
1
2
E-mail: [email protected]
Grupo de estudiosos russos composto por Bakhtin, Volochinov, Medvedev e outros.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
295
Tomamos esses momentos dialógicos, apontados por Bakhtin, nos quais se põem em
diálogo e conflito locutores, discursos, valores, contextos, etc., que são definidores de
sentidos de enunciações, e, que fazem da enunciação eventos únicos, como pressupostos para
esse trabalho. Assim, procedemos a análise do fenômeno de mudança da constituição da
imagem do ex-governador do estado de Pernambuco e pleiteante a presidente do Brasil,
Eduardo Campos, no período pós-morte em relação ao período anterior a sua morte,
observado no jornal Diário de Pernambuco on-line.
Para tanto, adotamos a perspectiva da Análise Dialógica dos Discursos (ADD),
buscando reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres e, consequentemente,
às imagens do político nas notícias do jornal, atentando para os momentos determinantes dos
valores na (e da) linguagem citados acima. Nesse intuito, trazemos à discussão os conceitos
basilares da ADD que se mostram necessário a esse empreendimento e, após isso, analisamos
as duas notícias. Passemos aos conceitos base da análise.
2. Alguns elementos conceituais do diálogo
Os integrantes do Círculo de Bakhtin, por tomarem o enunciado como base para o
estudo da linguagem e considerá-lo como evento único e irrepetível, buscaram evidenciar a
linguagem como resulto da interação de diferentes elementos. Em um desses estudos, no texto
Que é a linguagem?, Volochinov (2013 [1926], p. 141) propõe que “a linguagem [...] é o
produto da atividade humana coletiva e reflete em todos os seus elementos tanto a
organização econômica como a sociopolítica da sociedade que a gerou”, ou seja, a linguagem
mantém um diálogo com as condições sócio-político-econômicas.
Sendo assim, a linguagem está diretamente ligada e determinada pelo social e estudála requer, antes de tudo, o reconhecimento dessa ligação. Adotando essa perspectiva,
iniciamos essa discussão trazendo à tona o que Bakhtin entende por esferas discursivas,
acreditando que esse conceito é relevante no entendimento do fenômeno que nos propusemos
a analisar, já que a compreensão dos gêneros do discurso passa pela compreensão das esferas
discursivas.
Para o Bakhtin (1997, pp. 227-326), as esferas discursivas são constituídas por
determinado grupo de pessoas que compartilha entre si práticas sócias/discursivas e um dado
ambiente social. Segundo ele, esse grupo utiliza determinadas práticas discursivas que se
fazem necessárias para a interação entre seus indivíduos e, assim, por compartilharem o
mesmo ambiente social, acabam por ter necessidades comunicativas semelhantes, em
Nas fronteiras da linguagem ǀ
296
condições, também, semelhantes, e isso gera a criação de formas linguísticas mais ou menos
padronizadas – ou “enunciados relativamente estáveis”, nas palavras de Bakhtin – que
cumprem determinadas funções comunicativas do ambiente social. São essas formas
linguísticas, que evidenciam ainda mais a relação de diálogo entre linguagem e sociedade, que
Bakhtin chamou de “gêneros do discurso”.
Os gêneros do discurso estão presentes em todas as esferas da comunicação humana,
pois sempre que fala, um sujeito se serve deles, obedecendo, mesmo que involuntariamente, a
determinadas “regras” de funcionamento dessas “formas de linguagem”. Além disso, sendo os
gêneros do discurso formas relativamente estáveis de enunciados, a posição valorativa que
compõe o enunciado da comunicação efetiva é, também, inerente aos gêneros, não havendo
nenhum gênero do discurso que se excetue da carga axiológica que acompanha a linguagem,
por mais que se busque atingir um ponto de neutralidade.
Em contrapartida a isso, temos algumas esferas da comunicação humana que utilizam
de certos gêneros do discurso que buscam atingir essa neutralidade, se eximindo das posições
valorativas, é o caso, por exemplo, da esfera jornalística, com as notícias que se propõem ser
unicamente um meio de transmissão de informações. No entanto, percebemos que não é bem
assim, pois mesmo nesses casos em que a “forma” de linguagem se propõe neutra, ela traz
consigo uma carga avaliativa em relação ao objeto do discurso que se evidencia a partir da
investigação dos seus fios dialógicos.
Vistas a isso, se a notícia, apesar de se propor neutra, não o é. A partir dela podem se
revelar valores que trabalham para a construção de discursos que se revelam em posição de
acordo ou desacordo com o objeto de enunciação. Desse jogo de valores que se instaura na
enunciação emergem imagens construídas como produto de um diálogo que reflete e refrata as
ideologias que circulam na esfera discursiva na qual a prática enunciativa se deu, nas palavras
de Bakhtin (2006, p. 31) “cada campo de criatividade ideológica tem seu próprio modo de
orientação para a realidade e refrata a realidade à sua própria maneira”.
Essa posição axiológica, que se mostra nos enunciados da comunicação real, no
entanto, pode não ser sempre semelhante dentro de uma esfera discursiva, posto que o
enunciado como evento único é sempre fruto de um diálogo singular, assim, também, as
posições axiológicas serão únicas em cada enunciado, podendo, a posição de um sujeito
distanciar-se de uma posição anteriormente assumida com o decorrer do tempo. Vemos,
assim, que o sujeito é ponto nodal para a compreensão desse fenômeno, por isso, mais a
frente, nos deteremos nessa questão.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
297
Nesse sentido, entendendo o enunciado como fruto de um diálogo único, acreditamos
que captar os valores, ou as avaliações, em relação ao objeto do discurso requer que se
investigue os fios dialógicos que dão sustentação aos dizeres. Cabe, pois, ressaltar que a base
arquitetônica mostrada acima resume de forma sumária o caráter dialógico da linguagem
(dialogismo amplo). Essa base se evidencia e pode ser percebida nos gêneros discursivos
através da orientação social, para o outro; da presença de diferentes vozes sociais que
dialogam ou se conflitam; da materialização do enunciado enquanto elo entre os já-ditos e a
presunção de respostas; da adequação ao contexto enunciativo; e das marcas axiológicas do
sujeito em relação ao objeto da enunciação.
Tomaremos essas formas de diálogo como ponto de partida para as análises desse
artigo. Antes, porém, acreditamos que seja relevante fazer algumas considerações sobre
sujeito.
3. Do sujeito do diálogo
Falar de sujeito dentro da perspectiva bakhtiniana de estudo da linguagem é algo que
requer atenção, posto que o sujeito não foi teorizado dentro dos estudos desenvolvidos pelo
Círculo. Nesse sentido, Segundo Teixeira (2006, p. 229), a visão sobre sujeito de Bakhtin
“emerge e se sustenta na enunciação, entendida como um processo em que o eu se institui
através do outro e como outro do outro, sendo pela inter-relação entre dialogismo e alteridade
que se pode tentar cerca a subjetividade em Bakhtin”. Desse modo, o sujeito, assim como o
enunciado, é fruto de um diálogo único em cada momento discursivo.
Partindo dessa visão, Dahlet (1997, p. 77 apud TEIXEIRA, 2006, p. 229) considera
que “o dialogismo bakhtiniano se fundamenta na negação da possibilidade de conhecer o
sujeito fora do discurso que ele produz” e Teixeira (ibidem) completa dizendo que esse é o
motivo pelo qual não há uma teoria do sujeito enquanto objeto, mas, sim, “uma teoria da
linguagem fundada na idéia de que a interação verbal é o modo de ser social dos indivíduos”.
Ou seja, para Bakhtin, não há sujeito sem linguagem.
Com isso, se servindo de pensamento de Dahlet (1997, p. 60) a respeito do sujeito
bakhtiniano, Teixeira (idem, p. 230) afirma que
Bakhtin relança a problemática do sujeito em uma concepção dinâmica de
enunciação, como produto de uma voz na outra, em que a significação é produzida
em direções diferentes, sob as pressões de um dialogismo que remete a ancoragem
do sujeito à realidade do discurso, entendido como uma ‘construção híbrida’,
(in)acabada, por vozes em concorrência e sentidos em conflitos” (grifos do autor)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
298
É nesse sentido, que a compreensão do sujeito se faz relevante para a compreensão dos
valores que são inculcados nas palavras na interação verbal por meio de enunciações. O
diálogo de vozes e valores que se opera na linguagem, se opera a partir de um sujeito que se
institui pela linguagem e, por isso, é visto, assim como o enunciado, como evento.
4. Foco no diálogo
Nesta seção, iremos analisar as notícias a respeito do candidato Eduardo Campos do
jornal citado acima, a fim de buscar reconstruir os fios dialógicos que dão sustentação aos
dizeres, mostrando que esse diálogo que se instaura como único em cada momento discursivo
faz emergir imagens diferente do candidato no período pré e pós morte, sendo a sua morte um
fator determinante para a exaltação de sua imagem. Para isso, observaremos as questões
ideológicas que se evidenciam nos textos, levando em consideração o sujeito da enunciação,
visto que esse é o ser a partir do qual se refletem e refratam essas questões ideológicas, ainda
que o sujeito em uma das notícias não esteja identificado, uma vez que, a notícia é assinada
pelo próprio Jornal. Sabemos que mesmo nesse caso em que o sujeito não está identificado,
ele é peça chave, já que é a partir dele que o diálogo se instaura na enunciação e no caso que
trazemos a análise não seria diferente. Passemos à notícia.
Figura 1: Notícia do Diário de Pernambuco on-line anterior a morte de Eduardo Campos
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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Fonte: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/07/08/interna_politica,514877/aliados-de-armandogostam-de-declaracoes-acidas-de-campos.shtml
Para contextualizar um pouco a notícia, convém situar o contexto, ainda que de forma
sumária, que gerou a notícia acima. No ano de 2014, Eduardo Campos se lançou como
candidato a presidência do Brasil pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). Como era um
candidato não muito conhecido, precisava angariar votos Brasil a fora para buscar a eleição e,
por isso, participou de comícios com seus aliados. Nesse ínterim, Campos buscou mostrar
suas propostas de governo apoiando-se no discurso de que o governo do momento era falho e
que, por isso, não deveria ser mantido, sendo ele uma melhor opção para o Brasil.
Desse quadro surge a notícia: Eduardo Campos, em ato político com seu “afilhado”
Paulo Câmara, teria dado declarações “ácidas” e, segundo os candidatos da oposição, esses
“comentários contraditórios e desrespeitosos” seriam um “sinal de desespero” do candidato.
Ainda, segundo a notícia, para o deputado federal Sílvio Costa, Eduardo “não foi feliz em
suas declarações”, pois teria chegado a chamar seus próprios aliados de “parasitas do poder” o
que seria, para Costa, um “sinal de desespero da frente popular”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
300
Como defendido por Bakhtin, toda enunciação comporta uma posição axiológica e na
notícia acima não é diferente, já que a notícia se caracteriza como um tipo relativamente
estável de enunciado. Na notícia, percebemos um discurso de oposição a Eduardo Campos,
que é caracterizado através das críticas tecidas ao candidato – candidato em desespero, que
proferira comentários desrespeitosos e contraditórios e que desrespeita seus próprios aliados.
Dessa forma, ainda que a notícia atribua as críticas à oposição, um discurso, na perspectiva
bakhtiniana, sempre é proferido por um sujeito que, enquanto tal, reflete e refrata as
ideologias da sua esfera de comunicação, que se constitui na linguagem enquanto evento e
que trava diálogos com outras vozes, assim, esse discurso também é o discurso do sujeito
representado pelo jornal.
A notícia é um discurso do sujeito do jornal3 em relação ao objeto da enunciação,
ainda que dialogue diretamente com discursos outros, pois ele é resulto do diálogo e conflito
de vozes (discursos) da oposição e do próprio sujeito do jornal, pois como lembra Bakhtin
(1998, p. 86) toda enunciação encontra o seu objeto sobre o crivo de outrem, pois o objeto já
está também sobre a tônica do outro, por isso, por ser orientado para o objeto, o discurso
penetra um meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos outros, ou seja, “ele (o
discurso) entrelaça com eles (discursos outros) em interações complexas, fundindo-se com
uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros”.
Desse modo, se mostra o diálogo entre as vozes de oposição e do próprio jornal,
evidenciando o dialogismo que é inerente à linguagem e, sendo tomado como momento base
da notícia e determinante de todos os seus valores. Esse diálogo trabalha para a construção de
uma posição axiológica que se instaurou e trabalha para a construção de Eduardo Campos
como um político de discurso contraditório, desrespeitoso com seus próprios aliado e em
desespero o que o caracterizaria como um candidato inapto a assumir o cargo ao qual se
propunha a assumir: presidente do Brasil.
Analisemos agora uma notícia do período pós-morte de Eduardo Campos afim de
mostrar que sua morte foi determinante no diálogo que se instaura no enunciado em questão,
resultando numa imagem do candidato diversa da anterior. Passemos a notícia:
Figura 2: Notícia do Diário de Pernambuco on-line posterior a morte de Eduardo Campos
3
Usamos sujeito do jornal porque o texto, embora tenha um autor, este não foi identificado, sendo assinado pelo
próprio jornal.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
301
Fonte:
http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/politica/2014/08/14/interna_politica,522601/eduardo-camposaliava-programas-sociais-e-a-visao-de-mercado.shtml
Antes, de procedermos a análise, faremos uma descrição sumária do contexto geral no
qual foi produzido o texto. Em treze de agosto de 2014, Eduardo Campos foi vítima de um
acidente fatal, o avião no qual ele se deslocava para cumprir compromissos políticos caiu e
todos os tripulantes vieram a óbito. Após esse evento, os discursos que circularam a respeito
de Eduardo Campos foram discursos que exaltavam sua trajetória política e que o mostravam
enquanto um candidato que tinha uma proposta consistente de Brasil, como podemos ver no
texto acima. Assim, essa notícia, posterior a morte de Eduardo Campos, e o discurso que se
apresenta por meio dela são completamente diferentes do que se mostrou no texto anterior.
No texto, assinado por Paulo Silva Pinto, há a caracterização de Eduardo como um
político que conseguia unir em seu projeto de governo uma visão de mercado, que agradava
os empresários, e os programas sociais, exemplo seria o passe livre para os estudantes, o que
agradava também a população que se beneficiaria desse tipo de programa. Desse modo, o
autor da notícia compara Eduardo Campos ao ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da
Silva em seu primeiro mandato, pois, segundo o autor, aquele, assim como este, era “um
político de esquerda, defensor de programas sociais e ao mesmo tempo alinhado com o
mercado”.
Desse modo, a imagem que se evidencia do candidato é de um político ideal, vistas ao
fato de se esperar que um presidente consiga desenvolver e trabalhar em prol de todos os
Nas fronteiras da linguagem ǀ
302
setores da sociedade. Percebemos um diálogo que trabalha para a construção dessa imagem
como fruto de ideologias socialmente difundidas: o discurso da esquerda politica; discurso do
bom político; discurso a respeito do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e etc. Desse
diálogo e conflito de vozes é que emerge a posição valorativa que se evidencia do autor em
relação ao objeto de enunciação, como defende Bakhtin (1998) ao dizer que os valores que se
mostram pela linguagem são frutos de um diálogo e conflito de vozes (discursos).
Assim, podemos dizer que a imagem, que outrora fora constituída, de um político em
desespero, com comentários controversos e ácidos foi substituída por uma imagem de um
político com proposta consistente de Brasil, isso como resultado do diálogo único que se
instaurou na enunciação.
Nesse momento enunciativo, é, também, inegável que a morte de Campos interferiu na
forma como a constituição de sua imagem política se deu, pois é uma prática social comum
exaltar a imagem de alguém após sua morte, lembrando apenas os pontos memoráveis de sua
trajetória. Essa voz (discurso de exaltação pós-morte) foi determinante para a construção do
diálogo que se instaurou por meio do enunciado em questão, sendo determinante de valores na
relação do eu (autor-sujeito) com o outro (Eduardo Campos).
Isso evidencia que, assim como defende Bakhtin (2003) os momentos que compõem a
base arquitetônica da linguagem são determinantes dos valores que estão presentes na
linguagem e que, assim como lembra Bakhtin (2006), em um enunciado sempre haverá a
indicação, ainda que velada, de um acordo ou desacordo em relação ao objeto de discurso.
5. Considerações finais
A partir da adoção da perspectiva bakhtiniana de estudos da linguagem que se detém
principalmente ao carácter dialógico como base para qualquer investigação dos fenômenos da
linguagem, vimos que a linguagem sempre se mostra como uma zona de diálogo e conflito
entre diferentes vozes e que esse diálogo é único em cada evento enunciativo. Vimos também
que as posições axiológicas assumidas podem mudar quase que completamente com o tempo,
em decorrência da inserção de alguma voz (discurso) que interfira diretamente no diálogo; e,
vimos que o sujeito e o ser que se mostra como evento, se constituindo em cada momento
enunciativo e sob influência diretas das ideologias das esferas discursivas da qual faz parte,
sendo esse ser elemento diretamente determinante da imagem do objeto de enunciação.
No caso analisado, percebemos que a morte de Eduardo Campos interferiu diretamente
na constituição jornalística de sua imagem pelo Diário de Pernambuco on-line: de político em
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
303
desespero a político com proposta consistente de governo. Essa mudança discursiva se mostra
como resultado de diálogos e conflitos complexos entre vozes que ocorrem na (e pela)
linguagem, e que refletem e refratam as ideologias de esferas discursivas por meio de um
sujeito. Em adição a isso, a sua morte fez com que se exaltasse os fatos memoráveis na
trajetória de Eduardo Campos.
Convém ressaltar que esta análise é apenas parte de uma pesquisa maior e representa
os primeiros gestos analíticos empreendidos na tentativa de sua compreensão. No entanto,
essas primeiras análises mostraram que houve mudança nos valores que se encontram nas
notícias, como fruto de diálogo e conflito de vozes, e isso ocasionou a mudança na imagem
constituída pelo jornal do político: o político que antes de sua morte era caraterizado como um
político em desespero, após sua morte, é caracterizado como um político que tinha uma
proposta consistente de Brasil.
A análise desse fenômeno confirma, assim como defendem os integrantes do Círculo
de Bakhtin, que a linguagem carrega sempre uma posição axiológica de um sujeito em relação
ao seu objeto de enunciação, resultando em um gesto, ainda que velado, de acordo ou
desacordo com esse objeto. E que esse gesto de (des)acordo pode ser mudado sob
interferência de fatores que compõem o diálogo único de cada enunciação. Por isso,
concluímos que qualquer empreendimento de tentativa de compreensão da linguagem deve ter
em conta todos os fatores que determinam os valores que são-lhe inerentes.
Referências
BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão
Tezza, para uso didático, com base na tradução inglesa de Michael Holquist e Vadim
Liapunov (“Toward a philosophy of the act”), publicada em Austin: University of Texas
Press, 1993.
_______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Tradução de Maria
Ermantina Galvão G. Pereira.
_______. O discurso no romance, In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética. São
Paulo: Editora Unesp, 1998, pp. 71-210.
_______. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, Hucitec (10ª. ed.), [1979], 2006.
TEIXEIRA, Marlene. O outro no um: reflexões sobre a concepção bakhtiniana de sujeito. In:
FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. Vinte ensaios sobre Mikhial Bakhtin. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2006, pp. 227 – 234.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
304
VOLOCHINOV, V. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João
editores, [1926], 2013. Tradução: João Wanderley Geraldi.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
305
O LIVRO DE LITERATURA INFANTIL NA SALA DE AULA:
UM OLHAR PARA A ESCOLHA FEITA PELO PROFESSOR
DA EDUCAÇÃO INFANTIL E DO 1º ANO DO ENSINO
FUNDAMENTAL
[Voltar para Sumário]
Andressa Silvestre Teixeira (UFRPE/UAG)
Leila Nascimento da Silva (UFRPE/UAG)
Introdução
A partir do contato com algumas escolas localizadas no município de Garanhuns foi
constatado, no cotidiano escolar, que há a leitura de textos literários. Normalmente, estas
leituras são realizadas pelo professor, assim como a escolha do material a ser lido. Ao
evidenciar tais fatos, nos indagamos quais os critérios adotados pelos professores Educação
Infantil e do 1º ano do Ensino do Ensino Fundamental para a escolha dos livros de literatura
infantil e de que forma esses critérios utilizados podem favorecer o letramento literário dos
educandos.
Consideramos o quanto é importante criar situações que induzam aos leitores a
interagir com o maior número possível de gêneros discursivos, pois este trabalho favorece a
formação profissional e desempenho como sujeito livre, ativo e social. No entanto, focaremos
nos gêneros literários, uma vez que estes, quando possuem um texto de qualidade, estimulam
o hábito da leitura, induzindo o leitor a explorar a realidade que o cerca de maneira
diferenciada, desenvolvendo sua imaginação criadora e ampliando significativamente o seu
universo cultural. Diante disto, realizaremos uma reflexão a respeito dos critérios de escolha
do livro literário lido em sala de aula. A partir do levantamento destes critérios, analisamos a
natureza dos mesmos buscando verificar em que esta escolha favorece a ampliação do
letramento literário dos educandos; verificamos também se estes critérios mudaram da
Educação Infantil para o 1º ano do Ensino Fundamental.
As escolhas docentes em relação ao livro de literatura trabalhado em sala
Nas fronteiras da linguagem ǀ
306
Para desempenhar bem o papel de leitor experiente e mediador, torna-se necessário
que o professor estabeleça os seus critérios para a escolha do livro de literatura a ser
explorado em sala de aula. Esse livro deve ser de qualidade e favorecer um bom trabalho de
compreensão textual.
Compreende-se que os primeiros livros contribuem significativamente, e são
determinantes quanto à iniciação literária contribuindo na aquisição de conhecimentos os
quais a escola trabalha. Sendo, por tanto, de extrema relevância que o processo de seleção
destes livros passe pelo clivo de um olhar criterioso por parte do professor, uma vez que esse
profissional também tem responsabilidades na formação de sujeitos leitores.
Brandão e Rosa (2010) elencam ao menos três critérios que podem ser adotados pelos
professores para a escolha do livro literário: O primeiro nos remete às afinidades estéticas do
professor; o segundo tem a ver com as preferências demonstradas pelas crianças e o terceiro
ao conhecimento do acervo, ao qual os estudantes tem acesso, seja dentro ou fora do ambiente
escolar.
Metodologia
O trabalho realizado possui natureza qualitativa. A pesquisa qualitativa, segundo
Richardson, et al (2008) “pode ser caracterizada como a tentativa de uma compreensão
detalhada de significados e características situacionais apresentadas pelos entrevistados, em
lugar da produção de medidas quantitativas de características ou comportamentos (p. 90)”.
Desta maneira não possuímos resultados padronizados. Realizamos uma reflexão com base na
escuta dos depoimentos docentes.
O estudo foi desenvolvido no município de Garanhuns, no qual foram selecionadas
três escolas públicas. Estas instituições de ensino foram sugeridas pela Secretaria de Educação
Municipal e possuíam ao menos um professor da categoria pesquisada (professores da
Educação Infantil e/ ou do 1º primeiro ano do Ensino Fundamental I).
O primeiro critério de seleção dos sujeitos da pesquisa consistiu em identificar, através
de uma conversa informal, aqueles que desenvolviam um trabalho com a literatura infantil.
Assim, foram selecionados cinco professores da Educação Infantil e cinco professores do 1º
ano do Ensino Fundamental que alegaram trabalhar em sala de aula a leitura de livros
literários.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
307
Aos sujeitos pesquisados não foi exigido a incorporação ao quadro efetivo da escola,
apenas a condição de ser regente da sala de aula em questão.
PROFª 1
PROFª 2
PROFª 3
PROFª 4
PROFª 5
PROFª 6
PROFª 7
PROFª 8
PROFª 9
PROFª 10
ETAPA
QUE FORMAÇÃO
ENSINA
Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós em psicopedagogia.
Educação Infantil Curso de Licenciatura em Língua
Portuguesa. Pós graduação em
Língua Portuguesa (relatou algo
sobre contos de fadas)
Educação Infantil Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Cursando a pós graduação.
1º Ano
Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós- graduação em supervisão
pedagógica.
1º Ano
Graduação em Língua Portuguesa.
Pós-graduação em psicopedagogia.
1º Ano
Magistério.
1º Ano
Curso de Licenciatura em Pedagogia.
1º Ano
Curso de Licenciatura em Pedagogia.
Pós-graduação em administração
escolar e gestão pedagógica
TEMPO DE
ENSINO
7 anos
7 anos
13 anos
14 anos
17 anos
13 anos
08 anos
28 anos
10 anos
10 anos
Foi empregada para coleta de dados a entrevista semiestruturada. Conforme Lakatos e
Marconi (2010), a entrevista é definida como: “[...] encontro entre duas pessoas, a fim de que
uma delas obtenha informações a respeito de determinado assunto, mediante a conversação de
natureza profissional” (p.178). Aos entrevistados foram esclarecidos somente os objetivos da
pesquisa e o roteiro da entrevista.
ROTEIRO DA ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA
•
De que maneira você busca promover o acesso à literatura infantil aos seus
alunos?
•
Você tem fácil acesso aos livros de literatura? Justifique sua resposta.
•
Em caso de resposta negativa em relação à questão anterior, perguntar: A escola
não disponibiliza um acervo de livros de literatura, por que eles não chegaram ou por
que estão guardados? Justifique sua resposta.
•
Com que frequência você ler livros de literatura infantil para seus alunos?
•
Você considera essa frequência de uso boa ou gostaria de promover um maior
acesso aos livros? Justifique sua resposta.
•
Quais critérios você geralmente utiliza para escolher os livros que leva para a
Nas fronteiras da linguagem ǀ
308
sala? Por que você usa esse(s) critérios e não outros?
•
Relate uma situação de leitura de um livro de literatura realizada em sala,
detalhando desde o momento em que você escolheu o livro até o momento em que
você trabalhou em sala (não esqueça de dizer qual o livro escolhido). Após a resposta
perguntar: Qual critério você adotou nessa ocasião? Você conseguiu pensar antes em
como seria esse momento de leitura ou teve que resolver na hora como iria fazer, o que
iria explorar com os alunos?
As informações coletadas através dessa primeira seção de entrevistas foram tratadas à
luz da metodologia de análise de dados qualitativos denominada análise de conteúdo
(BARDIN, 2002), pois a consideramos uma via possível para a revelação (reconstrução) do
sentido dos nossos achados. Assim a análise de conteúdo se refere a:
[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
obter indicadores quantitativos ou não, que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) das mensagens.
(BARDIN, 2002, p. 160)
Uma das características, portanto, que define essa abordagem é a busca do
entendimento da comunicação entre os homens, apoiando-se no (re) conhecimento do
conteúdo das mensagens.
Resultados
Para a análise dos depoimentos docentes, nos apoiamos nos possíveis critérios para
escolha do livro de literatura apontados por Brandão e Rosa (2010). Realizamos a leitura das
entrevistas, buscando identificar se as docentes mencionavam tais critérios e quais outros, não
destacados pelas citadas autoras, haviam aparecido nos depoimentos de nossas professoras.
A partir dessa análise foi possível identificar cinco critérios. Alguns destes mais
mencionados que outros, como podemos evidenciar no quadro abaixo:
Quadro nº 2
Critérios elencados pelas professoras da Educação Infantil e do 1º ano do Ensino
Fundamental.
Critérios mencionados
Professoras
1
1) As afinidades estéticas do
professor
2
3
4
5
6
X
7
8
9
10
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
2)
As
preferências X
demonstradas pelas crianças
3) Conhecimento do acervo
X
X
4) Preocupação social no que
tange ao desenvolvimento de
valores
5) Diretrizes estabelecidas pela
Secretaria
de
Educação
Municipal.
X
X
X
X
309
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Como pode ser visto houve uma variedade de critérios e estes se remetiam a aspectos
diferentes: ora o foco era na criança ora no conhecimento do professor ou nas orientações
oficiais para o seu fazer pedagógico. Também notamos que as professoras citavam critérios
diferentes ao mesmo tempo.
Abordaremos cada um desses critérios mencionados, apontando os mais recorrentes.
Apresentaremos alguns fragmentos das entrevistas realizadas, buscando melhor esclarecer
estes critérios e compreender as escolhas docentes com relação ao livro literário.
1)
As afinidades estéticas dos professores
O primeiro critério abordado por Brandão e Rosa (2010) – As afinidades estéticas do
professor – leva em consideração as próprias exigências estéticas do professor. Este critério
considera a obra como um todo, isto é, o texto, as imagens, que despertam sensações e
produzem efeitos no momento da leitura. Apenas por uma professora. Vejamos abaixo:
Professora 6, do 1º ano do Ensino Fundamental:
Até eu mesma gosto de estar apreciando esses livros. Gosto muito de ler estes livros. Então
assim, esses livros. Eu sinto que eles percebem o meu gosto pela leitura, no dia a dia e eu vou
descobrindo com eles assim o agradável dessas leituras, os motivando, depois eles pedem: Professora deixa eu olhar, deixa eu olhar! É uma briga na sala, para depois cada um
manusear pessoalmente.
O depoimento da docente demonstra entusiasmo com relação à leitura. Como a própria
fala revela, esse entusiasmo reflete diretamente nos ouvintes que se mostram ansiosos para
manusear o livro e desfrutar de sua leitura.
Assim, reconhecemos que a professora 6 considera essencial à prática docente a
mediação da leitura, tendo como propósito a formação de novos leitores.
Concebemos,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
310
portanto, que à medida que o leitor, melhor dizendo, que o professor leitor aprimora e
desenvolve suas estratégias de leitura, este também aperfeiçoa suas escolhas estéticas, de
modo que os livros escolhidos irão se adequar aos seus padrões eruditos estéticos.
Ao compartilhar suas afinidades estéticas, o professor acaba auxiliando no
desenvolvimento da sensibilidade das crianças.
2)
As preferências demonstradas pelas crianças
Conforme mencionado acima, o segundo critério abordado por Brandão e Rosa (2010)
são as preferências demonstradas pelas crianças. Este critério leva em consideração a opinião
dos ouvintes, neste caso as crianças. Existe, portanto, uma preocupação em tornar o momento
de leitura agradável. Todas as professoras da nossa pesquisa percebiam bem a importância de
levar em consideração os interesses infantis na hora de selecionar o livro. Observaremos nos
depoimentos a seguir que, ao optar por este critério, a leitura se tornava mais interativa e,
consequentemente, mais proveitosa, facilitando a formação de leitores.
Este critério, como pode ser visto no Quadro nº 2, foi o mais citado pelas professoras
participantes desta pesquisa, visto que todas elas evidenciaram, ao menos uma vez em seus
depoimentos, a preocupação em tornar o momento de leitura agradável para os seus discentes.
Vejamos um dos depoimentos:
Professora 4 da Educação Infantil:
Eu adequo a história a o contexto deles e a faixa etária. A gente sabe que cada livro tem a
faixa etária adequada né?! Livros muito longos, ai se for muito longo eu divido a história, se
o livro for curtinho a história pequenininha com bichinhos porque eles estão na fase de livros
com bichinhos né?! História de animais que é o que chama a atenção. Com crianças que tem
um contexto de acordo com o deles, ai eu escolho assim. Geralmente a maior parte dos livros
que eu li até agora foram de animais, historinhas de bichinhos porque é o que chama mais
atenção.
A docente expõe claramente sua preocupação, seu critério de escolha do livro literário.
Em suas escolhas prevalece a leitura de histórias, porque estas “chamam” a atenção das
crianças, ou seja, existe o intuito de que o momento de leitura seja agradável para os seus
alunos. Ao observar a fala da professora 2, também da Educação infantil, encontramos mais
uma característica deste segundo critério – As preferencias demonstradas pelas crianças. Para
identificar as preferências dos seus discentes, as professoras expõem os mesmos ao acervo
escolar, como bem sugeriu Brandão e Rosa (2010):
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
311
Professora 2 da Educação Infantil:
Eu procuro sempre deixar eles à vontade na sala para escolherem que material eles querem
manusear, seja livros, seja revista e tem lá um armário, não tem portas o armário e os livros
ficam lá sempre, sempre a disposição deles. Então, entre uma atividade e outra sempre têm
aqueles que terminam a atividade com mais facilidade. Terminou a atividade: - Tia, posso
olhar uma revista? – Tia, posso olhar um livro? - Pode! Ficam bem à vontade.
Ao adotar esta atitude a professora proporciona uma maior interatividade das crianças
com os livros e aproxima os discentes do mundo literário, os auxiliando no desenvolvimento
de seus próprios critérios de escolha. Assim, ela pode identificar, através destes momentos, o
interesse demonstrado com relação a determinadas temáticas, bem como autores e gêneros
literários. Constatamos esta atitude, também no depoimento da professora 8 do 1 ano:
Eu me reúno com eles, e vou escolhendo aqueles que eles gostam mais, os de mais fácil
compreensão é o que a gente trás.[...] Porque tem que elevar informação para eles né, de
literatura que geralmente é esquecida né, geralmente, a gente conta, contava mais outras
histórias. Hoje não! A literatura tá inserida em sala de aula.
Através do depoimento da professora 8, constatamos uma preocupação em escutar a
opinião das crianças, utilizando estes momentos para obter e oferecer informações,
entendendo a importância de exercício do seu papel de mediadora literária.
No depoimento da professora 2, da Educação Infantil, também é exposto a
preocupação em identificar as preferências dos discentes como forma de estimular e
desenvolver o gosto pela leitura. Ao relatar como era realizada a escolha do livro literário,
perguntamos a docente os motivos que a levaram a adotar este critério:
Professora 2 Educação Infantil:
Acho que facilita para o aluno, como ele ainda não lê, eles se interessam muito por essa
parte visual do livro, pela parte tátil também. Aqueles livros que produzem sensações, que
estimulem os outros sentidos, não só a audição. Livros que eles possam tocar e sentir outra
textura, aqueles livrinhos musicais, aqueles livros grandes eles gostam muito. Quando você
chega com aquele livro enorme: - Que livrão! Eu acho que isso estimula muito eles.
Conclui-se que os livros que despertam um maior interesse a faixa etária assistida na
Educação Infantil são os que contemplam a necessidade de compreender o mundo. “Logo,
terão muito mais sentido para as crianças desta idade livros de borracha (infláveis e coloridos)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
312
ou livros de pano (macios e bem costurados) que possam, por exemplo, ser manuseados pela
própria criança [...]” (KAERCHER, 2001, p.84).
3)
Conhecimento do acervo a que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela)
O terceiro critério apontado por Brandão e Rosa (2010) é o conhecimento do acervo a
que os estudantes têm acesso (na escola ou fora dela). As autoras remetem-se aos Programas
Nacionais como PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola, que tem distribuído uma
grande diversidade de livros de literatura para as escolas. Estes precisam ser conhecidos para
serem melhores utilizados no contexto escolar. É preciso que, nas formações continuadas, os
professores tenham acesso direto ao que chega à escola como material de leitura, podendo
avaliar e estabelecer os seus critérios em relação ao acervo disponível.
Com relação ao município de Garanhuns, em nossa pesquisa, evidenciamos a forte
referência ao PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, principalmente, por
parte das professoras do 1 ano. Várias docentes mencionaram o acervo disponibilizado para a
escola pelo programa e afirmaram conhecer os livros que compõe tal acervo. No entanto, ao
relatar o título de alguns livros utilizados nos momentos de contação de histórias, foi possível
identificar que o acervo, ao qual as docentes estavam se referindo advém do Programa obras
complementares na escola.
Estas Obras Complementares visam auxiliar a prática docente, principalmente, no que
diz respeito ao processo de alfabetização na perspectiva do letramento, e consequentemente a
ampliação cultural das crianças.
A seguir um dos depoimentos que se remete ao conhecimento desse acervo para a
tomada de decisão sobre qual livro trabalhar:
Professora 8 (1º ano)
O acervo do PNAIC dá essa liberdade da gente emprestar, mas são trinta livros, na verdade
eu tô com 48, vou retificar, a gente ganhou uma caixa com trinta e depois a prefeitura
disponibilizou outro acervo com mais 18 ai eu tô com 48, só que assim são textos longos, tem
alguns que são textos longos como eu tô com o primeiro ano eu creio que o ideal, seria
melhor textos mais curtos, que ai estimularia ainda mais a vontade deles, deixaria eles ainda
mais seguros uma quantidade menor de texto a ser lido.
Segundo Brandão (2006), o conhecimento do acervo disponível a escola, por parte do
professor, pode se caracterizar como uma importante estratégia para que os discentes tenha
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
313
acesso a um variado repertório de gêneros literários. Identificamos claramente o terceiro
critério no trecho abaixo, no depoimento da Professora 3, da Educação Infantil:
Agora, eu acho assim, que o acervo para a educação infantil, o que vem para as escolas,
deveria ser melhor, às vezes vem livros assim que eu acho de auto- entendimento, assim é
complicado para eles entenderem. Aí, esses que vem assim, eu sempre vou deixando para lá,
eu faço uma seleção não é?! Mas os que vêm mesmo assim para a escola, eu acho que
deveria para Educação Infantil ser livros de outra qualidade. Porque vem assim, tanto vem
para o Fundamental como vem para a Educação Infantil, tudo igual, né?! E deveria ser
selecionado, mas o professor faz esse trabalho. Acredito que todo professor ele seleciona o
que é melhor para a sua turma.
Como comenta a professora, o professor tem a responsabilidade de selecionar este
material, assim como avaliá-lo e escolhê-los antes mesmo de chegar na escola. Através do
depoimento evidenciamos o conhecimento da professora em relação ao acervo escolar, mas
também uma insatisfação com relação ao mesmo.
4)
Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores
O quarto critério – Preocupação social no que tange ao desenvolvimento de valores – foi
estabelecido a partir do depoimento de três das professoras pesquisadas, como podemos
evidenciar no quadro 2, sendo duas delas da Educação Infantil e uma do
1º ano do Ensino Fundamental. Este critério remete a função social da escola. Professora 4,
Educação Infantil:
Porque na minha sala eles estão muito desobedientes e a gente sabe que contos de
fadas, desde que sugiram, foram inventados, criados pra tipo moldar as pessoas e
não era para crianças, era para adultos né. Ai como eles estão desobedientes, a pes-
soa fala eles não tão obedecendo na escola nem tão obedecendo em casa porque as
mães vem relatar. Ai eu contei a história de Chapeuzinho justamente para enfatizar
na hora a obediência, que precisa obedecer. Uma questão de moldar através da
história. (risos)
Com relação à literatura que aborda temas de valores sociais, como relatado
anteriormente, Teberosky e Colomer (2003) alertam que os precisamos ter cuidado quanto ao
excesso destas leituras na sala de aula. Elas classificam esses livros como “livros
prescritivos”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
314
Considerando esta questão, Brandão e Rosa (2010) comentam que se corre o risco de ler
textos pouco atrativos para as crianças, mal escritos e que não despertem emoções, a
sensibilidade infantil, podendo ainda excluir obras clássicas que abordam sentimentos
humanos fundamentais.
5)
Diretrizes estabelecidas pela secretaria de educação municipal
O quinto critério – Diretrizes estabelecidas pela Secretaria de Educação Municipal –
também foi construído a partir das entrevistas realizadas. A Secretaria Municipal realizou a
implantação de um projeto, que abrange da Educação Infantil ao 5º ano do Ensino
Fundamental. Este projeto intitulado “Despertar” foi estabelecido em todas as escolas
públicas de responsabilidade municipal.
O projeto “Despertar” determina uma rotina a ser seguida. Todo o projeto circunda
sobre temas geradores quinzenais, os quais devem ser vivenciados em sala de aula. Assim,
cabia a todas as entrevistadas a aplicação deste projeto durante todo o ano letivo.
A partir das entrevistas foi possível levantar alguns temas geradores trabalhados no
projeto. Vejamos o relato da Professora 5, da Educação Infantil:
[...]Tem dois temas, tipo... É... Teve a história de Garanhuns, tem é sobre bulling, essas
coisas . Então a gente procura histórias que falem alguma coisa alguma coisa a respeito
daquele tema que a gente tá trabalhando na quinzena, é por quinzena cada tema. A gente
trabalha fazendo isso.
Farias e Dias (2007) expõem que “As secretarias não têm o papel de elaborar
propostas pedagógicas, mas a responsabilidade de contribuir, subsidiando tanto as IEI1
públicas quanto as privadas de seu sistema nessa elaboração.” (p. 27). Assim, cabe às
secretarias o acompanhamento, a supervisão, bem como a avaliação do processo de
elaboração e implementação das propostas, de maneira a identificar necessidades e
desenvolvendo estratégias que possibilitem o avanço e a melhoria destas propostas.
No depoimento da Professora 10, do 1º ano, também identificamos a preocupação em
seguir as diretrizes do referido projeto:
Bem, o tema gerador tem que ser vivido, ele tem que ser aprofundado na sala, então o ideal é
que a gente não fique só fixado no cartaz que a gente leva. [...] E também relacionado com o
1
IEI – Instituições de Educação Infantil.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
315
tema gerador, como a gente não vai encontrar 15 dias livros sempre que tenha haver com
aquele tema ai eu vou intercalando.
Como pode ser visto, as professoras de certa forma ficam presas ao tema gerador e
como precisam seguir o projeto acabam, por vezes, utilizando como único critério de escolha
dos livros a serem oferecidos aos alunos, o fato destes tratarem algo sobre o tema da
quinzena.
Acreditamos que esse critério de escolha é limitador e pode não favorecer a ampliação
do letramento literário dos alunos. Os professores podem, ao se prenderem no tema,
esquecerem de observar outras questões importantes, tais como a qualidade dos textos e os
interesses dos alunos.
Por fim, nos parece que a leitura no 1º ano do Ensino Fundamental está muito mais
associada à exploração dos conteúdos estabelecidos para tal ano de escolaridade, ou seja, a
proposição de atividade de alfabetização, do que necessariamente a uma preocupação com a
formação de leitores ativos.
Com relação às professoras da Educação Infantil, identificamos uma maior
preocupação em tornar o momento de leitura o mais lúdico possível, fato que se dá porque a
prática da Educação Infantil está muito mais associada ao lúdico, entendendo-se que a
aprendizagem pode se dá através da brincadeira.
Referências
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BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. A leitura de textos
literários na sala de aula: é conversando que a gente se entende. In: PAIVA, Aparecida;
MACIEL, Francisca; COSSON; Rildo. (Orgs). Literatura: Ensino Fundamental. Coleção
Explorando o Ensino; v. 20. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Básica, 2010.
BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland de Sousa. Entrando na roda: as
histórias na Educação Infantil. In: BRANDÃO, Ana Carolina Perrusi; ROSA, Ester Calland
de Sousa. (Orgs). Ler e escrever na Educação Infantil: discutindo práticas pedagógicas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010. (Língua Portuguesa na Escola; 2).
BRANDÃO. Ana Carolina Perrusi O ensino da compreensão e a formação do leitor:
explorando as estratégias de leitura. In: BARBOSA, Maria Lúcia Ferreira de Figueiredo;
SOUZA, Ivane Pedrosa de (Orgs). Práticas de leitura no Ensino Fundamental. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
316
FARIA, Vitória Líbia Barreto de; DIAS, Fátima Regina Teixeira Salles. Currículo na
Educação Infantil: diálogo com os demais elementos da Proposta Pedagógica. – São Paulo:
Scipione, 2007.
GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas,2009.
LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
científica, 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
RICHARDSON, Roberto Jarry, et al. Pesquisa social: métodos e técnicas, 3ª ed.São Paulo:
Atlas, 2008.
TEBEROSKY, Ana; COLOMER, Teresa. Aprender a ler e a escrever – Uma proposta
construtivista. Trad.: MACHADO, Ana Maria Neto. – Porto Alegre: Artmed, 2003.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
317
PEDRAS SOBRE RIOS: O LUGAR DO CORPO EM
RAKUSHISHA DE ADRIANA LISBOA
[Voltar para Sumário]
Anne Louise Dias (PósLit/TEL/UnB)
Pensar o contemporâneo na literatura brasileira se presentifica como a tentativa de
lidar com uma urgência do escritor brasileiro em se relacionar com a realidade histórica,
muito embora ele reconheça a dificuldade de sua tarefa. Para Schøllhammer (2011), a
insistência do presente temporal, a “agoridade” com a qual se relaciona a literatura brasileira
fragmenta a produção contemporânea em diversos rumos, frutos de diferentes formas de
questionamentos da consciência história. Costumeiramente polarizadas, duas vertentes
surgiriam, uma primeira ligada a brutalidade do realismo marginal, e uma segunda que
“aposta na procura da epifania” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.15), no mergulho do cotidiano
subjetivo. A oposição entre duas estéticas literárias é, entretanto, reducionista, e a literatura
que hoje trata de problemas sociais não exclui a dimensão pessoal e íntima, ao mesmo tempo
que a experiência subjetiva não ignora a turbulência do contexto social e global.
Por entre o embate estético, parece surgir na literatura brasileira um redesenho de
fronteiras e a mobilidade sobremoderna, a qual se referira Marc Augé, adentra suas
narrativas. Zilá Bernd (2007), aliás, anteriormente apontou e discutiu como a mobilidade
cultural caracteriza o imaginário das Américas, em particular a América Latina, uma
mobilidade tal que abre espaço para a aproximação de culturas através de processos
transculturais. O florescimento de inúmeros romances memorialistas e depoimentos
consistem, no Brasil, uma larga produção de biografias e relatos de estrangeiros que pleiteiam
suas vivências de deslocamento geográfico e cultural. O histórico brasileiro de imigração
permitiria que nossa literatura se preocupe com as diversas facetas do homem em contraste
com o outro, e o que se poderia chamar de literatura de imigração emparelha-se também com
a aproximação cultural com o Oriente, muito embora sejam esparsos os exemplos de versos
ou prosas que representem etnias orientais. Segundo o levantamento de Chiarelli1, poderíamos
1
Apud TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
318
citar Oswald de Andrade e Mário de Andrade, os poetas Haroldo de Campos e Paulo
Leminski, e, na prosa contemporânea, Bernardo Carvalho e, finalmente, Adriana Lisboa.
Nascida no Rio de Janeiro, Adriana Lisboa escreve Rakushisha em 2007, obra fruto de
uma bolsa pesquisa da Fundação Japão. O romance entrecortado por fragmentos narrados
tanto em primeira quanto terceira pessoa mescla diferentes tempos e espaços desvelando
paulatinamente as histórias de Celina e Haruki. O encontro entre os dois protagonistas, não
por acaso em um metrô, faz surgir em meio ao contraste entre Brasil e Japão as memórias
túrgidas de um passado que se recusa a ser esquecido.
É a viagem ao Japão que os une e os põe em contato não apenas com a existência do
desconhecido, representado pela língua e os costumes japoneses, mas também com seus lados
mais íntimos. Muito pode ser dito sobre Haruki no que se refere à responsabilidade que sua
aparência japonesa atribui. Sem saber falar japonês e completamente afastado da cultura
nipônica, Haruki assume o papel de japonês no Brasil e de brasileiro quando no Japão.
Duplamente desterritorializado, ele se sente um corpo estranho (LISBOA, 2014, p. 20) dentro
da Embaixada do Japão. Para nós, no entanto, o choque cultural de Haruki com suas raízes
japonesas não se dará somente pelo seu entre-lugar identitário, mas fusionar-se-á às
escavações mnemônicas presentes em Rakushisha.
O romance de Adriana Lisboa faz do deslocamento Brasil-Japão o assunto e o mote de
seu enredo. É a quebra do cotidiano, o descolamento do chão que propulsionam os
acontecimentos de Rakushisha. É de nosso interesse, portanto, buscar quais implicações a
narrativa de viagem aporta a fim de acompanharmos a construção do sentido da experiência
subjetiva que, em Rakushisha, parte de um entrelaçamento imperfeito entre corpo, alma e
memória, e de um continuum entre passado, presente e futuro.
Por entre os fragmentos que documentam e desvelam as histórias de Celina e Haruki,
estão os escritos de Bashō, importante poeta japonês do período Edo no Japão. Como afirma
Cury (2012), esses fragmentos “mesclam-se na mesma busca, no mesmo caminho de
reconhecimento identitário do narrador, a produtividade das sendas propostas por Bashō”. O
livro de haicais serve ainda como um guia da narrativa: Haruki decide ir ao país de seus
ancestrais porque foi convidado a criar os desenhos de uma edição traduzida que sairia no
Brasil; Celina conhece Haruki porque ela se interessa pela quase comovente figura do japonês
que lia poesias japonesas – embora ele não soubesse ler em japonês - sozinho dentro do metrô
do Rio de Janeiro. Ademais, o livro sela o reencontro de Haruki com sua antiga amante
Yukiko – a então tradutora dos poemas – e se torna a bússola de Celina durante sua estadia
em Kyoto, que decide refazer o itinerário de Bashō.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
319
A introdução da poesia japonesa na narrativa de Rakushisha revela o quão importante
é o vasculhamento do passado. Os trechos do diário de Bashō, também relatos de uma
viagem, são extratos de sentimentos e memórias do poeta. O íntimo de seus relatos transborda
por sobre as próprias recordações de Celina e Haruki constituindo um romance consciente de
si, no qual o deambular de seus personagens representa o próprio desenvolver da narrativa.
Por entre as ruas labirínticas de Kyoto, para Celina, e Tóquio, para Haruki, vão se
materializando experiências passadas; o caminhar dos personagens se transforma aqui como
um longo processo de apropriação do sistema topográfico, nos termos de Michel Certeau, que
busca não apenas o reconhecimento físico das ruas, mas a criação de um espaço de
enunciação. A definição desse espaço é essencial para o desenrolar do romance e serve como
resposta aos sentimentos oblíquos e turvos de ambos os personagens, ambos perdedores e
perdidos – Haruki, porque perdeu sua amante; Celina, porque perdeu sua filha.
O ato da viagem repentina ao Japão, curiosa decisão que leva Haruki a se perguntar
“se ela [Celina] fugia, se corria, se acorria, se acudia, se esquecia, se lembrava, se fechava
os olhos, se os abria” (LISBOA, 2014, p.77), é, em verdade, o primeiro indício de um exílio
pessoal voluntário que, embora tenha tido supostamente o objetivo de fugir do passado, surge
como oportunidade de redefinição. As redes da cidade desconhecida, excludente ainda com
seus cinco sistemas de escrita distintos, vão pouco a pouco construindo as histórias múltiplas
dos protagonistas e desvelando seus fragmentos de trajetórias. Na lojinha de papel, tudo
começa, “comprei o caderno. O caderno se tornou um diário” (LISBOA, 2014, p.35). Celina
escolhe um pequeno manual de turistas para guiar seus passeios, e é com ele que ela percorre
ruas, lojas, pontos turísticos, reconhecendo sua própria história em rostos e muros
desconhecidos.
Como seria possível que se sentisse em casa ali, se não entendia nem mesmo as
inscrições nas placas ao seu redor? Se não tirava sentido das palavras ditas ao seu
redor?
Mas era uma casa. Era uma casa segura. Não havia o que temer em Kyoto, na
solidão que tinha em Kyoto, aquela afável solidão acompanhada. (LISBOA, 2014,
p.57)
Ultrapassado o abismo entre a clandestinidade primeira e a criação e consequente aceitação do
Japão como um espaço privado e amparador, uma casa segura, as imagens da cidade vão
trazendo à tona o que Celina não esperava lembrar.
O caminhar, afirma ainda Certeau, é ter falta de lugar, é o processo indefinido de estar
ausente e à procura de um próprio. Todo o romance de Adriana Lisboa parece fixar-se em
uma intuição singular de movimento. A importância à qual Celina atribui aos pés,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
320
mencionados quase obsessivamente ao longo da narrativa, sugere ainda uma concepção do
andar que ultrapassa o sistema físico-motor e refere-se ao um movimento cinético no qual a
carne – no caso específico do romance, os pés - é capaz de tornar o corpo presente no mundo:
Um dia Celina se deu conta de que o que mais lhe importava em seu corpo eram os
pés. Onde seus pés estivessem no momento estaria sua alma, ou como quer que se
chamasse, ela pensava, aquela parte do corpo que sempre ameaçava exceder o
próprio corpo. (LISBOA, 2014, p.29)
Quase como um esquema perfeito do que Merleau-Ponty afirmou ao estudar o espaço do
corpo, percebemos em Rakushisha que o corpo se caracteriza como uma condição de
possibilidade de percepção do estar no mundo, que se entrelaça à alma, ao intangível, e que se
complica e implica por entre vísceras:
Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e
as sinapses transmitindo a intenção – a intenção não, a determinação, a ordem do
cérebro. Esse déspota. [...] Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou
sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso
das minhas pernas. (LISBOA, 2014, p.13)
A percepção do corpo e de seus componentes vai lentamente atrelando o lado material dos
músculos e dos ossos ao ato intáctil do viver – relação intermediada pelo cérebro, que, ainda
segundo Merleau-Ponty, constrói e encena o espaço do mundo. Ao centrar seu romance na
imagem dos pés, tanto em sua acepção literal quanto metáfora de viagens e do deslocamento
por entre as ruas, Adriana Lisboa poria em jogo uma personagem que, através do corpo,
confronta o mundo, seu passado, e também se faz parte dele. É por isso, talvez, que Celina
não compreenda como as japonesas costumavam equilibrar-se com seus tamancos geta e
conseguiam “caminhar daquele modo, com dezessete centímetros de distância entre sua pele
e o chão” (LISBOA, 2014, p.59). O corpo, a carne, inúmeras vezes colocados em posição
dicotômica à pureza da alma, deixa de ser visto como maquinaria e passar a ser analisado em
todas suas instâncias. Para Lisboa, existe uma espécie de justaposição de todos os campos do
corpo, e os pés sobre pés figuram uma metáfora adequada para o romance; uma metáfora que
propõe estabelecer e reunir no corpo feminino (com Celina, e também com Yukiko, a amante
de Haruki) o centro de toda a experiência do eu. A partir de uma percepção tríplice do
esquema corporal o corpo adquire três modos de representação, tal qual teorizara Bergson, a
carne, a imagem do corpo e o cérebro; os três de funcionamento diverso, mas
interdependentes.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
321
Dentro de uma narrativa de viagem é provável que pareça contraditória a necessidade
de colar-se ao solo, de manter-se ligada a uma estrutura fixa e imutável. Entretanto, a obra de
Adriana Lisboa é construída sobre um alicerce de pequenas e importantes dicotomias que,
longe de serem paradoxais, são complementares entre si. Se Celina deseja a união entre corpo
e chão, ela também não consegue superar a cisão imperfeita entre corpo e alma, instâncias
que, em Rakushisha, sobrepõe uma a outra. A interferência do que Celina considera alma é
também um peso, mas
Não era um peso de ossos, músculos, vísceras, gordura. Era um peso de peso. De
essência. A balança podia dizer 49 quilos: a balança não entendia nada de peso. Ali
dentro do estômago estavam pelo menos tantos outros, multiplicados por dez, por
cem. (LISBOA, 2014, p. 117)
Celina exibe um tipo de sensibilidade moderna, na qual o passado funciona como um fardo
para o presente e para o futuro. Mais do que isso, o peso do corpo permitia a reminiscência
contínua, pois se faz absolutamente, fisicamente presente, ao mesmo tempo em que
impossibilita a imagem do futuro. “O futuro não existia mais. O passado sim, embora fosse
esfumaçado e móvel. Mas o futuro não” (LIBSOA, 2014, p.29). Ironicamente, o passado é
movediço, o futuro imutável.
Longe de ser relicário, o passado é, em Rakushisha, um interventor. Ele se habilita a
transformar a viagem de Celina e Haruki, e moldado em memória, aparece em momentos
oportunos que engatilham uma ação de mão dupla: a memória é evocada pelo espaço da
narrativa, mas torna-se, em si, também lugar de enunciação e é capaz de mudar a forma pela
qual Celina e Haruki enxergam seus arredores. As bicicletas japonesas fazem Celina lembrarse simultaneamente de seu ex-marido e sua filha; Haruki, por outro lado, vê em Kyoto as
implicações da morte de seu pai e do fim de seu romance extraconjugal. É somente a partir
dessas considerações que os protagonistas do romance de Adriana Lisboa são capazes de
caminhar em direção a uma certa absolvição do passado.
Notemos, portanto, que corpo e cidade – por que não o corpo da cidade? –
possibilitam, em Rakushisha, o espaço do eu. Por um lado, o Japão oferece para os
personagens da trama a possibilidade de um caminho em branco, um canvas vazio que vai se
preenchendo concomitantemente das manchas do passado e dos temores do futuro. É por isso
que no primeiro dia de estadia de Haruki,
Ele dormia, na primeira tarde nesta cidade. Naquele momento não era de ninguém,
não era sequer de si mesmo, ele era antes uma reconstrução. Um romance. Uma
Nas fronteiras da linguagem ǀ
322
ficção por detrás dos olhos fechados. Havia uma dor guardada em algum lugar?
(LISBOA, 2014, p.69)
Erige-se ali a oportunidade da reinvenção, que se deseja atrelar ao próprio fazer narrativo.
O corpo dos personagens, por outro lado, não é exposto como uma tábua rasa, mas
está pleno. Encarnação de experiências passadas, o corpo carrega o que a alma sofre. E é por
isso que o toque, talvez tão mais do que a cidade, revira e faz ressurgir dentro da narrativa o
que nunca havia sido esquecido pela memória individual dos protagonistas. Embora Adriana
Lisboa tenha permitido pequenos indícios ao longo da trama sobre o que realmente teria
acontecido com a filha de Celina, o início da revelação última surge como pancada, como dor.
Ao preparar café, Celina esquece-se de checar a temperatura da chaleira e crava sua mão no
ferro quente. O intermédio é tão importante que existe uma demarcação 24 de junho, após a
queimadura (LISBOA, 2014, p.128) no diário de Celina. Demarcação justa, pois
Esse é o meu grande engodo. Minha dor é minha: marca na pele, feito a vermelhidão
da queimadura. Existe como uma visita na sala de estar. A dor, senhorinha sentada
no canto do sofá. (LISBOA, 2014, p.128)
É a marca vermelha na pele, o ardor quente da dor que faz com que Celina comece a
explicitamente contar como se deu o acidente de carro que matou sua filha, acidente causado
pelo próprio ex-marido. A memória é aqui mediatizada pelo corpo, e do corpo far-se-á surgir
as respostas.
O mesmo ocorre, aliás, durante a contemplação do corpo de Yukiko, a amante de
Haruki. Enquanto Celina imagina como deve ser a tradutora japonesa dos poemas, é a partir
de imagens corpóreas aparentemente insignificantes pelas quais ela vai re-montando a
presença de Yukiko. Aqui o corpo imaginado cria uma ponte, enquanto ele é marcado a ferro
pelas experiências passadas, essas marcas se tornam signos e supõem a existência atual de
cada um dos personagens. Não é, portanto, surpreendente perceber que Celina recria Yukiko
também através de uma imagem da dor, de mordidas de um cão que, talvez como Celina e
Haruki, só sabia viver mordendo.
Haruki, ele próprio, também se questiona sobre os limites do corpo ao implantar as
coisas do espírito dentro de cada uma de suas células:
Era possível fazer essa divisão entre as coisas do corpo e as do espírito, ou ambas
estavam (eroticamente) imbricadas, como a linha melódica de uma fuga? Mas o
espírito, Haruki pensava, morava nas células nervosas, e o corpo era substância
volátil, como álcool – apenas demorava um pouco mais para se volatilizar.
(LISBOA, 2014, p.78-79)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
323
A volatilidade do corpo poderia aqui imbuir um símbolo de morte, perfeitamente aceitável
dentro da narrativa, porém parece trazer consigo uma outra significância, tão importante
quanto. Não são raras as vezes em que Haruki não enxerga o corpo físico de Celina, mas a vê
como um holograma a ser recuperado (LISBOA, 2014, p.38), um fantasma.
A mulher já tinha nome. Celina. E, coerentemente com esse nome, parecia mesmo
alguma coisa volátil a Haruki. Talvez por dentro ela não tivesse ossos nem músculos
nem vísceras, mas ar. Um pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana. Um
pedaço de céu quase humano. Por fora, ela era o sorriso mais triste que ele tinha
visto nos últimos tempos. (LISBOA, 2014, p.25, grifo nosso)
A recorrência do adjetivo volátil associado à percepção do corpo de Celina não pode
ser ignorada, principalmente quando à luz das reflexões de Haruki, que transforma o corpo
como arcabouço da alma. Ousaríamos ir além e afirmar ainda que Haruki utiliza alma como
termo interdependente e semanticamente sinônimo à memória. Imbricada por entre células, é
a memória que pesa, que consome, que fragiliza.
A assinalação do erótico, também recorrente no romance, não é, ainda, sem propósito.
Enquanto carne e espírito se cruzam, a sexualidade é posta como o intermédio do eu – mas
um eu que se direciona ao outro e o contato entre corpos é também fonte da rememoração:
Sexo era outra coisa. Celina podia correr todos os riscos. Podia fechar os olhos.
Podia titubear e não saber onde estava, se no chão, se nas nuvens. Podia sentir, como
quem fura a onda gelada do mar, as mãos de Marco no seu corpo, pela primeira vez.
(LISBOA, 2014, p.45)
As memórias ligadas à sexualidade de Celina possuem importante papel ao longo da
narrativa. Elas existem na hesitação de Celina em tocar Haruki – e vice-versa -, na constante
recusa do ato por medo de trazer à tona a lembrança das mãos em si. No fim, o que Celina
procura escapar é o que a própria Adriana Lisboa nomeia memória do tato (LISBOA, 2014,
p.93). Uma memória que surge do tato, tal qual acontecera com a chaleira quente. Essa
memória encarnada permite, então, que Celina e Haruki reajam ao presente baseados em suas
ações passadas. É interessante notar que, em um certo momento da narrativa Celina tinha
dúvidas de que ainda soubesse andar de bicicleta. Aquele mito de se tratar de algo que nunca
se esquece não passava disso: mito. Quase tudo era passível de ser esquecido. (LISBOA,
2014, p.172); ela teme ter esquecido o pedalar, mas, mais a frente, vemos que ela anda
naturalmente de bicicleta, sem sequer notar. No corpo reside informações passadas e, posto
como centro de toda ação, ele é capaz de lembrar e modificar o presente. Adriana Lisboa
Nas fronteiras da linguagem ǀ
324
representa a matéria enquanto coabitação de forças múltiplas, lugar e filosofia materializada.
O corpo sabe ser feliz por conta própria. O corpo prescinde dessas bobagens da alma.
(LISBOA, 2014, p.139)
Essa multiplicidade se reuniria justamente no intuito de uma reconstrução da
existência em frangalhos. A ficção a qual se submete Celina e Haruki é um exercício de
retomada do passado, é um olhar que percorre estradas antigas e que ousa tocar na dor
esquecida. “Você ia ficar feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para
constatar sua imobilidade?” (LISBOA, 2014, p.76), pergunta Haruki a seu pai já falecido.
Mas o cutucar do passado não é, em Rakushisha, mera contemplação. Parece-nos que, ao falar
da origem de seu sobrenome, Haruki revela a ideia central do romance de Adriana Lisboa.
Herança deixada por Ishikawa pai: a ideia frágil de um rio corrente sobre as pedras
silenciosas, passando, apenas, em meio a um mundo de sonhos.
Haruki sabia que um rio falava de dúvidas. Nunca se atinha a si mesmo. Nunca se
cristalizava na pedra que o acolhia. Ao mesmo tempo, a pedra, que parecia eterna, ia
se gastando e se deslocando da maneira mais contundente de todas – sem alarde,
sem aviso. (LISBOA, 2014, p.49)
A metáfora criada a partir de pedras e rios pela autora delineia e representa com
sutileza o cotidiano de seus personagens: imersos em dúvidas sobre o futuro, eles se veem
presos às pequenas pedras, aparentemente imutáveis, do passado e vão se descobrindo
correnteza. De inspiração quase heraclitiana, o trecho parece desdobrar o paralelo essencial
que Adriana Lisboa desenha com ele; que passado, presente e futuro se unem em um rio
corrente cujas pedras não mais tão silenciosas vão sofrendo a influência dessa singular
trajetória. O passado desloca sob a pressão das vivências futuras. Longe de ser, entretanto,
uma narrativa de superação, Rakushisha se impõe como uma tentativa de conciliação dos
personagens com suas histórias.
A sobreposição entre passado e presente, tão proeminente em Rakushisha, é portanto
uma mescla entre sombras passadas e desejos futuros, ambos inalcançáveis, mas circunscritos
dentro de uma irrefreável linha de progressão. O corpo, basilar nesse processo, seria o produto
de suas próprias fantasias2, objeto de recriação e ser recriador, e, uma vez unido ao processo
de rememoração, ele não seria um simples reservatório de memórias, mas uma totalidade das
disposições das personagens em relação tanto ao passado quanto ao futuro. A infusão entre a
matéria e as lembranças faz o corpo passar por um processo no qual ele suporta uma
2
FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopicotexto-inedito-de-michel-foucault
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
325
memorialização que se mantém constantemente viva e transforma a existência em um
cenotáfio.
Tal qual a viagem, a narrativa de Rakushisha se propõe não como uma revelação
última – a menção ao acidente da filha de Celina sequer é inesperada para o leitor atento –
mas como um processo de caminhada. Como Celina e Haruki, o leitor descobre por entre as
linhas da cidade e as mágoas do passado o que já havia sido anunciado logo ao início do
romance:
Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não sei se andar equivale
a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se
nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno
que tece a morte e a droga que traz a cura. [...] Seja como for. É só colocar um pé
depois do outro. (LISBOA, 2014, pág.12)
Referências
ANDRIEU, Bernard. Le corps dispersé: une histoire du corps au Xxè siècle. Paris,
L'Harmattan, 1993.
BERND, Zilá. Figurações do deslocamento nas literaturas das Américas. In: Estudos de
Literatura Brasileira Contemporânea, nº 30. Brasília, julho/dezembro, 2007, p.89-97.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Vol. 1. 13ª ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2007.
CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: morar,
cozinhar. Vol.2. 7ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Cartografias literárias: Tsubame, de Aki Shimazaki e
Rakushisha, de Adriana Lisboa. Interfaces Brasil/Canadá; v. 12, n. 1 (2012); p. 17-34
FOUCAULT, M. O corpo utópico. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-foucault
KOCH, S.; FUCHS, T.; SUMMA, M. Body Memory, Metaphor and Movement. Philadelphia:
John Benjamins Publishing, 2012.
OLIVIERI-GODET, Rita. Estranhos estrangeiros: poética da alteridade na narrativa
contemporânea brasileira. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n.29, Brasília,
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LISBOA, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 2011.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
326
TAVARES, Zulmira Ribeiro. O puro amarelo do verão: “O japonês dos olhos redondos”. In:
DALCASTAGNÈ, Regina; DA MATA, Anderson Luís Nunes. (Orgs.). Fora do retrato:
estudos de literatura brasileira contemporânea. Vinhedo: Horizonte. 2012.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
327
A VOZ QUE AGORA FAL(H)A, OU A MEMÓRIA DE
PORTUGAL NO CORPO DO LIVRO E DO VELHO: UM
ESTUDO SOBRE A MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, DE
VALTER HUGO MÃE
[Voltar para Sumário]
Annie Tarsis Morais Figueiredo (UEPB/PPGLI)
1. Considerações iniciais
O romance A máquina de fazer espanhóis (2011) do escritor afro-lusitano Valter Hugo
Mãe tem como narrador-personagem o barbeiro Sr. Silva de oitenta e quatro anos. Sr. Silva ao
perder sua esposa é colocado pela filha no asilo Lar da Feliz Idade, portanto além de sofrer
muito com a perda da esposa a qual dividiu quase toda a sua vida o idoso se sente abandonado
pelos filhos, é neste momento de perda e exílio da vida social que Sr. Silva passará a olhar e
analisar seu passado, bem como atentar para sua fraqueza no tempo do salazarismo.
Mister frisar que a memória individual do Sr. Silva ganhará uma dimensão coletiva,
uma vez que o acontecimento histórico traumático da ditadura foi vivido por sua geração que
agora se encontra no asilo, esses velhos são os protagonistas da História (esta mesma com H
maiúsculo), agora cabe pelo exercício de narrar-se quebrar o silêncio que tanto esteve
presente no Estado Novo.
Um ressentimento ronda a velhice do idoso, o de não ter lutado contra o longo regime
ditatorial instalado em Portugal em que as liberdades eram nenhuma. É na sua estadia do asilo
que descobre pela primeira vez o que é amizade, em meio aos seus amigos surge a ideia de
escrever um livro, sonho este que vinha desde décadas anteriores em que queria tornar-se
escritor.
Deste modo, o livro que temos em mãos é o livro de memórias do Sr. Silva, escrito em
primeira pessoa, de discurso indireto livre, sintaxe e entonações peculiares que acompanham
o ritmo do fluir da sua memória. Neste caso podemos dizer que A máquina de fazer espanhóis
(2011) se trata de uma autobiografia do Sr. Silva, em que contará em dois tempos que se
confluem, o passado ditatorial e o presente em que Portugal faz parte da União Europeia.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
328
Didaticamente o trabalho divide-se em dois pontos, o primeiro ponto analisaremos
como o corpo do idoso, a letra de seus escritos e a história se interligam com a política, a voz
e a memória. Para isso a noção de biopolítica, oralização da literatura e memória guiaram a
análise, atribuindo-se à vivência de Sr. Silva uma ampla dimensão sobre a época do Estado
Novo e contemporaneidade portuguesa.
O último e segundo ponto está centrado na oralização da literatura na obra, a
explicação deste termo e como ele aponta para novos olhares e caminhos teóricos sobre a
literatura atual, neste trabalho ela adquire o caráter de biopotência, instância que possui certa
força de vida e impulsiona a existência em meio aos poderes que se instalam sobre as
liberdades humanas.
A escrita destas análises aponta para as possibilidades de tecnologias da escrita que
neste caso está intrinsecamente ligado à memória e política, uma vida socius que visa a
relação de alteridade e construção de si, ou seja, uma correlação entre igualdade e
singularidade. Ao passo que Sr. Silva juntamente com os outros velhos vão rescrever
pontualmente, sob nova perspectiva, uma nova história crítica de Portugal, sendo
ironicamente a partir dos que não tem mais espaço e força na sociedade.
2. Corpo, letra e história ou política, voz e memória do barbeiro Sr. Silva
Falar sobre o corpo do velho, sua escrita e sua história é apontar para aspectos
biopolíticos do seu lugar, da sua voz e da sua memória, assim sendo, a dimensão da escrita do
Sr. Silva acaba por desenhar uma força ou potência que vai de encontro ao seu lugar ocupado
socialmente. Para isso, dividimos este ponto em três questões que se entrecruzam e se
dissolvem quando pensamos a escrita do barbeiro Sr. Silva, são estes: 1) corpo e política; 2) a
letra e a voz e 3) história e memória.
Começar pelo corpo afetado pelas forças do mundo é essencial, Sr. Silva que inicia
suas memórias com a reclamação sobre a fraqueza de seu corpo velho, mas que a cada falha e
ruga marcadas trazem um aprendizado pela vida e suas experiências, diz: “eu era apenas um
olhar, um modo de ver. e nessa altura tudo me escapava das mãos. eu a querer que fizesse
cuidado, mas nada me obedecia porque anda correspondia à lógica ilusória da minha cabeça”
(MÃE, 2011, p. 111) O corpo do idoso se configura como se fosse um corpo desgovernado,
sem mais o comando das ações voluntárias de antes, podemos verificar bem ao ler:
um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas
quando, na verdade, estamos a desaprende-las, e faz todo o sentido que assim seja
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
329
para que afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. a
inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as
alegrias e no resultado da conta é bem-visto que a cabeça dos velhos se destitua da
razão para que, tão de frente à mortem não entremos em pânico (MÃE, 2011, p. 33)
Sendo o corpo uma estrutura material e senciente que escolhe se é ou não afetado
pelos múltiplos estímulos que o atinge, o corpo acaba sendo antes de qualquer coisa o
encontro com outros corpos, tocar objetos e pessoas, relacionar-se com os outros é um ato
político na obra.
No totalitarismo, através do medo, as pessoas não podem entrar em contato efetivo
umas com as outras, embora por outro lado a sensibilidade do período traga um
aprofundamento nestas poucas relações. Escolher com quem eu converso e em quem acredito
é uma forma de estrategicamente burlar tais regimes, deste modo, Sr. Silva não teve amigo até
o momento do asilo.
A capacidade de se abrir ao novo é limitada no Estado Novo, o corpo é então de certa
impotência frente ao sofrimento, em momento último de sua vida é que o narrador idoso
aproveita para experimentar o que é a amizade e “com o tempo, começava a falar e criar afeto
pelos outros” (MÃE, 2011, p. 27), compreender o que é amar pessoas sem laços sanguíneos,
uma vez que se dedicou tanto à família, um dos ideais da tríade salazarista (junta à Deus e
pátria), como se o espírito de comunidade fosse útil até certo ponto, o de fortalecer o
nacionalismo e enfraquecer a força da união popular contra a política que imperava.
Percebemos em A máquina de fazer espanhóis (2011) que o corpo fala, cada uma de
suas rugas falam, pois marcam fatos da vida de Sr. Silva que serão rememorados pelo estado
que se encontra sua estrutura física e o tempo que a talhou.
Os pesadelos do idoso que acaba por compor-se uma matéria impalpável do indizível,
traz como elemento simbólico um abutre que ronda suas noites querendo devorá-lo, o abutre é
a materialização do seu remorso e covardia durante a vida, a de ser parte do rebanho calado
do regime e o de entregar a única possibilidade de amizade na época à PIDE (Polícia
Internacional e de Defesa do Estado) para fazer parte do número de desaparecidos
portugueses torturados e mortos.
Aos poucos o pesadelo com o abutre não vai se tornando mais assustador e
inconveniente, ao passo que o espantoso não o espanta mais, ele passa a compreender seus
sentimentos e a ave não mais o arranca pedaços, mas sim sobrevoa pacífica e
harmoniosamente seu ser. Aos poucos Sr. Silva vai encontrando lugares para colocar seu
passado e a explicação pelo instinto de sobrevivência do período são justificados pela
responsabilidade com seu filhos e esposa, embora a dor fosse grande, como pode-se ler:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
330
éramos todos livres de pensar as coisas mais atrozes. isso não nos impedia de sermos
vistos pela sociedade como bons homens e de sairmos à rua dignos como os
melhores pais de família, um homem havia de ser medido pelos seus atos, pouco
importando se dentro de casa era feito daquela mariquice de acreditar em deus ou da
macheza cretina de se ligar aos malfeitores, estejam eles escudados numa igreja ou
num governo. éramos por igual todos cidadãos da mesma coisa. a andar para a frente
com os instintos de sobrevivência a postos como antenas. eis a emissão certa, a
propaganda que não podíamos dispensar, sobreviver, segurarmo-nos, e aos nossos, e
abrir caminho até morte dentro. essa é que era a essência possível da felicidade,
aguentar enquanto desse (MÃE, 2011, p. 118)
Ironicamente o idoso vai traçando o perfil dos homens da época, criticando a
hipocrisia em que se inseria nas relações sociais. Sabe-se que a dor do Sr. Silva é uma dor
coletiva sentida politicamente pelos portugueses, o tempo que surge como potência
reconfigura o medo em dor pelos sofrimentos vividos coletivamente, e mais, coloca essa dor
ligada à esperança.
A dor aqui está em outro plano que não o do corpo, mas sim na consciência geral das
pessoas, como na fala de Silva da Europa, outro personagem idoso do asilo diz: “eu sou
daqueles a quem a vida doeu e, mais cedo me possa estender a descansar, mais feliz me
ponho” (MÃE, 2011, p. 15), fala esta que pode ser atribuída a qualquer um indivíduo presente
no asilo.
A relação com si mesmo e a relação com os outros faz Sr. Silva reconciliar com a
solidão e a sociabilidade formas de externalizar a fala presa e contida pelo trauma, ganhando
esta singularidade de voz uma sensibilidade coletiva marcada por índices de lembranças e
esquecimentos sobre o dado momento histórico que acaba por ficcionalizar-se em meio às
vivências de Sr. Silva e dos portugueses.
A memória elabora da também pelo seu revés o esquecimento traz na vida atual do Sr.
Silva a História do povo português também na atual situação, a de dificuldade econômica, que
assentou no pós ditadura e na entrada de Portugal na União Europeia. Em dois tempos,
passado e presente, os testemunhos e falas dos idosos do asilo metaforicamente representam a
geração responsável por narrar o indizível de uma época visando a não repetição da
tragicidade anterior. Sobre o medo e o perigo do fascismo reminiscente ele pensam:
colega silva, ainda está cá dentro, é muito difícil tirarmos das ideias a educação que
nos deram de crianças. podemos ser todos inteligentes como super-homens, adultos
feitos à maneira e pensantes livremente, mas a educação que nos dão em crianças
tem amarras para a vida inteira e, discretamente, aqui e acolá os tiques fascistas hão
de vir ao de cima. (MÃE, 2011, p. 91)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
331
Contudo, percebe-se uma bifurcação no discurso, o de que alguns idosos denunciam a
ditadura, e outros já a defendem de forma saudosista em prol de uma ordem das coisas. O
perigo reside aí para Sr. Silva, no fascismo dos bons homens, que devido a educação
portuguesa todos carregam uma vontade estranha de ordenar as coisas, residindo o perigo da
falta das liberdades.
O corpo como elemento político, a letra como materialização de uma voz até o
momento silenciada, a memória como repositório histórico singular, são os três motivos
analíticos encontrados na obra de Valter Hugo Mãe, tendências contemporâneas atreladas à
metaficção historiográfica (Linda Hutcheon), que acaba por reescrever ficcionalmente a
história a luz de um homem ordinário como o barbeiro Sr. Silva, a voz dos muitos e comuns
que ecoam criticamente sobre determinado acontecimento.
Por fim, encontra-se na materialidade dos escritos do barbeiro uma vontade de
potência peculiar, a de resolver aspectos dolorosos de sua vida até o momento abafados e
escondidos, e o de contar sobre um mal coletivo em direção ao andamento adequado dos
direitos humanos e da comunidade. Então, Sr. Silva representa a voz dos portugueses que
temem o retorno do regime totalitário no país, aspecto que vem se alastrando pela Europa e de
forma nostálgica surge como esperança em meio ao caos político contemporâneo.
3. Oralização da literatura em A máquina de fazer espanhóis
Oralização da literatura ou oralização das técnicas de escrita, é uma ideia que aparece
em uma entrevista com Édouard Glissant, segundo Justino (2013), em Introdução à uma
poética da diversidade (2006) e, esta ideia é retomada por Jean Derive (2010) que defende tal
ideia no âmbito da literatura africana, que utiliza a oralidade como tática política.
Neste caso, é necessária a diferenciação entre oralidade e oralização. A primeira está
para a memória coletiva, a segunda está relacionada à hibridação e ruptura da escrita, como
diz Justino: ela tem um aspecto imaginário, cultural, semiótico em toda amplitude; e um
aspecto, diria, maquínico, tecnológico (2013, p. 16). Deste modo, a oralização que se conecta
ao passado de forma distinta, com aspecto de presentificação e criticidade e não de nostalgia
em relação ao passado.
A oralização se situa no contexto da escrita, como uma ponte entre a fala como
elemento presente da escrita, ao passo que ela é de produção simbólica, imagética. Em A
máquina de fazer espanhóis a escrita aparece como recipiente da voz que é a memória
Nas fronteiras da linguagem ǀ
332
localizada no legível e no visível, pois Sr. Silva cria uma entonação própria que nasce a partir
da dicção e sintaxe nascidas das vivências que vem desaguar finalmente no asilo.
Característica marcante na literatura atual é o aspecto de conversa que ganha a matéria
escrita, em que com determinada leveza assuntos profundos são tratados, essa tendência
caracteriza de certo modo a oralização da literatura, como podemos ler no trecho abaixo as
marcações orais na escrita ganha uma configuração distinta em que o presente é dilatado na
fala está confluindo com a avaliação sobre a história oficial fundando uma história alternativa:
como se o corpo dele fosse um poço profundo e ele estivesse longínquo a tentar
chegar cá acima. subitamente suspira. um suspiro muito fraco, muito triste, e deve
ser como se sente respirar subido dessa profundeza. parece que está agarrado por
dentro do corpo. eu levantei-me algumas vezes. acendi aqui o candeeirinho e fui vêlo ao pé. Eu juro que o homem quase se mexeu. a intensidade do seu olhar era de tal
modo que eu sabia que fazia um esforço para me dizer algo. e eu ainda lhe disse
umas quantas vezes que estava tudo bem, que ele devia sossegar, que estava tudo
bem. (MÃE, 2011, p. 125)
A oralização é uma estratégia utilizada pelo nosso personagem comum, o barbeiro e
idoso que potencializa sua escrita com sua memória grávida do contemporâneo, do presente,
que vive e não precisamente do passado que já não pertence mais a ninguém a não ser como
formulação discursiva, por isso a oralização não é estática, está de acordo com as mudanças e
caminhar do tempo, em outras palavras, com o devir.
Assim sendo, a oralização da literatura se delineia como novo arranjo da escrita,
aqueles que acabam aparecendo através do modo se subjetivação do personagem, em
específico do Sr. Silva agindo contra os dispositivos normativos e além disto irrompendo
elementos fantásticos e linguagem peculiar proveniente do cárcere no asilo e da velhice.
A presença da morte e ausência de liberdade faz com que o idoso conjure forças e um
dos métodos encontrados é pela escrita, esta que se assoma com o estado de ascese a que
chega o Sr. Silva, uma vez que rememorar é uma forma de atingir determinado nível de
resolução das suas questões interiores.
Com a forte memória afetiva da esposa e da ditadura em sua vida o idoso ao longo da
narrativa vai se desprendendo delas e chegando a um estágio de elucidação de seus anseios e
desejos. No momento do Estado Novo ele era gado, fazia parte de uma massa de gente que
tinha a liberdade tolhida e uma vida que se fosse ser analisada não valia ser vivida, a não ser
que com os artifícios criados pelo próprio governo, como o futebol, a Igreja, a arte, que
auxiliava a cegueira da multidão.
O avesso de tudo o que ele não pode fazer e contar é a memória, ela é a potência, a
linha de fuga o momento de reterritorialização. É quando o homem ordinário consegue
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
333
apropriar-se da linguagem criticamente e realizar uma ranhura na história. Daí a reinvenção
da noção do humano que mesmo em meio a banalidade do mal dos tempos totalitários
conseguiu traçar outro caminho em meio a cruel medida do biopoder.
A oralização da escrita está totalmente ligada ao corpo e suas pulsões, as criações
imagéticas sobre seus sentimentos acabam por originar “a dobra do corpo sobre si mesmo e
acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários” (GUATARRI, 1992, p. 153),
em que a memória simbolicamente adquire um aspecto simbólico, a exemplo dos abutres de
seus pesadelos noturnos que representa o remorso e a consciência sobrecarregada do idoso.
Sobre o corpo e sua ligação com a escrita tem-se a noção da inelutável modalidade do
visível de que fala Didi-Huberman, em que “a visão se choca sempre com o inelutável volume
dos corpos humanos” (1994, p. 30), em meio à multidão de singularidades e explica o autor
dialogando com Joyce que o corpo é o objeto primeiro de todo conhecimento e de toda
visibilidade, o corpo é uma espécie de receptáculo orgânico em que sai e reentra sensações.
Deste modo, o corpo, o livro e a memória são três objetos constituintes da oralização
da literatura em A máquina de fazer espanhóis (2011). Operam essa tríade no que se entende
por novo e necessária maneira de escrita e subjetivação, não deixando de lado a natureza
individual e peculiar da memória e cosmovisão a ela atrelada. A respeito da ligação entre
corpo, escrita e política lê-se:
O que liga a supradeterminação do conceito de escrita ao pensamento de ligação
comunitária. O conceito de escrita é político porque é o conceito de um ato sujeito a
um desdobramento e a uma disjunção essenciais. Escrever é o ato que,
aparentemente, não pode ser realizado sem significar, ao mesmo tempo, aquilo que
realiza: uma relação na mão que traça linhas ou signos com o corpo que ela
prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com os outros corpos com os quais
ele forma uma comunidade; dessa comunidade com a sua própria alma
(RANCIÈRE, 1995, p. 7)
Oralizar é tornar a escrita fecunda e viva em relação ao momento presente. É
encapsular momentaneamente uma vontade à revelia das difíceis situações vividas e mais,
tornar a fala um recurso extensivo da memória carregada de poder contra as injustiças e
desumanizações acometidas no período ditatorial. Portanto, o corpo, a fala e a memória de Sr.
Silva canalizam uma forma de empenho em buscar um lugar para seu ressentimento e espera.
Então, estudar essa propensão da literatura contemporânea é estender seu lugar de
atuação para outros discursos, como o da política e história, por exemplo. A memória de Sr.
Silva constitui uma interpelação ao modo de se olhar para o passado, colocando o presente
como meta a se organizar baseado em experienciações diversas.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
334
4. Considerações finais
Refletir sobre a condição de oralização da literatura é compreender os novos caminhos
e tecnologias da escrita, e esta configuração em A máquina de fazer espanhóis (2011) está
interligada ao uso crítico da memória. Por isso a necessidade em se falar do corpo do velho e
sua ligação política, falar da escrita quanto voz que agora conta o indizível e por último
discorrer sobre a memória e história, para assim abrir o caminho de discussão da oralização da
escrita e sua potência dentro da literatura contemporânea.
Usar a língua de modo potente em que constrói novas perspectivas sobre o passado e
presente de Portugal é o que constitui o cerne da oralização da literatura, artífice do narrador
Sr. Silva que tem o intuito de combater e esclarecer determinados pontos da sua vida e
paralelamente da coletividade de portugueses que viveram a mesma falta de autonomia.
Contar aos personagens secundários e futuros o que viveu no período ditatorial é o
objetivo do protagonista Sr. Silva, ir contra o fascismo iminente que já faz parte das
sociedades e transpor outra visão sobre o passado que antes não poderia ser externalizada.
Ora, momento melhor que o da liberdade que a velhice traz e o desgoverno do corpo que
juntos acabam por tecer um modo específico de se falar sobre o medo e a dor vividos.
A narrativa do barbeiro se dispõe contra qualquer tipo de saudosismo pela época árdua
e violenta em que os portugueses só trabalhavam, iam à missa e assistiam aos jogos de
futebol. Uma violência ao mesmo tempo silenciosa e falante, tal qual a letra e pulsão de
escrita do Sr. Silva, que em meio à mudez e ao dito expõe sua identidade sem medo da falta
de proteção que só a coragem da verdade e a aproximação da morte carregam.
O exemplo de Sr. Silva, este personagem tão bem construído por Mãe, deve ser
seguido, pois ao avesso do abismo e vazio que se instala em sua vida ele fabrica novos modos
de se superar a passagem difícil da sua vida. E múltiplas questões surgiram e algumas lacunas
ficaram, a necessidade do ponto final surge pela necessidade do fim deste texto, mas não das
discussões em torno dos aspectos abordados.
Referências
GUATARRI, Felix. Caosmose: um novo paradigma estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e
Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1992.
HUBERMAN, Didi. A inelutável cisão do ver. Trad. Paulo Neves. In: O que vemos, o que nos
olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
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335
JUSTINO, Luciano Barbosa. Devir-brasil: oralização da literatura. In: Pontos de
Interrogação, v. 3, n.1, jan./jul. 2013, p. 11-21. Disponível em: <<
http://poscritica.uneb.br/revistaponti/arquivos/volume3n1/Luciano_Barbosa_Justino_REVISTAPONTI_VOL_3_N1.pdf >> Acesso em 14 de março
de 2015.
MÃE, Valter Hugo. A máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
RANCIÈRE, Jacques. O corpo e a letra. In: Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1995, p. 7-102.
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O “ESPELHO BAÇO E ESCURECIDO”: REFLEXÕES SOBRE
A OBRA A HORA DA ESTRELA
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Antonia Gerlania Viana Medeiros1 (UERN)
Roniê Rodrigues da Silva2 (UERN)
O fragmento que descreve o momento em que Macabéa se olha no espelho serve como
apresentação e reconhecimento da personagem para o leitor, pois até então Rodrigo tinha dito
somente os seus argumentos para falar ou não da moça, porém, foi ao narrar a quase demissão
da jovem e a sua face em frente ao objeto que reflete, que passamos a saber como a nordestina
veio para essa cidade feita toda contra ela, o Rio de Janeiro.
Clarice Lispector consegue, por meio da sua linguagem metafórica, do narrador que
também é personagem e das imagens que delineiam em sua obra e na mente do leitor, falar de
uma “sociedade técnica”3, do contraponto de uma ideologia burguesa e da migração do
nordestino ao grande centro urbano do Brasil. A autora nos oferece um “espelho baço e
escurecido”, mas capaz de refletir uma crítica social nítida e coesa pelo o contexto que os
personagens viviam.
Instigados com a imagem que tentamos enxergar de Macabéa no espelho e diante do
primeiro rebaixamento sofrido pela personagem na narrativa, analisaremos os reflexos do
contexto social e da condição dos personagens na obra A hora da estrela, recorrendo aos
trechos do texto literário que narram esse momento, ao significado simbólico que o espelho
proporciona na cena escolhida e, principalmente, as características da escrita de Clarice
Lispector.
Segundo Nunes (1995), a obra A hora da estrela é constituída por três histórias, a
primeira conta sobre Macabéa, a segunda fala do narrador Rodrigo e a terceira é sobre a
própria narrativa. O autor identifica a elaboração da narrativa e a construção da personagem,
1
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do
CAMEAM/UERN.
2
Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL), do Mestrado Acadêmico em Letras do
CAMEAM/UERN.
3
Termo empregado pela própria Clarice Lispector na obra, “Nem se dava conta que vivia numa sociedade
técnica onde ela era um parafuso dispensável” (LISPECTOR, 1995, p. 44)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
337
como um jogo de identidade. Nunes (1995, p. 169) nos lembra que o narrador da obra é
Clarice Lispector, “e Clarice Lispector é Macabéa tanto quanto Flauber foi Madame Bovary
[...] Clarice Lispector se exibe, quase sem disfarce, ao lado de Macabéa [...] A escritora se
inventa ao inventar a personagem. Está diante dela como de si mesma”. Clarice escreve a
história de Rodrigo que narra a história de Macabéa.
Essa relação autor, herói e obra é discutida por Bakhtin (1997), que diz que o autor
está inserido em um contexto e conhece e faz a criação verbal de maneira artística, o criador
da obra tem uma visão excedente em relação ao herói e toda a história. No decorrer da
narrativa percebemos o quanto o narrador criado por Clarice Lispector conhece toda a
história, tanto que na terceira página do romance Rodrigo S. M. revela “experimentarei contra
os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e de
chuva” (LISPECTOR, 1995, p. 27), ou seja, ele já adianta o final da história.
O romance é um dos gêneros onde podemos perceber com mais veemência essa
relação entre autor, personagem e obra, pois atenta-se a detalhes que se referem não somente
ao contexto que a narrativa enfatiza, mas ao do autor também. Watt (1990) trata em sua obra
Ascensão do romance sobre como esse gênero sofreu influências e aponta que o realismo foi
um dos propositores dessa mudança, ressaltando que o realismo não faz referência a uma
doutrina filosófica ou literária, mas a procedimentos narrativos que definiram o gênero
romance.
Um dos pontos enfatizados por Watt (1990), sobre as particularidades que o realismo
proporcionou ao romance, temos a importância dos nomes dos personagens na narrativa,
segundo o autor “os nomes próprios têm exatamente a mesma função na vida social: são a
expressão verbal da identidade particular de cada indivíduo. Na literatura, contudo, foi o
romance que estabeleceu essa função” (WATT, 1990, p. 19). Então, na obra clariciana
encontramos uma personagem cujo nome nos suscita várias indagações, inclusive para
entender o nome, “– Macabéa. – Maca – o que? – Bea, foi ela obrigada a completar. – Me
desculpe mas até parece doença, doença de pele” (LISPECTOR, 1995, p. 59). Além do mais,
a escolha do nome Macabéa, por Clarice Lispector, indica a intenção da autora em apresentar
a sua personagem como um indivíduo particular, característica dos romancistas ao escolherem
o nome, de acordo com Watt (1990).
A personagem principal da narrativa de Rodrigo é uma moça de dezenove anos, tola
“às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde ao sorriso porque nem a menos a
olham” (LISPECTOR, 1995, p. 30). O próprio Rodrigo S. M. descreve Macabéa como uma
“imagem feia”, como podemos observar nesses trechos: “[...] é o seguinte: ela (Macabéa)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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como uma cadela vadia era teleguida exclusivamente por si mesma” (LISPECTOR, 1995, p.
32), “a sua cara é estreita e amarela como se ela já tivesse morrido” (LISPECTOR, 1995, p.
39), tinha “o corpo cariado” (LISPECTOR, 1995, p.51). Além de expor a “feiura” da moça, o
narrador ainda afirma que ela era “incompetente para a vida” (LISPECTOR, 1995, p. 39).
Deparar-nos com a situação da personagem, depois de ter sido enfatizada várias vezes
pelo narrador por sua falta de beleza e “de jeito”, sendo quase demitida pelo chefe da firma,
ratifica, por meio dos argumentos do senhor Raimundo Silveira, a despreparação que
Macabéa tinha para (sobre)viver a atmosfera industrial e capitalista que pairava na sociedade.
avisou-lhe com brutalidade (brutalidade essa que ela parecia provocar com sua cara
de tola, rosto que pedia tapa), com brutalidade que só ia manter no emprego Glória,
sua colega, porque quanto a ela, errava demais na datilografia, além de sujar
invariavelmente o papel. Isso disse ele. Quanto à moça, achou que se deve por
respeito responder alguma coisa e falou cerimoniosa a seu escondidamente amado
chefe:
- Me desculpe o aborrecimento. (LISPECTOR, 1995, pp. 39-40)
O senhor Raimundo é o primeiro personagem a rebaixar Macabéa, caso não
consideremos a maneira como o narrador Rodrigo caracteriza a moça no início da narrativa. O
ato de ser brutal no jeito que fala e demite a datilógrafa, reflete a posição que cada um
ocupava naquela firma, ele como o empregador (chefe) e ela como a empregada (datilógrafa)
passiva. Apesar de que, como a própria obra apresenta no decorrer da história, Macabéa era
um sujeito passivo em quaisquer condições de sua vida.
Medeiros (2009) analisou como a obra A hora da estrela é marcada pela estética do
feio e por características grotescas, entre elas, principalmente, o rebaixamento dos
personagens. O conceito do grotesco na literatura é colocado como aquele que a sua
comicidade e aspecto da sátira ficaram percebíveis nas obras literárias, principalmente pelo
aspecto do “feio”, do “rebaixamento” e do “cômico”. É compreensível o porquê de o grotesco
parecer “monstruoso”, “horrível” e “disforme”, pois ele é o oposto da estética do belo, nele o
que prevalece não é a beleza externa, mas a descrição diferenciada de um ser que gera
comicidade e “rebaixamento, isto é, a transferência ao plano material e corporal, o da terra e
do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado espiritual, ideal e abstrato”
(BAKHTIN, 1996, p. 17).
Quando falamos em rebaixamento estamos mencionando os estudos de Bakhtin (1996)
e a análise de Medeiros (2009), este último nos mostra o rebaixamento dos personagens na
obra objeto de análise. Não nos deteremos como esse rebaixamento atinge todos os
personagens, porém na própria narrativa a maneira como o narrador e os demais personagens
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339
se descrevem e se comportam nos mostram que de fato essa característica do grotesco está na
narrativa.
A informação dada entre parêntese no trecho literário, que diz que Macabéa provocava
a brutalidade com “a sua cara de tola, rosto que pedia tapa” demonstra como a personagem é
colocada no posto de responsável por ser quase demitida, assim como por ser tão passiva
naquele momento. A atitude que a moça teve diante da situação foi pedir desculpas pelo
aborrecimento causado ao chefe, feito isso não para defender a si ou ao seu emprego, mas
porque achava que era respeitoso dizer algo depois de tudo o que ouviu.
Macabéa se mostra como uma empregada desqualificada para o seu serviço, pois o
seu chefe a culpa por errar as palavras na datilografia e por sujar os papeis. Observe que é
retirado da personagem, com essa fala do senhor Raimundo, o único “título” que a
aproximava da dignidade de ser gente, que era ser datilógrafa. “Por ser ignorante era obrigada
na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera o curso ralo de como
bater à máquina. E a moça ganhara uma dignidade; era enfim datilógrafa” (LISPECTOR,
1995, p. 29). Entretanto, não podemos julgar a moça por isso, afinal ela só tinha até o terceiro
ano primário, o que justifica o fato da jovem não aceitar que na linguagem duas consoantes
ficassem juntas em uma palavra. Por falta de conhecimento sobre a língua e a vida, é que
Macabéa errava, ou melhor dizendo, não acertava.
Souza (2006, p. 110) coloca que Macabéa representa o humano de forma caricatural e
hiperbólica, ao mesmo tempo que é desenhada como a negação do humano, “Macabéa,
dessemelhante no conjunto, separada dos homens pela barreira da arte, é convincente pelo
detalhe, enquanto resposta estética a indagações humanas”. São nas características isoladas da
personagem que reconhecemos o sujeito como ser social, é tão irreal que uma pessoa possa
ser assim, tal qual Macabéa, no entanto, ela, com o seu jeito e ações, se aproxima tanto do
real, aos olhos do leitor. De acordo com Lukács (2000, p. 60) o gênero romance “busca
descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, ou seja, Lispector consegue,
por meio da sua narrativa, refletir sobre a sociedade.
Na realidade, não eram somente as palavras escritas que faltavam no vocabulário de
Macabéa, a fala também. Ela não sabia o que dizer, como e quando falar. A linguagem não
era algo plenamente dominado pela moça, ela somente repetia o que seu chefe mandava
escrever ou o que ela escutava no rádio-relógio. Na ocasião de ouvir o seu chefe proferir que
iria manter somente Glória na firma e que, consequentemente, isso significava que ela estava
demitida, a jovem disse “me desculpe pelo aborrecimento”, surpreendendo senhor Raimundo
com tal discurso.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
340
O senhor Raimundo Silveira – que a essa altura já lhe havia virado as costas –
voltou-se um pouco surpreendido com a inesperada delicadeza e alguma coisa na
cara quase sorridente da datilógrafa o fez dizer com menos grosseria na voz, embora
a contragosto:
- Bem, a despedida pode não ser para já, é capaz até de demorar um pouco.
(LISPECTOR, 1995, p. 40)
Atentemo-nos para o jogo nas palavras feitas por Rodrigo S. M. ao dizer que o chefe,
naquele momento, já tinha virado as costas para a moça, o que não indica só a posição
corporal do personagem, mas também sugere que ele não teria se importado com o que seria
da moça, o que aquela menina órfã iria fazer naquela cidade, qual outro emprego ela poderia
conseguir no mercado de trabalho, sendo ela tão despreparada? Macabéa, dar-se a entender na
obra, era uma mão de obra barata, mais uma nordestina que chegava ao sudeste na esperança,
dela e da tia, de viver melhor do que era em Alagoas, no entanto, nem sobre isso a
personagem pensa, faz-se entender almejar.
Então, Macabéa escuta do seu chefe que talvez não seja demitida, agora era ela que se
surpreendia com as palavras de seu Raimundo, mesmo que elas tenham sido ditas a
“contragosto”, pois recebia novamente a sua dignidade, voltava a ser datilógrafa, a ter um
emprego na “sociedade técnica” que ela fazia parte, mesmo sem ser consciente do que seria
essa sociedade.
Depois de receber o aviso foi ao banheiro para ficar sozinha porque estava
atordoada. Olhou-se maquinalmente ao espelho que encimava a pia imunda e
rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Pareceu-lhe que o
espelho baço e escurecido não refletia imagem alguma. Sumira por acaso a sua
existência física? Logo depois passou a ilusão e enxergou a cara toda deformada
pelo espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de
papelão. Olhou-se e levemente pensou: tão jovem e já com ferrugem. (LISPECTOR,
1995, p. 40)
Passado o episódio de demissão e readmissão do emprego, Macabéa se dirige ao
banheiro, ainda atordoada com o que aconteceu e se olha no espelho. Mas nesse trajeto da
personagem visualizar o espelho, o narrador diz que ela “olhou-se maquinalmente ao
espelho”. Vejamos que esse olhar maquinal que Rodrigo S. M. faz referência pode ser
entendido pelo gesto repetido e comum, ao chegar no banheiro e se olhar um espelho, típico
das mulheres; como também pode ser entendido como uma crítica social que o narrador faz a
posição ocupada por Macabéa naquela firma, afinal, ela era apenas “um parafuso dispensável”
(LISPECTOR, 1995, p. 44), comparando-a com uma “máquina” daquela firma, daquela
sociedade moderna e técnica.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
341
Além disso, o narrador compara Macabéa a pia que é imunda, rachada e ainda cheia de
cabelos, evidenciando a “pobreza” que era vida de Macabéa, pois ela era “feia”, “suja” e
“rebaixada” a uma pia imunda. Ela e a pia pareciam existir com a finalidade de receber
passivamente o que os outros “despejavam”, como foi ao ouvir tudo o que senhor Raimundo
Silveira falou. A pia como recipiente de limpar as impurezas, é maculada com a sujeira dos
outros, enquanto que, a moça, sempre ouvia o que os outros tinham a “despejar”, bem como
sempre estava como a pia, suja.
Ao se olhar no espelho “baço e escurecido” Macabéa não viu sua imagem refletida, é
quando o narrador, que tudo sabe e tudo ver, questiona “Sumira por acaso a sua existência
física?” (LISPECTOR, 1995, p. 40). Ao fazer tal indagação sobre Macabéa, a narrativa nos
põe a prova se realmente é possível existir alguém tal qual a moça nordestina. A presença do
espelho nesse momento em que a personagem tenta se acalmar, tendo em vista estar atordoada
pelo o que ouviu do seu chefe, e se reconhecer na imagem que deveria refletir no espelho,
incentiva-nos a abordar também nessa análise, um pouco sobre o significado simbólico desse
objeto.
Chevallier e Gheerbrant (2009, p. 393), em Dicionários de símbolos, colocam que o
espelho, enquanto superfície que reflete, é “o suporte de um simbolismo extremamente rico
dentro da ordem do conhecimento”, ou seja, tal objeto pode proporcionar inúmeras
interpretações, pois além de tudo ele é revelador. Ainda acrescentam que “o espelho é, com
efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento, sendo o espelho coberto de pó aquele do
espírito obscurecido pela ignorância” (CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 394). O
espelho que Macabéa se olha está “baço e escurecido”, é como se a personagem por não saber
quem de fato era ela, sente a dificuldade de se enxergar, de se reconhecer. A sua existência
física não sumiu, como é questionado, mas a sua “ignorância obscurece” a visão de Macabéa
e não permite que veja o seu próprio reflexo.
Quando Macabéa consegue realmente se ver, ela enxerga “a cara toda deformada pelo
espelho ordinário, o nariz tornado enorme como o de um palhaço de nariz de papelão”
(LISPECTOR, 1995, p. 40), a personagem visualiza quase que uma caricatura do que ela é, “o
aspecto numinoso do espelho, isto é, o terror que inspira o conhecimento de si”
(CHEVALLIER e GHEERBRANT, 2009, p. 396), é como se o espelho fosse um instrumento
da psique, segundo os autores, e a própria Macabéa criou essa imagem dela mesmo. A
personagem vê o reflexo do espelho nela e não o reflexo dela no espelho, por isso é que ela se
olha e pensa “tão jovem e já com ferrugem” (LISPECTOR, 1995, p. 40), as marcas que
embaçam o espelho também estão nela, fazem parte do meio que ela vive.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
342
Macabeá é, na realidade, um reflexo da sociedade. De acordo com Chevallier e
Gheerbrant (2009, p. 395), “o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra”, e a
personagem demonstra implicitamente um pouco dos sujeitos e da sociedade, transcendendo
tempo e lugar. O que é visto por Macabéa reflete a sociedade, o como somos vistos por uma
modernidade que o tempo nos obriga viver. Souza (2006, p. 117) analisa bem essa questão
humana e social abordada em seu trabalho sobre a obra A hora da estrela, quando diz que,
Macabéa tem um trabalho, talvez para lembrar o leitor, pelo intricado caminho da
ficção, que existe todo um contingente humano obrigado aos serviços mecânicos,
dos quais esses homens retiram apenas um soldo miserável e nenhum prazer,
nenhum conhecimento, nada que lhes dê a consciência de que são seres que
contribuem para fazer o mundo avançar em determinada direção.
A datilógrafa é só mais uma pessoa sujeita a abastecer a economia com o seu trabalho,
a garantir que a máquina que é a sociedade continue em movimento, mesmo sendo a
personagem um “parafuso dispensável”. Clarice Lispector ao escrever que a sua personagem
se enxerga com um nariz de palhaço, traz à tona, de maneira implícita, como a personagem
era tola e rebaixada ao cômico. Apesar de que Macabéa provoca o riso dos demais
personagens que tanto quanto ela fazem parte da narrativa para mostrarmos quem e como são
os sujeitos da sociedade técnica, são “os palhaços” para aqueles que detém o poder.
Foi Macabéa quem se olhou no espelho, mas por meio dela conseguimos ver os
reflexos sociais que Clarice quis apontar nos demais personagens nessa narrativa, pois a
imagem de Macabéa no espelho, é o reflexo daquela sociedade. Temos Olímpico, namorado
de Macabéa, que veio ao Rio de Janeiro após assassinar um homem, consegue um emprego
que nem ele mesmo sabe a utilidade, troca a namorada por sua amiga Glória, porque ela tem
uma posição social melhor do que a nordestina e no final, segundo as próprias palavras do
narrador, “no futuro, que eu não digo nesta história, não é que ele terminou mesmo deputado?
E obrigando os outros a chamarem-no de doutor” (LISPECTOR, 1995, p. 63), ironizando os
tipos de políticos que elegemos.
Sobre Glória, Souza (2006, p. 99) diz que a “loura oxigenada, cabelos crespos em
amarelo-ovo, um estardalhaço de existir, no dizer de Rodrigo, é a menos miserável na galeria
dos desvalidos de A hora da estrela”, isso porque além de trabalhar na mesma firma que
Macabéa e ter um namorado, ela mora na rua “General não-sei-o-quê”, é pertencente de um
“terceira classe burguesa havia no entanto o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro
em comida” (LISPECTOR, 1995, p. 83), mas mesmo assim não deixava de ser mais um
reflexo da “sociedade técnica”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
343
O médico, que não tem nome só função, e a cartomante Madame Carlota são
personagens periféricos que surgem na narrativa para, o primeiro - anular ainda mais Macabéa
e mostrar o descaso e descompromisso da sua profissão e, a cartomante – trazer para narrativa
um pouco de esperança para a Macabéa. No entanto, como coloca Souza (2006, p. 98) “essas
personagens representam segmentos recortados da sociedade que transforma seres humanos
em mercadoria”, pois basta analisarmos o comportamento do médico diante da sua profissão,
mostrando-nos que a sua prática na medicina é baseada no dinheiro e não ao atendimento dos
pacientes. Enquanto que madame Carlota apresenta, além de uma miséria moral, por ter sido
prostituta, cafetina e agora cartomante, essa sua sequência de funções só demonstram o que a
“sociedade pode fazer com o ser humano quando ele não serve mais como força de trabalho”
(SOUZA, 2006, p. 99).
Os personagens que dão vida e movimento a narrativa de Clarice Lispector, desde o
narrador Rodrigo, senhor Raimundo, os que agora analisamos e, principalmente, Macabéa
revelam o quanto a autora utilizou da sua melhor arma, a palavra, para nos mostrar como a
sociedade é e como ela utiliza dos que nela vivem. A escrita, para aqueles que a leem, pode
ser considerada um pouco “baça e escurecida”, assim como o espelho estava para Macabéa,
mas é com essa consciência de reconhecimento que analisamos como Clarice Lispector
consegue na obra A hora da estrela falar sobre a sociedade tão implicitamente e
explicitamente ao mesmo tempo.
Ainda sobre a maneira de Clarice Lispector escrever, Kadota (1997, p. 138) diz que na
obra A hora da estrela a experiência textual é “corroída” pela linguagem, e é marcada pela
inquietação social, segundo a estudiosa, a narrativa “inegavelmente indica o social”,
mostrando-nos que a escrita de Lispector percorre o social e não somente o intimista e o
subjetivo. Poderíamos ler a narrativa e simplesmente afirmar e atender ao pedido do narrador
quando ele disse,
De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a
criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu. Cuidai dela
porque meu poder é só mostrá-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve
por causa da esvoaçada magreza. (LISPECTOR, 1995, p. 33)
Não tomamos somente Macabéa para o nosso cuidado, mas junto com a personagem
olhamo-nos no espelho e identificamos o reflexo da crítica social na obra clariciana.
Analisamos como aquele momento em que Macabéa é quase demitida e a sua ida ao banheiro
é uma das partes que a autora nos mostra, por trás das personagens e da história, como de fato
é a sociedade. Salientemos, que desse episódio na firma é que conhecemos a história da
Nas fronteiras da linguagem ǀ
344
personagem nordestina, nessa ocasião de reconhecimento de Macabéa ao se olhar no espelho
é também para nós leitores o ato de conhecimento da moça, pois é quando sabemos quem é
ela, de onde veio e mora, o que faz, enfim, somos apresentados “pessoalmente” a Macabéa.
Portanto, vimos os reflexos do contexto social e da condição dos personagens
na obra A hora da estrela, ressaltando a crítica a “sociedade técnica”, o significado simbólico
que o espelho proporciona nos trechos analisados e as características da escrita de Lispector.
A maneira como a narrativa foi construída com os seus personagens, permitiu-nos uma
posição privilegiada para, mesmo com o “espelho baço e escurecido”, enxergamos como a
autora trata sobre o social em sua obra. Macabéa era só mais uma nordestina entre tantas, mas
nesse romance conseguiu destaque e vez ao grito, ela foi o reflexo da sociedade naquele
espelho.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
_______. A cultura popular da Idade Média e o renascimento: contexto de François Rabelais.
Trad. Yara F. Vieira. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1996.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos,
costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera da Costa e Silva [et al.].
23 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
KADOTA, Neiva Pitta. A Tessitura Dissimulada: O social em Clarice Lispector. São Paulo:
Estação Liberdade, 1997.
LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. 23 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
MEDEIROS, Antonia Gerlania Viana. Estética do feio: a presença do grotesco em A hora da
estrela. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Departamento de Letras,
Campus Avançado “Profa. Maria Elisa de Albuquerque Maia”, Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte, Pau dos Ferros, 2009.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem. Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo:
Ática, 1995.
SOUZA, Ana Aparecida Arguelho de. O humanismo em Clarice Lispector: um estudo do ser
social em A hora da estrela. São Paulo: Musa Editora, 2006.
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
345
O ENSINO DE PRODUÇÃO DE TEXTO À LUZ DA
CONCEPÇÃO DE ESCRITA INTERACIONAL
[Voltar para Sumário]
Antonia Maria de Freitas Oliveira (UFRN)
Introdução
As discussões relacionadas a necessidade de se melhorar a qualidade da educação no
país, travadas nas últimas décadas, mantêm como foco o ensino de Língua Portuguesa-LP. No
Ensino Fundamental, o ponto de convergência dessa discussão aponta, principalmente, para o
eixo da leitura e da escrita, conforme afirma os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de
Língua Portuguesa do ensino fundamental do 6º ao 9º ano, (1996, p. 19).
As dificuldades que os alunos desse nível de ensino apresentam em compreender o
que leem e de se fazer compreendidos quando produzem textos escritos é uma evidência do
fracasso no ensino dessa disciplina, principalmente no desenvolvimento das capacidades
leitoras e escritoras dos alunos.
Tendo em vista essa realidade é que constantemente
professores e pesquisadores da área da Linguística se empenham em buscar estratégias
teóricas e práticas que possam superar essa deficiência.
No que se refere ao ensino de produção de textos, inicialmente, é necessário que se
compreenda a complexidade que envolve o ato de escrever. Pois, além do domínio de
diversos conhecimentos como o linguístico, o enciclopédico, o interacional e o textual
necessários à construção de textos em qualquer que seja a modalidade, ainda há que se
considerar todas as características peculiares a situação de produção dos discursos construídos
na modalidade escrita da língua. Dentre estas, podemos considerar a ausência do leitor no
momento em que o texto está sendo produzido como um dos elementos que mais contribuem
para a dificuldade que circunda esse processo. A falta de interação instantânea entre autorleitor, que não é possível nos textos escritos, requer do autor um maior cuidado durante o
processo de elaboração do texto.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
346
A queixa mais comum entre os professores de LP em relação ao fracasso do ensino
aprendizagem da produção de textos é a desmotivação dos alunos no momento de atender as
atividades de produção textual que são propostas em sala de aula. Quem convive nesse
ambiente sabe da veracidade do que é alegado por esses profissionais. Há, de fato, uma
resistência por parte dos alunos em produzir textos. Porém, este fato torna-se contraditório
quando se observa que estes mesmos alunos que se mostram avessos a produzir textos em sala
de aula escrevem a todo instante em outros ambientes sem sentir nenhum pesar em fazer isso.
Os “bilhetinhos” que eles usam para se comunicar durante as aulas, as perguntas e respostas
aos “questionários coletivos” que eles mesmos produzem, as postagens escritas nas diversas
redes sociais, as listas de compras que fazem em casa, os e-mails que enviam a parentes e
amigos são apenas alguns exemplos de como os alunos gostam de escrever.
Dada essas duas realidades, contraditórias entre si no que se refere ao gosto do aluno
pela escrita, o propósito inicial deste artigo é analisa-las à luz de algumas das diversas
concepções de escrita a fim de apresentar uma resposta sobre o que causa tanta desmotivação
aos alunos na hora de escrever na sala de aula e que, por fim, torna as aulas de produção de
texto tão improdutivas. Em seguida, através da apresentação de um exemplo de prática de
letramento trabalhada em uma sala de aula, este artigo busca atender a um último propósito
que é o de mostrar estratégias de ensino de produção de texto que, de fato, contribuam para o
desenvolvimento de um aluno produtor de textos.
Para tanto, usaremos como respaldo teórico, principalmente, os estudos de Passarelli,
(2004 e 2012) e os de Koch e Elias (2009), que tratam, respectivamente, do ensino de
produção de texto sob a perspectiva da escrita processual e da escrita como atividade
interativa.
1. O que é a escrita para a escola? E para o aluno?
A forma como os alunos reagem às situações cotidianas que demandam o uso da
escrita e a maneira como se comportam diante das propostas de produção de texto na sala de
aula deixam transparecer a ideia de que escrever tem significados diferenciados para a escola
e para os alunos.
Nas aulas de produção de textos, o ensino dos conhecimentos gramaticais, ortográficos
e lexicais, ainda são colocados como prioritários. Desse modo, a ideia de escrita que é posta
para o aluno é a de que escrever bem é saber as regras da gramática, ter um vocabulário amplo
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
347
e saber grafar bem as palavras. Subjacente a essa ação pedagógica está a concepção de escrita
que mantém como foco a língua.
Para Koch e Elias, conceber a escrita desta forma, mantendo a língua como foco,
implica perceber o texto como um produto construído apenas por elementos de natureza
linguística cuja compreensão requer do leitor apenas o domínio desses mesmos elementos.
Visto desse modo, todo texto é objetivo, não sendo possível haver mais de uma interpretação
para o mesmo, uma vez que o seu sentido encontra-se apenas no código linguístico utilizado
(2009, p. 33).
Embora os conhecimentos linguísticos sejam indispensáveis à construção de textos, sozinhos
eles não dão conta de um processo tão complexo como esse. Pois, como dito anteriormente,
produzir textos demanda o domínio e a ativação muitos outros conhecimentos e estratégias
por parte do autor.
Essa compreensão de escrita acaba por orientar, não só o ensino mas também a
avaliação que é feita dos textos, conforme afirma Passarelli:
Temos assistido a procedimentos de rotina calcados em moldes de ensino que têm
como base a gramática normativa, tanto para o ensino de produção de textos como
para sua avaliação. Os estudos metalinguísticos roubam a cena de episódios de
produção de textos: protagonizam atividades voltadas a temas referentes ao que mais
fácil e acomodadamente se detecta na superfície textual. (PASSARELLI, 2012, p.
91).
Assim, os alunos são obrigados a escrever textos em que a obediência as regras da
língua deve ser a principal preocupação, uma vez que serão avaliados a partir desse
parâmetro. Por fim, produzir texto na escola resume-se a escrever seguindo um padrão de
correção linguística para ser avaliado pelo professor e atribuído uma nota proporcional ao
número de acertos ou de erros.
Uma ação pedagógica calcada por esses moldes está muito aquém do que se espera da
escola em relação ao letramento do aluno, uma vez que, segundo os PCN de LP, cabe a essa
instituição garantir que ao longo do ensino fundamental “cada aluno se torne capaz de
interpretar diferentes textos que circulam socialmente, de assumir a palavra e, como cidadão,
de produzir textos eficazes nas mais variadas situações” (BRASIL, 1996, p. 21).
No dia a dia, a escrita dos alunos adquire outras dimensões. O propósito deixa de ser a
avaliação do professor e passa a ser o de comunicar, de estabelecer uma interação com um
leitor real. A preocupação maior, neste caso, deixa de ser a de obedecer a regras gramaticais,
ortográficas e lexicais e passa a ser a utilização de conhecimentos e estratégias adequadas
Nas fronteiras da linguagem ǀ
348
para que as suas intenções se tornem mais compreensivas para o leitor. Nessa forma de
conceber a escrita o foco está na interação autor-leitor e o texto é “considerado um evento
comunicativo para o qual concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e interacionais”
(BEAUGRANDE apud KOCH e ELIAS, 2009, p. 33). Bem diferente de como é visto e
tratado pela escola.
Aproximar as produções textuais que são feitas na escola daquelas que os alunos
praticam no dia a dia deles, é uma alternativa que parece bem positiva para que se supere o
fracasso que ao longo dos anos tem marcado o ensino de LP. Dessa forma, seria necessário
rever as antigas práticas pedagógicas voltadas para o ensino e produção de texto e pensa-las
de maneira que o seu ensino tomasse como ponto de partida a compreensão de escrita dos
próprios alunos. Embora as experiências que eles trazem sobre a escrita sejam cotidianas e
informais a escola poderá partir delas e expandir para contextos mais formais. Como diz
Passarelli (2012), a escola precisa aproveitar a predisposição dos alunos para escrever.
Produzir textos com o propósito, meramente, de ser avaliado por um professor,
referente, somente, ao emprego correto das normas linguísticas, como já foi posto
anteriormente, não estimula nenhum pouco o aluno a escrever. Tampouco oferece condições
para que o aluno se torne competente linguisticamente para interagir por meio da linguagem
em diferentes contextos, como se espera do ensino de LP.
A aproximação que se propõe, relacionando a escrita de sala de aula com o uso que é
feito dela em ambientes extraescolares, fazendo com que os alunos percebam algum sentido
naquilo que é ensinado na escola, como condição essencial para se mudar o ensino de LP,
requer uma mudança nas estratégias didático-pedagógicas adotadas em sala de aula que
deverão ser orientadas, sobretudo, por uma concepção de escrita diferente das que orientam
essas práticas improdutivas que aí estão, que, por sua vez, consideram o texto acabado, pronto
como objeto de avaliação. Essa visão que ora se tem, tanto de texto como de escrita descarta
todo o processo pelo qual o texto passa até chegar ao produto final. De acordo com Oliveira
(2010), “ O professor que vê a escrita apenas como produto tende a dificultar o
desenvolvimento da competência redacional dos alunos por não ajudá-los a se
conscientizarem que a escrita requer planejamento” (OLIVEIRA, 2010, p. 120).
Nos novos paradigmas de ensino de LP que se propõe, é preciso que o ensino e
avaliação da escrita tenha como base teórica a concepção de escrita como uma atividade
interativa que ocorre em função de um leitor e que se dá por meio de um processo que é
realizado por etapas. Vista desse modo, a escrita, incidirá uma mudança bastante significativa
sobre a forma como será ensinada e avaliada na sala de aula.
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Partindo dessa perspectiva, as atividades de produção de texto deverão sempre levar
em consideração que:
A escrita é um trabalho no qual o sujeito tem algo a dizer e o faz sempre em relação
a um outro (o seu interlocutor/leitor) com um certo propósito. Em razão do objeto
pretendido (para que escrever?), do interlocutor/leitor (para quem escrever?), do
quadro espacio-temporal (onde? Quando?) e do suporte de veiculação, o produtor
elabora um projeto de dizer e desenvolve esse projeto, recorrendo a estratégias
linguísticas, textuais, pragmáticas, cognitivas, discursivas e interacionais, vendo e
revendo, no próprio percurso da atividade, a sua produção (KOCH e ELIAS, 2009,
p. 36).
Daí as orientações para que o ensino de LP se dê a partir dos gêneros textuais.
Abandonando de vez o modelo de outrora que se baseava nas tipologias narrativas,
dissertativas e descritivas. Haja vista a materialidade dos gêneros textuais, usá-los como ponto
de partida para o ensino de línguas parece atender bem aos interesses dessa área. E para que
fique mais claro o entendimento sobre eles a definição dada por Antunes (2010), poderá
ajudar: “os gêneros é que constituem textos empíricos, é que constituem textos reais em
circulação [...] realizam-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente
reconhecíveis pela comunidade em que circulam” (ANTUNES,2010, p. 72).
Como os gêneros textuais existem em uma quantidade quase que incalculável, no
momento de escolhe-los para trabalhar em sala de aula a prioridade deverá ser dada àqueles
que têm maior importância para o uso social do aluno ou o que melhor atender ao propósito
comunicativo do momento.
Outro aspecto a ser observado no ensino de produção de texto é a compreensão de que
um texto é o resultado de uma série de etapas e que a qualidade do produto final depende da
atenção que é dada a cada uma delas. E isto precisa ficar bem claro para o aluno, tanto quais
são os procedimentos específicos de cada uma delas como a importância de que elas sejam
cumpridas (PASSARELLI, 2004 e 2012). Levar os alunos à essa consciência poderá aliviá-los
dos pesares que ato de escrever provoca.
2. A escrita interativa: um processo que se realiza em etapas
As considerações apresentadas até aqui incidiram, basicamente, sobre a utilização da
escrita que feita pela escola e a que é feita pelos alunos em suas atividades cotidianas. Isso
tudo no sentido de se chegar a uma compreensão dos fatores que estão ligados ao fracasso do
ensino de produção de textos. O modo como a escrita é praticada nas duas situações deixou
Nas fronteiras da linguagem ǀ
350
claro que em cada uma delas subjaz concepções de escrita diferenciadas. Dessas concepções
analisadas a que pareceu mais adequada para subsidiar um ensino de produção de textos que
seja comprometido com o desenvolvimento da competência linguística do aluno foi a
concepção de escrita interacional.
Assim, neste item será abordado o resumo de uma proposta de produção de texto
realizada à luz dessa teoria. Essa proposta parte de duas premissas consideradas como base
em um ensino de produção de textos que se propõe a ser produtivo: a de que a escrita é uma
atividade interativa e a outra, que ela se realiza em etapas.
O entendimento de que o ato de escrever requer a utilização de diversos
conhecimentos e estratégias é muito importante no momento do professor planejar as suas
ações porque fará com que ele eleja apenas alguns aspectos para ser abordado de cada vez.
Essa seleção será favorável ao professor na hora da avaliação dos textos e ao aluno que terá
menos elementos com que se preocupar no ato da produção. Na proposta que será apresentada
os aspectos avaliados, foram, apenas, a qualidade dos argumentos e a organização deles
dentro do texto.
O contexto que motivou a atividade de produção de texto em questão foi um projeto
desenvolvido na escola sobre a temática a indisciplina na escola. No decorrer desse projeto,
foram criadas algumas regras e reforçadas outas já existentes, totalizando dez quesitos aos
quais os alunos teriam que obedecer enquanto estivessem nas dependências dessa instituição.
Dentre esses quesitos, o que causou maior descontentamento entre os estudantes foi a
proibição do uso do celular na sala de aula. Porém, a insatisfação não foi genérica. Os alunos
passaram a dividir opiniões sobre a aplicação dessa regra. Enquanto uns se colocaram a favor
achando que a proibição era favorável ao aprendizado deles, outros se colocaram contra
achando que a escola estava sendo demasiadamente radical. Diante dessa polêmica, os alunos
do 8º ano foram convidados a expressar suas opiniões sobre o assunto.
No primeiro momento da atividade foram colocadas as razões que levaram a escola a
proibir o uso do celular na sala de aula. Em seguida, os alunos tiveram a oportunidade de
expressar suas opiniões sobre o assunto colocando os porquês de estarem contra ou a favor da
medida em questão. Após esse momento, foram informados de que suas opiniões seriam
expressas em forma de texto escrito que deveriam ser postos nos murais da escola e que
apenas um deles seria publicado no blog da própria instituição. Foi esclarecido, ainda, que
essa atividade seria iniciada na aula do dia seguinte e que seria interessante a leitura de
materiais que versassem sobre o assunto para que assim se sentissem mais seguros das
opiniões que iriam defender.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
351
Na etapa seguinte foi discutido qual seria o propósito comunicativo do texto. Ficou
esclarecido, então, que a finalidade dessa escrita seria cada um defender o seu ponto de vista
sobre a questão da positividade ou negatividade do uso do celular na sala de aula procurando
ser persuasivo o suficiente para convencer, da sua opinião, aqueles que mantinham opinião
contrária. A consistência dos argumentos e a organização destes no desenvolvimento do texto
foi colocada como pontos centrais a serem avaliados. Esclareceu-se ainda que, uma vez que
seriam postos nos murais da escola e, pelo menos um deles, publicados no blog, todos os
alunos e funcionários da escola teriam acesso à leitura desses textos. Feitas essas
considerações, os alunos foram levados a chegar a uma conclusão a respeito de qual gênero
textual seria o mais adequado a construção do texto, tendo em vista os elementos
anteriormente discutidos. O artigo de opinião foi o gênero escolhido. Assim, considerando
que “a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto
dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor” (SCHNEUWLY, 2004, p.
23), o gênero escolhido, o artigo de opinião, foi bem pertinente.
Todo gênero textual possui uma forma preestabelecida que deve ser conhecida por
quem deseja utilizá-lo. Os gêneros que circulam em esferas mais formais e que não fazem
parte do cotidiano dos alunos, como é o caso do artigo de opinião, precisam de que seus
aspectos estruturais e estilísticos sejam ensinados na escola. Então, nesta etapa da proposta,
foi trabalhada as questões referentes a composição de um artigo de opinião. É importante
ressaltar que a dedicação a esse aspecto composicional se dá em virtude do conhecimento que
a turma possui a esse respeito. Sabendo que não existe gêneros que sejam mais adequados a
uma série/ano do que a outra, todos podem ser trabalhados em todas as séries, o que deve se
adequar é a profundidade que será dada a sua abordagem. É indicado que o professor, antes de
orientar a produção de um texto em um determinado gênero, sonde os conhecimentos prévio
que os aluno já possuem sobre ele.
A etapa seguinte foi o momento em que a primeira versão do texto começou a ser
escrita. É, geralmente, a hora mais tensa para os alunos. É quando eles começam a sentir as
reais dificuldades do ato de escrever. Nesse momento, o escritor, mesmo inconsciente, lança
mão dos diversos conhecimentos que adquiriu ao longo da sua vida escolar e doméstica. São
os conhecimentos que foram referenciados na parte inicial deste artigo, aos quais Koch e
Elias,
(2009)
chamam
de
conhecimento
linguístico,
conhecimento
enciclopédico,
conhecimento de texto e conhecimentos interacionais. Embora a avaliação do gênero em
construção não tenha como foco especificamente nenhum desses conhecimentos, a qualidade
argumentativa inevitavelmente dependerá do bom uso de todos eles. Koch e Elias (2009, p.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
352
37) ressaltam a importância dos conhecimentos ortográficos no processo de produção de
textos e no alcance do propósito pretendido. De acordo com essas autoras, dentro de uma
concepção de escrita que tem como foco a interação:
Obedecer às normas ortográficas é um recurso que contribui para a elaboração de
uma imagem positiva daquele que escreve, porque, dentre outros motivos,
demonstra: i) atitude colaborativa do escritor no sentido de evitar problemas no
plano da comunicação; ii) atenção e consideração dispensadas ao leitor. (KOCH e
ELIAS, 2009, p. 37).
Uma ação pedagógica orientada pela concepção de escrita interacional não ignora, no
ensino e avaliação de produção de textos, a utilização adequada dos elementos linguísticos de
acordo com as regras da língua, porém não coloca esses aspectos gramaticais como foco dessa
ação, como ocorre com práticas orientadas por outras concepções.
Os outros conhecimentos mencionados contribuem igualmente para a elaboração do
texto. Como o próprio nome deixa claro, os conhecimentos interacionais se referem a natureza
da própria escrita, já que que o ato de escrever pressupõe uma interação. Conforme esclarece
Koch e Elias (2009, p. 44), esses conhecimentos nada mais são do que estruturas cognitivas
relacionadas as práticas interacionais. A atuação desses conhecimentos no momento da escrita
faz com que o autor selecione as estratégias que sejam mais adequadas para que a sua
intenção chegue ao leitor. No caso do conhecimento enciclopédico, é ele que vai garantir que
o escritor terá sobre o que discorrer quando estiver escrevendo. Assim, ele precisará ter um
certo repertório de informações adquiridas através de fontes variadas como leituras,
conversas, escutas e vivências. Desse modo, os alunos que produziram os textos sobre o uso
do celular na sala de aula posicionando-se sobre essa ser uma prática positiva ou negativa,
precisariam necessariamente saber o que é um celular e quais são as funções básicas e
acessória deste aparelho para poder julgar se o uso dele em sala de aula é prejudicial ou não
ao aprendizado do aluno, além de ter noção sobre o que são direitos e deveres da escola e do
aluno. Ao escrever, qualquer coisa que seja, o produtor já tem ideia do formato que terá o seu
texto. O escritor sabe qual o modelo de um bilhete, de uma lista de compras, por exemplo.
Quando o texto que vai produzir não lhe é comum ele precisa adquirir conhecimento sobre a
forma como se estrutura um texto dessa natureza. Esse tipo de conhecimento Koch e Elias
(2009), chamam de conhecimento de texto.
Considerando o roteiro proposto por Passarelli (2004), para ensinar o processo da
escrita, que prevê quatro etapas, nesta ordem: planejamento; tradução de ideias em palavras;
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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revisão e editoração, neste primeiro momento da proposta em questão, as duas primeiras
etapas foram cumpridas.
Concluída a primeira versão do texto, os alunos foram orientados a formar duplas para
a realização de uma atividade que consistia em cada um ler o texto do outro e procurar
identificar o ponto de vista que estava sendo defendido e os argumentos utilizados para
defende-lo. Feito isso, desfizeram-se as duplas e cada aluno foi analisar se o que o colega
entendeu como ponto de vista e argumentos, eram, de fato, compatíveis com as intenções que
tinha no ato da produção. Havendo compatibilidade ou não, a orientação, neste momento, era
para que o aluno visse aspectos que precisariam e os que poderiam ser melhorados no texto no
sentido de torna-lo mais claro, coerente e organizado. Terminada essa etapa, que Passarelli
(2004) chama de revisão, os textos foram recolhidos para serem analisados pela professora,
que faria as interferências cabíveis de acordo com os critérios que haviam sido estabelecidos
para a avaliação. Então, usando a avaliação não segundo critérios quantitativos, no sentido de
atribuir uma nota, mas usando no sentido de reorganizar suas práticas pedagógicas tendo em
vista a melhoria da aprendizagem do aluno, foram observados os pontos selecionados para a
avaliação, que como já foram mencionados, eram relativos a qualidade dos argumentos. A
partir dessa análise, os alunos foram orientados a fazer mais leituras relacionadas ao tema
sobre o qual estavam escrevendo, foram trabalhadas, também, a questão da organização dos
argumentos dentro do texto e o emprego dos operadores argumentativos.
A etapa final dessa proposta, que Passarelli (2004) denomina de editoração, foi o
momento em que os alunos “passaram a limpo” o texto fazendo os devidos “acabamentos” a
fim deixa-lo no formato necessário para tornar-se um texto público.
3. Considerações finais
O ensino e a aprendizagem de LP, segundo os PCN, é resultante da articulação de três
variáveis que são o aluno, a língua e o ensino. Dentro desta tríade, cada um desses elementos
representa um papel. O aluno é o sujeito da ação de aprender; a língua, o objeto do
conhecimento, e por último o ensino, que promove a mediação entre os dois anteriores. Se o
resultado do ensino e aprendizagem dessa disciplina não está sendo o esperado é porque não
está havendo uma articulação entre essas variáveis. E não está mesmo. O ensino,
materializado por meio de práticas pedagógicas não tem conseguido tornar viável o acesso do
aluno à língua.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
354
Uma mudança no sentido, de fazer com que o aluno domine os conhecimentos e
estratégias necessários a uma utilização satisfatória da língua nos diferenciados contextos
sociais, depende, basicamente, de uma modificação na forma de aborda-la em sala de aula.
A proposta de produção de texto que este artigo trouxe não teve a pretensão apenas de
ser um relato de uma prática, mas, sobretudo de se apresentar como uma sugestão de atividade
que poderá ser aplicada em qualquer turma e por qualquer professor. O que não se pode
perder de vista é que o ensino da escrita ou do texto tem que partir de situações concretas e
representar usos reais de linguagem, tem que se considerar a complexidade desse processo e
que não existe texto pronto, o que existe são apenas versões melhoradas. E, por fim, que a
avaliação que se faz da escrita seja menos voltada para a nota do aluno e mais voltada para a
orientar as práticas didáticas do professor.
4. Referências
ANTUNES, Irandé. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial,
2010.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e
quarto ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa/ Secretaria de Educação
Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.
KOCH, Ingedore Vilaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e escrever: estratégias de produção
textual. São Paulo: Editora Contexto, 2009.
OLIVEIRA, Luciano Amaral. Coisas que todo professor de português precisa saber: a teoria
na prática. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.
PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensino de produção textual: da ‘higienização’ da escrita para a
escrita processual. In: CINTRA, Anna Maria Marques; PASSARELI, Líllian Ghiurro.
(Coord.) A pesquisa e o ensino em língua portuguesa sob diferentes olhares. São Paulo:
Blucher, 2012.
PASSARELI, Líllian Ghiurro. Ensinando a escrita: o processual e o lúdico. 4 Ed. São Paulo:
Cortez, 2004.
SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e
ontogenéticas. In: SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na
escola. Trad. Roxane Rojo. Campinas: Mercado das Letras, 2004.
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355
INCONSCIENTE E SIMBÓLICO EM PERTO DO CORAÇÃO
SELVAGEM
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Antonielle Menezes Souza (UFS)
Marcio Carvalho da Silva (UFS)
Perto do coração selvagem é o romance inaugural da escritora Clarice Lispector,
sendo um dos mais importantes de sua carreira, livro extremamente elogiado pelos críticos de
sua época, denominando-o como a melhor novela escrita por uma mulher. Movido por uma
alta carga de densidade psicológica onde a autora aborda de maneira bastante complexa os
conflitos internos da personagem principal chamada Joana. Além de apresentar uma inédita
forma descontinua de narração e uma inovadora expressão verbal que levou o romance a obter
uma força poética imensamente relevante, característica que marca profundamente o
panorama da ficção brasileira da década de 40.
A referida obra é divida em duas partes, a primeira os capítulos se alternam entre a
Joana criança e a Joana mulher onde nos são expostos fatos e situações diárias, assim como
seus questionamentos, inseguranças, interrogações a respeito da existência humana e seus
conflitos cotidianos. Já na segunda parte do livro a autora nos apresenta a personagem Joana
em sua fase adulta repleta de questionamos, insatisfações e meditações altamente reflexivas a
cerca do seu cotidiano do mundo adulto e patriarcal.
É mister frisar a similaridade e estreitamento das técnicas abordadas e apresentadas
pela escritora Clarice Lispector com as da Virgínia Woolf e do James Joyce, quanto a
densidade psicológica empregada na narrativa. Apresenta, para a época, com sua nova
expressão verbal, a estreante aproximara-se, também, dos grandes transgressores, da até então
rotina literária, Mário de Andrade, com Macunaíma, e Oswald de Andrade, com Memórias de
João Miramar, onde obtiveram êxito ao expandir o domínio de palavras sobre regiões
complexas e inexprimíveis, ou seja, fazer ficção a partir do conhecimento do mundo e das
ideias.
A partir desse âmago mimético são construídos vários romances e contos da escritora
Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro plano, e mais intenso, de arte e
Nas fronteiras da linguagem ǀ
356
criação literária fatores fundamentais para o estudo proposto em questão, visto que o romance
Perto do Coração Selvagem acentua-se, generosamente, pelo viés introspectivo-reflexivo.
Clarice Lispector é indiscutivelmente uma das escritoras mais relevantes da Geração
de 45 no Brasil. Geração essa que despontou na poesia representada na obra de João Cabral de
Melo Neto, quando o seu processo de criação buscou “lapidar a palavra”, buscando a
expressão exata ao fazer do poema um exercício de denúncia das agruras sociais, a exemplo
de A educação pela pedra.
Além da poesia, a produção da prosa no período ocorreu de forma extremamente
fecunda, tendo como representantes Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles com uma densa
narrativa psicológica ao sondarem o mais íntimo das personagens, vasculhando as
profundezas da mente humana e suas angústias, medos e sentimentos. Ainda nesse período,
outro expoente na prosa foi representado pela reinvenção da linguagem, que mesmo sua
narrativa sendo ambientada no esmo do espaço do Sertão, desponta pelo exemplo de
universalismo das temáticas abordadas.
Possuidora de uma vasta e rica obra literária com características marcantes,
personagens densos e inadaptados ao mundo. Lispector nos apresenta uma escrita
completamente afastada das técnicas do romance tradicional. Promoveu a quebra da fronteira
entre a voz da narradora e dos personagens, construindo assim narrativas interiorizadas,
introspectivas. Com uma personalidade demasiadamente singular e intrigante, reconhecia o
valor do mistério e do silêncio. Dessa maneira, com sua áurea inatingível tentava
insistentemente compreender e traduzir a alma humana.
Na narrativa Perto do coração selvagem, o objeto do nosso atual estudo, a escritora
nos expõe uma personagem e uma alta densidade psicológica, demonstrando-nos fluxos de
consciência, e inquietações de sua vida interior, ou seja, os conflitos de natureza psicológica.
Notamos uma narrativa que oras mergulha no passado, em outros momentos no presente,
partindo sempre do fio condutor de sua memória.
Desse modo, notamos que a estreante inova ao apresentar uma escrita emergida à alta
densidade psicológica e ao arquitetá-la a subjetividade com tamanha maestria. É interessante
observar na narrativa Perto do coração selvagem mediante a ótica do professor Benedito
Nunes que:
[...] na obra de estreia de Clarice Lispector, acima de leve trama que ainda
acompanha uma ação romanesca já francamente interiorizada, a rede dos “pequenos
incidentes separados” que Virginia Wolf tanto valorizou e que fazem da sua maneira
de narrar uma convergência de momentos de vida vários e dispersos. Ora, o que liga
o romance de Clarice Lispector a esses autores é menos uma técnica ou
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
357
procedimento particular do que os processos comuns – o monólogo interior, a
digressão, a fragmentação dos episódios -, que sintonizam com o modo de apreensão
artística da realidade na ficção moderna, cujo centro mimétrico é a consciência
individual enquanto corrente de estados ou de vivências. (NUNES, 1995, p.13)
Notamos, então, que na referida obra uma necessidade intensa de investigar as
camadas mais densas da consciência e da inconsciência humana na procura, talvez, de
compreender o sentido da existência. Percebemos uma significativa proximidade dessa
narrativa com os estudos junguianos, visto que a ficcionista tenta dissecar a alma humana,
assim como, os conflitos mais íntimos.
Para a teoria junguiana tanto a palavra quanto a fala podem expressar o que se deseja
comunicar, visto que a linguagem é repleta de símbolos que muitas vezes são associados a
sinais e imagens que não são necessariamente descritivos. Para Jung:
O que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos
pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações especiais além do seu
significado evidente e convencional. Implica numa coisa vaga, desconhecida ou
oculta para nós. (JUNG, 2008, p.18)
Dessa maneira, a palavra, linguagem ou uma imagem é simbólica e implicará, segundo
as teorias junguianas, significados muito além dos imediatos. Logo, observamos que quando a
mente explora um símbolo ela, segundo Jung “é conduzida a ideias que estão fora do alcance
de nossa razão”.
Desse modo, através de uma aparente linguagem simples, a escritora mergulha no
amago do ser humano, mais precisamente da personagem Joana, revelando assim uma
permanente preocupação em alcançar a verdade escondida na aparente simplicidade das
palavras. É relevante verificar que na obra ficcional Perto do coração selvagem, acontece um
discurso direto alternado ao indireto, em inúmeros trechos, sobretudo na parte final do
romance, transformando-o constantemente em um monólogo onde a personagem ficcional
busca o autoconhecimento.
Observa-se a significativa e relevante contribuição da obra de Clarice Lispector na
literatura, sobretudo na produção de romances introspectivos, raridade entre nossa produção
literária. Grande exemplo dessa produção literária dar-se-á através da obra Perto do coração
selvagem, onde solicitará do leitor um preparo e bom conhecimento psicológico, já que em
um primeiro contato com a obra, observamos que a mesma causa certo estranhamento e
dificuldade na compreensão. Superada essa primeira etapa, é possível conhecer uma escrita
indefinível, uma mistura de prosa, confissão, discursos e reflexões internas.
Para Antônio Candido, a obra Perto do coração selvagem é:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
358
“[...] uma tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios
pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para
o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um
instrumento real do espírito, capaz de nos fazer penetrar nos labirintos mais
retorcidos da mente.” (CÂNDIDO, 1970, p.126)
Desse modo, e a partir da leitura, e consequente reflexão a respeito da observação de
Antônio Candido, notamos que após esse âmago mimético são construídos vários romances e
tantos outros contos da escritora Clarice Lispector, sendo a experiência interior o seu primeiro
plano de arte e criação literária.
A prosa é bastante densa e discorre a partir da experiência interior da personagem
Joana que ainda menina é muito inquieta e questionadora, e enquanto mulher se apresenta no
decorrer da trama uma pessoa confusa e indecisa. Encontramos, também, indiscutivelmente, a
minúcia das descrições das múltiplas experiências psíquicas e de uma constante oscilação e
modificação interior uma tentativa constante de equilíbrio entre o ego e o “si-mesmo”. Porém,
para Jung “não importa até onde o homem estenda os seus sentidos, sempre haverá um limite
à sua percepção consciente”.
Dessa maneira, Jung nos apresenta as dificuldades encontradas pela mente humana
para obter a profunda percepção dessa parte obscura, não tão aparente, que é o nosso
inconsciente. Assim, notamos uma Joana perdida em um labirinto de memórias e autoanalise
em busca sempre o equilíbrio, a compreensão de suas atitudes e o reflexo delas em si mesma e
no outro.
Percebemos, dessa maneira, que a personagem transcende do plano psicológico para o
metafísico investigando e refletindo sobre a sua verdadeira essência.
Isso não é matéria de fácil compreensão, mas é preciso entendê-la se quisermos
conhecer mais a respeito da mente humana. O homem, como podemos perceber ao
refletirmos um instante, numa percebe plenamente uma coisa ou a entende por
completo. Ele pode ver, ouvir, tocar e provar. Mas a que distancia pode ser, quão
acuramente consegue ouvir, o quando lhe significa aquilo em que toca e o que
prova, tudo isso depende do numero e da capacidade dos seus sentidos. (JUNG,
2008. p.21)
Assim, observamos nítida e claramente que a percepção do ser humano limita-se
diretamente ao mundo à sua volta e às experiências adquiridas ao longo de sua trajetória.
Joana é definitivamente umas das personagens mais sensitivas e introspectivas da Clarice, e é
interessante observar que de modo geral, a noção de subjetividade privada, embasada na
distinção moderna entre público e privado, foi adulterada nos últimos quatro séculos, na
passagem do Renascentismo para a modernidade.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
359
No entanto, o sujeito da modernidade, centrado e soberano, já que se vê questionado
de certo modo desde sua constituição [...] Não é por acaso que justamente aí surge a
ideia e um sujeito descentrado. É o momento da conceitualização de outra
concepção de aparelho psíquico com Freud, que irá operar uma subversão do tópos
subjetivo, calcado na tríade eu/consciência/racionalidade. (HOMEM, 2012, p.67)
O sujeito moderno, como acontece com a personagem Joana, compõe-se nessa
passagem devido à própria magnitude da crise nas estruturas vigentes, sendo o Renascimento
sua inevitável ampliação de horizontes, onde propicia a sensação de perda de referências,
anteriormente revestidas na estruturação hierarquizada e divinizada da realidade.
No desenrolar da narrativa, mais precisamente, desde o princípio dela, percebemos que
o desejo “inconsciente” de encontrar a sua personalidade a fim de domar e, por fim, se libertar
do coração selvagem preenche por completo o ser de Joana, situação que se converteu em um
problema real ao ser intensificado na fase adulta. Visto que essa personalidade não fora
cultivada, e sim negligenciada inteiramente na infância, dificultado, assim, o seu
desenvolvimento, onde percebemos, segundo Jung, que:
“Ao chegar à idade escolar, a criança começa a fase de estruturação de seu ego e de
adaptação ao mundo exterior. Essa fase traz em geral um bom número de choques e
de embates dolorosos. Ao mesmo tempo, algumas crianças nessa época começaram
a sentir-se muito diferentes das outras, esse sentimento de singularidade acarreta
uma certa tristeza, que faz parte da solidão de muitos jovens. As imperfeições do
mundo e o mal que existe dentro e fora de nós, tornam-se problemas conscientes; a
criança precisa enfrentar impulsos interiores prementes (e ainda não
compreendidos), além das exigências do mundo exterior”. (JUNG, 2008, p. 218)
Notamos os conflitos de compreensão do meio social e as inquietações intimas da
personagem na narrativa ficcional em vários momentos. O mais significativo, dentre eles,
acontece na cena em que Joana, ainda menina, questiona a sua professora acerca do que se
conseguiria quando se fica feliz. “O que é que se consegue quando se fica feliz?” (Perto do
coração selvagem, p.29). A atitude deixa a professora totalmente desconcertada em classe e
sem respostas para aquela pequena garota. Observamos, dessa maneira, que “a personalidade
já existe em germe na criança, mas só se desenvolverá aos poucos por meio da vida e no
decurso da vida. Sem determinação, inteireza e maturidade não há personalidade.” (JUNG,
1993, p. 176).
Percebemos assim, a personagem Joana pré-disposta a uma determinada situação
cotidiana onde o universo da condição feminina de mulher e esposa, da relação do “eu” e o
“outro”, das falsidades humanas e da própria linguagem, sendo esta a única forma de
comunicação com o mundo como posturas constantemente questionadas. A realidade da
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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personagem é regida por meio de sua consciência individual, que originam monólogos
interiores, digressões e algumas fragmentações de episódios. Notamos no fragmento a seguir:
É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer.
Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não
exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.
(Perto do coração selvagem, 1998, p. 21)
É mister salientar que nota-se claramente dois fragmentos do livro Perto do coração
selvagem, tanto em Joana Criança, quanto na adulta a presença real do arquétipo da mulher
selvagem, definido Pinkola da seguinte maneira:
Quando a mulher consulta sua própria natureza dual, ela está cumprindo o processo
de olhar, examinar e sondar o material que está para além do consciente, sendo,
portanto, muitas vezes surpreendente no seu conteúdo e no seu tratamento, e quase
sempre de imenso valor. (PINKOLA, 1994, p 164)
Outro fragmento teórico da psicóloga juguiana Clarissa Pinkola que reforçaria a
presença real do arquétipo da mulher selvagem desde os primeiros estágios da infância da
personagem Joana na narrativa ficcional clariciana, segue:
Qualquer um que seja íntimo de uma Mulher Selvagem está de fato na presença de
duas mulheres: um ser exterior e uma criatura interior, uma que habita o mundo
terreno, e outra que vive num mundo não tão previsível. O ser exterior vive à luz do
dia e é observado com facilidade. Muitas vezes é uma pessoa pragmática, aculturada
e muito humana. Já a criatura costuma chegar à superfície vindo de muito longe e
com frequência aparece e desaparece rapidamente, embora sempre deixe uma
sensação: algo de surpreendente, original e sagaz. (PINKOLA, 1994, p 164)
É neste panorama de dualidades que encontramos Joana, personagem ficcional, em
constante conflito buscando constantemente um realinhamento do ego com a sua totalidade do
self em uma retomada do processo de individuação. Citado por Jung da seguinte maneira:
O verdadeiro processo de individuação – isto é, a harmonização do consciente com o
nosso próprio centro interior (o núcleo psíquico) ou self – em geral começa
infligindo uma lesão à personalidade, acompanhada do consequente sofrimento.
Esse choque inicial é uma espécie de “apelo”, apesar de nem sempre ser reconhecido
como tal. (JUNG, 2008, p 219)
Na segunda metade do livro, mais precisamente no final da narrativa, Joana mitigada
de sentimentos é arrastada ao adultério onde busca, neste momento, o autoconhecimento e o
encontro com o seu self, promove, assim, um envolvimento em vários questionamentos acerca
da vida e da morte, do bem e do mal, do amor e ódio. Neste momento final Joana obtém êxito
ao culminar o processo de individuação, sendo ele, para Jung: O homem só se torna um ser
integrado, tranquilo e feliz quando (e só então) o seu processo de individuação está realizado.
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Quando consciente e inconsciente aprender a conviver em paz completando-se um ao outro.
(JUNG, 2008, p 213)
A sincronização ocorrida através de tais eventos psíquicos internos e externos onde o
arquétipo se aproxima e ocorrem momentos de passagens, mudanças, transições, sofrimentos,
dificuldades, provocam em Joana o renascimento e florescimento de si mesma “ela própria
nascendo sobre a terra asfixiada, dividindo-se em milhares de partículas vivas, plenas de seu
pensamento, de sua força, de sua inconsciência... Atravessando a limpidez sem névoas
lentamente, andando, voando...” (Perto do Coração Selvagem, p.192).
É neste momento em que a personagem Joana se desfaz de todas as cascas do passado
revigorando-se mediante suas dores, onde se fortifica utilizando os detritos deixados o longo
do caminho como adubo para que renasça como uma árvore frondosa. Para Cirlot, no
dicionário dos símbolos (1984, p. 99) “a árvore representa, no sentido mais amplo, a vida do
cosmo, sua densidade, crescimento, proliferação, geração e regeneração”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta perspectiva do universo do imaginário coletivo estabeleceremos um diálogo
entre o objeto de pesquisa e a problemática proposta, onde será possível vislumbrar na
narrativa o arquétipo da mulher selvagem a fim de esculpir da melhor maneira as questões da
alma feminina. Desse modo, é possível verificar a significativa importância do estudo para o
despertar da psique e do seu conhecimento, estes que norteiam às mulheres a interagir em
sociedade, logo o seu retorno ao introspectivo.
É relevante observar que se torna presente no romance Perto do Coração Selvagem, o
autoconhecimento sendo este o caminho para promover as necessárias quebras de padrões
comportamentais que embaraçam o processo de individuação da personagem fictícia Joana.
Notamos que o caminho de Joana dentro da narrativa, segue uma dinâmica,
aparentemente, descontinuada e desconexa, absolutamente assimétrico e incoerente sempre
em busca do seu Self.
Dessa maneira é notável e perceptível que o estudo e analise da obra Perto do coração
selvagem pela vertente junguiana associada à mitocrítica abrirá uma nova senda para a nossa
literatura, consoante a mimese centrada a consciência individual como maneira artística da
realidade. Assim, consideramos que o estudo mais aprofundado da referida obra contribuirá
Nas fronteiras da linguagem ǀ
362
para ampliar a compreensão no campo das narrativas introspectivas da literatura associadas
aos recursos psicanalíticos, mitológicos e imaginários.
REFERÊNCIAS
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Cidades, 1970.
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DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
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Clarice Lispector. São Paulo: Boitempo; Edusp, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2009.
______.Estudos psiquiátricos. Tradução: Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes,
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TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Brasília: Universidade de
Brasília (UnB), 2003.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
363
O USO DOS SINAIS DE PONTUAÇÃO COMO MARCAS
DISCURSIVAS
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Antonio Cesar da Silva (UFAL/UNEAL)1
Cleide Calheiros da Silva (UFAL/IFAL)2
1. Língua, linguagem e gramática — perspectivas do ensino de língua escrita
As discussões em torno do ensino de língua materna, especificamente sobre as
estratégias e os métodos adequados que devem ser utilizados nos processos de ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa (LP), têm ocupado o centro das reflexões linguísticas nas
últimas décadas no Brasil. Um recorte pertinente dessa discussão é constituído pelas questões
que tratam dos aspectos do uso de recursos de língua escrita como forma de expressão da
linguagem.
As reflexões começam, por exemplo, quando se fazem pergunats tais como: Que
gramática ensinar? Ensinar gramática é o mesmo que ensinar língua? Aspectos da oralidade
devem ser tomados como temas de aula de LP? Como trabalhar fala, leitura e produção de
texto em sala de aula? Todas essas perguntas começaram a ser respondidas a partir da
elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), que, entre muitas
outras coisas, apontam os caminhos que o ensino de LP deve percorrer na educação básica
para evitar o “fracasso” do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita. A distinção entre
escrita alfabética e linguagem escrita é o centro de uma aprendizagem significativa da escrita,
quer do modus scripsendi (a maneira como se processa a escrita), quer do modus operandi (a
maneira como se configura o escrito).
Mestrando pelo programa PROFLETRAS – UFAL. Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
pela Universidade de São Paulo / Academia Alagoana de Letras (UNICID/AAL). Graduado em Letras pela
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Professor substituto de Língua Latina na Universidade Federal de
Alagoas (2004 - 2206). Professor de Língua Latina e Língua Portuguesa na Faculdade de Formação de
Professores de Penedo (2003 - 2007). Professor de Língua Latina, Linguística e Língua Portuguesa na
Universidade Estadual de Alagoas (2009 - 2015). Professor do quadro de professores da Secretaria Estadual de
Educação de Alagoas (SEED) e do quadro da Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED).
2
Mestranda em Educação Brasileira – PPGE/CEDU/UFAL – Linha e Grupo de Pesquisa: Educação e
Linguagem. Professora do Instituto Federal de Alagoas (IFAL).
1
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A pertinente diferença entre as habilidades de grafar o texto escrito e a competência
para redigi-lo aponta as distinções entres esses dois processos que desfazem a crença de que a
capacidade de escrever esteja relacionada ao domínio do processo alfabético. É sobre essa
distinção que os PCN’s fundamentam-se, conforme o texto abaixo.
A compreensão atual da relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar
rompe com a crença arraigada de que o domínio do bê-á-bá seja pré-requisito para o
início do ensino e nos mostra que esses dois processos de aprendizagem podem e
devem ocorrer de forma simultânea. Um diz respeito à aprendizagem de um
conhecimento de natureza notacional: a escrita alfabética; o outro se refere à
aprendizagem da linguagem que se usa para escrever. (PCN, 1997, p. 27).
No entanto, para essa discussão, a perspectiva de reflexão sobre a atividade de
escrever orienta-se
pela análise das competências e domínios do código escrito, visto
enquanto resultado de processos que se fixam por usos circunscritos no tempo como, por
exemplo, a passagem de uma ortografia mais etimológica para uma mais fonêmica. As
reflexões também são guiadas pela análise do código escrito enquanto resultado
de
convenções que justificam e orientam, por exemplo, a utilização de notações léxicas e de
sinais de pontuação.
Nesse sentido, as dificuldades em torno do ensino-aprendizagem do código escrito
apontam sempre na direção de fazer com que os alunos compreendam, durante todo o
processo de aquisição e desenvolvimento da escrita, que escrever requer habilidades e
competências específicas e distintas das que se utilizam na organização e elaboração da fala.
Por essa razão, ao longo do processo de aprendizagem, escreventes devem entender que a
escrita é “um espaço de convenções, um artefato elaborado de maneira consciente e, por isso
mesmo, submetido a um dirigismo deliberado”. (MARTIN, 2006, p. 53). O estudo das
manifestações de língua escrita, desconsiderando, no entanto, situações concretas de
interação, leva à abordagem de aspectos tangenciais do papel e da função da língua escrita.
2. Língua e linguagem — concepções da gramática normativa
Quando se fala no ensino de gramática, ou quando se pensa em obras de referência no
tratamento e apresentação de “regras” e de taxonomias gramaticais, tem-se em mente autores
como Napoleão Mendes de Almeida com sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa,
que em 2009 chegou à 46º edição com mais de meio milhão de exemplares vendidos. Celso
Cunha & Cintra são nomes também bastante lembrados pela obra Nova Gramática do
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
365
Português Contemporâneo. Não menos relevante é Rocha Lima com a Gramática Normativa
da Língua Portuguesa, inclusive, importante personagem, junto com Celso Cunha, na
formulação do anteprojeto de simplificação e unificação da Nomenclatura Gramatical
Brasileira (1958).
Essa lista de autores de referência, no que diz respeito à elaboração de compêndios
gramaticais, encerra-se com Evanildo Bechara, sem dúvida, o mais conhecido
contemporaneamente entre estudantes de LP por sua Moderna Gramática Portuguesa, que em
2009 teve publicada sua 37º edição. Há muitos outros autores de compêndios gramaticais, os
citados aqui, no entanto, são representativos e fundamentais para as reflexões que se
pretendem apresentar.
Num primeiro momento, o interesse é analisar e refletir sobre as concepções de língua
e linguagem que são utilizadas por esses autores em suas gramáticas. A importância dessas
considerações para este trabalho reside no fato de serem essas obras — basicamente, mas não
exclusivamente — responsáveis pelos substratos conceituais encontrados nos materiais
didáticos de língua portuguesa do ensino básico (fundamental e médio). As concepções
encontradas nessas obras dizem muito sobre a forma de perceber a relação entre língua e
linguagem que fundamentam as definições, as classificações e as tipologias apresentadas no
estudo de LP nas escolas brasileiras. Na Gramática Metódica da Língua Portuguesa, por
exemplo, Almeida (1994) categoricamente explicita que a linguagem constitui-se como “dom
comum de todos os homens, nem todos eles se comunicam pelas mesmas palavras”. Essa é
uma definição que se insere dentro de uma perspectiva de linguagem como um sistema de
signos abstratos cuja função é a manifestação do pensamento e que deve encontrar respaldo
na realidade. Segundo Almeida,
Como todos os outros animais, nós agimos; mas, à diferença deles, manifestamos e
externamos nossa ação, mediante o dom que nos é próprio, a linguagem, que outra
coisa não é senão a propriedade que temos de, por meio de palavras, comunicar-nos
entre nós, exteriorizando o nosso pensamento (...). (ALMEIDA 1994, p. 17).
Essa concepção de linguagem influencia, consequentemente, toda a perspectiva de
ensino-aprendizagem de língua e de gramática, que, não obstante, passa a ser vista,
hermeticamente, como um conjunto de fatos e fenômenos disponibilizado pela própria
“natureza social” na qual o usuário da língua está habitualmente inserido. Nessa mesma base
de concepção, mas já com uma inclinação a ver a língua como um fenômeno social, Cunha &
Cintra definem língua como um sistema de sinais, quando afirma que
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Língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da
consciência de uma coletividade, a LÍNGUA é o meio por que ela concebe o mundo
que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade da linguagem, criação da
sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução,
paralela à do organismo social que criou. (CUNHA & CINTRA, 2008, p. 1)
Embora aponte para o aspecto social e mutável da língua, a definição acima
permanece presa à ideia de que a linguagem é um fenômeno de natureza abstrata,
manifestação da consciência: um ser de razão. Essa é uma maneira de perceber a língua —
aspecto concreto da linguagem — como consequência da atividade humana, como
instrumento da razão ou da racionalidade; não como força geradora e constituidora do
conhecimento. De modo geral, as perspectivas que orientam o entendimento de língua(gem)
nos compêndios de gramática, entendem-na como um instrumental periférico que manifesta
analogicamente realidades imateriais: o pensamento. Por essa razão, os manuais desembocam
em apresentações de estruturas fechadas e enquadradas em definições, regras e taxonomias.
Apesar de ter lampejos de uma concepção interacionista, a definição de Cunha &
Cintra aponta para uma relação unilateral do uso da linguagem, em que a mudança que se
verifica na língua é consequência de transformações da sociedade que cria a língua. Não se
afasta dessa percepção, a definição que diz que a “LÍNGUA é um sistema: um conjunto
organizado e opositivo de relações, adotado por determinada sociedade para permitir o
exercício entre os homens” (LIMA, 1992, p. 5).
Esses três autores, que estiveram presentes durante muito anos — direta ou
indiretamente — na formação escolar dos estudante de LP, revelam-se presos a uma
concepção de língua(gem) estruturalista, que é, por sua vez, um desdobramento da ideia de
sistema (um todo organizado) que se presta à análise. Em consonância com essa perspectiva,
Bechara em sua Moderna Gramática Portuguesa identifica a natureza da linguagem como
“sistema de signos simbólicos”; a sua percepção é mais significativa porque ele representa um
gramático contemporâneo e profundamente inserido nas questões e discussões promovidas
pelos estudos linguísticos das últimas décadas.
“Entende-se por linguagem qualquer sistema de signos simbólicos empregados na
intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da
consciência”. (BECHARA, 2003, p. 28). Embora Bechara traga a ideia de intercomunicação
social em sua definição — nesse sentido, percebe-se a influência de perspectivas linguísticas
—, ele enxerga a língua como um sistema de signo em cuja construção de sentido
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circunscreve-se nos limites das estruturas que são estabilizadas no próprio fenômeno
linguístico.
A pertinência de Bechara, na forma como define a linguagem, evidencia-se na maneira
como categoriza suas manifestações. Sobre isso, o teórico salienta que “a linguagem,
entendida como atividade humana de falar, apresenta cinco dimensões universais: criatividade
(ou enérgeia), materialidade, semanticidade, alteridade e historicidade”. (Idem). Dessas cinco
categorias, interessa para este trabalho aquilo que Bechara denomina de alteridade, que
consiste em entender que o “significar é originalmente e sempre um ‘ser com outros’, próprio
da natureza político-social do homem, de indivíduos que são homens juntos a outros e, por
exemplo, como falantes e ouvintes, são sempre co-falantes e co-ouvintes” (ibidem). Nesse
posicionamento, pode-se enxergar uma postura, em relação à natureza da linguagem, mais
próxima de uma perspectiva interacionista, que concebe a natureza da linguagem como
resultante das práticas sociais de seus usuários.
Embora Bechara não chegue a tanto, demonstra reconhecer a presença das relações
sociointeracionistas nos fenômenos da linguagem. Quanto a não ir além — ao cerne da
abordagem interacionista ou a de qualquer outra que compreenda a natureza da linguagem per
se —, percebe-se que não vai porque não parece ser seu objetivo.
3. A escrita — espaço de convenções
Uma abordagem moderna do estudo da linguagem na direção da modalidade escrita da
língua precisa partir do entendimento de que esta é resultante de convenções, mas não no
sentido de ela ser resultado de elaborações arbitrárias sem causas e motivações linguísticas
pertinentes e identificadoras da própria natureza da linguagem. De fato, na escrita encontramse manifestações da realidade social em que ela se insere e que contribui para a mútua
formação e transformação na relação escrita-sociedade-escrita.
Esse processo de atualização é possível porque a escrita constitui-se de modo
autônomo e consistente — enquanto código com natureza particular e individualizante —
como artefato social e justifica-se in tempore (no momento do uso). Ela é artifício (arte +
ofício), que imita o natural, isto é, algo resultante de uma elaboração humana motivada por
necessidades sociais, mas que tem sua identidade, sua essência, que a distingue
substancialmente daquela que é imitada. É óbvio que não se pode negar a anterioridade da
modalidade oral, “o código gráfico é uma criação em segundo nível (...).”. (MARTIN, 2006,
p. 53). Ainda segundo Martin,
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“O código gráfico é também um artefato pelo uso que dele se faz. Onde o oral flui
de maneira natural (com maior ou menor falta de habilidade...), o escrito solicita
constantemente a função epiliguística. No momento em que é produzido, o sinal
gráfico é logo percebido como um sinal, como um espaço de correções
(...)”.(MARTIN, 2006, p. 54).
Nesse sentido, a escrita aproxima-se da fala como uma modalidade de língua com vida
própria, mas se submetendo aos mais diversos processos de estruturação, transformação e
normatização. A aproximação entre o oral e o escrito não se dá enquanto este é
desdobramento daquele, as distinções entre escrita e fala permitem dizer que o código gráfico
não é uma transcrição do oral, as distinções são tão verdadeiras e diversas que permitem
“encarar a possibilidade de tornar autônomos os dois usos, como duas línguas diferentes que
partilham o mesmo nome (...). Uma tal posição tem a vantagem de romper com a ingenuidade
da ideia, de pura transcrição” (ACHARD, 2006, p. 65).
Naturalmente que falar em normatização, ao tratar de oralidade, é combater em
batalhas vencidas, uma vez que é consenso que a fala não se presta à regularizações ou
normatizações, mas a perspectiva é entendê-las como princípios linguísticos que mantêm,
conservam e identificam a natureza ôntica da língua enquanto manifestação do idioma. “É,
assim, lícito reportá-los [domínios oral e escrito] a uma mesma norma abstrata, isto é,
considerá-los como dois subdomínios de uma mesma língua” (ibidem).
A essência distintiva requerida pela escrita em relação à fala fundamenta-se na
percepção de que a escrita não é uma notação fonológica, não se constitui, necessariamente,
de fonogramas. As diferenças entre escrita e fala dão-se, sobretudo, nos níveis
morfossintáticos e prosódicos; em que as estratégias da escrita são mais prolixas, no caso da
morfossintaxe; absolutamente particular (sui generis) no caso da prosódia, uma vez que a
expressão escrita traz a presença de marcas de pontuação, que só existe na expressão escrita.
Isso possibilita deduzir que a escrita é uma outra língua substancialmente diferente da fala.
Para Achard,
“O fosso [entre escrita e fala] torna-se um rio quando nos interessamos pela
organização geral da cadeia significante. Como no escrito, a organização em frases
tem seu modo de fechamento, e como vem acompanhada de uma organização em
sintagmas bem delimitados, é mais do que uma norma externa. No oral, pelo
contrário, uma tal organização quase só pode ser observada em circunstâncias de
escrito oralizado”. (ACHARD, 2006, p. 66).
Pode-se ir mais longe nessa reflexão, se se entender que a formação do constructo
gramatical prende-se, essencialmente, à natureza da língua escrita, isto é, quando se fala em
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normatização, faz-se referência à exteriorização ou à materialização de princípios linguísticos
da língua escrita. O transbordamento para o domínio da fala dá-se por processos ou
procedimentos análogos. Nesse sentido, “há, portanto, um evidente interesse em abordar o
estudo da língua oral abstendo-se de fazer referência a uma tradição gramatical que (...), em
linguística, se apresenta mais como preconceito do que como experiência acumulada”
(ibidem).
“Experiência acumulada” é o que se verifica quando se aborda, por exemplo, o
ensino-aprendizagem de LP a partir do conhecimento sistemático dos princípios linguísticos e
dos aspectos estruturais da língua. Quando alguém, ao dizer (ou escrever) a palavra “calção”,
faz referência a algo específico que, objetivamente, não tem relação com a ideia contida na
palavra “calça” e, em outra situação, usa o sufixo –ão para apenas adicionar uma noção
acidental (flexão), apontando o aumentativo (extensão) de um mesmo referencial semântico
como, por exemplo, na palavra “dedão”; evidencia-se a manifestação de domínios linguísticos
inerentes à estrutura linguística e assimilados naturalmente pelo usuário da língua.
A diferença de sentido e de aplicabilidade do elemento mórfico (o sufixo –ão), antes
de ser apresentada como um fenômeno resultante de relações normativas da língua, deve ser
refletida como um processo natural de um conhecimento adquirido com a prática e com o uso
social da linguagem. Num segundo momento, em situações específicas e especiais de
reflexão, podem-se estabelecer relações significativas e distinguidoras de seus usos e suas
aplicabilidades. Isto é, dizer que, em alguns casos, os sufixos podem promover um processo
de derivação — quando imprimem mudança de significado —, ou promover um processo de
flexão apenas, se conservar o núcleo semântico da palavra.
Explicitar esse processo, considerando os princípios linguísticos, não é normatizar o
uso dos sufixos, é, antes de tudo, descrever o funcionamento de princípios identificadores dos
fenômenos linguísticos e de efeitos fonológicos, morfológicos, sintáticos ou semânticos que
eles promovem. A escrita é um espaço de convenções, isto é, um ambiente de comunicação
em que os fenômenos linguísticos materializam-se de forma regulada por relações
sistemáticas e significativas que são aceitas, compartilhadas e, quando necessário,
transformadas.
A escrita vista como manifestação de língua distinta da fala gera inquietações
linguísticas, pois desfaz a perspectiva de que escrita e fala formem um continuum com as
mesmas possibilidades de formulação linguística e de manifestação social. Suas diferenças,
porém, não lhes conferem primazia nem maior ou menor grau de importância, pois “se há
alguma anterioridade entre fala e escrita isso se deve a aspectos cronológicos”.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
370
(MARCUSCHI, 2005, p. 26). No entanto, se fossem um continuum, os processos de aquisição
e de desenvolvimento das habilidades e competências que lhes circundam deveriam
manifestar-se de forma semelhante, isto é, a aquisição da escrita, por exemplo, deveria ter
qualquer coisa de espontâneo e, de alguma forma, apresentar-se como uma extensão da
aquisição e do desenvolvimento da fala.
Como proposta de equacionar o problema em torno da compreensão da escrita como
uma forma da língua essencialmente distinta da fala, pode-se ponderar e refletir a questão a
partir daquilo que Catach (2006) chama de plurissistemas, em que, considerando os conceitos
saussurianos de signo – significado – significante, propõe-se analisar se, na passagem da fala
para a escrita, verificam-se mudanças referencias (de significado), acidentais (de significante),
ou sígnicas (de essencialidade) —, ou tudo isso junto. Nesse sentido, vale a pena pensar
sobre que competências um falante adquire e/ou desenvolve ao se tornar um escrevente.
4. Marcas de pontuação — singularidade da escrita
Tradicionalmente, estabelece-se uma correspondência direta entre os fenômenos da
fala e suas representações gráficas na escrita. Essa necessidade sempre esteve presente porque
sempre se achou que para “escrever ou recitar, declamar ou cantar era preciso observar o
silêncio, que separa as expressões que formam um discurso; bem como, o tempo de respiração
durante a leitura”. (GRIMAREST apud CATACH, 1996, p. 35). No que diz respeito à
utilização dos sinais de pontuação, essa transposição de valores significativos da fala para a
expressão escrita é imperativa, porque se entende que “conexo com o problema ortográfico é
o da pontuação”. (HOUAISS, 1983, p. 90). Pode-se ir muito além dessa perspectiva
normativa no que diz respeito aos sinais de pontuação, pois as marcas de pontuação são aquilo
que há de mais singular na modalidade escrita, pensar em pontuação é, necessariamente, fazer
referência à expressão escrita.
5. A constituição das marcas de pontuação — do textual ao discursivo
Não se questiona que a relação e a influência da fala na estruturação e organização da
escrita devem-se, ao menos a princípio, à própria história de formação da escrita que ganhou
existência na perspectiva de ser falada, ou seja, originariamente os textos escritos eram
produzidos para serem lidos em voz alta.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
371
Vale lembrar que os gregos — sistematizadores da escrita — não conheciam a leitura
silenciosa, “e o leitor de um texto falava as palavras em voz alta, mesmo quando estava lendo
sozinho”. (TRASK, 2008, p. 232). Em razão disso, durante o processo de formação da escrita
grega, passou-se a acrescentar marcas (sinais) que fizessem o leitor lembrar (no momento da
leitura) onde se deveria fazer uma pausa ou elevar o tom de voz.
Esse aspecto histórico é uma das razões que fizeram com que a escrita sempre fosse
vista como uma materialização de aspectos da fala sem nenhum sentido lógico-gramatical,
indicando que a pontuação não passava “meramente de uma transmutação histórica de
aspectos oriundos da fala que se teriam, sistematicamente, reanalisado e recodificado,
dissociando-se de sua base generativa”. (MACHADO FILHO, 2004, p. 24).
Fica claro que as marcas de pontuação — até como parte do processo de formação e
desenvolvimento da escrita — caracterizam-se como uma tentativa de representação de
aspectos da fala. Mas “esse pressuposto teórico, além de bastante questionável, corre o risco
de enganar, pois deixa acreditar que o escrito compartilha parâmetros similares com o oral,
quando não parâmetros do próprio oral”. (DAHLET, 2006, p.24). A partir dessa observação, é
preciso considerar que o uso de sinais de pontuação tem motivações próprias e fundamentos
fincados na estruturação de aspectos textuais e/ou discursivos da própria escrita.
Modernamente, pode-se dizer que a existência das marcas de pontuação é de natureza
sintática e exprime também aspectos melódicos e entoacionais, enxergá-las assim não
interfere na sua legitimidade, embora esses aspectos não possam ser utilizados como critérios
absolutos de aplicabilidade.
Une unité syntaxique doit être comprise comme associant à la fois une suite de mots
(aspect constructif), un message (aspect actuel), une substance et une forme
intonatives (mélodie expressive e aspect intonatif) et un sens (contenu de message,
résultant de l’ensemble des données précédents). (CATACH, 1996, p. 48)
No entanto, o sistema de pontuação não pode ser visto apenas a partir da sintaxe da
frase e das relações que existem entre termos ou palavras de uma frase, muito menos pelos
efeito imprimem ao processo de leitura. A pontuação, que se aplica e a um texto, justifica-se
quando este é tomado como um todo, como uma grande unidade de sentidos e intenções. As
expressões (frases e orações, períodos e parágrafos) mantêm uma relação de imbricação, por
isso se dizem respeito e se articulam de forma discursiva.
Infelizmente, essa compreensão das marcas de pontuação — como verdadeiros signos
linguísticos autônomos — não perpassa as abordagens em aulas de LP e o que se vê, de modo
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geral, é a apresentação desses sinais como algo de relações superficiais e essencialmente
convencionais que servem apenas para atender à elaboração sintática e para orientar a leitura.
O estudo e o ensino das marcas de pontuação, sobretudo, no ensino fundamental — período
em que o processo de aquisição e desenvolvimento da escrita é mais intenso e significativo —
precisam ser introduzidos de forma, metodologicamente, mais elaborada e relacionada com
seus usos concretos. Nesse sentido, faz necessário refletir sobre as formas e os métodos de
abordagem que possibilitem — respeitando-se as fases de desenvolvimento cognitivo dos
estudantes — uma aprendizagem das marcas de pontuação que considere o que é pertinente
na construção dos sentidos do que é escrito (dito).
O que dever ser tomado como objetivo, no que diz respeito ao tratamento dado às
marcas de pontuação, é que elas devem ser vistas — assim como todo signo linguístico
presentes no texto — como recursos preenchidos de sentido e de intencionalidades. Os
estudantes precisam desde cedo serem orientados a compreenderem que as marcas de
pontuação expressam muito mais que delimitações morfossintáticas e orientações ritmomelódicas. Como usuários da escrita, os alunos devem ser apresentados à carga comunicativa
inerente aos sinais de pontuação; reconhecendo que algumas, por exemplo, indicam,
necessariamente, intenções discursivas, que sua presença no texto não se justifica (dentro de
um raciocínio lógico-gramatical) por aspectos morfossintáticos e/ou rítmico-melódicos.
Isso é o que deve ser sublinhado quando os alunos (independentemente da fase de
escolaridade) estão diante de marcas de pontuação como as aspas, os parênteses ou os
travessões, que apontam uma intervenção no processo de leitura e, principalmente, de
compreensão daquilo que está sendo dito de outra ordem — sentidos pertencentes à esfera do
discursivo. A potencialidade comunicativa dessas marcas pode ser analisada no exemplo
abaixo, em que se perceberá, claramente, a mudança de postura enunciativa marcada pela
intercalação entre travessões.
“A metrópole que menosprezou, sujou e soterrou seus cursos d’água agora quer — e precisa —
recuperá-los”
(revista superinteressante, março de 2015, p. 60)
No fragmento acima, pode se ter uma demonstração dos princípios de análise
linguística em que se fundamentam as motivações de escrita deste trabalho, que defende,
como forma de organização e de aplicabilidade das marcas de pontuação, a existência de duas
categorias básicas desses sinais: as marcas de pontuação sintáticas e as marcas de pontuação
discursivas. O papel linguístico destas últimas seria promover um “desengate enunciativo”
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
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(DAHLET, 2006, p. 51), em que a expressão intercalada manifesta-se claramente ser de outra
ordem discursiva em relação ao que está fora dos travessões.
Uma abordagem de estudo e de ensino das marcas de pontuação, como elemento
constituidor do texto e da textualidade, deve considerá-las sob a perspectiva de suas funções
discursivas, que revelam aspectos importantes na construção de sentido daquilo que está
escrito. Isto é, as marcas de pontuação apresentam funções multifacetadas que, diferentemente
da preocupação inicial de aponta recursos da fala ou aspectos organizacionais da estrutura
textual, intencionam materializar aquilo que não se verbalizar.
Referências
ACHARD, P. A especificidade do escrito é de ordem linguística o discursiva? In: Nina
Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo:
Ática, 2006.
ALMEIDA, Napoleão M. Gramática metódica da língua portuguesa. 39° edição. São Paulo:
Saraiva, 1994.
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37 º edição rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Lucerna, 2003.
CATACH, Nina. La punctuation: histoire et systeme (que sais-je). 2ª ed. Paris: Universitaires
de France, 1994.
CATACH, Nina. 2006.
CUNHA, Celso & CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do português contemporâneo.
5ª ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.
DAHLET, Véronique. As (man)obras da pontuação: usos e significações. São Paulo:
Associação Editorial Humanitas, 2006.
HOUAISS, Antonio. Elementos de bibliografia. São Paulo: Hucitec, 1983.
ROCHA LIMA, Carlos H. Gramática normativa da língua portuguesa. 31° ed. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1992.
MACHADO FILHO, Américo V. Lopes. A pontuação em manuscritos medievais
portugueses. Salvador: EDUFBA, 2004.
MARCUSCHI, Luiz A. Da fala para a escrita. São Paulo: Cortez, 2005
MARTIN, R. O escrito como espaço de convenções. In: Nina Catach (Org.). Para uma teoria
da língua escrita (coleção múltiplas escritas). São Paulo: Ática, 2006.
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374
PCNs, 1997. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf > Acesso em: 24 jan. 2015.
TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e linguística (tradução ILARI, Rodolfo). 2ª ed. São
Paulo: Contexto, 2008.
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O HUMOR INTRANQUILO DE ANDRÉ SANT’ANNA
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Ari Denisson da Silva (UFAL/IFAL)
Pode haver futuramente quem veja no ano de 2014 algo de emblemático para a história
recente do Brasil. Ao menos se trata de um ano que ensejou diversas expectativas: a
realização em seu solo de uma Copa do Mundo de futebol amplamente contestada — o ano
anterior havia sido fértil em manifestações ferozmente contrárias à sua realização —, eleições
gerais que dariam continuidade a uma era de intensificação dos ânimos ao tratar do tema1.
E eis que entre os meses de março e abril deste mesmo ano o escritor André
Sant’Anna lançava seu mais recente livro de contos, O Brasil é bom. Grande parte da
compilação é composta, em verdade, por textos publicados anteriormente, sob encomenda, em
coletâneas temáticas, com uma ou outra modificação. É o caso, por exemplo, de “Use sempre
camisinha”, que já havia saído na coletânea 35 segredos para chegar a lugar nenhum:
literatura de baixo-ajuda, na qual o gênero que ganhou notoriedade nas mãos de Dale
Carnegie e Augusto Cury é macerado por vários escritores. Segundo o próprio Sant’Anna,
apenas um dos textos constantes de O Brasil é bom não saiu sobre encomenda2.
Nosso interesse em pesquisar as reflexões sobre nacionalidade e a condição nacional
empreendidas em nossa literatura nos levaram a voltar os olhos para a obra de André
Sant’Anna, a princípio fixando-se em seu romance O Paraíso é bem bacana, de 2007. Ao
lançarmos um olhar mais panorâmico sobre o conjunto de sua obra, pudemos perceber que o
tema Brasil e seus “penduricalhos” é abordado progressivamente. Ao vermos que, desde o
título, esta (não tão) nova obra trazia a reflexão sobre o Brasil num plano mais destacado,
resolvemos incluí-la em nossa pesquisa. Outro item que nos chamou a atenção foram os
1
Segundo Carlos Guilheme Mota e Adriana Lopez, “[n]as eleições de outubro [de 2014], esse quadro tornar-seia mais nítido, com o país rachado ao meio” (2015, p. 1055)
2
Em entrevista a André Maleronka, ele esclarece essa relação entre escrita e as encomendas:
Quando eu tô com a ideia na cabeça, mas tô sem tempo, eu fico esperando uma
encomenda (rindo). Aí eu pensei nas histórias, vou fazendo as histórias e fechei
nessas cinco. Acabei a história da revolução [sic] no finalzinho, assim, pra ter mais
uma. Foi a única que foi feita sem ser por uma encomenda (2014).
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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recursos humorísticos empreendidos nessa reflexão, e por isso resolvemos trazer algo deles à
tona.
Segundo Jan Bremmer e Herman Roodenburg,
[d]e Freud e Bergson a Mary Douglas, psicólogos, filósofos, sociólogos e
antropólogos têm se empenhado em encontrar uma teoria abrangente para o humor e
o riso. Uma falha comum a todas estas tentativas é o pressuposto tácito de que existe
algo como uma ontologia do humor, que humor e riso são transculturais e
anistóricos. Contudo, o riso é um fenômeno tão determinado pela cultura quanto o
humor” (2000, p. 15-16, grifo dos autores).
Parece-nos ponto pacífico, portanto, que elaborar “universais do humor e do riso” é uma
empreitada com grandes probabilidades de fracassar. No entanto, alguns conceitos clássicos
nos podem servir para esta análise: Henri Bergson, em O riso, reconhece o caráter social da
comicidade — “[s]e nos sentíssemos isolados seríamos privados do cómico” (BERGSON,
1993, p. 19) — mas generaliza como elemento comum às coisas risíveis certo automatismo:
“[o] que há de risível [...] é uma certa rigidez do mecânico onde deveria haver a maleabilidade
atenta e a viva flexibilidade da pessoa humana” (BERGSON, 1993, p. 22, grifo do autor).
Uma estratégia lúdica visível em praticamente toda a obra de André Sant’Anna é a
repetição como estilização (às vezes) exagerada de cacoetes linguístico-retórico-ideológicos
da fala informal de diversos grupos sociais brasileiros (ou estrangeiros, quando o Brasil é
objeto de suas reflexões). De fato, a repetição é observada como fenômeno, se não exclusivo
dos usos coloquiais do português brasileiro, pelo menos são mais frequentes:
As repetições não são exclusivas de linguagem oral, mas sua especificidade está no
seu grau de frequência e tipicidade. [...] [Observam-se também] torneios
pleonásticos típicos da língua falada, que podemos classificar como repetições de
conteúdo com forma diversa. Na língua falada, por exemplo, são normais estruturas
e informações circulares, ao passo que na língua escrita os temas e remas se
sucedem numa forma progressiva” (URBANO, 2000, p. 120-121).
E a repetição como elemento risível não escapa à observação de Bergson:
Aproximemo-nos ainda mais da imagem da mola que se encolhe, se distende e torna
a encolher. Tiremos dela o essencial. Vamos obter um dos processos mais usuais da
comédia clássica: a repetição” (BERGSON, 1993, p. 60, grifo do autor).
Talvez o traço mais destacado da repetição estilizada na obra de André Sant’Anna seja
a recusa aos termos ou expressões anafóricas que nos servem a um ideal de coesão formal.
Com isso, frequentemente termos que já foram mencionados anteriormente são
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
377
“remencionados” na íntegra, sem serem referidos por pronomes ou outras expressões que
apontariam para o termo supracitado3. Este recurso estilístico é observável desde sua primeira
obra publicada em livro, Amor:
Aquela rua escura e aquelas pessoas cruzando.
Uma rodoviária cheia daquelas pessoas e todas aquelas pessoas.
Uma rodoviária lá na Europa e todos aqueles europeus com seus problemas
europeus naqueles filmes europeus. Franceses.
[...]
Aquele cantor cantando. (SANT’ANNA, 2001, p. 24).
Em Sexo, sua segunda obra, a repetição como indicação de mecanicidade aparecerá de
forma mais evidente, ao descrever as ações repetitivas das personagens (sobretudo os “Jovens
Executivos”), que parecem ter saído de uma “linha de montagem”:
O Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas e sua
Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura,
Bronzeada Pelo Sol, Do Jovem Executivo de Gravata Vinho Com Listras Diagonais
Alaranjadas.
O Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos e sua Noiva Loura,
Bronzeada Pelo Sol, entraram na casa dos pais da Noiva Loura, Bronzeada Pelo Sol,
Do Jovem Executivo de Gravata Azul Com Detalhes Vermelhos (SANT’ANNA,
2007b, p. 243).
Na edição portuguesa de Amor — uma vez que a primeira edição, de curtíssima
tiragem, logo se esgotou — e em Inverdades, Sant’Anna acrescentou a sua obra narrativas
mais curtas, até surgir o contexto apropriado para a escrita de seu primeiro — e até então
único — romance:
O Paraíso é bem bacana, na verdade, foi o último projeto muito planejado, [no
estilo] vou escrever um romance. Coincidiu que eu fiquei doente: fiquei seis meses
internado no hospital por causa de pancreatite aguda. Aí saí do hospital e ainda tive
um ano de recuperação. Tive dificuldade, eu não conseguia atravessar a rua sozinho,
tive encefalite. Então, eu tinha a coisa mais sagrada para um escritor, que é tempo.
Ficava em casa, tinha muito tempo para escrever: consegui escrever um romance de
500 páginas. De lá para cá, você tem que ir se adequando. [...] [F]oi uma
encomenda da Companhia das Letras: eles estavam fazendo uma coleção que acabou
não vingando, mas era uma coleção de livros safados; assim, livros que tinham a ver
com sexo, alguma coisa. Chegou a sair o livro do Rubem Fonseca, saiu o do Henry
Miller (SANT’ANNA, 2014).
Em O Paraíso é bem bacana, a relação entre humor e reflexão sobre o país aparece na
trajetória da personagem principal, o adolescente Manoel dos Anjos (Mané), jogador de
futebol de Ubatuba que é transferido do time local para o Santos e de lá para o Hertha
3
Como, por exemplo, a expressão “termo supracitado” que acabamos de usar agora.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
378
Berliner Sport-Club, sediado na capital alemã. No clube da Vila Belmiro, Mané, por ter
dezessete anos, ser negro, subnutrido, de origem humilde e goleador, tem sua trajetória
inevitavelmente comparada à do maior craque já revelado naquela cidade: Edson Arantes do
Nascimento, o Pelé. No entanto, o jovem acaba vivenciando vários episódios constrangedores
e gerando estranhamento nos colegas e nas demais pessoas ao seu redor devido ao seu
comportamento excêntrico e a sua escandalosa idiotice, pressagiada por seu apelido: como
substantivo comum, a palavra “mané” significa tolo, idiota:
“Tá vendo? Fala igual retardado.”
“E aí, Mané? Você é igual o Pelé?”
“...”
“É ou não é? Os cara tão perguntando na televisão.”
“É ou não é? Fala, Mané!”
“...”
“Você é igual que jogador?”
“É o Pelé, é?”
“Renato Gaúcho.”
“?”
“?”
“?”
“?”
“?”
“?”
Rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá
rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá
rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá rá... (SANT’ANNA,
2007, p. 235).
A condição física, o talento futebolístico e o fato de jogar no Santos fazem com que se
despeje em Mané a expectativa de ser o novo Pelé. No entanto, sua estultícia, sua paixão pelo
Fluminense Football Club e o desejo de ser como o Renato Gaúcho, que é branco, é vista com
uma cruel gargalhada de desprezo pelos seus colegas. O riso aqui (a cuja perversidade o leitor
se vê inevitavelmente levado a aderir) se motiva pela falta de consciência de Mané a respeito
de como o mundo à sua volta funciona. Sua deficiência intelectual e social o leva a agir
“mecanicamente” e a interpretar o mundo em função de sua estupidez. Essa estupidez, aliada
à tensão entre o desejo de transar e a timidez debilitante, o leva a converter-se ao islamismo,
na esperança de, uma ver morto em nome da fé maometana, ir direto ao Paraíso e desfrutar da
eterna companhia de setenta e duas esposas virgens.
O choque cultural causado por essa noção de Paraíso além-tumba tão estranha a olhos
ocidentais, por sua não negação da carnalidade no pós-vida, gera também um efeito
humorístico, ainda que pautado numa noção hierárquica Ocidente/Oriente, cultura/natureza.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
379
Claro que para construir esse Paraíso “bem bacana”, Mané coleta e mistura as fontes mais
inusitadas: revistas masculinas, filmes pornográficos, traduções equivocadas do Alcorão.
E todo esse repertório o faz cometer um ato terrorista malsucedido: no hospital,
desacordado, com o rosto desfigurado, sem os membros e sem o pênis, Mané imagina-se um
“marte do Alá” priápico e feliz da vida, com os rios de vinho que não embebeda, a brisa que
refresca o mártir e as setenta e duas consortes.
Muecke observa que
as áreas de interesse que mais prontamente geram ironia são, pela mesma razão, as
áreas em que se investe mais capital emocional: religião, amor, moralidade, política
e história. A razão é, naturalmente, que tais áreas se caracterizam por elementos
inerentemente contraditórios: fé e fato, carne e espírito, emoção e razão, eu e o
outro, dever-ser e ser, teoria e prática, liberdade e necessidade (1995, p. 76).
Daí o potencial humorístico e, ao mesmo tempo, a delicadeza de mexer num vespeiro, uma
vez que tais itens mexem bastante com as suscetibilidades das pessoas que vivenciam essas
instâncias.
Quando uma pessoa se converte ao Islã, ela pode adotar um nome muçulmano, de
preferência se o nome antigo remete a uma palavra negativa ou à adoração a algum outro
Deus ou outro ser que não Alá. Mané é, então, “rebatizado” por seu companheiro do time de
juniores do Hertha, o alemão Hassan. Depois de discussão em mímicas e palavras
mutuamente não compreendidas em português e alemão, Mané recebeu simplesmente o nome
do Profeta, chamando-se, a partir de então, Muhammad Mané. O desleixo de deixar o nome
do Mensageiro de Alá próximo ao termo que pode significar tolo traz de igual modo um
componente lúdico, não apenas pelas razões que Muecke menciona e que estão citadas acima,
mas também porque o desleixo seria uma manifestação da mecanicidade que Bergson aponta
como critério para o cômico.
No plano da linguagem, a hiperanáfora que torna o texto de André Sant’Anna
facilmente identificável faz-se presente sobretudo nas falas de dois dos vários narradores que
dividem o espaço do romance para contar a história desventurosa de Muhammad Mané: um,
não identificado com nenhuma das personagens principais da história (o qual, por sinal, é
quem abre o romance):
O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filhoda-puta.
Mas não.
O Mané ficou rodando em volta do gordinho filho-da-puta, olhando para os lados,
esperando que algum filho-da-puta logo apartasse a briga.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
380
Mas não.
Eles eram todos uns filhos-da-puta e queriam ver um filho-da-puta batendo no outro.
O Mané ainda não sabia que eram todos uns filhos-da-puta.
O Mané não tinha motivo para bater no gordinho filho-da-puta.
O Mané não sabia que o gordinho filho-da-puta tinha motivo para bater nele, no
Mané. (SANT’ANNA, 2007a, p. 7)
O outro é o próprio Mané, que compartilha conosco seu enlevo ao vivenciar as delícias (pra
ele) eternais:
É setenta e duas. E elas vêm vindo, tudo limpinhas, muito bonitas, e elas têm tanto
amor ni mim e gosta tanto de mim e me ama tanto e agora é tão bom que eu tô
sentindo tudo tão bem, tudo tão cheirosas, e elas vai ficando tudo pelada, bem
devagarinho, bem assim que nem filme que passa na televisão sábado de noite, com
aqueles biquíni tudo meio cor-de-rosa e com aqueles negócio peludo e cor-de-rosa e
vão tirando as parte de cima e fica com os peito, uns peitão todo cor-de-rosa e cheio
assim que parece que vai estourar e tem aqueles véu que nem naquela novela que
tinha os Marrocos que é de onde vem o Abud. [...]Agora eu sei que ficou valendo a
pena de verdade, que é setenta e duas mesmo e que elas faz tudo que eu gosto pra
mim e vão ficar fazendo sempre, tudo o que eu gosto de fazer com as mulher. E elas
depois vão falar coisas boa e engraçadas pra gente ficar rindo, tudo amigo e fazendo
essas coisa de sex (SANT’ANNA, 2007a, p. 9, 11)
A fala desarticulada, exageradamente repetitiva e repleta de barbarismos gera um efeito
humorístico controverso, uma vez que também pode facilmente incorrer no dualismo
natureza/cultura. Luciene Azevedo elabora a questão da seguinte maneira:
A voz narrativa assume também a função de um ventríloquo que se apropria das
falas do senso comum e expõe os preconceitos latentes.
Os riscos são claros: a negatividade da apropriação crítica pode resultar apenas em
rebeldia e desprezo, e a mímesis desconstrutiva pode descambar para a
cumplicidade, mas é característico da performance o equilíbrio precário entre a
crítica (quase moralista) e a reiteração de muitos preconceitos e estereótipos,
entrelugar que é condição de possibilidade de sua existência. (AZEVEDO, 2007, p.
86).
Ela ainda chama a atenção, ao se deter sobre O Paraíso é bem bacana, para os “resquícios
naturalistas e pendores moralistas que atravessam a narrativa de André Sant’Anna (e não
apenas nesse livro) (AZEVEDO, 2007, p. 88). No entanto, praticamente nenhum dos vários
narradores de O Paraíso é bem bacana usa a norma padrão do português brasileiro. Ela
aparece em itálico, como uma forma de indicar que naquele momento, aquela personagem
está falando em alemão (país onde se passa grande parte da trama).
Por fim, outro elemento que traz certa comicidade é a subversão dos diversos
conceitos de senso comum elaborados sobre o Brasil: em O Paraíso é bem bacana, chamam a
atenção os elaborados pelos não brasileiros a respeito do Brasil, como a enfermeira Ute: que
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
381
tem que cuidar de Mané mesmo odiando muçulmanos terroristas como ele: “Alguns
exemplos: a enfermeira Ute, que trabalha no quarto do hospital onde Mané está internado:
“Vocês são tão divertidos. Brasilien, samba, lambada, schöne Männer, Fussball!”
(SANT’ANNA, 2007a, p. 13, grifo do autor); Mechthild, a jovem alemã de dreadlocks e alta
desinibição sexual, que no Paraíso de Muhammad Mané é conhecida como Crêidi:
Você já fez amor com alemão? Alemão não sabe fazer amor. Agora eu só faço amor
com africanos e sul-americanos do Brasil. Negros. Existe essa história do tamanho
do pênis dos negros, mas não é isso que importa. É o modo de ser deles, o espírito
tropical, o sorriso. [...] O nome dele é Mané, Muhammad Mané. Eu nunca tinha
visto brasileiro turco antes, nem árabe, nem terrorista (SANT’ANNA, 2007a, p. 64,
grifo do autor).
Em O Brasil é bom, são os brasileiros, quase sempre de classe média, que passam a
refletir sobre si mesmos e sobre seu ideal de país. Os discursos das personagens costumam
basear-se num ideal questionável de superioridade brasílica:
Eu sou bom. Eu sou bom porque eu sou brasileiro. Os brasileiros não desistem
nunca. Os brasileiros sabem viver com alegria, mesmo tendo que enfrentar extremas
dificuldades. Os brasileiros são bonitos. A mulher brasileira é a melhor mulher que
existe. A mulher brasileira é a melhor mulher que existe porque a mulher brasileira
faz sexo muito bem e tem bumbum. (SANT’ANNA, 2014, p. 38).
Ou basear-se num discurso de elogio da violência de Estado como solução para determinados
problemas do país:
A culpa é toda do direitos humanos, que vem aqui se meter no Brasil e não cuida dos
problemas deles mesmo, desses países que se acha. Porque lá todo mundo faz o que
quer, faz terrorismo, fuma drogas, anda pelado com os seios de fora e até faz sexo
com homens do mesmo sexo (SANT’ANNA, 2014, p. 21)
Ora, não tem como homem fazer sexo com homem de sexo diferente. Esse falso lapsus
linguae é um recurso através do qual André Sant’Anna desqualificará os narradores que
empreendem esses discursos, como maneira de refletir sobre o “brasileiro médio”,
ideologicamente conservador, cuja opinião passou a se fazer ouvir mais nos últimos anos. Ao
fazê-los falar platitudes, atos falhos, barbarismos ou anacronismos, ele demonstra que essas
personagens sequer refletem a respeito do que falam. No entanto, é um tipo de ironia que
talvez não atinja aqueles que na vida real comunguem dessas crenças, uma vez que não se
verão parecidos com esse narrador. A ironia aqui é uma via de mão única, apontando para um
sentido que ocupa, na ficção sant’anniana, um posto axiológico hierarquicamente superior:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
382
“[e]mbora o sentido pretendido não seja diretamente expresso, uma verdade é afirmada, há
uma mensagem a compreender, o que pode significar uma ideologia a exaltar ou defender”
(DUARTE, 2006, p. 31). O ironista aqui arrisca a credibilidade em nome da certeza de que
algo vai errado e, por isso, precisa ser consertado. Ou pelo menos é preciso reclamar.
Referências
AZEVEDO, Luciene. Representação e performance na literatura contemporânea. Aletria:
Revista de estudos de Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, v.
16, jul./dez. 2007, p. 80-93. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit/08_publica
coes_pgs/Aletria%2016/06-Luciene-Azevedo.pdf>. Acesso em: 25 ago. 2014.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cómico. 2. ed. Tradução de
Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães, 1993.
BREMMER, Jan; ROODENBURG, Herman. Introdução: humor e história. In: ______. Uma
história cultural do humor. Tradução de Cynthia Azevedo e Paulo Soares. Rio de Janeiro:
Record, 2000, p. 13-25.
DUARTE, Lélia Parreira. Ironia e humor na literatura. Belo Horizonte: PUC Minas; São
Paulo: Alameda, 2006.
MOTA, Carlos Guilherme; LOPEZ, Adriana. História do Brasil: uma interpretação. 4. ed.
São Paulo: 34, 2015.
MUECKE, D. C. Ironia e o irônico. Tradução de Geraldo Gerson de Souza. São Paulo:
Perspectiva, 1995.
SANT’ANNA, André. Amor e outras histórias. Lisboa: Cotovia, 2001.
______. André Sant’Anna. Vice, São Paulo, 2 dez. 2014. Entrevista concedida a André
Maleronka. Disponível em: <http://www.vice.com/pt_br/read/andre-santanna-linguagempreconceito>. Acesso em: 3 mai. 2015.
______. O Brasil é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
______. O Paraíso é bem bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a.
______, André. Sexo e amizade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b.
URBANO, Hudinilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca. São Paulo: Cortez,
2000.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
383
A CASA DOS BUDAS DITOSOS: OS LIMITES DA
IRREVERÊNCIA
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Arturo Gouveia (UFPB)
1. O perfil da personagem
No romance A casa dos budas ditosos, de João Ubaldo Ribeiro, o enredo é a
transcrição de um manuscrito deixado na casa do autor, logo que se dissemina a notícia de
que ele foi incumbido por uma editora a escrever um livro sobre a luxúria (Ribeiro, 1999). A
distinção entre a autoria do texto, pertencente a uma mulher que não se identifica nitidamente
(apenas as iniciais CLB) ou ao autor empírico, cria uma ambiguidade cuja resolução acaba
pendendo para a primeira alternativa. No caso, se o romance é rigorosamente a transcrição do
material, pode-se afirmar que não há intervenção alguma do autor, nem este cria um narrador
próprio, cedendo espaço absoluto para a voz feminina depoente. A menos que se lance a
hipótese de a voz feminina ser, ela mesma, uma criação do autor, a responsabilidade pelos
conteúdos e pela forma da composição é dessa primeira voz frente à qual o autor não
estabelece nenhuma mediação artística. Nesse sentido literal, o romance nem sequer seria uma
expressão artística, porque a ficcionalidade estaria afastada de um material que não passaria
de documento.
Mas sabe-se que essa aparência de pura empiria, à margem de pretensões estéticas, é
uma das estratégias usadas por narradores ou autores que querem delegar a responsabilidade
dos escritos a outrem, quando essa transferência já é uma forma de demonstrar a parcialidade
da intervenção de uma segunda voz que, aparentemente, se deixa camuflar por uma primeira
voz, que passa a dominar o foco narrativo.
Nessa medida, a identificação dos fatos passa necessariamente pela identificação da
voz narrativa, tal como exposta no material. E um fato crucial no texto é que a narradorapersonagem não tem uma meta definida no presente, a não ser livrar-se em definitivo do
moralismo que tanto combatera no passado: “Ainda me restam alguns penduricalhos desse
legado imbecilóide, de que tenho de me livrar antes de morrer”. (Ribeiro, 1999: 15)
Nas fronteiras da linguagem ǀ
384
Quanto ao seu passado, há algo semelhante: ela sempre se empenha em cometer
transgressões morais, com comportamentos sexuais que vão desde mínimas ousadias de
menina até os gestos mais esdrúxulos e radicalmente reprováveis. Como exemplo do que seria
sua aspiração máxima, ela comenta sobre o que lera sobre a moral da Roma antiga, para criar
um contraste com o moralismo atual:
“Em Roma antiga, houve um tempo em que as noivas acariciavam a glande de
Príapo, ou se sentavam nela. Pelo que eu li, a glande mais usada, a glande pública,
por assim dizer, devia ser uma verdadeira poltrona”. (Ribeiro, 1999: 14)
Mas tudo o que a personagem diz romper e transgredir ocorre em ambiente privado.
Ela não se envolve em nenhuma questão social, não tem nenhum projeto, nenhuma causa,
nada que a ligue às instituições em relação direta e objetiva. Ela se diz empenhada em lutas
contra toda forma de hipocrisia social, principalmente as formas de retração do uso livre do
corpo, mas nunca transforma esse ideal em ação prática para além de quatro paredes. Em
função disso, confessa a satisfação de praticar o incorreto em espaço fechado:
“(...) a hipocrisia da época era mais agressiva, dava muito gosto a quem desfiava
seus mandamentos, acaba resultando num grande prazer, a transgressão era mais
satisfatória, melhor para o ego”. (Ribeiro, 1999: 33)
Apesar de seus propósitos de ruptura, ela sempre atua na clandestinidade, a exemplo
do que faz com o tio Afonso, em fazenda distanciada e quando as pessoas não estão presentes.
Com essas ações escondidas, pois, segregadas de um embate visível, sua postura reproduz o
próprio sistema condenado e mostra-se infrutífera para a conquista social de valores nãohipócritas. Quando o tempo de sua experiência passa pelo regime militar, por exemplo, as
menções ao golpe e à ditadura são muito rápidas: ela não tem interesse em nada além de suas
aspirações individualistas, narcisistas e, como assume em alguns momentos, sádicas:
“Considero meu sadismo psicológico muito mais interessante, inclusive porque é
seletivo, é um prato feito para analistas. Exemplo desse meu noivo, muitos
exemplos, exemplo do tio Afonso, o pior de todos. Tenho certeza de que contribuí
substancialmente para o enfarte dele. Ele não valia de nada, de qualquer jeito, comia
a mulher do irmão, minha mãe (...) nunca fui a epítome da hipocrisia. Não, desculpa
esfarrapada, não convence. Estou aberta à crítica, eu mesma já pensei muito nisso,
de certa forma vivo pensando. Não acho nada demais o sujeito comer a mulher do
irmão, mas não concordo em que o irmão de meu pai tivesse comido a mulher do
irmão, meu pai. Neuroses. Por mais que me desgoste, sou obrigada a admitir.
Traumas da infância”. (Ribeiro, 1999: 82-83)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
385
Ela evita qualquer compromisso que venha a tomar-lhe um tempo individual quase
todo dedicado ao sexo. Inspira-se em exemplos dos mais esdrúxulos, subversivos e nãoaceitos socialmente, como a experiência da amiga Norma Lúcia, que busca todo tipo de
prazer, desde assistir à devoração de um pequeno animal por uma cobra até experiências com
animais de porte superior:
“Norma Lúcia não se aguentava de excitação diante desse espetáculo e se
masturbava horas seguidas. Muitíssimo mais tarada do que eu, incomparavelmente,
chegava a acariciar longamente os paus dos cavalos dela, com os olhos fechados e
quase em transe. E adorava ver cavalos trepando também”. (Ribeiro, 1999: 50)
Tomando Norma Lúcia como modelo ideal de vida, a personagem, contudo, sempre
age na relação fechada, individual ou grupal, sem propagação para além desses limites. Seu
discurso de transgressão e subversão, assim, só é coerente em seu âmbito particular – uma
negação prática de todo o seu ideal de mulher amoral.
2.
O grau de problematicidade da protagonista
Conforme a visão de Lukács, o romance é um gênero moderno a cuja composição é
inerente a presença de duas naturezas incompatíveis, impassíveis de convergência, por causa
dos interesses que movem cada uma: a impossibilidade de reconciliação entre as partes é um
distintivo da representação simbólica do conflito histórico entre as aspirações individuais e a
irredutibilidade do mundo objetivo (Lukács, 2000). A subjetividade, sobretudo em suas
expressões mais alternativas às convenções, é rigorosamente negada e combatida por um
mundo objetivo absolutamente insensível a transformações. A primeira natureza, situada no
indivíduo, é abordada por Lukács como o locus de valores autênticos que questionam o
estabelecido e procuram superar os limites existentes no mundo moderno, no qual a reificação
tende a triunfar sobre todas as coisas e os sentimentos, submetendo a fracasso qualquer
tentativa de alteridade. A segunda natureza é esse espaço em que se insere, de forma
problemática e inquietante, essa primeira natureza não reconhecida e hostilizada pelo
conjunto das instituições petrificadas no mundo objetivo. A relação de divergência e mútua
incompreensão entre as duas naturezas potencializa toda a ação como componente substancial
do gênero. Os desejos subjetivos do herói, que funcionam como uma antítese em choque com
o sistema vivido, têm um movimento pendular que vai da manutenção dessa
incompatibilidade, em luta e resistência permanentes, até a integração parcial da subjetividade
Nas fronteiras da linguagem ǀ
386
às instituições objetivas, sem renúncia à autenticidade dos valores. Lukács, embasado em
pressupostos hegelianos, dá ênfase ao que a filosofia chama de primado da subjetividade,
elegendo como categoria central a interioridade do personagem. Mas a segunda natureza é
essencial à avaliação da permanência dos valores autênticos na prática do personagem. A
segunda natureza renega-se a absorver qualquer valor proveniente do personagem, uma vez
que a reificação da objetividade é imune a reflexões capazes de averiguar possibilidades de
mudança, inviabilizando diálogos progressistas. A primeira natureza, mesmo nessa absorção
necessária ao mínimo de equilíbrio social, não se sujeita a experiências que venham a
distorcer e deformar sua concepção de mundo.
Mas já é possível identificar, em muitos romances do século vinte (ou talvez de antes,
como As ilusões perdidas, de Balzac), uma perda significativa, em alguns casos a extinção,
desses valores autênticos dos personagens, apesar de eles continuarem sendo problemáticos.
Lukács demarca uma linha de ação em que o personagem se apresenta com tais valores e os
mantém, ainda que, em um certo grau, faça concessões ao mundo externo, como é típico do
personagem da maturidade viril. Em romances do século vinte, é possível constatar que
certos personagens, desde sua origem, não têm sequer esses valores. Eles têm valores, mas
não autênticos, o que faz deles uma reprodução passiva do próprio sistema que os oprime. Em
Cidade de Deus, de Paulo Lins, por exemplo, os personagens da boca de fumo e da linha de
montagem da droga, os bichos soltos e seus colaboradores, não demonstram nenhuma
oposição autêntica ao sistema capitalista, muito menos ideal de enfrentamento e superação –
eles são reificados desde sua origem, desde sua “carreira profissional”, de aviõezinhos a
senhores da droga. Não se trata de perder valores autênticos, como é a preocupação de
Lukács, mas de nunca os possuir ou procurar aspirar a eles. Nesses casos extremos, sequer se
pode falar de perda – perda esta que ainda poderia instigar o herói a uma busca por sua
reabilitação ou pela recuperação de seus princípios. Em casos assim, a segunda natureza é tão
enraizada nos personagens, que não se pode delinear nenhum gesto que irrompa originalmente
deles. É como se a primeira natureza, anulada pela segunda, não mais existisse como força
composicional do gênero, em termos de uma dialética capaz de dar prosseguimento a uma
ação potencialmente transformadora. Em termos adornianos, no que respeita à falência do
ideal do romance como epopeia burguesa, o triunfo da epopeia negativa reside nessas
condições de inércia da primeira natureza, reduzindo o personagem a pensamentos isolados,
enfermidades (loucura, por exemplo), ou simplesmente dominando-o e utilizando-o como
uma expansão subjetiva do sistema. (Adorno, 2003)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
387
No caso do romance de João Ubaldo Ribeiro, a dificuldade de classificação da
personagem está na forma como ela se comporta frente ao mundo externo. A personagem
parece não enfrentar uma “segunda natureza”. Na tradição romanesca, ou a segunda natureza
é um forte empecilho externo, objetivo e intransponível (Dom Quixote, de Cervantes), o que
se traduz em excesso de ações, ou está interiorizada como repressão e angústia pelo
personagem, o que se traduz no excesso de monólogos (A educação sentimental, de Flaubert).
O herói é problemático quando sua natureza (a primeira) revela uma subjetividade
prejudicada por um mundo externo desinteressado na assimilação de valores autênticos. Mas
esse conflito objetifica-se em ação nítida, de efeito negativo, ou mesmo em uma forma de
pensamento que tem algum desdobramento prático, a exemplo da visibilidade da loucura ou
da retração do personagem. No romance de João Ubaldo Ribeiro, a personagem não tem a
interioridade interrompida por nenhuma intervenção externa. Mesmo a morte do seu homem
mais sexualmente amado e gozado, o irmão Rodolfo, não a retrai, levando-a sempre em busca
de novas experiências de prazer, em escala crescente e desafios megalomaníacos aos outros e
a si mesma. Ela se demonstra resolvida, com a mente “dogmatizada” pela defesa de uma
sexualidade absolutamente livre, e lhe restaria apenas o mundo externo para enfrentamento.
Mas esse enfrentamento não ocorre. O conflito, na concepção hegeliana que fundamenta a
argumentação de Lukács, é necessário para que haja uma dinâmica na ação. Mas é justamente
essa dinâmica que falta à composição do enredo. No caso, o depoimento da narradora parece
suprimir esse componente imprescindível à forma romance, subordinando-o a comentários
críticos sobre as formas sociais de dissimulação de ações desejadas por todos e hipocritamente
proibidas:
“Em relação a irmão, posso dar meu testemunho pessoal, eu comi muito Rodolfo,
meu irmão mais velho, até ele morrer a gente se comia, sempre achamos isso muito
natural. Evidente que é natural, a maior parte das pessoas passa pelo menos uma fase
de tesão no irmão ou na irmã, só que a reprime em recalques medonhos. Nós não.
Norma Lúcia também não. Muita gente também não”. (Ribeiro, 1999: 53)
O impacto nulo de suas ações, do ponto de vista social, descaracteriza a
problematicidade da personagem no que concerne a uma ação exemplar (positiva ou negativa)
ou à irradiação de comportamentos não-reificados. Será que a problematicidade da
personagem estaria transferida para a relação depoimento/recepção, já na velhice? Sua busca
de exteriorização e embate social estaria, afinal, na relação entre a publicação do relato e os
efeitos morais derivados daí? Ela, como mulher, desenvolve uma habilidade de manipular os
homens, não se sujeitando, pois, a uma posição de personagem hostilizada ou com desejos
Nas fronteiras da linguagem ǀ
388
não realizados. Mas seria a publicação do relato, já na velhice, a evidenciação final de sua
conduta, residindo aí o caráter conflitivo de sua ação?
3.
Um suposto Bildungsroman do sexo
A personagem, já em idade avançada, mostra seu passado inteiramente movido por
uma busca incessante de prazer sexual, para além das regras familiares, porém sempre de
forma velada. É o que ocorre desde a pré-adolescência, com o irmão Rodolfo, passando
depois pela intimidade com o negro Domingos, o tio Afonso, os dois noivos, entre outros. Ela
relata inúmeros casos com namorados, professores e outros amantes. Tomando a amiga
Norma Lúcia como paradigma inquestionável para suas ações, considera a si mesma e a
amiga como pertencentes a famílias de classe média, com uma certa tendência para a vida de
“porra-louca”, o que parece justificar, do ponto de vista moral, suas opções obsessivas.
Mas, apesar de sua procura por experiências radicais de prazer (posições não
convencionais, sexo coletivo, sexo animalesco, incesto, o gozo “por todos os buracos” etc.), a
narradora se mantém como personagem rasa – uma situação paradoxal frente ao que seria
uma aprendizagem ou uma formação em termos de domínio sexual. A isso corresponde,
estruturalmente, a predominância de sumários narrativos, em detrimento de focalizações
cênicas diretas. Não há nenhuma peripécia significativa na ação/rememoração da personagem.
Há um conjunto de experiências que tendem a delinear graus mais elevados de ousadia no uso
do corpo, mas nada que venha à tona como provocação e exemplo negativo a contrariar a
moral dominante, no que respeita a repercussões pragmáticas das atitudes. É preciso
desmistificar as pretensões de originalidade, autenticidade e ousadia da luxúria da
personagem, na medida em que tudo morre onde nasce, sem projeções efetivamente mais
arriscadas, sem risco de ameaças e reações violentas por parte de conservadores e retrógrados.
4.
Algumas reflexões metalinguísticas
O romance apresenta uma divisão entre dois espaços: de um lado, os relatos de
rememoração, quase sem nenhuma cena direta; de outro, uma certa reflexão metalinguística,
que convém aqui comentar.
A questão da autoria impõe ao leitor uma interpretação a respeito da autenticidade e,
ao mesmo tempo, da camuflação da voz depoente, o que leva a uma suposição de dupla
autoria. A confusão entre o depoimento do autor, no prefácio, a autora dos manuscritos,
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
389
ambos situados no mundo real, e a ficcionalidade do fato anunciado pelo autor, gera essa
incompletude que não se resolve ao longo da leitura. No caso, o autor permanece no plano
empírico, enquanto a autora já é uma categoria inerente à criação literária. Este
entrecruzamento de situações é elaborado de forma consciente, não uma acidentalidade, pois
compromete toda a lógica interna da composição do romance.
Outras tendências metalinguísticas da obra revelam-se nos comentários que a
personagem faz de sua carreira acadêmica, geralmente depreciando o mundo intelectual como
chato, redundante e velado sob aparência de grandeza. Segundo ela, toda a aparente
complexidade do discurso acadêmico, sobretudo nas ciências humanas, é um hermetismo
calculado para esconder incompetências. Com tais reservas céticas, ela deprecia, em ataques
rasos, ressentidos e espalhafatosos, pensadores como Lacan e obras radicais da modernidade.
As reflexões dela sobre a ininteligibilidade de Lacan e da intelectualidade francesa, por
exemplo, são extensivas à literatura do século vinte. Constituem uma poética contra as
técnicas herméticas de narrativa, como o fluxo da consciência. A adoção de uma linguagem
acessível corresponde a essa tomada de posição contra as modalidades narrativas mais
consagradas e inovadoras do século vinte, marcadas propositalmente pela secundarização do
enredo. Tal tendência é muito presente na década de setenta, no romance brasileiro, como
Zero, de Loyola Brandão, Avalovara, de Osman Lins, Fluxo-floema, de Hilda Hilst, e, do
próprio João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio. O propósito da narradora é o oposto, a
começar pela opção deliberada por pornografia e pela condenação aos eufemismos
linguísticos que sublimam ou distorcem expressões populares relativas a intimidades. Há
momentos de fluxo da consciência da narradora, mas muito simplificados, sem intenção de
sintagmas sincopados e fragmentação que venham a afetar a apreensão imediata do relato.
Em meio à predominância quase absoluta da rememoração das aventuras sexuais, há
exceções muito diluídas. Exceções que, conforme nos ensina Auerbach, devem apresentar
algum significado na leitura inversa ao exame da dominante do texto (Auerbach, 1987). Tratase de momentos da adolescência, da vida acadêmica em Los Angeles, do golpe militar de 64 –
tudo diminuído, como se não tivesse relevância alguma face às rememorações das
experiências sexuais. Percebe-se, nessa extrema desproporção de temas, a revogação da vida
comum do dia-a-dia, como se esta não passasse de uma vida vegetativa, indigna de figurar
num depoimento marcante e provocador. A leitura seletiva do passado restringe-se
exclusivamente ao que parece apelativo e distintivo de uma personalidade sádica e luxuriosa,
como se experiências não-sexuais não fizessem parte da existência. Trata-se, para usar outro
conceito de Lukács, da essencialização da contingência, porém sem efeitos satíricos (Lukács,
Nas fronteiras da linguagem ǀ
390
2009). A personagem, em seu relato estritamente limitado a experiências íntimas
extravagantes, leva muito a sério, como propósito único de vida, essa conversão da exceção
em regra. O capítulo em que ela descreve suas práticas com o irmão Rodolfo é bem
representativo da enorme desigualdade entre lembranças sexuais e lembranças de coisas
simples: o que não é sexual reduz-se a umas poucas linhas.
Há outras declarações da narradora que são extensivas à literatura. A personagem não
parece ter nenhuma enfermidade psíquica, mas se autodenomina de “sádica seletiva”, sem o
menor constrangimento. Qual a relação entre a felicidade alcançada pela personagem e a
felicidade prevista no misticismo budista? A investigação do sentido irônico dessa relação
também é demonstrativa do grau de consciência do narrador no que respeita à elaboração e ao
controle do que se elenca para a ficcionalidade.
Em outra perspectiva de trabalho, seria preciso pesquisar sobre o Nirvana, no sentido
budista, e averiguar o significado disso retraduzido no título do depoimento (do sonho
proléptico da personagem aos excessos de prática sexual que, ao contrário do budismo,
elegem a vida carnal como fonte suprema de prazer e satisfação). Isso talvez possibilitasse
uma melhor compreensão do real das inversões do romance. O sentido da realização
alcançada no budismo prevê uma vida de absoluta diluição da individualidade e do egoísmo
em um “átomo primitivo” de onde tudo proveio. No caso, a descaracterização absoluta da
matéria é indispensável ao alcance da felicidade, não mais atribulada pelo sofrimento
resultante de desejos inquietantes. A casa dos budas ditosos tem um adjetivo relativo à
felicidade, mas desde o início os budas são descritos, em sua presença onírica, como seres que
se satisfazem sexualmente. Assim, a presença do corpo não apenas faz uma leitura distorcida
e avessa da placidez budista, como denuncia a mais recôndita instância psíquica da
personagem – o inconsciente – inteiramente dominada pela avidez sexual.
Essa obsessão pansexual estabelece e defende uma espécie de Nirvana do baixocorporal, com o intuito de liberar tudo o que foi reprimido e recalcado pela moral dominante
ao longo da história e justificar a existência unicamente por essa vida. Mas, como já apontado,
esse intuito radical não se expande socialmente, mantendo-se sempre às escondidas, o que
ainda revela, ironicamente, a presença de mecanismos repressivos em comportamentos
aparentemente libertos. Nessa medida, é a segunda natureza que isola a personagem e a
pressiona a hábitos retraídos, ainda que ela se sinta realizada nesse estado privado de exceção.
O enfoque dessa contradição é uma das marcas de qualidade do romance.
Referências
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
391
ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. Notas de literatura I.
São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.
AUERBACH, Erich. Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1987. (Estudos, 2)
LUKÁCS, György. Arte e sociedade: escritos estéticos (1932-1967). Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. (Coleção
Espírito Crítico)
RIBEIRO, João Ubaldo. A casa dos budas ditosos. São Paulo: Objetiva, 1999.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
392
A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO AUTORAL NAS OBRAS
DE VIRGINIA WOOLF: O ENSAIO COMO FORMA
LITERÁRIA E ESTRATÉGIA DE EMPODERAMENTO DA
AUTORIA FEMININA
[Voltar para Sumário]
Asenati Araújo de Melo (UNEB) 1
Juliana C. Salvadori (UNEB) 2
Mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura
fora levada a crer que escrever um livro significava ser
ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada.
(Woolf, 1922 p. 80)
1. Introdução
A proposta desse trabalho é observar como Virginia Woolf (VW), escritora inglesa
modernista, busca em seus ensaios, mais especificamente em Um teto todo seu, construir um
feminino autoral em meio as constrições de sua época, colocando em xeque as fronteiras entre
escrita e a leitura, o literário e a crítica.
A representação do feminino pela/na literatura tem sido tema de múltiplas discussões
da crítica e da teoria literária e feminista, como também da própria literatura, pautada pelos
aportes teóricos que os estudos culturais e pós-coloniais têm trazido à baila desde a década de
1960. Nesta linha, busca-se compreender como a literatura tem tanto refletido quanto
moldado um feminino idealizado, isto é constituído a mulher como indivíduo a partir do
século XIX, assim como suas funções/ papeis, como leitora e escritora, entre outros, para a
construção de uma identidade própria, sujeito social, político e simbólico (literário). Deste
1
Graduanda do 5º semestre em Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado
da Bahia, Campus IV, Jacobina. Pesquisadora voluntária no Programa Institucional de Bolsas para Iniciação
Científica Entrando no bosque: mapeamento e formação de redes de leitura.Membro do grupo de pesquisa
Desleituras
em
série:
da
tradução
como
transcriação,
adaptação,
refração,
diáspora
(dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/1792517921828602).
2
Professora Assistente da Licenciatura em Letras, Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da
Bahia, Campus IV, Jacobina. Professora Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas e mestre
em Inglês e Literaturas pela UFSC. Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão Entrando no bosque:
mapeamento e formação de redes de leitura. Líder do grupo de pesquisa Desleituras em série: da tradução como
transcriação, adaptação, refração, diáspora (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/179251792182 8602).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
393
modo, busca-se mapear as representações de feminino e sua relação com os papeis de leitura e
escritora que VW tece em seus ensaios, particularmente, assim como a repercussão disto nas
representações que seus leitores constroem sobre a obra da escritora.
É com base nessa representação e recepção contemporânea de Virginia Woolf que essa
pesquisa irá se desenvolver, focalizando no diálogo que a autora estabelece entre escritor (a)
/leitor (a); mais especificamente em seus ensaios, os quais centram-se na representação da
mulher e a posição das mesmas como artistas dentro de uma sociedade patriarcal. Neste jogo
de espelhamentos – literatura que reflete/representa/molda a vida que reflete/representa/molda
a arte, busca-se compreender como a escritora constrói sua identidade como autora a partir de
sua experiência como leitora. Dito de outro modo, busca-se compreender como Virginia
Woolf, "constrói” esse feminino autoral colocando em xeque a escrita e a leitura, o literário e
a crítica. O corpus selecionado será Um teto todo seu, dentre o qual, a autora, oferece
minibiografias de autoras e personagens mulher.
2. Tradição literária e a autoria feminina
A produção literária encontra-se inerentemente interligada a condição de gênero:
assim como Natalia Helena Wiechmann, em seu artigo sobre A crítica literária feminista e a
autoria feminina, podemos afirmar que a escrita é um ato criador e criativo. Para explicar
essa relação entre criador e gênero observaremos que a análise da tradição literária dar-se-á a
partir da paridade entre a autoria e a paternidade. Bailando através da cultura Ocidental,
podemos observar o estabelecimento de uma hierarquia entre os gêneros -Deus representação
masculina, cria o homem e tudo que existe no cosmo; da criação do homem Ele concebe a
mulher. Trazendo essa analogia para a criação literária, Gilbert e Gubar (1984), citados por
Wiechmann em seu trabalho, destacam que:
Na cultura patriarcal ocidental, por conseqüência, o autor do texto é um pai, um
progenitor, um patriarca estético cuja pena é um instrumento de poder generativo
como seu pênis. Além do mais, o poder de sua pena, como o poder de seu pênis, não
é apenas a capacidade de gerar a vida, mas o poder de criarn uma posteridade […].
(GILBERT; GUBAR apud WIECHMANN, p.6) (Tradução minha)3
3
No original: “In patriarchal Western culture, therefore, the text’s author is a father, a progenitor, a procreator,
an aesthetic patriarch whose pen is an instrument of generative power like his penis. More, his pen’s power, like
his penis’s power, is not just the ability to generate life but the power to create a posterity.” In: GILBERT,
Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-century Literary
Imagination. 2. ed. Londres: Yale University Press, 1984.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
394
Gilbert e Gubar ressaltam que a caneta, o instrumento associado à produção literária,
pode ser vista como a representação do falo. Dito isso, observamos que, partindo do ponto de
vista Criador, o poder criador através do intelecto faz parte da capacidade masculina,
relacionando a capacidade criadora feminina apenas a geração por meio do histero – o útero,
poder gerador/criador inferior ao intelectual porque físico. É válido ressaltar que até o século
XIX as mulheres pouco escreviam - ou pouco circulava sua produção – pelo fato da escrita
ser considerada como prática intelectual superior. Assim, o empoderamento autoral é restrito
ao homem, excluindo a mulher da possibilidade de criação artística e reduzindo-a a sua
capacidade a geração da vida por intermédio do útero: o poder criativo do papel/ escrita é do
homem. Essa identificação da mulher à maternidade é geralmente figurada na imagem da
mulher anjo/ Madonna. Essa representação angelical é retomada por Virginia Woolf em Um
teto todo seu (1990) publicado como A Room of One’s own em 1929, na qual define a mulher
de sua época como “subjugada” ao título “anjo do lar”, bem como a retratação do desejo de
superioridade masculino no que diz respeito ao Criador e o Criativo:
[...] É bastante evidente que, mesmo no século XIX, a mulher não era incentivada a
ser artista. Pelo contrário, era tratada com arrogância, esbofeteada, submetida a
sermões e admoestada. Sua mente deve ter sofrido tensões, e sua vitalidade foi
reduzida pela necessidade de opor-se a isso, de desmentir aquilo. Pois aí, mais uma
vez, entramos no âmbito daquele complexo masculino muito interessante e obscuro
que teve tanta influência no movimento feminista, daquele desejo arraigado não
tanto de que ela seja inferior, mas de que ele seja superior [...] (WOOLF,1990 p.
68).
Dessa forma, podemos observar que, para a mulher ser artista, mais especificamente
escritora até o século XIX, seria necessário que as mesmas escapassem de tais representações,
e superassem a ideia patriarcal sobre criação e superioridades masculinas, pois, como afirma
Woolf,[...] “Mas é óbvio que os valores das mulheres diferem, com freqüência, dos que foram
estabelecidos pelo outro sexo; isso decerto acontece. E, no entanto, são os valores masculinos
que prevalecem.” (1990 p. 91)
3. O Ensaio de Woolf e o feminino autoral
Como ensaísta, Virginia Woolf abordou insistentemente as questões femininas, não
especificamente as feministas – se formos considerar o termo no sentido político que foi
criado a partir dos anos 60 como movimento político e social sistematizado, p que seria uma
anacronia. De modo geral, a abordagem de VW esteve restritamente ligada ao direito a
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
395
capacidade intelectual e criadora no meio artístico, político e social bem, isto é, o
reconhecimento da capacidade intelectual para representação do mundo presente no feminino.
Em Um teto todo seu (1990), uma de suas obras ensaísticas, VW pontua a posição que
a mulher ocupa na sociedade do mesmo modo que aborda os obstáculos e restrições da mulher
como escritora. Nesta, VW afirma que:
Faça o que fizer, uma mulher não consegue encontrar nelas a fonte de vida eterna
que os críticos lhe garantem estar ali, não é apenas que eles celebrem virtudes
masculinas, imponham valores masculinos e descrevam o mundo dos homens; é que
a emoção de que esses livros estão permeados é incompreensível para uma mulher.
(WOOLF,1990 p. 124)
Nesse trecho VW discute sobre as obras mais renomadas, os ditos clássicos universais,
mas que, segundo a escritora, caem em ouvidos surdos: ela questiona que a “virilidade”
tornou-se consciente de si mesma, ou seja, os homens estão escrevendo a partir de suas
necessidades e de seu próprio intuito – essa universalidade, portanto, diz respeito à
experiência do masculino. Por ser essencialmente masculina, as mulheres que “ousam”
vivenciar a escrita como ato Criativo são estereotipadas como monstruosas – porque ousam se
apoderar/portar o falo/caneta. Acerca disso, Woolf pondera:
Que se pudesse encontrar algumas mulheres com essa disposição de ânimo no
século XVI era obviamente impossível. Basta pensar nos túmulos elisabetanos, com
todas aquelas crianças ajoelhadas, de mãos unidas, e em sua morte prematura, e ver
sua casa de cômodos escuros e abarrotados, para perceber que nenhuma mulher
poderia ter escrito poesia naquela época. O que se esperaria descobrir seria que,
talvez bem mais tarde, alguma grande dama tirasse proveito de sua relativa liberdade
e conforto para publicar algo com seu nome e arriscar-se a ser considerada um
monstro. (WOOLF,1990 p. 73)
Em outras palavras, é necessária coragem para transgredir o paralelo estabelecido
entre o mundo doméstico e o artístico e ter a ousadia para escrever. Ainda em consonância
com VW, “até mesmo uma mulher com um grande pendor para a literatura fora levada a crer
que escrever um livro significava ser ridícula, e até mesmo mostrar-se perturbada”.
(WOOLF,1990 p. 80).
É importante observar que Um teto todo seu (1990) é um ensaio cuidadosamente
estruturado, induzindo-nos a pensar a característica/estilo da escrita que VW escreve. Ela
chama a nossa atenção para uma de suas principais características estética “a representação
pluripessoal da consciência”, a que se refere Auerbach (1971) no seu famoso ensaio sobre a
escritora, intitulado “The brown stocking” (apud OLIVEIRA, 2013, p. 27). Essa característica
Nas fronteiras da linguagem ǀ
396
da escrita de Wolf, na obra ensaística citada, se incorpora na escolha de uma personagem para
narrativizar suas considerações/reflexões:
Assim, ali estava eu (chamem-me Mary Beton, Mary Seton, Mary Carmichael ou o
nome que lhes aprouver — isso não tem a menor importância), sentada à margem de
um rio há uma ou duas semanas, gozando a amena temperatura de outubro, perdida
em cogitações. (WOOLF,1990 p. 9)
Dessa forma, Woolf correlaciona a vida ficcional da personagem aos discursos do
“real’’ sobre o feminino nesse jogo de ficção e realidade. Em seu trabalho sobre A
representação feminina na obra de Virginia Woolf: Um diálogo entre o projeto político e o
estético, Oliveira, (2013) aborda essa voz narrativa no ensaio de VW, a partir da qual
apresenta seu principal argumento:
[...] A perspectiva da narradora parte do macro contexto, ou seja, da arquitetura
patriarcal da cidade de Londres (a universidade, a biblioteca e o museu), para o
micro contexto, os espaços vazios nos livros de história. Assim, o micro contexto
reflete o macro contexto e vice-versa. Ao perceber que o acesso a determinados
espaços lhe é negado, ou mesmo no pobre jantar que é servido para as mulheres, em
comparação com o jantar servido aos homens em Cambridge, Woolf estabelece o
argumento principal de seu ensaio: a mulher precisa de independência econômica e
de certa privacidade para escrever (OLIVEIRA, 2013 p. 27)
Quando Woolf afirma que a mulher precisa ter dinheiro e um teto todo dela se
pretende escrever ficção, a autora/escritora, de fato, destaca que a mulher precisa de
condições/ suportes que favoreçam tanto sua criatividade quanto sua liberdade para exercer
sua capacidade intelectual de forma criativa, sem as restrições comumente impostas aos seus
interesses.
4 O mundo das escritoras em Um teto todo seu
Como já foi mencionada, a obra ensaística de VW gira basicamente em torno da
(auto)afirmação de que toda escritora/criadora precisa ter “um teto todo seu” e 500 mil libras
por ano: esse foco na questão econômica é central para se pensar a constituição da
mulher/escritora como um indivíduo livre, emancipado de sua submissão à vida doméstica:
E, como se queixaria tão veementemente Miss Nightingale — "As mulheres nunca
dispõem de meia hora. . . que possam chamar de sua" —, ela era sempre
interrompida. Mesmo assim, seria mais fácil escrever ali prosa e ficção do que
escrever poesia ou uma peça. Exige-se menos concentração. (WOOLF,1990 p. 83)
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397
Woolf observa que a ficção, por ser uma “uma narrativa literária que menos exigia
concentração” (OLIVEIRA, 2013 p. 58), fez-se a forma mais convencional de escrita entre as
mulheres, pois, além de não haver um espaço que pudessem chamar de “seu” não dispunham
de um tempo restritamente “seu”; o romance, portanto, pela sua forma, era maleável e exigia
menos concentração. Dentre as mais variadas personagens de Um teto todo seu, podemos
destacar Judith Shakespeare, a famosa irmã de Shakespeare, personagem essa que devido às
imposições da época não teria a mesma oportunidade de Shakespeare:
[...] Enquanto isso, sua extraordinariamente bem dotada irmã, suponhamos,
permanecia em casa. Era tão audaciosa, tão imaginativa, tão ansiosa por ver o
mundo quanto ele. Mas não foi mandada à escola. Não teve oportunidade de
aprender gramática e lógica, quanto menos ler Horácio e Virgílio. Pegava um livro
de vez em quando, talvez algum do irmão, e lia algumas páginas. Mas nessas
ocasiões, os pais entravam e lhe diziam que fosse remendar as meias ou cuidar do
guisado e que não andasse no mundo da lua com livros e papéis. Com certeza,
falavam-lhe com firmeza, porém bondosamente, pois eram pessoas abastadas que
conheciam as condições de vida para uma mulher e amavam a filha. (WOOLF, 1990
p. 59-60)
Desconhecida de algum relato da escrita feminina na época de Shakespeare, Woolf
insere Judith como forma de representação as mulheres de dado período afirmando que
mesmo que ela tivesse tanta imaginação e audácia quanto seu irmão ela teria sido privada de
aprender a gramática ou conhecer Virgílio, sendo submetida a lidar apenas com os afazeres
domésticos. Tão talentosa quanto Shakespeare, suas tentativas em apropriar-se da cultura
escrita e dos fazeres criativos/intelectuais, seriam coibidas, levando-a ao desespero até
suicidar-se. Acordando com Woolf concluímos que:
É mais ou menos assim que se daria a história, penso eu, se uma mulher na época de
Shakespeare tivesse tido a genialidade de Shakespeare. De minha parte, porém,
concordo com o falecido bispo, se bispo ele era: nem pensar que alguma mulher da
época de Shakespeare tivesse o gênio de Shakespeare. Isso porque um gênio como o
de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem instrução e humildes.
Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não nasce hoje nas classes
operárias. Como poderia então ter nascido entre mulheres, cujo trabalho começava,
de acordo com o professor Trevelyan, quase antes de largarem as bonecas, que eram
forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes?
(WOOLF, 1990 p.61).
Percebe-se que o argumento de Woolf é amplo e continuamente reforça a questão
econômica e seu papel na constituição de um indivíduo livre: não poderia haver um
Shakespeare feminino naquele tempo, como não pode haver hoje, entre a classe trabalhadora,
porque estes não eram/são livres para poder se concentrar – considerando energia e tempo –
em atividades criativas. Desse modo, VW entrevê a liberdade feminina através da própria
Nas fronteiras da linguagem ǀ
398
“caneta”, que trará além de um teto todo seu, quinhentos mil libras por ano. Woolf citado por
Oliveira (2013) em seu trabalho sobre a representação feminina, afirma que:
Admitindo-se que a mulher da classe média tem agora algum lazer, alguma
educação, e alguma liberdade para investigar o mundo em que ela vive, não será
nesta geração ou na próxima que ela vai ter ajustado a sua posição ou dado uma
clara conta de seus poderes. "Eu tenho os sentimentos de uma mulher", diz
Bathsheba em Longe da Multidão, "mas eu tenho apenas a linguagem dos homens."
A partir desse dilema levantam-se confusões infinitas e complicações. (WOOLF
apud OLIVEIRA, 2013, tradução minha)4
Woolf, neste trecho, constata que não seria em sua geração ou na próxima, que a
mulher iria ter ajustado a sua posição e o seu empoderamento, pois, como vimos durante a
análise, era/é preciso de tempo para que se pudesse forjar na língua uma dicção feminina –
mesmo que a mulher se apodere da caneta, a linguagem ainda é a dos homens, isto é, a
representação ainda é masculina.
Considerações Finais
Iniciemos essas considerações finais por ressaltar a escolha do objeto – não os
romances ou obras ficcionais de Woolf, mas o ensaio Um teto todo seu, parte integrante de
um projeto de pesquisa maior, que pretende mapear a obra ensaística da escritora traduzida no
Brasil. Adorno (2003), em sua defesa do ensaio, aponta-nos o fascínio que o ensaio exerceu
nos românticos e exerce nos escritores-críticos justamente por seu caráter de fragmento, ruína,
na qual se inscreve e se abre o infinito leque de possibilidades interpretativas: ao elidir as
fronteiras entre forma e conteúdo, fundo e forma, o ensaio se aproxima da arte – embora
Adorno (2003) não aceite o pressuposto de que ele possa, também, ser arte. Segundo o autor,
então, esse apreço pelo detalhe, pelo fragmento é uma opção ética, de exercício da humildade
contra o desejo totalizador de se “esgotar” um texto. É essa própria forma do ensaio seu
grande trunfo, uma vez que guarda a memória do processo da escrita, isto é, não procura
apagar o árduo processo de tessitura no qual os conceitos se entrelaçam no próprio fazer da
experiência intelectual. Essa “memória” conservada pela forma apresenta uma outra lógica, a
da coordenação, não a da subordinação. Esse exercício de interpretação e escrita, logo, seria
No original: “Granted that the woman of the middle class has now some leisure, some education, and some
liberty to investigate the world in which she lives, it will not be in this generation or in the next that she will have
adjusted her position or given a clear account of her powers. ‘I have the feelings of a woman,’ says Bathsheba in
Far from the Madding Crowd, ‘but I have only the language of men.” From that dilemma arise infinite
confusions and complications” (WOOLF apud Oliveira, 2013)
4
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
399
uma escolha por uma ainda que não aparente coerência. Penso que a bela defesa de Adorno
(2003) diz do ensaio e de sua proposta epistemológica:
O ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Em
vez de alcançar algo cientificamente ou criar artisticamente alguma coisa, seus
esforços ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem
vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. (...) Ele não começa
com Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe
ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer:
ocupa, desse modo, um lugar entre os despropósitos. Seus conceitos não são
construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um fim último.
Suas interpretações não são filologicamente rígidas e ponderadas, são por princípio
superinterpretações, segundo o veredicto já automatizado daquele intelecto vigilante
que se põe a serviço da estupidez como cão-de-guarda contra o espírito. (ADORNO,
2003, 16-17)
Não por acaso, o ensaio ocupa papel relevante na produção de Woolf, espaço
retomando a temática acerca da ocupação/ superioridade masculina dos espaços de
representação simbólica e a transição, entrelugar, entre os papeis de leitora e escritora.
Rompendo com os modelos impostos, Woolf através de sua escrita, visa propor uma voz e
escrita toda sua, uma outra dicção, não masculina, em contrapartida ao discurso
falologocêntrico imposto no discurso literário: “[e]la coloca-nos frente à essa complexa
realidade e percebemos que apenas falar de gênero não soluciona nossos problemas, que são
tão múltiplos, mas leva-nos a reflexões e questionamentos [...]” (OLIVEIRA, 2013 p. 237). A
relevância de Woolf na contemporaneidade repercute na sua defesa do empoderamento
feminino pela via do simbólico, pelo apoderar-se da própria “caneta”, enfatizando sua
autonomia e individualidade – sua voz.
Referências
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Cidades; Ed. 34, 2003. p. 15-45.
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401
USOS DA LÍNGUA(GEM) NA INTERNET: O QUE
ESTUDANTES DE GRADUAÇÃO PENSAM SOBRE AS
PRÁTICAS DE LEITURA E ESCRITA NA COMUNICAÇÃO
VIA DISPOSITIVOS MÓVEIS?
[Voltar para Sumário]
Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)
Amanda Cavalcante de Oliveira Lêdo (UFPE)
Introdução
A língua, artefato dinâmico, complexo, heterogêneo e variável (BAGNO, 2007), é
objeto de diferentes representações entre seus usuários, que a utilizam nas distintas práticas de
linguagem de que participam. Os diferentes usos que os falantes/escritores fazem da língua
estão imbuídos de valores e julgamentos sociais e adquirem status diferenciados que, muitas
vezes, são transferidos para os próprios usuários.
É amplamente reconhecido que, com o advento da internet, as práticas de leitura e
escrita se modificaram sensivelmente, tendo em vista os novos recursos permitidos pelo meio
eletrônico. A comunicação via internet, em especial no âmbito das redes sociais digitais, nas
quais os jovens figuram como protagonistas e usuários centrais, muitas vezes lança mão de
uma linguagem característica, conhecida como “linguagem da internet” ou “internetês”, que,
por se afastar significativamente do padrão gráfico da língua, tem sido objeto de intensas
discussões, tanto no âmbito acadêmico como na mídia e na sociedade em geral. Assim, a
comunicação ocorrida através das mídias digitais, a exemplo daquela mediada por
dispositivos móveis tais como
smartphones e tablets, frequentemente inclui práticas de
escrita mais flexíveis que são estigmatizadas por se afastarem do modelo de grafia “correta”.
Diante do exposto, este estudo teve como objetivo investigar as concepções de alunos
de dois cursos de graduação a respeito de suas próprias práticas de escrita mediadas por
dispositivos móveis conectados à internet, a partir da análise das respostas desses estudantes a
um questionário sobre como usam/veem a escrita nesses suportes.
Na tentativa de alcançar seus propósitos, o artigo está organizado da seguinte maneira:
Nas fronteiras da linguagem ǀ
402
primeiro, abordamos as noções de língua, variação linguística e internetês que assumimos,
relacionando esses conceitos com as práticas de escrita mediadas pelas tecnologias digitais
móveis. Finalmente, apresentamos nossa análise das respostas dos estudantes, concluindo com
a discussão dos resultados nas considerações finais.
1. Língua e variação
Conforme Marcuschi (2008, p. 59), a língua pode ser vista a partir de diferentes
concepções: (a) como forma ou estrutura; (b) como instrumento de comunicação; (c) como
atividade cognitiva; (d) como atividade sociointerativa situada. Neste trabalho, partimos da
concepção de língua como atividade sociointerativa situada, assumindo que ela se constitui
como fenômeno histórico e cultural, como atividade sociocognitiva e como lugar de interação
social (MARCUSCHI, 2008).
Nesse sentido, a língua é também marcada pela heterogeneidade e constituída por um
conjunto de variedades, igualmente legítimas do ponto de vista linguístico, mas às quais são
atribuídos diferentes status do ponto de vista social. Essas variedades são utilizadas pelos
sujeitos em distintas situações de comunicação, de acordo com os diferentes contextos de
produção (quem são os interlocutores, qual o grau de formalidade, qual o gênero de texto
etc.). Dessa forma, a língua se apresenta como um organismo vivo e intrinsecamente
dinâmico, flexível e variável (BAGNO, 2007; 2014).
Um dos conceitos associados às variedades linguísticas é o de norma padrão, que
consiste em um ideal de língua representado por um conjunto de regras prescrito pela
gramática normativa. O conjunto de usos que mais se aproxima da norma padrão constitui a
norma culta1, que é formada pelas variedades urbanas de prestígio e “designa o conjunto de
fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações
mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Essa variedade recebe grande
valorização social e representa um instrumento de poder e status para os usuários que a
utilizam, como também um fator de exclusão e preconceito contra aqueles que não a
dominam. A supervalorização da norma padrão contribui para a disseminação de valores
1 Embora encontremos na literatura os termos norma padrão e norma culta como sinônimos, nesse trabalho
assumimos, com Bagno (2007), que a primeira noção corresponde a um modelo idealizado e ideologizado e a
segunda diz respeito a usos concretos/reais da língua. Além disso, concordamos com Faraco (2008) em que,
apesar de fazermos referência a uma norma culta (no singular), o que de fato ocorre é uma diversidade de
manifestações linguísticas que acarreta diferentes realizações da linguagem urbana culta. O estudioso também
defende a importância de se distinguir a norma culta falada da norma culta escrita. Tais reflexões sugerem ser
mais adequado pensar em “normas cultas”.
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403
autoritários e discriminatórios. Ela se torna elemento determinante da hegemonia e do
controle de um grupo de prestígio, se transformando em fator de exclusão sociocultural
(MONTEAGUDO, 2011).
A escola figura como um dos principais agentes de valorização, disseminação e
manutenção da ideologia da norma padrão. No contexto escolar, prevalece o discurso de
exaltação da norma, em detrimento das demais variedades, embora recentemente tenha
ocorrido a inserção do tema da variação linguística no currículo, até por força dos PCN.
Contudo, o tratamento dado à questão da variação ainda é incipiente e, muitas vezes,
estereotipado e preconceituoso, na medida em que a variação é tratada como um problema e
não como uma característica inerente à língua2.
A instituição escolar parece tentar se isolar das práticas sociocomunicativas
estabelecidas em outras instâncias, a exemplo das práticas de linguagem que acontecem
através das tecnologias digitais e que utilizam o internetês, sustentando que se utilize a norma
padrão sempre, sob o risco de o falante sofrer graves consequências pela sua infração: ser
julgado e discriminado por seu comportamento linguístico.
1.2. Imaginário social: variação linguística na oralidade e na escrita
Faraco (2011) destaca o poder que têm as imagens e significados que envolvem a
língua e compõem o imaginário social na construção do prestígio da norma padrão e da norma
culta diante das demais variedades linguísticas. Dentre as falácias que constituem esse
imaginário destacamos: (i) associação de língua (apenas) com a modalidade escrita e (ii) a
crença de que a escrita é homogênea.
O primeiro aspecto se relaciona, historicamente, com a eleição pelos estudiosos gregos
de um ideal de língua baseado na consagrada escrita literária clássica. É nesse contexto que
está a origem da gramática tradicional ou normativa, cujas regras têm o intuito de preservar a
maneira mais “correta”, “bela” e “culta” de utilização da língua (BAGNO, 2012). A língua,
nessa concepção, seria representada pela escrita, na medida em que essa modalidade
transportaria a língua do plano abstrato para uma realidade palpável (BAGNO, 2011).
Nesse processo de “corporificação”, a escrita perde o status de mera representação e
passa a ser concebida como a própria língua, a língua concreta (quando na verdade é uma das
modalidades em que ela se apresenta). Com isso, no senso comum, há a transferência das
2 Recomendamos a leitura de Bagno (2013) para uma discussão dos problemas relativos à abordagem da
variação linguística pelos livros didáticos de língua portuguesa.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
404
características dessa modalidade para a língua, ou seja, as pessoas passam a associar os
aspectos típicos de determinado modelo de escrita à língua, como se esta fosse monolítica. Tal
fato também está relacionado à dicotomia entre as duas modalidades da língua: a fala
(considerada desorganizada, informal, desregrada, popular) e a escrita (considerada
organizada, formal, regrada, culta). Se, como lembra Faraco (2011), tradicionalmente se faz
uma estreita vinculação entre “língua escrita” e norma padrão, isso significa que em geral se
toma a “língua oral” (fala) como lugar de variação linguística e a escrita como
intrinsecamente homogênea. Contudo, é importante ressaltar que, como modalidade semiótica
ou forma de representação da língua, a escrita efetivamente se manifesta em diferentes
variedades linguísticas, desde as mais valorizadas, como a norma culta, até aquelas que
recebem estigma social, a exemplo do internetês, do qual trataremos a seguir.
2. Língua(gem) da internet? Considerações sobre o internetês
No ambiente eletrônico, a leitura e a escrita são atividades fundamentais, visto que na
maior parte do tempo, a navegação nos sites requer que os usuários leiam e escrevam com
frequência. As práticas de leitura e escrita em questão se realizam por meio de diversos
gêneros textuais, provenientes das diferentes esferas sociais, aspecto que evidencia como a
linguagem utilizada na internet é igualmente múltipla, tanto do ponto de vista dos recursos
textuais, discursivos e semióticos como das variedades linguísticas. Dessa forma, é possível,
dependendo do gênero, encontrar a utilização de variedades mais ou menos prestigiadas na
rede, embora alguns trabalhos façam referência à “linguagem da internet”, como se fosse
única e homogênea (BEZERRA, 2013).
A fim de evitar generalizações e considerando que não existe uma linguagem única,
mas sim linguagens da/na internet (BEZERRA, 2013), ressaltamos que quando nos referirmos
à
“linguagem
da
internet”
ou
“internetês”,
estamos
tratando
das
práticas
comunicativas/discursivas realizadas em contextos informais em determinados gêneros de
textos, presentes especialmente em sites de relacionamento, blogs e serviços de bate-papo
(chats). Ademais, essas práticas são responsáveis pela formação e manutenção das inúmeras
redes sociais que se constituem em torno desses recursos.
O internetês tem sido descrito como uma “forma grafolinguística” utilizada
tipicamente em textos encontrados em chats, blogs e outros mecanismos mediadores de redes
sociais (KOMESU; TENANI, 2009). Dentre suas principais características, costuma-se citar a
prática frequente da abreviação, a supressão ou acréscimo (repetição) de sinais de pontuação,
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405
a omissão de acentos gráficos, a troca, o acréscimo (inclusive repetição) ou a omissão de
letras. Parcialmente, pelo menos, trata-se de uma escrita simplificada ou reduzida, que parece
se orientar mais fortemente pelo princípio da economia, tendo em vista especialmente a
velocidade da interação.
No presente trabalho, o internetês é tomado como uma variedade linguística no
sentido sociolinguístico do termo (ARAÚJO, 2007), “uma nova, mas não absolutamente
inédita, variedade escrita de uso da língua portuguesa, que se constitui paralelamente à escrita
e à ortografia oficial do português brasileiro” (BEZERRA, 2013, p. 3). Essa variedade,
contudo, é desprestigiada socialmente e, muitas vezes, demonizada pelos discursos escolar e
midiático, responsabilizada por estimular os estudantes a “escreverem errado”. A valorização
das variedades cultas, em detrimento das variedades populares e do internetês (mais ligada ao
aspecto etário), encontra respaldo em discursos sobre a “preservação” da língua portuguesa,
sendo possível detectar preconceito linguístico contra o internetês inclusive da parte de
estudiosos da linguagem (FERREIRA; SHEPHERD, 2011). Dessa forma, o internetês é
constantemente confrontado com o ideal de escrita que é cobrado na escola e o não
reconhecimento dessa variedade leva à preocupação com a “degradação” da língua.
Dentre os recentes trabalhos que têm investigado o internetês, destacamos o de
Bezerra (2013), no qual o autor analisa os sentidos construídos pelo discurso acadêmico a
respeito das práticas de linguagem da/na internet, constatando como a “linguagem da internet”
é, muitas vezes, estigmatizada. Os estudos de Galli (2008), a respeito do imaginário sobre a
escrita a partir da análise de comunidades do Orkut, e de Bezerra (2014), sobre o
normativismo linguístico em páginas do Facebook, também verificam o enraizamento dos
discursos sobre preservação da língua na crítica do uso do internetês e constatam que,
contraditoriamente, os mesmos usuários que “defendem” a língua e pregam a escrita “correta”
transgridem tais normas quando escrevem. Tais exemplos permitem concluir que há
necessidade de mais pesquisas que contribuam para compreender com maior profundidade a
escrita realizada em suportes digitais e desconstruam os preconceitos contra os usos
linguísticos emergentes da/na internet.
4. Concepções dos estudantes sobre a escrita em dispositivos móveis
A fim de observar as concepções de língua escrita e seus usos em dispositivos móveis,
convidamos alunos de dois cursos de graduação, Licenciatura em Letras e Bacharelado em
Direito, de diferentes Universidades, para responder a um questionário com perguntas abertas
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406
a respeito de suas práticas de escrita nesses suportes. O corpus que analisamos corresponde às
respostas de 20 estudantes, sendo 10 do 4º período de Licenciatura em Letras e 10 do 1º
período de Direito, durante o 2º semestre de 2014. Esses alunos cursaram ou estavam
cursando pelo menos uma disciplina em que se abordava a língua sob o ponto de vista de sua
heterogeneidade e variabilidade. Em nossa análise, discutimos as concepções de língua e
escrita subjacentes às respostas dos estudantes
4.1. Frequência de uso e preferências
Sobre a frequência com que os estudantes utilizam dispositivos eletrônicos como
smartphones e tablets para se comunicar, especialmente com amigos e familiares, no dia a
dia, cerca de 80% dos entrevistados afirmam que utilizam com muita frequência,
demonstrando que essas tecnologias fazem parte do cotidiano da maioria. Também segundo
os estudantes, os aplicativos que mais usam para participar de redes sociais através de
dispositivos móveis são o Whatsapp e o Facebook. Questionados sobre como avaliavam a
importância desses dispositivos e aplicativos para suas atividades diárias, a maioria dos
estudantes respondeu que eles são muito importantes e muito úteis, porque facilitam a
comunicação no seu dia a dia, e seu uso não se restringe a entretenimento, mas, segundo os
estudantes, é também essencial para a resolução de questões relacionadas a estudo e trabalho.
Considerando a diversidade de pessoas e propósitos com os quais os estudantes
utilizam esses dispositivos (comunicação com familiares, com amigos, com chefes, colegas de
faculdade, colegas de trabalho, enfim, pessoas com diferentes graus de instrução, diferentes
relações e proximidade com o estudante), é possível supor que sejam igualmente múltiplas as
formas como devem utilizar a língua. No entanto, como vamos perceber, ao menos
idealmente, para boa parte deles prevalece a preocupação em escrever de maneira “correta”.
4.2. Os estudantes e o “cuidado” com a língua
Em outra questão, quisemos saber se eles consideravam necessário ter algum cuidado
com o uso da língua portuguesa na comunicação por smartphones ou tablets e por quê. A
maioria deles (60%) respondeu que sim, que é necessário ter o devido cuidado com a escrita
ao usar esses dispositivos. Dentre as justificativas apresentadas, são recorrentes as ideias de
que: (i) o uso “incorreto” da língua passa a imagem de falta de conhecimento sobre ela; (ii)
como o uso desses meios e do internetês influencia o modo como escrevemos, devemos ter
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407
cuidado para não escrever “errado” em uma situação formal; (iii) devemos escrever
“corretamente” para que a mensagem seja entendida.
É possível perceber, nas respostas dos estudantes, crenças provenientes do senso
comum, tais como o pensamento de que a norma padrão deve prevalecer em todas as
situações de que o usuário participar, especialmente na modalidade escrita; e que utilizar o
internetês influenciaria os estudantes a escreverem “errado” em outras situações. Tais aspectos
contrariam a noção de que o usuário da língua é capaz de adequar as diferentes variedades que
conhece às necessidades da situação comunicativa. Também constatamos a ideia de que, se a
escrita não estiver de acordo com a norma padrão, a compreensão não será possível, não será
comunicação em português (o internetês é frequentemente descrito como uma “nova língua”).
Entretanto, percebemos que a compreensão pode ser prejudicada (mas não impossibilitada)
apenas nos casos em que o usuário não adquiriu minimamente algum letramento nas práticas
digitais, o que não ocorre com os estudantes em questão, dada a frequência de uso dos
dispositivos móveis que afirmam manter.
Nessa questão, uma justificativa chamou nossa atenção: um estudante de Letras afirma
que todos devem ter cuidado com a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis, mas
especialmente se for aluno desse curso, visto que se escrever “errado” será mais criticado.
Esse comentário revela a cobrança social sofrida pelo estudante de Letras para que “preze
pela língua”, ou seja, a expectativa de que sempre use a língua “corretamente”, o que significa
de acordo com a norma padrão. Podemos considerar que isso revela o quanto o estudante se
sente constrangido a utilizar essa norma em todas as situações. Ressalte-se que, em geral, tal
cobrança não é estendida com igual intensidade a qualquer pessoa que faça um curso superior.
Tal aspecto se relaciona com o imaginário social de que os estudantes de Letras, professores
de língua em formação, “dominam” (ou precisam “dominar”) a norma padrão.
Ainda sobre a necessidade de cuidado com o uso da língua portuguesa em dispositivos
móveis, 20% dos estudantes responderam que não e 20% responderam que depende,
apresentando justificativas similares para os dois pontos de vista. Dentre elas, é recorrente a
ideia de que a língua deve se adequar ao ambiente/situação/interlocutor. Tal pensamento está
relacionado ao reconhecimento de que há diferentes formas de se comunicar (variedades) e de
que essas formas devem ser usadas adequadamente, de acordo com as necessidades
comunicativas. É possível que essa ideia seja proveniente do contato dos estudantes com
disciplinas que enfatizem o ponto de vista descritivo/científico da língua.
Outro comentário defende que a preocupação em “seguir as regras gramaticais” (isto é,
a norma padrão) depende de, por exemplo, se a escrita fica disponível para a visualização
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408
pública, para a exposição de si possibilitada pelas tecnologias digitais. Assim, seria
admissível, por exemplo, não “seguir as regras gramaticais” em uma mensagem de texto
(SMS) privada, mas não seria recomendável fazer isso em um comentário público no
Facebook. Percebe-se que há a preocupação do usuário em não criar uma imagem negativa de
si, associada a determinados usos da língua, menos prestigiados.
4.3. Avaliação dos usos da língua em dispositivos móveis
A respeito de como avaliam a maneira como a maioria das pessoas (conhecidas deles
ou não) utiliza a língua portuguesa ao usar dispositivos móveis para comunicação, parte dos
estudantes respondeu que a maioria das pessoas escreve com displicência, de forma errada,
com muitas abreviações e erros de concordância, com “uso excessivo do ‘internetês’ ou de
gírias”. Já outra parte avalia que as pessoas escrevem de maneira informal, “normal” e de
forma compreensível. No exemplo 01, apresentamos alguns comentários dos estudantes sobre
essa questão:
Exemplo 01: Avaliação dos estudantes sobre o uso da língua em dispositivos móveis
Estudante A: [Essa escrita é] Diferente de uma escrita formal, pois a linguagem utilizada nesses meios procura
ser a mais rápida e estratégica possível.
Estudante B: Eu particularmente não os julgo conscientemente, mas de alguma maneira tenho preconceito ou
ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico por exemplo e tiveram
condições pra isso. Logo, por assumir isso, mesmo que no subconsciente, avalio como uma desconstrução da
língua, a forma como ela é usada.
Com base no exemplo, podemos perceber que existem diferentes graus de aceitação
das práticas de linguagem emergentes na internet e diferentes pontos de vista na avaliação que
se faz dessa escrita, que variam desde assumir que ela é adequada ao meio digital até a
depreciação dos usuários que a utilizam e se afastam da norma padrão (apesar de o próprio
estudante dispensar o uso do acento gráfico, tal qual acontece, de maneira geral, no internetês
que ele critica): o estudante A considera o internetês uma variedade adequada a situações
informais, que atende a uma demanda de escrita “rápida e estratégica” própria da
comunicação através desses dispositivos. Já o estudante B assume ter uma atitude
preconceituosa com as pessoas que não utilizam a língua “em um nível basico”, mas que a
“desconstroem”, posicionamento que defende a soberania da prescrição normativa da língua.
O julgamento depreciativo das atividades linguageiras menos prestigiadas esteve presente em
mais de um comentário e frequentemente foi transferido para os usuários, na imagem que o
estudante faz de si mesmo e do outro, baseados na sua (in)competência linguística. Além
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409
disso, nota-se o impacto do preconceito linguístico nas relações sociais, na forma de exclusão
(“ate me afasto de individuos que não se adequaram ao uso da língua em nivel basico”).
Em outra questão, perguntamos também como esses estudantes avaliam a própria
maneira como usam a língua através dos dispositivos móveis. De maneira geral, dentre as
respostas mais recorrentes estão que eles consideram que: (i) usam a língua de maneira eficaz
(mas não esclarecem o que significa isso); (ii) escrevem de maneira informal; (iii) depende da
pessoa com quem estão conversando; (iv) procuram escrever respeitando a gramática, mas às
vezes têm preguiça de escrever frases longas ou querem demonstrar sentimentos (por
exemplo, utilizando “kkkk” para indicar risos); (v) tentam escrever da melhor forma possível,
a qual está associada a objetividade, clareza e obediência às regras ortográficas/gramaticais.
Assim, a autoavaliação dos estudantes sugere que a maioria se preocupa em escrever
seguindo as regras da gramática normativa, ainda que, eventualmente, por preguiça ou outra
razão, faça uso do internetês. Aparentemente, os estudantes percebem que existem diferentes
formas de falar e escrever e parecem transitar entre essas variedades conscientemente. Ainda
sobre essa questão, destacamos no exemplo 02 alguns comentários dos estudantes:
Exemplo 02: Avaliação dos estudantes sobre como utilizam a escrita em dispositivos móveis
Estudante C: Entre amigos abrevio as palavras, e quando preciso escrever de forma correta, fico me
perguntando qual a forma certa.
Estudante D: Tento não utilizar alguns termos como “concerteza” para não trazer isso para outras situações.
Em seu argumento, o estudante C considera que a abreviação de palavras que utiliza
quando interage em uma situação de baixa formalidade interfere em seu desempenho quando
necessita escrever segundo a norma padrão, na medida em que fica em dúvida sobre qual a
forma correta. No entanto, acreditamos que, provavelmente, a dúvida sobre a grafia da palavra
é anterior ou independente do uso do internetês e não em sua decorrência. Se, por exemplo, o
estudante escreve na internet “pq” (e isso é suficiente naquela situação), mas quando precisa
escrever segundo a norma padrão fica em dúvida sobre usar “por que”, “porque” “porquê” ou
“por quê”, esse problema é fruto do desconhecimento da regra gramatical pertinente e não
influência do internetês.
Já o estudante D afirma que em sua escrita através dos dispositivos móveis procura
evitar termos como “concerteza”. Nesse caso, parece que há uma confusão bastante comum
entre as pessoas e recorrente nas respostas dos estudantes entre o que seria a escrita típica da
internet (o internetês) e a escrita de outras variedades linguísticas na internet ou fora dela, ou
seja, confundem problemas de ortografia com internetês. Ao considerar que a grafia de
“concerteza” faz parte do internetês, o estudante não leva em conta que ela acontece com
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410
frequência em suportes convencionais de escrita com ou sem relação com a internet.
Embora não seja, ao que tudo indica, responsável pelo surgimento de formas como
“concerteza”, o que a internet fez foi conferir maior visibilidade a problemas de aquisição da
grafia oficial que antes ficariam mais restritos a situações específicas de escrita. Esse fato,
antes de ser avaliado primordialmente como algo negativo, pode ser visto como uma
contribuição para um diagnóstico mais exato sobre desafios específicos para o ensino de
aquisição da escrita.
Considerações finais
Nosso objetivo, neste artigo, foi refletir sobre as concepções de alunos de graduação
sobre as práticas de escrita que realizam através de dispositivos móveis. Através da análise
das respostas dos estudantes a um questionário sobre como esses estudantes usam/veem a
língua quando se comunicam por meio de smartphones e tablets, buscamos investigar o
imaginário construído em torno da língua e da escrita.
Foi possível perceber que as tecnologias representadas pelos dispositivos móveis estão
presentes no cotidiano desses estudantes e que sua frequência de uso é acentuada. Entretanto,
como vimos, a maioria dos estudantes considerou ser necessário ter cuidado com a escrita,
apontando a necessidade de “escrever corretamente” nesses suportes, apesar de alguns
também mencionarem a adequação (à situação, ao meio, ao interlocutor) como fator decisivo
para a escolha de como utilizar a língua. Embora os estudantes fossem provenientes de
diferentes cursos superiores, de maneira geral suas respostas foram bastante próximas, exceto
quando alguns estudantes de Letras fizeram referência à expectativa social de que eles
deveriam sempre utilizar a língua “corretamente” devido à cobrança social que recebem em
decorrência do seu curso.
Foi recorrente nas respostas dos estudantes a identificação do valor social atribuído às
variedades linguísticas, juízos que são transferidos para o falante, julgando-o mais positiva ou
negativamente, bem como a preocupação diante da projeção da imagem de si e do outro
através do uso da língua. Acreditamos que os estudantes, assim como os usuários em geral,
têm uma concepção idealizada da própria escrita, seja por considerarem que ela está livre dos
problemas que encontram na escrita dos outros ou, ao contrário, por acharem que não sabem
escrever corretamente. Um desdobramento futuro da reflexão aqui apresentada seria observar
empiricamente as práticas de escrita realizadas efetivamente por esses estudantes em
dispositivos móveis.
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O internetês foi frequentemente associado ou confundido com problemas formais
como a ortografia (“concerteza”), a ausência de concordância e a pontuação. O internetês,
embora mais associado a uma faixa etária do que a uma classe social como é o caso das
variedades linguísticas mais estigmatizadas, entretanto compartilha com essas variedades
populares o estigma do “erro” e da não obediência às “regras gramaticais” (isto é, à norma
padrão, tomada como a única norma dotada de regras e de gramática).
Assim, de maneira geral, os posicionamentos estão polarizados basicamente em dois
pontos de vista: por um lado, os estudantes reproduzem o discurso escolar de hegemonia da
norma padrão e preocupação com a preservação da língua, sendo esse o ponto de vista mais
recorrente e, por outro, estão conscientes de que há usos mais ou menos adequados a cada
situação e ambiente. Nesse sentido, ora o internetês (especialmente, em relação à abreviação
das palavras) figura como um problema que deve ser evitado, sob o risco de influenciar a
escrita em situações formais, ora aparece como variedade justificada em virtude da
necessidade de rapidez na escrita ou do alto grau de informalidade, entre outras razões.
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III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
413
O MEDO E A FÚRIA ― MOVIMENTOS DE UMA POÉTICA
DA PARTICIPAÇÃO
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Bianca Campello Rodrigues Costa (UFPE)
Bruno Eduardo da Rocha Brito (UFPE)
A palavra medo está carregada de tanta vergonha
que a escondemos. Enterramos no mais profundo de
nós o medo que nos domina as entranhas
(G. Delpierre)
O projeto artístico do escritor pernambucano Wellington de Melo tem se destacado
pela abordagem das experiências configuradoras da contemporaneidade, como a relação entre
o homem, realidade e virtualidade, assunto de seu [desvirtual provisório] (poesia, 2008), os
movimentos sociais e sua manipulação política, a homofobia e a pedofilia, alguns dos temas
de Estrangeiro no labirinto (romance, 2013). Dada essa característica, destaca-se entre seus
títulos o desafio auto-imposto pelo poeta de cantar o medo, decisão tomada em O peso do
medo: 30 poemas em fúria (2010). Afinal, mais que uma experiência humana atemporal,
trans-histórica, o medo, como lembra-nos Bauman (2008, p. 9), é uma sensação instintiva
primordial que os humanos dividem com as mais diferentes espécies do reino animal.
É a resolução dada pelo poeta a esse desafio que pretendemos evidenciar nesse estudo.
Para tanto, fundamentamo-nos em três questionamentos. O primeiro é: como se representou
historicamente o medo em literatura? O segundo é: há algo na vivência do medo que constitua
uma experiência identificável como uma forma contemporânea de sentir medo? O último,
consequência
do
questionamento
anterior:
havendo
um
medo
específico
da
contemporaneidade, que formas artísticas o poeta considerou como aquelas capazes de
expressar essa especificidade? As respostas a essas três indagações, esperamos, esclarecerão
o papel de O peso do medo na poética que seu autor vem erigindo, fundamentando tanto
novas leituras que visem a exploração desse livro como as que se debrucem sobre as demais
produções do escritor.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
414
Comecemos, então, pelo lugar do medo na literatura. A primeira constatação que
fazemos a esse respeito vem do título da abertura do estudo de Jean Delumeau (2009) sobre a
história do medo no Ocidente. Há um silêncio sobre o medo. E esse silêncio, alerta-nos o
historiador, é profundamente político. Da Era Clássica à Idade Moderna o medo foi
confundido com covardia, um sentimento de almas pusilânimes, indignas e incapazes de
ocupar as posições de liderança ― e, consequentemente, de exercer direitos privilegiados.
Fruto e fonte dessa interpretação da experiência humana, a arte representou essa
perspectiva exaltando a valentia e silenciando a representação dos temores. No domínio da
literatura, a coragem é o motor central da poesia épica, considerada elevada, das novelas de
cavalaria e dos romances históricos que a seguiram. Já o medo foi rotineiramente deformado
na covardia característica do vilão, palavra aqui usada em toda extensão da ambiguidade:
vilão-antagonista e vilão-homem da vila, homem comum.
Acrescentamos a essas observações, extraídas de Delumeau (2009), duas informações
importantes. A primeira ressalta que tanto já na era clássica, mas principalmente no período
entre o século XIV e o século XVIII, focalizado pelo historiador, vigoraram poéticas erigidas
ou digeridas dentro de normas hierarquizadoras. Ocorria nos gêneros literários aquilo que
ocorria na organização social dos homens: uma hierarquização que dividia o nobre do vil.
Nesse contexto, havia dois espaços artísticos para representar o medo, ambos inferiores. Num
o medo, deturpado em covardia e superstição, foi alvo da ridicularização que condena os
vícios, papel da comédia, da farsa, da sátira, do travestimento e da charge1. No outro, dá-se
legitimidade à representação do medo porque se representa a única forma de medo
desvinculada do estigma da covardia na sociedade europeia observada por Delumeau: o medo
da danação espiritual pelo pecado, representado pela poesia lírica de temática religiosa.
A segunda observação destaca uma presença oblíqua do medo na literatura clássica e
na literatura da sociedade aristocrática estudada por Delumeau: a do medo como efeito, já
previsto por Aristóteles no conceito de catarse. Aqui o medo se faz presença não como tópico,
mas como fonte de prazer psíquico que educa moralmente. Aqui justapomos à tragédia ática a
tragédia elizabetana e o romance gótico do século XVIII.
A constatação de que o medo foi recalcado pela arte pela sua íntima vinculação com a
estratificação dos regimes aristocráticos poderia sugerir que a suplantação desse modelo
social resultou em uma literatura mais aberta à representação dos medos humanos. No
1
O travestimento, transposição estilística que inverte as significações da obra original, e a charge, inversão do
texto original no campo da composição dos personagens e da ação, são conceitos desenvolvidos longamente por
Genette (2010).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
415
entanto, o advento da sociedade burguesa não foi mais receptivo ao medo. Assim foi porque
ideologicamente a divisão entre homens nobres e homens vis, fundamentada em princípios
diferentes, persistiu durante todo o século XIX. Em certo tempo, sua premissa foi a confiança
absoluta no gênio criador dos românticos, reflexo do entendimento de que alguns homens
eram seres de alma mais nobre que outros, sendo-lhes superiores por seus valores e
sensibilidades. Subsequentemente, na época da confiança absoluta na ciência, embora
igualados os homens por sua condição instintiva e animal, diferentes modalidades de
superioridade foram construídas, destacadamente aquelas proporcionadas pelo domínio da
ciência e aquelas erigidas pela aplicação perversa de ideias dessa mesma ciência: a que
hierarquizou os homens em raças superiores e inferiores e cujos resultados políticos extremos
marcaram a história do século XX. Não é a toa que uma das maiores tragédias humanas
modernas tenha se dado, como caracteriza Bauman (2008, p. 21), citando Jacques Attali,, pela
arrogância humana e seu desconhecimento do medo, e que tenha ocorrido justamente no
momento em que expirava a sociedade burguesa erigida nas bases do Positivismo: o naufrágio
do RMS Titanic.
Seguindo tal raciocínio, é possível que tenhamos encontrado o principal motivo para
que o medo tenha recebido maior atenção artística justamente quando se anuncia a falência
das ideias que sustentaram a sociedade ocidental do século XIX. Foi a partir da insurreição à
arte burguesa e às poéticas normativas das vanguardas que o medo efetivamente ingressou no
rol de temas da arte, tanto fazendo parte da psique dos personagens com os quais o público
relaciona-se empaticamente como sendo cantado em todas as suas manifestações pela poesia
lírica. A demolição das hierarquias de gênero e de temas foi capaz de elevar a angústia
existencial e os medos do cotidiano ― o medo da impotência, o medo da violência, o medo da
sujeição aos outros homens, o medo do isolamento ― a motivo de algumas das grandes obras
artísticas do século, como O grito, Guernica e A metamorfose. No acervo artístico brasileiro,
é Drummond quem canoniza a representação do sentimento em seu Congresso Internacional
do Medo.
Desenvolvido tal panorama, podemos iniciar a resposta das duas primeiras perguntas.
A representação do medo como uma emoção humana legítima, apesar da universalidade e
atemporalidade da experiência, é um fenômeno artístico recente. Tão recente, que,
considerando-se os paradigmas da história da arte, o cânone das letras nacionais, o poema de
Drummond, ainda pode ser considerado, em certos termos, contemporâneo. Tais termos, no
entanto, parecem-nos inadequados, visto que, embora a realização drummondiana tenha o
vigor da trans-historicidade das grandes obras artísticas, sua vinculação a um contexto
Nas fronteiras da linguagem ǀ
416
histórico específico, o da II Guerra Mundial, não deixa de cercar o medo drummondiano de
certa contingência irrelevante para a poesia de Wellington de Melo, produzida sessenta e
cinco anos mais tarde.
Aqui é importante um esclarecimento. A contingência da II Guerra é que é irrelevante
para a poesia de Wellington de Melo. O cânone drummondiano não só não é irrelevante como
ganha o espaço em dois poemas, o gabinete e um espelho. O primeiro é centrado justamente
na negação do medo drummondiano, caracterizado como aristocrático, partidário, de eventos
longínquos, de causas grandiosas, identificável. O medo identificado por Melo como sendo
seu medo, portanto, é o medo da coletividade da massa, apartidário, do cotidiano, das causas
banais e sem identidade. É um “medinho sem-vergonha” (2010, p. 40), e “medíocre”: o medo
da violência urbana, o “medo da bala”.
Portanto, há algo de especificamente contemporâneo na experiência do medo e, por
isso, algo que apenas a contemporaneidade literária poderia representar. Para Bauman (2008),
essa especificidade deve-se à liquidez de todas as certezas, de todas as seguranças que
caracteriza nosso momento histórico. Liga-se, também, a uma cultura que lucra com o medo,
que o explora e o divulga para alavancar a circulação da economia. A liquidez do futuro e da
felicidade do futuro alavancou, por exemplo, o uso cotidiano do crédito bancário, sob a forma
de cartões de crédito e de empréstimos consignados, uma cultura de vida a crédito que se opõe
à cultura da poupança (BAUMAN: 2008, p. 17) que caracterizou as práticas sociais até a
década de 1980. A consequência maior dessa liquidez para a experiência de medo da
contemporaneidade é a impossibilidade de redenção: os medos hodiernos “são incuráveis e,
na verdade, inextirpáveis: chegaram para ficar - podem ser suspensos ou esquecidos
(reprimidos) por algum tempo, mas não exorcizados” (BAUMAN, 2008, p. 43). E essa
incapacidade de exorcismo do medo é representada temática e estruturalmente por Melo em
sua obra. Em arte poética, texto de abertura do livro, que funciona como uma espécie de
proposição autônoma da poesia em desenvolver uma anti-épica, uma odisseia às avessas, não
heroica, o eu lírico (a própria poesia pós-moderna) estabelece que a empreitada de percorrer
os meandros do medo é vazia: o livro é “silêncio pó (...) máscara que se arrasta” (MELO,
2010, p. 14) e “abismo” (Ibid., p. 15). Em art r rog rio, poema que finaliza o volume, “não
acaba” repete-se em onze dos setenta e nove versos que realizam a capitulação ao tema ―
capitulação que se efetiva, num movimento derradeiro, ao mostrar que o ponto de chegada
dessa anti-odisseia, o “livros / de ventre / morto” é o mesmo da partida, “morto ventre de
livros”.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
417
Tendo respondido às duas primeiras indagações, cremos que de modo satisfatório,
daremos sequência ao terceiro questionamento: que formas artísticas são responsáveis pela
expressão do medo contemporâneo na perspectiva estética de Wellington de Melo? Sem a
pretensão de um estudo exaustivo, dado o caráter breve deste ensaio, abordaremos alguns
pontos que consideramos fundamentais.
O primeiro ponto que se destaca no conjunto do livro é a provocação ao leitor para a
construção do ritmo. Para Octavio Paz (2012, p. 58), o ritmo é a alma do discurso poético, a
estrutura organizadora de sua identidade e, mais que medida, “é visão de mundo” (Ibid., p.
66). Um ritmo confortável, estruturado de modo que a repetição dos padrões sonoros torne-se
previsível, seria característico de épocas em que há uma relação harmônica entre o homem e o
tempo. Já o ritmo dissoluto, que rompe padrões, torna imprevisível o rumo da organização
poética, é característico ou de épocas em que a vivência do tempo incorpora a noção de
velocidade e avanço ou de épocas menos confiantes no futuro. Não à toa é o ritmo do jazz e o
da poesia de verso livre do início do século XX.
Os ritmos dos poemas de O peso do medo não se encaixam nem no signo da
constância nem no da dissolução. Isso se deve a dois recursos: a ausência de versos na
estruturação de vinte e nove dos trinta textos e da organização das palavras nos textos. O
poeta usa largamente a elipse de forma a demolir a maior parte dos nexos hierárquicos entre
as palavras e prescinde de qualquer pontuação. Aqui está a primeira forma de participação
poética do livro: a participação do leitor na construção do poema. Se é uma obviedade
absoluta que a literatura só se realiza como leitura, como ação do leitor, é igualmente patente
que a maior parte dos escritores procura prevenir-se do poder dessa leitura, tentando
assegurar-se, pelos mais diversos expedientes, que a atividade do leitor seja controlada. O ato
da leitura de literatura costuma ser hierarquizado: o autor é o destemido que pega em armas
na luta contra as palavras, enquanto o leitor é alma pusilânime governada pelo bravo. Ao fazer
da poesia personagem que invoca sua persona literária para dar voz ao medo da
contemporaneidade, Wellington de Melo intui que o poeta e o leitor são iguais, homens
amarelos e medrosos, sendo incabível a quem escreve determinar como se lê aquilo que se lê,
sendo esse como o tudo da poesia.
Exemplifiquemos a questão com um estudo de caso. Em “o para-brisa” a sequência
“desaba sobre o para-brisa a tempestade o peso do medo afoga enfim o plástico sobre o parabrisa desabam o caos o sol ramalhetes de pássaros acorrentados” pode ser organizada, entre
muitas outras possibilidades, das seguintes maneiras:
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418
1) desaba sobre o para-brisa a tempestade / o peso do medo afoga enfim o plástico / sobre o
para-brisa desabam / o caos o sol ramalhetes / de pássaros acorrentados
2) desaba / sobre o para-brisa / a tempestade / o peso do medo / afoga enfim / o plástico sobre o
para-brisa / desabam / o caos / o sol / ramalhetes de pássaros / acorrentados
A organização das palavras no ato da leitura, privilegiando a oração, no primeiro caso,
privilegiando o sintagma, no segundo, cria diferentes ritmos e diferentes relações sintáticosemânticas. Na primeira possibilidade, um objeto representado metonimicamente pela
substância de que é feito, o plástico, parece estar isolado na paisagem; já na segunda, esse
objeto é levado ao para-brisa pela tempestade.
O confronto entre a constância e a dissolução do ritmo ao longo do livro pode ser
observada como a materialização mesma do campo de batalha que o medo – e a fúria que ele
engendra – estabelece dentro da linguagem, sobretudo a situação em que o medo se encontra
dentro da sociedade pós-moderna: aqui, o conforto e o bem-estar residem no anseio por
liberdade – liberdade essa que só pode ser alcançada dentro de um estado rigoroso de ordem e
fronteiras bem-definidas, facilmente abaláveis pelos movimentos tectônicos do exterior.
Wellington oferece em seu texto a “liberdade” de versos fluidos despidos que qualquer traço
de pontuação, o que gera no leitor a necessidade de “ordenar”, à sua maneira, o ritmo mutante
dos versos para que sua recepção seja alcançada. Essa suspensão do poema entre o constante e
o dissoluto, entre ordem e caos, delineia estruturalmente a dinâmica temática da obra em si:
um equilíbrio paranóico (como se isso fosse possível) entre a repulsa ao medo e o abraço ao
mesmo medo.
Essa dinâmica que o medo oferece à vida banal é refletida na própria estruturação da
obra em si. Dividida em três partes, “o medo a fúria a alcova”, “o medo a fúria o gabinete” e
“o medo a fúria a rua”, o poeta executa um movimento oposto a uma fuga esperada: ao invés
de buscar refúgio da ameaça externa à ordem ensimesmando-se, consolando-se na intimidade
que um quarto sobre o qual apenas ele pode exercer influência, em O peso do medo ele inicia
a sua jornada de dentro para fora, da alcova para a rua, como se seus medos mais íntimos se
sublimassem para o abstrato medo cotidiano e compartilhável.
A primeira parte, “a alcova”, remete imediatamente à parte mais íntima do lar, o
espaço mais interno e, consequentemente, de acesso exclusivo à família. Aqui vê-se o uso
constante da primeira pessoa do possessivo – o poeta assume e compreende, a cada poema, o
“meu” medo, a “minha” fúria, seus próprios pequenos terrores e indignações, e que tratam de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
419
tudo o que é inalienavemente seu: seu corpo, sua casa, seu filho, sua criação. O exemplo
máximo aqui é, não surpreendentemente, o poema que leva seu nome, “Wellington de Melo”:
não não não não serás grande poeta porque letra não se faz com afago não se faz
com pena do amigo ou de seus alfarrábios não se faz culpando fúria de crítico
frustrado engolindo medo de ser culpado serás funcionário cinza de iniciativa
privada terás alguns belos fins de semana na praia e um ponto zero meio usado uma
vidinha classe média e uns poucos amigos sinceros (...) teu filho encaixotará teus
livros não vendidos num sábado funerário e te esquecerão não serás grande poeta
não não não (2010, p. 16)
Na segunda parte, “o gabinete”, o poeta se torna um observador, medindo e
confrontando seu medo com o de novos interlocutores que surgem nos poemas em
dedicatórias, epígrafes e menções, como o já mencionado contraponto entre os medos de
Wellingon de Melo e Carlos Drummond de Andrade em “um espelho”. As duas partes
possuem dois poemas análogos que esclarecem essa posição entre um “eu” e um “outro”:
“dois tygres” e “um cordeiro”, em clara referência a William Blake e suas Canções de
Inocência e Canções de Experiência. Em “dois tygres”, na Alcova, a Experiência do poeta,
que se desenvolve em sua relação com o “outro”, é personificada pelos tigres da Fúria e do
Medo: para não esquecer quem sou eu pesei minha experiência e plantei dois tygres em
minha retina (2010, p. 31). Já no Gabinete entra em cena “um cordeiro”. Nesse espaço de
confronto a inocência, que representa o “eu” do poeta, é destroçado pelos mesmos dois tygres
plantados pela experiência, ou o desejo de sobreviver ao tal “outro” que permeia essa segunda
parte do livro: para não esquecer quem sou eu pesei minha inocência eu procurei em meu baú
em vão meu cordeiro dos tygres devoram o cordeiro (2010, p. 44). Na cruel representação
especular dos dois terços do livro, o medo do inocente alimenta a fúria do experiente – que
não deixam de ser o mesmo cordeiro: o outro, o mesmo.
Quando o medo desce para a rua, na parte final, o confronto é deflagrado: na cidade,
“eu” e “tu” se tornam “nós” e “eles” e já não há distinção, uma vez que todos mergulham na
mesma turba, o mesmo organismo multicelular regido por ambos medo e fúria, prismados em
caos, em pânico. A paranóia estampada do “contacorpos” que atira ao cidadão, de hora em
hora, o pavor real e imediato de uma violência burra e cega e impessoal que destrói,
deliberadamente, o cordeiro e os dois tygres. Por fim, no poema “Art r Rog rio”, análogo ao
“Wellington de Melo” do começo do livro, a fúria parece arrefecer, e o texto tona pela
primeira vez no livro um formato reconhecível de versos e estrofes, como se agora o poeta
estivesse plenamente consciente do medo e em uma espécie de paz contemplativa, como se
resignado (embora suas últimas palavras, como já mencionadas, repitam as primeiras palavras
Nas fronteiras da linguagem ǀ
420
do primeiro poema, permitindo assim que a serpente morda sua própria cauda e o ciclo se
restabeleça, como o movimento cíclico do tempo platônico repetindo os mesmos astros do
céu). Ao alcançar a rua, Wellington se resigna, ou o medo cumpre sua função de alimentar a
fúria e restaurar o equilíbrio exigido pelo constante estado de alerta, de liberdade vigiada, de
segurança asséptica contra o estranho exterior, que tensiona o cidadão pós-moderno e que,
consequentemente, define quem ele é?
O medo é uma força complexa a exercer pressão sobre o cidadão, e mantém uma
origem exógena, irradiada daquele espaço alheio que se mostra como uma nódoa na tessitura
de normalidade, constância e padronização higiênica do mundo esperado. O medo gera a
fúria, a fúria gera o ódio: tal energia irradiará, assim, do objeto receptor do medo em direção –
a quem? A fúria, aqui, acaba por não achar um objeto de atração concreto, mas sim o próprio
medo, o que colabora e muito para o estabelecimento da fúria banal, mesquinha, beirando o
rotineiro e o entediante, longe da grandiosa boba atômica de Drummond: o medo e a fúria do
homem pós-moderno, do homem-consumidor, como Bauman o define, surgem bem definidos
em “minha fúria” (2010, p. 27):
(...) essa fúria bronca pesada essa fúria jornal nacional essa fúria top 10 fúria
sulanca-caruaru fúria brechó-cabeça fúria cocaína-daslu fúria terceiro de magistério
fúria ementa teoria três fúria trote de medicina fúria afogados da USP fúria
mendigos carbonizados no altar do senhor fúria emiliano zapata fúria beira mar fúria
papa doc fúria no penteado dos alternativos classe média fúria nas narinas brancas
dos porraloucas classe a é minha fúria crack na veia fúria legalize já é minha fúria
maconha-de-grife é minha fúria-glamour fúria chimbinha fúria maria gadú todos
contra todos (...)
Fúria, na realidade, contra medos que são apenas simulacros do que é realmente
temível: assim Wellington assume para si a posição do cidadão pós-moderno, temeroso (e
consequentemente furioso) contra tudo aquilo que perturbe a normalidade e o status quo, tudo
aquilo que possa causar um ruído à sua liberdade pessoal. Aqui se estampa a reação (de medo
e fúria) classe-média contra medos e fúrias alheias que não lhe dizem repseito – mas parecem
se forçar, pressurosamente: o incômodo da classe A, seja ela pequeno-burguesa ou hipster, ou
mesmo o medo que permeia o mundo real e que invade a normalidade por meio da televisão.
O terror representado por François “Papa Doc” Duvalier, sanguinário ditador do Haiti nas
décadas de 60 e 70, transmuta-se no fantasma de um terror pasteurizado que os telejornais
contrabandeiam
para
o
lar
estacionamento, significando nada.
casado-com-três-filhos-e-um-seminovo-na-vaga-do-
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Dessa forma, o peso do medo: 30 poemas em fúria compõe, sob a forma de um
mosaico, o retrato de uma sociedade que, deliberada e espontaneamente, nutre-se do medo
não com o objetivo de uma evolução e sobrevivência instintivos, ou como o estigma de
fraqueza e covardia condizente com períodos mais nobres e heróicos da humanidade – mas
sim, como um distintivo de orgulho culpado, como o combustível para manter permanência e
estabilidade em tempos pós-modernos, de identidades solidificadas e que, ao mesmo tempo,
têm ojeriza a tal solidificação – essa negação à solidez identitária não estaria ilustrada, nos
poemas de Wellington de Melo, na supressão de vogais nos diversos nomes próprios que
surgem ao longo da obra (com a sonora exceção de seu próprio nome?). Parafraseando a
leitura que Slavoj Zizek faz sobre o paradoxo lacaniano “se Deus está morto, nada é
permitido”, pode-se admitir que, na pós-modernidade, enquanto houver o Medo, toda a Fúria
é permitida.
Referências
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423
ENSINO DE ANÁLISE LINGUÍSTICA: REFLEXÕES DE BASE
SOCIOINTERACIONISTA
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Bruna Bandeira (UFPE)
Introdução
Na área da Linguística, a despeito de avanços teóricos acerca de uma nova concepção
de linguagem — a sociointeracionista, que toma a linguagem como prática social e discursiva
realizada entre sujeitos em contextos sócio-históricos específicos —, é lugar-comum a crítica
de que o ensino de análise linguística (AL)1 no Brasil permanece ligado a uma tradição que
concebe a linguagem como expressão de pensamento e a língua como sistema.
Não refutando nem corroborando tal crítica e considerando que se vive hoje um
momento de transição no ensino de língua portuguesa (LP), este artigo pretende verificar em
que medida as gramáticas escolares têm avançado no sentido de considerar a linguagem — e
consequentemente o uso da língua — como um processo de interação e construção
permanente de sentidos. Para isso, buscou-se analisar a Gramática Reflexiva, volume único,
de William Roberto Cereja e Thereza Cochar — uma das gramáticas escolares para o Ensino
Médio (EM) mais vendidas no País —, em sua primeira (1999) e quarta e última edição
(2013).
O foco de análise deste artigo são as seções Semântica e interação (da primeira
edição) e sua correspondente Semântica e discurso (da última edição), que aparecem ao final
dos capítulos O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, Termos ligados ao verbo:
objeto direto, objeto indireto, adjunto adverbial, Termos ligados ao nome: adjunto adnominal
e complemento nominal e Termos ligados ao nome: aposto e vocativo. A escolha pela
morfossintaxe e, dentro dela, pelo estudo dos termos da oração2 deve-se ao fato de que este é
1
O termo análise linguística foi cunhado por João Wanderley Geraldi, aparecendo pela primeira vez em 1981 no
texto Subsídios metodológicos para o ensino de língua portuguesa. Trata-se de uma inovação não apenas
terminológica, mas também metodológica.
2
Reconhecemos que termos da oração é uma expressão típica da gramática normativa, de cunho estruturalista,
mas seguiremos usando-a por falta de outra equivalente.
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um assunto em que normalmente os alunos demonstram certa dificuldade e que pode
facilmente ser problematizado à luz de uma perspectiva sociointeracionista.
Como este artigo parte do pressuposto de que a obra objeto de sua análise trata a
morfossintaxe diferentemente de gramáticas mais tradicionais, cabe aqui explicar que
abordagem estas vêm dando e como ela pode ser problematizada. A chamada gramática
normativa3 costuma propor uma hierarquia dos termos da oração. Assim, toma como “termos
essenciais”, por exemplo, o sujeito e o predicado. Como se explica, então, que possa haver
uma “oração sem sujeito” se este é um “termo essencial”? Seguindo essa hierarquização,
seriam “termos integrantes” os complementos verbais (objeto direto e objeto indireto) e
nominais e o agente da passiva e “termos acessórios” os adjuntos verbais e nominais, o aposto
e o vocativo. Mas por que chamar de “acessório” um termo como o adjunto adverbial ou o
aposto, que muitas vezes carreiam as informações mais importantes do ponto de vista da
intencionalidade do enunciador?
Percebe-se, portanto, o quanto essa hierarquia apenas faz sentido do ponto de vista
estrutural da gramática normativa. No discurso, essa “lógica” se perde. Ao analisar o ensino
de LP sob a perspectiva sociointeracionista, este artigo considera essenciais as contribuições
dos estudos que veem a língua como algo dinâmico, refletindo a relação instável entre a
estrutura e os sentido(s) que ela é capaz de construir.
A difícil superação do tradicional no ensino de análise linguística
Atualmente pode-se dizer que a grande maioria dos docentes de LP em atividade no
Brasil já teve algum tipo de contato com a ciência linguística, já que esta possui mais de cinco
décadas de existência. Mas então, se os professores já conhecem as novas teorias linguísticas
que colocam a interação e o processo de enunciação como centrais, por que permanece tão
difícil superar o tradicional ensino focado na gramática normativa ou descritiva?
Primeiramente, é importante ressaltar que se está falando de práticas seculares já
cristalizadas. Sabe-se o quanto a gramática normativa exerceu um papel de importante
embasamento nessa disciplina, acarretando um ensino focado na estrutura e, mais ainda, em
uma estrutura dada como definitiva e indigna de reflexão.
3
Esclarecimentos acerca dos tipos de gramática considerados relevantes para este artigo serão dados mais
adiante. Por enquanto, cabe esclarecer que os critérios de tipificação das gramáticas são diversos e que, ainda
dentro do mesmo critério, alguns autores divergem quando consideram, por exemplo, normativa tanto a
gramática prescritiva quanto a descritiva.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
425
Em segundo lugar, cumpre destacar que o sistema de ensino está fortemente enraizado
nessa tradição e, muito provavelmente, sozinho, o recém-formado professor se sente
intimidado para afrontar práticas já enraizadas. Entre os estudiosos da Linguística, há os mais
radicais, que defendem o abandono total do ensino da gramática e sua substituição por
“estudos da linguagem”, e os que questionam o rigor dos preceitos da gramática normativa e a
forma como ela vem sendo estudada, mas não a rejeitam por completo e geralmente abordam
uma perspectiva semântica, textual ou discursiva da língua. Assim, até agora o que se vê na
maioria das escolas não é exatamente uma mudança da prática pedagógica em ensino de LP, e
sim alterações pontuais na abordagem de alguns conteúdos gramaticais já estudados por esses
linguistas.
Uma rápida análise tanto de documentos orientadores — a exemplo das Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (OCEM, 2006) e do Guia de Livros Didáticos do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD, 2012) — quanto de livros didáticos de LP recentemente
publicados é capaz de demonstrar a tendência de um ensino de gramática contextualizado e
centrado no texto. Mas de que forma isso tem sido feito em muitas escolas? Cereja oferece
uma resposta bastante convincente a esse questionamento: “O que se notava, e ainda se nota
hoje, é o uso do texto como mero pretexto para o tradicional ensino da gramática da frase. [...]
O texto, como unidade de sentido ou como discurso, é completamente esquecido” (CEREJA,
2002, p. 156).
Mesmo entre os livros que fogem a essa prática, são poucos os que aproveitam a
oportunidade de relacionar a AL com as possibilidades de leitura, analisando como a língua é
utilizada em todas as suas dimensões para construir sentido(s) no texto. Ao seguir a
perspectiva sociointeracionista, o ensino de LP dá um “passo a mais” procurando
instrumentalizar o estudante para interagir eficientemente nas suas práticas discursivas:
Se os estudos de linguagem a partir de textos representam um avanço significativo
em relação à gramática normativa, a abordagem enunciativa representa um passo a
mais, uma vez que, além de examinar as escolhas lingüísticas responsáveis pela
construção de sentido, examina também os elementos externos ao texto, que [...]
interagem com os elementos internos e participam da construção de sentido global
do texto. (CEREJA, 2002, p. 159)
Algumas propostas de trabalho nesse sentido foram e vêm sendo desenvolvidas como
as de João Wanderley Geraldi e Luiz Carlos Travaglia.
Geraldi e Travaglia: duas propostas sociointeracionistas de ensino de AL
Nas fronteiras da linguagem ǀ
426
Para elaborar sua proposta de trabalho para o eixo de AL, o professor e pesquisador
João Wanderley Geraldi reflete sobre três tipos de atividades, que resumidamente poderiam
ser assim definidas: a atividade linguística remete à atividade da linguagem propriamente
dita, ou seja, aos usos que fazemos da língua nas circunstâncias cotidianas de comunicação; a
atividade epilinguística refere-se à capacidade que todo falante tem de, com a linguagem,
operar sobre ela, de maneira consciente ou não, fazendo retomadas, avaliando os recursos
expressivos de que se utiliza, realizando escolhas, corrigindo estruturas, etc.; e as atividades
metalinguísticas são as atividades que refletem, de modo consciente e sistemático, sobre a
linguagem, resultando em teorias e taxonomias. Entretanto, não se trata de uma distinção
classificatória de fenômenos linguísticos, afinal essas três atividades são realizadas
concomitantemente e devem ser consideradas no ensino de LP.
Para Geraldi (1997), a linguagem é entendida como uma sistematização aberta de
“recursos expressivos” cuja concretude significativa se dá na singularidade dos
acontecimentos interativos. Por isso, refletir sobre os próprios recursos utilizados é uma
constante em cada processo, ainda que isso se dê de maneira inconsciente. Feitas essas
ressalvas, o pesquisador embasa sua proposta no texto do aluno, tomando-o como “ponto de
partida e de chegada”.4 Considerando que, com a linguagem, falamos não só sobre o mundo,
mas também sobre o modo como falamos do mundo e que o estudante chega à escola já
dominando uma variedade de sua língua materna, qual seja sua gramática internalizada,
centrar o ensino na produção de textos é dar a palavra ao aluno e deixá-lo apontar que
caminhos deverão ser trilhados no aprofundamento da sua compreensão tanto dos fatos de que
fala quanto das estratégias que utiliza. Tal trabalho daria conta de processos e fenômenos
enunciativos, e não apenas de ordem estrutural.
Na verdade, o que o autor propõe é que as atividades epilinguísticas realizadas
intuitivamente pelos alunos sejam a ponte para a sistematização metalinguística. Ao comparar
diferentes formas de escrever textos, os alunos compreendem a existência de diversas
configurações textuais e variedades linguísticas e, no confronto destas, aprendem novas
configurações e processam a construção de nova variedade padrão. Depois dessas reflexões,
voltar aos textos dos alunos e fazê-los reescrevê-los não significa partir dos erros para mostrar
os acertos, mas antes partir do erro para a autocorreção e ampliação do saber. Nesse sentido,
a gramática seria usada como suporte, conforme explica o autor:
4
Como Geraldi analisa os três eixos de ensino de LP, propõe que o trabalho integral se inicie com o texto do
aluno, passe por leituras complementares e volte ao texto inicial do aluno para um trabalho de AL.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
427
Penso as atividades epilingüísticas como condição para a busca significativa de
outras reflexões sobre a linguagem. Note-se, pois, que não estou banindo das salas
de aulas as gramáticas (tradicionais ou não), mas considerando-as fontes de procura
de outras reflexões sobre as questões que nos ocupam nas atividades epilingüísticas.
(GERALDI, 1997, pp. 191-192)
Já o também professor e pesquisador Luiz Carlos Travaglia formula sua proposta
igualmente embasada na perspectiva sociointeracionista da linguagem, encarando o texto
como um conjunto de pistas que funcionam como instruções para o estabelecimento de
efeito(s) de sentido em uma determinada interação comunicativa. Dessa forma, considera que
o objetivo principal do ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa
dos alunos e, para isso, defende um “ensino produtivo”, a fim de que eles adquiram novas
habilidades linguísticas. Travaglia não descarta o ensino descritivo e prescritivo da língua,
mas acredita que ele deva ter seu lugar redimensionado na sala de aula. Para ele, mais
importante do que ditar regras ou partir do uso da língua para estabelecê-las é refletir sobre a
linguagem.
A diferenciação que o autor faz de quatro tipos de gramática é fundamental para
compreender sua proposta. A gramática de uso (1) seria aquela não consciente, implícita e
ligada à gramática internalizada do falante. Para o ensino, ela seria útil nas atividades que
buscam desenvolver o uso automático das unidades, das regras e dos princípios da língua,
além dos recursos das suas diferentes variedades, mas sem que estes sejam explicitados
metalinguisticamente. Serviriam para esse fim exercícios estruturais, qualquer atividade de
produção e compreensão de texto, exercícios de vocabulário e atividades com variedades
linguísticas.
A gramática reflexiva (2) seria aquela que surge da reflexão com base tanto no
conhecimento intuitivo dos mecanismos da língua que o aluno já domina quanto no trabalho
com os conhecimentos linguísticos que ele ainda não domina. Para esse fim, haveria dois
tipos de exercícios: os que levam o aluno a explicitar fatos da estrutura e do funcionamento da
língua (em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, construir atividades que o
levem a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer) e os que focam nos
efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de produzir na interlocução. O autor
faz uma ressalva quanto ao primeiro tipo de exercícios: “Não há evidência de que o
conhecimento sobre esses aspectos mais estruturais da língua (dados por meio de várias
metodologias)
tenha
levado
ao
desenvolvimento
da
competência
comunicativa”
(TRAVAGLIA, 2009, pp. 143-144). Esses exercícios serviriam como recurso auxiliar para
levar o aluno a conhecer a instituição social que é a língua, ensinando-o a pensar. O mais
Nas fronteiras da linguagem ǀ
428
importante, tendo em vista o objetivo de desenvolver a competência comunicativa dos alunos,
seria, portanto, o segundo tipo de atividades.
Já a gramática teórica (3) seria a gramática explícita, uma sistematização teórica sobre
a língua e os conhecimentos que se tem dela por meio de uma metalinguagem apropriada e
ditada por teorias e modelos das ciências linguísticas. Esta não deve ser confundida com a
gramática normativa, que tem mais um caráter de legislação do que de descrição. O
pesquisador não descarta o uso dessa gramática nas aulas de LP, mas defende que ela não seja
um fim em si mesma. O objetivo dessa sistematização seria munir o aluno das ferramentas
que lhe facilitem pensar cientificamente, desenvolvendo as habilidades de observação,
raciocínio, levantamento de hipóteses e argumentação. Para trabalhar com essa gramática, o
professor, além de ter bom-senso para selecionar as informações teóricas pertinentes, deve ter
espírito crítico, e não querer passar teorias prontas e acabadas, muitas vezes problemáticas,
aos aprendizes.
Finalmente a gramática normativa (4), como gramática do bom uso da variedade culta
e padrão da língua, também deve ser considerada no ensino/aprendizagem, mas, assim como a
teórica, não como um fim em si mesma e, ademais, com os seguintes cuidados: deixando
claro (i) que esta é apenas uma das variedades; (ii) que considerar esta como a única
variedade correta cria preconceitos de toda espécie e ignora os usos orais da língua; (iii) que é
importante conhecê-la para usá-la quando se tem que atender a normas sociais de uso em
situações formais; (iv) que os recursos ensinados são uma qualidade ou um problema não em
si mesmos, mas conforme o uso que o interlocutor faz deles na situação interativa específica.
Enfim, de forma resumida, o que o autor propõe é que:
o ensino da gramática seja basicamente voltado para uma gramática de uso e para
uma gramática reflexiva, com o auxílio de um pouco de gramática teórica e
normativa, mas tendo sempre em mente a questão da interação numa situação
específica de comunicação e ainda [que] o que faz da sequência linguística um texto
é exatamente a possibilidade de estabelecer um efeito de sentido para o texto como
um todo. (TRAVAGLIA, 2009, p. 108)
No entanto, como ele mesmo ressalta, os quatro tipos de gramática podem ou não ser
utilizados em um mesmo conteúdo para uma mesma turma em qualquer nível de ensino. O
que deve determinar isso é o conteúdo trabalhado, as condições dos alunos, o objetivo do
ensino, o tempo disponível e outros fatores que o professor julgar conveniente.
Análise da Gramática Reflexiva: construindo sentido(s) no e para o ensino
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
429
Diferentemente de gramáticas escolares tradicionais, a Gramática Reflexiva, desde sua
primeira edição, não fala em hierarquia entre os termos oracionais, tampouco usa as
denominações termos integrantes para os complementos verbais (objeto direto e objeto
indireto) e nominais e o agente da passiva e termos acessórios para os adjuntos verbais e
nominais, o aposto e o vocativo5. Em vez disso, destaca o sujeito e predicado colocando-os
logo no primeiro capítulo e chama a atenção para o elemento a que os demais termos se
ligam: se a um nome ou a um verbo.
Em toda abertura de capítulo, a Gramática Reflexiva (e o próprio título sugere isso)
parte de atividades que levam o aluno a tirar conclusões que irão ajudá-lo a construir os
conceitos. Trata-se do primeiro tipo de exercício da gramática reflexiva de Travaglia, que,
como dito acima, em vez de dar a teoria gramatical pronta para o aluno, constrói atividades
que o levam a redescobrir o que as ciências linguísticas já deram a conhecer. O foco desta
análise, no entanto, relaciona-se ao segundo tipo de exercício da gramática reflexiva de
Travaglia: os que se centram nos efeitos de sentido que os elementos da língua são capazes de
produzir na interlocução. Mais especificamente, serão analisados alguns exercícios desse tipo
presentes nas seções Semântica e interação (na primeira edição) e sua correspondente
Semântica e discurso (na última edição).
No capítulo O modelo morfossintático – o sujeito e o predicado, a seção Semântica e
interação da primeira edição da gramática traz uma tirinha de Dik Browne que mostra a
interação entre Eddie Sortudo e Hagar, em que o primeiro personagem fala “Veja! Posso
chutar minha cabeça! Aposto que você não pode!” e gesticula colocando os próprios pés na
cabeça, ao que o segundo personagem responde “Ah, é?!” e chuta a cabeça de seu
interlocutor. O primeiro quesito, ao elucidar o contexto de interação entre os personagens e a
intenção comunicativa de Eddie Sortudo, induz o aluno a perceber que o predicado implícito
da segunda oração (“chutar sua própria cabeça”) gerou uma ambiguidade, na qual o humor da
tira se constitui. Assim, o aluno consegue facilmente identificar o efeito de sentido do texto e
relacioná-lo ao objeto de estudo (predicado).
Já a seção Semântica e discurso da última edição traz uma notícia retirada da revista
Veja intitulada “Sopa de plástico” do Pacífico aumentou 100 vezes em 40 anos. As questões
sobre esse texto levam o aluno a perceber que nem sempre o sujeito é o agente da ação verbal
5
Embora a denominação termos essenciais para o sujeito e o predicado não seja usada na divisão dos capítulos,
ela aparece apenas na primeira edição e de maneira quase aleatória tanto na explicação que os autores dão a esses
termos quanto nos enunciados de alguns exercícios.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
430
e dos fatos e que a escolha pela omissão ou explicitação dos responsáveis por essa ação é
também uma forma de “manipular” o efeito de sentido do texto. A letra “b” do terceiro
quesito pergunta: “Na notícia lida, qual é o efeito da escolha pela omissão ou explicitação dos
responsáveis pela ação verbal?”. Para respondê-la, o aluno precisa voltar às questões
anteriores e perceber que, quando a ação é negativa (poluir o Pacífico), a escolha da revista é
omitir o ser humano como agente e colocar como sujeito as expressões “sopa de plástico”,
“acúmulo de plástico” e “enorme redemoinho de lixo plástico”, fazendo parecer que a
responsabilidade pelo aumento do lixo não é de ninguém; já quando a ação verbal é positiva
(mostrar, revelar, alertar para descobertas científicas), o texto opta por colocar cientistas e
pesquisas como sujeitos, valorizando esses estudiosos e conferindo maior credibilidade à
notícia.
No capítulo Termos ligados ao verbo: objeto direto, objeto indireto, adjunto
adverbial, Cereja e Cochar optam por colocar o adjunto adverbial como termo ligado ao verbo
embora façam a ressalva de que “Os adjuntos adverbiais de intensidade, além de acompanhar
o verbo, podem acompanhar substantivos, adjetivos e advérbios” (CEREJA E COCHAR,
1999, p. 225).
A seção Semântica e interação da primeira edição da gramática traz a história em
quadrinhos As férias de Peteca, de Glauco, que é formada por uma sequência em que os
quatro primeiros quadrinhos mostram a personagem principal, Peteca, em alguma capital do
Brasil, acompanhada de um garoto. As legendas dizem: “Em Salvador, fiquei com o
Rodolfinho! / Em Porto Alegre, com o Fredinho! / Em Floripa, eu fiquei com o Paulinho! /
No Rio, fiquei com o Rubinho!”. O último quadro surpreende com a imagem de um garoto
em cima de um edifício sozinho e uivando “Aúúúúú”. A legenda diz: “E o Bodi Pit, meu
namorado, ficou em Sampa, tadinho!”. Os exercícios referentes a esse texto focam nos
adjuntos adverbiais que indicam os lugares por onde Peteca passou; nos diferentes sentidos
que o verbo ficar assume dependendo de sua predicação; no uso do diminutivo nos nomes
próprios em função de objeto indireto nos quatro primeiros quadrinhos e no não uso deste no
último quadrinho; e na intenção de Peteca ao empregar aí a variedade linguística “tadinho”.
Além de usar a linguagem do jovem, esse exercício reflete sobre como as variedades
linguísticas reconstroem sentidos usuais (no caso, do verbo ficar) e sobre como o uso do grau
dos substantivos e adjetivos está relacionado não apenas ao tamanho ou à intensidade do
referente, mas também à marcação de intenções do locutor (no caso, mostrar simpatia, afeição
ou intimidade nos nomes próprios dos garotos com quem Peteca ficou ou dó, pena e ironia no
uso de “tadinho”).
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
431
Já na seção Semântica e discurso da última edição da gramática traz o poema Morte de
Clarice Lispector, de Ferreira Gullar. O primeiro exercício e as letras iniciais do segundo,
mais estruturais, questionam sobre referente, função sintática, transitividade de verbos e
reconhecimento do sujeito. O questionamento sobre o porquê de o sujeito do verbo enterrar
não está explícito no verso “Enquanto te enterravam no cemitério judeu”, embora não use a
expressão intenção e os tipos de sujeito ainda não tenham sido apresentados, exige que o
aluno perceba que não há o interesse do enunciador em saber nem dizer quem enterrava a
escritora Clarice Lispector, por isso opta pelo sujeito indeterminado. Somente na letra “c” do
segundo quesito aparece mais claramente uma pergunta sobre a relação da estrutura com o
sentido do poema: “Que relação semântica é estabelecida no poema entre o sujeito da forma
verbal mostravam, o eu lírico e o restante do mundo?”. Referindo-se ao trecho do poema “as
pedras, as nuvens e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de
nós”, essa pergunta faz o aluno recuperar o sujeito “as pedras, as nuvens e as árvores”, pensar
na situação em que o eu lírico parece ter produzido o enunciado — por ocasião da sua ida ao
enterro de Clarice Lispector — e estabelecer uma relação de tudo isso com o mundo em que
vive. Assim, espera-se que ele chegue à conclusão de que se estabelece aí uma relação de
independência, pois a morte de uma pessoa e a tristeza de outra não impedem a alegria do
mundo. Ao relacionar os tópicos trabalhados a elementos contextuais do mundo que cerca o
aluno, a Gramática Reflexiva permite que se estabeleçam, em sala de aula, discussões ricas
sobre possíveis interpretações e opiniões dos alunos.
Com relação ao capítulo Termos ligados ao nome: adjunto adnominal e complemento
nominal, a seção Semântica e interação da primeira edição traz um anúncio da Honda
publicado na revista Caras e que é formado por duas partes: a primeira mostra o seguinte
texto na frente da imagem do Parthenon, na Grécia: “Há 250 anos na Grécia antiga nasceu
Hermes. Deus do vento, da velocidade e da liberdade. O único deus do Olimpo que não tinha
templo. Porque, como tinha asas nos pés, Hermes nunca parava em casa. Na Grécia nasceu o
desejo de liberdade. Nós só acrescentamos as cilindradas”. A segunda parte, com uma
imagem de um pé alado em grandes proporções, diz: “A mitologia grega explica o seu desejo
de vento, liberdade e velocidade”. O primeiro quesito explora a diferenciação semântica das
funções sintáticas em estudo no contexto específico desse anúncio. Assim, o aluno teria que
reconhecer que, em “Deus do vento, da velocidade e da liberdade”, as expressões destacadas
são adj. adn. porque cumprem a função de especificar, dar atributos a “Deus” e que, em
“desejo de vento, liberdade e velocidade”, as expressões em itálico são CN porque são alvo
do desejo. Tal exercício é importante porque faz o aluno perceber, em situações concretas de
Nas fronteiras da linguagem ǀ
432
uso, as diferentes funções dos termos estudados relacionando-as aos sentidos que constroem.
Os demais exercícios levam os estudantes a ativar seus conhecimentos prévios ao terem que:
reconhecer que o homem sempre teve, segundo o anúncio, desejo de voar; identificar o
público-alvo do anúncio, os consumidores de motocicleta, que, em geral, apreciam a
velocidade, a liberdade e o vento; elencar os prováveis valores explorados como estratégia
para persuadir o interlocutor: liberdade, independência, autonomia, autossuficiência.
Na seção Semântica e interação da última edição da gramática, aparece um anúncio da
Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) publicado na revista Gol, que,
mostrando a imagem de uma esteira de raio-x no aeroporto com uma bandeja cheia de
medalhas e outros objetos pessoais, como chaves, caneta, moeda e celular, traz o texto
“Patrocinar o judô brasileiro é ter a certeza de duas coisas: que nossos atletas vão lutar nas
maiores competições do mundo. E que não vão voltar de mãos vazias”. O primeiro exercício
pede que o aluno identifique o anunciante e o público-alvo. O segundo explora a
diferenciação semântica das funções sintáticas em estudo no contexto desse anúncio. O
terceiro, destacando as certezas que o locutor tem, solicita que o aluno identifique os adj. adv.
que correspondem às circunstâncias em que ocorrerão as ações indicadas nas construções
verbais vão lutar e não vão voltar. O exercício segue perguntando sobre os adj. adn. que
especificam ou conferem atributo aos núcleos dos adj. adv. (“as, maiores, do mundo”/“as,
vazias”) e que sentido atribuem ao desempenho dos judocas brasileiros (o de que eles se
classificam entre os maiores do mundo). Esse exercício, além de revisar um termo já estudado
(adj. adv.), mostra que o adj. adn. pode estar presente em qualquer termo cujo núcleo seja um
nome e que sua função será a de especificar ou conferir atributos a esse nome. Finalmente o
último exercício pede que o aluno examine o conteúdo da bandeja na imagem e pergunta que
relação há entre a parte verbal e não verbal do anúncio, mostrando que ambas as linguagens se
complementam para construir o sentido global do texto.
No capítulo Termos ligados ao nome: aposto e vocativo, a seção Semântica e
interação da primeira edição traz uma charge de Adail et. alli que mostra duas mulheres
sentadas conversando, sendo que uma delas, descalça, carrega um bebê no colo e diz à sua
interlocutora: “Ah, minha filha, aqui nessa casa nunca faltou nada: meningite, escorbuto,
mononucleose, rubéola, coccideose, cólera, esquistossomose, sífilis, chagas, virose, amebas,
disenteria, brucelose...”. Os exercícios exploram o reconhecimento da classe gramatical e do
valor semântico da palavra “Ah”, a identificação do aposto e do vocativo, o campo semântico
dos substantivos que compõem o aposto, o significado do pronome indefinido nada no
enunciado e a explicação do humor da charge, nessa ordem. Portanto, somente depois de
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
433
responder a todas as perguntas, o aluno fica munido de informações e reflexões suficientes
para concluir que o humor reside na quebra de expectativa do leitor. Interessante é destacar
que o pronome indefinido nada, nesse contexto, significa seu oposto quando, depois dele,
vêm enumeradas “várias” doenças, corroborando a visão de que somente o ensino estrutural
(focado em nomenclaturas e classificações) não dá conta das inúmeras possibilidades de uso e
significado dos termos.
A seção Semântica e interação da última edição apresenta o poema Os confidentes (I),
de José Paulo Paes. Os dois primeiros exercícios focam na identificação do interlocutor do eu
lírico e sua função sintática (vocativo), no reconhecimento do emprego de expressões em
referência a Vila Rica, no papel semântico e na função dessas expressões (aposto), nessa
ordem. Ou seja, somente após fazer o aluno perceber o papel que desempenham (sua função)
e o valor semântico dos termos vocativo e aposto, os exercícios pedem sua nomenclatura. O
último exercício faz o aluno notar que algumas estrofes do poema cantam a vileza dos
habitantes de Vila Rica, enquanto outras descrevem a riqueza dessa cidade; o faz associar o
tema tratado ao fato histórico Inconfidência Mineira; e finalmente pede que ele troque ideias
com os colegas para concluir qual a função sintática do último verso “Vila Rica vil e rica”,
que resume todo o poema. Para este último questionamento, há duas possibilidades de
resposta dependendo da interpretação do poema: “Vila Rica vil e rica” pode ser um vocativo
servindo como interlocutor do eu lírico; ou, considerando-se o verbo ser subentendido —
“Vila Rica, (és) vil e rica” —, Vila Rica seria o sujeito e vil e rica, o predicativo do sujeito.
Considerações finais
Tendo-se em conta o lícito reconhecimento de que o ensino de LP precisa de
mudanças; de que se deve refletir cientificamente sobre a linguagem para “construir, e não
reproduzir conhecimentos”, como diz Geraldi; de que o que se deve buscar é o
“desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos”, para usar as palavras de
Travaglia, podemos perceber que alguns caminhos já começaram a ser apontados.
Se o texto é único como enunciado, mas múltiplo enquanto possibilidade aberta de
atribuição de sentidos; se a escola deve garantir o exercício de uso amplo da linguagem no seu
espaço; e se há um interesse em renovar o ensino de LP, modificando, diversificando e
ampliando o ponto de vista sobre seu objeto de estudo, exercícios como os analisados neste
artigo — que priorizam a função dos termos estudados para somente depois chegarem às suas
nomenclaturas; que mostram a forma (o estilo do autor) reforçando o conteúdo; que convidam
Nas fronteiras da linguagem ǀ
434
o aluno a ser copartícipe do processo de construção de sentido(s) para o texto; que associam
os recursos linguísticos à sua capacidade de potencializar significados em uma situação
específica de interação; que refletem sobre como as variedades linguísticas reconstroem
sentidos usuais; que exigem que os alunos recuperem (ou criem) a situação em que
provavelmente os textos analisados foram enunciados; que mostram como a colocação dos
termos na frase não é aleatória, mas depende da intenção do locutor; que exploram a relação
“função sintática x sentido”; que relacionam os aspectos textuais aos contextuais; que
remetem ao conhecimento de mundo do estudante; que pedem justificativas semânticas para
um fato sintático; que dão margem a interessantes debates em sala de aula — parecem ser um
bom começo.
Referências
CEREJA, William Roberto. Ensino de Língua Portuguesa: entre a tradição e a enunciação. In:
HENRIQUES, C. C.; PEREIRA, M. T. G. (orgs.). Língua e transdisciplinaridade: rumos,
conexões, sentidos. São Paulo: Contexto, 2002, p. 153-160.
CEREJA, William Roberto; MAGAHÃES, Thereza Cochar. Gramática reflexiva: texto,
semântica e interação. São Paulo: Atual, 1999.
_______. Gramática reflexiva: texto, semântica e interação. 4. ed. São Paulo: Atual, 2013.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta para o ensino de gramática.
14. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
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435
AS VOZES DISCURSIVAS NO DEPOIMENTO DE PEDRO
BARUSCO NA CPI DA PETROBRAS
[Voltar para Sumário]
Brwnno Gabryel de Araújo Silva
Rosilene Felix Mamedes
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar o depoimento dePedro Barusco ( ex-gerente da
PETROBRAS), na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) , em 10 de março de 2015.
Neste depoimento podemos perceber as várias vozes discursivas presentes nos enunciados e,
como a interação verbal apresenta-se de forma dialógica neste discurso.
Para este trabalho nos deteremos em fragmentos que têm como sujeitos da enunciação
o depoente Pedro Barusco, o Presidente da mesa e o Relator da CPI. Para isso, buscaremos
compreender o processo da enunciação a partir da óptica dialógica de Bakhtin em que a
linguagem é processada a partir de vários discursos, dialogando com o contexto enunciativo
refletindo e refratandodiscursos, que
se materializam apenas e somente na enunciação
linguística.
Como marco teórico abordaremos as contribuições de Bakhtin, no que tange à noção
de sujeito discursivo, interação dialógica, responsividade entre os envolvidos na enunciação.
Como corpus para a nossa análise utilizaremos alguns fragmentos do depoimento de Pedro
Barusco, mais precisamente os fragmentos e as inconsistências na limitação do período em
que iniciou os repasses de propinas na PETROBRAS.
Para desenvolver este artigo elegemos como objetivo geral investigar como se
processa a interação argumentativa entre os sujeitos envolvidos (Pedro Barusco e os
parlamentares que fazem a sabatina na CPI da PETROBRAS. Os objetivos específicos serão:
Transcrever fragmentos do depoimento para análises discursiva; Capturar os discursos dos
sujeitos envolvidos na situação enunciativa e seus posicionamentos ideológicos partidários ou
não; Compreender como se processa a dialogicidade no processo enunciativo.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
436
Como percurso metodológico primeiramente optamos portranscrever o depoimento e,
em seguida delimitar os fragmentos para as nossas análises. Após este primeiro momento,
elegemos as categorias de análises epor último, confrontamos as nossas análises com as
categorias da análise dialógica de Bakhtin.
Tendo em vista a necessidade de constantes leituras e reflexões sobre interação verbal,
discurso e sujeitos, optamos pela teoria do dialogismo e interação verbal, alicerçando nosso
do aporte teórico, em Bakhtin e suas contribuições linguísticas.
Um olhar teórico
A linguagem e sua relação com o social teve espaço a partir da publicação de
Marxismo e filosofia da linguagem de Bakhtin/Volochinov, em 1929. Nesta obra podemos
encontrar, dentre outras questões, a teoria da linguagem sob a ótica da interação verbal em
que os discursos acontecem em situações concretas a partir de contextos situacionais e de
interações dialógicas. Ao delimitar a linguagem como objeto de estudo específico, Bakhtin
observa que os estudos linguísticos foram orientados durante décadas por duas correntes
principais, o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. Dentre os conceitos-chaves de
Bakhtin, nos deteremos neste artigo a discutir os princípios da interação e do dialogismo a
partir do depoimento de Pedro Barusco, na CPI da lava-jato. No subjetivismo idealista o
indivíduo é autônomo e possui o poder de criar, partindo do interior para o exterior, assim, a
linguagem está situada no ato da fala, de modo que nesta perspectiva a interação na
linguagem é totalmente anulada. Já no objetivismo abstrato “é o domínio da estrutura
linguística sobre o sujeito”1, neste prisma a língua é acabada, dentro de si mesma.
Nesta óptica, os estudos da linguagem e do discurso alicerçados em Bakhtin têm uma
variedade de adequações, “porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório do
discurso, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo”. (BAKHTIN, p. 262, 2006)
A palavra enquanto signo ideológico traz um caráter social impregnada de sentidos,
atribuindo aos sujeitos discursivos múltiplas possibilidades enunciativas. Sendo assim, “ as
palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as
relações sociais em todos os domínios”. (BAKHTIN, p. 42, 2006)
Desta forma, se perfaz presente tal adequação ao cenário jurídico, onde o discurso,
composto sempre por acusação e defesa, ambos na busca da aceitação de uma tese, finca-se
1
Revista Eletrônica do netlli, Vol: 2, 2013.
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
437
em outros discursos das mais distintas esferas sociais, por meio de interações
sociodiscursivas, baseando-se em interações enunciativas. .
Assim, para Bakhtin (p. 123, 2006),
A verdadeira substância da língua é constituída, pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada por meio da enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua.
Desta maneira, para o autor a língua (gem) passa a ser concebida como algo
essencialmente social, ou seja, a língua como faculdade humana só efetiva-se em momentos
reais de enunciação a partir de momentos de trocas dialógicas.
A partir da reflexão bakhtiniana sobre a linguagem, esta passou a ser vista como lugar
de interação social, sendo parte desta dialogicidade: as condições do discurso e as esferas
sociais que se inserem o enunciado. Da mesma forma, é de fundamental relevância a relação
entre o Eu e o Tu (outros), assim, para falar em discurso ou sujeito sob a óptica de Bakhtin é
necessário, antes de mais nada, levar em consideração as condições discursivas existentes.
Desse modo, os discursos estão sempre entrelaçados por outros discursos, pelo que espero do
outro, pelo que o outro agrega aos nossos discursos, sendo a dialogicidade uma cadeia de
interação que perpassa o diálogo apenas de complementação, como afirmaBakhtin “ a
palavra é prenhe de respostas...” Para ele a língua é “fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ...” (BAKHTIN, 1929, p. 127). Sendo assim, na esfera
jurídica não é diferente, o discurso é moldado por um estilo próprio já que é uma das esferas
sociais, em que se insurge o contexto social somado ao uso concreto da língua, numa busca,
em que o meio de comunicação e a enunciação são essenciais para o alcance da interação
verbal, ora estudada no presente artigo. Observemos ainda, que na seara jurídica tal interação
e compreensão são imprescindíveis para criação de um contexto responsivo entre os
participantes.
Desta forma, a verdade perseguida é extraída através da interação verbal observada
entre os sujeitos enunciativos,em que o aspecto dialógico linguístico faz-se presente nas
colheitas de declarações, seja daquele que se encontra denunciado (réu- testemunha do caso
da CPI), no caso, o Srº Pedro Barusco, que tem a obrigação de externalizar a verdade. Nestes
enunciados é observada a diferença cultural, ideológica e intelectual existente entre as
testemunhas que instruem determinados processos judiciais, interagindo com o discursoe
contribuindo com o processo a partir de suas declarações.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
438
Diferentemente de Saussure, que optou pelo estudo da língua, concebendo os signos
como arbitrários, para Bakhtin, os signos são criados em ambientes sociais e estão
relacionados com o social. Em outras palavras:
Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e
refrata uma outra. Ele pode distorcer esta realidade, ser-lhe fiel ou apreendê-la de
um ponto de vista específico (BAKHTIN, 2006, p. 32).
Para o autor, o “signo” não é mais visto como algo inerte, estático, não mais abstrato;
a língua (gem) é dialética, viva e dinâmica. Para ele, “tudo que é ideológico possui um
significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN, 2006,p.32). Outro
conceito abordado por Bakhtin é a noção de consciência que é impregnada do conteúdo
ideológico. Em outras palavras, tudo que é ideológico é um signo. Ainda, sob esses princípios,
os signos estão intrinsecamente atrelados ao mundo exterior e tudo que os cercam. Desse
modo, em Bakhtin, o sujeito, o “eu”, relaciona-se com o “outro” por meio da interação social.
Essa relação social, também chamada de relação dialógica do eu-tu, apontada por Bakhtin.
Para Bakhtin (2006, p.16), a palavra é por excelência impregnada de ideologia, sendo
a responsável pelo registro das variantes sociais. Assim, se a língua é determinada por
ideologia/consciência, o pensamento é condicionado pela linguagem e modelado pela
ideologia. Para o autor um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural e social),
sendo assim, ele reflete e refrata outra realidade, que lhe é exterior.
Desse modo, a palavra é provida de supremacia dialógica, sendo “o modo mais puro e
sensível da relação social” (BAKHTIN, 2006, p.36). Assim, na dialogicidade, à medida que a
palavra é pronunciada pelo enunciador, ela sofrerá transformações realizadas a partir do meio
social em que esse enunciado está sendo emitido, logo, o seu valor ideológico também será
modificado.
A partir desse prisma percebemos que o meio social é de suma importância, para as
discursões sobre linguagem, tendo em vista que é exatamente neste âmbito em que a fala
(linguagem) sofre interferência de aspectos externos no gênero, que neste caso, destacamos o
depoimento como estrutura textual, com linguagem dialógica em que ao mesmotempo em que
o depoente faz as suas declarações, ele dialogo com o discurso no momento exato da
interrogação, bem como com os sujeitos envolvido no discurso, e ainda há o ato dialógica da
memória do ato enunciativo em questão.
“[...]a diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes
em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade
entre os participantes da comunicação”. (BAKHTIN, p. 283, 2006)
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
439
Neste caso, podemos perceber que o tom discursivo, entendido aqui, como o ato da
fala, marcará não apenas a enunciação, como a forma de dizer, como dizer, e principalmente
demarcará a posição do sujeito discursivo. Em outras palavras, a partir dessa perspectiva
dialógica da palavra, a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos coloca o texto/enunciado
discursivo como fator social, sendo cada vez menos propícia à individualidade da linguagem,
com exceção do gênero do discurso que exige uma forma padronizada em muitas
modalidades, como, por exemplo, os documentos oficiais de ordem militar. O autor ainda
acrescenta que os sinais individuais não fazem parte do plano discursivo “os enunciados e
seus tipos são, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da
sociedade e a história da linguagem”. (BAKHTIN, 2006, p. 268).
A linguagem vista nessa perspectiva mostra-se como lugar de interação entre sujeitos,
estabelecendo entre eles relações de dialogicidade que favorecem o a interação discursiva
entre o Eu-Outrem. Assim para a análise do discurso jurídico, nos respaldaremos na terceira
concepção da linguagem, a qual possui uma maior relevância dentro das propostas dos
enunciados linguísticos, já que, nela, a língua é concebida como um fenômeno interacionista,
e a linguagem é entendida como um fenômeno dialógico passível de flexibilidade. Desta
forma, a linguagem é um fenômeno interacional em que os indivíduos se comunicam a partir
de determinadas escolhas linguísticas, tendo como foco a produção de discursos que
dependerá sempre do meio em que este será pronunciado. Ou seja, os discursos sofrerão
sempre influência do falante e do meio que este se insere, além da situação sóciocomunicativa em que o discurso será produzido. Por este motivo, em todas as esferas sociais
comunicativas há um discurso próprio, que é moldado pelo meio, pelas ações externas a ele,
pelas ações individuais dos sujeitos,e pela própria condição enunciativa que exige discursos
mais ou menos formais, adequados às situações. Desse modo, no contexto sociodiscursivo
jurídico não é diferente, pois há uma estrutura fixa, com uma linguagem específica que
precisa ser seguida. Assim, na escolha do nosso corpus temos dois textos, que seguem a
estrutura fixa de dois gêneros distintos, porém seguindo a mesma esfera social, que é a
jurídica.
A respeito do domínio da estrutura enunciativa do gênero Bakhtin (1992, p.302)
afirma que:
“as formas da língua e as formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do
discurso, introduzem-se em nossa experiência e em nossa consciência
conjuntamente. (...) Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque
Nas fronteiras da linguagem ǀ
440
falamos por enunciados e não por orações isoladas e, menos ainda, é óbvio, por
palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a
organizam as formas gramaticais (sintáticas). Aprendemos a moldar nossa fala às
formas do gênero e, ao ouvir a fala do outro, sabemos de imediato, bem nas
primeiras palavras pressentir-lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão
aproximada do todo discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim,
ou seja, desde o inicio, somos sensível a todo discursivo que, em seguida, no
processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os gêneros do
discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no
processo fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a
comunicação verbal seria quase impossível.”
Segundo o autora linguagem reflete e refrata o social. Consequentemente, Bakhtin
atribui ao texto um patamar que passa a ser visto como um objeto concreto, partindo do uso
real que o falante faz da enunciação e do discurso como um todo.
Marcuschi (2008, p. 76) aponta que o texto é resultado de uma ação linguística cujas
fronteiras são em geral definidas por seus vínculos com o mundo no qual ele surge e funciona.
Para o autor, o texto é um tecido estruturado, uma entidade significativa, de comunicação e
um artefato sócio-histórico. O autor, ao retomar a teoria de Bakhtin sobre refração da
linguagem, por analogia, diz que o texto “refrata” o mundo que o “reordena e o reconstrói”.
Assim, o texto só fará sentido dentro de um contexto social, já que ele é o reflexo de uma ação
conjunta, sendo sempre passível de modificações, pois um texto nunca está acabado, o falante
sempre poderá reconstruí-lo, atribuindo-lhe um novo significado e reordenando-o de acordo
com o contexto enunciativo.
Assim, como afirma Bakhtin:
“a relação orgânica e indissolúvel dos gêneros se revela nitidamente também na
questão dos estilos de linguagem ou funcionais. No fundo, os estilos de linguagem
ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da
atividade humana e da comunicação2”(2006, p.266.)
Na citação acima, o autor afirma que os gêneros possuem características
“indissolúveis”, portanto o estilo está relacionado não apenas com o gênero, mas com as
condições estruturais e sociais por ele, estabelecidas. Assim, em nosso corpuspodemos
apontar que os discursos estão entrelaçados por várias outras vozes, que interferem
A seguir nos deteremos a fazer as análises do nosso corpus a partir da óptica da
interação verbal edo discurso
Linguagem de Bakhtin.
2
Grifo nosso.
apontados em Estética da Criação Verbal e Filosofia da
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
441
Análise de dados: o discurso político-jurídico e linguagem
Para corpus do nosso artigo, escolhemos um auto de qualificação e interrogatório em
que tem como objetivo qualificar e descrever o objeto da acusação. Como forma de analisar o
corpus, iremos transcrevê-lo fragmento do discurso, para posterior análises.
Fragmento 1:
PEDRO BARUSCO: Então vou falar um pouquinho da trajetória para chegar nesse
momento. Eu ingressei na Petrobras em 79 por concurso público. E sou engenheiro
naval de formação acadêmica, e eu fui, eu inicialmente optei, depois do curso de
formação, eu optei por trabalhar no centro de pesquisas. Onde eu fiquei por 15
anos.[...]. E no departamento de exploração e produção eu cheguei até gerente de
produção interino. Subi mais um grau na carreira. Fiquei interino durante uns seis
meses. E em 2003 eu fui convidado pra ser gerente executivo de engenharia na
diretoria de serviços.
No primeiro fragmento, podemos perceber a preocupação do depoente em se colocar
como um profissional qualificado, livre se suspeitas para indicações a cargos políticos, uma
vez que, segundo o depoente o seu cargo foi conseguido com esmero e qualificação
profissional. Ao final deste fragmento o Sr Pedro Barusco, afirma que “em 2003 eu fui
convidado pra ser gerente executivo de engenharia na diretoria de serviços.”A partir deste modo,
destacamos alguns fragmento que o depoente ao ser indagado, há a presença de distorções nas suas
afirmações, demonstrando oscilações nas suas afirmações e reiterações discursivas.
Ao longo da explanação do ex-gerente da PETROBRAS, nos deteremos neste
trabalho, a analisaras inconsistências do seu discurso em delimitar o período temporal do
início de quando começou a receber a propina. Vamos analisar o fragmento abaixo:
Fragmento 2:
PEDRO BARUSCO: Como faz parte do meu termo de colaboração, né? Eu
iniciei a receber a propina em 97/98, não é? Foi uma iniciativa pessoal minha
junto com o representante da empresa. Eu descrevo no meu depoimento esta
trajetória. E vou reiterar o que está dito no depoimento, né? Agora de uma forma
mais ampla, como vossa excelência mencionou, em contato com outras pessoas
da Petrobras, de uma forma mais institucionalizada foi a partir de 2004. 2003…
2004… eu não sei precisar exatamente a data, foi mais a partir dali.
RELATOR : Quer dizer que do ano de 97, quando você afirma que começou a
receber estes ilícitos, você era o único que recebia? Só…
...
PEDRO BARUSCO: Olha sobre esta questão existe uma investigação em
curso. Eu sou investigado. Então, eu até assim selecionei esta parte aqui do meu
depoimento. Eu acho que vou me deter ao depoimento. Eu não vou aprofundar
estas questões que estão no meu depoimento por está ocorrendo uma
investigação. Então, é… eu reitero o que eu já falei no depoimento da minha
colaboração com a justiça
Nas fronteiras da linguagem ǀ
442
No fragmento 2, observa-se que o Relator indaga o depoente sobre suas participações
na corrupção da Petrobras, buscando compreender o contexto histórico da gênese deste
fraude. Neste primeiro momento, o depoente se exime da reposta, alegando que isso já consta
do depoimento. Entretanto, mesmo demonstradoa fragilidade discursiva perante à veracidade
da sua resposta, claramente apresentada pelo modalizador “eu acho”, ao final do fragmento, o
depoente retoma a fala do Relator e confirma a afirmação que tudo começou em 97/98. Como
podemos ver em “Então, é… eu reitero o queeu já falei no depoimento da minha colaboração
com a justiça”
Ainda, sobre o fragmento destacamos o uso do “então, é...” como forma conclusiva, e
de modo que o sujeito do discurso mostra-se concordar com o que está sendo indagado,
entretanto, como valor semântico-discursivopercebemos que o sujeito encontra-se um tanto
perturbado com as indagações.
Fragmento 3:
PEDRO BARUSCO: Agora nós estamos nos remetendo a um outro assunto,
que é a questão de sondas. Isto é fato. O serviço de perfuração na Petrobras, ele
sempre foi realizado por empresas de perfuração, muitas delas estrangeiras, mas
existem algumas brasileiras, e a Petrobras sempre contratou estas sondas. [...] E
o serviço de sondagem sempre foi dominado por estas empresas. Até o ponto, eu
acho que foi mais ou menos em mil. Não, 2007/2008. Até o ponto que, com a
crescente demanda, chegou uma demanda na diretoria executiva pra contratar se
eu não me engano. Se não estou errando com a memória. Dezoito sondas ao
mesmo tempo. Foi aí que isto chamou atenção. Porque até então as sondas
eram colocadas homeopaticamente...
Eu acho que ainda era a presidente Dilma a ministra de minas e energia. E
houve ação natural, ou uma ação contrária tentando fazer estas sondas no Brasil.
E isto foi a criação da Sete Brasil.
No fragmento 3, destacamos expressões modalizadoras “eu acho” e o “até então” como
formas imprecisas, deixando margens de dúvidas no seu discursos, mas no segundo caso, percebe-se o
oSr Pedro Barsuco, mais uma vez retoma o período histórico anterior a data que ele afirma.
Desta forma,o “sujeito discursivo” coloca o seu enunciado de forma dialógica não apenas com
as suas memórias e com a responsividade ideológica da linguagem, mas de modo que o “ eu acho”,
faz com o sujeito seja eximido na veracidade do seu discurso, gerando assim,
margens de dúvidas. Aqui, temos o caráter das modalidades discursivas, em que o marcador discursivo
marca o posicionamento do sujeito.
Após longo período do depoimento, o Relator mais uma vez retomao período em que
se iniciou as propinas na PETROBRAS, afirmado que estava em suas mãos a versão que foi
III Encontro Nacional e II Internacional de Linguística e Literatura ǀ
443
exposta pela mídia, e que era preciso o depoente, Sr Paulo Barusco se posicionar sobre o
assunto de forma oficial. Vejamos os fragmentosretirados do discurso.
Fragmento 4:
RELATOR : Mas em relação, ainda voltando, às propinas recebidas em 97 ou
98 da empresa holandesa SBM, você reafirma que já naquele período estava
recebendo recursos ilegais dos contratas dos quais vossa senhoria fazia a
intermediação?
PEDRO BARUSCO: Não… olha… eu vou reiterar o meu depoimento…
RELATOR : Não, mas o que ocorre é o seguinte que o que temos é uma versão.
A versão não dar… porque não é um documento que chegou às nossas mãos
aqui oficialmente. É uma versão que está distribuída na mídia. A pergunta é se
você reafirma isto como verdade.
PEDRO BARUSCO : Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a
minha versão. É a minha verdade. É o que aconteceu.
Nos fragmentos acima o Relator retoma o período que se iniciou as propinas recebidas
pelo Ex-gerente da PETOBRAS, Pedro Barusco, e afirma a necessidade de um
posicionamento oficial. O ex-gerente, por sua vez,reitera o seu depoimento, ou seja, afirma
com o seguinte fragmento “Ué, eu reafirmo. Está escrito aqui. Eu reafirmo. É a minha versão. É a
minha verdade. É o que aconteceu.”
Neste momento, da enunciação concordamos com Bakhtin, quando aborda a situação
social da enunciação, tendo vista, que mesmo havendo uma série de inconsistências em seu
discurso, que ora afirma um momento histórico, ora remota a período anteriores a era PT, o
que podemos afirmar é que essas inconsistências podem ter sido geradas ou por pressão
psicológica, causada pela própria estrutura enunciativa, em que o sujeito se sente acuado, ou
o sujeito ao tentar esquivar-se ou apontar culpados demonstra fragilidade e inconsistência nas
suas declarações, e por isso há lacunas e falhas enunciativas.
A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam
completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura
da enunciação. Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada [...],
é certo que ela, na sua totalidade, é socialmente dirigida. (BAKHTIN, p.
113)
Fragmento 5
PEDRO BARUSCO: Não, eu já falei, eu comecei em 97/98. Uma atitude isolada,
né? Já detalhei até onde eu poderia detalhar sob já a investigação. E a partir de 2003
e 2004, houve uma fase onde estava institucionalizada este recebimento de propina,
tá? Eu só sei isto. Eu não sei mais nada. Eu não sei dizer quem participou. Quem
participou. Quem não participou.
Nas fronteiras da linguagem ǀ
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Para finalizar a nossa análise, buscamos um fragmento em que oex-gerente , Paulo
Barusco, retoma o período anterior, a era LULA (PT) , entretanto, diz que nesse período ele
era o sujeito (ativo) no processo das propinas de maneira individual, ou seja, aqui, o depoente
inocenta o partido do PSDB, representado aqui, pelo Ex-Presidente Fernando Henrique
Cardoso, e diz que de forma institucionalizada foi apenas após o PT na Presidência.
Considerações finais
Este artigo buscou discutir a importância da interação verbal, na esfera jurídica, a
partir da óptica de Bakhtin. Compreendemos que o quão é relevante a discussão sobre
linguagem, e como esta pode alternar-se e adaptarem-se nos mais diferentes contextos sociais.
Percebemos que ao analisar o nosso corpus encontramos inúmeras vozes intra ou
extra-discursiva, concordando com o que Bakhtin vai chamar de polifonia discursiva, assim,
há duas formas de dialogismo;Em nosso corpus temos a presença de várias vozes, sejam de
cunho políticos partidários, orientações políticas-ideológicas, diálogos com a responsividade
discursiva seja no âmbito temporal, ou com os discurso que é muito mais amplo, do que o
diálogo entre face a face.
Desse modo, para este trabalho analisamos a interação verbale o dialogismo
bakhtiniano em um corpus jurídico, buscando confrontar a situação comunicativa com a
dialogicidade discursiva, tanto nos aspectos endofóricos ( intra-textual) como no exofóricos (
extra-