xico sá e a construção de narrativas ao estilo gonzo

Transcrição

xico sá e a construção de narrativas ao estilo gonzo
1
ANA PAULA BEZERRA NEVES
JORNALISMO LITERÁRIO-SUBVERSIVO: XICO SÁ E A
CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS AO ESTILO GONZO
Universidade de Fortaleza
Fortaleza
2006
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ANA PAULA BEZERRA NEVES
JORNALISMO LITERÁRIO-SUBVERSIVO: XICO SÁ E A
CONSTRUÇÃO DE NARRATIVAS AO ESTILO GONZO
Monografia apresentada ao Curso de
Jornalismo da Universidade de Fortaleza,
como requisito parcial para conclusão do
curso de graduação, sob a orientação da
professora doutora Gabriela Reinaldo.
Fortaleza
2006
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Banca examinadora composta por:
________________________________________
Prof.ª Dr.ª Gabriela Reinaldo (orientadora)
_________________________________________
Prof.ª Dr.ª Geísa Matos
_________________________________________
Prof. Ms. Ronaldo Salgado
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Iluminuras, marfins profundamente
entalhados; pedras duras, perfeitamente
polidas e claramente gravadas; lacas e
pinturas obtidas pela superposição de uma
quantidade de camadas finas e translúcidas...
– todas essas produções de uma indústria
tenaz e virtuosíssima cessaram, e já passou o
tempo em que o tempo não contava. O
homem de hoje não cultiva o que não pode
ser abreviado. –
Paul Valéry
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AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, sobretudo a minha mãe, por sempre ter investido e
acreditado em mim e no meu potencial, incansavelmente.
Ao Ismael, por ter me falado do Gonzo ainda em 2003, quando eu
nem supunha a sua existência; por ter me apresentado ao trabalho do Wesdley
– essencial para o meu encanto e planejamento de novas discussões acerca
da temática –; e por ser minha companhia mais freqüente nesta árdua, porém
encantadora e prazerosa jornada.
A Gabi, que abraçou a minha idéia com empolgação desde o início,
confiando em mim e me deixando à vontade para construir este trabalho. A ela
agradeço igualmente o fato de ter me dado dicas incríveis de leituras, e de ter
aberto minha mente para novas percepções – ao longo não apenas deste
semestre, mas de boa parte da minha graduação.
Ao Xico Sá, pela divertida entrevista que me concedeu, tendo em
vista a confecção desta monografia, e por me fazer acreditar em um jornalismo
senão melhor, mais divertido.
Ao Ronaldo Bressane, redator-chefe da Revista Trip, e a Mariana
Pinheiro, da Trip Editora, que me disponibilizaram com agilidade e simpatia as
reportagens de Xico Sá na íntegra, assim com exemplares antigos da revista.
Ao Carlus, pelas fantásticas ilustrações, que ajudaram a dar cor aos
meus escritos.
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RESUMO
Neves, Ana Paula Bezerra. Jornalismo literário-subversivo: Xico Sá e a
construção de narrativas ao estilo gonzo. Monografia. Curso de Comunicação
Social. Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2006.
Tendo em vista a construção de narrativas jornalísticas mais substanciosas e
vinculadas diretamente à literatura, assim como o rompimento com as amarras
da objetividade, impessoalidade e isenção, alguns jornalistas norte-americanos
como Tom Wolfe, Truman Capote, Gay Talese, dentre outros, deram vida, na
década de 1960, a um movimento intitulado Novo Jornalismo. Hunter S.
Thompson, um jornalista controverso da cidade americana de Louisville, após
observar essas estripulias, foi ainda mais longe, desconstruindo por completo
as normas narrativas vigentes e lançando um estilo inédito e ousado, que
mesclava deliberadamente jornalismo, literatura, drogas e o que mais fosse
possível colocar em palavras. A este novo gênero foi dado o nome de Gonzo
Jornalismo. No Brasil, apesar de pouco repercutir, as narrativas Gonzo
atingiram algumas poucas publicações inovadoras, como é o caso da Revista
Trip. Foi lá que o jornalista e escritor cearense, Xico Sá, pôde enfim dar vazão
a uma maneira mais livre e, quiçá, sui generis de narrar. Este trabalho volta a
atenção para essas produções. Sobretudo para a análise de algumas
reportagens que Xico Sá fez ao estilo gonzo. Nossa intenção é lançar olhares
que nos permitam uma maior compreensão acerca deste gênero tão pouco
estudado e esmiuçado para, quem sabe assim, propormos aprimoramentos ao
jornalismo burocrático e entediante que vem sendo feito nos principais meios
de comunicação brasileiros.
Palavras-chave: gonzo jornalismo, jornalismo literário, novo jornalismo,
polifonia, crônica, objetividade e subjetividade, revista Trip.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................08
1. Jornalismo Gonzo........................................................................................11
1.1 – Pré-concepção: o New Journalism...........................................................11
1.1.2 – Criatura e Criadores: Wolfe, Breslin, Capote, Talese... ........................13
1.2 – É chegada a hora do Gonzo.....................................................................19
1.2.1 – O iconoclasta: Hunter S. Thompson..................................................... 24
1.3 – E o Brasil com isso?.................................................................................27
1.3.1 – Arthur Veríssimo e o caso Trip..............................................................30
1.3.2 – A Irmandade Raoul Duke.......................................................................31
2. Jornalismo e Literatura...............................................................................34
2.1 – Subjetividade versus Objetividade............................................................43
2.2 – Apuração Participativa..............................................................................47
2.3 – Amplitude de vozes: alas para o discurso polifônico................................50
2.4 – Crônica: o híbrido perfeito?.......................................................................53
2.5 – Revistas, magazines, semanários e suplementos: suportes possíveis?..57
3. O Gonzo segundo Xico Sá..........................................................................63
3.1 – Xico Sá, o subversivo...............................................................................63
3.2 – Idiossincrasias, desvarios, sarcasmos e orgasmos: maldição ou prazer do
texto?.................................................................................................................66
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................88
ANEXOS............................................................................................................91
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INTRODUÇÃO
Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismo-verdade –
Xico Sá
Trazer à tona a realidade por meio de palavras ou, ainda, descrever
indivíduos de forma a anular o mínimo possível as suas idiossincrasias e
peculiaridades é tarefa árdua, quiçá penosa – que o diga o jornalista mais
cauteloso. A este, além de ter a cotidiana missão de informar, ainda é exigido
sair-se de si para transpor o real do alto de pedestais tão controversos e
questionáveis quanto o próprio conceito de certo. Ou de errado. Objetividade,
impessoalidade, isenção são algumas dessas exigências que, se não podam
deliberadamente a liberdade criativa dos repórteres, limitam consideravelmente
a sua narrativa.
Em meados da década de 60, alguns jornalistas norte-americanos
entediados com esta realidade, sem querer, causaram um rebuliço não apenas
nas redações de jornais. O ruído emitido por eles ressoou, inclusive, nas salas
empoeiradas dos literatos – que tiveram de aceitar, irados, o fato dos seus
espaços estarem sendo invadidos por uns tais Novos Jornalistas. O grito mais
alto foi dado por um indivíduo avesso a qualquer tipo de amarra, chamado
Hunter S. Thompson. A sua maneira de narrar era tão inusitada e autêntica que
um amigo lhe atribuiu a pecha de gonzo. Que tipo de jornalismo era aquele? Só
Thompson poderia explicar. O fato é que mesmo permanecendo num lugar
periférico da história do jornalismo, a sua criação abriu frestas para novas e
frutíferas reflexões acerca do metiê.
No Brasil, apesar de não sofrer influências diretas desta turma de
estrangeiros, a escrita de Xico Sá desponta, há um par de décadas, como um
caso a parte. Apesar de continuar nas redações de grandes e tradicionais
jornais, Xico ganhou notoriedade, sobretudo, por levar ao extremo suas
narrativas. Estas, além de lançar mão, abundantemente e deliberadamente, de
recursos literários, vão ainda mais além, ao romper por completo com as idéias
polidas e, intencionalmente discretas, dos manuais de redação.
Se a turma do Novo Jornalismo e, posteriormente Thompson, com o
Gonzo, criaram, inconscientemente, novas maneiras de narrar os fatos, Xico,
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por sua vez, aderiu ao estilo de maneira própria, assimilando algumas
características e inserindo nele outras tantas.
Nossa intenção neste trabalho é conhecer um pouco da produção
desses sujeitos que, inconformados com os limites que lhes eram impostos, e
por acreditarem na construção de narrativas mais ricas e prazerosas
textualmente, se permitiram pular a cerca.
Ao identificarmos nas reportagens de Xico Sá semelhanças ao estilo
gonzo de narrar histórias não pretendemos tachá-las de corretas, ou melhores.
Mais do que isso, nossa função aqui é a de analisar o que essas ousadas
variações narrativas têm a dizer de relevante e, ainda, lançar sugestões no
sentido de, quem sabe, aprimorar esse jornalismo entediante e burocrático que
vem sendo feito hoje, na maior parte dos meios de comunicação.
Para isso, no primeiro capítulo, faremos um panorama do Gonzo
Jornalismo, no intuito de compreendermos gênese, propósitos e características
do gênero inaugurado por Hunter Thompson. A essas discussões serão
somadas as repercussões do Gonzo no Brasil. Citaremos o caso da Revista
Trip e também da extinta Irmandade Raoul Duke.
A polêmica que gira em torno dos conceitos e das fronteiras
existentes entre o jornalismo e a literatura nortearão o segundo capítulo.
Convidamos ao debate autores como Alceu Amoroso Lima, Walter Benjamin,
Cremilda Medina, José Marques de Melo, Fagundes de Menezes, Massaud
Moisés, dentre tantos outros, para lançarem olhares sobre questões, em nossa
opinião, essenciais, como os conceitos de objetividade e subjetividade;
apuração participativa; polifonia, etc.
No derradeiro capítulo, por sua vez, além de apresentar e de traçar
um sucinto currículo do criador do nosso objeto de estudos, Xico Sá, faremos
uma análise de algumas de suas reportagens, feitas para a Revista Trip. Aqui,
tentaremos, senão destrinçá-las de maneira hermética – posto que se tratam
de construções assaz subjetivas –, fazer um balanço das mesmas com base no
que foi discutido nos dois capítulos precedentes. Tudo isso tendo em vista
também a construção de questionamentos e críticas à atividade jornalística
vigente.
Antes de adentrarmos propriamente no trabalho, vale ressaltar que o
Gonzo, passado quase meio século de seu surgimento, ainda permanece no
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submundo do jornalismo, restrito apenas a alguns poucos indivíduos que se
permitem ir além do que dita a grande imprensa ou mesmo a grade da maioria
das universidades de Comunicação Social.
Somente há cerca de três anos, por exemplo, os livros de Thompson
começaram a ser traduzidos e lançados em língua portuguesa. A academia,
enquanto isso, se não o ignora por completo, continua a fazer vista grossa a
ele.
Posto isto, não é demais lembrarmos que por se tratar de um gênero
pouco estudado e examinado, este trabalho, mais do que encontrar respostas
ou definições, se pretende, unicamente, a analisar, de maneira mais atenta e
cuidadosa, o Gonzo e essas novas narrativas que ele trouxe, a reboque.
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1. Jornalismo Gonzo
Primeiro consiga seus fatos e depois pode distorcê-los à vontade –
Mark Twain
1.1
– Pré-concepção: O New Journalism
No início da década de 1960, as redações dos principais jornais
norte-americanos eram dominadas por um clima de apatia por parte dos
profissionais da notícia. Àquela época, os jornalistas dividiam-se, sobretudo,
entre aqueles que dedicavam todo seu empenho na busca (e competição entre
si) por “furos” jornalísticos; enquanto a outra metade empregava seus talentos
nas ditas reportagens especiais – cujo foco, geralmente, ia além de meras
informações factuais. Todos, no entanto, partilhavam de uma única ambição:
escrever um grande Romance, que mudaria por definitivo suas desprestigiadas
vidas.
Tom Wolfe, em O Novo Jornalismo, ressalta esse clima de
insatisfação afirmando que
A idéia [dos jornalistas] era conseguir emprego em um jornal,
conservar inteiros o corpo e a alma, pagar o aluguel, conhecer
“o mundo”, acumular “experiência”, talvez eliminar um pouco
da gordura do seu estilo – depois, em algum momento,
demitir-se [....], trabalhar dia e noite durante seis meses, e
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iluminar o céu com o triunfo final. O triunfo final era conhecido
como o Romance (Wolfe, 1976:13).
Segundo ele, a idéia de escrever um romance nas décadas de 40, 50
e começo dos anos 60 exercia um fascínio, era uma obsessão; “um dos últimos
desses golpes de sorte” (Idem, Ibidem: 17). Talvez a única oportunidade para
indivíduos
das
classes
mais
humildes
deslancharem,
adquirirem
reconhecimento e status. Tratava-se de um autêntico “Sonho Americano”,
realizado por uma minoria.
O cenário começou a ganhar novos contornos enquanto os
repórteres especiais Jimmy Breslin, Dick Schaap, Gay Talese, Robert Lipsyte,
o próprio Wolfe, dentre outros, criavam suas reportagens nas máquinas de
escrever de periódicos nova-iorquinos, como o Herald Tribune, New York
Times e Daily News.
O que acontecia era que, aos poucos, o jornalismo diário começava
surpreendentemente a ganhar adereços estilísticos intrínsecos ao romance.
Um atrevimento de luxo, diga-se, para os padrões disseminados na imprensa
norte-americana até então. Wolfe descreve o fato desta maneira:
Tudo o que pediam [os repórteres] era o privilégio de se vestir
como ele [o escritor de romances]... até o dia em que eles
próprios chegassem à ousadia de ir para a cabana e tentar
para valer...” (Idem, Ibidem: 19).
Faz-se necessário salientar, entretanto, que essa ousadia criativa na
construção de novas narrativas jornalísticas não aconteceu de maneira
aleatória e completamente indisciplinada. Posto que, como observa André
Felipe Pontes Czarnobai, em sua monografia de conclusão do curso de
jornalismo 1,
Os temas das reportagens [especiais] sempre proporcionavam
uma maior liberdade na hora de escrevê-las. Estas
características aproximavam a reportagem das narrativas
realistas de ficção, com a exclusiva diferença de não haver
[....] nada fictício nos relatos publicados (Czarnobai, 2003).
1
Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/monogonzo01.html>.
Acesso em: 27 de novembro de 2006.
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Outro aspecto essencial do período que só veio a fortalecer na
disseminação do Novo Jornalismo foi a ruptura nos costumes e na moral da
sociedade durante os conturbados anos 60. Wolfe faz questão de recordar que
temas como a “permissividade sexual”, a “consciência negra”, a “morte de
Deus”, a proliferação do conceito “hippie” e dos “movimentos radicais” e a
própria idéia de “contracultura”, que fervilhavam e tomavam conta do
inconsciente coletivo, simplesmente foram relegados pelos romancistas. Estes
deixaram o fértil terreno do realismo social aberto para os jornalistas, enquanto
se dedicavam exclusivamente a um gênero que, na cabeça deles, parecia
infinitamente superior: a ficção.
Os romancistas [....] haviam abandonado o terreno mais rico
do romance: especificamente a sociedade, o tableau social, os
costumes e a moral, a coisa toda do “como vivemos agora”
[....]. Isso foi maravilhoso para os jornalistas – posso garantir.
Os anos 60 foram uma das décadas mais excepcionais da
história americana (Wolfe, 1976: 50).
Ou seja, tratava-se de um cenário já propício ao talento, criatividade
e inovação de uma competente turma de jornalistas que – mesmo sem
nenhuma pretensão de entrar na história como os descobridores de uma nova
modalidade jornalística (ou mesmo literária) –, deu nome a um estilo que até os
dias de hoje é tido como referência no que tange à qualidade de apuração e,
sobretudo, ao prazer da leitura.
Enquanto os escritores fugiam incautos, arrogantes e com um ar de
superioridade da realidade fervilhante que se lhes apresentava; os editores,
ansiosos por verem retratado o cotidiano em reportagens especiais e
romances, não vacilaram: passaram a jogar todo incenso na nova turma de
jornalistas que produzia a todo vapor. Uma revolução que nem os mais
otimistas poderiam esperar, porém que grande parte deles teve a chance de
usufruir.
1.1.2 – Criatura e Criadores: Wolfe, Breslin, Capote,
Talese...
14
Jubas franjadas ninhos bufantes bonés de Beatle carinhas de criança cílios
postiços olhos de decalque suéter estufado sutiãs de ponta franceses blue
jeans de couro batido calças de stretch bumbuns de néctar botas de
duende até as canelas sapatilhas de bailarina Knight, centenas deles,
desses brotinhos chamejantes, pulando e gritando, revoando pelo Auditório
da Academia de Música debaixo daquele vasto e velho teto abobadado de
querubins embolorados lá em cima – eles não são supermaravilhosos? –
Tom Wolfe
O que à primeira lida pode parecer uma construção meramente
verborrágica e sem propósito, nada mais é que o lide de uma reportagem de
Tom Wolfe, intitulada A Garota do Ano.
Analisando superficialmente, notamos que Wolfe largou mão das
seis perguntas iniciantes do jornalismo (o quê, como, quando, onde, por que,
quem); e se retirou do trabalho burocrático das matérias de jornal feitas por
telefone e/ou alicerçadas em relises pré-prontos, para sair às ruas e
acompanhar um dia na vida da socialite norte-americana Baby Jane Holzer. O
cenário escolhido foi igualmente (e intencionalmente) impactante: o show dos
Rolling Stones – então a grande sensação da época.
É
importante
observar
que
as
descrições
minuciosas,
a
desconstrução do padrão jornalístico, a mescla do banal com o erudito, e a
imersão de características literárias, cada vez mais, ganhavam força nos textos
da década de 60. Como lembra Czarnobai, para Wolfe,
o mais interessante não era a sensação de ter feito algo novo
[....] mas sim a descoberta de que era possível fazer
descrições muito mais fiéis [....] usando técnicas
habitualmente utilizadas no conto e no romance (Czarnobai,
2003: 6).
Tudo isso só era possível porque, diferentemente da realidade que
se apresenta hoje e que se apresentava então, a apuração se dava de forma
mais intensa, exigente, profunda, detalhada e ambiciosa.
Dias, semanas,
meses, até anos. Cada qual ao seu tempo (e trabalhando como free-lancers ou
contratados por jornais, suplementos dominicais ou revistas), os novos
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jornalistas criaram o hábito de se inserir naquele universo que, logo mais, eles
iriam retratar em suas reportagens.
Parecia absolutamente importante estar ali quando
ocorressem cenas dramáticas, para captar o diálogo, os
gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente. A
idéia era dar a descrição objetiva completa, mais alguma
coisa que os leitores sempre tiveram de procurar em
romances e contos: especificamente, a vida subjetiva ou
emocional dos personagens (Wolfe, 1976: 37).
Jimmy Breslin foi um dos pioneiros nesta atividade de sair à caça da
notícia, checar cada minúcia, cobrir in loco cada acontecimento. Não se
trabalhava com uma idéia limitadora de tempo. Mas de relatos bem apurados e
divinamente bem descritos e narrados. Coisa que Breslin – ao se sentar diante
de sua máquina de escrever na redação do Herald Tribune, ao final do dia –
fazia com primazia, e como poucos.
Voltando às peculiaridades do texto wolfiano, Fernando Resende, na
sua dissertação de mestrado que se transformou no livro Textuacões: Ficção e
Fato no Novo Jornalismo de Tom Wolfe, pontua que a produção de Tom “prima
não pela unidade, mas, antes, por uma pluralidade de focos, linguagens,
personagens, enfim, um texto permeado por verdades factuais e ficcionais”
(Resende, 2002: 21).
Para ele, trata-se de uma leitura que ora define-se como informativa,
ora como interpretativa e ambígua; onde a expansão toma o lugar da rigidez.
Realidade e ficção, assim, diluem-se num texto que visa ao deleite, não a
definição. Características essas que podem se estender por grande parte da
produção do Novo Jornalismo.
Wolfe, por sua vez, já apontava como um dos principais problemas
da escrita jornalística convencional de não-ficção, a maneira discreta, polida e
contida com que a voz do narrador era construída intencionalmente no texto.
Isso porque, de acordo com ele, para parecer verossímil não era
necessário se abster por completo. “Isso nada tinha a ver com objetividade e
subjetividade, ou de assumir uma posição ou ‘compromisso’ – era uma
questão de personalidade [....], numa palavra, de estilo” (Wolfe, 1976: 32).
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Segundo ele, essa escrita “bege” e “pálida”, construída por
jornalistas de “cabeça prosaica” e “espírito fleumático”, entediava o leitor
profundamente, a ponto de ele desistir da leitura.
Chegamos assim a um ponto no qual talvez seja possível destrinchar
o objetivo do autor no lide supracitado de A Garota do Ano, ao escolher um
emaranhado de palavras, a priori incompreensíveis, para comentar os gestos,
os costumes, as indumentárias deslumbrantes que via nas moças. Ele mesmo
afirma que se sentia como “a voz da ribalta”, mudando o ponto de vista no
meio de parágrafos ou frases. Tudo para tornar a leitura mais aprazível e
instigante.
Gostava da idéia de começar uma história deixando o leitor,
via narrador, falar com os personagens, intimidá-los, insultálos, provocá-los com ironia ou condescendência [....]. Por que
o leitor teria de se limitar a ficar ali quieto e deixar essa gente
passar num tropel como se sua cabeça fosse a catraca do
metrô? (Idem, Ibidem: 31).
No entanto, ao contrário do que possa parecer, toda essa revolução
estilística advinda a partir do Novo Jornalismo não passou incólume diante das
línguas ferinas e reacionárias de críticos conservadores. Wolfe lembra que
Breslin, por exemplo, foi incompreendido. Isso porque como os críticos não lhe
atribuíam a pecha de literato, eles igualmente não se permitiam um maior
envolvimento na sua escrita romanesca, porém ainda jornalística. Para eles,
aquilo era inaceitável.
O que acontecia em meados de 1966 era que, enquanto os
repórteres especiais ficavam extasiados com a repercussão positiva de seus
trabalhos, parte da crítica literária tentava a todo custo minimizar seus feitos.
O Columbia Journalism Review e o The New York Review of Books,
em pânico, chegaram inclusive a publicar listas questionáveis de “erros”. Era o
pavor de uma ameaça eminente, um clima de competição que até então existia
somente entre os “superiores” romancistas, jamais entre os “inferiores”
jornalistas. Como lembra Wolfe, eles chegaram à conclusão de que “ali estava
o danado do gênero novo, aquela ‘forma bastarda’, aquele ‘parajornalismo’,
rótulo que atribuíam não apenas a mim [....] mas também a Breslin, Talese...”
(Idem, Ibidem: 42).
17
Esse coro por parte dos críticos, no entanto, não se sustentou por
muito tempo. Já naquele ano de 1966, um jornalista free-lancer controverso do
Kentucky, chamado Hunter S. Thompson, despontava com Hell’s Angels:
medo e delírio sobre duas rodas, livro sobre o dia-a-dia de motoqueiros
arruaceiros da Califórnia; e Truman Capote lançava o livro A Sangue Frio, uma
compilação de reportagens sobre o assassinato de uma rica família do Kansas,
que originalmente foram publicadas na revista The New Yorker.
O sucesso de ambos os livros, escritos por autores desprestigiados
na época e nos moldes do Novo Jornalismo – Truman conviveu cinco anos
com os dois assassinos e fez um extenso trabalho de pesquisa, enquanto
Thompson viajou dezoito meses com sua trupe –, foi a deixa para que todos,
enfim, se rendessem aquilo que Capote passou a chamar de “romance de nãoficção”, e que um colega de Thompson, mais adiante, cunhou de Gonzo
Jornalismo – movimento que iremos abordar na seqüência.
Truman Capote, na verdade, é considerado um dos grandes
expoentes do Novo Jornalismo. Talvez por sua personalidade egocêntrica e
instigante, e por sua extrema habilidade descritiva ele seja, até os dias atuais,
um dos jornalistas mais lembrados do período. Sua versatilidade e seu trânsito
por diversos estilos de reportagem são fáceis de serem observados.
Em 1956, por exemplo, ele descortinou a imagem de Marlon Brando
em uma das mais ousadas e emblemáticas entrevistas da história, feita com o
astro em seu quarto de hotel em Kyoto, enquanto Brando filmava Sayonara.
- Ora, Sayonara. Eu a adoro! Essa bela tolice água-comaçúcar que tinha pretensões a ser um filme sério sobre o
Japão. Mas que diferença faz? Afinal, eu só estou fazendo
pelo dinheiro. Dinheiro para a arrancada inicial da minha
própria companhia. – Puxou o lábio com ar meditativo e bufou
de novo. (Capote, 1977: 269).
Gay Talese é outro nome digno de ser destacado neste rol. Wolfe
confessa seu estado de choque ao se deparar, em 1962, com uma das
reportagens que ele fez para a revista Esquire, sobre um boxeador em fim de
carreira, cujo título é Joe Louis: o Rei na meia-idade.
18
A surpresa deveu-se, sobretudo, pela transposição na íntegra de
diálogos extremamente íntimos que o atleta travou com a mulher, enquanto
Gay Talese o entrevistava no aeroporto.
Avalia-se que a sua intenção ao transpor estas conversas de
cunho pessoal era de alguma maneira a de retratar fragmentos do cotidiano
daquele atleta que, enquanto às vistas da maioria das pessoas era tido como
valente e durão, diante da mulher mostrava toda a sua fragilidade.
“Oi, meu bem!”, Joe Louis disse a sua mulher, ao vê-la
esperando por ele no aeroporto de Los Angeles.
Ela sorriu, foi até ele, e estava quase se pondo na ponta dos
pés para beijá-lo quando, de repente, parou.
“Joe”, disse ela, “cadê sua gravata?”
“Ah, benzinho”, ele disse, dando de ombros. “Fiquei acordado
a noite inteira em Nova York e não tive tempo de...”
“A noite inteira!”, ela cortou. “Quando está aqui, você só quer
saber de dormir, dormir e dormir.”
“Benzinho”, disse Joe Louis, com um sorriso cansado, “eu
estou velho.”
“É”, concordou ela, “mas quando vai para Nova York, você
tenta ficar moço de novo.” (Wolfe, 1976: 20-21).
Resta mencionar que o Novo Jornalismo, apesar de quebrar
diversos paradigmas vigentes na imprensa norte-americana da década de 60,
não pode ser tido como um movimento absolutamente inédito.
Muito maior e mais abrangente que ele é o termo Jornalismo
Literário, que abarca todo e qualquer tipo de produção que transite livremente
por ambas as vertentes: jornalismo e literatura; e surgido por volta dos anos
20.
Juliana Bomtempo Rangel recorda – em artigo sobre a influência do
Novo Jornalismo no jornalismo convencional brasileiro – que isso se deu
justamente em um momento no qual “os jornalistas perceberam que aquele
padrão [narrativo] não dava conta de reproduzir a dramaticidade de uma
guerra” (Rangel, 2006: 2). Ou seja, que por meio da fria objetividade e do ideal
de isenção, não era possível narrar de maneira verossímil os fatos da
realidade.
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É justamente a uma dessas outras possibilidades textuais, que tão
bem dialogam com o Jornalismo Literário, que iremos nos ater neste trabalho:
o Jornalismo Gonzo.
1.2. É chegada a hora do Gonzo
’Olha.’ Ele me cutucou no braço para ter certeza de que eu estava
escutando. ‘Eu conheço esse público do Derby, venho aqui todo ano, e
deixa eu te contar uma coisa que eu aprendi: aqui não é uma cidade onde
você pode dar brecha pras pessoas acharem que você é veado ou coisa
assim. Pelo menos não em público. Porra, eles caem em cima de você na
mesma hora, te dão uma porrada na cabeça e levam cada centavo seu.’ –
Hunter S. Thompson
Em meados de 1970, Hunter S. Thompson – jornalista do Kentucky
que costumava trabalhar como free-lancer e que, alguns anos antes, tinha
adquirido notoriedade com a publicação de Hell’s Angels: medo e delírio sobre
duas rodas – decidiu cobrir a mais tradicional corrida de cavalos da América, o
Kentucky Derby, que acontece anualmente há mais de um século na sua
cidade natal, Louisville. Para isso, ele se dirigiu ao evento juntamente com um
ilustrador inglês, Ralph Steadman, que deveria retratar de forma grotesca e
cômica todo tipo de personagem pitoresca e alegórica que lhes aparecesse
pela frente.
O fragmento acima faz parte deste material, publicado originalmente
na revista de esportes Scanlan’s Monthly, em junho daquele ano, e que
ganhou o controverso título de O Kentucky Derby É Decadente e Degenerado.
Dito isto, é imprescindível salientar que em nenhum momento, no
decorrer de todo o longo texto, o autor fez questão de mencionar qualquer
referência aos competidores, aos cavalos, à corrida, às apostas ou mesmo aos
grandes campeões daquele ano. Ou seja, desprezando e desmerecendo a
fórmula “o quê, como, quem, quando, onde, por que”...
Mais relevante do que isso, para Thompson, foi colher um apanhado
de observações ácidas sobre os bastidores deste acontecimento de
características dionisíacas, enquanto Steadman tratava de ilustrar os
20
“verdadeiros” animais, segundo ele, presentes ali: políticos maus-caracteres,
baderneiros, entusiastas e personalidades dúbias. Detalhe: ambos fizeram
questão de cobrir todo o evento sob forte efeito de álcool e drogas. Estava ali o
primeiro sinal contundente de que a muralha que sempre separou o jornalismo
da ficção estava, cada vez mais, prestes a ruir – pelo menos no que dizia
respeito ao submundo do jornalismo.
As reações aquilo que Hunter acabara de criar foram variadas.
Porém, a única que verdadeiramente ficou para a história foi a de Bill Cardoso,
um jornalista amigo seu que, ao ler a reportagem, esbravejou – como traz a
tona Christine Othitis, no artigo intitulado The Beginnings and Concept of
Gonzo Journalism [As origem e a concepção do Gonzo Jornalismo]2:
I don't know what the fuck you're doing, but you've changed
everything. It's totally gonzo [Eu não sei que porra você está
fazendo, mas você mudou tudo. É totalmente gonzo] (Carol
apud Othitis, 1994).
Foi o próprio Cardoso que destrinchou o significado da inusitada
expressão logo após o ocorrido, afirmando que se tratava de “uma corruptela
da palavra “gonzeaux”, evocada nas regiões de língua francesa [....] com o
sentido de ‘via iluminada’” (Vasconcelos, 2003: 7).
Em português, por sua vez, tanto no Mini Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa quanto no Mini Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,
gonzo consta como “dobradiça de porta ou janela”. Entretanto, mais importante
do que as definições, foi o fato de Hunter Thompson ter adotado termo e
forma, definitivamente, nas suas próximas estripulias jornalísticas, inaugurando
assim uma estilo diferente de tudo que já se tivera notícia na história da
imprensa.
Uma dessas próximas aventuras foi justamente a cobertura do Mint
400, uma famosa corrida de motos que acontece no deserto de Nevada. Desta
vez, acompanhado de um colega advogado, Hunter Thompson segue rumo às
imediações de Las Vegas para desvendar não o mundo da velocidade sobre
2
Disponível em: < http://www.gonzo.org/articles/lit/esstwo.html >. Acesso em: 28 de novembro
de 2006.
21
duas rodas. Mas para, igualmente sob o efeito de entorpecentes, se ater à vida
dos demais drogados e viciados em jogo que se aglomeravam nas
proximidades da competição, nos cassinos, bares, boates e ruas do Estado
americano.
A reportagem, originalmente feita para a revista Sports Illustraded, é
recusada. No entanto, em 1971, a Rolling Stones a publica na íntegra, em
duas edições. Sob o pseudônimo de Raoul Duke, Medo e Delírio em Las
Vegas: Uma Jornada Selvagem ao Coração do Sonho Americano, logo viraria
livro e Hunter passaria a utilizar com mais freqüência a tal alcunha, que ficou
famosa.
Fato ou ficção? Realidade ou despretensiosos devaneios? O que era
e qual foi a verdadeira intenção do tal Gonzo ao desconstruir audaciosamente
regras pré-estabelecidas há séculos pelo jornalismo – desde a escolha das
pautas a confecção de reportagens, artigos, livros?
Para começar, é importante deixar claro que “em essência, o gonzojornalismo caracteriza-se pela ausência de regras rígidas” (Idem, Ibidem: 8).
Partindo deste pressuposto, o próprio autor da afirmação acima continua o
processo de conceituação ao lembrar que um dos grandes e principais
entraves que Thompson sempre encontrou na maneira convencional de fazer
jornalismo foi o outrora intocável “ideal de objetividade”.
Vasconcelos faz questão de registrar que, para Thompson, muito
mais interessante do que supostamente incitar um clima de confiança entre o
meio de comunicação e o leitor por meio de uma questionável isenção, era se
fazer presente em toda a narrativa. Ou melhor, deixar isso bem claro para o
leitor que, ao final, teria a chance, ele mesmo, de fazer seu juízo de valor.
A escolha de escrever em primeira pessoa pressupõe, no
gonzo-jornalismo, um desejo de subversão, ironia e
contraposição, tanto frente ao jornalismo dito tradicional,
quanto perante a ordem das coisas. [....] O gonzo situa numa
esfera autodelatadora, denuncia a si mesmo para mostrar a
fragilidade do conteúdo discursivo jornalístico, seja ele em
primeira ou terceira pessoa. (Idem, Ibidem: 10).
Vasconcelos nos recorda de outro aspecto que podemos facilmente
observar nas construções gonzo (seja nas de autoria do próprio Thompson ou
22
nas diversas reportagens do jornalista Xico Sá, que analisaremos mais
adiante): a livre e vasta utilização da ironia. Para ele, o autor, ao lançar mão
deste recurso, pretende se nivelar ao receptor, “compartilhando com ele suas
ambigüidades e deixando clara a sua incapacidade de absorver e transmitir a
‘verdade’”. (Idem, Ibidem: 12).
A grande polêmica em torno de até que ponto o Jornalismo Gonzo
pode ser considerado verídico é também discutida por Czarnobai. Segundo
ele, “é possível ser verossímil sem ter um compromisso com a verdade, desde
que o autor esteja devidamente inserido naquilo sobre o que está escrevendo”.
(Czarnobai, 2003). Condição esta indiscutível em se tratando de Thompson
que, assim como a turma do Novo Jornalismo, sempre teve como um de seus
pontos positivos o minucioso trabalho de apuração, e mais: uma intencional
imersão no ambiente a ser retratado.
Czarnobai, aliás, ao diferenciar o Novo Jornalismo do Gonzo
Jornalismo no âmbito da investigação, prefere denominar o processo do
segundo de “osmose”, já que “o repórter gonzo altera o objeto de sua
reportagem da mesma forma que o objeto altera o próprio repórter.” (Idem,
2003). O autor é enfático ao afirmar que este fato pode ser tido como uma
vantagem do Gonzo, cujo ponto de vista do repórter tenderá sempre a ser mais
fiel à realidade.
Juliana Bomtempo Rangel enaltece igualmente a nova modalidade
narrativa ao declarar que
Um dos principais problemas do Novo jornalismo resolvido em
parte pelo Jornalismo Gonzo é justamente esta velocidade na
apuração e redação das matérias, dispensando, inclusive, a
etapa da edição. O Jornalismo Gonzo abre mão da entrevista
como instrumento de pesquisa principalmente por focar sua
atenção em um personagem-narrador que é o próprio
repórter, o protagonista da ação. (Rangel, 2006: 7).
Feito este breve panorama da gênese do Gonzo Jornalismo, é
possível partir para a enumeração de algumas das mais relevantes e
presentes características do gênero. Estas servirão como base comparativa e
analítica ao longo de todo o restante deste trabalho.
23
Christine Othitis, em seu artigo sobre os primórdios do Gonzo, por
exemplo, irá citar alguns pontos como marcantes na escrita de Hunter
Thompson. Autor que, de acordo com ela, deveria ser considerado o único
gonzo jornalista existente no mundo – ponto este, a nosso ver, merecedor de
ressalvas, já que é de nossa pretensão analisar ainda as produções de outros
jornalistas, nas quais identificamos, senão recursos narrativos idênticos,
recursos similares aos do Gonzo Jornalismo.
Ademais, antes de entrarmos de vez nessas peculiaridades também
vale reiterar que não pretendermos entrar na polêmica que questiona se o
gonzo pode ser considerado uma modalidade jornalística ou não. Mais
importante do que isso, para nós, é a análise das especificidades narrativas
desta linguagem.
Seguem as principais características presentes no trabalho de
Hunter Thompson apontadas por Othitis (1994):
- Preferência por temas como sexo, violência, drogas, esportes e
política;
- Uso de citações de gente famosa e de outros escritores ou às
vezes dele mesmo como epígrafe;
- Referências a figuras públicas como jornalistas, atores, músicos e
políticos;
- Tendência de se distanciar do assunto principal ou do assunto por
onde o texto começou;
- Uso de sarcasmo e/ou vulgaridade como forma de humor;
- Tendência das palavras fluírem e um uso extremamente criativo do
inglês;
- Descrição extrema das situações.
Não é demais lembrar que a escrita Gonzo: 1) é intencionalmente
feita em primeira pessoa – o que, naturalmente, confunde o leitor, que nunca
ficando sabendo o que é e o que não é ficção –; 2) pode vir acompanhada de
reflexões com toques de devaneio em decorrência do uso de drogas; 3)
depende de uma captação participativa; e 4) pode lançar mão de recursos
ficcionais durante a narrativa.
24
Para finalizar, lembramos que na atualidade é possível observarmos
alguns exemplos de adaptações ao estilo Gonzo de apurar, narrar, ousar e,
claro, quebrar padrões.
Alguns desses exemplos, como ressalta Martin Hirst, em seu artigo
What is Gonzo? The etymology of na urban legeng [O que é Gonzo? A
etimologia de uma lenda urbana]3, “infelizmente” estão atingindo inclusive
aspectos da cultura popular que fogem por completo à idéia inicial de
Thompson.
Ele cita o caso do programa JackAss, transmitido pela MTV
americana e que apesar de não se assemelhar na íntegra ao trabalho de
Thompson, imita a maneira bizarra e extrema do Gonzo lidar com a realidade.
Já em relação ao trabalho do cineasta Michael Moore, Hirst analisa
como uma forma positiva e original de Jornalismo Gonzo.
He doesn’t project the same bizarre image as Thompson did
with drugs and sex, but he does approach his political material
with a similar personal and involved account. Moore is also
physically ‘gonzo’ in appearance, deliberately dressing down
to affect [Ele não projeta a imagem bizarra que Thompson
projetou ao usar drogas e sexo, mas ele aborda seu material
político de maneira similar. Moore é também fisicamente
‘gonzo’ na aparência, deliberadamente vestido para afetar].
(Hirst, 2004: 12).
Entretanto, não iremos nos deter nessas inovações, muitas vezes
recheadas de marketing, que encontramos na contemporaneidade. Este
trabalho, como já citado, é voltado estritamente para o caráter narrativo
advindo do estilo Gonzo. Por isso, antes de entrarmos propriamente em
exemplos desta modalidade no Brasil e na análise do nosso objeto de estudo,
faremos um sucinto resumo da trajetória do grande pioneiro desta marca.
1.2.1. O iconoclasta: Hunter S. Thompson
3
Disponível em: < http://eprint.uq.edu.au/archive/00000776/01/mhirst_gonzo.pdf>. Acesso em:
27 de novembro de 2006.
25
WOODY CREEK, Colorado – Um epitáfio estranho para um ano estranho
[....]. Nunca mais tive um leiteiro depois dos dez anos de idade. Eu
costumava acompanha-lo em seu itinerário, lá em Louisville. Era um
daqueles furgões sem porta, onde se ficava de pé e se podia saltar para
dentro ou fora durante o trajeto. Aquele furgão fedendo a azedo se
arrastava pela rua, de casa em casa, enquanto eu ia e vinha com a
mercadoria. –
Hunter S. Thompson
Hunter Stockton Thompson nasceu em Louisville, no Kentucky,
Estados Unidos, em 18 de junho de 1937. Criança agitada e carismática,
Hunter costumava encantar a todos com seu jeito de líder. Ele conseguia
liderar desde times de baseball a badernas com os colegas da escola. Seu
poder de encanto, inteligência e perspicácia eram tantos que ele, facilmente,
manipulava as pessoas ao seu redor – com exceção da sua vizinhança, que
começava a perceber prematuramente seu comportamento violento.
O fato de ser filho de pais alcoólatras e de ter perdido o pai, Jack
Robert Thompson, aos 15 anos, fez com que o garoto entrasse cedo no mundo
das drogas. Aos 17 anos, foi preso por assalto e, “como forma de redução da
pena, o juiz que o condenara propôs a Thompson que ele se alistasse no
serviço militar” (Vasconcelos, 2003: 5).
Apesar do comportamento rebelde, Hunter Thompson conseguiu se
livrar da Força Aérea “com honras” – talvez até em decorrência dos serviços
prestados ao jornal Command Courrier, no qual caiu nas graças da maioria dos
soldados, que gostavam de suas matérias.
Foi nessa mesma época que Thompson, de acordo com Othitis
(1994), começou a fazer amizades com diferentes personalidades, como
escritores, agentes esportivos, músicos e políticos. Dali em diante foi um salto
para que ele começasse a escrever para pequenos jornais – experiência essa
sem muito sucesso, posto que seu estilo, opinião e sua personalidade forte
não combinavam em nada com esses meios de comunicação.
Tabaco, gin, boubon, Kentucky Derby e Hunter Thompson.
Todos são produtos bastante alegóricos de Louisville, e têm
em sua configuração um viés entorpecente, alterador do
estado de consciência. [....] Essa rebeldia de Thompson não
26
figurava apenas em sua atitude diante do mundo, mas
sedimentava-se em sua maneira de escrever. (Vasconcelos,
2003: 5).
Para Vasconcelos, essa maneira de escrever do autor, desde o
início, já despontava como autobiográfica. Em toda sua produção, por sinal, é
nítida a predominância por temas de sua predileção, como esportes, violência,
política, sexo e drogas.
Após essas tentativas frustradas, Thompson aceitou a proposta de ir
cobrir a América Latina para o National Observer e, mais adiante, como
recorda Czarnobai (2003), para Porto Rico, onde deveria escrever sobre
boliche para a revista El Sportivo. Ambas as tentativas, no entanto, tornaramse igualmente desestimulantes para ele, que vislumbrava muito mais.
Sendo assim, Hunter voltou para casa em 1962 e continuou seu
trabalho na National Observer, de onde se demitiu um tempo depois, após se
recusar a escrever um artigo sobre o livro de Tom Wolfe, The Kandy-Colored
Tangerine Flake Streamline Baby.
Assim como muitos de seus contemporâneos, Thompson
enfrentava o dilema do especialista em reportagem: queria
escrever ficção mas via-se obrigado a buscar refúgio na
sobriedade do jornalismo enquanto não alcançasse algum
êxito literário (Czarnobai, 2003).
A forma de driblar esses percalços foi justamente se integrando
àquela turma de Novos Jornalistas que despontava. Isso aconteceu com a
publicação de Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas na revista Nation
em 1965, e no ano seguinte como livro. Dentre os méritos do autor estava o
fato dele ter desconstruído o então famoso Lynch Report, feito pelo Secretário
de Segurança da Califórnia, Thomas C. Lynch, e que continha denúncias
duvidosas de estupro, vandalismo e brigas causadas pelos Hell’s Angels.
A idéia de Thompson nunca foi a de redimir os Hell’s Angels
perante a sociedade [....]. Thompson tinha a preocupação em
mostrar os dois lados desta mesma questão e deixar para o
leitor a formação de seus próprios conceitos, fugindo assim do
sensacionalismo que imperava nas matérias sobre os
motoqueiros. (Idem, 2003).
27
E, apesar deste longo trabalho – construído durante a sua
convivência de 18 meses com os motoqueiros – não possa ainda ser
considerado um exemplo do Gonzo Jornalismo, foi neste período que o autor
passou a usar com mais freqüência drogas como o LSD. Fato este que
permaneceria por toda a sua obra – inclusive durante o artigo que inaugurou o
Gonzo, O Kentucky Derby É Decadente e Degenerado.
Antes de se suicidar, em 20 de fevereiro de 2005, Hunter S.
Thompson continuava produzindo suas reportagens avessas a qualquer tipo
de regra, e repletas de humor, ironia, palavrões e gírias. Publicou dez livros.
Na ESPN americana, mantinha uma coluna sobre futebol americano, intitulada
Hey, Rube!
Seu modo sui generis de agir e produzir atingiu, inclusive, a sétima
arte. No cinema, Bill Murray o interpretou em Where the Buffalo Roam (1980) e
Johnny Deep em Fear and Loathing in Las Vegas (1998), filmes dirigidos,
respectivamente, por Art Linson e Terry Gilliam.
Thompson vivia sozinho em sua pequena fazenda, localizada em
Woody Creek, Colorado, e conhecida como Owl Farm, que ele havia adquirido
na década de 60. Foi de lá que ele escreveu a epígrafe supracitada no início
neste tópico, retirada do artigo Medo e Delírio no Bunker, publicado em 1º de
janeiro de 1974, no The New York Times.
Thompson costumava dizer que um bom escritor gonzo deveria ter
“o talento de um jornalista, o olho de um fotógrafo, e os culhões de um ator”.
1.3. E o Brasil com isso?
Década de 60. Enquanto a América fervilhava ao ver os velhos
costumes e a moral ruírem ao som do rock and roll, da disseminação da
cultura hippie, dos movimentos sociais e radicais, da liberação do sexo e das
drogas, e da edificação de um ideal de cultura subversivo e anarquista – a
contracultura –; o Brasil deixava o “Amor, o Sorriso e a Flor” da Bossa Nova
trilhar caminhos estrangeiros para abraçar a vanguarda artística paulista, o
Pré-Tropicalismo, a Jovem Guarda, e a canção de protesto – preocupada em
retratar o sufoco de um país às turras com os primórdios do governo militar.
28
Foi em meio a este cenário revolucionário que alguns órgãos
ousados da imprensa brasileira permitiram-se plantar sementes. Os frutos, em
sua maioria, foram assaz satisfatórios. No entanto, poucos desses meios
conseguiram fincar fortes raízes diante de uma realidade tão incerta e tão
caótica quanto o próprio conceito de ruptura.
Um desses exemplos foi a Revista Realidade que, em 1966,
inaugurou um dinâmico estilo de retratar um país em mudanças – seja pela
linguagem ousada, seja pela escolha de temas que permeavam uma
existência repleta de censura e hipocrisia a derredor.
De acordo com Rodrigo Oliveira de Alvares, em sua monografia de
conclusão do curso de Jornalismo4, “Com suas grandes reportagens, [a
Revista Realidade] foi a precursora de um jornalismo investigativo, inventivo e
exaustivo que lhe rendeu muitos seguidores” (Alvares, 2004).
Alvares recorda, por exemplo, de alguns temas tabus retratados pela
publicação, como o forte embate que acontecia entre policiais e estudantes, o
casamento entre padres e a situação da mulher brasileira. Uma dessas
edições, de 1967, que discutia sexo, aborto e casamento, sob a óptica
feminina, chegou a ser apreendida.
Outra reportagem de grande repercussão foi a escrita por José
Hamilton Ribeiro, enviado especial à Guerra do Vietnã. Além de reportar os
horrores que observou durante os dias que passou no país, ele descreveu com
riqueza de detalhes o momento no qual ele próprio pisou em uma mina
terrestre e perdeu parte de sua perna esquerda – tratava-se do seu derradeiro
dia no Vietnã.
Ribeiro narrou todo o seu sofrimento no decorrer das semanas
seguintes, durante seu período de recuperação. A reportagem foi a grande
vencedora do Prêmio Esso naquele ano, 1967.
O resultado deste trabalho logo se fez sentir: em seis meses,
a revista alcançou a maior tiragem do país até então. Com
475 mil exemplares e mais de um milhão de leitores por
edição. Em seus dez anos de existência, ganhou prêmios,
provocou debates, contribuiu para revelar e discutir grandes
polêmicas (Idem, Ibidem).
4
Disponível em: < http://flashself.blogspot.com/>. Acesso em: 27 de novembro de 2006.
29
No entanto, apenas dez anos depois, em 1976, Realidade perde seu
lugar de destaque para um novo conceito de revistas semanais, mais
antenadas com a rapidez da cobertura dos fatos. Saem de cena as longas
reportagens comportamentais e polêmicas para assumir um novo, veloz e
limitador estilo de cobertura, no qual o factual, a superficialidade e a
padronização imperam. Um forte exemplo disso é a revista Veja, que dá “a
impressão de que é escrita pela mesma pessoa da primeira à última linha
(Idem, Ibidem).
A título de curiosidade, é interessante abrir um parêntese para
recordar que quem pisou, coincidentemente, em terras tupiniquins neste
período foi o próprio Hunter Thompson. Em 1963, quando o Gonzo existia
apenas na mente inquieta do autor, ele esteve no Rio de Janeiro, de onde
escreveu para a National Observer a reportagem Tiroteio no Brasil, uma
contundente crítica ao exército e à polícia brasileira.
Aí está a raiz do problema, e uma das maiores diferenças
entre os Estados Unidos e não apenas o Brasil, mas todos os
países latino-americanos. Onde a autoridade civil é fraca e
corrupta, o Exército acaba se tornando rei. Até mesmo as
palavras “justiça” e “autoridade” assumem significados
diferentes. (Thompson, 1979: 140).
Antes de entrarmos mais especificamente na análise de dois casos
que sugerem uma adaptação real ao estilo Gonzo no Brasil – o da Revista Trip
e da Irmandade Raoul Duke – não é demais mencionar o trabalho
desenvolvido pelo vespertino Jornal da Tarde, que conseguiu romper com
muitas dessas amarras; o do jornal O Pasquim que, sem pedir licença a
nenhuma autoridade driblou a censura com bom humor, ironia e uma turma de
competentes profissionais; além de muitos outros jornalistas que, por já
desfrutarem de certo prestígio na imprensa, atreveram-se a mexer na ferida
alheia e tripudiar da realidade do País, como José Simão e, mais adiante, o
próprio Xico Sá, objeto de nossa pesquisa.
30
1.3.1. Arthur Veríssimo e o caso Trip
Humberto Gessinger estava coberto de razão. O tal do papa é pop mesmo.
Todos os dias, pela manhã, uma verdadeira horda de peregrinos de todas
as partes do mundo comprova a tese do engenheiro havaiano com
romarias na impressionante praça de São Pedro, no Vaticano. A fé é
embalada de tudo que é jeito. Os devotos compram medalhinhas, fotos de
santos e de papas e uma miríade de miudezas ao redor da basílica.
Parece concerto de música clássica com show de dupla sertaneja. E tudo
muito pop. Bento 16 pode não ser tão carismático quanto João Paulo 2º,
mas a praça está sempre tomada – e quando Sua Santidade aparece
numa das janelas do complexo papal é o legítimo deus-nos-acuda. A
muvuca é tanta que nem eu, repórter ph.D. em roubadas, consegui me
aproximar e beijar a mão do Sumo Pontífice. –
Arthur Veríssimo
Em 8 de setembro de 1986 é lançada a primeira edição da Revista
Trip. Num curto período de tempo, a publicação mostra ao que veio ao inovar
no aspecto gráfico, na escolha de pautas (geralmente polêmicas e/ou
comportamentais), e ao inaugurar um novo conceito de ensaios fotográficos
femininos.
Matérias com o ousado efeito 3D, publicação de fotos inéditas, Cds
encartados, campanhas publicitárias contra o tabagismo e o veto aos anúncios
de cigarro foram algumas das descobertas e bandeiras levantadas.
Diversos prêmios ao longo dos anos foram a conseqüência direta do
pioneirismo e da qualidade editorial: foi finalista do Esso de Jornalismo duas
vezes e vencedora uma vez na categoria Criação Gráfica em Revista com a
reportagem Descrimine Já – trabalho sobre a importância da descriminação do
aborto no Brasil, dentre outros.
Um desses fortes exemplos de pioneirismo foi justamente a idéia de
tornar constante na revista a publicação de uma reportagem nos moldes
Gonzo. O fragmento do texto, no alto, escrito pelo repórter especial Arthur
Veríssimo para a edição número 136, de setembro de 2005, cujo título era
Papas na Língua, retrata bem o intuito de Trip.
31
Enviado especial a Roma para “supostamente” entrevistar o recémempossado papa Bento 16, Veríssimo retornou da capital italiana apenas com
“enrolações diversas”, como ele descreve no abre da matéria.
Sua forma de escrever debochada, sarcástica, direta e, sobretudo,
em primeira pessoa, já despontava desde o início como uma inovação e uma
adaptação intencional ao modos operandi de Thompson.
Se, claro, seu feito e repercussão não mereciam a denominação de
inédito no País, pelo menos Trip e Arthur Veríssimo eram dignos de rótulos
como ousados e destemidos – ainda mais se é feita uma análise comparativa
ao que vinha sendo feito nos demais meios impressos nacionais.
Antes de entrarmos no segundo exemplo escolhido para ilustrar
como o Gonzo Jornalismo foi adaptado no Brasil – a Irmandade Raoul Duke –
é importante registrar que foi exatamente na Revista Trip que Xico Sá
começou a exercitar mais livremente o poderio de sua narrativa, trabalhando
como repórter free-lancer da publicação.
1.3.2. A Irmandade Raoul Duke
Como dito anteriormente, um dos maiores entraves para a prática
freqüente do Gonzo Jornalismo na imprensa tradicional sempre foi o conceito
amarrado de objetividade – ao qual ela esteve e está presa. Um exemplo nítido
deste bloqueio ainda hoje é o ideal de isenção, que ela tanto exige no dia-adia.
Partindo desse pressuposto e, não à toa, foi na Internet que
pretensos alter-egos de Thompson começaram a vislumbrar a possibilidade
deles próprios se tornarem repórteres subversivos. Talvez o maior e mais
emblemático caso ainda seja o da Irmandade Raoul Duke, fundada em
meados de 20025.
Desde o uso no título do famoso pseudônimo de Hunter, até a
reunião de “escritores, jornalistas e outros vagabundos da mesma estirpe
interessados em diversos aspectos do gonzo jornalismo”, como afirma o seu
5
Disponível em: < http://planeta.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/home3.html >. Acesso
em: 27 de novembro de 2006.
32
Manifesto6,
a
Irmandade
tentou
exercitar
uma
prática
ainda
quase
desconhecida no País.
Vasconcelos, em sua monografia de conclusão do curso de
Comunicação Social sobre o site, o descreve como “uma iniciativa sem
precedentes no jornalismo brasileiro” (Vasconcelos, 2003: 17), cujo principal
objetivo era publicar artigos, reportagens e entrevistas gonzo. Vale ressaltar
que todos eles, no entanto, respeitando a uma Carta de Princípios –
disponibilizada no mesmo endereço eletrônico do Manifesto mencionado
acima.
Ele lembra que IRD surgiu de uma lista de discussão sobre o tema e
que o seu editor, o jornalista André “Cardoso” Czarnobai7, pegou de
empréstimo o “Cardoso” do nome em homenagem a Bill Cardoso, que cunhou
a expressão Gonzo Jornalismo.
A Irmandade Raoul Duke representa o jornalismo do lapso, da
catarse, da alucinação (voluntária ou induzida), das conexões
oníricas, do raciocínio ilógico, da ironia, do mergulho abissal
do repórter na matéria, da contradição, da contravenção, da
contraposição. Um jornalismo que anda na contra-mão, contra
todos e contra si mesmo. Anti-jornalismo, anti-literatura, antitudo. (Idem, Ibidem: p. 19).
Durante seus três meses de vida – março, abril e junho de 2002 – a
IRD contou com a colaboração da jornalista Paula Pó (pseudônimo), dentre
uma turma de escritores espalhados por todo o País. É de Pó o trecho de uma
reportagem escolhida para ilustrar a produção da Irmandade, cujo título é
FGTS: As letras do Demônio ou Burocracia é Ocultismo de Pobre. 8
Eu achava que já sabia tudo sobre ocultismo até conhecer as
assustadoras letras: FGTS. São quatro inocentes sinais
gráficos que ganham um poder demoníaco quando juntos,
comparável ao 666. Só que enquanto o tal número da besta
atrai as elites, eruditos, diretores de cinema e metaleiros, o
6
Disponível em < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/filo.html >. Acesso em: 28
de novembro de 2006.
7
Autor da monografia de conclusão de curso intitulada: Gonzo – O Filho Bastardo do New
Journalism, que citamos ao longo deste trabalho.
8
Disponível em: < http://paginas.terra.com.br/arte/familiadacoisa/IRD/fgts.html >. Acesso em:
28 de novembro de 2006.
33
FGTS manipula uma massa desdentada, quasímoda, sedenta
por alguns centavos a mais nas suas contas bancárias. (Pó,
2002).
Mesmo, talvez, se assemelhando muito a linguagem autoral e, por
oras,
extremamente
pessoal
e
descompromissada
dos
blogs,
estas
reportagens publicadas na IRD – até por não haver um rígido compromisso
editorial ou por estarem situadas em um ambiente virtual – guardam, de fato,
significativa semelhança com o estilo narrativo do Gonzo, como podemos
perceber.
Ademais, feita esta sucinta conceituação dos primórdios do Gonzo
Jornalismo, da produção de Hunter Thompson, e de como estas narrativas
subversivas ecoaram em terras tupiniquins – no intuito tanto de apresentá-lo
como de conhecer suas especificidades – partimos então rumo a outras
discussões, quiçá tão polêmicas e ousadas quanto; aquelas que dizem
respeito aos limites entre o Jornalismo e a Literatura.
34
2. Jornalismo e Literatura
Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de
fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de
distante, e que se distancia ainda mais. [....] Uma experiência
quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e
desse ângulo de observação. É a experiência de que narrar
está em vias de extinção. São cada vez mais raras as
pessoas que sabem narrar devidamente –
Walter Benjamin
Resguardadas as devidas peculiaridades do texto O Narrador, de
Walter Benjamin, é possível fazer um paralelo entre a constatação apocalíptica
do pensador alemão em relação ao ato de narrar e o atual jornalismo diário, a
que todos estamos sujeitos. Segundo Benjamin – que escreveu o ensaio ainda
em meados do século passado –, a cada dia estamos nos privando de uma
faculdade que sempre nos pareceu inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências. Dito de outra forma: a faculdade de narrar bem os fatos do nosso
dia-a-dia.
As ações da experiência estão em baixa e tudo indica que
continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo.
Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível
está mais baixo do que nunca, e que da noite para o dia não
somente a imagem do mundo exterior mas também a do
mundo sofreram transformações que antes não julgaríamos
possíveis (Benjamin, 1985: 198).
35
Benjamin considera que esta experiência – que ao longo da história
do homem sempre foi repassada de pessoa a pessoa – deveria permanecer
como a grande fonte inspiradora dos narradores. Ele chega a esta conclusão
afirmando, inclusive, que entre as narrativas escritas, as melhores são aquelas
que se assemelham às histórias orais.
Outro ponto mencionado por Benjamin é a dimensão utilitária da
narrativa, que pode vir tanto num ensinamento moral, numa sugestão prática
ou num conselho. Ele adverte que se hoje dar conselhos parece algo
antiquado, isso decorre do fato das experiências estarem deixando de ser
comunicáveis.
O conselho tecido na substância viva da existência tem um
nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a
sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. [....]
Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a
narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá
uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se
desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução
secular das forças produtivas (Idem: Ibidem: 200-201).
Outro indício de que o ato de narrar está se esvaindo surge, nos
primórdios do período moderno, com o nascimento do romance, a partir da
consolidação da burguesia e da imprensa capitalista – um de seus
instrumentos mais importantes. O romance, além de não ter procedência da
tradição oral, não a alimenta, diz Benjamin, que salienta, igualmente, o fato do
romancista ser alguém por natureza com tendência ao isolamento; alguém que,
além de não possuir capacidade para falar exemplarmente de suas
preocupações, não recebe conselhos nem os repassa. Nasceria daí o conceito
de informação que entendemos hoje. Este, no sentido mais superficial possível
do termo.
Essa informação, que exige verificação imediata e tem o dever de ser
plausível, fez com que rareassem os ouvintes dispostos a conhecerem histórias
que vêm de longe – tanto do longe espacial como do longe temporal das
tradições. Ao desaparecer o dom de ouvir, se perdem as histórias e,
automaticamente, desaparecem os futuros narradores. No lugar delas, entra
em cena um bombardeio diário de notícias do mundo inteiro acompanhadas de
explicações, que nem de longe possuem a força germinativa das narrativas.
36
Isso porque enquanto a informação só tem valor em um determinado
período – no qual ela vive e se explica nele –; a narrativa não se entrega, mas
“conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se
desenvolver” (Idem, Ibidem: 204). Sua amplitude, para Benjamin, seria
inúmeras vezes maior do que a da informação.
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios.
Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o
provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode
recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui
apenas a própria experiência, mas em grande parte a
experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais
íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder
contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é
o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração
consumir completamente a mecha de sua vida. [....] O
narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo
(Idem, Ibidem: 221).
Ainda que, como mencionado nas primeiras linhas deste capítulo,
meçamos as diferenças entre a narração vista de uma forma mais ampla e a
narração jornalística com suas implicações, amarras e exigências intrínsecas
ao metiê, vale a pena voltarmo-nos para Benjamin, um dos grandes expoentes
da Escola de Frankfurt, para refletirmos acerca do que ele diz e, assim,
entramos de vez numa discussão tão remota quanto o próprio conceito de
jornalismo.
Afinal, o jornalismo, na ânsia por narrar corretamente os fatos reais,
deve ser considerado um gênero literário? Se não, qual o limite que o separa
da literatura, já que ele também parte da palavra para relatar situações? Até
que ponto os jornalistas estão aptos a lançar mão de recursos estilísticos
próprios da literatura para incrementar, dar consistência e mesmo humanizar
sua narrativa?
Se é mesmo verdade que o ato de narrar satisfatoriamente estórias
cotidianas está se esvaindo, seria possível resgatá-lo por meio da literatura e,
por que não, da tradição das histórias orais? E mais: diante do seu caráter
social, o jornalismo merece o status de subgênero, voltado estritamente para o
óbvio, para a fria objetividade e impessoalidade?
37
Apesar de não termos a pretensão de responder a todas estas
delicadas questões, iremos trazer à tona e discorrer sobre algumas delas na
seqüência, já que consideramos este debate essencial para a compreensão do
jornalismo que vem sendo produzido atualmente – seja nos meios tradicionais,
seja em uma minoria que ousa quebrar com esses padrões deterministas.
De acordo com José Marques de Melo, o jornalismo, por se nutrir do
efêmero e do circunstancial, “exige do cientista maior argúcia na observação e
melhor instrumentação metodológica para que não caia nas malhas do
transitório” (Melo, 2003: 13).
Partindo desse pressuposto, não é difícil admitir que, de fato, para
que se obtenha êxito nessa atividade, será fundamental responder a um
número de questões muito mais amplo do que o universo limitado das seis
perguntas que compõem o conceito de notícia jornalística (fundido,
especificamente, na figura do lead): o quê, quem, quando, onde, como e por
quê.
Em outras palavras, faz-se necessário, além de uma profundidade
apurativa, uma afeição ao produto final e, ainda, ao público consumidor da
informação que está sendo construída. Condições estas que, como
averiguaremos mais adiante, só se atingem por meio de dedicação do
profissional e de um maior aperfeiçoamento da narrativa. (Como podemos ver
no capítulo anterior, tanto o Novo Jornalismo norte-americano, como o próprio
Gonzo Jornalismo, na figura de Hunter Thompson, conseguiram levar às
últimas conseqüências a união entre jornalismo e literatura, causando
polêmicas e abrindo caminhos para inúmeras discussões, como esta que se
apresenta aqui).
Cremilda Medina, em seus estudos acerca da temática, admite que a
própria submissão do jornalismo às empresas e grupos capitalistas que o
mantém impõe certas limitações ao jornalista no momento da apuração e da
confecção da notícia – sejam elas de caráter financeiro ou ideológico. Nada,
entretanto, que legitime a falta de interesse e dedicação de alguns profissionais
no momento de re-transmitir (narrar) as informações que lhe são confiadas.
Para Cremilda, ao se assumir verdadeiramente o papel de
comunicador social é imprescindível se deixar levar por um olhar mais atento, e
38
que tenha o poder de dar ao conteúdo narrado características, sobretudo, mais
humanizadoras. Medina atribui a esse olhar o título de “Olhar Amoroso”.
A humanização das circunstâncias é um dever do mediador
social: a circunstância brasileira não pode ser tratada
exclusivamente por gráficos, balanços numéricos, no
esquematismo das tendências do Poder ou das falas fáceis e
por demais aleatórias do povo na rua. [....] O mediador social –
situado no Jornalismo – tem de exercer as virtualidades de
repórter e se contaminar com o desejo dos artistas. Realista
pelo que se exige na averiguação dos fatos e mítico no que
aspira da compreensão do homem-protagonista desses fatos
(Medina, 1989: 401)
Dito isto, podemos enfim dar partida na discussão em torno das
fronteiras que ainda hoje persistem em bloquear o encontro entre o jornalismo
e a literatura.
Afinal, se para alcançar o tal objetivo de que falam Medina e
Marques de Melo (um jornalismo humanizado e longe das “malhas do
transitório”) é requerido caminhar um percurso muito mais longo do que aquele
a priori proposto pelos pregadores de um jornalismo tradicionalista – e, às
vezes, por conseguinte, monótono –, será permitido, portanto, fazer uso de
técnicas e artifícios provenientes da literatura? Ou será que eles já se
encontram presentes e à disposição do jornalismo, à espera apenas de
competentes profissionais que saibam como melhor utilizá-los?
Fagundes de Menezes observa que o intercâmbio entre jornalismo e
literatura começou a ganhar força a partir do aparecimento dos novos meios de
comunicação, como a TV e o cinema, em meados do século XX. Foi a partir do
momento em que se visualizou a possível concorrência entre os meios que a
exigência de uma reformulação na técnica e no estilo jornalísticos aumentou.
Essa preocupação, segundo o autor, foi responsável pela melhoria
dos padrões de escrita dos órgãos de imprensa. Menezes, que vê com bons
olhos essa união, afirma não existir uma fronteira rígida entre os conceitos de
jornalismo e literatura. O que irá existir sempre, e em ambas as atividades, é
uma maneira errônea e limitada de tratá-las.
Se dizemos que a literatura é a transposição do real, enquanto
que o jornalismo é a realidade em si mesma; se
39
argumentamos que na literatura há o sentido de permanência
ao passo que o jornalismo se prende ao quotidiano, ao
efêmero; se afirmamos que o jornal não dura, e o livro sim; se
ponderamos que o escritor cria e expressa seus próprios
pensamentos, enquanto o jornalista exprime os sentimentos e
as reivindicações da comunidade – ao mesmo tempo em que
verificamos essas distinções, constatamos numerosos pontos
de afinidade entre jornalismo e literatura. E chegamos até à
evidência de que algumas características atribuídas ao
jornalismo com o propósito de diminuí-lo perante a literatura,
também são encontradas nesta. A verdade é que muitas das
deficiências, defeitos de que se acusa o jornalismo, são
próprios do subjornalismo. Como os que se atribuem à
literatura são inerentes à subliteratura. (Menezes, 1997: 20).
Complementando este raciocínio, Fagundes de Menezes chega a
citar inúmeros nomes de jornalistas que exerceram a função de escritor, e viceversa – como Euclides da Cunha, Manuel Antônio de Almeida, Machado de
Assis, entre outros – com o objetivo de constatar que as afinidades e os
vínculos são inúmeros, apesar das peculiaridades e obrigações de cada área.
A questão da liberdade é outro ponto que ele faz menção ao tratar
das semelhanças entre os dois gêneros. Isso porque, na opinião dele, assim
como na literatura, “o jornalismo, sendo um gênero literário, é uma atividade
intelectual inseparável de um clima de liberdade” (Idem, Ibidem: 27).
Alceu Amoroso Lima, um dos primeiros que, antes mesmo de
Fagundes, teorizou acerca da problemática no clássico O Jornalismo Como
Gênero Literário, é outro autor que não atribui ao jornalismo um caráter menor.
Para ele, tudo é literatura, “desde que no seu meio de expressão, a palavra,
haja uma acentuação, uma ênfase no próprio meio de expressão, que é o seu
valor de beleza” (Lima, 1990: 36). Ao jornalismo, apesar das marcas
informação, atualidade, objetividade e estilo, Amoroso Lima reservou o título de
“literatura em prosa de acontecimentos”.
Amoroso Lima chegou a essa classificação, sobretudo, por que em
relação às questões de gênero, o autor opta por uma concepção metodológica
e racional, que não pretende limitar nem prescrever normas fechadas aos
autores, admitindo, assim, fusões na construção de melhores possibilidades
narrativas – ao contrário de muitos antecessores seus que, ao atribuir ao
jornalismo apenas o conceito de efêmero, não o consideravam (e ainda não o
consideram) um legítimo gênero literário. Segundo Lima, “à medida que vamos
40
passando de um gênero a outro, não ocorre um abandono do anterior, mas
uma incorporação ao novo” (Idem, Ibidem: 49).
Nada, no entanto, que encerre o longo e minucioso debate. Após
enumerar os pontos em comum, Amoroso Lima faz questão de mencionar
outro controverso aspecto levantado por um grande número de teóricos que
insistem em refutar o título de gênero literário ao jornalismo. Isso acontece por
que, segundo eles, enquanto na literatura a palavra possui um fim meramente
estético, no jornalismo a recíproca não é verdadeira, já que o essencial sempre
será o relato o mais fiel possível dos fatos. Ou seja, a palavra, no jornalismo,
funcionaria apenas como meio de se atingir um objetivo.
Desta vez, o argumento utilizado por Alceu Amoroso Lima para
manter ativo o debate é a refuta por essa concepção “purista e extremada” dos
gêneros. Para ele, jornalismo pode, sim, ser considerado literatura. Porém,
somente enquanto consiga se expressar verbalmente e dando ênfase aos
meios de expressão.
O jornalismo não é literatura pura, sem dúvida, como é um
poema, no qual a palavra vale apenas como palavra (embora
nele se contenha o mundo) e não como transmissão de um
pensamento ou de uma mensagem. O jornalismo tem sempre
[....] um fim que transcende ao meio. E, por isso, sempre que
esse reduzir o meio (a palavra) a um simples instrumento de
transmissão, deixará de ser jornalismo para ser publicidade ou
propaganda, ou noticiário, ou anúncio. (Idem, Ibidem: 38).
Indo mais além – e aqui o autor dá um suporte importante na
construção argumentativa deste trabalho – Amoroso Lima pontua sobre a
necessidade do modo de dizer no jornalismo, isto é, do melhor aproveitamento
e uso dos recursos (palavras) durante o ato de narrar do jornalista.
Ele não abre mão de lembrar que “pela própria condição de sua
atividade, ligada aos acontecimentos do dia, [o jornalismo] corre o risco de
degenerar em journalesse” (Idem, Ibidem: 57) caso ele se restrinja às
facilidades e ao comodismo. Journalesse, para Amoroso Lima, como sendo
sinônimo de “superficialidade”, “enciclopedismo”, “precipitação”, “ignorância
vaidosa” e “pretensão à onisciência”. Objetivos esses distantes do alvo desta
pesquisa, que visa propor ao jornalismo contemporâneo uma prosa narrativa
41
que, apesar de resguardar suas exigências, possa, ao mesmo tempo,
permanecer emotiva, criativa, sensível e inteligente.
Apesar de toda essa argumentação em favor da aliança entre os
gêneros, Bruno de Aragão Santos, reitera que os tradicionalistas, ainda hoje,
costumam considerar o jornalismo literário uma modalidade de discurso
correspondente à “pré-história” da imprensa, ou melhor, “de uma época em que
o jornalismo ainda não havia alcançado as características que, mais tarde, lhe
forneceriam contornos delimitados” (Santos, 2005: 1). Para ele, após, enfim,
estabelecer-se como gênero informativo, nada mais lhe restou do que a pecha
de subgênero.
Mas a questão não se encerra aqui. Manuel Angel Vázquez Medel
(2005: 16), em artigo sobre as convergências e divergências dos discursos
jornalístico e literário, recorda que problemática remonta ao século XVIII, com a
aparição das revistas culturais, estreita-se no século seguinte, e tem seu ponto
alto no século XX, quando a imprensa passa a publicar boa parte da melhor
prosa em reportagens, crônicas e artigos.
O autor pondera que o debate é de difícil solução igualmente porque
os estudos sobre jornalismo encontram-se numa situação de atraso em relação
às outras áreas da investigação comunicativa.
Ademais, Medel afirma que tanto o jornalismo como as novas
tecnologias vêm influenciando de forma significativa em todos os demais
gêneros narrativos. Segundo ele, essa ligação tem feito com que a literatura se
encaminhe para o “essencial humano”, enquanto a atividade informativa tem
apontado, cada vez mais, para o efêmero, para o passageiro e circunstancial.
Tudo isso, enfim, para Manuel Angel, tem embocado em um jornalismo raso,
sem profundidade e desinteressante, baseado apenas na objetividade
declaratória e na superficialidade – constatação essa que Benjamin já
observava há algumas décadas atrás e que nós, a cada dia, verificamos com
mais clareza e discernimento.
Retornando à polêmica que questiona se jornalismo deve se
enquadrar na categoria de gênero literário, Nanami Sato também opina,
explicando que tanto quanto a literatura, o jornalismo irá sempre exigir do
profissional uma melhor utilização dos recursos narrativos, independentemente
de seus fins.
42
Relatar acontecimentos significa construir um texto narrativo,
uma atividade que Barthes (1973) já qualificou de simbólica e
universal. A narrativa jornalística parece contígua ao fato, mas,
ao se transformar em notícia, o acontecimento torna-se um
texto submetido às categorias narrativas. As variações de
jornal para jornal refletem a angulação de cada veículo, a
edição, a relação repórter-realidade e variantes do universo de
narração (Sato, 2005: 32).
Outro aspecto que merece destaque nesse embate acerca do
jornalismo contemporâneo é que, normalmente, nas narrativas diárias,
observamos um “ideal de expressão (conteúdo) máxima com expressividade
(forma) mínima” (Idem, Ibidem: 51).
Isso decorre, de acordo com Juremir Machado da Silva (2005: 50),
do fato do jornalismo, costumeiramente, querer dizer muito com pouca
literatura.
Constatação esta que, para Gustavo de Castro, tem levado o mesmo
a uma situação “agonizante”. Castro seleciona como saída “voltar a investir na
narração, ou na velha fórmula da boa história a se contar, sem, contudo, deixar
de mesclar a velha regra do lead [....] a outras técnicas” (Castro, 2005: 77).
Para que isso aconteça, existem diversas implicações, como ele
sugere. Uma delas é a maior profissionalização dos jornalistas, que devem
possuir um vasto conhecimento gramatical. Posteriormente, saber narrar uma
boa história. Além de dispor de recursos que consigam prender a atenção do
leitor desde a primeira linha.
Não é nada simples o desafio que o jornalismo contemporâneo
parecer ter de enfrentar, para adaptar-se aos tempos,
avançando em complexidade e riqueza. Há, nesse desafio, um
apelo contundente por novas narrações que parece advir da
própria noção de realidade, que o jornalismo almeja conhecer
tão bem. Para a narração, sabemos, exige-se um
desprendimento gradual, um despojamento progressivo e uma
entrega crescente à andadura que se estabelece, quase
autonomamente. [....] Bem que o jornalismo poderia ter certa
autonomia estética, a exemplo da literatura, mas as limitações
de
espaço-tempo
fazem
com
que
ele
pratique
permanentemente o salutar exercício do enxugamento, da
síntese e da rapidez, e talvez seja essa precisão o que tem a
ensinar à estilística literária. (Idem, Ibidem: 78-79).
43
Como podemos observar, em se tratando da rica e controversa
relação entre jornalismo e literatura, há muito ainda que ser visto e
pormenorizado. O debate está longe do fim e este trabalho, de maneira
alguma, se presta a dogmatismos.
Mais do que encontrar uma resposta para a pergunta “Jornalismo
pode ser considerado um gênero literário?”, buscamos analisar outras e mais
férteis formas narrativas, que só têm a incrementar o jornalismo diário, ao se
apoderarem de recursos originais da literatura. Afinal, como diria Cremilda
Medina, “O real pulsante não pode ser transposto para uma ata de ritmo
previsível da primeira à última informação” (Medina, 1989: 414). E nem deve, já
que visa a ser um importante intermediário social.
Sendo
assim,
na
seqüência,
selecionamos
alguns
pontos
considerados alicerces para esta argumentação. A nosso ver, devemos lutar
por um jornalismo mais atento e vivaz, que fuja ao prosaico discurso
declaratório, frio e objetivo, que constatamos entediados, nos principais meios
de comunicação a nosso dispor.
Como já mencionado anteriormente, uma das bases de nossa
argumentação se encontra no gênero inaugurado por Hunter Thompson e
seguido por diversos jornalistas ao redor do mundo, como é o caso, aqui no
Brasil, de Xico Sá, nosso objeto de pesquisa.
2.1 – Subjetividade versus Objetividade
E agora, José? –
Carlos Drummond de Andrade
É preciso, antes de qualquer coisa, reiterar que, no jornalismo,
objetividade é um dos principais preceitos – ao lado de atualidade, veracidade,
clareza, periodicidade, instantaneidade, entre outras variadas características.
Concordamos, inclusive, que ao fugir displicentemente dela, fugimos
igualmente da meta-mor do jornalismo, que é narrar satisfatoriamente algo
advindo do real, do palpável.
Entretanto, por outro lado, justificamos a escolha de tal problemática
– que a priori pode parecer infértil – devido a um questionamento que para nós
44
é assaz pertinente: até que ponto esse conceito pode ser levado a cabo? Isto
é, a objetividade no jornalismo deve mesmo carregar um pretensioso e
limitador “status de verdade tácita”, como nomeia Medina (1988: 20), ao tratar
das amarras que o título impõe?
Já que partimos do pressuposto de que para construir narrativas
mais aprofundadas e prazerosas é preciso fazer um melhor uso de recursos
literários, acreditamos ser pertinente debater esse conceito, tão duvidoso e
controverso quanto aquele que norteia os dilemas entre os gêneros jornalismo
e literatura.
Medina lembra que “como o repórter está sujeito a uma observação
perceptiva pouco objetiva, a única solução teórica é pregar certos cuidados
técnicos” (Idem, Ibidem, 20). No entanto, é ela mesma, mais à frente, que
adverte:
Ao lidar com a pauta e construí-la até o ponto de a executar
na reportagem, sua cosmovisão será fundamental. Se agir
frente à pauta com critérios monoléticos (verdade absoluta,
causa e efeito, sujeito e objeto, universo sólido, massa
indestrutível, substância e acidente etc.), encaminhará todo o
trabalho para provar o que antecipadamente já está provado
na sua mente. [....] Se agir de modo complexo, não terá teses
(em geral uma tese) apriorística, mas abrirá a lente da sua
cosmovisão para as múltiplas possibilidades que in-formam a
pauta (Idem, 1989: 402).
Em relação especificamente à entrevista, Cremilda alerta que ela
“não pode restringir-se a extrair informações objetivas do real aparente” (Idem:
Ibidem: 405), posto que hoje já existem formas eficientes de se conseguir isto,
como nos bancos de dados informatizados das redações.
Para ela, a tecnificação objetiva da entrevista suga, assim como
anula a criatividade. A subjetividade é vista, destarte, como imprescindível no
âmbito das interações humanas, mesmo (e quiçá ainda mais) em se tratando
do universo jornalístico.
A fusão do narrador com o fato narrado não escapa ao olhar atento
da autora no livro Notícia: Um Produto à Venda. Ela afirma que os jornalistas
ainda hoje estão tentando diluir de maneira satisfatória, numa única e coesa
construção, as explicações – ora redundantes, ora didáticas – que permeiam a
45
ação narrada. Para ela, essas quebras de estilo são violentas e acabam muitas
vezes por aniquilar o produto final (Idem, 1988: 117).
O uso convencionado da terceira pessoa também é posto em xeque
por Cremilda Medina, já que esse tempo verbal – que pretende partir de um
olhar distanciado, onipresente e onisciente – seria insuficiente para reger uma
boa narração. Sem falar que, em determinadas situações, ele se tornaria até
mesmo entediante. “A terceira pessoa ‘objetiva’ lhes é cômoda e corresponde
à expectativa oficial, inclusive da maioria das empresas jornalísticas que
alegam ser este o ponto-de-vista mais legível” (Idem, 1989: 417).
A respeito do importante papel a desempenhar do narrador, Vargas
Llosa, por sua vez, sustenta que a escolha do local onde se colocar (dentro da
história, fora dela ou numa posição incerta) irá determinar igualmente as
condições a que o mesmo terá que se sujeitar na hora de narrar, “o
desrespeito às quais acarretando um efeito lesivo, destruidor, sobre o poder de
persuasão” (Llosa, 2006: 73). Poder de persuasão que, para Llosa, é uma das
molas-mestras da atividade romanesca e, por que não, da atividade jornalística
– já que esta trabalha mais diretamente com uma suposta realidade verificável.
De fato, ao pensarmos sobre a obrigatoriedade de uma construção
que se diz objetiva e impessoal, não podemos fugir de outros e relevantes
pormenores. Nanami Sato percorre todo o caminho da representação (ou
substituição) do real – feita no jornalismo por meio de signos lingüísticos - para
chegar à conclusão de que essa mesma representação, por si só, já se mostra
bastante complexa, ao contrário do que se pode crer.
Diz ela que, mesmo quando se objetiva a mera representação, é
impossível prever, em decorrência da subjetividade inerente a cada indivíduo,
como o resultado irá atingir diferentes outros receptores. O uso da terceira
pessoa, para ela, também não é menos complicado, já que ele desestabilizaria
o ideal de objetividade por “introduzir tempos diferentes, o do mundo narrado e
o presente da narração” (Sato, 2005: 42).
E mais: essas amarras da objetividade, segundo Sato, quando mal
executadas, ainda correriam o grave risco de resvalar em um percurso
indesejado pelo jornalista.
46
A vocação da notícia é representar o referente, o que torna a
notícia, em princípio, verificável. Ao exigir-se do jornalista o
uso da terceira pessoa que garantiria formalmente a
impessoalidade do discurso, tem-se como resultado um
discurso esvaziado, que acaba por ocultar o processo social
que possibilitou a notícia. [....] Apesar da vocação para o ‘real’,
o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais: ao
causar a impressão de que o acontecimento está se
desenvolvendo no momento da leitura, valoriza-se o instante
em que se vive, criando a aparência do acontecer em curso,
isto é, uma ficção. (Idem, Ibidem: 31).
Dito de outra maneira por Machado da Silva, escrever é, sobretudo,
dar forma. Sendo assim, às vezes, para atingir melhor o alvo (ou escrever
melhor), fazem-se necessárias formas inesperadas – quiçá abrir mesmo mão
do sentido denotativo para dar vez ao conotativo. Isso porque, já que o
jornalismo precisa ser dito de maneira que se perca o mínimo de conteúdo, é
provável que, em algumas ocasiões, se chegue à melhor solução narrativa por
meio do que ele chama de “deformações eficazes”.
No jornalismo, claro, nem tudo pode ser tão obscuro. Cabe ao
profissional descobrir a medida da deformação necessária
para dar forma expressiva a um conteúdo bruto. Escrever é
expressivo ou inexpressivo? Em se tratando de literatura, o
inexpressivo pode ser um estilo. Em jornalismo, ser
expressivo é mais do que uma exigência: um imperativo. Por
isso, o jornalismo não pode viver sem a consciência da
literatura. É no exercício prosaico que se aprende a
matemática da expressão. Da ambigüidade compreendida
retira-se a objetividade verossímil. [....] O engano maior
consiste em pensar que o jornalismo se situa no campo da
expressão (em oposição à expressividade), enquanto a
literatura (expressividade) pode abrir mão da expressão.
Fantasias. Positivismo. Ficções. (Silva, 2005: 50-51).
Para encerrar por ora o tópico, nos resta tecer alguns breves
comentários a respeito desta investigação. Como supracitado, embora
admitamos que o fazer jornalístico pressupõe certa dose de pragmatismo
técnico, mesmo assim fica claro que nem por isso as narrativas devem vir
permeadas de restrições impositivas, que nada mais fazem do que podar a
criatividade do repórter ao pregar retrógradas fórmulas feitas.
Fica claro igualmente, por conseguinte, a inexistência de uma única
e objetiva verdade, que deverá ser dita de uma exclusiva e correta maneira. Ao
47
visar a um incremento narrativo, que supra e represente satisfatoriamente o
real, portanto, o essencial não será o uso obrigatório da terceira pessoa, nem
de recursos que mascarem um ideal de impessoalidade.
A conclusão a que chegamos é que o importante será sempre valerse competentemente de recursos expressivos. Esses devem visar, enfim, não
apenas à informação mais fiel possível da realidade, mas igualmente ao prazer
fruitivo. Tudo é complementar e caminha para o mesmo fim. Outro detalhe
fundamental é aceitar que a subjetividade, mais do que uma escolha estilística
e narrativa, é inerente ao ser humano e essencial na confecção de seus pontos
de vistas.
2.2 – Apuração Participativa
O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia –
Guimarães Rosa
Como foi possível observar no primeiro capítulo – ao tratarmos das
características tanto do Novo Jornalismo quanto do Gonzo Jornalismo – a
qualidade e intensidade do processo apurativo irá influenciar sempre, e
sobremaneira, a narrativa. No caso específico do Gonzo, essa captação – que
deve contar necessariamente com uma presença ativa do jornalista –, se
destaca por ir às últimas conseqüências. Isto é, ela chega ao ponto de permitir
que o jornalista não apenas teça comentários pessoais acerca do seu objeto,
como também deixa que ele divague e fuja livremente de um único e
delimitado tema a priori sugerido ou proposto por seu editor.
Mas não são os excessos que nos interessam aqui. Longe de propor
ao jornalismo diário que se deixe extrapolar nesse sentido (como o fez Hunter
Thompson e muitos outros), e que siga na contramão dos preceitos
jornalísticos, visamos a trilhar um percurso que possa nos dar, por outro lado,
suporte para que atinjamos, enfim, um melhor nível tanto de conteúdo quanto
de forma em torno das narrativas.
48
Afinal, de que adianta ser bom conhecedor das regras gramaticais e
fazer bom uso dos recursos literários se, no contato direto com os nossos
diversos interlocutores (o primeiro passo de tudo), o repórter não se entrega e
não se deixa levar pelo o desconhecido, pela voz do outro?
O argumento é que partir de pressupostos, de questionários
fechados, ou mesmo de retrógrados manuais de redação, neste momento – a
nosso ver crucial – será sempre uma porta aberta para que a narrativa caia
senão na defasagem informativa, na mesmice (e por que não dizer na chatice).
Meta essa oposta à nossa.
O cuidado e o refino na apuração dos fatos, e a percepção das
sutilezas, como sintetiza Czarnobai (2003), são alguns meios de se obter
sofisticadas técnicas narrativas – como a descrição minuciosa de ambientes
abundantes de juízos de valor e mesmo monólogos interiores. Tudo isso sem,
no entanto, precisar fugir de forma comprometedora das obrigações para com
o relato jornalístico. Afinal, ambas devem andar de mãos dadas.
Czarnobai chega a citar a entrevista, o contato com o outro, como
essencial neste processo: “É somente através dela que o repórter toma
conhecimento dos mais íntimos detalhes físicos e psicológicos que vão ajudar
a construir os seus personagens” (Idem, Ibidem). E isso, claro, demanda
tempo e esforço. Displicência, preguiça, comodismo e pautas resolvidas por
meio da impessoalidade do telefone das redações, devem ser abolidas, caso
se busque verdadeiramente esse alvo.
O autor só abre um parêntese para lembrar que enquanto no Novo
Jornalismo a entrevista é imprescindível, no Gonzo ela se torna quase
acessória, já que o protagonista da ação é, na maioria dos casos, o próprio
repórter, que se deixa levar integralmente pela história para, somente depois,
sentar-se diante de seus computadores.
Cremilda Medina atribui a mesma importância a essa fase de
apuração dos dados, que antecede a construção narrativa. Para ela, o
mediador social precisa se colocar discreta, mas decisivamente na mediação
(1989: 402). Essa “observação participante”, como ela nomeia, proporcionaria
um
alargamento
de
perspectiva
significativamente o produto final.
da
pauta,
o
que
incrementaria
49
O que se torna imperativo é abrir os poros e se deixar
embeber de um tônus participativo, ao contrário do que
pregam os arautos da fria objetividade. Com isso não quero
dizer que um emocional e desgovernado repórter saia a fazer
comício na reportagem política ou pratique a prostituição para
desenvolver uma matéria sobre AIDS. [....] Observação
participante é, pois, uma abertura para a compreensão destes
comportamentos. Para constituir tal aparato, é preciso, para
além do acúmulo de experiências práticas, um projeto de
aperfeiçoamento. (Idem, Ibidem: 403).
É esse aperfeiçoamento que grande parte dos repórteres que estão
na ativa – acomodados pelas condições muitas vezes precárias das redações
ou mesmo desestimulados devido aos baixos salários – precisa ter em mente,
se pretendem sair do lugar-comum, do discurso entediante e que facilmente
dispersa o leitor. Jornalismo de verdade, feito por quem se pretende um
mediador social, requer um exaustivo e minucioso trabalho, em todas as
etapas. Somente a partir deste esforço, às vezes aprazível, noutras penoso,
será possível desfrutar do reconhecimento próprio e dos leitores.
Experiência essa que viveram intensamente tanto os novos
jornalistas, como Thompson e muitos dos pretensos seguidores do Gonzo.
Estes, vale a pena puxar na memória, tinham como hábito conviver dias,
semanas, meses e anos com suas fontes, antes de ousar escrever uma linha
sequer, num exemplo de que para se produzir competentemente qualquer tipo
de narrativa é preciso sair a campo, fuçar, investigar, destrinchar situações e
personagens.
Ao que nos consta, todavia, esse tipo de construção se encontra
apenas como um ousado e peculiar capítulo da história do jornalismo.
Jornalismo este que, atualmente, como diagnosticamos, tem pressa e vem,
cada vez mais, menosprezando a riqueza contida numa apuração que
optamos por chamar de participativa, já que ela clama por jornalistas ativos e
corajosos, envolvidos ao longo de todo o processo; desde a confecção da
pauta, escrita, até a sua edição.
50
2.3 – Amplitude de vozes: abram alas para o discurso
polifônico
Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou
na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando
constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse
possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo
dos olhos, e principalmente assim: tu, mulher loura eram as
nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus
nossos vossos seus rostos. Que diabo –
Julio Cortázar
Entrando mais incisivamente nos recursos da prosa romanesca para
refletirmos e propormos aprimoramentos à prosa jornalística – que Amoroso
Lima chamou de “prosa de acontecimentos” – nos deparamos com o conceito
de polifonia, do russo Mikhail Bakhtin.
Segundo Bakhtin, existem duas possibilidades de romance: o
monológico e polifônico. Enquanto o primeiro privilegiaria o autoritarismo e o
acabamento; o segundo trabalharia em torno de uma “realidade em formação,
inconclusibilidade, não acabamento, dialogismo” (Bezerra, 2005: 191).
Essa inconclusibilidade, destarte, como sendo um reflexo do gênero
em
constante
transformação,
cujos
próprios
personagens
partissem
constantemente de um processo evolutivo, jamais estanque. Dialogismo, por
sua vez, como pregando a refuta da existência de uma autoria individual, já que
o diálogo em si já possui um caráter coletivo.
Na ótica da polifonia, as personagens que povoam o universo
romanesco estão em permanente evolução. O dialogismo e a
polifonia estão vinculados à natureza ampla e multifacetada do
universo romanesco, ao seu povoamento por um grande
número de personagens, à capacidade do romancista para
recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzida na
multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica
representada (Idem, Ibidem: 191-192).
Mas a mente limitada e condicionada a concepções deterministas
pode indagar, inconformada: e o que o romance tem a ver com o jornalismo?
51
Ora, mesmo que a priori, numa conceituação assaz simplória, disséssemos
que nada existe em comum entre os dois, ainda assim poderíamos argumentar
que o romance tem, sim, muito a acrescentar ao fazer jornalístico –
especificamente se verificarmos atentamente o que temos a ganhar com a
idéia de um discurso polifônico.
É só pensarmos que, se para construir eficientes e prazerosas
narrativas – como diagnosticamos até o momento –, é primordial fugir das
trincheiras que podam nosso aprofundamento e criatividade, chegamos à
conclusão de que essas trincheiras são aquelas mesmas presentes no
romance monológico, que tende sempre a “coisificar” seus relatos. Ou, em
outras palavras, que prima por um único centro irradiador da consciência; por
uma única voz ativa e um único ponto de vista, chegando a tratar inclusive o
outro como mero objeto da consciência do “eu” – já que acredita estar apto a
comandar tudo sozinho.
As possibilidades de utilização do dialogismo, na forma da polifonia,
além de incrementar o discurso, têm o poder de libertar o indivíduo. Por isso, é
importante sempre termos em mente, ao descrevermos um personagem numa
narrativa jornalística que
O ‘homem no homem’ não é uma coisa, um objeto silencioso;
é outro sujeito, outro ‘eu’ investido de iguais direitos no diálogo
interativo com os demais falantes [....]. Do autor que vê,
interpreta, descobre esse outro ‘eu’, isto é, descobre o homem
no homem, exige-se um novo enfoque desse homem –
enfoque dialógico. É essa, precisamente, aquela posição
radicalmente nova que transforma o objeto, ou melhor, o
homem reificado, em outro sujeito, em outro ‘eu’ que se autorevela livremente (Idem, Ibidem: 193-194).
Ao lançarmos o olhar em torno dos personagens trazidos do real
para a narrativa de Hunter Thompson, Tom Wolfe, Truman Capote, Gay
Talese, entre inúmeros outros habilidosos jornalistas, averiguamos ser possível
pôr em prática tal concepção. Esses autores, a nosso ver, chegam até mesmo
a nos apresentar aos seus personagens. Porém, todo o percurso em torno do
juízo de valor que teremos deles (se simpatizaremos ou não, por exemplo) fica
exclusivamente a nosso cargo. Isso se dá porque eles, ao invés de falar pelo
outro, fazem questão de permitir que cada um “use sua linguagem, seu estilo,
52
sua ênfase” (Idem, Ibidem: 196). E isso se faz especial por que serão
justamente esses personagens advindos da realidade que darão sustentação à
narrativa. De nada adiantará atingir o ápice no uso de elementos estéticos, se
depois a parcela de humano não possuir consistência.
Nos textos polifônicos, cujo processo de comunicação é interativo,
como prega o dialogismo, o autor consegue a façanha de se ver e se
reconhecer no outro e na imagem que o outro faz dele. Tudo isso, segundo
Bezerra, visa a conhecer o homem em sua verdadeira essência como um outro
“eu”
único,
infinito
e
inacabável.
O
diálogo
aqui
deve
acontecer,
impreterivelmente, em pé de igualdade e, mais uma vez, só se atinge tal
nivelamento com muita entrega e dedicação por parte do mediador.
Colocando mais lenha na fogueira, Cristovão Tezza, em ensaio sobre
prosa e poesia em Bakhtin, indaga em que sentido é válido aceitar que um
prosador abdicará de sua autoridade assim tão altruisticamente para dar vez ao
outro. Para ele, isso ocorre porque
No quadro bakhtiniano o ato de escrever é a atualização de uma relação
entre sujeitos ou imagens de sujeitos [....]. Esse princípio fundador dialógico
não é característica simplesmente da literatura, mas traço indissociável da
linguagem. Assim, falar ou escrever é instaurar, antes mesmo de um
diálogo externo, um diálogo interno (Tezza, 2003).
Isto é, embora o conceito de “abdicação à autoridade” possa soar, a
priori, absurdo, o que pretendeu dizer Bakhtin foi que, na verdade, em se
tratando da construção do romance, o que se dá é que o autor “coloca o centro
significante de sua linguagem na perspectiva do outro; é a perspectiva do outro
que lhe interessa” (Idem, Ibidem). E é isso que deve sempre ser privilegiado
em jornalismo.
A atenção de Medina acerca da crise por que passa nossa profissão
também resvalou no conceito de Mikhail Bakhtin. Cremilda acredita que é
necessário abrir-se para a polifonia e, ainda, para a polissemia. Segundo ela, a
amplitude polifônica e polissêmica é uma forma de neutralizar o pseudopluralismo de vozes – já que a precisão do relato não se resolve na
esquemática resposta: a quem, o quê, quando, onde, como e por quê.
53
Monta-se, no relato convencional, a contraposição de pontosde-vista, um a favor e outro contra; vende-se este relato como
Jornalismo maduro, aquele que cultiva a controvérsia e o
conflito. Este maniqueísmo está longe de sugerir uma
cosmovisão complexa. Os conceitos ou interpretações, as
situações e as emoções e mitos não cabem em
bipolarizações. A palavra-revelação da literatura se tece na
complexidade, na ambigüidade. Se a palavra jornalística
pretender o mínimo possível de profundidade tem de ir ao
encontro da polifonia (Cremilda, 1989: 420).
Ou seja, chegamos a mais um consistente argumento de que para
que haja um aprimoramento das técnicas narrativas em jornalismo, devemos
abrir alas, de fato, para um discurso substancioso, pluralista, e que não se
restrinja jamais a ele próprio, às vozes selecionadas pelo autor.
Como mediador social que é, o jornalista deve, sim, apreender e
perceber corajosamente e despojadamente o outro durante essa relação
dialógica para, somente a partir daí, transformá-lo e recria-lo em palavras. Só
assim teremos a oportunidade de ver representado nas páginas dos jornais
relatos humanizados e substanciosos, capazes de chamar e prender a nossa
atenção, da primeira a última linha.
2.4 – Crônica: o híbrido perfeito?
Posso prometer ser sincero, mas não imparcial –
Goethe
Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a
prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis. –
Vinicius de Moraes
De acordo com Massaud Moisés (1967: 101), no início da era cristã,
a crônica (do grego chronikós, relativo a tempo) limitava-se a registrar sem
profundidade os eventos sociais. A partir da Renascença, o termo passou a
ceder lugar para a “história” e, somente a partir do século XIX, que a crônica
seria empregada na acepção moderna – com um sentido literário e
beneficiando-se da imprensa como meio difusor.
54
Entrando especificamente no mérito de sua gênese, Moisés lembra
que muito se tem discutido, ao longo da existência da crônica, se ela poderia
ser considerada uma expressão literária tipicamente brasileira. Discussão esta,
segundo o autor, ociosa e sem relevância. Apesar de ele recordar que, no
Brasil, a crônica tenha assumido um caráter sui generis, já que foge ao sentido
histórico para abraçar o humor, a fantasia e a prosa poemática.
Segundo Massaud, para compreendermos bem a crônica também
devemos pensar no seu principal veículo de suporte: o jornal (ou revista).
Moisés separa em duas categorias o texto lingüístico publicado em jornais:
aquele que cumpre meramente a função de informar; e aquele que não se
prende, unicamente, aos fatos cotidianos.
Sendo assim, o autor chega à conclusão de que a crônica é um tipo
de expressão ambígua, já que se moveria entre o ser no e para o jornal. Ela
teria como objetivo transcender o dia-a-dia e ser o poeta do cotidiano, diferindo
do autor de ficção no sentido de que reagiria de imediato ao acontecimento,
sem permitir que o tempo lhe filtrasse impurezas.
A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a literatura, entre o
relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento
trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia. No
primeiro caso, a crônica envelhece rapidamente e permanece
aquém do território literário: na verdade, a senescência
precoce ou tardia de uma crônica decorre de seus débitos
para com o jornalismo stricto sensu. (Idem, Ibidem: 105).
Ou seja, embora a crônica se gabe de fazer amplo uso dos recursos
literários, de nada isso lhe adiantará caso ela se restrinja ao fantasioso, posto
que ela se pretende atual e está sendo veiculada em jornais diários.
Continua Massaud: “o tom de reportagem, de história presente, é
dado pela linguagem, predominantemente referencial, destinada antes a
comunicar uma informação que a expressar os produtos da fantasia criadora”
(Idem: Ibidem: 105). Para ele, em suma, estaríamos diante de um “fiapo de
prosa não-literária” ou ainda, diante de uma “obra elaborada sem o atropelo do
jornal, visando a persistir e a ofertar ao leitor um prato sempre renovado e
pleno de sugestões” (Idem, Ibidem: 108).
55
Em relação às características da crônica, Moisés não esquece de
mencionar o seu caráter subjetivo. Isso porque, como é sabido, o seu foco
narrativo se situará sempre na primeira pessoa do singular. A impessoalidade
na crônica, portanto, não é algo apenas distante, mas é algo sumariamente
rejeitado pelos cronistas – já que “é a sua visão das coisas que lhes importa e
ao leitor” (Idem: Ibidem, 116). O leitor aqui como sendo peça-chave nessa
relação dicotômica já que, como explica Massaud, enquanto o cronista, em
monodiálogo, se oferece ao leitor, este é conduzido por uma afinidade eletiva,
proposta pelo autor da crônica.
Feito este breve panorama da crônica, não é difícil encontramos
semelhanças entre ela e o jornalismo que buscamos (mais vívido, aprofundado
e que fuja aos supostos ideais de objetividade e impessoalidade) ou, senão,
apenas, alguns argumentos em favor desse híbrido de funções jornalísticas e
literárias.
E que fique claro, mais uma vez, que o nosso intuito aqui não é o de
abolir os preceitos convencionados de jornalismo. Longe disso, pretendemos
acender a discussão em torno de melhorias e incrementos do metiê jornalístico,
unicamente por acreditarmos na sua função social e mobilizadora. Nesse
sentido, a crônica, a nosso ver, apesar de figurar entre os gêneros da categoria
jornalismo opinativo, tem muito a nos ensinar.
Retomando as características do gênero, Antonio Candido afirma
que a crônica não pode ser, de fato, considerada um “gênero maior”. Porém,
mesmo assim, para ele, ela tem o poder de elaborar uma linguagem próxima
ao nosso modo de ser natural. Em outras palavras, “Na sua despretensão,
humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira,
recuperar com a outra mão uma certa profundidade de significado e um certo
acabamento de forma” (Candido, 1992: 13-14).
Candido atribui ao decênio de 1930 a consolidação da crônica
moderna no Brasil, como um gênero de contornos próprios. Cita, entre seus
principais mestres: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade e Rubem Braga. Nestes dois últimos, especificamente, Antonio
Candido observa a confluência da tradição clássica com a prosa modernista
(Idem, Ibidem: 17).
56
Outro mérito da crônica seria a busca pela oralidade na escrita, “isto
é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo
de ser do nosso tempo” (Idem, Ibidem: 16). Essa leveza poderia, inclusive, em
muitos casos, comunicar mais do que estudos intencionais e burocráticos.
José Marques de Melo (2002: 139), tratando de classificá-la de
maneira mais delimitada, afirma que devemos compreendê-la como um gênero
do jornalismo contemporâneo, com raízes tanto na história como na literatura.
Segundo ele, ela teria chegado aos jornais diários por meio de escritores que
ocupavam os bancos das redações dos jornais. Para Marques de Melo, assim,
os cronistas teriam sua atividade dividida entre o registro de fatos recheados de
lendas e mitos, e a história narrativa de ocorrências baseadas no real.
Mesmo admitindo a latinidade do gênero, o autor chega à conclusão
de que enquanto no jornalismo hispano-americano a crônica configura-se como
gênero informativo, no jornalismo luso-brasileiro ela adquire função opinativa
(Idem, Ibidem: 142). Isto é, por apreender o significado dos acontecimentos,
ironizá-los e dar-lhes uma dimensão poética ao invés de reconstituí-los, o seu
lugar cativo, no jornalismo nacional, seria o das páginas de opinião, de onde
informa sobre as atualidades e, ainda, as narra de forma poética.
Ademais do lirismo que o cronista empresta ao resgate de
nuanças do cotidiano, sua matéria contém ingredientes de
crítica social, donde o seu caráter é nitidamente opinativo. É o
palpite descompromissado do cronista, fazendo da notícia do
jornal o seu ponto de partida, que dá ao leitor a dimensão sutil
dos acontecimentos nem sempre revelada claramente pelos
repórteres ou pelos articulistas. (Idem, Ibidem: 150).
Gerson Tenório dos Santos9, por sua vez, diz que esse tom de
conversa irá se acentuar na história a partir de João do Rio, que é quando a
crônica se torna igualmente mais literária. Para ele, por fazer referência ao
mundo oral, a crônica deve ser classificada como um gênero primário. Nada,
todavia, que comprometa o seu caráter híbrido.
9
Artigo apresentado durante o X Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (Abralic), que aconteceu no período de 31 de julho a 4 de agosto de
2006, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (Uerj).
57
Sua natureza poética, reflexiva, humorística, solta e afasta
claramente dos gêneros secundários que caracterizam o
discurso jornalístico – pretensamente objetivo e parcial – e a
aproximam do caráter subjetivo, envolvente, polimórfico e
dependente do contexto que caracterizam os gêneros
primários. Neste sentido, é possível dizermos que a crônica,
por ser um texto escrito publicado num grande meio de
comunicação de massa como o jornal e a revista, porém
tendente a uma feição de gênero primário, é um gênero
híbrido. (Santos, 2006).
Santos também discute a presença da polifonia nas crônicas, já que
para ele, trata-se de um texto criado não a partir de uma situação protótipa,
mas dinâmica, no sentido que marca a vida, em suas situações conflitivas.
Crônicas, em sua análise, também seriam construções inconclusas, de diálogo
aberto, com a realidade em constante formação.
A crônica, apesar de ter sido considerada um gênero menor,
tem se mostrado como um dos mais polifônicos de nossa
literatura. [....] Seus temas e estilos múltiplos não só revelam o
lado cômico e distante, como convém a um texto polifônico, de
nosso cotidiano marcado pela desigualdade social, rapidez,
falta de tempo e outras mazelas da sociedade massificada
pouco afeita à crítica social. A crônica, com seu caráter
ambíguo e intersemiótico, preenche este espaço e convida o
leitor a um olhar mais arguto (Idem: Ibidem).
Isto é, mesmo que, como citado acima, subtraiamos a necessidade
de não largar mão displicentemente dos principais preceitos jornalísticos,
podemos observar na crônica muitas das características que consideramos
essenciais para a construção textual de narrativas mais aprazíveis e que fujam
à mesmice do discurso relatorial que tem se transformado nosso jornalismo
diário. Ou, como diria Sato (2002: 34), a crônica é uma arma na captura do
interesse do leitor, convidando-o para um tipo diferente de mergulho no real,
mais ameno e prazeroso, quiçá mais real.
2.5 – Revistas, magazines, semanários e suplementos:
suportes possíveis?
58
Existem outros mundos, e estão neste –
Paul Éluard
A melhor notícia não é a que se dá primeiro, mas a que se dá melhor –
Gabriel García Márquez
Como é sabido em jornalismo, cada meio possui suas características
e funções. Sendo assim, irá abranger e/ou estará apto a dar suporte
exclusivamente a determinados tipos de construções narrativas – o que,
geralmente, acontece até mesmo de forma convencionada.
No jornalismo diário – com exceção dos segundos cadernos, grandes
reportagens, crônicas, entre outras possibilidades –, será sempre mais raro
observar textos que fujam consideravelmente ao convencional esquema do
lead.
Não à toa, os leitores que se aprazem por um jornalismo
diferenciado já possuírem um prévio conhecimento de causa e, portanto,
conseguirem distinguir bem a leitura quotidiana, meramente informativa, da
leitura
do
deleite,
que ele
encontrará
mais
facilmente
em
revistas
especializadas e suplementos (em sua grande maioria, dominicais).
Seguindo nesta linha de raciocínio, o leitor mais atento e criterioso,
ao fazer um paralelo entre estas duas formas de jornalismo, poderia questionar
a razão dessa fragmentação tão incisiva. Não seria absurdo inclusive ele
indagar se a culpa não seria daqueles profissionais que se encontram no
batente diariamente. Seria comodismo? Falta de condições estruturais?
Restrições mercadológicas?
Antes de entramos propriamente no debate, é importante mencionar
que admitimos que o fazer jornalístico diário tem pressa e que, portanto, não
teria por onde repetir os passos da turma do Novo Jornalismo, por exemplo. O
quadro escasso de profissionais nas redações, também é notório, é outro
grande entrave nesse sentido – e este não é um problema de simples
resolução. Ademais, aceitamos de bom grado igualmente que enquanto no
jornalismo do dia-a-dia o importante é informar mais do que entreter, no
jornalismo de revistas, magazines, suplementos etc., os pesos na balança
permanecerão sempre mais equilibrados.
59
Todavia, mesmo abrindo parênteses para estas questões, faz-se
necessário inquirir: as ressalvas justificam a displicência com que, em muitos
casos, o nosso jornalismo diário vem sendo tratado? A nosso ver, não.
Por acreditarmos que uma informação completa pode, sim, andar de
mãos dadas com um texto criativo e que fuja às regras limitadoras do
jornalismo apressado e, sobretudo, por entendermos que como mediador social
o jornalista tem o importante papel não apenas de informar, mas de formar
juízos, valores e de mobilizar – já que uma coisa é conseqüência da outra –
concluímos que é possível e necessário ir além.
Apesar das implicações, restrições e peculiaridades do fazer diário
devemos visar, sim, ao aprimoramento de nossas narrativas. Ou, como diria
Walter Benjamin, reaprender a narrar histórias, se for o caso e se preciso for.
Feitos esses comentários, entremos em alguns detalhes desses
meios que tão bem recepcionam esse jornalismo preocupado não somente
com a construção textual, mas também com o leitor – já que é para ele que
tudo deve ser pensado e feito.
Tentaremos compreender por que enquanto para estes um
jornalismo bem narrado e construído é sempre bem-vindo, os jornais
cotidianos, por sua vez, ainda persistem em lhes fechar as portas.
De acordo com Sergio Vilas-Boas, as revistas semanais, por
exemplo, preenchem vazios informativos deixados pelas coberturas dos
jornais, rádio e televisão; são visualmente mais atrativas; e, por possuírem o
fator tempo a seu favor, têm a possibilidade de conciliar técnicas jornalísticas e
literárias
construindo
textos
mais
criativos,
que
costumeiramente
se
transformam em “reportagens interpretativas”, por imprimirem (veladamente ou
não) os valores ideológicos do veículo.
As revistas fazem jornalismo daquilo que ainda está em
evidência nos noticiários, somando a estes pesquisa,
documentação e riqueza textual. Isso possibilita a
elaboração/produção de um texto prazeroso de ler, rompendo
as amarras da padronização cotidiana. Da abertura à sentença
final da matéria, a produção do texto da revista semanal de
informação é um "exercício de raciocínio", que detona o
talento potencial do jornalista/autor. Quem ganha com isso,
direta ou indiretamente, são os leitores (Vilas-Boas, 1996: 9).
60
Na seqüência, Vilas-Boas chama a atenção para aquilo que, ao
longo de todo este trabalho, estamos colocando em destaque: não é simples
escrever um bom texto. Para ele, “Um bom começo é pensar. Pensar, porque
escrever é fazer funcionar de modo organizado a lógica do pensamento” (Idem,
Ibidem:13). E isso, a nosso ver, se enquadra perfeitamente também no
jornalismo diário, não é mérito do jornalismo em revista.
Para Sergio Vilas-Boas, dar clima é outro aspecto fundamental,
assim como construir bem situações humanas e abstratas, indicando causas e
efeitos, que servem para calibrar bem a narrativa. “Atos [....] praticados pelo ser
humano têm razões, motivos ou explicações que à primeira vista podem
parecer redundantes ou suprimíveis. Decida se deve ou não suprimi-los depois
de obtida a unidade do seu texto.” (Idem, Ibidem: 20).
Partindo do que acabou de ser dito pelo autor, abrimos espaço para
a seguinte indagação: mas isso deve mesmo se restringir ao jornalismo de
revista?
Entrando mais profundamente nos pormenores das revistas, o autor
lembra que ela, em si, compreende uma grande variedade de estilos, além de
serem produtos mais duráveis e artísticos do que os jornais. Em relação à
classificação, Vilas-Boas as divide em ilustradas, especializadas e de
informação-geral (Idem, Ibidem: 71).
Marília Scalzo (2004: 11), por sua vez, revela que mais do que um
veículo de comunicação, as revistas são produtos, negócios, uma marca, uma
mistura de jornalismo com entretenimento. Segundo ela, as revistam cobrem
funções mais complexas que a simples transmissão de notícias, já que trazem
análise e reflexão. No entanto, essas construções não podem ser confundidas
com jornalismo opinativo, posto que também o texto de revista deve estar
calcado, prioritariamente, nas informações. (Idem, Ibidem: 58).
Em relação à história, Marília lembra que o termo foi utilizado pela
primeira vez em 1704 na Inglaterra. Nesta época, era normal que as revistas
ainda se parecessem muito com os livros, apesar de já se destinarem a
públicos específicos, que visavam um aprofundamento dos assuntos.
Somente em 1731, em Londres, foi lançada a primeira revista mais
similar às nossas de hoje. A The Gentleman’s Magazine era “inspirada nos
61
grandes magazines – lojas que vendiam um pouco de tudo – reunia vários
assuntos e os apresentava de forma leve e agradável” (Idem, Ibidem: 19).
Ao longo do século XIX, as revistas se aperfeiçoariam, ditando moda
na Europa e Estados Unidos. Um pouco mais adiante, a partir do avanço
técnico das gráficas, se tornariam um meio ideal, que reunia vários assuntos
com boas imagens, num só lugar. “A revista ocupou assim um espaço entre o
livro (objeto sacralizado) e o jornal (que só trazia o noticiário ligeiro).” (Idem,
Ibidem: 20).
Segmentação é outro ponto importante que ela toca. Segundo a
autora, “enquanto o jornal ocupa o espaço público, do cidadão, e o jornalista
[....] fala sempre com uma platéia heterogenia [....], a revista entra no espaço
do privado” (Idem, Ibidem: 14). Para ela, os tipos de segmentação mais
comuns são feitos por: gênero, idade, geografia ou tema.
Ela não deixa escapar igualmente que hoje é feita, cada vez mais,
uma “segmentação da segmentação”, que surge para delimitar mais fortemente
os focos e o público-alvo de cada publicação. Não à toa as revistas terem, ao
longo da história, adquirido o poder de reafirmar identidade de grupos
específicos, ao estabelecer estes focos bem fechados.
Essa segmentação exacerbada é refletida na voz própria de cada
revista. É só observar que elas se expressam por meio das pautas, na
linguagem e no projeto gráfico.
A revista Trip, um dos principais suportes para as narrativas ao estilo
gonzo – que estamos analisando ao longo deste trabalho – é um forte exemplo
disso. Como mencionamos no primeiro capítulo, ela foi uma das pioneiras no
fomento e divulgação não apenas do Gonzo Jornalismo, mas de uma
linguagem gráfica mais livre e criativa; na escolha de pautas polêmicas e
relegadas pela grande imprensa, dentro outros aspectos.
Trip vem, ao longo de seus anos de vida, ousando textualmente e
graficamente por acreditar que a quebra de padrões não deve ser,
necessariamente, um sinônimo de subjornalismo. Mas, ao contrário, ao propor
novas e aprimoradas formas narrativas, ela acaba por contribuir para um fazer
jornalístico preocupado tanto com a informação do leitor, quanto com o seu
prazer fruitivo.
62
É a favor disto que viemos argumentando até aqui e que
continuaremos a fazer no decorrer do próximo e derradeiro capítulo – no qual
cuidaremos de analisar, mais detalhadamente, algumas produções de Xico Sá.
Fazemos questão de ressaltar, ainda, o quão pertinentes são todas
estas questões debatidas acima com os autores convidados ao diálogo –
grande parte deles, inclusive, se debruça exaustivamente na temática por
reconhecer a sua importância e também a necessidade de mudanças.
Mas uma vez mencionamos a necessidade de ir à caça de frestas e
espaços que talvez nos levem a um jornalismo menos enfadonho e “falsamente
sério”, como diria Xico Sá10. Jornalismo este consciente e, por isso mesmo,
comprometido, de fato, com a construção de boas, consistentes e aprazíveis
narrativas, capazes de retratar senão fielmente, de maneira mais honesta e
precisa possível os fatos cotidianos – sua verdadeira fonte.
10
Entrevista com o jornalista. Ver Anexo VIII.
63
3. O Gonzo segundo Xico Sá
Uma pessoa de raros dons intelectuais, obrigada a fazer um trabalho
apenas útil, é como um jarro valioso, com as mais lindas pinturas, usado
como pote de cozinha –
Arthur Schopenhauer
Eu revolto-me, logo existo –
Albert Camus
A realidade é apenas uma opinião –
Thimoty Leari
3.1 – Xico Sá, o subversivo
Francisco Reginaldo de Sá Menezes nasceu no Crato, na região do
Cariri, sertão do Ceará, em meados da década de 60. Mudou-se ainda novo
para o Recife, onde terminou de seus estudos e começou a sua carreira de
jornalista e escritor. São Paulo foi a sua próxima parada. Na cidade da garoa
trabalhou nas principais redações de jornais e revistas, como Folha de São
Paulo (onde permanece até hoje), Estadão e Bravo!, além de colaborar
freqüentemente em diversas publicações, como as revista Trip, Tpm, V, entre
outras.
64
Em 1993, Xico revelou o paradeiro de PC Farias e começou a
colecionar prêmios com as suas reportagens investigativas, como o Esso e o
Abril de Jornalismo. Talvez a mais marcante de suas facetas seja o trânsito
competente entre os diversos gêneros e assuntos que o jornalismo aborda.
Seja falando de política, esportes ou cultura, Xico possui a mesma
desenvoltura e se mostra sempre bem-informado. Suas abordagens, em
quaisquer veículos que ele esteja, primam não apenas pelo conteúdo preciso,
mas essencialmente pela forma, o que lhes vem conferindo, ao longo dos
anos, um caráter sui generis.
O humor refinado, a perspicácia – essencial ao jornalismo –, a
experiência e, ainda, o verniz erudito que Xico costuma imprimir em seus
trabalhos, são de fácil reconhecimento, configuram-se mesmo como uma
marca registrada, é importante ressaltar.
Atualmente, além de escrever uma coluna sobre esportes na Folha
de São Paulo às sextas-feiras, o jornalista mantém o site O Carapuceiro11, no
qual se permite uma escrita mais literária, humorística e, ainda, pornográfica
(lá, segundo ele próprio, são produzidas “gonzolendas”), e a coluna Ponte
Aérea/SP, no NoMínimo12, na qual ele tece comentários acerca de
acontecimentos do noticiário, além de outras amenidades cotidianas.
Entre os livros publicados, estão Modos de Macho & Modinhas de
Fêmea (Record), Nova Geografia da Fome (Tempo d’Imagem), Do Catecismo
de Devoções, Intimidades & Pornografias (Editora do Bispo), dentre outros.
Em relação ao affair entre Xico Sá e a Revista Trip avaliamos que
não poderia ter acontecido de maneira mais harmônica. A Revista, que desde
o início fez questão de se mostrar inovadora – tanto no aspecto gráfico, quanto
no que diz respeito às pautas e abordagens –, abraçou com facilidade o
trabalho autoral de Xico, passando a convidá-lo constantemente para colaborar
em resenhas e reportagens especiais.
11
Segundo o próprio Xico Sá, em entrevista concedida para esta monografia (Ver Anexos), O Carapuceiro
era um jornal satírico, de crônica de costumes, que existiu no século XVIII, no Recife. Ele era feito por um
padre beneditino e anarquista chamado Lopes Gama e apelidado de O Carapuceiro. Ele dizia: “escrevo e
quem quiser que bote a carapuça”. Disponível em: < http://www.carapuceiro.zip.net >. Acesso em: 30 de
novembro de 2006.
12
Disponível em: < http://www.nominimo.com.br >. Acesso em: 30 de novembro de 2006.
65
Vale relembrar que esta publicação, desde os seus primórdios, já se
identificava com as narrativas próximas ao estilo gonzo, a ponto de manter até
hoje um repórter que se dedica exclusivamente a essa modalidade narrativa, o
Arthur Veríssimo.
Traçado este sucinto perfil do autor das reportagens publicadas na
Trip e selecionadas como objeto para este trabalho, podemos partir, no tópico
seguinte, para a suas análises.
Se elas não se auto-intitulam deliberadamente gonzo jornalismo
(nem pelo jornalista e nem pelo veículo em questão), a nossa intenção aqui
também não é entrar neste mérito. Isto por que, mais do que verificarmos em
que categoria eles se enquadram, visamos a compreender e analisar as
peculiaridades destas narrativas – que fogem ousada e destemidamente às
amarras da objetividade jornalística.
Serão, ao todo, cinco reportagens, uma resenha e um abre para uma
entrevista feita com o rapper Sabotage. Vale ressaltar que os textos não
partem de uma seqüência cronológica exata, já que no caso de Xico, que
apenas colabora na Trip como free-lancer, não seria possível selecionar um
determinado período que considerássemos emblemático. Sendo assim,
encontraremos textos tanto dos primórdios da revista como outros produzidos
mais recentemente.
As discussões acerca do Novo Jornalismo norte-americano e do
Gonzo Jornalismo; em torno do que pode ou não ser considerado jornalismo
literário, do polêmico e contraditório conceito de objetividade jornalística, além
de outros pontos tocados em ambos os capítulos precedentes, nos darão a
base necessária para tal tarefa.
Resta-nos deixar claro, mais uma vez, que não visamos a uma
análise hermética do que deve ser definido como correto ou incorreto, melhor
ou pior para o jornalismo. O que nos importa, em verdade, são as
possibilidades de uma narrativa fluida, que permita pacificamente a mescla de
gêneros. Isto tudo no intuito de tornar mais aprazíveis (e por que não dizer
mais precisas) as narrativas jornalísticas.
66
3.2
–
Idiossincrasias,
desvarios,
sarcasmos
e
orgasmos: maldição ou prazer do texto?
O Rei está tão serelepe, sem “nóias”, agora até canta, como no show do
navio, um “Negro Gato”, música banida por conta do TOC — nada escuro
podia. Canta e comenta. Já, já, insinua, vão rolar os versos “e de que tudo
mais vá pro inferno”, outro sucesso ainda proibidão pelas forças estranhas
e internas. O Rei ri à toa. Anuncia que, depois de 25 anos, vai voltar a
comer carne vermelha. “Só comi, nesse tempo todo, o que nada ou o que
balança com o vento”, fala, espero que sobre peixes e folhas –
Xico Sá
Se, apesar de todas as deixas, ainda não foi possível destrinçar de
que Rei fala Xico Sá na epígrafe acima, nós revelamos: é do Rei Roberto
Carlos. Enviado especial para cobrir o mega-show do cantor a bordo do
cruzeiro Costa Victoria, Xico, ao invés de traçar um perfil apenas direto,
contido e impessoal do artista – assim como fazer um balanço relatorial e
crítico do espetáculo musical –, aproveita o extravagante episódio para fazer
vasto e indiscriminado uso de adjetivações. Nada mais propício.
O fato, que naturalmente imprime à reportagem13 um caráter
subjetivo e igualmente opinativo, também abre espaço para uma percepção
mais aguçada do narrador. Chegamos a esta conclusão ao notarmos que, ao
partir de tal liberdade criativa, o repórter, desde o início do processo apurativo
(seja diante dos entrevistados ou mesmo analisando o ambiente que será
retratado), se sentirá mais à vontade para entrar afundo nas minúcias e nos
detalhes
que
permeiam
o
seu
objeto.
Situação
essa
que
tende,
conseqüentemente, a enriquecer e tornar mais precisa a narrativa, a nosso ver.
E, vale ressaltar, isso não ocorre exclusivamente em decorrência do
uso dos adjetivos – que ele seleciona criteriosamente para compor o seu texto.
Muito mais do que isso, é importante notar que a liberdade que mencionamos
permitirá que o jornalista narre não apenas o alvoroço das fãs histéricas que
pagaram uma alta quantia pela viagem, como ele vai lembrar.
13
Reportagem publicada em março de 2006 na Revista Trip com título “Roberto marinho”. Ver Anexo I.
67
O que, talvez, no final das contas, chame mais a atenção do leitor,
seja a forma franca e sem rodeios (porém, nem por isso, displicente) que Xico
arranja para falar dos sérios problemas psicológicos do cantor (Transtorno
Obsessivo-Compulsivo, no seu caso), além de suas relações amorosas, sexo,
família, dentre outros assuntos de cunho pessoal. Assuntos estes que,
provavelmente, numa reportagem convencional, ganhariam um contorno
denso, senão uma abordagem dramática, sensacionalista e/ou enfadonha.
“Como me faz bem essa terapia”, sopraria mais tarde RC,
elogio merecido do divã, que está curando o seu transtorno
obsessivo compulsivo, toc, toc no compensado das nossas
almas descompensadas, salve o divã, viva o divã, aliás, o divã
é título de uma das suas canções mais obscuras, biográfica
no último, mesmo no tempo em que Ele nem sabia que
precisava.
[....]
O Rei está com a mãe, família, auxiliares, mas estaria
também com alguma Lolita al mare? Os boatos dão conta de
uma fase Nabokov do astro.
“Falam coisas demais sobre a minha vida”, diz, como se
pedisse desculpa aos 200 fãs histéricos, quase 80 balzacas,
sorteadas entre os já ditos 2.300 passageiros do Costa
Victoria, transatlântico de bandeira italiana, parole, parole.
[....]
“Amor só de mãe, Roberto?”, pergunto, aproveitando uma
brecha entre repórteres de TV e a marcação, mais realista do
que o Rei, da produção do Emoções para Sempre em Alto
Mar, projeto que trouxe o ídolo a este cruzeiro.
“Como?”, o Rei dá uma de desentendido.“ Amor... só de mãe,
Roberto?”
O Rei ri à beça.
“Bicho...”
Ri o Rei como se eu fosse mesmo o mais competente daquela
corte de tantos bobos.
“Bicho... Amor de mãe, das fãs, de todas as mulheres.”
O que querem as mulheres, mestre? Nunca saberemos
Roberto, mas tentaremos antecipar os seus desejos. Homem
que é homem, o Rei bem sabe, vira o gênio da lâmpada
diante de uma mulher que pede o impossível, como bem disse
o escritor Joca Reiners Terron, ou teria sido Otto Lara
Resende?
Encaro o Rei, aperto aquela mão direita para pegar por
osmose o que nada sei. “Bicho...” O homem que sabia demais
do amor e suas lições mais óbvias. O professor de educação
sentimental das massas e os seus amassos no portão de
todos os domingos, domingos de missa, domingos de sarros e
os primeiros beijos na boca.
[....]
O importante é que ereções eu vivi.
68
Feita esta breve análise, talvez fosse pertinente ponderar se o teor
excessivamente interpretativo da narrativa, a inserção do repórter no contexto,
o uso da primeira pessoa, ou mesmo a dose extra de sarcasmo – que acaba
por conferir um tom humorístico e leve à reportagem – não comprometeriam a
veracidade ou a seriedade dos fatos ali contidos. Em nossa avaliação, isto não
ocorre, já que, apesar de do tom por vezes jocoso, tudo o que é narrado no
texto permanece verificável, constatável. Esses recursos apenas acrescentam,
não suprimem em nada a essência do conteúdo jornalístico.
Mesmo a seleção de perguntas – ora irônicas, ora polêmicas –, pode
e deve ser entendida como uma forma diferente de apresentar o entrevistado
ao leitor. Afinal, as suas reações diante de perguntas capciosas também
devem ser consideradas importantes informações jornalísticas. Quem não
gostaria de saber como o ídolo ou uma personalidade reage a uma pergunta
permeada de malícia?
Outro fator interessante proporcionado pela narrativa de Sá é a
inserção de um grande número de fontes-personagens, que ele seleciona não
apenas em detrimento de sua importância social, mas, principalmente,
baseado naquilo que ele parece considerar mais extravagante, singular. Ao
longo da reportagem as vozes ganham vida quase independentemente. Chega
a parecer, às vezes, que não existe alguém intermediando os discursos, numa
alusão ao conceito de polifonia, discutido no segundo capítulo e segundo o
qual o narrador tenta humanizar a narrativa por meio da multiplicidade de
vozes, tanto da vida social, cultural e ideológica representada.
No caso desse trecho abaixo, Xico narra a agitação de uma fã
eufórica e nervosa, na ânsia de ver de perto o Rei:
“Te joga, rompe o cerco, te entrega, segura na mão de Deus e
vai, com presente e tudo”, dou uma de cupido. Ela ameaça,
mas, a uns três metros do obscuro objeto de desejo, freia; o
gás azul e paralisante da emoção. “Me abraça”, pede. Agarro
de novo, mais forte ainda. O importante é que ereções eu vivi.
A vida é brega como uma carta de amor.
69
A reportagem intitulada Jornal Nacional
14
, segue a mesma linha de
Roberto marinho. Ela, na verdade, é outro forte exemplo de que um tema de
contornos
polêmicos,
necessariamente,
que
relevantes
se
e
acorrentar
de
interesse
às
regras
público,
da
não
tem,
objetividade
e
impessoalidade para permanecer confiável. Logo no abre da narrativa, o editor
de Trip faz uma advertência:
Cobertura política não precisa ser maçante, como provou Mr.
Hunter Thompson em suas imersões pela Casa Branca. Em
uma homenagem ao finado mestre do jornalismo gonzo, Trip
despachou uma dupla insólita para Brasília no dia mais
quente da política brasileira dos últimos anos – o dia da queda
de Zé Dirceu. Apesar da linguagem ousada tanto em texto
como nas ilustrações exclusivas feitas in loco – milhas
distantes do formatão desgastado das revistas semanais e
telejornais engravatados -, tudo aqui é verdade, a exemplo do
mais fino new journalism norte-americano. Com vocês, direto
da capital branca, o poder e suas tentações.
Para construir “Jornal Nacional”, Xico não apenas ouve os
personagens principais desta história e abre contidas aspas para suas falas
pré-concebidas por assessores. Mais do que isso, ele pára para perceber
sofisticadamente o cenário que os cerca – desde o cheiro e o clima da cidade,
até as paisagens de uma Brasília que, para ele, “não passa no noticiário” ou,
ainda, que tem o poder de nos transportar de um “pesadelo dirigido por David
Lynch para o cenário do JN narrado por William Bonner & Fátima Bernardes”.
Outro competente e inusitado recurso utilizado por Xico Sá na
reportagem é um tom levemente ficcional – recurso este semelhante ao
utilizado tanto pela turma do Novo Jornalismo, como pelo próprio Hunter
Thompson. Todos eles tinham o costume de mesclar, deliberadamente, traços
fictícios
à
sua
narrativa
jornalística,
sem
que
para
isso
houvesse
comprometimento no teor informativo do acontecimento. O acréscimo aqui se
dá, sobretudo, no que diz respeito à forma da narrativa, não ao seu conteúdo.
É só observar que, ao atravessar Esplanada dos Ministérios,
Congresso, Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto, o jornalista começa
a fazer jogos de palavras, insinuando, pouco a pouco, que um cheiro estranho
14
Reportagem publicada na edição 135 de Trip, de agosto de 2005. Ver anexo II.
70
– vindo de um ralo –, estaria empestando a capital do País. De onde ele viria?
Ele deixa a indagação no ar.
“Política é namoro de homem”, dizia o cronista mineiro Paulo
Mendes Campos. A CPI dos Correios estoura no Congresso.
O governo leva a melhor e indica o presidente e o relator das
investigações. Algo como se num jogo de futebol um dos
times indicasse o juiz. O cheiro do ralo. Só se fala em uma
coisa: o “mensalão”, a mesada de R$ 30 mil repassada,
segundo o deputado Roberto Jefferson [PTB], a
parlamentares do PP e PL em troca da fidelidade ao governo.
E Xico vai ainda mais longe. Além de lançar mão de recursos
fictícios, ele se permite brincar com associações, talvez impensáveis pelos
demais repórteres. Para isso, entrevista uma garota de programa que,
segundo ele, segue o mesmo lema dos políticos, já que afirma que “Pra ser fiel
é mais caro. Só de R$ 10 mil por mês para cima”.
Neste bolo, o repórter não perde a oportunidade de ouvir igualmente
o lavador de carro do prédio de um dos Ministérios, que faz menção,
anonimamente, ao comportamento de um dos ministros dali. Uma outra fonte é
o taxista que faz sua corrida do aeroporto para o hotel. O motorista, por sua
vez, adverte: “Aqui [em Brasília] não se rouba mixaria”.
A íntegra de uma curta entrevista que Xico conseguiu fazer com
Severino Cavalcante, na época presidente do Congresso, consta no material
jornalístico da reportagem. Se percebermos e pararmos para uma análise mais
acurada, apesar das piadas, ela pode revelar muito mais do que um pinguepongue convencional entre entrevistado-repórter que, em muitos casos, não
trazem nada além de respostas prontas e repetitivas, próprias de alguns
políticos em época de crise. Ei-la:
Quinta-feira, 16, epicentro do escândalo
“Você está em que jornal mesmo, conterrâneo?”, me pergunta
Severino Cavalcanti [PP-PE], presidente do Congresso. Aqui,
agora, a serviço da Trip. O deputado me pega pelo braço – e
entro inevitavelmente no namoro de homem – e saímos
conversando da saída do plenário até o seu gabinete.
Trip De onde vem esse cheiro?
Severino Que cheiro?
Trip O senhor não está sentindo?
71
Severino [Depois de aspirar fundo três vezes] Tá cheirando
bem o salão, como sempre.
Trip Pois eu estou sentindo um mau cheiro danado...
Severino Você tá é com presepada, né, meu filho?
Trip É o cheiro do ralo, deputado.
Severino Você quer conversar sério ou não, cidadão?
Trip O sr. acha que algum colega seu, aqui da casa, vai
ser cassado?
Severino Se ficar comprovado o que estão falando –
mensalão – vamos ter que tomar alguma providência nesse
sentido. Mas depois das investigações. E se tiver prova.
Trip Com esse corporativismo todo do Congresso, o sr.
acha que pode haver mesmo cassação?
Severino No que depender de mim, a coisa é séria. E, se for
pra mandar embora deputado, a gente manda mesmo.
Quando eu era da Corregedoria da casa fui favorável a cassar
um bocado, num tá lembrado? [Refere-se ao escândalo da
compra de votos para a reeleição do presidente Fernando
Henrique Cardoso, em abril de 1997.]
Trip O sr. se acha folclórico como pintam na imprensa ou
não vê graça nisso?
Severino Folclore é bumba-meu-boi, papangu, essas coisas...
Eu sou respeitado, presidente do Congresso do meu país.
Trip Deputado, por obséquio, sinta só o cheiro agora!
Severino Lá vem você de novo com isso...
Trip Cheiro de mensalão, deputado.
Severino E quem disse que dinheiro fede?
Trip Nem dinheiro sujo, deputado?
Severino Conterrâneo, me dê licença, outra hora passe aqui
que a gente continua a conversa.
Declarações de Roberto Jefferson, também entrevistado por Xico – e
um dos nomes que ressoavam mais forte no período –, terminam de criar o
ambiente da Brasília percebida pelo jornalista, que aproveita para traçar um
breve perfil de Jefferson:
“Lula não quer que a lama se alastre para o gabinete dele”,
disse “Jeff”, como estava sendo chamado pelos amigos, à
TRIP, naquela mesma noite.
Conheço bem Jefferson desde os tempos do Collorgate. Era
da chamada “tropa de choque” do presidente cassado, inimigo
mortal do mesmo PT com quem fechou aliança durante o
atual governo Lula.
Que cheiro é esse, deputado?, repeti a pergunta para o
homem que se divertia jogando merda parlamentar no
ventilador naquela semana quente.
“Ora, Brasília hoje cheira a mensalão e a Delúbio”, respondeu,
sorriso de canto a canto por causa da despedida de Zé
Dirceu.
Horas depois, Jefferson recebeu colegas parlamentares do
PTB, para uma reunião. Antes de dormir, contou que veria o
72
filme “O homem que sabia demais” (The Man Who Knew Too
Much, 1956), de Alfred Hitchcock. “Nao é piada, é sério
mesmo”, alertou.
Na hora de mencionar o dia seguinte à cassação de José Dirceu, mais
sarcasmos, e mais uma dose de informações acerca daqueles turbulentos dias
vividos na capital do Brasil:
Sexta-feira, 17, Palácio do Planalto, day after
A crise viaja.
Zé Dirceu, já na pele de um simples deputado, vai para São
Paulo, onde se notabilizou por montar o que era chamado na
Assembléia Legislativa de “máquina de denúncias”. Nunca um
gabinete parlamentar denunciou tantos casos de corrupção,
principalmente contra o governo Quércia (1987-91), como o
do petista que agora se vê na condição de caça.
O ar de Brasília está menos punk, embora a gente ainda sinta
o cheiro do ralo.
De resto, vale registrar ainda que, além de enviar Xico a Brasília,
Trip mandou junto com ele para este trabalho o ilustrador Lourenço Mutarelli,
que cuidou de toda a arte da reportagem. Arte esta que, como podemos
observar em um dos exemplos reproduzido abaixo, visa muito mais do que ao
mero adereço estético.
Isso por que, em cada uma das ilustrações, vai existir um importante
conteúdo informativo e complementar ao texto de Xico – que, se não aparece
de maneira óbvia, é capaz de suscitar pertinentes e individuais interpretações.
A harmonia entre a produção de ambos é percebida igualmente na
voz de Mutarelli, que Xico Sá toma a liberdade de enxertar em um momento do
texto, em que os dois flanavam por Brasília: “Cidade estranha essa, você só vê
fachada e carro, a arquitetura engole as pessoas”.
73
Figura 3.1: Reprodução de Roberto Jefferson (Mutarelli: 2005)
Assim como observamos nas duas primeiras reportagens, em
Programas de Governo15, Xico também aproveita para fazer uso de trocadilhos
já no título. Em Brasília novamente a serviço da Trip, o jornalista, desta vez,
tinha uma missão ainda mais delicada (e inusitada): entrevistar uma cafetina,
Jeany Mary Córner, cujo nome tinha ido parar em uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI).
Outro ponto em comum entre elas é a refinada descrição do
ambiente (Xico começa descrevendo o entorno da boate de propriedade da
cafetina e ainda tira proveito do fato dela estar localizada ao lado de uma
igreja), feita com destreza e riqueza de detalhes. Para isto, o repórter não se
abstém de lançar mão amplamente de recursos literários e subjetivos.
Mais adiante, ele analisa o trabalho feito pela imprensa acerca do
caso, afirmando que os mesmos “haviam chovido no molhado, da forma mais
moralista possível, sobre o sexo por dinheiro entre lindas garotas e as Vossas
Excelências da República”.
Segundo Xico, essa abordagem “moralista” teria sido o suficiente
para “que o mercado da sacanagem abrisse o seu pregão em baixa”. E, assim,
fazendo graça dos fatos, segue construindo sua narrativa.
15
Publicada na edição 137 de Trip, de outubro de 2005. Ver Anexo III.
74
Na boate, ele não encontra Jeany Mary. Por isso, o primeiro diálogo
se dá entre ele e uma das moças, Vanessa, que lá trabalhava.
Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda
contra ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz,
compassadamente, a gazela. A mulher-esquina está em São
Paulo a essa altura, para escapar do assédio da clientela VIP
que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa
lista. Antes a cassação do mandato e um linchamento público
do que as garras de uma mulher em fúria no lar doce lar de
outrora.
[....]
Vamos ligar pra ela, sugiro a Vanessa, com quem conversei
sobre o que acabei de pôr aqui na página. A danada pede
metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no
telefonema caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meiafoda ou fazer jornalismo-verdade.
Pelo ofício, tudo.
Aqui surge uma outra similaridade entre esta e as demais
reportagens analisadas anteriormente. Isso porque em todas elas Xico vai
transcrever a íntegra de um diálogo. Se não podemos considerar esta imersão
nitidamente como uma característica do discurso polifônico, fica clara a
intenção do autor de deixar que as vozes de seus personagens ressoem sem
sua interferência direta, sem um caráter puramente declaratório. Eles falam
como falariam na vida real, não importando se isso soa inconveniente ou
inadequado ao estilo do meio de comunicação.
Neste último caso, surge a transcrição do diálogo que ele travou ao
telefone com a própria Jeany. Mesmo permeado de perguntas irônicas, de
brincadeiras e palavrões podemos observar, como numa outra entrevista
tradicional, a voz da acusada se defendendo diante dos fatos, que ela afirma
serem infundados.
O grande diferencial deste caso talvez seja o excesso de
espontaneidade da entrevistada, que responde sempre à altura as perguntas
capciosas e audazes de Xico. O título escolhido para este fragmento da
reportagem é “Disk Jeany para comer, beber, viver...”.
-Alô, dona Jeany?!
-Quem fala?
-É um conterrâneo seu, do Crato...
75
-Deixe de brincadeira, fala logo!
-É sério... Tô aqui em Brasília, a senhora sabe, sozinho,
preciso de uma mãozinha, uma ajuda...
-Quem é você?
-Sou repórter, mas sou do Crato mesmo!
-Agora deu, era o que faltava: jornalista do Crato!
-Tô solidário à senhora, nessa luta toda.
-Não tem luta nada, só calúnia de quem não tem o que fazer...
-Aquele senador, Demóstenes, de Goiás, citou o seu nome da
CPI...
-Falta do que fazer, não sou nada disso do que estão dizendo.
-Cafetina?
-Sou produtora de eventos, recruto moças para trabalharem
de recepcionistas em festas, como quem contrata para uma
feira de gado, de automóveis, feira agrícola...
-Mas e os pecados da carne?
-Que palhaçada é essa?!
-Assim, quero dizer, elas ficam com os caras, as autoridades,
não?
-Aí é uma questão delas, simplesmente contrato para os
eventos, não tenho culpa se a humanidade continua fazendo
o que se faz desde Adão e Eva.
-Quanto custa essa brincadeira no paraíso, dona Jeany?
-Jeany, que porra de chamar de dona, de senhora!
-É a praxe.
[Respiração forte e silenciosa do outro lado da linha]
-E a lista, Jeany, a senhora tem uma lista que aterroriza os
clientes?
-Não é da sua conta.
-Desculpa, mas a senhora acabaria pelo menos uns 300
casamentos deste povo de Brasília, não?
-Quer saber de uma coisa?, [irada] eu melhoro o casamento
de todos esses felas da puta!
-As autoridades, as Vossas Excelências voltam para casa
felizes da vida, né?
-Você tá fazendo chacota!
-Não... peraí...
-Você é de rádio do Crato, não vai falar merda para os meus
parentes, hein!
-Não, tô fazendo uma reportagem para a revista Trip.
-Trip?
-Estou aqui com a Vanessa, que trabalhou com a senhora...
A desalmada conterrânea desliga o telefone na minha cara.
Além de ouvir Vanessa no seu processo de apuração, Xico Sá
encontra a garota de programa e também funcionária de Jeany, Duda, que
defende a sua patroa, assim como tece alguns comentários acerca da maneira
de ser dos políticos que costuma atender: “Prefiro endinheirado sem poder.
Poderoso dá muito trabalho e é muito cheio de ordem, organizado demais...
até pra gozar é cheio de lei e nove-horas”.
76
Nesta entrevista com Duda, feita em um quarto de hotel, Xico
percebe, pelos pedidos que a moça faz (champanhe Veuve Cliquot e cocaína),
que ela está acostumada e possui hábitos sofisticados, em decorrência dos
programas com pessoas ricas que faz. Ao que ele retruca, dizendo não ser
[Marcos] Valério nem Delúbio [Soares]; “não tenho bala”, explica a ela, que,
enquanto isso, mostra ao repórter fotos no celular de surubas com deputados.
Sabe a farra paga pelo Marcos Valério, o Kojak da CPI, para
celebrar o aniversário de Silvio Pereira, o Silvinho, exassessor do presidente Lula, que, desconfiado, não
compareceu, em 05 de novembro de 2003, no hotel Grand
Bittar?
Meninos, eu vi. Pelo olho mágico do amor. Uma puta com um
celular que fotografa é mais perigoso para uma autoridade do
que o sigilo bancário quebrado.
Xico também fala um pouco sobre a crise por que passava a prostituição
em Brasília neste momento particular – já que as tais denúncias e o medo de
ser descoberto vinham afastando os clientes dos programas; assim como
menciona algumas peculiaridades da era Viagra, e como ela teria afetado o
funcionamento dos programas na cidade sem esquinas. E mais: não poupa, de
maneira alguma, os nomes dos envolvidos, citados pelas garotas:
Na secura da capital federal, não rola a suruba-jazz, o
improviso. Tudo aqui funciona na base do acerto, do
combinado, como comprovou Ricardo Penna Machado, sócio
de Marcos Valério na empresa Multi Action, que chegou a dar
aulas de etiqueta para garotas que participaram de uma
bacanal no hotel Grand Bittar, em 2003.
“Ele fez tanta pergunta, meu Deus, queria que a gente fosse
intelectual”, conta Carol, 22, estudante de Direito em Brasília.
“Vocês vão lidar com grandes autoridades da República, não
podem ser vulgares”, alertou Machado, que reconheceu a
“aula” em depoimento à Polícia Federal obtido por este
repórter. “No dia 08 de setembro de 2003 recebi Jeany (a
cafetina) e oito acompanhantes no restaurante do hotel Grand
Bittar”, confessou o tal.
O acerto, conforme o depoente disse à PF, era de que cada
menina receberia R$ 500 pela farra. “Me roubaram”, queixa-se
K., ao ler comigo as seis páginas do depoimento do sócio do
trem-pagador-mineiro chamado Valério. “Só recebi 300”.
77
Em suma, a ousadia que percebemos na reportagem “Programas de
Governo” vai muito além dos recursos utilizados para a construção narrativa.
Mais do que isso, acreditamos que Trip e Xico Sá conseguiram, por meio de
uma pauta não apenas cheia de obstáculos e complexa, como fora dos
padrões jornalísticos, tratar de diversos pontos obscuros e polêmicos
referentes à nossa política – citando nomes e trazendo à tona fatos inéditos,
inclusive.
Mais do que isso é possível afirmar que ambos conseguiram
descortinar, de forma competente, um universo que não costuma ser
estampado, de maneira alguma, nos jornais e revistas convencionais – apesar
de se tratar de um assunto tão real quanto os demais que entram nas pautas e
que costumam ser noticiados.
Assim como nas demais reportagens ao estilo gonzo de Xico Sá,
nesta, o caráter investigativo não se perde em decorrência do humor e das
piadas que são, constantemente no decorrer do texto, impressos ao fato. O
humor, a nosso ver, na verdade, agregaria à reportagem um tom mais leve e
prazeroso, assim como teria o poder de complementá-la em termos de
informação.
Na edição 109 de Trip16 Xico Sá foi convidado não para viajar a
bordo de um navio, ou para ir a Brasília desvendar ocorrências escusas
envolvendo políticos do alto escalão. Sua missão desta vez, senão mais
simples, era um pouco menos controversa: criar um texto de abertura para
uma entrevista com o rapper Sabotage, que havia sido morto alguns meses
antes.
A escrita fluida, com referências, extremamente descritiva e bem
costurada permanece e é de fácil identificação já nas primeiras linhas. Xico
começa reconstruindo ambiente e os pormenores do fatídico dia no qual
Sabotage foi assassinado. Outro detalhe que salta aos olhos são as gírias,
próprias do universo do rapper, que o jornalista seleciona para marcarem
trechos da narrativa – mais uma vez repleta de recursos literários. Um indício
de que o mesmo buscou se ambientar na vida do personagem que ele
começava a retratar.
16
Entrevista publicada em junho de 2006. Ver Anexo IV.
78
O cara catou a mulher pelo braço, como fazia quase todo
santo dia, para levá-la ao trampo. Andava sossegado. Do tipo
que chuta tampinhas pelas calçadas. E assobiava baixinho “O
Meu Guri”, de Chico Buarque, a sua preferida. “Vivia na paz e
cumprimentava todos os manos e todos os velhos, no
respeito”, conta Maria Dalva, 28, a “patroa”. Rapper cordial,
treta zero — havia pelo menos quatro anos que não se metia
em broncas.
“E mesmo as confusões antigas não deixaram inimigos no seu
rastro.” Quem fala agora não é mulher nem mano. Plantão do
16º DP, 18 de fevereiro, 25 dias depois. “Confusõezinhas de
rua, bar, besteira”, diz Miguel Pinheiro, investigador-chefe.
A partir daí, ele segue reconstituindo, passo a passo, o momento no
qual Sabotage levou os quatro tiros que lhe tiraram a vida. Desde a hora em
que ele deixa a “patroa” no trabalho, até sua entrada no ônibus e, enfim, a
queda sobre a calçada da Avenida Professor Abraão de Moraes – ainda com
vida – e os seus últimos momentos no Hospital São Paulo, com os amigos
músicos a rezar.
O próximo passo é ouvir a versão oficial da polícia. Aqui, também
entram não apenas as informações colhidas com os delegados, amigos,
viúvas. Mas interpretações de Xico acerca dos trâmites policiais, das versões
contraditórias que geralmente permeiam esse tipo de ocorrência.
Assassinato sem autoria conhecida, como os bê-ós narram a
matança nos arrabaldes. A primeira suspeita: um desafeto
que havia deixado a cadeia no início deste ano. Os seus
amigos da favela do Canão não levam muita fé nessa pista. E
só abrem a boca, natural, sob a garantia do anonimato.
Volta o investigador-chefe: “É lenda, não existe nenhum
desafeto que tenha saído da prisão nos últimos tempos”. A
polícia tem nas mãos apenas a máscara preta, daquelas de
motociclistas, que o assassino largou ao lado do corpo. Nos
depoimentos, tudo na base do ninguém sabe, ninguém viu. A
polícia, velha inimiga e alvo do hip hop, não teria nenhuma
razão para botar auréola em rapper, mas não enxerga depois
de ouvir cerca de 40 pessoas — entre depoimentos oficiais e
informais — inimigo com motivação para o assassinato.
Suspeita número dois: um grupo de traficantes resolveu
afrontar a família de Sabotage com a morte do seu parente
mais notório. Falam os amigos: “Tudo pode acontecer”... Fala
o investigador-chefe: “Não temos nenhum elemento que
sustente essa linha de suspeita”.
79
Na seqüência, investigações, suposições, versões de amigos
próximos e famosos, elucubrações e afins. A partir dos detalhes colhidos da
vida pessoal do rapper, podemos observar o quão acurada, sofisticada e
precisa é a apuração feita por Xico, que sai destrinchado em sua narrativa
fragmentos íntimos, que irão nos permitir uma melhor compreensão dos fatos,
assim como criam uma proximidade com a vida daquele personagem.
O clima denso também é quebrado com perspicácia, quando, por
exemplo, Xico relembra a reação de deboche de Sabotage ao comentar com
os amigos o convite que recebera para posar nu em uma revista masculina:
Tirava onda com um convite que havia recebido: pousar nu
para uma destas revistas dedicadas à clientela gay. [....] “E aí,
setentinha [R$ 70 mil], você acha que devo mostrar a
vassoura?”, sapecou para uma amiga confidente do estúdio
YBrazil. Os amigos votaram contra.
Como já havíamos mencionado, a versatilidade é uma forte marca
de Xico Sá e, mais uma vez, ela encontra-se impressa neste texto. Apesar de
não ter sido ele o entrevistador do rapper morto, Xico foi capaz de construir
uma narrativa não apenas introdutória ao que viria na seqüência. Ele também
nos apresentou, a partir de sua narrativa autoral, sofisticada e audaz, o
universo de um indivíduo que permanecia às margens, em um gueto que
talvez poucos dos leitores de Trip tivessem e têm acesso. A apuração, aqui,
transforma-se em um dos principais diferenciais.
Partindo agora para outro caso, na efeméride de quatro anos de
morte do músico pernambucano Chico Science, Xico Sá e Renato L., amigos
pessoais de Science, foram convidados para celebrar a data confeccionando
uma reportagem especial. Nesta, deveriam contar causos, revelando segredos
e fotos inéditas, analisando a importância de sua produção musical, enfim,
fuçando o baú de recordações do artista que, segundo a revista, foi “o maior
brasileiro da última década”. O título dado ao trabalho foi O Brasil de Chico17.
“Num tem mambo? Num tem calipso? Pois agora tem o mangue! Foi
assim que Chico Science deu nome ao movimento que tirou o país da lama e
instaurou o caos na música brasileira”. Logo no abre da reportagem, uma
17
Reportagem publicada na edição 86 de Trip. Ver Anexo V.
80
introdução à descoberta musical do artista para, então, começarmos uma
viagem rumo ao passado dessa personalidade que saiu de cena no ápice de
seu reconhecimento profissional. Enfim, uma abordagem acerca do sujeito
que, como nos deixa cientes os autores, pregava uma “diversão levada a
sério”.
Xico e Renato constróem uma narrativa repleta de minúcias e
peculiaridades do seu personagem, numa mostra do poder perceptivo de
ambos. O texto remonta à juventude de Chico, época na qual tudo teria
começado, de acordo com a análise dos mesmos. Mais uma vez, aqui, a
sofisticação descritiva é percebida nos detalhes que nos são revelados – prova
de um trabalho intenso de apuração e ainda de sensibilidade.
Era uma vez uma croata chamada Sladjena, vinte e poucos
anos, daquelas que vão além da larica, do tipo que tem
mesmo fome de viver. Estava de bobeira na margem
esquerda do Capibaribe, viagem sem diário de bordo, sob o
torpor e a lesa felicidade guerreira dos Tristes Trópicos.
Deixou uma penca de rapazes com os quatro pneus arriados
de paixão na aurora dos 90. Recife ensaiava seus passos de
Seattle do Quarto Mundo, mas os mangueboys, chapados de
lirismo, groove e psicodelia, faziam um minuto de silêncio para
ouvir a saudação gringa: - Up to the trip! - bradava a croata,
com Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão.
Um dos vidrados na estranja, Francisco de Assis França,
futuro Chico Science, pisciano devoto à disciplina amorosa,
dono de um parque de diversão na cabeça, parecia seguir,
sem muito trabalho, os conselhos de Sladjena. À moda de
Salinger (Para Cima com a Viga, Moçada), começou a
desentupir as veias da Amsterdã das Américas - como
queriam os holandeses chegados ao Recife - com um levante
praieiro que marcou a sua vida de malungo: a busca da batida
perfeita.
A competência narrativa dos autores talvez tenha no vasto
conhecimento acerca dos movimentos culturais e na sua ampla visão de
mundo, um forte aliado – vale ressaltar e, quiçá retomar Benjamin quando
este, no texto O Narrador, menciona a importância da experiência na
construção de narrativas.
Em todas as reportagens de autoria de Xico Sá, como podemos
perceber, vão existir associações que, se não buscam a exatidão comparativa,
trazem à tona o poder aguçado de percepção do repórter, que ao construir o
81
seu texto, cuida para que ele receba também o suporte de fatos que se
assemelham a ele, em quaisquer sentido que seja, como em “Recife ensaiava
seus passos de Seattle do Quarto Mundo” ou “À moda de Salinger (Para Cima
com a Viga, Moçada), começou a desentupir as veias da Amsterdã das
Américas”. Tudo se transforma em informação; só que apresentada ao leitor de
forma diversa, menos óbvia e objetiva. O jornalismo aqui, pode-se dizer, abre
espaço para a literatura e para a interpretação individual. E o faz com
sabedoria, calculadamente.
Pormenores do acidente também surgem como numa reconstrução
daquele dia em que “o homem-caranguejo deu um pitu na vida - o mesmo que
‘dar um perdido’ no dicionário dos paulistas - e deixou este mundo”. Aqui,
igualmente, notamos o cuidado com o conteúdo informativo. E mais: Xico e
Renato conseguem imprimir à narrativa emotividade, sem que para isso
recorram a depoimentos excessivamente melodramáticos e sensacionalistas.
O choque de um Fiat Uno com um poste, em um viaduto na
divisa entre o Recife e Olinda, por volta das 19h do dia 2 de
fevereiro de 1997, arrastou precocemente, aos 31 anos
incompletos, o homem-caranguejo. O inquérito policial de 174
páginas da Polícia Civil pernambucana calculou que Science
corria a 110 km/h - a velocidade média nesse trecho costuma
ser alta, pois a avenida que precede o viaduto é uma reta só.
Com traumatismo craniano, afundamento no tórax e fraturas
múltiplas na face, a maior invenção dos palcos brasileiros póssuingue de Jorge Benjor foi levada para o Hospital da
Restauração, centro de urgência da capital.
Entre vítimas da violência carnavalesca, o seu corpo foi
largado nos corredores, enquanto aguardava a vez. Conforme
a notícia do acidente corria as ruas do Recife e as ladeiras de
Olinda, os tambores dos maracatus e as pequenas orquestras
de frevo iam silenciando. Amigos e admiradores,
inconformados, maldiziam Deus e o mundo.
Em suma, os autores conseguem ir muito além da celebração de
uma data importante para a música brasileira e da reprodução simples e direta
de fatos que marcaram a vida do seu personagem principal. Encontram-se aí
um dos muitos méritos da escrita de Xico Sá. Afinal, é praxe sua, o privilégio
por uma narrativa rica não apenas em termos de conteúdo, mas
essencialmente no que diz respeito à forma.
Mesmo deixando de lado as longas e aprofundadas reportagens,
rapidamente observamos essas qualidades todas supracitadas também nas
82
resenhas feitas pelo jornalista. Em O samba-rave, meu irmão18, Xico avalia um
álbum recém-lançado pelo músico Otto. No intuito de demonstrar aos leitores
as suas qualidades musicais, o jornalista segue fazendo insinuações,
brincadeiras e jogos de palavras em torno do poder de Otto de tirar música de
qualquer coisa que emita som.
Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira
uma malandragem distorcida ou um galope trance no
pandeiro imaginário que Otto carrega pra tudo que é lugar
desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão.
O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste
pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas
moedas no bolso e lá vem um xote eletrônico, o vento mexe
nas panelas e tome polca de primeira, um bêbado sem-teto
entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.
A psicodelia do mangue beat, os samples de ciranda e o maracatu,
que Xico identifica na música do cantor pernambucano, são a deixa perfeita
para definições sagazes do seu estilo. Aqui, na figura de crítico musical, Xico
Sá atribui ao álbum, intitulado “Samba pra Burro”, as seguintes definições:
“música para viagem feita por um festivo gozador” e “croissant fino para as
massas”.
Batuqueiro nas ruas e metrô de Paris, onde viveu a sua
temporada, ele não esqueceu nem mesmo de cantar na
língua de Gainsbourg, a quem sempre dedica homenagens
noturnas nas mesas de bares. A música "Changez tout", em
parceria com Apollo, é a prova de que a França pode até ter
esquecido Otto, mas Otto não esqueceu o seu francês.
Finaliza Xico, em referência ao período em que Otto viveu em Paris
e começou a vivenciar as suas experiências sonoras. Aqui também ele abre
espaço para as associações que enriquecem sobremaneira a narrativa.
Em Os Limites do Paraíso19, derradeira reportagem escolhida para
nossa análise, notamos que, apesar da pauta fora dos padrões, da meticulosa
apuração feita in loco e pela, mais uma vez, vasta utilização de recursos
18
Resenha publicada na edição 68 de Trip, versão online, de fevereiro de 1999. Disponível em:
< http://revistatrip.uol.com.br//redirect.php?link=http://www.trip.com.br/68/ottomano/home.htm >.
Acesso em: 3 de dezembro de 2006. Ver Anexo VI.
19
Reportagem publicada na edição 89 de Trip, de maio de 2001. Ver Anexo VII.
83
literários – que dão o suporte necessário para a descrição do ambiente e dos
personagens –, Xico opta por respeitar as principais normas vigentes no
jornalismo tradicional.
Enviado a Fernando de Noronha para desvendar histórias escusas
do arquipélago formado por sol, céu, mar, surf e, ainda – como ele constata –,
por neuróticos e eufóricos moradores que parecem não saber como extravasar
suas condições de vida naquele paraíso-prisão, Xico volta com histórias senão
estranhas, certamente inesperadas. Sobretudo se temos em conta o fato da
grande imprensa só divulgar as maravilhas da ilha.
Uma pesquisa feita em 1998 pela Administração do Distrito
Estadual de Noronha apontou que o alcoolismo atinge 25% da
população do arquipélago. A antropóloga pernambucana
Janirza da Rocha Lima, em sua tese de doutorado defendida
na PUC de São Paulo no ano passado, detectou que na ilha
"além do dinheiro fácil, o turismo introduziu na comunidade
insular [...] a música reggae, as pranchas de surf, os veleiros
e, como acessórios complementares, o turismo sexual e a
droga".
Ora, o paraíso também enche o saco. Não poderia ser
diferente na última colônia ultramarina do planeta (como define
o agrônomo e maior liderança popular nativa Domício Alves
Cordeiro, na ilha desde 1948). Com administrador enviado
pelo governo de Pernambuco, que reanexou o território de
Fernando de Noronha em 1988, os nativos nunca mandaram
no seu pedaço de terra, desejo que politicamente vive a sua
mais intensa articulação neste momento.
Como podemos observar, já de início, Xico mostra ao que veio
alicerçado de dados que, certamente, a maioria dos leitores da reportagem,
desconhecia. Informações estas costuradas no decorrer de seu texto de forma
fluida e contextualizada – como costumavam fazer competentemente os Novos
Jornalistas e também Hunter Thompson, pregadores de uma apuração longa e
participativa.
Sua compreensão do funcionamento da ilha também deixa à mostra
a importância de um trabalho que não seja limitado por um espaço prédeterminado de tempo. Mesmo não deixando claro, ao longo da reportagem, o
período que passou no arquipélago – juntamente com os moradores e turistas
–, não é difícil concluirmos que isto se deu de forma lenta, perceptiva e
cuidadosa.
84
Enquanto os nativos mais velhos e chegados neonoronhenses
se articulam politicamente, reunidos na Assembléia Popular de
Noronha - órgão sem direito a voz nem voto, já que os
destinos da ilha são decididos pelos deputados estaduais de
Pernambuco, a 545 quilômetros da ilha -, os mais jovens
tentam curar o banzo do isolamento na ilha, o que a ciência
denomina como síndrome insular, com a danada da cachaça.
Preferem encher a cara a morrer de tédio, mesmo que nunca
tenham lido o famoso verso de Maiakóvski, vermelho que
reinou numa terra gelada, longe, muito longe dali.
A inserção de trocadilhos, de ironia e sarcasmos igualmente se
fazem muito presentes ao longo de toda a narrativa. Xico aproveita para trazer
à tona dois neologismos criados, segundo habitantes locais, para descrever
“doença” tanto dos moradores, como dos eufóricos turistas que estão de
passagem pelo paradisíaco lugar. São eles, respectivamente, “neuronia” e
“euforonha”.
Outro grande mérito de Xico Sá nesta reportagem é a seleção de
variados e ricos personagens. Mais uma vez aqui, ele irá permitir que eles se
construam quase de maneira autônoma, dando voz e espaço às suas
elucubrações, questionamentos, aflições, etc., em referência novamente ao
conceito de polifonia.
Com a palavra o pescador Salviano José de Souza, 83 anos,
nascido no Recife, 60 anos de Noronha e mar, misto do velho
Santiago de Hemingway com o zen-budismo de Dorival
Caymmi: "O limite entre paraíso e prisão depende do espírito
de cada um que vive por aqui. Para os mais agoniados, pode
ser terrível, para os que têm a alma sossegada, vixe!, é um
bálsamo da vida", diz, enquanto hipnotiza o repórter com o
balanço da rede na varanda. "Aqui se bebe faz séculos. Claro
que a vinda de mais turistas, com um dinheirinho, aumentou
um pouco a bebedeira dos meninos, que ficam na cola deles.
Mas num faz mal não. Eles gostam dessa brincadeira. O que
faz mal é cigarro de maço e droga, mas isso é muito pouco
aqui", conta o mais velho habitante do arquipélago, pai de 28
filhos - 14 viveram e 14 "Deus levou" ainda meninos.
Ademais, mesmo não identificada especificamente como uma
construção gonzo – como talvez pudessem ser caracterizadas “Programas de
Governo”, “Roberto marinho” e “Jornal Nacional” –, mais interessante para nós
é constatar a presença em “Os Limites do Paraíso” de recursos que
85
usualmente se perdem no jornalismo cotidiano. Foi esse o nosso critério não
apenas na seleção dessas reportagens tratadas aqui, como também na
escolha da obra de Xico Sá.
Xico, além de jornalista um escritor, talvez possua esse olhar mais
atento e cuidadoso (quiçá o “olhar amoroso”, de que fala Cremilda Medina)
justamente pela afeição que tem ao texto, às narrativas. Assim como se mostra
extremamente preocupado com o conteúdo informativo – como podemos
concluir em suas minuciosas apurações –, o jornalista se volta com dedicação
para a forma – seja lançando mão indiscriminadamente de recursos literários,
seja brincando com a própria tradição da linguagem oral. Tudo no intuito de
tornar mais precisas, consistentes e aprazíveis suas reportagens.
É deste zelo, desta cautela que o jornalista demonstra tanto para
com seu texto, como para com o seu leitor, que quisemos tratar não apenas
neste capítulo, mas ao longo de todo este trabalho. Isto porque acreditamos em
um jornalismo feito com mais atenção, mais humanizado, mais participativo e,
por isso, mais mobilizador. Se para isso for preciso fazer uso de recursos
literários, polifônicos, e o que mais puder ser agregado, que os tragam todos.
Tudo em favor da permanência e da fruição de nossas narrativas.
86
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se, por um lado, tratar cientificamente de um assunto pouco
estudado nos proporciona o prazer do ineditismo, por outro tende a nos deixar
assaz inseguros com o seu resultado final. Apesar da escassa bibliografia, dos
olhares tortos sempre que mencionava a palavra Gonzo, e das dificuldades
inerentes a este tipo de trabalho – que demanda não apenas tempo e esforço,
mas dedicação e afeto – posso afirmar, terminada esta pesquisa, que o mais
interessante dela tenha sido a possibilidade de abordar um assunto que veio à
baila porque subverte, rompe; porque optou por seguir na contramão do que
ditam as normas pré-estabelecidas. Ao darmo-nos conta de que esta
subversão acontece de forma consciente e satisfatória, como é o caso do
Gonzo, a satisfação torna-se maior ainda.
Mesmo chegando a esta conclusão, ressaltamos que em nenhum
momento nossa intenção aqui foi a de afirmar, de maneira definitiva, que
rupturas são necessárias ao jornalismo, ou então que as narrativas ao estilo
Gonzo são melhores do que as narrativas tradicionais e vigentes, atualmente,
em grande parte da imprensa.
Mais do que isso, buscamos discutir e trazer à tona discussões
acerca da temática, no intuito, sobretudo de conhecermos novas e
diferenciadas possibilidades narrativas. De mostrar, enfim, o que existe à
nossa disposição no sentido de aprimorarmos nossas narrativas cotidianas.
Novos Jornalistas e Hunter Thompson com o Gonzo de um lado;
Xico Sá de outro. Apesar das distâncias temporais e espaciais entre eles, o
que podemos observar de concreto em todas essas obras é que a ruptura não
se deu apenas com o tradicionalismo, com os manuais de redação
burocráticos, com a inserção de recursos literários . Ela aconteceu e acontece
porque alguns poucos que acreditam neste aprimoramento persistem, ousam ir
além. E o melhor é que na maioria das vezes esse esforço repercute
positivamente. Mesmo que leve algum tempo para que as pessoas se dêem
conta.
Este trabalho, é válido afirmar, foi feito essencialmente em caráter
experimental, quase ensaístico. E não por displicência. Mas porque, como
87
mencionamos acima, a falta de um número maior de fontes que servissem de
alicerce acabou fazendo com que nós tomássemos iniciativas independentes,
selecionando autonomamente aqueles aspectos que, ao longo de sua
confecção, fomos avaliando como os mais imprescindíveis e coerentes a
serem analisados.
Fica a sensação de que muitos outros pontos poderiam ter sido ditos
ou mesmo aperfeiçoados no decorrer da pesquisa. Mas, justamente por
acreditarmos nisso e no fato do assunto não pode morrer, de maneira alguma,
neste breve apanhado, nos restam planos para seguir adiante com esses
debates. O humor como recurso comunicativo é um aspecto desta pesquisa
que certamente ficará para trabalhos futuros, assim como um aprimoramento
do conceito de polifonia – essencial para a riqueza narrativa.
Posto isso, resta-nos falar do prazer que foi trabalhar com um tema
que, além de rico e repleto de panos para manga, faz com que a nossa
confiança se renove. Acreditar em um jornalismo melhor, mais cuidadoso e,
certamente, mais aprazível, foi um das grandes lições que tirei deste trabalho.
88
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de Bacharel em Comunicação Social.
91
ANEXOS
ÍNDICE:
Anexo I
Roberto marinho
Anexo II
Jornal Nacional
Anexo III
Programas de Governo
Anexo IV
Texto de Abertura da Entrevista com o rapper Sabotage
Anexo V
O Brasil de Chico
Anexo VI
O samba-rave, meu irmão
Anexo VII
Os limites do Paraíso
Anexo VIII
Entrevista com Xico Sá
92
ANEXO 1
ROBERTO MARINHO (TRIP #142)
por Xico Sá
Não adianta nem tentar... ou esquecer. O Rei está firme e cada vez mais à
vontade no trono. Livre do transtorno obsessivo que o prendia em um
assustador mundo azul, Roberto Carlos volta aos palcos bem mais feliz.
Para entender a quantas anda o coração de nossa majestade e os de seus
súditos, Trip embarca no Costa Victoria, o cruzeiro real que levou ao mar
o show de Robertão – lágrimas, Viagra e muito amor. Foram tantas
emoções...
Muito prazer, bem-vindos a bordo do Costa Victoria, eu sou o
Hemingway da Praia Grande, farofeiro assumido, faroleiro bissexto e escriba
fulêro, e começa aqui o meu novo romance: O VELHO, O VIAGRA E O MAR.
São muitas ereções... O importante é que emoções eu vivi.
Estamos à beira da piscina de um dos maiores transatlânticos do
mundo, como se fosse grande prédio, um Copan, aquela obra de Niemeyer no
centro de São Paulo, como se fosse um Copan menos elegante, isso mesmo,
já é, que deslizasse sobre o Atlântico. 11º andar, ou Ponte 11/Rigoletto, como é
chamado o basfond das piscinas, um dos jardins suspensos mais disputados
desse gigante sobre as águas.
Estamos à altura de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, sol por
testemunha que é bom, porra nenhuma, nuvens carregadas viram gorros,
bonés, panamás de nossas existências ressacadas e tacanhas, mas tentamos
nos animar de qualquer jeito, ora, afinal de contas não é todo dia que estamos
num cruzeiro com Ele, o inimitável, o homem de qualidades, o Rei em ritmo de
aventura-slow-motion em alto mar...
Com vocês Roberto Carlos Braga, menino de Cachoeiro do
Itapemirim, 65 primaveras depois, em carne e osso, vixi, meu Deus, é Ele de
verdade.
O FILHO DA LAURA
Eu vivo esse momento lindo, mesmo ar leso de bobo da corte, que
importa! Jesus Cristo, eu estou aqui! O importante é que emoções...
Me belisca, dona Lady Laura. Sim, a mãe do Rei, que virou nome
dos seus iates, o I, o II e o III, está entre nós, aqui do lado. Ligo para a minha,
dona Maria do Socorro, em Juazeiro: “Meu filho...” Ela chora. Choramos o
Atlântico que se formou entre nós nesse tempo todo, o desatino da rapaziada e
de todos os migrantes de todos os mapas, como conta o velho e bom Werneck
que sabe das coisas. Essas recordações me matam, essas recordações me
matam...
“Amor só de mãe, Roberto?”, pergunto, aproveitando uma brecha
entre repórteres de TV e a marcação mais realista do que o Rei da produção
do “Emoções para Sempre em Alto Mar”, projeto que trouxe o ídolo a este
cruzeiro.
“Como?”, o Rei dá uma de desentendido.
“Amor... só de mãe, Roberto?” O Rei ri à beça.
“Bicho...”
93
Ri o rei como se eu fosse mesmo o mais competente daquela corte
de tantos bobos.
“Bicho... Amor de mãe, das fãs, de todas as mulheres”.
O Rei ri de novo, aquela risada de quem não tem mais a cabeça
cheia de problemas, sabe? Toc, toc, toc, toca três vezes na imbuia da
existência, na cerejeira das nossas loucuras mais íntimas, na fórmica dos
nossos labirintos mais fóbicos.
“Como me faz bem essa terapia”, sopraria mais tarde RC, elogio
merecido do divã, que está curando o seu transtorno obsessivo compulsivo,
toc, toc no compensado das nossas almas descompensadas, salve o divã, viva
o divã, aliás, o divã é título de uma das suas canções mais obscuras, biográfica
no último, mesmo no tempo em que Ele nem sabia que precisava.
É Roberto, o paciente c´est moi, o louco somos nós todos, uma canja
da letra, pois, canta para nós:
“Eu venho aqui me deito e falo
Pra você que só escuta
Não entende a minha luta
Afinal, de que me queixo
São problemas superados
Mas o meu passado vive
Em tudo que eu faço agora
Ele está no meu presente
Mas eu apenas desabafo
Confusões da minha mente.”
O que queremos de nós mesmos, Roberto? Como vai você, eu
preciso saber da sua vida! O que a vida quer de nós além de consumir o nosso
corpinho tábua-de-engomar enrugada de Iggy Pop? Só o vento do alto mar e o
divã sabem a resposta.
O que querem as mulheres, mestre? Nunca saberemos, Roberto,
mas tentaremos antecipar os seus desejos. Homem que é homem, o Rei bem
sabe, vira o gênio da lâmpada diante de uma mulher que pede o impossível,
como bem disse o escritor Joca Reiners Terron, ou teria sido Otto Lara
Resende?
Encaro o Rei, aperto aquela mão direita para pegar por osmose o
que nada sei. “Bicho...” O homem que sabia demais do amor e suas lições
mais óbvias. O professor de educação sentimental das massas e os seus
amassos no portão de todos os domingos, domingos de missa, domingos de
sarros e os primeiros beijos na boca. De língua, nossa língua portuguesa,
Pasquale, e que se danem nossas coordenadas assindéticas, língua é pra
beijar, nada mais, nos períodos mais longos e férteis, o amor acaba; o mais
são grunhidos, o som, a fúria, nossas melhores onomatopéias das antologias
mais bêbadas...
O importante é que ereções eu vivi.
O Rei está com a mãe, família, auxiliares, mas estaria também com
alguma Lolita al mare? Os boatos dão conta de uma fase Nabokov do astro.
“Falam coisas demais sobre a minha vida”, diz, como se pedisse
desculpa aos 200 fãs histéricos, quase 80 balzacas, sorteadas entre os já ditos
94
2.300 passageiros do Costa Victoria, transatlântico de bandeira italiana, parole,
parole.
HUMILDES SÚDITAS
Diante do Rei, não há menopausa. Todas voltam à velha e conhecida
TPM.
“Perdi pai, todos os homens que eu tinha, só me resta o Roberto”,
conta Maria da Penha, cinqüentenária – não adianta, não pergunto idade exata
de mulheres – que tenta furar o cerco dos seguranças e assessores para
entregar uma caixa enorme de presentes. “Artesanato alagoano”, relata o
conteúdo e chora ainda mais, desmancha-se, meu Deus, naifs-corações. Feitos
à mão.
Maria é empresária, bem de vida, dona de oficinas mecânicas e
retíficas em Maceió, é o próprio dilúvio. Conforto a viúva, num abraço
comovido. Sinto as suas lágrimas a deslizarem sobre as lentes verdes dos
meus óculos grandes que nem a terra há de comer enquanto não decifrarem
meu epitáfio.
“Te joga, rompe o cerco, te entrega, segura na mão de Deus e vai,
com presente e tudo”, dou uma de cupido. Ela ameaça, mas, a uns três metros
do obscuro objeto de desejo, freia; o gás azul e paralisante da emoção. “Me
abraça”, pede. Agarro de novo, mais forte ainda. O importante é que ereções
eu vivi. A vida é brega como uma carta de amor.
Pego o presente e levo quase aos pés do XXXXXXXXX de
Cachoeiro de Itapemirim. Os seguranças terminaram o percurso. O Rei, qual
sua capa pendurada, assistia a tudo e num dizia era nada.
E sexo, Roberto, pergunta um amigo.
“Sexo é importante!!!”, diz, solene, seco numa frase como um noir
americano. E uma nova e desabrida risada real, como quem acabou de praticar
o esporte lá na sua cabine, vizinha a do comandante.
Não tenho dúvida, cutuco outra gostosa afilhada de Balzac que se
encontra nas proximidades, o Rei acabou de, digamos, com o perdão às moças
de família, fuder. É incontestável o sorriso de quem acabou de cavalgar por
toda noite uma estrada colorida, usar beijos como açoite e dar um trato com a
mão mais atrevida... Sinto o cheiro de sexo. O rato do amor roeu as roupas do
Rei de Angra.
O VELHO, O VIAGRA E O MAR.
Chovia lá fora e eu, Hemingway da Praia Grande ou do Janga (a
mais cubana das areias pernambucanas), qual a capa pendurada do Rei,
assistia a tudo e não dizia nada. Repórter que pergunta demais e se mete
acaba perdendo o fio da meada. Jovens estudantes e futuros jornalistas, agora
toco uma de ouvidos, com orgulho de um tio-coruja, para vocês, mancebos e
Lolitas, educai-vos: sejam generosos com a notícia, ouçam, ouçam, ouçam na
surdina, alteridade na moita, na maciota, na tocaia. Deixe a vida vos levar,
Sócrates leva eu: só sei que nada sei. Roberto é socrático radical: “Só agora eu
sei, o que aconteceu/quem sabe menos das coisas/sabe muito mais que eu”,
diz a sua sabedoria dos 70, 1972, creio.
Velhinho 1: “Fuder nesse balanço do mar tem uma certa diferença,
não tem?”
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Velhinho 3 intervém: “Em matéria de sexo eu to sempre boiando
mesmo, que diferença faz?!”
Velhinho 2: “Olha aquela gordinha linda na fila da lingüiça!”
Velhinho 1 canta Roberto: “Coisa bonita, coisa gostosa/quem foi que
disse que tem que ser magra/para ser formosa...”
Como se come por aqui. Haja buffet.
“Sabia que tem quase mil coroas sobrando na área?”, mete a colher
no meio o velhinho 4, que acaba de chegar com um perfume que me deixa
chapado. “Li no jornal”.
Velhinho 2 para velhinho 1: “Já pensou a gente sozinho aqui, que
estrago!”
Velhinho 1: “Se é pra brochar, passar vergonha, melhor com as
patroas mesmo”.
Velhinho 4, com acentuado sotaque santista: “Nem fudendo!”.
Papo de baralho ou dominó de pracinha de interior. Com a diferença
de que no transatlântico rola um câmbio negro da pílula azul, ali, encostadinho
à cabine de quem parece menos precisar, Ele, o Rei Roberto.
Chovia lá fora...
Então as coroas vão às compras. O Costa Victoria vira um shopping
flutuante. Mina de ouro esse cruzeiro. Sai de Santos, vai lá pras bandas de
Búzios, meia volta, volver. Dificilmente um doente pelo Rei gasta menos de R$
3 mil no pacote mínimo de três dias, e lá se vão R$ 6 mil pelo casal de
pombinhos, noves fora uma noite no cassino, o Campari a mais na viagem
noite adentro. Quem dorme às sete luas com RC, mesmo que seja muito
econômico nos gastos extras, não vai deixar de morrer, individualmente, com
uns R$ 5 mil, para dizer o mínimo.
Vende-se de tudo. Além do Viagra e do Cialis, do mesmo gênero, no
câmbio negro. “A cartela só em dólar”, ameaça o velhinho traficante de desejos
ambulantes, guerra dos bons mascates.
E haja piadas de Titanic sem graça. Hahahahahaaaa. E haja piadas
incorretas com a tripulação de filipinos, nobres rapazes que são chamados
brasileiramente de tsunamis, tsunamizinhos etc. Eles só têm um defeito: como
são apressados na hora de recolher os nossos copos nas refeições.
GENÉRICOS
Sósia – ”você acha que eu sou lóki?” – é o que não falta no cruzeiro
do real. Enquanto não esbarrava com o Rei de fato e de verdade, me diverti foi
com o Roberto Carlos de Penápolis, interior de São Paulo, eita peça, “figura”,
como se dizia no meu tempo... tempo de criança.
Se um outro cabeludo aparecer na sua rua, todo cuidado é pouco,
trata-se de Carlos Antonio Peres Rodrigues, 60, comerciante aposentado, “uma
brasa, mora?!” A diferença entre ele e o Rei de verdade é apenas no fim do
mês. O homem-carbono recebe bem menos, noves fora os gastos no cruzeiro.
Dona Maria Arlete, mulher do Rei-cover, mesma idade ou quase –
não insistam, não conto anos de mulheres — está morta de feliz. “Me sinto
como se fosse casada com Roberto Carlos, além de igualzinho é melhor
ainda”, ruboriza. Valeu a pena quebrar o porquinho das economias. O
importante é que emoções eu vivi.
Laura Mendonza, garçonete peruana entre os tripulantes filipinos,
italianos e brasileiros (quase todos professores de dança, animadores, ou seja,
96
bobos da corte) vê atenta um desfile de modas no sexto andar do Costa
Victoria: “Gostei...” Faz cara de quem gostou quase nada. Eterna inveja das
moças gostosasssssssss.
Fernanda Liz, 19, modelo paulistana que acabou de desfilar, coisa
linda que poderia ter dormido na minha cabine imaginária, prossegue, sobre a
sensação daquela tarde: “Parece que a gente flutua”, diz do balanço do
transatlântico da passarela. E se você desse de cara com o Rei num desses
labirintos do navio, ali de madrugada?
Deixo a Lola sem graça. Ela cora. Linda, amoreeee. Beijinho, a gente
se vê no show à noite.
O papo de baralho ou dominó de pracinha de interior, incluindo
câmbio negro da pílula azul, rolava a uns 10 metros da cabine do Roberto.
Tudo certo como dois e dois são cinco.
Chovia lá fora...
Fujo e canto para uma balzaca, aquela do presente em lágrimas,
uma das antigas do supracitado Roberto dos 70: “Minha senhora/ Eu estou
apaixonado/ Minha senhora/ quero ser seu namorado”.
Uma linda menina free-lancer do Metrópolis, da Cultura, me manda
um bilhetinho: o Rei está com um ponto, alguém lhe sopra alguma coisa para
se safar na entrevista coletiva. Nem precisava.
Pergunto se, à vera, como diz a biografia do Tarso de Castro, escrita
pelo Tom Cardoso, o grande Castro, o gaúcho que fundou o Pasquim carioca,
seria mesmo o “outro cabeludo” da música “Detalhes”.
“Bicho...”
O Rei ri, o rei que acabou de fuder ou quase. Tem na face o sorriso
do gato de Alice.
“O Tarso”, me diz o Rei, “era um jornalista amigo, muito brincalhão,
adorava tirar uma onda, e deve ser por isso que falam dessa história até hoje.”
Num texto histórico do Pasquim – ”Minha vida íntima com Roberto Carlos” –, de
1970, Tarso, depois de freqüentar a intimidade monarca, tira maior onda com
RC mesmo, dizendo para Nice, primeira-dama da realeza da época, que tinha
um caso com o cabeludo.
RC diz ainda: “Repare na letra: Se... Se um outro cabeludo
aparecer...”. Condicional, entende? O que só amplia o suspense. Pode até não
ter sido o velho e bom Tarso, mas que rolou uma guerra capilar, ah, rolou.
E quem seria o diabo desse cabeludo? Existiu, existe?
“Ele não está mais com a pessoa”, diz, passando um recibo do bem
de que a vida nos trai na curva. Como se cantasse os maiores versos de amor
da língua portuguesa de todos os tempos, incluindo Camões, e viva também
Erasmo: “Vou deixar de pensar em você/para prestar atenção na estrada”.
O Rei está tão serelepe, sem nóias, agora até canta, como no show
do navio, “Um negro gato”, música banida por conta do TOC – nada escuro
podia. Canta e comenta. Já, já, insinua, vão rolar os versos de “e que tudo mais
vá pro inferno”, outro sucesso ainda proibidão pelas forças estranhas e
internas. O rei ri à toa. Anuncia que, depois de 25 anos, vai voltar a comer
carne vermelha. “Só comi, nesse tempo todo, o que nada ou o que balança
com o vento”, fala, espero, de peixes e folhas.
BICHO SOLTO
97
O Rei faz um show muito intimista no transatlântico. Canta tão bem e
no ouvido das fãs quanto um João Gilberto mais romântico. Até tira a bela
Jurema, backing vocal da sua banda, ao prazer da contradança. “Contradança,
que coisa antiga, né?”, comenta, solto. Mas que nada, ai está a delicadeza,
meu Rei, pisa fundo.
O Rei encoxa Jurema como se dançasse com todas as mulheres do
mundo. O Rei está feliz na medida do possível, o Rei dirige o seu próprio
ônibus cantando – assim foi do Rio para embarcar no Cruzeiro, em Santos. O
Rei, respeitoso, homenageia Maria Rita com acrósticos e feitios de oração de
um devoto.
Chuva de rosas vermelhas e brancas para as lindas balzacas que se
estapeavam. No meio do tumulto, nossa brava fotógrafa Rochelle, que me
acompanhava nesta aventura, foi vítima de ventosidades venenosas, gases
sarins, flatulências românticas, resultado de um cruzeiro de comilança, sopros
involuntários que nublaram suas lentes. Socorro!!!
“Até logo, bicho”, o Rei sobe para a sua cabine. “Só me resta agora
dizer adeus/e o meu caminho seguir”.
Lembro que perguntei a RC, olho no olho, sobre os amigos, essas
dádivas. Um milhão, como na cantiga? “Agora são mais, um milhão era
naquele tempo”, disse. Claro que a vida de ídolo-mor impõe um certo
isolamento, reconheceu. “Mas conto contigo”, soprou. Saí assobiando um
clássico: “O show já terminou/vamos voltar à realidade/não precisamos
mais/usar aquela maquiagem/que escondeu de nós/uma verdade que
insistimos em não ver”.
Meninos eu vi.
Armação de Búzios, verão de 2.006
98
ANEXO 2
JORNAL NACIONAL (TRIP #135)
por Xico Sá com ilustrações de Lourenço Mutarelli
Cobertura política não precisa ser maçante, como provou Mr. Hunter
Thompson em suas imersões pela Casa Branca. Em uma homenagem ao
finado mestre do jornalismo gonzo, trip despachou uma dupla insólita
para Brasília no dia mais quente da política brasileira dos últimos anos –
o dia da queda de Zé Dirceu. Apesar da linguagem ousada tanto em texto
como nas ilustrações exclusivas feitas in loco – milhas distantes do
formatão desgastado das revistas semanais e telejornais engravatados -,
tudo aqui é verdade, a exemplo do mais fino new journalism norteamericano. Com vocês, direto da capital branca, o poder e suas tentações
“Nenhum indício melhor se pode ter a respeito de um homem do que
saber o caráter dos seus companheiros de poder” (“O Príncipe”, de Maquiavel).
Se você estiver meio loki, seja lá por qual motivo ou química, o táxi
vai correr na via expressa, saindo do aeroporto, e a sensação é a de que
acabou de pisar nos arrabaldes de Los Angeles. Com cheiro de deserto e tudo
nas narinas, umidade relativa do ar lá embaixo, você desliza no asfalto macio
até cair numa paisagem que lhe transporta, como num pesadelo dirigido por
David Lynch, para o cenário do “JN” narrado por William Bonner & Fátima
Bernardes.
Benvindo a Brasília, benvindo à Brasília que não passa no noticiário.
A bizarrice está apenas começando. “Boa noite”. À nossa direita, a torre. Que
já foi “suicidódromo” oficial da planície. Por falta de cumeeiras e janelas de
prédios residenciais mais altos, muita gente atirava-se lá dali de cima. Ceu
baixo, quase como chapéu de nuvens rasantes sobre a cabeça. “Toda a
plataforma, você não vê a torreeee”, é disso que fala a música de Renato
Russo, hino místico do filho da cidade.
Atravessamos a Esplanada do Ministério. Esse cheiro que você está
sentindo vem do ralo. Mais adiante, o Congresso. Esse cheiro vem do ralo. Ali
a Praça dos Três Poderes. O Palácio do Planalto. O ralo. Quarto andar deste
mesmo palacete. O todo-poderoso ministro da Casa Civil, José Dirceu, está
nervoso. Mas ainda no cargo. Em Brasília, 19 horas. 15 de julho de 2005. A
semana histórica e decisiva para o governo do “Sapo Barbudo” _como Lula era
visto por Leonel Brizola_ que virou Príncipe desse reinado. A semana mais
importante dos últimos anos. E “Trip” estava lá para contar tudo.
E haja namoro de homem. Política é namoro de homem, dizia o
cronista mineiro Paulo Mendes Campos. A CPI dos Correios estoura no
Congresso. O governo leva a melhor e indica o presidente e o relator das
investigações. Algo como se num jogo de futebol um dos times indicasse o juiz.
O cheiro do ralo. Só se fala em uma coisa: o “mensalão”, a mesada de R$ 30
mil repassada, segundo o deputado Roberto Jefferson (PTB), a parlamentares
do PP e PL em troca da fidelidade ao governo.
No setor hoteleiro sul, Sheyla, nome de guerra da linda garota de
programa nas imediações do hotel Saint Paul, segue o mesmo lema: “Pra ser
99
fiel é mais caro. Só de R$ 10 mil por mês para cima”, politiza. “Ah se eu pego
esse Delúbio...”, suspira.
Esse senhor de nome estranho, tesoureiro do PT, seria o
responsável pelo repassas das mesadas. “Fora Delúbio”, pede a própria
bancada de senadores petistas. O cheiro do ralo. José Dirceu, que seria
mentor do mensalão, segundo Jeffersos, deixa o quarto andar do Planalto e vai
dormir ainda ministro. No terceiro, Lula decide: o amigo Zé está fora.
No conforto do seu lar, um homem tem motivo de sobra para rir de
tudo isso: o ministro da Previdência Romero Jucá. Alvo de denúncias de
irregularidades, ele vê-se aliviado. Em Brasília em assim, nada como um
escândalo atrás do outro para tirar o foco de tantos suspeitos e culpados.
“Passou hoje aqui com um sorriso de canto a canto”, diz um lavador de carro
do prédio do Ministério comandado por Jucá. “Meu nome? Tá doido, sô!”.
Sabe-se apenas que é mineiro.
Levo Sheyla para o hotel. Preciso apurar mais sobre o mensalão.
Informações de alcova. Mas cadê a camisinha? Cadê a mala? Este repórter
lesado havia esquecido a bagagem no Aeroporto. Pasme, quase quatro horas
depois, retorno e a dita cuja está lá, intacta com suas rodinhas, em pleno hall.
Quem disse que tem ladrão em Brasília? Isso em plena semana que se discute
pagamento de propina nos Correios e no Congresso... Cidade honestíssima.
“Não levaram a sua mala porque estavam todos entretidos com o
mensalão”, explica o taxista Antonio Santos, 45, piauiense há 15 anos em
Brasília. “Aqui não se rouba mixaria”.
Deixo Sheyla na boate Gol, setor hoteleiro Sul _tudo é por setor em
Brasília, inclusive a prostituição. Boate cara. Um programa de uma garota
custa, em média, R$ 300. Elas fazem por semana mais do que os R$ 3 mil
pagos de propina no caso dos Correios. “Mas damos duro pra isso”, argumenta
Tânia, nome de guerra de uma linda morena goiana. “Conterrânea de Delúbio”,
diz. Só se fala do homem-tempestade.
Quinta-feira, 16
“Você está em que jornal mesmo, conterrâneo?”, me pergunta
Severino Cavalcante (PP-PE), presidente do Congresso. Aqui, agora, a serviço
da “Trip”. O deputado me pega pelo braço _entro inevitavelmente no namoro
de homem_ e saímos conversando da saída do plenário até o seu gabinete.
TRIP – De onde vem esse cheiro?
Severino- Que cheiro?
TRIP – O senhor não está sentindo?
Severino [depois de aspirar fundo três vezes] – Tá cheirando bem
o salão, como sempre.
TRIP – Pois eu estou sentindo um mau cheiro danado...
Severino – Você tá é com presepada, né, meu filho?
TRIP – É o cheiro do ralo, deputado.
Severino – Você quer conversar sério ou não, cidadão?
TRIP – O sr. acha que algum colega seu, aqui da casa, vai ser
cassado?
Severino – Se ficar comprovado o que estão falando _mensalão_
vamos ter que tomar alguma providência nesse sentido. Mas depois das
investigações. E se tiver prova.
100
TRIP – Com esse corporativismo todo do Congresso, o sr. que pode
haver mesmo cassação?
Severino – No que depender de mim, a coisa é séria. E se for pra
mandar embora deputado a gente manda mesmo. Quando eu era da
Corregedoria da casa fui favorável a cassar um bocado, num tá lembrado?
[Refere-se ao escândalo da compra de votos para a reeleição do presidente
Fernando Henrique Cardoso, em......]
TRIP – O sr. se acha folclórico como pintam na imprensa ou não vê
graça nisso?
Severino – Folclore é bumba-meu-boi, papagu, essas coisas... Eu
sou respeitado, presidente do Congresso do meu país.
TRIP – Deputado, por obséquio, sinta só o cheiro agora!
Severino – Lá vem você de novo com isso...
TRIP – Cheiro de mensalão, deputado.
Severino [rindo] – E quem disse que dinheiro fede?
TRIP – Nem dinheiro sujo, deputado?
Severino – Conterrâneo, me dê licença, outra hora passe aqui que a
gente continua a conversa.
Plenário da Câmara dos Deputados. Pinga-pinga de discursos contra
e a favor do governo. “Cassei sete na Corregedoria, no caso da compra de
votos”, Severino agora fala na tribuna. José Carlos Aleluia (PFL-BA) reclama
de um dinheiro aprovado pelo governo destinado à Escola de Samba da
Mangueira. Fleury (PTB), governador paulista marcado pela chacina dos 111
presos do Carandiru, critica o uso exagerado de algemas em casos de pessoas
“de bem” detidas pela Polícia Federal. Refere-se aos empresários e executivos
da Schincariol que haviam sido recolhidos pela PF na chamada “Operação
Cevada”.
Quarto andar do Palácio do Planalto. Tarde de quinta, 16. A quinta é
conhecida no poder como o dia oficial dos boatos. Numa semana quente,
então... Zé já acertou a sua saída com o velho companheiro Lula. O comitê de
imprensa, onde ficam os setoristas – tudo em Brasília é por setor mesmo – está
agitado. A queda anunciada, mas ninguém dá a informação oficialmente. Até
que aparece o próprio Zé, no comecinho da noite, para dizer a missa de corpo
presente com todos os seus rrrrr de homem do interiorrrrrr.
O cheiro do ralo, mas agora num cenário bem mais leve. “Já vai
tarde”, comemorou Roberto Jefferson, que foi avisado da queda por telefone,
em conversa com o colega de partido Nilton Capixaba (Rondônia). Depois
passou a acompanhar tudo na tevê.
“Lula não quer que a lama se alastre para o gabinete dele”, disse
“Jeff”, como estava sendo chamado pelos amigos, à TRIP, naquela mesma
noite. Conheço bem Jefferson desde os tempos do Collorgate. Era da chamada
“tropa de choque” do presidente cassado, inimigo mortal do mesmo PT com
quem fechou aliança durante o atual governo Lula.
Que cheiro é esse, deputado?, repeti a pergunta para o homem que
se divertia jogando merda parlamentar no ventilador naquela semana quente.
“Ora, Brasília hoje cheira a mensalão e a Delúbio”, respondeu,
sorriso de canto a canto por causa da despedida de Zé Dirceu.
Horas depois, Jefferson recebeu colegas parlamentares do PTB,
para uma reunião. Antes de dormir, contou que veria o filme “O homem que
101
sabia demais” (The Man Who Knew Too Much, 1956), de Alfred Hitchcock.
“Não é piada, é sério mesmo”, alertou.
No meio da tempestade, Jefferson confessou a amigos que temia
sofrer algum atentado. “O meu cadáver interessa a muita gente nessa hora”,
soprou a um colega de bancada no Congresso.
“Cidade estranha essa, você só vê fachada e carro, a arquitetura
engole as pessoas”. Era o ilustrador destas páginas, Lourenço Mutarelli, autor
de nada mais nada mesmo do que o livro “O cheiro do ralo”, que chegava ao
hotel Eron, onde ficamos hospedados. Primeira visita a Brasília, primeira vez
que vestia um terno, primeira gravata. Haja elegância na risca de giz à moda
da máfia siciliana.
Uma cerveja antes da noitada para ficar pensando melhor. No
restaurante japonês, vários assessores do governo e de deputados petistas.
Eles parecem bem aliviados com a saída de Zé Dirceu do quarto andar do
Planalto. Ufa!
Flanamos pela Asa Sul do avião que é Brasília. A noite da queda
está animada. O Depósito de Bebidas Piauí, um bar improvisado no meio de
grades e mais grades de cerveja, é um raro lugar na cidade onde é permitido
fumar. Por isso está lotado de gente de todos os escalões da República. Fumar
no Plano Piloto, onde fica o centro do poder federal, é proibido por lei. Não há
acordo. Os restaurantes não têm áreas para fumantes. Proibido. E pronto.
Uma da manhã e a noite está apenas começando no Conic, o setor
de diversões sul, onde igrejas evangélicas e puteiros dividem o mesmo espaço
desenhado por Oscar Niemeyer. Cid – ”só Cid mesmo,sem sobrenome por
favor – é o nosso guia na putaria. Ele mora atrás da tela do Ritz, o cinema
pornô, onde ajuda na administração. Veio do Rio Grande do Norte há cinco
anos, depois de esmolar na cidade, dormindo pelas calçadas, encontrou
abrigo. “Cadê que os evangélicos me deram um lugar, um emprego, o que
encontrei de bom foi aqui entre as putas”, discursa.
O Snooker Sunset Ltda, mas conhecido como “Sinucão”, é o point
da madruga numa capital que fecha as portas muito cedo _depois de uma da
manhã é difícil encontrar bares e restaurantes abertos em Brasília.
Depois do Beirute, animado boteco que reúne as tribos mais loucas,
só resta este imenso salão com seis mesas de sinucas e uma radiola-de-ficha
(jukebox) com 310 CDs para embalar a noitada. 310 CDs mas parece que só
toca Renato Russo. Uma atrás da outra. “Toda a plataforma, você não vê a
torre...” Hino oficial de Brasília.
O “Sinucão” ferve. Dois angolanos tiram uma onda de personalsnooker para as moças. Mutarelli escolhe um ângulo e começa a desenhar as
putas, as meninas que fazem sexo explícito no cine pornô. Ninguém ali fala em
mensalão ou qualquer outra palavrão oficial. E repare que aquela sacanagem
fica colada às sacanagens do poder. Quase na Esplanada dos Ministérios,
pertíssimo do Congresso.
“Isso aqui é casa de família em comparação com o que acontece lá
nos gabinetes dos ministros e dos deputados”, diz o velho Cid. No balcão, o
pedreiro Luciano Santos, de 21 anos, me mostra a foto da noiva. Está
enchendo a cara e quase chorando. Pé-na-bunda bem dado. “Dor de corno”,
ele mesmo ri dele mesmo. “Essa porra num passa com remédio nenhum, só
com cachaça”. Mais uma, garçom.
102
Um dos angolanos vai fiscalizar o caderno de desenhos de Mutarelli.
Manda apagar um personagem que achava que fosse ele. Nem era, mas
encana. Procurado pela polícia, não pode dar as caras por ai. Olha folha por
folha do caderno.
Só um braço do negão era mais forte que Mutarelli inteiro. Nosso
ilustrador pôs um cabelo diferente no personagem que o angolano achava que
era ele. Aí tudo bem, belê. O perigo era o cara querer rasgar o caderno, o que
acabou não ocorrendo, para felicidade geral dos leitores desta revista.
Os angolanos, na real, eram michês. “Eu fodo a sua mulher e você
fica olhando, vamos fazer uma festinha”, propôs um deles a mim, que nem
mulher tinha ali.
Sexta-feira, 17, Palácio do Planalto, day after
A crise viaja.
Zé Dirceu, já na pele de um simples deputado, vai para São Paulo,
onde se notabilizou por montar o que era chamado na Assembléia Legislativa
de “máquina de denúncias”. Nunca um gabinete parlamentar denunciou tantos
casos de corrupção, principalmente contra o governo Quércia (1987-91), como
o do petista que agora se vê na condição de caça.
O ar de Brasília está menos punk, embora a gente ainda sinta o
cheiro do ralo.
O “aerolula” decola da Base Aérea rumo ao sul do país. Não era
mesmo, porém, uma semana para o “Sapo Barbudo” que virou Príncipe. O mau
tempo chacoalhou o avião presidencial. Só faltava mesmo essa pane.
Num dia em que encontraria uma multidão de pelo menos 5.000
pessoas ligadas à agricultura familiar em Santa Catarina. Uma multidão que o
aplaudiria, por causa dos recursos públicos que irrigam as suas terras. O
encontro havia sido estrategicamente planejado para aliviar a barra do governo.
Um “factóide”, como se define no dicionário político esse tipo de acontecimento
forjado.
Com a pane, e impossibilitado de aterrissar, o “aerolula” ,em vez do
caminho da roça, tomou o caminho de volta ao cenário da crise. O cheiro do
ralo.
Mutarelli e este farejador que vos narra fomos então passar a tarde
com o presidente no Palácio do Planalto. “Café, água?”, nos perguntavam a
cada minuto o batalhão de garçons e secretárias. Uns garçons são do café,
outros são apenas da água. Tudo em Brasília é por setor, como falamos. Setor
do café, setor da água. Em poucos minutos já havíamos tomado uns 300 cafés
e uma 300 águas. Também não somos de rejeitar aquilo que é pago pelos
nossos bolsos.
No terceiro piso, Lula procura encontrar o substituto do companheiro
“Zé”, como trata Dirceu. Enquanto passeávamos ali na frente do seu protegido
gabinete, repleto de seguranças e homens tanto do café como da água, o
presidente fechava com Dilma Rouseff, ex-ministra das Minas e Energia, exguerrilheira, para ocupar a vaga deixada na Casa Civil.
No quarto andar, a sala do ex-ministro que voltava a ser deputado,
só tinha a presença da turma do café e da turma da água. O supergabinete do
homem conhecido ali, entre os assessores e funcionários, como “Maq” – de
Nicolau Maquiavel, o autor do clássico “O Príncipe”, uma espécie de manual do
poder_ parecia uma saleta de um barnabé de terceiro escalão.
103
No Congresso, mesmo com toda a crise, pouquíssimos deputados e
senadores trabalham. Lá, uma semana tem praticamente três dias: terça,
quarta e quinta.
Tarde vazia de sexta.
No plenário, um deputado, Nelson Marquezelli, paulista do PTB de
Jefferson, discursa para o outro, Jackson Barreto, sergipano do mesmo partido.
Excelência pr´aqui, excelência para acolá. Nobre deputado isso, nobre
deputado aquilo, blablablablá. Testemunhamos apenas dois ilustríssimos
parlamentares na tribuna na sexta da crise mais braba que Brasília já viveu nos
últimos anos. Cada um falou por 20 minutos. Brasília já às moscas.
Cadê seu Severino que não vê uma coisas dessas?
Seu Severino foi a vários arraias juninos naquele dia. Antes da
viagem para a sua cidade, João Alfredo, em Pernambuco, onde também pulou
outras tantas fogueiras.
À noite, também fizemos turismo. Ir a Brasília e não testemunhar
uma quadrilha é como ir a Roma e não ver o papa. Fomos ao “arraiá” do
restaurante mineiro “Comê na Roça”, num sítio ali perto. Pena que o nosso
poderoso ilustrador, por causa do escuro, não pode desenhá-la.
E não é que demos de cara com o “seu” Delúbio?!
Não na quadrilha, mas na ante-sala do inferno de Dante, como o
escriba Leandro Fortes, do blog “Brasília eu vi”, que faz uma cobertura do lado
B da cidade, define o Ottello. Você não faz idéia que diabo é aquilo! Um
sucesso.
Numa cidade cuja diversão é dominada pelo poder ultrajovem, como
nas belas noites roqueiras do Gate´s Pub, o Ottello, que nada diz respeito a
Shakespeare, é um filme ao vivo de Almodóvar. Sentou logo à nossa mesa a
“musa da boca torta”, uma senhora encharcada de álcool até a alma. No
Ottello, todo mundo te conhece há muitos anos, embora nunca tenha
encontrado. Sabe as vidas passadas?
As coroas atacam para valer. Nunca vi na minha vida
cinqüentenárias e sexagenárias jogando tão avançadas, tipo time que joga com
cinco atacantes, sem volantes. Pegam no pau sem constrangimento. Lindas.
Almodóvar perde. E carnes à mostra, sem vergonha dos padrões do SP
Fashion Week e da estética da magreza publicitária. Lindas. Para a refeição
ficar completa, é lá que tem um cover do rei Roberto que manda ver para atiçar
ainda mais as “Marias Ritas” tão românticas.
Os coroas entornam Viagra com Malibu _sabe aquela bebida
caribenha da garrafa branca? Depois rola uma pegação louca na pista da
música ao vivo. O bom é que, como todo mundo se conhece há 200 anos, a
intimidade é questão de segundos.
Bom, depois do basfond do Ottello, numa cidade conhecida pela falta
de esquinas, só nos restava, num sábado de ressaca braba _fiquei quase cem
horas sem dormir na semana da crise, pergunte se não é verdade ao velho
amigo John Fante!_ o “Festival do Chibil”, programação do dia do Cine Ritz
(não confundir com Kill Bill!), ali no mesmo já conhecido Conic. Chibil, ou
melhor, chibiu, ou ainda xibiu, na língua e lição de anatomia da terra de
Severino, é o equivalente ao órgão sexual feminino, entendeu?
Subimos no avião por volta das 20h30, Aeroporto JK, o boêmio
bossa nova que inventou a cidade. Enquanto você folheia esta revista, nós
104
estaremos bem longe, gastando nosso “mensalão” com champanhe, mulheres
e ostras.
105
ANEXO 3
PROGRAMAS DE GOVERNO (TRIP #137)
por Xico Sá com ilustrações de Lúcia Costa
Quando o nome da cafetina Jeane Mary Córner começou a pipocar nas
cpis nós da trip não titubeamos. Despachamos para a capital federal
nosso repórter, escritor e perdigueiro predileto. Ele penetrou nos
inferninhos, interpelou moças pouco vestidas, bebericou maltes baratos e
conversou com a própria demoiselle córner antes de escrever o seguinte
relato sobre surubas e deputados
Quando a igreja Renascer apaga as suas frígidas fluorescentes, a
boate Apple’s acende – num pisca-pisca que repete o pulso, o coração e as
intimidades das suas moças – as suas luzes pecaminosas. Os dois
estabelecimentos são tão colados, tijolo a tijolo num meia-nove arquitetônico,
que a clientela se confunde, se perde, erra de porta. Como este repórter ainda
não procurava Jesus naquela noite... foi fácil penetrar no ambiente “da hora”
em Brasília, a “Sin City” mais planejada do planeta.
Naquele mesmo dia, os austeros e fiéis homens de imprensa haviam
chovido no molhado, da forma mais moralista possível, sobre o sexo por
dinheiro entre lindas garotas e as Vossas Excelências da República. Foi o
bastante para que o mercado da sacanagem abrisse o seu pregão em baixa. A
noite seca de agosto, aquela mesma noite em que o país voltava a gaguejar a
palavra impeachment, tinha cheiro de perfume de puta e whisky cowboy. Lá de
cima do seu pedestal, a estátua de Juscelino Kubitscheck, o presidente
chegado em uma gazela de aluguel, parecia inquieto com a crise política. Por
um rápido delirium tremens, vi quando JK chaplinhou no cimento, tentando
despregar-se do concreto, tentando ganhar vida para dar um pulo também ali
na Apple’s, tentando...
O perfume das putas e o aroma do malte paraguaio eram mesmo
irresistíveis.
Mercado em baixa, era a hora e a vez dos forasteiros e anônimos.
Chance única de levar, “a preços módicos”, uma legítima afilhada de Jeany
Mary Corner, a cafetina oficial do poder desde a Era Collor, para uma saudável
apuração de alcova. Encosto num ilíaco ressaltado – sabe aquele ossinho dos
quadris? –, como um pedreiro que realiza o sonho de um Niemeyer mais
concretista. O barro de todas as costelas e curvas, vamos nessa, simbora.
Brasília parece invadida por mulheres gigantas e curvilíneas saídas dos
subterrâneos para denunciar, com suas vulvas falantes, as sacanagens
históricas.
Com a palavra, então, Mário Catambri, lá no livro de memórias do
próprio inventor da cidade, Oscar Niemeyer: “Nada de coquetel, festa de
homem é com mulher. Vamos convocar meia dúzia de conhecidas”. Donde o
sr. Catambri vem a ser um médico, lutador de jiu-jitsu, amigo do arquiteto das
mesas do clube Marimbás, no Rio, e nas farras além fronteiras.
Arquitetura é destino: Brasília, balzaca de 46 anos, já nasceu sob o
signo da suruba sinuosa. Para homenagear os arquitetos estrangeiros
convocados para o júri do concurso do Plano Piloto da cidade planejada
organizou-se uma dessas festinhas democráticas. Adeus secura. Nada melhor
106
para deixar mais sensíveis os homens das pranchetas do que percorrer, com
mãos taradas, as curvas perigosas e bundas que deram a forma final desta
cidade.
Jeany Gomes da Silva, 46 anos, a Jeany Mary Corner, cujo
pseudônimo em inglês embute as esquinas que tanto fazem falta na arte de
rodar a bolsinha em Brasília, tem olhos de Niemeyer na escolha a dedo das
suas moças. Cada um que encontro, com o selo Corner de qualidade, é um
alumbramento. Vanessa, meu Deus, goiana, 19 anos, é de fazer do mais santo
dos homens um corrupto. Impossível não facilitar favores da República diante
dessa mestiça de olhos de gata fugidia. Só de respirar o ar do mesmo
ambiente deixa qualquer um de perna bamba.
Cadê tua patroa? “Ah, sumiu, também com essa injustiça toda contra
ela, nome falado na CPI e tudo o mais”, diz, compassadamente, a gazela. A
mulher-esquina está em São Paulo a essa altura, para escapar do assédio da
clientela VIP que tenta, desesperadamente, apagar o nome da sua valiosa lista.
Antes a cassação do mandato e um linchamento público do que as garras de
uma mulher em fúria no lar doce lar de outrora. Pior: na adorável lavanderia de
Brasília, dinheiro sujo não se lava em casa... então lá vai a patroa, em
entrevista aos homens de imprensa, reivindicar metade dos milhões
depositados naquela conta dos paraísos fiscais.
Mademoiselle Jeany Corner sabe disso. Vamos ligar pra ela, sugiro
a Vanessa, com quem conversei sobre o que acabei de pôr aqui na página. A
danada pede metade do seu programa (R$ 150) para me ajudar no telefonema
caça-patroa. Fico em dúvida entre dar uma meia-foda ou fazer jornalismoverdade.
Pelo ofício, tudo.
Disk Jeany para comer, beber, viver
-Alô, dona Jeany?!
-Quem fala?
-É um conterrâneo seu, do Crato...
-Deixe de brincadeira, fala logo!
-É sério... Tô aqui em Brasília, a senhora sabe, sozinho, preciso de
uma mãozinha, uma ajuda...
-Quem é você?
-Sou repórter, mas sou do Crato mesmo!
-Agora deu, era o que faltava: jornalista do Crato!
-Tô solidário à senhora, nessa luta toda.
-Não tem luta nada, só calúnia de quem não tem o que fazer...
-Aquele senador, Demóstenes, de Goiás, citou o seu nome da CPI...
-Falta do que fazer, não sou nada disso do que estão dizendo.
-Cafetina?
-Sou produtora de eventos, recruto moças para trabalharem de
recepcionistas em festas, como quem contrata para um feira de gado, de
automóveis, feira agrícola...
-Mas e os pecados da carne?
-Que palhaçada é essa?!
-Assim, quero dizer, elas ficam com os caras, as autoridades, não?
107
-Aí é uma questão delas, simplesmente contrato para os eventos,
não tenho culpa se a humanidade continua fazendo o que se faz desde Adão e
Eva.
-Quanto custa essa brincadeira no paraíso, dona Jeany?
-Jeany, que porra de chamar de dona, de senhora!
-É a praxe.
[Respiração forte e silenciosa do outro lado da linha]
-E a lista, Jeany, a senhora tem uma lista que aterroriza os clientes?
-Não é da sua conta.
-Desculpa, mas a senhora acabaria pelo menos uns 300 casamentos
deste povo de Brasília, não?
-Quer saber de uma coisa?, [irada] eu melhoro o casamento de todos
esses felas da puta!
-As autoridades, as Vossas Excelências voltam para casa felizes da
vida, né?
-Você tá fazendo chacota!
-Não... peraí...
-Você é de rádio do Crato, não vai falar merda para os meus
parentes, hein!
-Não, tô fazendo uma reportagem para a revista Trip.
-Trip?
-Estou aqui com a Vanessa, que trabalhou com a senhora...
A desalmada conterrânea desliga o telefone na minha cara.
“Bem feito, quem manda tirar onda com ela”, Vanessa gargalha,
gargalhada mais gostosa.
Mensalão noir
Na Safra Vermelha da corrupção que abateu o PT, como na podreira
generalizada de uma cidade que existe no livro homônimo de Raymond
Chandler, não poderia ser de outro jeito. O sexo continua com a mesma função
de sempre numa imensa repartição repleta de homens que deixaram suas
digníssimas nas metrópoles distantes e nas províncias. O resto é narrativa
hipócrita.
O medo de Vossas Excelências diante da crônica da vida privada,
no entanto, muda a história. “Prefiro endinheirado sem poder. Poderoso dá
muito trabalho e é muito cheio de ordem, organizado demais... até pra gozar é
cheio de lei e nove-horas”, diz Duda, garota de 21 anos, num populismo que
derrete toda a sua maquiagem e deixa as sobracelhas ainda mais sinuosas,
getulismo amoroso da porra.
Também pudera. O efeito Corner, contradição de um pseudônimo em
uma cidade sem esquina, afastou as autoridades, até mesmo aquelas de
terceiro escalão, das sacanagens da noite. Por enquanto. “Até as surubas do
poder são organizadas de dar dó, agora mais do que nunca”, sussurra a
garota, nascida em Brasília mesmo, candanga, várias vezes recrutada pela
cafetina oficial para farras tantas. “Ah, chamou, vamos, na hora!”.
Duda é de uma beleza matadora, olhos mestiços e safados, boca à
Angelina Jolie, parece toda planejada. Só de calcinha, vê a torre de Brasília da
janela do quarto do hotel. Vira-se: “E num vai querer nada não, é, só vai ficar
108
perguntando, perguntando, perguntando?”, diz a morena, impaciente, profissa.
“Dinheiro fácil”, digo, traindo meu próprio desejo.
“Essa dona Jeany, se você quer saber, é uma grande dama, mulher
demais da conta”, elogia a patroa.
É da minha terra, lá do Crato, digo. Só no Crato, repito. Geografia é
destino.
“Ela fala desse lugar, isso mesmo”, sussurra, nervosa, dentes
batendo uns nos outros, enquanto pergunta se não tenho pó. “Pede então
champanhe”, diz Duda, ao sugerir uma garrafa de Veuve Cliquot. Digo que não
sou Valério nem Delúbio, que “não tenho bala”.
Duda está mal acostumada. Ela esteve nas grandes surubas do
poder, exibe fotos no celular, o poder dedurador das câmeras digitais. Sabe
aquela do deputado petista com uma puta no colo e um charuto nos beiços,
qual um comunista das antigas? Meninos, eu vi.
Sabe a farra paga pelo Marcos Valério, o Kojak da CPI, para celebrar
o aniversário de Silvio Pereira, o Silvinho, ex-assessor do presidente Lula, que,
desconfiado, não compareceu, em 05 de novembro de 2003, no hotel Grand
Bittar?
Meninos, eu vi. Pelo olho mágico do amor. Uma puta com um celular
que fotografa é mais perigoso para uma autoridade do que o sigilo bancário
quebrado. “Agora virou nossa garantia”, diz a mesma Duda, enquanto ajeita a
camisinha no repórter com a boca, com maestria. “Você não viu foi nada, mas
precisa gastar mais um troco”, diz a garota, que trabalha com o seu taxímetro
ligado. “Aceita um cheque?”, pergunto.
É alto o volume de calotes na praça por lá. Como no caso do
Mensalão, na sacanagem propriamente dita também se promete muito e,
entregar a mercadoria que é bom, nécaras. Não honrar os compromissos custa
muito mais caro. Roberto Jefferson, por exemplo, vendeu o apoio do seu PTB à
campanha de Luiz Inácio Lula da Silva. Cobrou, cobrou, bateu portas... e não
recebeu toda a fatura, calculada em R$ 16 milhões no câmbio livre de Brasília.
Ouve-se todo tipo de sacanagem praticado contra as putas de
verdade. “Um deputado do PMDB da Bahia costuma chamar as meninas para
transar”, conta no seu suspense à Hitchcock da putaria a baiana Andréia, 25,
garota da boate Apple´s, “...aí fica negociando enquanto bate uma punheta...
então goza e quer diminuir o preço, pois não quer mais fuder. Vê se pode uma
coisa dessas!”.
A mesma Andréia, uma das melhores do ramo em Brasília, conta:
“Bom mesmo era no tempo das privatizações. A cada leilão a gente mudava de
casa, de tanta grana, era tudo pago em dólar pelos empresários e pelo povo do
PSDB. Esses petistas, ô raça, são miseráveis, pechincham no sexo, quero que
se danem agora neste escândalo, não sabem nem roubar direito”.
Mais filosofia da alcova, segundo a mesma linda moça: “Um senador
do Maranhão, vixe, velho lobo, viciadíssimo numa safadeza paga...”.
“Aquele senador do Pará, não, é honrado, engravidou uma amiga
minha e sustenta, tá na mão dela.”
Agora a manchete: “Fica todo mundo falando dos deputados e
senadores que pegam meninas e esquecem de um membro da CPI dos
Correios que pega um cara chamado Adriano, de um site erótico aqui de
Brasília”.
109
Quem será tal membro? Silêncio da moça e do auditório. Ela só
conta que o tal membro é passivo.
O poder é azul
Que Viagra que nada. Que Cialis que nada. Que catuaba que nada.
O poder ainda é o maior afrodisíaco, como disse certa feita o doutor Ulysses, o
velhinho peemedebista, tempos da Nova República, que perdeu-se entre as
sereias dos mares depois de acidente de helicóptero no litoral do Rio de
Janeiro.
Que o digam as meninas que cercam as autoridades no hall e
corredores do Hotel Blue Tree, um dos melhores da capital. O assédio é tanto
que o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, teria mudado de endereço
de hospedagem por conta desse “approach”.
Mas de uma coisa a Liga das Senhoras de Santana, ponta-de-lança
do Golpe de 1964, não pode ter queixumes. Algumas surubas em Brasília são
tão organizadas que poderiam, sem problemas, contar até com transmissão ao
vivo pela TV Senado, o canal que passa as sacanagens das CPIs dos Correios
e do Mensalão.
“Pela ordem, presidente!”, diria o organizador do baixo clero. “Vossa
Excelência me permite um aparte”, diria um parlamentar a fim de locupletar-se
de uma garota da cafetina Corner. “Epa!, no caixa dois a despesa é maior,
Excelência”, alertaria a mensalina $alomé, ciente da conta dos seus caprichos
de retaguarda.
De tão burocrática [com a devida exceção do subsolo da putaria do
Conic, o setor de diversões underground colado na Esplanada dos Ministérios],
Brasília é o único lugar do mundo em que puta é treinada para participar de
suruba. Nem mesmo em Sodoma & Gomorra havia tanto zelo por tal arte. Na
secura da capital federal, não rola a suruba-jazz, o improviso. Tudo aqui
funciona na base do acerto, do combinado, como comprovou Ricardo Penna
Machado, sócio de Marcos Valério na empresa Multi Action, que chegou a dar
aulas de etiqueta para garotas que participaram de uma bacanal no hotel
Grand Bittar, em 2003.
“Ele fez tanta pergunta, meu Deus, queria que a gente fosse
intelectual”, conta Carol, 22, estudante de Direito em Brasília. “Vocês vão lidar
com grandes autoridades da República, não podem ser vulgares”, alertou
Machado, que reconheceu a “aula” em depoimento à Polícia Federal obtido por
este repórter. “No dia 08 de setembro de 2003 recebi Jeany (a cafetina) e oito
acompanhantes no restaurante do hotel Grand Bittar”, confessou o tal.
“Tanta frescura e na hora agá peguei um cara tão grosseiro que
queria meter sem camisinha, um filho da puta”, conta, sem revelar nomes, mais
uma pupila de Jeany Corner, aqui doravante denominada apenas senhorita K.,
por razões de extremo sigilo.
O acerto, conforme o depoente disse à PF, era de que cada menina
receberia R$ 500 pela farra. “Me roubaram”, queixa-se K., ao ler comigo as seis
páginas do depoimento do sócio do trem-pagador-mineiro chamado Valério.
“Só recebi 300”.
O efeito Odair José
Mas o mensalão do sexo não é só traição e falta de caráter moral no
cumprimento dos acordos. Tem gente que se apaixona de verdade. Caso do
110
companheiro Rogério Buratti, cliente cinco estrelas petistas da madame Jeany.
Ao ponto de enlouquecer de amor, como numa peça de Sam Sheppard, por
uma das suas $alomés. A ponto de afinar a voz e cantar, à Odair José, a sua
devoção à moça, no caso uma mineira de fechar coméeerrrrrrcio, como diria o
próprio Buratti, homem de Ribeirão Preto:
“Eu vou tirar você desse lugar
Eu vou levar você pra ficar comigo
E não interessa o que os outros vão falar...”.
E lá se foi um casamento de uma década e meia. Dane-se, é o amor.
Mas o enlace com a mineira Carla Cristina demorou apenas até que a prisão
de Buratti os separasse. Está na cadeia, acusado de destruir provas de um
suposto crime -a intermediação de verbas, com propina, de prefeituras do PT.
Na “safra vermelha” é assim, as algemas impedem até mesmo o
longo adeus.
Preso e sob a garantia de redução de pena do Ministério Público e
da Polícia Civil do governador Alckmin, este com interesse direto na sucessão
de Lula, Buratti “entregou” o seu ex-chefe na Prefeitura de Ribeirão Preto, o
ministro da Fazenda Antonio Palocci.
Acostumado a subir apenas a cotação das putas de Brasília, o
depoimento de Buratti derrubou a Bolsa de Valores. Palocci se defendeu: a
bolsa ou a vida. Ela subiu. E o mercado de Jeany Corner é que voltou à
bancarrota.
A origem ribeirão-pretana de Buratti, praça de excelentes casas de
garotas, não o deixa mentir: o cara tem bom gosto. Ele até ressuscitou as
festas em mansões de Brasília, costumes ainda da Era Collor, quando cada
setor objetivo da grande economia – educacional, farmacêutico, empreiteiro,
banqueiro etc. – tinha a sua mansão da putaria, lobby do sexo para tentar
vencer concorrências públicas sem precisar abaixar os preços.
Tem moça querendo é aumentar as tarifas. Não é, Wanda, mulher de
“W” maiúsculo? A garota de programa de 29 anos, vinda lá do sertão de Feira
de Santana [BA] e desde os 18 em convívio com os machos do poder, diz que
a “vida fácil” está cada vez mais difícil. “Depois do Viagra e essas pílulas novas
tudo ficou uma merda.”
“Antes”, conta, “era uma moleza pegar um velhinho desses, coronel
do Nordeste do Senado e da Câmara. Fazia lá um dengo, um cafuné, tava
ganha a noite. Agora é uma peste. Um trabalho do cão. Eles querem meter a
noite toda, eita moléstia”.
PC Farias não teria se interessado por Wanda. O tesoureiro de
Fernando Collor gostava era de putas feias. Foi com uma delas sentada em
seu colo e um whisky 17 anos na mão que ele me disse uma frase
inesquecível, certa vez, em seu flat, no Itaim Bibi, em São Paulo. Tempos
depois, preso, ele me perguntaria nos porões imundos de uma prisão de
Bangkok, Tailândia, em 1993, tal como um Proust de perfumes baratos e
whisky sem gelo: “Lembra aquela farra, dom Xico?”. Repeti, de bate-pronto o
mantra que ele me havia ensinado, e que trazia guardado no cocoruto: “A
buceta ainda é a melhor forma de convencimento do mundo”.
111
ANEXO 4
TEXTO DE ABERTURA DA ENTREVISTA COM O RAPPER SABOTAGE
(TRIP #109)
por Xico Sá
Um galo velho da vizinhança e um despertadorzinho de camelô,
como o prefixo da alvorada de Mano Brown no disco novo dos Racionais,
tiraram Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, da cama naquele 24 de janeiro.
Tudo sempre igual na favela do Canão, zona sul.
O cara catou a mulher pelo braço, como fazia quase todo santo dia,
para levá-la ao trampo. Andava sossegado. Do tipo que chuta tampinhas pelas
calçadas. E assobiava baixinho “O Meu Guri”, de Chico Buarque, a sua
preferida. “Vivia na paz e cumprimentava todos os manos e todos os velhos, no
respeito”, conta Maria Dalva, 28, a “patroa”. Rapper cordial, treta zero — havia
pelo menos
quatro anos
que não se metia
em
broncas.
“E mesmo as confusões antigas não deixaram inimigos no seu rastro.” Quem
fala agora não é mulher nem mano. Plantão do 16º DP, 18 de fevereiro, 25 dias
depois. “Confusõezinhas de rua, bar, besteira”, diz Miguel Pinheiro,
investigador-chefe.
Quatro tiros, algumas suspeitas
O cara deixou a mulher no trabalho, uma concessionária no Jardim
Saúde. Maria Dalva pega cedo no batente, auxiliar de cozinha. “A patroa do
Sabotage.” É assim que é conhecida na firma. O chapa do “Rap é
Compromisso” bate-pernas de volta para casa. Logo ali tem um ponto de
ônibus. “Firmeza, gente honesta do caralho”, costumava fazer a louvação,
baixinho, só para os amigos, quando esperava as vans. “Parece gado, ninguém
se revolta.”
O homem na estrada. Quatro tiros secos, possivelmente de uma
pistola de 380 milímetros, estouram ouvido, boca e coluna cervical do rapper.
5h50 da manhã no relógio da rua. Pânico em SP. O parceiro de Maria Dalva
caiu atravessado sobre a calçada da avenida Professor Abraão de Moraes.
Ainda vivo.
No Hospital São Paulo, alguns amigos músicos enxergam, do outro
lado do vidro da sala de cirurgia, o corpo do magrelo sangue bom. Só restava
rezar. 11h25. Ponto final. Assassinato sem autoria conhecida, como os bê-ós
narram a matança nos arrabaldes. A primeira suspeita: um desafeto que havia
deixado a cadeia no início deste ano. Os seus amigos da favela do Canão não
levam muita fé nessa pista. E só abrem a boca, natural, sob a garantia do
anonimato.
Volta o investigador-chefe: “É lenda, não existe nenhum desafeto que
tenha saído da prisão nos últimos tempos”. A polícia tem nas mãos apenas a
máscara preta, daquelas de motociclistas, que o assassino largou ao lado do
corpo. Nos depoimentos, tudo na base do ninguém sabe, ninguém viu. A
polícia, velha inimiga e alvo do hip hop, não teria nenhuma razão para botar
auréola em rapper, mas não enxerga depois de ouvir cerca de 40 pessoas —
entre depoimentos oficiais e informais — inimigo com motivação para o
assassinato.
Suspeita número dois: um grupo de traficantes resolveu afrontar a
112
família de Sabotage com a morte do seu parente mais notório. Falam os
amigos: “Tudo pode acontecer”... Fala o investigador-chefe: “Não temos
nenhum elemento que sustente essa linha de suspeita”.
Bolinha dos zóio
Há quem diga, tanto entre os que investigam o crime como entre os
manos, que não existe inimigo na parada. E sim um invejoso. Alguém da área
não suportava o sucesso do rapper de O Invasor (filme de Beto Brant) e
futuramente de Carandiru (de Hector Babenco, aquele do Pixote).
Demasiadamente humano.
No último show de Sabotage, com os bambas do Instituto, grupo de
Rica, Tejo, Ganja Man — brothers do rapper até a última hora —, o parceiro de
Maria Dalva também estava sossegado, como quase sempre. Tirava onda com
um convite que havia recebido: pousar nu para uma destas revistas dedicadas
à clientela gay. Espaço Sérgio Porto, projeto Humaitá pra Peixe, Rio, 7 de
janeiro. “E aí, setentinha [R$ 70 mil], você acha que devo mostrar a vassoura?”,
sapecou para uma amiga confidente do estúdio YBrazil. Os amigos votaram
contra.
“Que corte doido, rapaz: numa noite estou lá com o cara no Humaitá,
tirando onda no show e no camarim; dias depois, o cara é morto pela guerra, e
eu lá tentando entender essa guerra com os manos, tomando maria-mole com
os manos na frente do cemitério, como os amigos fazem em enterros no
interior do Nordeste para suportar as doideiras da vida”, pronuncia-se o
pernambucano Otto, amigo do rapper.
Furioso com a guerra do seu mundo, Sabotage sabia fazer amigos
nos mais diferentes segmentos. Mas sempre com o pisca-alerta das diferenças
ligado: “Se vacilar, o cara da periferia que faz sucesso, como eu, tem festa de
playboy para ir de segunda a domingo. Aí chega na favela, pá, dá de cara com
outra realidade... Não pode perder o pé da sua história, senão dança”. Para
consolidar as amizades, o recurso era a busca da sinceridade extremada: “Eu
sou um cara que olha na bolinha dos zóio”.
A seguir, você lê a última grande entrevista inédita do cara, feita no final do ano
passado. São trechos de uma conversa de 2 horas, sob a brisa calma do
Canão.
113
ANEXO 5
O BRASIL DE CHICO (TRIP #86)
por Xico Sá e Renato L.*
Num tem mambo? Num tem calipso? Pois agora tem o mangue!* Foi
assim que Chico Science deu nome ao movimento que tirou o país da
lama e instaurou o caos na música brasileira. No mês em que se
completam quatro anos da morte do líder do Manguebeat, Trip revela
fotos inéditas e histórias desconhecidas de amores, psicodelia, viagens e
descobertas musicais do maior artista brasileiro da última década
Era uma vez uma croata chamada Sladjena, vinte e poucos anos,
daquelas que vão além da larica, do tipo que tem mesmo fome de viver. Estava
de bobeira na margem esquerda do Capibaribe, viagem sem diário de bordo,
sob o torpor e a lesa felicidade guerreira dos Tristes Trópicos. Deixou uma
penca de rapazes com os quatro pneus arriados de paixão na aurora dos 90.
Recife ensaiava seus passos de Seattle do Quarto Mundo, mas os
mangueboys, chapados de lirismo, groove e psicodelia, faziam um minuto de
silêncio para ouvir a saudação gringa:
- Up to the trip! - bradava a croata, com Pernambuco embaixo dos
pés e a mente na imensidão.
Um dos vidrados na estranja, Francisco de Assis França, futuro
Chico Science, pisciano devoto à disciplina amorosa, dono de um parque de
diversão na cabeça, parecia seguir, sem muito trabalho, os conselhos de
Sladjena. À moda de Salinger (Para Cima com a Viga, Moçada), começou a
desentupir as veias da Amsterdã das Américas - como queriam os holandeses
chegados ao Recife - com um levante praieiro que marcou a sua vida de
malungo: a busca da batida perfeita. Ou melhor, nas palavras de Afrika
Bambaata: "Looking for a perfect beat".
Tudo isso acompanhado de um slogan que marcou a sua curta
passagem por estas plagas: "Diversão Levada a Sério" - como ele definia suas
estripulias e atitude. Este mês faz quatro anos que o homem-caranguejo deu
um pitu na vida - o mesmo que "dar um perdido" no dicionário dos paulistas - e
deixou este mundo.
O choque de um Fiat Uno com um poste, em um viaduto na divisa
entre o Recife e Olinda, por volta das 19h do dia 2 de fevereiro de 1997,
arrastou precocemente, aos 31 anos incompletos, o homem-caranguejo. O
inquérito policial de 174 páginas da Polícia Civil pernambucana calculou que
Science corria a 110 km/h - a velocidade média nesse trecho costuma ser alta,
pois a avenida que precede o viaduto é uma reta só. Com traumatismo
craniano, afundamento no tórax e fraturas múltiplas na face, a maior invenção
dos palcos brasileiros pós-suingue de Jorge Benjor foi levada para o Hospital
da Restauração, centro de urgência da capital. Entre vítimas da violência
carnavalesca, o seu corpo foi largado nos corredores, enquanto aguardava a
vez.
Conforme a notícia do acidente corria as ruas do Recife e as ladeiras
de Olinda, os tambores dos maracatus e as pequenas orquestras de frevo iam
silenciando. Amigos e admiradores, inconformados, maldiziam Deus e o
mundo. Embora tenha havido um esforço policial para insinuar que Chico
114
estava sob efeito de drogas no momento do choque – os exames constataram
apenas a presença de “psicotrópico derivado de barbitúricos”, substância que
pode ser encontrada até em calmantes -, o músico não tinha, segundo amigos
que não teriam como esconder esse tipo de situação, sequer bebido uma
cerveja antes do almoço, com diz na letra de “A Praieira” (“uma cerveja antes
do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”). Estava de cara, distraído
pra morte, como canta o amigo Otto, ex-integrante das primeiras formações da
Nação Zumbi.
Dias antes da morte de Science, Carlinhos Brown deu uma entrevista
coletiva na qual cutucou os músicos pernambucanos. Disse que CSNZ
misturava maracatu com “periféricos”, numa crítica à colagem sonora da
banda. A crítica deixou o líder do Manguebeat arretado. Em represália ao
ocorrido, os componentes da Nação Zumbi estraçalharam uma coroa de flores
enviada pelo músico baiano para o velório do cantor e compositor.
O laudo do Instituto de Criminalística, anexado ao inquérito do caso,
apontou falha na estrutura do Fiat Uno, relacionada à quebra e ao rompimento
da parte metálica do cinto de segurança – não foi a correria que rompeu.
Segundo a papelada à qual TRIP teve acesso, o equipamento “deveria manter
o condutor preso ao banco, inclusive nos choques laterais, suportando o peso
do corpo quando nas desacelerações bruscas”. Em tempos de recall a torto a e
direito, a família de Science entrou com um processo, há dois anos, para tentar
responsabilizar criminalmente a Fiat do Brasil. O episódio deve ser julgado
ainda neste primeiro semestre. “Não gosto nem de ouvir falar em indenização,
pois vida não tem preço – se fosse somente por esse aspecto, eu seria contra
o processo -, mas é preciso, até por uma questão exemplar, pedagógica para
outras famílias e histórias semelhantes, apurar a responsabilidade criminal”,
afirma Goretti França, irmã com quem Chico morava e de quem emprestou o
carro.
A viagem começou no sentido subúrbio-cidade. Quando Francisco
França esticou a mão para aquele Rio Doce/Conde da Boa Vista, coletivo que
vai do bairro olindense onde Science morava à principal avenida do Recife, a
Agamenon Magalhães (cujo nome é homenagem a um político picareta), a
música estava prestes a ganhar não apenas um novo rótulo, mas uma zoada
de responsa, capaz de provocar no estrangeiro impacto só registrado durante o
nascimento do jazz limpinho da bossa nova. Em maltraçadas linhas da Spin,
logo após o lançamento do disco Da Lama ao Caos (Sony, 1994), a revista
apregoava, sem cerimônias que a música de Chico Science & Nação Zumbi
era nada mais nada menos que o jungle que a Inglaterra sonhava em fazer,
mas não conseguia.
A rainha estava morta havia tempo e faltava aos londrinos o tempero
justo do batuque da cozinha pernambucana. A suburbanidade soul que hoje
ecoa no estrondo da NZ de Du Peixe, Lúcio Maia, Dengue, Pupilo, Toca,
Marcosm, Axé, Gilmar Bola 8 e Gira (que abandonou por uns tempos e agora
retomou o projeto Lamento Negro, uma das bandas que deram origem à
CSNZ). O que não faltava no mundo do passageiro Chico era ragga jungle,
como veremos mais adiante no passa-disco destas linhas que seguem.
De volta à viagem
Quando Francisco França esticou a mão para aquele Rio
Doce/Conde de Boa Vista, estava acompanhado do amigo b-boy da Legião Hip
115
Hop e dublê de funcionário da Vasp. Jorge Du Peixe (o cara era louco por
tanques e aquários que iam dos rumble-fishes às tilápias, daí o batismo),
grande alma também dos subúrbios olindenses.
- Rapaz, tô com uma idéia do caralho! – exclamou Science para um
contemplativo Du Peixe, que gastava a vista na paisagem que contemplou pelo
menos durante 2 mil viagens naquela mesma linha.
Silêncio no coletivo.
- Rapaz, num tem mambo? Nem tem calipso? – mandou Science.
- Tem... – disse mole o então funcionário do check-in da Vasp no
Aeroporto de Guararapes.
- Pois agora tem o Mangue!
Nascia ali, naquele Rio Doce/Conde da Boa Vista que arrastava
trabalhadores cansados e belas morenas caldo-de-feijão, a busca do beat
perfeito. Na sua curta temporada por essas bandas, encerrada a caminho de
Olinda no domingo de carnaval de 2 de fevereiro (dia de Iemanjá) de 1997.
Chico viveu o bom desassossego de não deixar o som à míngua. Tudo tinha
que ser revigorado. O beat perfeito era uma tentativa constante.
O “pijama assassino”
“O conformismo mata a musicracia – música de todos e para todos.
Temos que correr atrás de novas batidas, novo jeito de fazer coisas velhas,
sem a pretensão de fazer a nova onda, mas sempre com uma preocupação:
tem que se divertido, pois de outro jeito não vale a pena. Só vale com a
diversão levada a sério”, pregava Science, no início de 1994, em conversa
movida a rum autenticamente jamaicano (um dos autores deste texto, Sá,
acabara de voltar de Kingston e Montego Bay com um grande carregamento da
bebida). Nessa mesma noite, num quarto-e-sala do número 812 da Rua Frei
Caneca, na Bela Vista, embalados por uma das primeiras audiência do Da
Lama ao Caos, fomos surpreendidos – Lúcio Maia e Jorge Du Peixe também
faziam parte do bando – com batidas fortes e ameaçadoras na porta. Do outro
lado, dedo no gatilho, um austero senhor de pijama de bolinhas, o famoso
vizinho de baixo, ameaçava todo mundo com um colt.
- Ou pára o som ou eu atiro, bando de vagabundos! – bradava, cheio
de moral e de razão. Para completar, o cara ainda insinuou que estava rolando
uma suruba entre aqueles bravos machos nordestinos.
- O que é que quatro marmanjos estão fazendo juntos a essa hora?!
– inqueriu.
Mesmo com muito rum no juízo, saltei com capítulos inteiros sobre
garantias constitucionais e outros direitos de um cidadão guardado no seu lar.
Nada acalmava o “pijama assassino”, como o batizou Chico, depois daquela
noite.
Deu polícia e tudo. Não sei quantas viaturas chegaram, tudo por
causa de uma merecida audiência do disco que mudaria a cara do pop
nacional. Naquele mesmo prédio, dias antes, um louco disparou seu 38, da
janela do seu apartamento, e tirou a vida de uma adolescente viciada em crack,
conhecida na rua. O motivo do disparo: a menina mexia no carro do elemento,
do qual, segundo ele, levaria o toca-fitas. Grande merda.
Como nascem os sons
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Chico tirava som de pedra e era capaz de ouvir a melodia operária
das britadeiras – lambreta de baiano, no dizer preconceituoso de São Paulo.
Ao sair do edifício Capibaribe, onde morou com os amigos h.d. mabuse e o
bissexto habitante Fred Zero Quatro, líder e co-fundador do Mangue, Science
tirava som dos vasilhames (conhecidos como cascos, no Nordeste) de cerveja
enfiados nos dedos. Nessas descidas para comprar o precioso líquido, surgiu,
por exemplo, o mote “cascos caos, cascos caos”, que reapareceria na faixa
“Coco Dub (Afrociberdelia)”, do primeiro disco do CSNZ.
Cerveja antes do almoço e caos eram duas preciosidades caras aos
rapazes do Mangue (depois, por causa de música homônima do mundo livre
s/a, a imprensa mudou, sem consulta prévia, o nome para MagueBit; mais
adiante, a mesma mídia passou a tratar de Manguebeat, confusão até
inexplicável). O responsável pela tintura teórica desse caos foi h.d. mabuse,
amigo de Chico e um dos mentores do movimento, apreciador do Teorema da
Colagem do matemático Michael Barnsley, que reinou nos anos 70. Para
entender essa zona toda, leia depoimento colhido no gabinete do dr. mabuse,
especial para TRIP, na página ao lado.
“A gente catava tudo o que era livro didático das nossas casa para
trocar, nos sebos, por vinis. Nessa levada, fomos adquirindo as preciosidades”,
relembra Du Peixe, enquanto enxuga algumas cervejas com a musa Valentina,
mais os repórteres que subscrevem esta saga, Miss Soledad (bela cigana da
ponte Andaluzia-Recife), a viciada em Godard Luciana Araújo, o DJ Dolores e a
sua Monica-samba, todos no Copo Sujo, boteco que faz parte da geografia
sentimental do Mangue, Maguebit, Manguebeat, ou seja lá que nome se dê a
essa revolução praieira.
Sangue de bairro
Um historiador que procurasse reconstruir a trajetória artística de
Chico Science, a partir de sua coleção de discos, deveria, na verdade,
retroceder ainda mais no tempo e mergulhar na infância do menino Francisco
de Assis, nascido no Recife, caçula de uma corda de quatro filhos patenteados
por seu Francisco, bravo líder comunitário e ex-vereador do PDT de Olinda nos
anos 80 e dona Rita França. (Espirituosa como o artista que levava a diversão
a sério, a mãe de Chico mantinha em sua casa, até 1997, o galinheiro da fama.
Ela criava galinhas que eram batizadas com os nomes dos componentes da
Nação Zumbi, amigos e também namoradas do filho, o que só ampliava o
humor da história.).
Chico estudou até o segundo grau, sempre em escolas públicas de
Olinda. Trabalhou, até formar a Nação Zumbi, na Emprel, a empresa municipal
de processamento de dados do Recife, como arquivista. Um pouco antes,
havia trampado na Clínica Radiológica do Recife, como auxiliar de serviços
gerais. “Completou 18 anos, tem que trabalhar, se virar” – era essa a ordem do
pai.
É a música das ruas de Rio Doce, bairro pobre de casas populares,
porém decente da periferia de Olinda, que vai primeiro influenciar o rapaz.
Como música aqui, entenda-se desde a melodia dos camelôs e vendedores
ambulantes, até a ciranda das festas populares e o maracatu entrevisto nos
carnavais. Os discos só chegaram anos depois, durante a adolescência,
quando, em meio a tantas descobertas, ele encontrou o seu primeiro amor (e
talvez mais profundo, com perdão das musas Sladjena, Risoflora – codinome
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ecológico da gloriosa Maria Eduarda Belém -, Renata Pinheiro – crème de la
crème das artes plásticas do Recife – e Charlene): a black music americana.
É a partir daí que os primeiros heróis começam a enfeitar paredes e
guarda-roupas. O funk de James Brown tornou-se uma paixão e abre caminho
para uma de suas obsessões: ele começa a procura que vai direcionar boa
parte de sua coleção de discos e dos seus futuros esforços musicais. Chico
parte em busca desse Santo Graal do pop moderno, o beat perfeito, a batida
definitiva. “Looking for a perfect beat”, o clássico de Afrika Bambaata, que, ao
misturar Brown e Kraftwerk, forjou o hip hop, bem poderia ser sua divisa.
Quando a década de 80 chega perto de sua metade, é justamente o
hip hop que vem se associar ao funk na galeria restrita dos seus cultos
musicais. Chico mergulha de cabeça nessa cultura jovem, exercitando a arte
da grafitagem, do contorcionismo em forma de dança e da poesia cantada em
rimas fortes. Como Bambaata, ele participa de sua primeira “nação”, o Coletivo
Hip Hop, um dos pioneiros no gênero em Pernambuco. Como um rapper
ortodoxo, ele sobe ao palco para os seus primeiros shows: vestindo Adidas e
imitando L.L. Cool Jay.
Mas, claro, se a coleção de discos de Science fosse, digamos, tão
restrita assim, ele não teria se transformado no genial criador que mais tarde
assombraria Pernambuco e o resto do país. É quando passa a freqüentar certo
apartamento no bairro das Graças, onde morava a sua irmã Goretti, quase no
centro do Recife, que o gosto e as preferências musicais de Chico vão se
expandir para limites até então desconhecidos.
Esse apartamento funcionava como uma espécie de quartel-general
para vários dos futuros mangueboys que trabalhavam ou vagabundavam pela
cidade. Era ali que se dava um tempo antes de ir pra casa ou sair pra uma
balada. Por meio de amigos comuns, Chico conheceu Fred Zero Quatro. Do
mundo livre s/a, e mais um monte de gente de procedência diversa e com
gostos distintos. Formava-se um tipo de ambiente que se imagina aparecer em
quase todos os movimentos musicais antes de sua expressão para a mídia.
Uma incubadora cultural ou algo assim.
Foi nessa casa que o Mangue começou a ser construído, tanto em
termos conceituais como na própria música: ouviam-se ao mesmo tempo
Captain Beefheart e Public Enemy, Fellini e 808 State, Jorge Benjor e Specials.
Artistas plásticos, cineastas frustrados, desempregados, jornalistas e
funcionários públicos conviviam lado a lado. Boa parte do som da Nação Zumbi
vem daí, desses discos misturados e escutados com atenção entre um
baseado e uma cerveja.
Baião-de-dois
Na era Mangue, a coleção de discos de Science já era outra. À
busca do groove havia se somado uma procura de melodias perfeitas, um culto
ao Who dos anos 60, aos Byrds e coisas do tipo. Outra de suas qualidades
aflorava com força total: a capacidade de misturar ritmo e melodia como
poucos! Um cara capaz de formar uma banda paralela, o Loustal, que tocava
covers psicodélicas de clássicos dos sixties enquanto desenvolvia o Nação
Zumbi!
Uma última visita a seu quarto e a sua coleção mostrava uma paixão
crescente por música eletrônica e sons latinos. Drum’n’bass e jungle pareciam
ser suas preferências. Pensar o que esse alquimista dos ritmos deixou de fazer
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com essa batida é para nós fonte permanente de tristeza. “Estava dormindo,
quando ouvia Chico chegar, com amigos, para ouvir música, de madrugada.
Tinham um ar tão grande de felicidade e diversão aqueles encontros que
jamais me incomodei”, diz a irmã Goretti, colo e porto seguro do caçula.
Mas segue a vida, enfim... no quarto de Chico, na casa da irmã, os
tesouros ainda estão guardados desde aquela fatídica tarde de domingo, 2 de
fevereiro. É que o cientista pode chegar a qualquer momento, pegar um vinil ou
CD e pensar em mais uma mágica. O beat perfeito pode nascer a qualquer
instante...
Graças à simpatia de Goretti França, enfermeira e competente
profissional dedicada à área de saúde sanitária da Recife dos mocambos, TRIP
teve acesso à última penca de CDs reunidos por Science no seu case [ver
box]. Foi com essa coleção que ele animou, artista enquanto DJ e vice-versa,
parte da festa do bloco Enquanto Isso, na Sala de Justiça, na véspera da sua
morte, no 1º de fevereiro de 1997, um sábado. Nesse dia, reencontrou velhos
amigos, depois de uma longa ausência de Pernambuco – havia feito uma
temporada na Europa – e mandou ver nas picapes, inspirado, quem sabe, pela
parque de diversão na cabeça de que falava o poeta beatnik Lawrence
Ferlinghetti. Vingou a passionalidade-jungle, estrondo negro e suburbano no
qual comungava e seria, post-mortem, homenageado, via arrabaldes londrinos
de Goldie.
O último scratch
Pela aposta dos amigos, no momento em que o Fiat Uno (Chico não
saiu de Landau devido à dificuldade de estacioná-lo nas ruas tomadas pela
folia carnavalesca) conduzido pelo artista subia o viaduto na divisa entre o
Recife e Olinda, o rapaz ouvia Willie Bobo, La Esperanza, seu vício. Mas isso é
apenas a intuição dos malungos. Na noite anterior, o dublê de DJ na festa com
os amigos, havia incendiado a pista com jungles para acalmar a barbárie
carnavalesca. Acabara de voltar de Paris, com o embornal cheio de discos
novos, e a paixão renovada por Charlene, morena nouvelle-vague da
tradicional família pernambucana que trocara, ainda quando engatinhava, o
Capibaribe pelo Sena. Em momento algum na festa mostrou a “tromba” –
quando estava chateado, Science não escondia a sua imitação de elefante nos
lábios.
Numa roda com os repórteres deste texto, riso escancarado – como
se tivesse tomado um docinha com a marca Druida (Asterix), distribuído
fartamente no Recife pela croata das primeiras linhas desta saga -, que não
tinha sorte no amor. Charlene chegaria dias depois.
Recife, margem esquerda do Capibaribe, aurora do XXI.
IMPRESSIONANTES ESCULTURAS DE LAMA
No fundo dos manguezais, perdidos no tempo e no espaço. São seres
fantásticos, extraordinários, cuja existência até hoje é discutida nos bares
do Recife, em meio a copos de cerveja e outros aditivos. Alguns desses
personagens obscuros (mas importantes na vida de Chico e nos
desdobramentos do Mangue) são mostrados agora com exclusividade
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nas páginas da TRIP. Impressionantes esculturas de lama, reconstruídas
nos perfis que o leitor encontrará a seguir.
CHICO SCIENCE, o legítimo
No início dos tempos, lá pelos idos dos anos 70, o codinome "Chico Science"
ainda não era propriedade de Francisco França. Quem usava esse apelido,
depois tornado famoso em todo o mundo, era outro personagem, de nome
Carlos Antônio Ramos Braga, tio de Renato L., um dos articuladores do
movimento Mangue. Careca, pai de quatro filhas, Carlos era fã de ficção
científica e das teorias picaretas de Erich Von Däniken, o autor de Eram os
Deuses Astronautas?, obra que defendia a tese de que seres espaciais haviam
nos visitado em épocas remotas. Por conta dessa obsessão, a família o
chamava de Chico Science. Nos anos 90, o apelido migrou para o músico,
meio como uma gozação dos amigos. Hoje, o Chico Science original vive com
a família no bairro do Espinheiro, no Recife, e continua procurando indícios da
visita dos extraterrestres nas esquinas da vida.
ROGER, o Rogê
Roger de Renor não tem nada de francês. Seu avô tirou o nome de um cabra
franco-circense que avistou no meio do mundo. Refrão de "Macô", hino
informal do eixo Recife-Olinda - "cadê Rogê, cadê Rogê" -, o rapaz era dono da
Soparia, sede lúdica, etílica e sentimental dos mangueboys, que depois mudou
de endereço e virou Pina de Copacabana, mesmo nome de canção de Otto.
Inquieto fazedor de coisas, Roger cuida de parte da programação da Torre de
Malakoff, primeiro observatório astronômico das Américas (hoje centro cultural)
e toma conta do Armazém 14, teatro recifense arrumado dentro de um vasto
ex-depósito de açúcar, do tempo em que Pernambuco falava para o mundo.
RISOFLORA
(De Rhizoflora Mangue, folha a mais na diversidade ribeirinha, como reza a
ciência.) Homenageada com faixa homônima do disco Da Lama ao Caos, é o
codinome eco-amoroso de Maria Eduarda Belém, pernambucana que hoje
encanta SP. Science sempre foi um pisciano típico, daqueles que têm uma
tendência atávica a se apaixonar - e sofrer, conseqüência natural de quem
conjuga o verbo amar. Graciosa, com os cabelos encaracolados como os de
um anjinho, seios fartos, jeito dengoso, capaz de incêndios no salão enquanto
baila, ela foi a namorada que trouxe a Chico a felicidade por um bom par de
anos.
JEAN PAUL
Não, o Jean Paul aqui não é o famoso filósofo francês, pai do existencialismo e
hoje pouco lembrado pelos cadernos culturais da vida. O Jean Paul das
crônicas do Mangue é outro, ligado a seu homônimo gringo devido a sua
paixão pela filosofia de beira de praia, alimentada por obras como A Naúsea, O
Muro e outras incursões literárias do marido de Simone de Beauvoir. Irmão
alguns anos mais velho de Fred Zero Quatro, ele delirava, chapado em plena
praia, sobre as impossibilidades do ser. Suas lendárias trips encantaram os
ouvidos de Chico Science e Jorge Du Peixe, e ele acabou indo parar no refrão
de uma música do último disco da Nação Zumbi ("Pela Orla dos Velhos
Tempos"). Jean Paul nunca se envolveu com música, virou mesmo foi um
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pacato funcionário público, que vai à igreja e canta os hinos do padre Marcelo.
E, ao contrário de sua versão francesa, deixa a mulher bem guardadinha em
casa quando sai pra farra.
DEL CHIFRE
Não se trata de um personagem, mas sim de um lugar meio encantado. Foi aí
que, segundo a lenda, Chico e seus amigos da Nação se iniciaram nos
mistérios do surf. Nunca entendemos bem como isso aconteceu: situada bem
na fronteira entre Olinda e Recife, Del Chifre é uma praia suja e inóspita, o
lugar aparentemente menos indicado para esse tipo de aventura. Mas a paixão
dos caras pelo lugar parece ser tão grande que Del Chifre acabou virando
música do Rádio S.AMB.A: tá lá, uma surf music meio latina fechando o
primeiro disco da Nação Zumbi, composta sem a participação do grande
mestre do surf, da colagem de batidas e do rap-repente envenenado, mister
Francisco de Assis França, Chico Science para os mais chegados.
O QUINTO BEATLE
Toda cena pop que se preze tem seu quinto beatle: aquele sujeito que, como
Pete Best, perde o trem da história e fica para trás, mergulhado no anonimato,
longe das tietes e da possibilidade dos milhões. No Mangue, quem
desempenhou esse papel clássico foi um rapaz magro e de poucos amigos
apelidado de Bob Mofo. Sua biografia de "pobre'star" é um amontoado de
pequenas e grandes tragédias: o pai se suicidou quando ele tinha 4 anos, o
padrasto sempre o discriminou, a família mostrou-se de uma ignorância atroz, o
vestibular foi uma muralha intransponível. A conseqüência de tanto azar foi o
sur-gimento de Bob Mofo, o punk mais radical da filial pernambucana do
movimento. Quando o Mangue surgiu, Vinícius Enter, seu novo alter-ego,
deveria participar da primeira coletânea do movimento. Mas o projeto não
vingou, Vinícius perdeu-se no ano-nimato e seu paradeiro atualmente é
desconhecido.
FILHA DE CARANGUEJO
Estilo é DNA. Louise Taynã Brandão França tem 10 anos, adora cantar, dançar
e preza pela elegância, mostrando a mesma preocupação que o pai tinha em
apresentar um jeito invocado e inovador de vestir. Filha de um romance de
Chico com Ana Luiza Brandão, jovem da periferia de Olinda, mesma quebrada
do malungo da Nação Zumbi, Louise nasceu quando o pai ainda não era
Science, tinha 24 anos, mas já andava com uma penca de vinis de black music
debaixo do braço.
O ÚLTIMO CASE
Conheça os últimos CDs que tocaram na aparelhagem perfeita do velho
Landau 79, carro comprado ao pintor e novo amigo Felix Farfan, por R$ 800 "é o papa-gasolina", alardeava Science -, e acompanharam o líder da CSNZ
nos seus últimos suspiros:
A Jazz Colletion, Herbie Hancock (1991)
A Tábua de Esmeraldas, Jorge Benjor (1974)
Acid, Ray Barretto (1968)
Best of Jungle, vol. 2 e 4 (1995)
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Black Sunday, Cypress Hill (1993)
Blue in the Face (trilha sonora do filme homônimo, dirigido por Wayne Wang,
1995)
Concrete Jungle vol. 2 (Bemank, Bizzi B., The Rood Project, 1995)
Doggy Style, Dr. Dre featuring Snoop Doggy Dog (1993)
Funhouse, The Stooges (1970)
Greatest Hits, Mongo Santamaria (1964)
Hold on It Hurts, Cornershop (1995)
Jazzmatazz, vol. 2 Guru (1996)
Jungle Heat, Ragga Jungle & Hardcore Breakbeats (1995)
Jungle Vibes, vol. 2 (1995) Jurassic Tumbi, Bittu (1995)
La Esperanza, Willie Bobo (1964)
Maxinquaye, Tricky (1995)
Minha História, Mutantes (1994)
O Melhor de Jackson do Pandeiro, com participação do poeta Patativa do
Assaré (1981)
O Melhor de Jorge Benjor (coletânea com a emblemática "Zumbi", 1981)
Pomme Fritz, The Orb (1996)
Reggae Hits (Winston Samuels, The Caribbeans, Jackie Mittos, 1990)
Roots, Sepultura (1996)
Soul Sauce, Memories of Cal Tjader, Poncho Sanchez (1995)
Stolen Moments, Red Hot + Cool (1994)
Super Ape, Lee Scratch Perry and The Upsetters (1978)
Temples Boom, Cypress Hill III (1995)
The Is How We Do It, Montell Jordan (1995)
The Rebirth of Cool 4 (Dj Krush, Justin Warfield, Tricky, Simple e Tranquility
Bass, 1994)
Uno, Dos, Tres, Willie Bobo (1963)
* Amigos pessoais de Chico Science, os autores desta reportagem viveram
intensamente a cena mangue.
122
ANEXO 6
O SAMBA-RAVE, MEU IRMÃO (TRIP #68)
por Xico Sá
Qualquer bom dia, boa tarde, boa noite ou "como vai" vira uma
malandragem distorcida ou um galope trance no pandeiro imaginário que Otto
carrega pra tudo que é lugar desse mundo. ...O samba-rave, meu irmão.
O galego cosmopolita de Belo Jardim, cidade do agreste
pernambucano, tira música de tudo: chacoalham umas moedas no bolso e lá
vem um xote eletrônico, o vento mexe nas panelas e tome polca de primeira,
um bêbado sem-teto entra num boteco e dá-lhe um fraseado de repente.
Tudo com muita psicodelia, essência tão importante para o mangue
beat quanto os samples de ciranda e maracatu. "Samba pra Burro" é a música
para viagem feita por um festivo gozador.
Batuqueiro nas ruas e metrô de Paris, onde viveu a sua temporada,
ele não esqueceu nem mesmo de cantar na língua de Gainsbourg, a quem
sempre dedica homenagens noturnas nas mesas de bares. A música "Changez
tout", em parceria com Apollo, é a prova de que a França pode até ter
esquecido Otto, mas Otto não esqueceu o seu francês.
No mesmo espírito parisiense, "Samba pra burro" traz
"Renault/Peugeot", jingle que tira uma onda com um dilema chique, quase
existencialista, entre as duas carroças. Croissant fino para as massas.
123
ANEXO 7
OS LIMITES DO PARAÍSO (TRIP #89)
por Xico Sá
Fernando de Noronha é um arquipélago formado por sol, céu, mar e surf
inacreditáveis. Mas as 19 ilhas também podem ser descritas como
pedaços de terra a 300 quilômetros da civilização. Como diz um velho
pescador local, “o limite entre o paraíso e a prisão depende do espírito de
cada um”. Bem-vindo à Norinha que não cabe nos folhetos turísticos
Os golfinhos rotadores repetem o balé como se fossem pagos pela
companhia de turismo – é a única reserva do mundo em que o espetáculo tem
hora marcada, ao nascer do sol e no meio da tarde! –, o mar bravo teima
contra as pedreiras no eterno tanto-bate-até-que-fura, os visitantes, desde o
naturalista inglês Charles Darwin, que ficou chapado com as espécies do lugar
em 1832, já chegam com seus adjetivos e interjeições (“oh!”) ensaiados, os
mergulhadores vêem peixes com exagero de pescadores, a natureza abusa da
retina, os velhos narram lendas e os jovens... bem, os jovens bebem pelos
golfinhos, pelos turistas, por Darwin, pelos pescadores, pelos velhos, pelas
pedras e por todos os abstêmios d’além-mar.
Uma pesquisa feita em 1998 pela Administração do Distrito Estadual
de Noronha apontou que o alcoolismo atinge 25% da população do
arquipélago. A antropóloga pernambucana Janirza da Rocha Lima, em sua
tese de doutorado defendida na PUC de São Paulo no ano passado, detectou
que na ilha "além do dinheiro fácil, o turismo introduziu na comunidade insular
[...] a música reggae, as pranchas de surf, os veleiros e, como acessórios
complementares, o turismo sexual e a droga".
Ora, o paraíso também enche o saco. Não poderia ser diferente na
última colônia ultramarina do planeta (como define o agrônomo e maior
liderança popular nativa Domício Alves Cordeiro, na ilha desde 1948). Com
administrador enviado pelo governo de Pernambuco, que reanexou o território
de Fernando de Noronha em 1988, os nativos nunca mandaram no seu pedaço
de terra, desejo que politicamente vive a sua mais intensa articulação neste
momento.
Mesmo quem não tem queixa e elogia muito a gestão de Sérgio
Salles, o mandatário enviado do Recife, acha que chegou a hora, depois de
quase 500 anos, de um noronhense - a auto-estima local impede que os ilhéus
se definam como pernambucanos - comandar os destinos do arquipélago que
já passou por mãos francesas, holandesas, militares, civis de tudo quanto é
canto, menos pelo domínio dos locais.
Enquanto os nativos mais velhos e chegados neonoronhenses se
articulam politicamente, reunidos na Assembléia Popular de Noronha - órgão
sem direito a voz nem voto, já que os destinos da ilha são decididos pelos
deputados estaduais de Pernambuco, a 545 quilômetros da ilha -, os mais
jovens tentam curar o banzo do isolamento na ilha, o que a ciência denomina
como síndrome insular, com a danada da cachaça. Preferem encher a cara a
morrer de tédio, mesmo que nunca tenham lido o famoso verso de Maiakóvski,
vermelho que reinou numa terra gelada, longe, muito longe dali. Um poetataxista, Emerson Nilson, 26 anos, estranho no paraíso há quatro anos - veio de
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Abreu e Lima, na Grande Recife - descreveu o mesmo sentimento no livro
Noronha, sombra que ilumina, publicado no ano passado. "Como posso existir /
se essas águas me aniquilam? / Como posso viver / Se estou longe da vida? /
Minha língua bate / Meu coração caminha / Mas não posso voar", recita o
existencialista local.
neuronia e euforonha
Em Fernando de Noronha, que era chamada de Fora do Mundo no
século XIX, a mais famosa de uma penca de 21 ilhas e ilhotas que formam o
arquipélago homônimo, existem dois sentimentos básicos: a euforonha e a
neuronia, conforme os neologistas locais.
A euforia é fácil e óbvia ("oh!") para qualquer visitante - filtro solar 30
numa mão e pé-de-pato na outra - que pisa naqueles 17 quilômetros
quadrados na beira do abismo do Atlântico equatorial, como reza tecnicamente
a cartilha de geografia; a neura, estranha para o cenário paradisíaco, parece
herdada da vocação de colônia correcional, com solitárias construídas entre
locas de pedras, espécie de Carandiru de formação vulcânica, mas também
com os seus PCCs - são inúmeros os relatos de rebeliões e fugas ao melhor
estilo Papillon.
Descoberta por Américo Vespúcio, em 1503, em expedição bancada
pelo fidalgo português Fernan de Loronha - daí o onha, rima rica de maconha
que está no batismo do lugar e dos seus sentimentos básicos -, a ilha virou
presídio ainda em 1845, embora o seu período de maior fama tenha sido
depois do 31 de março de 1964, quando a ditadura militar passou a fornecer
passagens forçadas para gente como o então governador de Pernambuco,
Miguel Arraes, um dos presos políticos famosos daquelas plagas [leia no site
da TRIP, histórias e lendas a respeito da ilha]. Muito antes, todavia, foram
enviados para lá milhares de ciganos tidos como "vagabundos" (1979) e todos
os capoeiristas do Brasil, confinados na área de 1890 depois de enquadrados
pela República, que acabara de se instalar, como desordeiros e
contraventores. O famigerado presídio só foi desativado no final dos anos 60.
paraíso-prisão
Com a palavra o pescador Salviano José de Souza, 83 anos, nascido
no Recife, 60 anos de Noronha e mar, misto do velho Santiago de Hemingway
com o zen-budismo de Dorival Caymmi: "O limite entre paraíso e prisão
depende do espírito de cada um que vive por aqui. Para os mais agoniados,
pode ser terrível, para os que têm a alma sossegada, vixe!, é um bálsamo da
vida", diz, enquanto hipnotiza o repórter com o balanço da rede na varanda.
"Aqui se bebe faz séculos. Claro que a vinda de mais turistas, com um
dinheirinho, aumentou um pouco a bebedeira dos meninos, que ficam na cola
deles. Mas num faz mal não. Eles gostam dessa brincadeira. O que faz mal é
cigarro de maço e droga, mas isso é muito pouco aqui", conta o mais velho
habitante do arquipélago, pai de 28 filhos - 14 viveram e 14 "Deus levou" ainda
meninos.
Desde o começo dos anos 60, quando houve o último registro de
assassinato entre presos, não se tem notícia de uma morte por violência no
local. E o velho Salviano olha o mar sob o decote do horizonte logo à frente da
sua rede. E diz mais: "O cabra que matar sabe que será capturado fácil, fácil,
pois não tem para onde correr. O máximo que nego troca aqui é uns tapas,
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para resolver as pendengas, um negócio malfeito, um ciumezinho que faz parte
da raça humana. O grande problema aqui era o sexo antes da camisinha. As
meninas - porque a gente sabe que uma menina quando se faz mulher quer um
homem e não tem diabo que dê jeito - emprenhavam muito de forasteiro,
presidiário, o diabo-a-quatro, era um monte de filho de guaiamun ["todo mundo
tem um pai e ele não tem um", diz a moral popular sobre os rebentos dessas
natureza]. Agora não, sai ali do forró do Cachorro, desce na praia e vuco-vucovuco-vuco, com caminha, e não tem perigo de doença ou pegar bucho. É uma
beleza, meu filho!". O senhor usaria a famosa borracha, indaga este incrédulo
que vos fala. "A véia num gosta", soletra, enquanto vira a cabeça para a direita,
onde ela se encontra, num cantinho escuro da casa, na sombra, quase invisível
para quem olha da varanda incandescida pelo sol.
Enquanto muitos pais se preocupam com o comportamento e o
futuro dos seus filhos em Noronha, o casal Geraldo Barreira e Glorinha Moreira
Lima acompanha, numa situação que definem como um legítimo mergulho na
felicidade, o crescimento do pequeno Thor, um menino de três anos e meio,
portador da síndrome de Down, que chegou ao arquipélago com apenas dois
meses.
Glorinha, jornalista paulista que atuava na 89 FM, conheceu Geraldo,
pernambucano, em São Luís do Maranhão, a ilha mais urbana do Brasil.
Casaram há quatro anos e foram morar em Fernando de Noronha, onde
possuem um barco, o Planasub, que conduz turistas para o mergulho nos
arredores do Atlântico. De lá não pretendem sair tão cedo. Ou nunca, quem
sabe. O motivo é a bela história de Thor, para quem o lugar se aproxima
mesmo da idéia de paraíso. "Graças às condições que encontrou aqui, ele tem
uma vida formidável, sem comparação com as crianças portadoras da
síndrome que moram em cidades grandes", exalta a mãe. "Thor conseguiu
andar com um ano e seis meses, quando o normal, nas cidades, é dar os
primeiros passos somente lá pelos quatro anos".
A vantagem de Noronha, segundo os pais, é que na ilha Thor pode
fazer a sua hidroterapia todos os dias e é totalmente favorecido pelo contato
visceral com a natureza. "Para uma criança como ele, ver os peixes e
acompanhar os golfinhos, por exemplo, é mais comovente e interessante do
que para uma criança que não tem a síndrome", conta a mãe. "Em que cidade
eu poderia levá-lo à praia, ao mar, todos os dias?", indaga Glorinha, cheia de
orgulho e de razão.
o melhor amigo do noronhense
O Cachorro é certamente um dos bares mais bonitos do mundo. Tem
forró toda noite, com uma lua dos diabos, à beira de um precipício que dá no
oceano e nas boas safadezas descritas pelo velho do mar citado. É o encontro
mais quente entre turistas e nativos que se tem notícia por aqui. Pode perder
para o congraçamento entre européias e rastas nas boates estilo caverna de
Montego Bay, na Jamaica, mas nós preferimos duvidar. Com a palavra um dos
incontáveis netos de Salviano - ele tentou as quatro operações e parou em
trinta e tantos -, o mestre do barco Na Onda, o nativo Felipe Roberto Oliveira
da Silva, 21 anos, que a TRIP encontrou, por acaso, no bar-animal citado pelo
avô. Ele deu a receita contra a neuronia: "Para curar o isolamento, nada melhor
do que uma boa turista. É diversão garantida. A gente começa no fungado do
forró e vai até aonde Deus quiser. Se rolar, chega junto, banha a moça de
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carinho, coisa que ela não costuma ter em São Paulo, pois a vida é muito
corrida e os homens chegam cansados em casa".
Nessa mesma noite, o barqueiro cruzou o paraíso, depois de
seguidos forrós e muita birita, com uma paulistana, daquelas que costumamos
chamar, com todo respeito, de balzaca de responsa. "Para as coroas, aqui é o
paraíso", diz, quase repetindo a frase de Américo Vespúcio, o descobridor, que
disse apenas a parte da vírgula para a frente. Mesmo sem a sabedoria do
velho Salviano, muitos habitantes da ilha dizem, sem medo de errar, que
Noronha é hoje o nirvana das afilhadas de Balzac.
Isso não quer dizer que os ativos, que aproveitam a oferta para tomar
umas a mais à custa do turismo, não pensem mais longe. "Muitos caras daqui
sonham em se arrumar com uma coroa, para viver sem fazer força, só fodendo,
ih, peraí, quero dizer, só amando!", relata ainda o barqueiro. Numa dessas
tantas farras, Felipe se apaixonou por uma paulistana de 30 e poucos anos,
que atendia pelo nome de Cláudia e trabalhava como administradora de
empresas em terras bandeirantes. No ano passado, deixou o barco ancorado
no porto de Noronha e se mandou para São Paulo, onde repetiu, por 15 dias, a
paudurescência (neologismo pernambucano que significa "essência do
priapismo ou do pau duro") em um hotel dos Jardins, onde foi acomodado pela
amante.
No bar do Cachorro, a TRIP ouviu dezenas de histórias semelhantes.
E uma variante: os gays também recorrem fartamente aos meninos de
Noronha, que vêem nesses encontros um apêndice do turismo e nada mais.
"Nem todo mundo topa, mas que existe, existe. E muito", conta C. S., 22 anos,
que se diz surfista. "Tem um cara do Rio que, de ano em ano, troca de boy
aqui. Como ele trata bem os amigos da gente, já ganhou boa referência, o que
faz com que os outros sigam o mesmo caminho para as bandas cariocas."
O DJ e gerente do Cachorro, Genilson, 31 anos, testemunha ocular
da história: "Já vi ilhéu ganhar uma mulher em segundos; num piscar de olhos
saíam aqui do balcão, na minha frente, e já estavam se amassando ali naquela
cadeira [aponta um assento que fica quase no despenhadeiro, na paredinha
que divide o bar do abismo que leva à praia]".
Ir a Noronha e não falar com o dono do Cachorro é como ir a Roma e
não ver o papa. Ney Costa, 38 anos, pai de um filho de 10 que mora com a
mãe em São Paulo, conta que a situação da rapaziada da ilha é embaraçosa.
"Aqui é um lugar muito bom para adultos, mas não é confortável pra essa
moçada entre 14 e 20 e poucos anos. Essa turma entra pesado no álcool e na
maconha. Uma coisa é uma pessoa esclarecida fumar maconha pra pensar
melhor, outra coisa é uma moçada sem escola que preste - caso de Noronha e sem perspectivas, isolada em uma ilha. Acaba não ligando muito para os
estudos ou para preparar um futurozinho melhor. Agora ninguém vê isso, mas
eles não vão agüentar ficar velhos vivendo a ilusão dos turistas descendo e
subindo trilhas", dá o parecer.
Guilherme Gross, 30 anos, surfista carioca, foi duas vezes a
Noronha. A primeira, atraído pelas ondas do primeiro Red Bull Tube Rider, que
aconteceu em janeiro por lá - quando faturou a categoria "Melhor Tubo",
completando a mais longa onda da sessão. Na segunda ocasião, no mês
passado, esteve na ilha para dar continuidade a um documentário Surf
Adventures que prepara sobre os points de surf em todo o mundo. "Na
verdade, a rapaziada não tem muito o que fazer, não há muitas opções. Acho
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que deveriam investir mais no esporte, que é a grande saída, com incentivo a
competições internas para os surfistas nativos", sugere. "Até a TV aqui, que é
uma opção de lazer em qualquer lugar, só tem dois canais, a Globo e o SBT. A
moçada merecia um cinema, por exemplo."
A assistente social da administração da ilha, Sara Escobar,
reconhece que o alcoolismo e a vida sexual colada ao mundo dos turistas são
um problema que merece todos os cuidados. "É muito difícil convencer os
jovens de que precisam ter uma profissão que não seja obrigatoriamente ligada
ao turismo. Mas nos esforçamos, dando oficinas, palestras e programas sobre
esse tema", conta. "Ora, é muito atrativo e sedutor o mundo em que vivem,
com mulheres e homens de fora, rapazes bonitos, moças bonitas. Mas as
nossas atividades de prevenção, com camisinha e equipes médicas, têm sido
eficientes."
Em Fernando de Noronha há 12 anos, o cientista gaúcho José
Martins, 38 anos, coordenador do projeto Golfinho Rotador, que tem o apoio do
Ibama e da Fundação Nacional do Meio Ambiente e ajuda da Petrobrás, elogia
a educação ambiental dos mais jovens. "Eles sabem que dependem da
preservação como meio de vida e são mais compreensivos que as velhas
gerações", relata a maior reserva humana de conhecimento sobre tudo quanto
é bicho do mar do arquipélago.
Membro da comissão escalada para estudar o Plano de Gestão de
Ecoturismo e Desenvolvimento Sustentável do arquipélago, documento que
serve de guia para futuro do lugar. Martins põe o dedo no alarme para o
momento que vive Noronha. Com problemas de saneamento, abastecimento e
energia elétrica, a ilha, com seus 3 mil habitantes e a presença, como
comprovou TRIP no registro do aeroporto local em janeiro, de até 1 140
visitantes (a lei limita em 750 turistas/dia), está no limite das suas
possibilidades de infra-estrutura.
Segundo Murilo Cavalcanti, 40 anos, coordenador de programas
estratégicos do arquipélago, foi feito um estudo científico de capacidade de
carga que concluiu que a ilha pode receber mais de 800 turistas sem agredir
seu meio ambiente. Mas Murilo salienta que o governo do Estado de
Pernambuco não tem interesse em aumentar demais o número de visitantes
em Noronha. "A idéia é praticar um turismo qualitativo e não quantitativo. Não
queremos turismo de massa".
fantasma da ilha
Esse cenário faz com que os nativos, como Domício Alves Cordeiro,
benzam-se várias vezes quando a eterna polêmica da implantação de grandes
redes hoteleiras rondam a área, como ocorre desde o início do ano. Com cerca
de cem pousadas em casas de família, o que é considerado um ganho em
ascensão social e distribuição de renda para os moradores, o debate é um
assombro equivalente à lenda local da Alamoa, uma galega gigante, que
costuma andar nua, com "fosforescência e maldade nos olhos", para devorar
os homens sem mulheres do lugar.
Os grandes hotéis, pensam os moradores da ilha, vão aniquilar as
pequenas pousadas e engolir a ilha, como ocorre adoidado nas comunidades
de pescadores espalhadas pela costa nordestina. A Alamoa, no imaginário
noronhense, costuma espantar os pescadores e notívagos em geral apenas
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nas noites escuras e misteriosas de sexta-feira. Já o fantasma dos resorts não
sai da cabeça dos nativos um só instante.
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ENTREVISTA COM XICO SÁ*
A partir de que momento você percebeu que a maneira Xico Sá de
escrever tinha forte tendência a fugir do esquema lead, pirâmide
investida, dos tais ideais de impessoalidade e objetividade? Foi um
processo de descoberta natural? O jornalismo “quadrado” sempre te
entediou?
Xico Sá – Tive umas boas experiências logo no começo da trajetória como
jornalista, nos anos 80, no Recife, quando escrevia para o "Rei da Notícia",
uma revista mensal feita por uns malucos de lá e que fazia muito sucesso com
a rapaziada mais jovem. Aí pratiquei um gonzo radical, sem ter a menor idéia
de que diabos fosse gonzo ou new journalism. Depois, por uma questão de
sobrevivência, cai no jornalismo mais convencional, trabalhando nos grandes
veículos (Veja – argh!, Estadão, Folha...). Aí ficava quase impossível escrever
como gosto, ou seja, sem a chatice dos jornalões. Na Folha ainda fiz uma coisa
ou outra mais livre, mas somente de uns 8, 10 anos para cá é que pude me
soltar mesmo, e agora desaprendi o que venha a ser lead e sub-lead.
Então a sua maneira de narrar hoje (a chamemos de sui generis) nasceu
mesmo por acaso?
Xico Sá – Não por acaso, acho que minha queda pela literatura é que me
ajuda nessa história. Antes mesmo de ser jornalista, meu sonho era ser
escritor. Desde que li Angústia, de Graciliano Ramos, ainda em Juazeiro, que
botei na cabeça a obsessão de ser escritor. Como essa profissão não existe,
cai na mais próxima, que é o velho jornalismo.
Indo direto ao ponto: Quanto de Gonzo existe na narrativa do Xico Sá?
Aliás, para você, o que é escrever ao estilo gonzo? Hunter Thompson
fazia/faz parte de suas leituras? Ele pode ser considerado um tipo de
influência sua?
Xico Sá – Fui ler o Thompson para valer de uns dois anos para cá, adoro o
cara, mas não sou influenciado diretamente. Pode lembrar algumas situações,
meras coincidências. Os papas do new journalism, como Capote e Talese,
também li bastante tarde. Minhas principais influências são mesmo de
escritores de ficção. Dessa linhagem americana de new journalism um que
aprecio bastante é o Joseph Mitchell, sensacional, mestre em detalhes nos
seus perfis e histórias. Voltando ao Thompson: sempre, em palestras e debates
de estudantes, me falam de semelhanças. Isso me deixa contente, todo besta,
mas acho que sou mais barroco, coisa da oralidade nordestina.
Walter Benjamin foi assaz incisivo ao afirmar, numa longínqua década de
30, que estamos todos perdendo a habilidade de narrar satisfatoriamente
boas histórias. Trazendo essa teoria apocalíptica para o nosso jornalismo
cotidiano, você acredita que teríamos como melhorá-lo, aperfeiçoarmos
nós mesmos como mediadores sociais, por meio da relação JornalismoLiteratura?
Xico Sá – Ótima pergunta, ainda mais citando esse cara que amo que é o
Walter Benjamin, aliás um dos caras que me influenciam em tudo, nessa coisa
de tentar uma narrativa afetiva. Infelizmente os meios mais convencionais não
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sacaram que uma das saídas do jornalismo seria essa aproximação com a
literatura. Preferem a chatice sempre, por isso que as tiragens despencam a
cada mês. Acho que o jornalismo literário seria grande saída para enfrentar a
concorrência da internet. Um dia eles vão atentar.
Aliás, como você vê a relação polêmica entre o Jornalismo e a Literatura?
Consegue atribuir ao jornalismo o título de subgênero, ou concordas com
Alceu Amoroso Lima, que afirma que o jornalismo é, sim, um gênero
literário?
Xico Sá – O jornalismo é um gênero narrativo, mas anda muito pobre, mal
escrito, burocrático.
Então seria válido lançar mão de recursos estilísticos próprios da
literatura no intuito tanto de ser o mais fiel possível à realidade, quanto de
tornar a narrativa mais aprazível? Se sim, até que ponto podemos ousar,
sem que para isso o teor jornalístico da narrativa esteja comprometido?
Xico Sá – Até aquele exagero nas tintas dos noticiários policiais anda em falta.
Anda tudo muito chato e nem por isso a coisa ainda mais real, menos
mentirosa. As inexatidões, as falhas de informação e apuração são as
mesmas... E embaladas num formato enfadonho. É isso mesmo, tem que
lançar mão da ficção para contar bem as historias reais. Aliás, esse é o ponto:
contar histórias.
Xico, e observando essa nossa realidade frustrante, dá para chegar a
conclusão de que o jornalista que se propor a mesclar jornalismo e
literatura deve se considerar fora do mercado de trabalho, das grandes
redações dos jornais? Nada mais lhe resta do que convites para freelas,
escrever livros-reportagens, etc.?
Xico Sá – Eu consegui furar um pouco esse bloqueio e viver disso por muita
insistência e por uma coisa mais óbvia ainda: os leitores vibram quando sai
uma coisa legal, mais ou menos acertada. Gostam, escrevem para as
publicações, ai vinga. Minha transição foi assim: continuei fazendo umas
coisinhas chatas pra sobreviver e fui atacando no paralelo com esses textos
mais malucos. Hoje vivo só das coisas ditas mais malucas. Um caminho é essa
transição, mas acho que quanto mais gente acertar na mão nesse jeito menos
careta podemos fazer vingar novas e boas publicações. Paula, eu acredito
mesmo nessa forma de narrar. Acho o formato dos jornalões mentiroso,
falsamente sério.
E em relação ao seu tom oras debochado, isso seria um reflexo de quê? O
que você pretende dizer com ele? Você se considera um iconoclasta, ou
isto estaria mais ligado ao fato de você ser um cara com opiniões fortes,
politizado?
Xico Sá – Tem um quê da fuleiragem nordestina, esse espírito mungangueiro
que muitos de nós temos. E pra completar não levo mesmo a vida a sério. Faço
com o maior profissionalismo, mas não sou obrigado a levar a sério e muito
menos me levar a sério. É uma coisa meio anarquista mesmo.
E como esse jeito despachado acaba reverberando na sua relação com as
fontes? Tem gente por aí te odiando pela maneira como foi retratada por
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você em alguma reportagem ou isso não existe; as fontes tendem a não
levar para o lado pessoal. Você teve retorno do Severino Cavalcante, por
exemplo, depois que a reportagem “Jornal Nacional” foi publicada na
Trip?
Xico Sá – Tem gente que odeia. Um assessor do Severino me disse que ele
ficou dizendo que eu era um doido, um maconheiro, só podia ser um
maconheiro pra escrever esculhambado daquele jeito. Você viu o texto do Tom
Zé que fiz na Rolling Stones? O que acontece é que quando o personagem é
ótimo, fico até razoável também.
Bom, e quanto a Jeany Mary Córner (personagem principal da reportagem
“Programas de Governo”)? Achei a pauta genial. Foi idéia sua? Alias,
você tende a propor as suas pautas ou os caras que costumam te
convidar?
Xico Sá – Sempre pensava em escrever sobre política a partir da putaria
propriamente dita. É a melhor forma de narrar a política nacional. Eu mando
sugestões, mas muitas vezes os caras também já associam alguns temas a
mim e me pedem pra escrever.
* A entrevista com o jornalista Xico Sá foi concedida no dia 1º de dezembro de
2006.

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