revista da cinemateca brasileira

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revista da cinemateca brasileira
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www.cinemateca.gov.br
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revista
da cinemateca
brasileira
NÚMERO 2 | JULHO DE 2013
revista da cinemateca brasileira
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J U L H O
www.cinemateca.gov.br
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revista
da cinemateca
brasileira
NÚMERO 2 | JULHO DE 2013
revista da cinemateca brasileira
Agradecimentos
Arquivo Nacional
Ministério da Justiça
Biblioteca Nacional
Ministério da Cultura
Goethe Institut
Aos colaboradores
Os artigos e resenhas enviados à Revista da Cinemateca Brasileira são
submetidos ao Conselho Editorial e ao Conselho Científico, além de pareceristas
ad hoc. Os Conselhos Editorial e Científico reservam-se o direito de propor
modificações de forma, com o objetivo de adequar as contribuições às dimensões
da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico.
Catherine Benamou
Guilherme Fernandez
Jeferson Bazilista
José Guilherme Pereira Leite
Kathleen Dow
University of Michigan
editorial
A Revista da Cinemateca Brasileira confirma sua vocação para a multiplicidade do audiovisual e, em
seu segundo número, traz ensaios, artigos, críticas, entrevista e roteiro. Desde sua origem, a missão da
Cinemateca­, de restaurar, preservar e difundir, passa pela reflexão sobre as transformações constantes
da própria instituição e de que maneira ela pode contribuir para o debate mais geral. Depois de uma
década­de desenvolvimento ininterrupto, que permitiu que sua missão fosse cumprida na integralidade,
a Cinemateca se encontra em uma nova conjuntura, onde suas ações precisam ser ampliadas, para
continuar devolvendo à sociedade sua memória audiovisual.
Instituição moderna por excelência, a Cinemateca foi criada com a consciência de que uma sociedade
deve se deparar com sua imagem e, a partir desse confronto liberador, pensar o estatuto da produção
artística e do documento, de maneira a constituir formas de leitura de uma técnica cultural, o audiovisual.
As maneiras­de se preservar influem diretamente na forma de se difundir, criando assim um binômio (preservar para difundir) indissociável e complementar, cujos resultados positivos acompanhamos nos últimos
anos. Em sua história marcada por descontinuidades, nunca o cinema brasileiro foi tão recuperado­.
Nesse sentido, o número 2 da Revista da Cinemateca Brasileira traz novas chaves de análise para se
refletir sobre a produção contemporânea das imagens, suas formas de legibilidade e sua história.
Para­i­sso, filmes, personagens e períodos do cinema brasileiro são colocados ao lado de obras e teorias gerais­, criando um tecido de referências e possibilidades que instiguem um novo olhar. Sempre
com uma disposição crítica atenta às formas artísticas e ao mundo histórico de onde elas emanam,
as análises­lançam mão de argumentações teóricas conforme os objetos permitem. Sem o cosmopolitismo abstrato, tão comum nas novas gerações, que importam sem mediações uma conceituação
produzida em contextos diferentes do nosso, as contribuições desse segundo número partem de
pontos particulares para chegar ao presente, como o faz Claire Angelini, cuja reflexão sobre um filme
de Fritz Lang desemboca na “psiquiatrização”contemporânea. O ensaio de Claire, por fundir escrita e
imagem, inspirou toda a composição do volume, que, diferente do primeiro número da Revista, aposta
no jogo de imagem como acréscimo e conflito da interpretação. O dossiê Preservação Cinematográfica­
traz diversas possibilidades para se pensar a preservação e se complementa com a edição em DVD
de Limite (1931). O filme de Mário Peixoto, obra fundamental do cinema brasileiro, foi restaurado pela
Cinemateca­Brasileira e agora é devolvido em toda sua potencialidade.
Boa leitura!
Cinemateca Brasileira
nesta edição
ensaios
06
24
M em seu tempo e no nosso
Claire Angelini
Notas para uma história econômica do cinema brasileiro:
O caso da firma Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
Julio Lucchesi Moraes
40
Arte e mercado em Verdades e Mentiras,
o falso documentário de Orson Welles
Marcos Soares
54
70
Hollywood : duas faces de uma mulher
Jair Leal Piantino
O álbum de fotografias de Walter Benjamin
Bernd Stiegler
dossiê - restauração cinematográfica
88
Preservação Cinematográfica:
Entrevista com Patricia de Filippi
106
114
126
O Mapa de Saulo
142
pauloemiliana
Adilson Mendes
Por um acaso da paciência – A coleção de Fernando Pereda
Sofi Richero e Alejandra Trelles
Gigi - Um filme desaparecido e sua reconstituição ideal
Joaquim Canuto Mendes de Almeida e José Medina
A apresentação de Argumento
Pedro Plaza Pinto
6
ensaio
M em seu tempo e no nosso
Claire Angelini
Cineasta independente e artista visual
M e Et tu es dehors
Este texto surgiu da violência do encontro com M, de Fritz
Lang. Ele prolonga, de maneira teórica, algumas pesquisas plásticas que engendraram um projeto de instalação
artística e um filme, Et tu es dehors.1 Ao cruzar certos aspectos visíveis ou latentes do filme de Lang com a noção
de biopoder, Et tu es dehors desenvolve uma reflexão plural sobre a noção de indesejável. Trata-se de um impulso
que não se inscreve na tradição do remake – como o de
Joseph Losey, filmado em 1951, ou o de Robert Hossein, de
1965 –,2 mas que empreende uma leitura do filme de Lang
e um desvelamento de suas forças subjacentes, e apreende as raízes vivas do mundo no qual vivemos hoje.
M é um objeto singular. Há uma pletórica literatura sobre
essa obra-prima do cinema mundial,3 e alguns o transformaram em emblema para a denúncia do prenúncio do
advento de Hitler e do regime de terror que se instalou na
Alemanha. 4 Apesar disso, um aspecto permaneceu mais
ou menos negligenciado, o que surpreende, mesmo que
inconscientemente, o espectador atento à escuta e à visão
do filme. Esse aspecto é a problemática da doença mental,
ou mais exatamente, aquilo que Foucault nota no seio dos
sistemas que classificam, hierarquizam e vigiam [o] corpo
como obstáculo incontornável: o resíduo, o irredutível, o
inclassificável, inassimilável.5 Ora, na República de Weimar,
esse obstáculo incontornável é precisamente objeto de
debates. Ao decidir fazer um filme de reportagem, como
Lang e sua roteirista Thea von Harbou reivindicam desde
as premissas do projeto, inspirando-se para isso, em
grande medida, em um fato concreto, difundido massivamente na Alemanha e conhecido internacionalmente, eles
levam em conta o risco do real, ou seja, inscrevem no filme não apenas o conjunto dos problemas postos por esse
caso particular, mas tudo o que gravita em volta do obstáculo, exprimindo assim o pensamento médico da época.
Portanto, o caso de M ultrapassa a célebre encenação
de um assassino de crianças que aterroriza uma cidade,
instiga a polícia e é detido por uma quadrilha para chegar
a uma paródia do processo final, para incluir, na forma
visual e sonora, elementos a priori exteriores ao cinema,
mas que são importados quase que fielmente pelo filme
(os materiais), que lhes dá uma função discursiva pela sua
construção formal.
Tentaremos expor aqui a relação de um filme em sua substância documental e a maneira como a história o atravessa,
como se ele fosse uma placa sensível do ano de 1931,
assim como a relação de uma época com a anormalidade,
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M em seu tempo e no nosso
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nos questionando in fine sobre a maneira como esses materiais são organizados na própria forma do filme. Ou, em
outros termos, qual é o discurso do filme por meio desses
discursos midiáticos, acadêmicos, policiais, etc.
As fontes de M
O vínculo estreito que o filme possui com a sociedade
alemã de seu tempo (1929 e 1931) se mistura essencialmente por meio de sua relação com o terrível fait-divers
que o inspira, e que agita as almas em profundidade no
momento exato em que o filme é concebido, filmado e em
seguida exibido e comentado, pela imprensa e pelo público:
o caso do “vampiro de Dusseldorf”, o assassino “em série”,
Peter Kürten. Uma história que surge depois de outras
bem semelhantes, advindas na Alemanha ao longo dos
anos 1920, como os casos Fritz Haarmann, Friedrich
Schumann, Carl Grossmann e Karl Denke. Segundo Anton
Kaes, Lang conecta esses casos, enquanto sintomas, com
a tragédia da Primeira Guerra Mundial.6
Entretanto, a cronologia do caso Kürten precede e acompanha de perto a realização do filme.7 No dia 25 de maio
de 1930 é detido Peter Kürten, que aterrorizou a cidade
de Dusseldorf durante quinze meses, perpetrando uma
quarentena de agressões e nove mortes (pessoas dos dois
sexos, crianças e adultos). No dia 6 de junho a imprensa
corporativa informa, sem muitos detalhes, que Fritz Lang
– cujo último filme, Frau im Mond (A mulher na lua) foi
lançado em 1929 – voltara ao trabalho. No mesmo dia, o
Film-Kurier assinala que um documentário sobre Kürten,
realizado por uma equipe que trabalhava para a polícia
de Dusseldorf, provocou um escândalo em um cinema da
cidade. No dia 13 de junho, Lang revela o título de seu próximo filme, ao mesmo tempo que o contrato de produção
com Semour Nebenzahl, da Nero-Film: Mörder unter uns!
(O assassino está entre nós!). Após certo número de anúncios (intervenções dos atores) e de artigos (“O primeiro
filme sonoro de Fritz Lang”), o filme é rodado entre 18 de
dezembro de 1930 e 16 de fevereiro de 1931. Seu tema é
mais ou menos conhecido graças às reportagens sobre as
filmagens e ao longo da montagem. No dia 31 de março,
surge a primeira publicidade com a mão marcada com o
“M”. O processo Kürten foi aberto em 13 de abril. No dia 20,
a Nero anuncia que o filme de Lang “não terá um título”. No
dia 22 do mesmo mês, o processo Kürten termina com a
condenação à morte do assassino. No dia 27 é expedida a
autorização da censura para o filme. A pré-estreia no UFA-Palast am Zoo se dá no dia 11 de maio e o lançamento­
no dia 13. Em 23 de junho, o sucesso aumenta o número
de salas onde o filme é exibido. No dia 2 de julho, Kürten
é guilhotinado na prisão de Köln-Kligelpütz. No dia 30 de
agosto, M tem sua exibição estendida para todo o território
alemão. Em maio de 1932, há um segundo lançamento
exclusivo do filme na Alemanha (uma versão mais curta
em aproximadamente 10 minutos).
Mais tarde Lang afirmaria ter se inspirado em diversas
figuras de assassinos em série, entre eles os já citados
(como a rima no início do filme, que remete explicitamente a Fritz Haarmann, que decepava suas vítimas com
uma machadinha, para vender sua carne no mercado de
Hanover­). A maioria dos comentadores retoma essa asserção e, por isso mesmo, relativiza o vínculo de M com o
caso Kürten.8 Porém, no lançamento do filme, Lang afirma
em entrevistas, na Alemanha e depois na França, que é
sobretudo o caso Kürten que inspira o filme, e sua recepção na Alemanha (e, em uma medida reduzida, na França)
estabelece a equivalência Beckert/Kürten, chegando até
a nomear alguns protagonistas do filme com os nomes
dos personagens reais implicados no “caso”: o próprio
Kürten no lugar de Beckert, o comissário Gennat no lugar
de Lohmann.9
A leitura dos jornais da época, em especial o número
exclusivo do Kriminal-Magazin, editado em Leipzig e lançado no começo de 1930, mas voltado para os cidadãos de
Dusseldorf, que viviam então a psicose dos assassinatos
em série realizados por um desconhecido (Kürten ainda
não tinha sido identificado e preso), não deixa, na verdade,
nenhuma dúvida sobre a profundidade da relação existente entre o filme e o assassino de Dusseldorf – o caso
Kürten: há nesse periódico motivos, detalhes, imagens,
diagnósticos, formulações, cenas populares, que literalmente inspiram o filme, a começar pelo título: “15.000
Mark Belohnung! Der Massenmörder von Düsseldorf. Ein
Massenmörder spielt mit einer Stadt” [15.000 marcos de
recompensa! O assassino de Dusseldorf. Um assassino
em série que aterroriza uma cidade inteira].
Concebido para alertar o público, anunciando o “consternamento geral”, esse número especial de 25 páginas foi confiado a um especialista “que seguiu a investigação desde
o início” e a quem foi pedido, mantendo-se sigilo absoluto,
uma avaliação bem objetiva da questão. De início, o autor
traçou um perfil do assassino: ele mata suas vítimas com
um punhal (35 golpes na pequena Gertrud Albermann) e
os assassinatos se sucedem, com alguns dias e até poucas
horas de intervalo. O gosto de Beckert, o assassino de M,
por punhais – e a associação Beckert/punhal – atravessa todo o filme, e não vale a pena insistir nisso junto aos
espectadores. A laceração violenta, obstinação selvagem
do assassino sobre suas vítimas, também encontra eco na
conferência de um especialista da polícia sobre o inspetor
do filme, aliás trata-se de um motivo inspirado em uma
fotografia do Kriminal-Magazin, que mostra uma reunião
das diferentes instâncias policiais e administrativas: “e
quando elas são encontradas [as vítimas], só Deus sabe
em que estado...”
O terror que arrebata uma cidade inteira – como acontece
em Dusseldorf – é evocado no jornal já em suas primeiras
linhas. Cartazes prometem recompensas a quem capturar
o assassino, assim como no filme. O mesmo se dá com
uma cena na qual transeuntes molestam um indíviduo
suspeito. A psicose coletiva se espalha pela cidade, como
relata um leitor do Kriminal-Magazin: “[Um] homem que
não faria mal a uma mosca, ao ver sua sobrinha sozinha
na rua a conduz para casa para evitar qualquer perigo,
mas é tomado como suspeito de ser o assassino de crianças e quase é linchado. Uma patrulha da polícia o salva.” A
mesma cena é retomada no filme.
A aparência, a idade e a maneira como a pequena vítima
do filme de Lang (Elsie Beckmann) é conduzida por seu
assassino também lembram bastante, por seu tamanho,
fisionomia e vestimenta, a figura da pequena Gertrud
Albermann assassinada no dia 09 de novembro de 1929, e
cuja fotografia é reproduzida no Kriminal-Magazin. Lê-se
também que o assassino conduz sua vítima com seu consentimento, depois de lhe oferecer um presente (no filme,
o famoso balão):
[Pela] janela de uma casa próxima, uma vizinha
observou como um jovem de casaco escuro, de
mais ou menos 25 anos, partiu com uma criança e
foi certamente um presente ou uma promessa que
possibilitou tal confiança.
Outros detalhes fornecidos pelo Kriminal-Magazin se encontram no filme, como a maneira do assassino esconder
as mãos nos bolsos, relatada por uma testemunha, ou o
fato de uma mulher ter conseguido escapar dele. De fato,
Kürten se colocava por trás de suas vítimas para abatê-las
subitamente. A cena em que Beckert tira seu punhal para
descascar uma laranja, ilustra, por deslocamento, o que é
sabido do assassino. Essa cena “joga” duplamente com o
conhecimento do espectador, assim como, no filme, com
o do jovem que persegue Beckert e o marcará de giz, logo
após esse episódio, com o famoso “M”.
Além disso, o assassino misterioso analisado pelo
Kriminal-Magazin, e que Fritz Lang põe em cena no filme,
escreve cartas para a polícia e para a imprensa. Esse é
um dos elementos mais interessantes do ponto de vista
de sua psicologia. A primeira carta, enviada ao jornal
comunista Freiheit, foi escrita com lápis azul (vermelho no
filme, com o lápis se tornando um indício) e indica, por um
plano, o lugar em que o corpo de uma vítima foi enterrado.
Essas cartas foram analisadas por inúmeros grafólogos,
entre os quais um é citado nos jornais em termos muito
próximos pelo grafólogo do filme: “(...) quem escreveu essas cartas é, do ponto de vista mental, um caso patológico,
provavelmente um esquizofrênico (…); segundo me parece,
o que confirma que se trata de um tipo de doente mental,
quer dizer, um esquizofrênico, o que é sugerido fortemente
pelas letras W e H na carta no 2, assim como na carta n­­o 1
pelas letras G e H.”
Enfim, logo após a detenção de Kürten, o professor Franz
Sioli, psiquiatra da Academia de medicina de Dusseldorf,
examina longamente o assassino na prisão de Dusseldorf-Derendorf, entre 7 de outubro e 2 de novembro de 1930,
colocando suas observações e suas conversas com ele
em um relatório destinado ao júri.10 Dessas conversas
relacionadas com a vida e, em particular, com a infância
do assassino, é necessário nos determos em um ponto, ao
qual Sioli, mas também Kürten com ele, voltam inúmeras
vezes: a questão das “vozes”. Kürten, que de fato parece
ouvir vozes, entendendo que elas são fruto de sua imaginação, termina por redigir espontaneamente um relato
sobre todas as vozes que ouviu desde sua juventude. Claro, podemos nos perguntar em que medida Lang e Harbou
tiveram conhecimento dessas conversas e do relatório de
Sioli, mas é difícil não ver aí um vínculo suplementar com
a psicologia de Beckert encenada por Lang no monólogo
final, no qual o personagen, preso a seus demônios, confessa ser perseguido nas ruas por vozes de mulheres e de
crianças, que não lhe dão descanso.
Se a figura do assassino Kürten oferece ao personagem de
Beckert (interpretado por Peter Lorre) uma parte importante
de sua psicologia, outros personagens cruciais desse caso
também inspiram Fritz Lang, como o comissário Lohmann,
espécie de “réplica” do Kriminalrat de Berlim, Ernst Gennat.
Se, para a pequena história, o personagem de Lohmann toma
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9
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10
emprestado o nome do responsável pelo caso Schumann, o
Kriminaloberwachtmeiter Lahmann, trocando apenas uma
vogal, Gennat, por sua vez, fará parte da Mordkommission
que reúne na época comissários locais (Dusseldorf) e berlinenses da polícia criminal, em torno do caso do assassino de
Dusseldorf. De fato, é Gennat, tendo em vista seus métodos
e sua experiência, que será chamado por seus colegas da
região para ajudá-los a prender o assassino.
É ele que vemos na primeira página de outro número
do Kriminal-Magazin, fotografado “em pleno trabalho”, examinando, com a ajuda de uma lupa, um documento sobre
uma beira de janela, imagem que irresistivelmente nos
remete à cena em que Lohmann, conduzido por um inspetor ao quarto de Beckert, inspeciona a beirada da janela
em que o assassino redigiu sua carta para a imprensa.
Ernst Gennat era o representante permanente do diretor
da polícia judiciária berlinense, dirigindo a divisão de polícia
criminal “M” (Mord). A letra do título desse filme “sem título”
pode remeter também, por meio dessa brincadeira, ao setor no qual trabalhava Gennat, assim como a palavra Mord
(assassinato) a outra palavra, Mörder (assassino). Que
sejam os mendigos e os mafiosos a fazerem o uso que sabemos dessa letra ao “marcarem” o suspeito, é ainda mais
irônico da parte de Lang, e faz parte dessa superposição
de duas “instituições” concorrendo na caça ao assassino.
Aliás, não é por acaso que Lang se interessa particularmente pela figura de Gennat. De fato, o comissário tinha
como primeira preocupação e doutrina a prevenção do
crime, e, para isso, criara um arquivo central que reunia
todos os dados possíveis de determinado caso (jornais,
rádio, cartazes, pontos de vista, etc.). Divulgador dos novos
princípios da criminologia, ele praticava sobretudo o uso e
a centralização de impressões digitais colhidas. Aliás, procedimento relativamente novo na Alemanha – que o filme
ecoa quando o comissário de polícia expõe ao ministro
(pesquisa de indícios nos arquivos de impressão digital,
análise das ditas impressões pelo aumento de tamanho
com a projeção na parede, constituição sistemática de arquivos que vemos ser consultados no filme). Desse ponto
de vista, esse “estudo de personagem” feito por Lang, que
surge no filme de forma bem documentada (e reivindicada
como tal por Lang e Harbou), permite encenar um conjunto
de tecnologias de vigilância de que dispõe sua época.
Ora, se o vínculo entre o caso Kürten e o filme se revela ao
longo desses inúmeros paralelos e por meio da aspiração
documental dos autores do roteiro, é preciso compreender,
para além da narração ofegante, do suspense desenvolvido
com brio pelo autor, e pela performance dos atores do filme,
o que realmente está em jogo nesse projeto. De fato, o caso
Kürten colocava certo número de problemas, pois por meio
dele se exprimiam espontaneamente correntes de opiniões
muito marcadas e oriundas do corpo médico, do meio jurídico e do mundo da criminologia (todas instâncias ligadas
ao movimento da biologização de todas as disciplinas que
conhece seu ápice nessa época). Saturada de ideologia, a
questão Kürten, nesse momento, é a do estatuto e do lugar
do criminoso e do doente mental na sociedade. Trata-se
aqui de verificar como foi considerado, por quê, em nome de
quê, e o que isso implica para o filme de Fritz Lang.
A doença mental
Vimos que o grafólogo do Kriminal-Magazin e outros participantes da investigação estavam fortemente inclinados a considerar o assassino de Dusseldorf como um doente mental e,
após a prisão de Kürten, o professor Franz Sioli foi designado
para examinar longamente o assassino, com outros colegas.
Curiosamente – e contra qualquer expectativa – Kürten
não foi considerado um doente mental, apesar de todos
os sinais patológicos que demonstrou. No seu relatório
final, Sioli declara que não detectou nenhum desses sinais,
nenhuma perturbação patológica dos afetos, nem os sinais
exteriores do comportamento, ou do movimento do rosto,
e da palavra que revelariam a tensão da loucura que habita
o doente. Dois outros especialistas concluem igualmente a
premeditação e a responsabilidade do acusado nos crimes.
O advogado de Kürten, Alex Wehner, argumentará em
vão a irresponsabilidade do seu cliente, que ele apresenta
como alguém “impulsionado por uma força irresistível”.
Ele evoca seus antecedentes de anormal e declara que
“os atos de Kürten se relacionam mais com a medicina e a
patologia do que com a justiça.”
Não resta dúvida de que razões políticas ligadas a controvérsias sobre a pena de morte naquele momento (apenas
a esquerda alemã11 se pronunciou claramente contra)12
pesaram sobre o veredito e levaram os juízes, apoiados
em diagnósticos de psiquiatras, a recusarem a Kürten as
circunstâncias atenuantes que teriam lhe valido o reconhecimento de sua doença. A corte certamente imaginava
que ela própria não poderia assumir tal veredito diante das
vítimas. A sentença de morte devia ser executada, já que lhe
tinham sido enviadas muitas cartas de pessoas clamando
pela morte do assassino e algumas até pedindo para tomar
parte na execução. Assim, testemunhos graves sobre a
saúde mental do acusado, como o de um jardineiro que
encontrou um cisne ensanguentado pelo punhal de Kürten
em um parque da cidade, não foram levados aos juízes.
Porém, após sua morte, algumas vozes se levantaram rapidamente contra a execução do assassino, em particular
no periódico social-democrata Die Justiz.13 Duas críticas
apareciam no jornal: a primeira denunciava a influência dos
meios de comunicação e da vox populi sobre o processo,
enquanto a segunda contestava o diagnóstico da boa saúde
mental de Kürten.
Além disso, apesar da postulada “normalidade” de Kürten,
seu corpo será, no minuto seguinte à execução, remetido
ao representante do instituto de anatomia-biologia da universidade de Berlim, o professor Krause, que, com outros
três médicos, se encarregará de empreender pesquisas
com o cadáver, uma prática corrente nos meios psiquiátricos e médicos da época.
No caso Kürten, é evidentemente o estado da lei nos anos
1929-1931 que não permite estabelecer a equação entre
doença mental e execução de um criminoso. Os termos são
(ainda) juridicamente distantes um do outro, e a execução de
Kürten só foi possível com a negação do estatuto de doente
mental, pelo qual ele seria protegido de uma execução, tendo
em conta o famoso artigo da lei §51, que aparece no filme.
Entretanto, é no filme que esses dois termos aparecem
conectados, já que Beckert nele se faz presente como um
doente mental, e a questão de sua execução, porque ele é
doente, é discutida no final do filme, na forma de uma paródia do processo – nos mesmos termos que o advogado
de Kürten havia tentado desenvolver.
Hans Beckert é apresentado, sem nenhuma ambiguidade,
como um doente mental. O grafólogo de M, que estuda a
carta enviada à polícia, descreve a personalidade de um
homem com uma “pesada patologia” (schwer pathologischer Man). Do mesmo modo, os representantes das forças
da ordem, em sua reunião de célula em crise, concluem,
depois de imaginar como poderiam encontrar o tal
homem, que é preciso certamente “procurar por entre as
pessoas recentemente saídas de uma instituição psiquiátrica”. Em seguida, um mapa mostra um conjunto de fichas
de informações provenientes de instituições privadas e de
hospitais estatais, como o célebre Sankt Hedwig, situado
em Berlin-Mitte e ainda em atividade.
O filme no debate público
Se é possível fazer abstração das informações destiladas
ao longo das filmagens e da montagem, e o “suspense”
(comercial?) mantido sobre o título e o tema, não se pode
negar que, desde seu lançamento, o filme se inscreve
deliberadamente no debate. O primeiro dossiê de imprensa, redigido por Alexandre Alexander, sublinha sua
atualidade: além dos textos de Fritz Lang (Mein Film-ein
Tatsachenbericht [Meu filme M, um relatório factual]) e de
Thea von Harbou (Warum gerade ein “solcher” Film?! [Por
que exatamente esse filme?!], ele contém intervenções de
especialistas, como o advogado Erich Frey (que defendeu
Schumann, Grossmann e, por um tempo, Haarmann), Paul
Steinbeck, o procurador geral (Staatsanwalt), o diretor do
museu do crime e da Kriminalberatungstelle de Berlim,
fac-símiles e, por fim, cartas de Kürten. No caderno de
apresentação de Illustrierte Film Kurier, são retomadas, e
em destaque, as palavras do ministro e de especialistas
da polícia que, no filme, falam de “uma grande cidade
aterrorizada por um assassino patológico de crianças [Eine
Großstadt wird monatelang von einem pathologischen
Kindesmörder terrorisiert], de um “criminoso com instintos
bestiais” [bestialischen Triebverbrechers an], de um “monstro disfarçado de homem”. O entrelace de doença mental,
assassinato e inumanidade do matador é persistente. Em
destaque, o caderno publica uma declaração do procurador
Paul Steinbeck, para quem o filme é bastante esclarecedor
sobre os perigos que representam tais assassinos e faz
uma encenação impressionante sobre a maneira pela qual
o indivíduo e seus próximos podem se proteger.
Portanto, até que ponto o filme não participa e torna aceitável não apenas o veredito, mas a execução de Kürten?
Se é verdade que o filme “se esquiva” de “tomar parte no
debate sobre a pena de morte” de maneira declarativa,
como afirma Kracauer, já que a lei permanece forte o
suficiente e Beckert não termina linchado pelos mafiosos,
por outro lado, a dramaturgia conduz a um discurso e faz
valer – como já notara Roger Dadoun –14 “o direito das
mães” contra a Lei e a constituição do assassino em um
“bode expiatório”.
Não resta dúvida de que para Lang e Harbou a motivação
para fazer o filme, sua missão, era intervir no debate público: mostrar e, com isso, prevenir o “perigo invisível”.
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As declarações de Lang caminham nessa direção quando,
em seu texto de apresentação, ele insiste no vínculo
doença/crime ao empregar uma fórmula que faz eco às
palavras de Schränker em seu requisitório: “Esse homem
é um incêndio que é preciso apagar.” O cineasta afirma: “Se
esse filme, baseado em fatos reais, pode, assim como uma
mão que se levanta em advertência, contribuir para mostrar
o perigo invisível que ronda, o perigo crônico que ameaça
nossa existência, especialmente a existência dos mais
frágeis, as crianças, pela presença constante de indivíduos
predispostos à doença ou ao crime – uma espécie de átrio
de incêndio latente (latenter Brandherd) –, se esse filme
contribuir para além da prevenção do perigo, ele terá realizado sua missão mais nobre e também alcançado a lógica
da essência dos fatos por ele narrados.” (Grifo nosso)
A “mão que se levanta” não é aquela, emblema do filme
em sua publicidade e dos letreiros, que carrega em sua
palma o “M”, a mão de um dos membros do submundo?! E o amálgama está nessa declaração assumida
entre “doença” e “crime”, pano de fundo do argumento de
Schränker que se liga à metáfora do incêndio.
O filme põe em cena de tal forma e de maneira explícita os
argumentos pró e contra a execução do doente mental Beckert, como não foram expostos nem mesmo no processo
real. Com isso, ele participa necessariamente do debate
promovido pelo caso Kürten, que seguiu casos precedentes. Aos discursos que se confrontam na investigação e na
perseguição (quais meios mobilizar, qual tipo de investigação, etc.), de um lado e de outro das duas “instituições”
presentes e convergentes (a polícia e o submundo), ambas
pressionadas pela opinião pública (cenas de rua, ameaças
de linchamento, brigas em bares, delações, etc.), se sucede
o embate de três termos do processo com o ato de acusação (Schränker), a peroração do acusado (Beckert) e a da
defesa (o advogado).
O filme apresenta assim todos os argumentos e os espectadores se deparam nas salas em que ele é projetado,
como faziam na rua ou nos cafés, lendo jornal ou escutando rádio. Na medida em que as filmagens acabaram
antes do processo, o “processo” no filme foi concebido,
em alguma medida, como um “cinejornal reconstituído” e
antecipado do processo real, o qual, por sua vez, terminou
quando o filme foi lançado, o que alavancou seu sucesso
até a execução de Kürten e bem depois disso. Não se pode
negar o papel que o filme desempenhou no debate público
e na aceitação da sentença de morte.
Os comentadores (a crítica), que revelam a natureza do
tema e sua atualidade, e cujos pontos de vista já estão
constituídos, privilegiam este ou aquele orador no intuito
de fazer com que o filme diga o que eles desejam, ou
então deploram a ausência de afirmação de seus pontos
de vista pelo filme.
Ao negar ter tomado posição pró ou contra a pena de morte em seu filme, Lang defende ter apresentado os termos
do debate. Entretanto, a incerteza tem menos presença
“equitativa” das diversas posições em jogo na sociedade da
época, do que do estatuto de umas e outras sobre o plano
dramatúrgico, ou, em outros termos, sobre o discurso da
forma fílmica. Esta oferece ao personagem Schränker um
lugar particularmente pregnante, de natureza a persuadir, pela força de sua enunciação, o tipo de ocupação do
espaço fílmico que é o seu, o caráter assertivo de seus
argumentos, enquanto os partidários da medida ou da
nuance têm discursos claramente menos convincentes: o
espectador poderia, sem sentir a contradição, se identificar
com um especialista da polícia, barrigudo e com barbicha
de professor, ou com um “advogado” asmático, ou com o
homem forte, envergando um casaco de couro?
A ideologia eugenista
O que revela, na letra, a encenação do requisitório de
Schränker e a paródia do processo é a maneira pela qual o
filme é atravessado por uma corrente de pensamento muito
mais larga e profunda, que inscreve a questão do doente
mental no centro da sociedade por meio da evolução das
disciplinas médicas, psiquiátricas e higienistas europeias
após a primeira metade do século XIX. O comentário de
Schränker se apoia no seguinte argumento: como você
confessa que não pode deixar de matar é necessário que você
morra. Por você ser doente é que é preciso te eliminar. Beckert
descreve sua doença e sua impotência para combatê-la e
isso fornece a prova de que ele não pode ser integrado à sociedade, devendo ser exterminado. Se retomamos termo por
termo os elementos de seu discurso, primeiro na reunião
dos chefões do submundo, depois no momento da paródia
do processo de Beckert, se os estudar, após retirarmos a
violência do tom do ator Gustav Gründgens, vemos essas
palavras, essas frases, esse apelo para “apagar [o Outro]
como um fogo nocivo”, não mais como a expressão de um
crápula (Schränker) deslocado pela situação (pois os assassinatos impedem que ele continue suas atividades criminosas), mas como pertencendo a um campo lexical preciso,
o dos psiquiatras partidários da eutanásia, que serão mais
tarde os promotores, senão os atores, do Programa T4 na
Alemanha nazista.
Como é que a psiquiatria se mistura com o discurso de
Schränker, e como interpretar a encenação de Lang?
Como nos lembra Foucault,15 com a realização do projeto
da sociedade industrial, nascido no século XVIII, que
engendra a nossa, surgem novas tecnologias de poder
que exigem a racionalidade econômica e política e que se
funda sobre uma estatização do biológico. A emergência
de um corpo coletivo, que se torna a população, é concomitante com a preocupação de precaver a todos, e cada um,
contra a doença, a velhice, o cansaço e, assim, preservar a
sociedade da degenerescência. Em consequência disso, os
domínios da medicina e da higiene, tornados saber de Estado, se articulam com o controle disciplinar, a segurança,
a regulação, a normalização. Esta biologização do político
torna necessária a distinção entre o normal e o anormal, o
superior e o inferior, o são e o desviante, legitimando assim
seu correlato, a eliminação daquilo que prejudica a espécie.
O novo lugar da medicina, outorgado pela higiene, conduziu
o corpo médico e a jovem disciplina psiquiátrica à pretensão de esclarecer com seus saberes o tratamento dos
problemas sociais e a querer se tornar um difusor do poder
judiciário. Pois foi demandado a ele que “fornecesse qualquer coisa que se pudesse chamar de psiquátrico-político
entre os indivíduos, ou um discriminante psiquiátrico de
efeito político entre os indivíduos, entre os grupos, entre as
ideologias, entre os próprios processos históricos.”16
Em nome do saneamento e da moralização da sociedade,
os partidários de um programa forte de higiene pública
proclamam que a “profilaxia social” se estenda à luta
contra a criminalidade (assim como à vagabundagem e
à prostituição). E a maioria deles não hesita em defender
meios radicais de eliminação dos criminosos reputados
como incorrigíveis: deportação para colônias, aplicação
mais sistemática da pena de morte, em seguida, sob a
influência do movimento eugenista, esterilização – leia-se eliminação por meios considerados mais adequados
e indolores, como por exemplo o uso de gás. Em carta de
1887, enviada a Cesare Lombroso, por ocasião da edição
francesa de O homem delinquente, o filósofo e historiador
Hippolyte Taine escreve: “Estou longe das ideias humanitárias de nossos juristas; se eu fosse jurista ou legislador,
não teria nenhuma indulgência com os assassinos e
ladrões, com o “criminoso-nato”, com o “louco moral”. […]
O senhor nos mostrou orangotangos lúbricos, ferozes,
com rosto humano; e, como tais, eles só podem agir
como agem; se eles estupram, se roubam, se matam, é
certamente em virtude de sua natureza e de seu passado.
Razão pela qual se deve destruí-los imediatamente, já que
se constatou que eles são e permanecerão orangotangos.
Em relação a eles, não tenho nenhuma objeção contra a
pena de morte, isto se a sociedade achar por bem.”17
A velha preocupação dos penalistas se encontra renovada
com o desenvolvimento de um movimento de formalização
do comportamento criminal, nos termos do determinismo
biológico. A partir daí, o debate sobre a determinação das
penas se transforma em um debate sobre os métodos de
eliminação dos criminosos ditos “incorrigíveis”:
“Os impotentes, alienados, criminosos ou decadentes de
toda espécie, devem ser considerados como perdas de
adaptação, inválidos da civilização. Não merecem nem o
ódio, nem a cólera, mas a sociedade deve, se ela não quiser
precipitar sua própria decadência, se precaver indistintamente contra eles e os colocar fora do estado de risco.” Tomado pela psiquiatria como um desvio em relação à norma
social, o crime torna-se uma tara, que não apenas acompanha, mas revela a doença mental. Como tudo se tornou
doença, na medida em que esta “é uma mancha presente
em todas as desordens possíveis da conduta [em especial
o que] tinha recebido apenas um estatuto moral, disciplinar
ou jurídico. Tudo o que é desordem, indisciplina, agitação,
indocilidade, caráter reativo, falta de afeição, etc., tudo isso, a
partir de então, pode ser “psiquiatrizado”.18 Assim, não apenas a piromania, a mitomania, os surtos de grandeza, mas
também a desconfiança, a mentira, o comportamento tido
como “associal”19 de algumas crianças rebeldes na escola,
até as escolhas políticas (as opiniões de esquerda estigmatizadas como desviantes, leia-se o marxismo declarado
como doença mental). Em 1926, a Enciclopédia do Criminalista publica um especialista em direito penal, o criminalista
Erich Wulffen, que se expressa sobre essas questões: vemos no comentário, ao lado dos casos Haarmann e Denke,
devidamente editados, os casos de Peer Gynt, Ricardo III,
os irmãos Karamazov, e até Os bandoleiros de Schiller, sem
que se saiba ao certo se são os personagens ou os próprios
autores o alvo do debate. Em uma obra que se pretende
uma súmula (ou um manual enciclopédico), há o estigma
de atores, sonâmbulos, apátridas, etc.20
Todo desviante desvia, como demonstra Machado de Assis,
em sua novela O alienista,21 publicada no Rio de Janeiro em
1881. Porque, como explica Foucault, “a prova psiquiátrica
(…) toma a vida de um indivíduo como tecido de sintomas
revista da cinemateca brasileira
17
M em seu tempo e no nosso
18
patológicos, assim como entroniza o psiquiatra como
médico, ou a instância disciplinar suprema como instância medical.”22 Com isso, ela inventa um novo racismo: “O
racismo que nasce na psiquiatria do período é o racismo
contra o anormal, é o racismo contra os indivíduos que,
sendo portadores de um estado, de um estigma, ou de um
defeito qualquer, podem transmitir a seus herdeiros, de
maneira bem aleatória, as consequências imprevisíveis do
mal que eles portam, ou melhor, do não-normal que eles
portam. É um racismo que terá por função não a prevenção
ou a defesa de um grupo contra outro, mas a delação, no
interior de um grupo, de todos aqueles que possam ser efetivamente portadores do perigo. Racismo interno, racismo
que permite filtrar todos os indivíduos no interior de uma
determinada sociedade.”23 Ao mesmo tempo, esse corpo
médico, cada vez mais ambicioso e convencido de ter um
papel político-histórico diante da “decadência” da sociedade,
definiu os fundamentos cognitivos e técnicos do programa
eugenista. O eugenismo, como técnica de gestão biológica
da sociedade, desenvolveu, desde o princípio, um programa
de pesquisa científica sob a égide de seu fundador, Francis
Galton que, simultaneamente, lançou a biometria.24 Três
destacamentos médicos se revelam particularmente ativos
no movimento eugenista: os higienistas, os antropólogos-anatomistas e os psiquiatras. Profissionalmente, o
campo de intersecção entre o eugenismo e a eutanásia é
principalmente a psiquiatria. A psiquiatria alemã conclui
sua conversão ao eugenismo em 1933.25 Foi em 1909, na
Alemanha, que o professor Emil Kraepelin26 introduziu, na
oitava edição de seu célebre tratado de psquiatria – o manual mais utilizado pelos estudantes da época –, as preocupações eugenistas sobre o tema da civilização que “mantém
vivos os inferiores mentais e os doentes, permitindo que os
casos malogrados se reproduzam.” Aliás, durante todo o
período da República de Weimar, o ensino da higiene racial
se difunde por todas as faculdades alemãs de medicina.27
É nesse exato momento que se opera a articulação entre
eugenismo e eutanásia.28 Se, em Weimar, em um primeiro
momento, o sentido da palavra eutanásia equivale ao de
Sterbehilfe (auxílio à morte), em outro momento significa a “supressão das vidas indignas de serem vividas em
nome do interesse coletivo, e econômico em particular”,
como aparece, desde 1920, em um livro redigido por duas
personalidades do mundo jurídico e científico, o professor
de direito penal alemão Karl Binding e o psiquiatra Alfred
Hoche, titular da cadeira de psiquiatria da universidade de
Fribourg-en-Brisgau e diretor de clínica psiquiátrica. Nesse
livro, intitulado Liberalização da destruição das vidas que
não valem a pena ser vividas, que alia a exposição jurídica
com a tomada de posição médica, trata-se de defender com
virulência, depois dos fundamentos jurídicos, a eliminação
estatal dos deficientes mentais.29 Esse livro lançará o debate
entre os especialistas, mas também para a sociedade.
É nesse clima de discussões sobre as relações entre o crime
e a doença mental, em um contexto de tomada de posição,
que o público descobre o filme de Lang, e escuta o personagem Schränker colocar violentamente em causa o parágrafo
51, que define o doente mental como “irresponsável por seus
atos” e, assim, isento de sua responsabilidade penal.30 O que
evidentemente está em jogo, por meio ou não de tal artigo
da lei, é saber se a sociedade inteira pode e, principalmente,
quer fazer com que seus “criminosos”, seus “anormais”, se
imbriquem um no outro.
No filme de Lang, é no nível argumentativo e lexical que o
personagem de Schränker torna-se o eco dos adversários
do parágrafo 51, justamente os partidários da eutanásia
ativa na Alemanha. Em nome do interesse coletivo, eles
condenam o doente mental a partir da avaliação biomédica de seu nível de humanidade. Assim, a frase dita por
Schränker em plena reunião dos chefões do submundo,
depois do combate ao Krokodil – “aber diese Bestie hat
kein Recht zu existieren” [esse monstro não tem direito à
existência] – nos remete imediatamente aos discursos
que, como os do livro de Binding e Hoche, citado há pouco,
partem do postulado segundo o qual existem “algumas vidas humanas que perderam a qualidade de bem
jurídico”, e cujo “prolongamento perdeu qualquer valor
tanto para elas próprias como para a sociedade.” Uma
posição que retorna em inúmeros psiquiatras do período
e que a literatura especializada difunde largamente, como
testemunha o artigo publicado em 1931 no Allgemeine
Zeitschrift für Psychiatrie e que tem como tema A eliminação dos inferiores da sociedade, de Berthold Kihn, professor de psiquiatria e neurologia da Universidade de Iena.
Kihn lamenta que uma “sensibilidade um tanto cultivada”
impeça que “a aniquilação de vidas indignas de serem
vividas” possa fazer parte dos “meios médicos, permitindo
influenciar qualitativamente nosso povo.” Hoche não dizia
coisa diferente quando escrevia, em 1920, que “houve
uma época, que hoje consideramos como bárbara, na qual
era comum a eliminação de recém-nascidos, ou seres
incapazes de viver. Uma nova era virá em que, em nome de
uma moral superior, deixará de impor, ao preço de pesados
sacrifícios, as exigências de uma concepção exagerada da
ideia de humanidade, e de uma superestimação do valor da
existência em si.”31
De maneira chocante, é a esse tipo de posição que as palavras do próprio Fritz Lang fazem eco, quando ele apresenta
nos jornais seu filme e seu personagem:32 o termo empregado para qualificar Beckert é o de geistig Minderwertiger,
quer dizer, o de alguém mentalmente de valor inferior. Como
demonstrou Victor Klemperer, as palavras de uma língua
traem a ideologia de uma sociedade, sem que ela própria
se dê conta disso.33 Resta, portanto, verificar o que tal
termo implica. Talvez seja suficiente lembrar que em uma
alocução feita na Associação dos Psquiatras Alemães, o
médico eugenista Robert Gaupp34 falava em “purificação do
povo e de seus elementos inferiores mentais e morais.”
Mas os partidários da eutanásia condenam também a
doença mental em razão de seu enorme custo econômico,
“existências pesadas” – Ballastexistenzen – para a coletividade. Schränker comenta: “(…) und dein Leben lang auf
Staatskosten verpflegt wirst !” [Que você passe o resto de
sua vida às custas do Estado!] Se, na linguagem dos psiquiatras nazistas, a eutanásia de adultos se chama “medida
de planificação econômica” e não “medida de higiene de
hereditariedade”, é mais uma vez Hoche que, em seus livros,
tematiza particularmente essa questão. Em 1910, em uma
obra intitulada Aus der Werkstatt, ele escreve: “nosso dever
alemão exigirá por muito tempo uma concentração máxima
de todas as possibilidades, um envolvimento de todas as capacidades disponíveis para os objetivos úteis.” Por sua vez, o
professor Gaupp, fervoroso partidário das teorias favoráveis
à eutanásia de seu colega Hoche, estima como “enorme”
a tarefa imposta à Alemanha “pelos inferiores mentais e
morais de todas as classes”,35 enquanto o Dr. Haenel, relator
da Associação de Psiquiatria Legal, publicando, em 1923,
sempre na Allgemeine Zeitschrift für Psychiatrie, acredita
que “a supressão das existências sem valor só pode ser um
ganho para a sociedade.”
Se entendemos nessa perspectiva os apelos reiterados
em favor da eliminação que profere Schränker e alguns
outros malfeitores,36 eles passam a ressoar de maneira
sinistra. De fato, é sabido que a concretização em grande
escala dessas teorias de eliminação de doentes, deficientes, velhos, crianças deficientes, etc., se dará com os
nazistas em alguns (poucos) anos mais tarde, sob o nome
do programa T4, do qual participarão inúmeras personalidades advindas do mundo da psiquiatria, como o professor
Lenz, titular da cadeira de higiene racial da Universidade de
Munique, editor-chefe, em 1931, de um manual sobre esse
tema, e que participará, enquanto especialista em eugenia,
da elaboração de um projeto de lei que prevê a eutánasia
“de um doente mental que, depois de uma doença mental
incurável, necessitaria de um outro internamento permanente”; projeto que, em certa medida, é uma resposta ao
parágrafo 51. Já o professor Kihn, citado acima, se envolve
diretamente no programa T4, como um especialista que
decide o destino dos pacientes.
Nesse sentido, é difícil não achar terrivelmente premonitórias as palavras de Schränker, quando Beckert é
brutalmente jogado no porão onde é aguardado por um
aerópago de bandidos: “Hier kommst du nicht mehr raus”
[Você não sairá daqui]. Ainda mais quando sabemos que foi
nos porões das instituições psiquiátricas37 que se desenvolveu o programa T4, espécie de matriz para a eliminação,
sempre com critérios biológicos, de outras categorias da
população (judeus, ciganos) e das populações conquistadas após o início da guerra (eslavos).
Conclusão
Em suma, e para resumir a fala de Schränker como o ápice
do filme, a violenta peroração que ele desenvolve (tanto no
léxico, como na dicção) contra o doente criminal Beckert
parece responder implicitamente – como nota Foucault em
sua análise do poder psiquiátrico – “a essas três questões
essenciais que o sistema jurídico coloca ao psiquiatra: é o
indivíduo perigoso? É ele passível de pena? É ele curável?”38
Questões que têm um sentido preciso a partir do momento
em que são postas a uma psiquiatria que funciona essencialmente como defesa social, que funciona como “caça aos
degenerados”, e o degenerado sendo “aquele que porta o
perigo (…), aquele que, não importa o que faça, é inacessível
à pena, (…), aquele que, em todo caso, será incurável” (como
grita veementemente Schränker). Ora, “o que faz de um
monstro humano um monstro não é apenas a exceção em
relação à forma da espécie, é o incomôdo que ele traz às
regularidades jurídicas.”39
Gabriele Tergit, jornalista da Weltbühne, que, no lançamento do filme, já havia se indignado contra o vergonhoso
aspecto de atualidade do filme40, talvez não se enganasse
quando colocava o problema de fundo: “Quando o assassino Lorre, em um momento de inspiração quase poética,
de qualquer forma muito bem interpretado, mostra a
engrenagem, o medo da criatura, a horrível dominação de
uma sexualidade anormal e que um dos nobres bandidos
vocifera: ‘Ele quer se aproveitar do artigo 51, a gente sabe
disso’, o público da primeira fila explode em aplausos
entusiastas. (...) O louco é ainda um culpado, como se dizia
revista da cinemateca brasileira
19
M em seu tempo e no nosso
20
há duzentos anos? O artigo 51 trata apenas da loucura
psíquica. O que conta é o ‘ainda não’.”
O que Tergit levanta é, na verdade, a potência do cinema, a
força de uma encenação, de uma montagem, do jogo dos
atores. Para além do léxico de Schränker, de seu vocabulário
e de sua escolha desta ou daquela palavra (o trabalho de
escrita de Lang e Thea von Harbou), o filme, enquanto objeto
estético colhido no tempo, condensado de imagens e sons
bem elaborados, permitia a construção de um discurso em
diferença com o processo real: qual lugar essa construção
assegura ao discurso do personagem Schränker, que lhe
permite ser escutado, quer dizer, recebido e eventualmente
aprovado pelo público de 1931?
Como sublinha Tom Gunning, em M: The City Haunted by
Demonic Desire,41 o que organiza M, temporal e espacialmente, é a procura de um homem que vai dar seu rosto e
seu nome ao criminoso, ou seja, “o culpado”. Ao longo da
investigação, diferentes momentos dramatúrgicos, que
constituem o quebra-cabeça desorganizado dessa história,
nos conduzem progressivamente para formular emocional e intelectualmente o problema do filme, o assassino
desconhecido. Literalmente sem rosto durante uma parte
substancial da obra, ele vai se tornando pouco a pouco o
que suspeitávamos que fosse e para o que a dramaturgia nos preparava: primeiro um doente (já o vimos) – um
terrível perigo para a sociedade (acompanhamos uma
psicose coletiva, a procura infrutífera pelo assassino, e
vemos também uma segunda garotinha ser uma potencial
vítima no momento em que já sabemos que ele mata, e de
forma terrível), e o processo que o acusa nos transmite de
alguma forma um medo cultivado ao longo dos episódios,
de maneira a permitir ao espectador a efusão emocional
e, ao diretor, a realização de sua grande equação: doença/
crime/castigo. Na dramaturgia languiana, basta um crime,
e ele é particularmente infame – os raros planos de Elsie
no início do filme já nos mostram que ela é uma menina
esperta – e os chamados desesperados de sua mãe, quando ela não volta pra casa no horário marcado, são gritos
que ressoam pela escadaria, pelo quintal onde os lençóis
são estendidos, pela cozinha onde a mesa está posta, com
o prato vazio, e que podem ser ouvidos como particularmente dilacerantes por um público constituído também por
mães e pais. A esse respeito, é preciso perceber a potência
plástica que torna palpável o crime – por meio do voo do
balão que se estrangula nos fios telegráficos – sem nada
mostrar. Mas uma parcela do público certamente conhecia
essas imagens – em um fora de campo real ou no plano
languiano –, fotografias atrozes tiradas pela polícia das
vítimas de Kürten, foram publicadas, em 1931, como anexo
do estudo do psiquiatra Karl Berg.42
Em seguida, a encenação do encontro de Beckert com a
segunda, e depois com a terceira menina, engendra uma
tensão que se atenua com a primeira tentação advinda
na loja de facas, e termina no momento em que a mãe
encontra sua filha (diante de uma loja de brinquedos), e
depois com a terceira menina quando Beckert, inquieto
diante do vendedor de frutas, importunado por um vadio e
se sentindo perseguido, se apavora (diante de uma outra
loja de brinquedos onde ele gostaria de entrar para dar
um presente à sua futura vítima) e descobre a marca em
suas costas e tenta escapar. É essa operação de marcação, com o signo de giz impresso no ombro de Beckert,
procedimento identificatório, ao mesmo tempo que marca
de infâmia – já que remete ao “M” das palavras mord
(assassinato) e mörder (assassino) – que nos alivia, e com
isso torna a operação aceitável,43 na medida em que a
menina, encurralada por Beckert, consegue escapar do
perigo mortal que a ameaçava.
Quanto à encenação do processo, é por meio das coberturas
da imprensa, com os retratos das pequenas vítimas, e o testemunho do cego vendedor de balões, que Schränker investe,
sob o olhar denegatório e depois desesperado de Beckert.
A alternância de sua argumentação acusadora com as vozes
das mulheres que estão na plateia de bandidos constrói para o
público uma estrutura narrativa diante da qual – se for o caso
de identificar um dos dois discursos em cena – a peroração do
advogado, face à dor das mães, não tem peso algum.
É isso que se encena no final do filme, na primeira versão
original, lançada em 1931.44 Depois da breve sequência
de abertura do processo – na qual imagina-se que ele
termina com a irresponsabilidade de Beckert –, Lang nos
oferece a visão de três mães chorosas, em pleno luto. Soluçando, elas declaram que tudo isso não devolverá seus
filhos, e que o melhor é ter mais atenção dali em diante.45
As últimas palavras do filme, em forma de apóstrofe para
o espectador, são deixadas à mãe de Elsie, cuja voz ressoa
em um fundo negro: Ihr auch! (Vocês também!), nos diz ela!
Sabemos, graças a seu diário,46 que Goebbels aprovou
o filme, com as seguintes palavras, pronunciadas em 21
de maio de 1931: “Fantástico! Contra o sentimentalismo
humanitário. Em favor da pena de morte. Muito bem feito.
Um dia Lang será nosso cineasta.”
Um ano mais tarde, o jornal nazista Der Angriff (no 111)
explicita esse vínculo, quando surge um outro “caso”: “Hoje
nos chega a informação de que novamente foi agraciado
um assassino sexual que tinha sido condenado à morte.
Com isso, o filme M volta a ser atual (…) [ele] constitui a
melhor argumentação contra os opositores da pena de
morte. O assassino (Peter Lorre) não perdeu em nada seu
aspecto repugnante.”
Essa estigmatização nazista da repugnância do personagem
de Beckert é levada ainda mais longe com o filme anti-semita, que se pretende um documentário, de Fritz Hippler sobre
o “judaísmo internacional”, Der Ewige Jude (O eterno judeu),
lançado na Alemanha em 28 de novembro de 1940. Em parte
filmado na Polônia, no gueto de Varsóvia, por ordem de
Goebbels, Der Ewige Jude retoma exatamente o monólogo
final de Beckert no fim de M. Por meio de um jogo ideológico, Peter Lorre é assimilado a seu papel de assassino de
crianças como se o ator revelasse uma verdadeira natureza
semita, ilustrando assim o perigo mortífero do “Judeu”. Nesse filme, o comentário didático em voz off faz do monólogo
uma leitura bem diferente, próxima a de Tergit, leia-se de
Goebbels: “as palavras-chave são expostas para mostrar
que o culpado é quem mata e não quem morre. Procura-se despertar a piedade do público para com o assassino e,
assim, desculpá-lo por seu crime.”
A potência da encenação de Lang reside talvez na indecisão de sentido dessa última cena. Mas, essa indeterminação quanto ao lugar de onde o autor fala não impede que o
filme apareça de fato como uma caixa de ressonância bem
real dos discursos de seu tempo. E é sem dúvida nisso que
estão suas qualidades primeiras. Se o filme ainda hoje nos
concerne é por sua qualidade de expressão sensível da
sociedade que o fez nascer, e também porque condensou
intensamente, por meio das aspirações documentais de
seu autor, um tempo já bastante gangrenado pelo espírito
mortífero do nazismo.
Em sua aula de 23 de janeiro de 1974, Foucault se perguntava: “Por que esse interesse dos psiquiatras pelo
crime, por que reivindicar tão forte e tão violentamente a
proximidade do crime com a doença mental? Certamente
há um sem número de razões, mas penso que uma delas
é por tratar-se, não apenas de uma demonstração de que
todo criminoso é um possível louco, mas de demonstrar
– o que é muito mais grave e muito mais importante para
o poder psiquiátrico –, que todo louco é um criminoso
possível. E a determinação, o vínculo de uma loucura com
um crime, no limite da loucura sobre qualquer crime, era
o meio de fundar o poder psquiátrico, não em termos de
verdade, já que precisamente não se trata da verdade,
mas em termos de perigo: estamos aqui para proteger a
sociedade, pois no centro de uma loucura está inscrita a
possibilidade de um crime.”
E Foucault ainda nos lembra uma última vez que “o nazismo
levou até o paroxismo o jogo entre o direito soberano de
matar e os mecanismos do bio-poder. Mas esse jogo está,
efetivamente, inscrito no funcionamento de todos os estados.”
E um dos méritos de M, o que me motivou a realizar Et tu
es dehors, não é o de nos remeter mais uma vez à nossa
relação com o Outro, quer dizer, com todos aqueles tidos
hoje como estranhos para nossa sociedade?
(Trad. Adilson Mendes)
revista da cinemateca brasileira
21
M em seu tempo e no nosso
22
Notas
1
Et tu es dehors/Und raus bist du /And out you go (França-Alemanha, 2012, 85’) teve sua première mundial na Cinemateca Brasileira
no dia 10 de agosto de 2012.
M (J. Losey, Etats-Unis, 1951), Le Vampire de Düsseldorf (R. Hossein,
France, 1965).
2
3
Depois de um número extensivo de análises parciais do filme (em
especial da primeira parte) – Francis Courtade, Raymond Borde e
Freddy Buache, Noël Burch, Marie-Claire Ropars, Thierry Kunzel, etc.
–, surgem as monografias dedicadas ao filme (particularmente Pierre
Guislain, M le maudit, Paris, Hatier, 1990; Noël Simsolo (dir.), M le Maudit,
Paris, Plume, 1990; Stephan Jankowski, Warte, warte nur ein Weilchen.
In: Die Diskussion um die Todesstrafe in Fritz Langs Film M, Wetzlar,
Kletsmeier, 1998 [reedição Marburg, Tectum, 2000]; Anton Kaes, M,
Londres, BFI Film Classics, 2000; Michel Marie, M le maudit: Fritz
Lang, étude critique, Paris, Nathan, 2005; Jacques Gerstenkorn, Martin
Barnier (dir.), M le Maudit: un film de Fritz Lang, Grenoble-Lyon, L’AcrirAUniversité Lumière Lyon 2, 2002; Christoph Bareither, Urs Büttner (dir.),
Fritz Lang. M – Eine Stadt sucht einen Mörder. In: Texte und Kontexte,
Würzburg, Königshausen & Neumann, 2010), além dos capítulos de
obras dedicadas ao realizador (particularmente as de Lotte Eisner, Fritz
Lang, Patrick MacGilligan, The Nature of the Beast, Tom Gunning, The
Films of Fritz Lang: Allegories of Vision and Modernity).
4
Seu realizador, que se tornou efetivamente um antifascista quando de seu exílio nos Estados Unidos (sem dúvida foi o realizador
americano que mais fez filmes engajados na luta contra o nazismo:
Man Hunt, Hangmen also Die, Ministry of Fear), desempenhou um
papel fundamental na interpretação posterior do filme que ele
concebeu e realizou com Thea von Harbou, sua esposa na época).
FOUCAULT, Michel. Les Anormaux, Cours au Collège de France,
1974-1975. Paris: Editions Seuil/Gallimard, 1999. [Trad. bras. FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001].
5
Em seu ensaio sobre o filme, Anton Kaes afirma que Lang teria
anotado, em seu diário de trabalho, uma idéia abandonada em
seguida, mas que explicaria a pulsão do matador como a repetição
traumática dos gestos assassinos que, quando soldado, teria realizado na Primeira Guerra Mundial.
6
Em seu livro sobre Peter Lorre, Friedemann Beyer insiste na
relação entre os dois fatos (Peter Lorre, Seine Filme, sein Leben, Heyne
Filmbibliothek, München,1988).
7
8
Com a devida exceção de F. Beyer.
M se liga de tal forma ao caso Kürten que em muitos países recebeu
o título M – O vampiro de Dusseldorf. Esta tradução manteve o título
original, M, conforme é usado no artigo escrito em francês. (N. do E.)
9
As notas do Professor Sioli retiradas de suas conversas com Kürten
foram publicadas em Elizabeth Lenk, Katharina Kaever (org.), Peter
Kürten, genannt der Vampir von Düsseldorf, Frankfurt a/Main, Eichborn,
1997, p.160-167; e dos relatórios científicos produzidos ao longo do
processo (Prof. Sioli, Dr. Raether, etc.) em Ibid, p. 232 em diante.
10
A abolição da pena de morte constitui um dos postulados de base do
“Erfurter Programm” do partido social-democrata alemão de 1891 (cf.
Stephan Jankowski, Warte, warte nur ein Weilchen… Die Diskussion um
die Todesstrafe in Fritz Langs Film M, Wetzlar, Kletsmeier, 1998, p. 22).
11
12
JANKOWSKI, S., op.cit.
“Der Kürten-prozeß war eine große Demonstration, eine kolossale Darbietung, veranstaltet für das Rechtsempfinden des Volkes,
unbefriedigend aber und leer für die Warheitsfindung.” [O processo
Kürten foi uma grande demonstração, uma apresentação colossal da
encenação para o sentimento de direito tal como o sentia o povo, mas
insatisfatório e vazio no que se refere ao estabelecimento da verdade.]
(Die Justiz/ Monatschrift für Erneuerung d. Deutschen Rechstwesens,
vol. VII, 1931-32 [Berlin-Grunewald, Dr. Walter Rothschild]).
13
DADOUN, R. Le pouvoir et sa ‘folie’. In: Positif, Paris, n.188, dez.
1976, p.13-20.
14
FOUCAULT, Michel. Le Pouvoir psychiatrique, Cours au Collège de
France, 1973-1974, Editions Seuil/Gallimard 1999 [Trad. Bras. Michel
Foucault. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006] et Les
Anormaux, op.cit.
15
16
Les Anormaux, op.cit., p. 141.
É nessa corrente que se inscreve Alexis Carrel, que, em 1935, escreve: “O condicionamento dos criminosos menos perigosos pelo castigo ou por qualquer outro meio mais científico, seguido de uma curta
estadia em hospícios, certamente seria o suficiente para a manutenção da ordem. Em relação aos outros, que mataram, roubaram à mão
armada, que sequestraram crianças, que pilharam os pobres, que
enganaram gravemente a confiança pública, quanto a estes, o estabelecimento de uma eutanásia por meio de gases apropriados permitiria
uma organização de maneira humana e econômica. Esse mesmo
tratamento não seria também aplicável aos loucos que come­teram
atos criminosos?” É preciso lembrar que o livro L’homme cet inconnu,
de onde tiramos essa citação, publicado em 1935, simultaneamente
em francês e em inglês (ele foi redigido entre 1933 e 1935), garantiu o
sucesso internacional a seu autor, prêmio Nobel de medicina.
17
18
FOUCAULT, M. Les Anormaux, op cit. p.151.
19
O vocábulo “associal” é particularmente polisêmico. A definição que,
em 1922, dele faz o psiquiatra e penalista Gustav Aschaffenburg, separa
dois grupos de associais: aqueles que “são um peso para a sociedade”
(doentes crônicos) e aqueles que “prejudicam” a sociedade (vagabundos, mendigos, prostitutas, alcóolatras, criminosos). Além disso, ele
faz uma diferença entre, de um lado, os doentes físicos (tuberculosos,
estropiados, cegos, surdos-mudos, etc.) e, de outro, os doentes mentais
e os doentes que apresentam uma tendência para “deficiências morais”. (Cf. Sven Korzilius, Evolution de la thématique des “asociaux” dans
la discussion sur le droit pénal pendant la République de Weimar. In:
Astérion [ENS Lyon]. Disponível em: <http://asterion.revues.org/511>.
Acesso em: 16 de out. 2012.
20
WULFFEN, Eric. Kriminalpsychologie. Berlim: Langenscheidt, 1926.
21
ASSIS, Machado de Assis. L’aliéniste [O Alienista]. Paris: Métaillié, 1984
22
FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique. Op.cit. p.270
23
Id. Les Anormaux, op. cit., p.299.
E também lançará o método da fotografia compósita ao fusionar
diversos retratos individuais e uma única fisionomia típica.
24
Ver a esse respeito o artigo de Benoît Massin publicado em
L’Information Psychiatrique, Revue Mensuelle des Psychiatres des
Hôpitaux, vol. 72-718, n.8, out. 1996, p.811-822 (Número especial: Le
sort des malades mentaux pendant la Guerre 1939-1945).
25
Logo depois, ele passa a dirigir o Instituto Alemão de Pesquisa
Psiquiátrica (Deutsche Forschunganstalt für Psychiatrie), fundado em
maio de 1918.
26
Se os cursos de higiene racial e social se multiplicam entre 1919 e
1925, é apenas em 1927 que o projeto de um instituto, em discussão
desde 1923, será realizado em Berlim. Voltado às pesquisas em
antropologia, genética humana e eugenismo, ele foi integrado à
Sociedade Kaiser Wilhelm, fundação autônoma para a promoção da
ciência alemã. (Sobre a história do eugenismo na Alemanha, cf. Paul
Weindling, Health, Race and German Politics between National Unification and Naziam 1870-1945, Cambridge UP, 1989).
27
Cf. Paul Weindling. L’eugénisme comme médecine sociale: l’époque
de Weimar, e Benoît Massin, Apprendre à classer et à sélectionner,
L’enseignement de l’eugénisme, de l’hygiène raciale et de la raciologie
dans les universités allemandes (1930-1945). In: Revue d’histoire de la
Shoah, Classer/Penser/Exclure, jul./dez. 2005.
28
K. Binding, A. Hoche, Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (republicado na Revue d’histoire de la Shoah, n. 183, op.
cit., p. 227-252).
32
LANG, F. Mein Film M- Ein Tatsachenbericht, art. cit.
33
KLEMPERER, Victor. LTI, Notizbuch eines Philologen. Leipzig:
Reclam, 1975.
Professor titular da Universidade de Tübingen desde 1906, Robert
Gaupp foi também editor da Zeitschrift für die gesamte Neurologie und
psychiatrie.
34
35
Em uma alocução realizada em 1925.
(Du mußt unschädlich gemacht werden! (Você deve ser reduzido
ao nada!) Du mußt weg! (Você deve desaparecer!) [...] Bravo! Der Kerl
muss weg! (Bravo! Esse cara deve desaparecer!).
36
As clínicas psiquiátricas de Hartheim, na Alta Áustria, e a de Sonnenstein, na Saxónia, apenas para citar duas delas.
37
38
Le pouvoir psychiatrique, op.cit, p. 300.
39
FOUCAULT, M. Le pouvoir psychiatrique, op.cit.
“O monstro até ontem estava diante do tribunal e agora já está na
tela!”. A indignação de Tergit foi criticada por Rudolf Arheim e Siegfried
Kracauer, pois apelava implicitamente para a censura.
40
GUNNING, Tom. M: The City Haunted by Demonic Desire. In: ______.
The films of Fritz Lang – allegories of vision and modernity. Londres:
British Film Institut, 2000.
41
Rapidamente o psiquiatra Karl Berg, que entrevistou Kürten longamente, publica um estudo sobre seu caso (Der Sadist. Gerichtsärztliches und Kriminalpsychologisches zu den Taten des Düsseldorfer Mörders.
In: Deutsche Zeitchrift für die gesamte gerichtliche Medizin, vol. 17, 1931).
42
Claro, os espectadores de 1931 não poderiam conhecer a fortuna
mortal de tal signo identificatório, que surgiu para a história com a
exterminação de judeus ao longo da Segunda Guerra Mundial. Mas,
de qualquer forma, todo signo distintivo não implica em um destino
subtraído do mundo dos homens?
43
O filme foi reduzido em 10 minutos após seu segundo lançamento,
em 1932. Hoje em dia, as diferentes versões restauradas circulam
com 108 minutos, contra os originais 117 minutos. Além do final
que se encerrava no escuro, como o começo do filme, outras cenas
foram diminuídas para dar ao filme um ritmo mais de acordo com o
espectador moderno.
44
29
Schränker declara: “Damit du dich auf den Paragraphen 51 berufst
(…)” [Para que você possa invocar o parágrafo 51!] e em seguida «bist
ja wegen Unzurechnungsfähigkeit gesetzlich geschützt (…)” [como
você foi considerado irresponsável, você é protegido pela lei].
30
31
HOCHE, Alfred Hoche, op.cit.
Das macht unsere Kinder ooch nich wieder lebendig! Man muß halt
besser uffpassen uff de Kleenen.
45
Joseph Goebbels, Tagebücher 1924-1945 (Ralf Georg Reuth ed.),
München, Piper, 1992, vol. 2, p. 68.
46
revista da cinemateca brasileira
23
24
ensaio
Notas para uma história
econômica do cinema
brasileiro: o caso da firma
Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
Julio Lucchesi Moraes
Doutorando do Departamento de História Econômica da FFLCH-USP e bolsista da FAPESP
Introdução
Este artigo analisa as atividades da firma Marc Ferrez &
Filhos, principal casa importadora de material fílmico do
país no início do século XX. Um estudo de tal natureza vem
suprir diversas lacunas bibliográficas, notadamente na
zona de interface entre as pesquisas econômicas e aquelas
voltadas ao universo do cinema.
O contato com fontes documentais permitiu reformular
questões em torno do cinema brasileiro, especialmente
quanto a seus aspectos econômicos. No lugar de uma
narrativa centrada no arrolamento de obras e biografias
expressivas, ganham destaque os contratos comerciais
e ordens de pagamentos trocadas entre agentes locais e
estrangeiros. Diretores e atores saem de cena para dar
lugar a agentes e representantes comerciais. Deslocando
o foco de análise do universo estético para o econômico,
revela-se uma rede de relações sociais e institucionais
muito mais complexa do que fazem crer certas leituras
esquemáticas e simplificadoras.
Dentro de tal chave, veremos o papel central desempenhado
pela firma Marc Ferrez & Filhos. Representante de diversas
empresas internacionais – dentre elas o maior conglomerado do período, a francesa Pathé-Frères –, o grupo foi um
dos mais importantes nós na articulação do Brasil com o
exterior no setor de fornecimento de equipamentos e filmes.
Mais do que um simples estudo de caso, a análise das atividades econômicas da empresa fornece elementos para a
compreensão da dinâmica do setor cinematográfico nacional
do início do século.
Neste sentido, o levantamento de fontes primárias do Arquivo da Família Ferrez, custodiado pelo Arquivo Nacional (Rio
de Janeiro), foi decisivo. Com cerca de 40 mil documentos
referentes a cento e cinquenta anos de atividade da família,
o acervo, tanto pelo bom estado de conservação como pela
variedade do material, é uma riquíssima fonte para reflexões sobre a história do cinema brasileiro. Para esse artigo
cruzamos essas fontes com outras obtidas em arquivos
franceses. Ainda que a etapa de coleta e levantamento no
exterior esteja em andamento, materiais já analisados de
revista da cinemateca brasileira
25
Notas para uma história econômica do cinema brasileiro: o caso da firma Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
26
fundos da Cinemateca Francesa, da Biblioteca Nacional
Francesa e da Fundação Jérôme Seydoux-Pathé, permitem
ultrapassar a abordagem exclusivamente local e aponta a
necessidade de inscrever o caso brasileiro numa complexa
trama comercial de escala global.
O comércio mundial de filmes:
Marc Ferrez no contexto da Pathé
da instalação de sucursais. Em 1904, a empresa já possuía
agências instaladas em Moscou, Nova York e Bruxelas.
No ano seguinte, Berlim, Viena e São Petersburgo e, nos
cinco que se seguem, Barcelona, Milão, Londres, Odessa,
Rostov, Varsóvia, Cingapura, Budapeste, Kiev, Melbourne,
Bucareste, Cairo, Estocolmo, atingindo ao longo da década
seguinte Bombaim, Manila, Zurique, Copenhague,
Belgrado, Sofia, Sidney e Istambul.6
Desde seus primeiros momentos, o cinema foi uma atividade comercial. Curiosamente, essa dimensão econômica
foi eclipsada por outros vieses interpretativos, centrados
na dimensão nacional da cinematografia ou no estudo
formal dos “cineastas-autores”. Não vem ao caso apontar
as motivações responsáveis por tal padrão. Todavia, cabe
destacar que tanto no Brasil como no exterior, aumenta o
interesse dos historiadores pela análise do contexto e das
interrelações socioeconômicas responsáveis pela criação,
circulação e apreciação das obras.
Contudo, seria equivocado supor que sua expansão
internacional deu-se em um único padrão. Trabalhos
recentes indicam que os interesses da Pathé no exterior
desenvolveram-se de maneira heterogênea, aclimatando-se às condições de cada país.7 Já dispomos de estudos de
casos tanto de mercados próximos à França (como Bélgica,
Itália e Holanda), quanto de lugares distantes como Rússia,
a China e a Austrália.8 Reflexões sobre o caso latino-americano ainda são escassas. E é justamente aí que se inscreve
o estudo da firma Marc Ferrez & Filhos.
Dentro de tal enquadramento, nosso ponto de partida é a
apresentação da firma Pathé-Frères. A empresa figurou
como a estrela maior do universo industrial cinematográfico da primeira década do século XX e, em certa medida, até
os anos críticos de 1914 a 1918, durante a Primeira Guerra
Mundial, quando perdeu a supremacia para as produtoras
norte-americanas.1 O poderio do grupo pode ser expresso
em cifras: em 1908, cerca de dois mil funcionários trabalhavam na empresa, responsáveis pela produção de mais de
cem obras por ano. O resultado desse poderio industrial
eram os vinte quilômetros de filme produzidos diariamente
pelas usinas da Pathé, escoados mundo afora, sem mencionar o setor de discos e equipamentos de reprodução e
registro fonográfico.2
Até o momento, as análises sobre a vida de Marc Ferrez se
limitaram, quase que exclusivamente, a suas obras como
fotógrafo do Segundo Império (estudos sobre seus retratos,
paisagens, cenas urbanas, álbuns, etc).9 É preciso ir além
desse aspecto de sua biografia, destacando uma segunda
área fundamental de atuação profissional: a de importador
de material e equipamento fílmicos. Sobre o tema, afirma a
bibliografia especializada que, no início dos anos 1870, Marc
Ferrez teria estreitado laços com fabricantes franceses e
ingleses após visita à Europa.
De fato, tanto dentro dos muros das fábricas, quanto no
escritório administrativo3, a Pathé primou pelo pioneirismo e pela inovação nas diversas etapas de sua cadeia
produtiva. Da aquisição de unidades produtivas no exterior
ao desenvolvimento de novas técnicas de comercialização,
passando por fusões, querelas judiciais, alianças com grupos financeiros e expansões acionárias, não resta dúvida
quanto a plena inserção da firma de Charles Pathé na lógica empresarial capitalista do começo do século XX. 4 Líder
em solo francês, ela era também dona das maiores fatias
de mercado ao redor do globo. A investigação no Arquivo
Jérôme Seydoux-Pathé5, detentor de parte significativa da
documentação contábil da empresa no período, indica a
evolução de sua participação direta pelo mundo, a partir
A mediação teria ocorrido pela figura de Jules Claude
Chaigneau, um comerciante de nacionalidade francesa que
anunciava ter sempre à venda instrumentos e todos os
artigos próprios para daguerreótipos e fotografia.10 A relação
entre os dois, de acordo com Gilberto Ferrez, neto de Marc,
teria se intensificado após o incêndio da oficina de seu avô
em 1873, quando Ferrez perdeu boa parte de suas mercadorias, necessitando de recursos e contatos de fornecedores
para uma viagem à Europa.
Apenas uma análise da contabilidade da firma no período
poderia nos indicar qual era a participação percentual
da renda gerada no setor de venda de equipamentos e
material fotográfico em comparação com o setor de encomendas e fotografias.11 Em todo caso, a lista de produtos
trazidos ao Brasil, ainda nos anos 1880, aponta relações da
firma com comerciantes e grupos que, futuramente, encabeçarão os grandes conglomerados cinematográficos.
Em 1881, por exemplo, Ferrez introduz as primeiras chapas
secas da Lumière. Laurent Gervereau, aliás, descreve a relação do fotógrafo com os irmãos Lumière como bastante
amigável, destacando uma série de contratos comerciais
nos anos subsequentes.12
Será, entretanto, outro contato comercial estabelecido por
Marc Ferrez no período que alterará o rumo da história
do cinema no Brasil. Referimo-nos à aproximação que a
firma fez com Charles Pathé, obtendo, no biênio 1907-1908,
a representação exclusiva do fornecimento de filmes e
equipamentos da companhia francesa no Brasil.13 O perío­
do­traz outro marco na trajetória econômica da firma: a
alteração da razão social para Marc Ferrez & Filhos, com a
divisão do controle entre Marc e seus filhos Luciano e Julio,
então com vinte e três e vinte e seis anos.
1907-1908: o contrato com a Pathé
Típica firma familiar do começo do século XX, a MF&F possuía organização relativamente simples. Marc, o patriarca,
dividia seu tempo entre estadias no Brasil e na Europa, onde
realizava contatos com fornecedores e produtores. Ao que
tudo indica, sua atuação esteve mais ligada ao estabelecimentos de contatos formais e institucionais – mediante a
utilização de seu prestígio e renome no mercado brasileiro
– do que como negociador direto, papel que caberia a uma
série de agentes intermediários sediados no exterior. Já no
escritório brasileiro, Luciano e Julio Ferrez dividiam as tarefas de gerência e contabilidade, respectivamente, embora
também realizassem constantes viagens à Europa, ora por
motivos familiares – já que parte da família lá morava –, ora
para encontros profissionais.14
Seja como for, em 1907, forma-se a sociedade entre o grupo
Ferrez e Arnaldo Gomes de Souza para exploração do Cine
Pathé, situado à Avenida Central, no Rio de Janeiro, nos números 147 e 149. A parceria é reveladora das opções da firma
e fornece muitas informações sobre o funcionamento do
setor na época. O argumento que propomos é que o contrato
dos Ferrez com Pathé representou, de longe, a atividade central (e a mais lucrativa) de seus negócios no período. Nesse
sentido, a dinâmica da firma ter-se-ia orientado para suas
atividades como representante exclusiva – ou distribuidora –
e, apenas secundariamente, junto ao braço exibidor.
A razão disso reside, primeiramente, na familiaridade dos
Ferrez com o comércio internacional. Há fortes evidências
observadas na documentação primária – analisada na
França – e na bibliografia especializada, que a Pathé-Frères só estabelecia relações comerciais com firmas
que cumprissem certas pré-condições. Pode-se dizer que
o parceiro ideal era um francês – ou francófono – com
alguma experiência no comércio cinematográfico ou em
campos correlatos como o da fotografia e, sobretudo, que
tivesse um patamar mediano de capitalização e volume de
negócios numa dada região ou mercado.15
A MF&F cumpria plenamente essas pré-condições. Seu protagonismo no comércio importador de equipamento fotográfico
desde o final do século XIX a colocava em um patamar distinto
de qualquer outro competidor local. Evidencia-se aí uma diferença fundamental entre a empresa e as de outros empresários atuantes no mercado local, marcados pela itinerância.
Como é sabido, a atividade cinematográfica dos primeiros
anos – no Brasil e no exterior – desenvolveu-se no bojo de
atrações e espetáculos diversos de gêneros itinerantes.16
Diversos trabalhos descrevem a figura dos empresários de
cinema que, em geral, com pequeno ou médio capital, tinham contatos com os polos produtores nos Estados Unidos
ou no Velho Mundo. Exemplos locais não faltam. A título de
menção, vale lembrar o caso do italiano Paschoal Segreto.17
Ao que tudo indica, a situação de Arnaldo Gomes, empresário exibidor que firmou contrato com os Ferrez para
a constituição do Cine Pathé em 1907, não seria distinta.
Gomes, provavelmente vinculado ao universo da exibição
itinerante nos anos anteriores, optou pela fixação de suas
atividades, incumbindo-se da “gerência, administração e
direção” do local, cabendo à MF&F o fornecimento de filmes
e, mais especificamente, de filmes da Pathé.18
A ênfase em contratos de exclusividade de fornecimento
de uma marca indica o alinhamento do Brasil a tendências
internacionais. Entre os anos de 1906 e 1908, o setor cinematográfico mundial registra uma série de transformações
que irão revolucionar a atividade. É um período de imensas
disputas entre marcas e grupos rivais. Robert Sklar, analisando o caso norte-americano, aponta a atuação predatória
da Motion Pictures Patents Company, truste comercial
criado e liderado por Thomas Edison. De acordo com o
autor, o objetivo da companhia era controlar integralmente
a cadeia cinematográfica, impondo aos membros do consórcio pesadas taxas de licenciamento para utilização dos
equipamentos da patente Edison. Aos que se recusassem
a participar as penas eram ainda maiores, com violentos
ataques e perseguições jurídicas.19
revista da cinemateca brasileira
27
Notas para uma história econômica do cinema brasileiro: o caso da firma Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
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34
Mas é do outro lado do Atlântico que se desenrolarão as
mais importantes ações pelo controle dos rumos da nascente indústria cinematográfica. O grande protagonista será,
novamente, Charles Pathé. A decisão de alterar o sistema de
vendas de filmes para o sistema de locação transformará
radicalmente a história econômica do cinema.20 Em 1907,
Pathé – já consagrado produtor de filmes e de material de
filmagem – revolucionou a indústria cinematográfica ao
começar a praticar o aluguel de filmes em lugar da venda.
Testado inicialmente em uma sucursal alemã da empresa,
o modelo foi aplicado em seguida na França, causando um
completo rearranjo no setor. A estratégia adotada por Pathé
foi a de se associar a empresas regionais de exibição, assegurando-lhes direitos de exclusividade de seus produtos. Por
outro lado, essas concessionárias comprometiam-se a se
manter fiéis aos produtos Pathé e a absorver sua crescente
oferta de filmes. Se até então a atividade cinematográfica era
capitaneada por uma miríade de exibidores itinerantes compradores de pequenos estoques, com a passagem para o
regime de aluguel deu-se muito mais força ao polo produtor
e, sobretudo, ao distribuidor.21
Esta inflexão, por sua vez, está ligada a uma série de fatores. Articula-se, primeiramente, a onda de construção de
salas exibidoras fixas, processo possibilitado pelo advento
e expansão da eletrificação urbana mundo afora.22 Mais
que um simples avanço técnico, a eletrificação trazia um
“ganho social” ao cinema, já que as salas fixas, revestidas
de status e glamour, teriam atraído um público maior, “mais
familiar”, e com renda mais elevada do que o da concorrência itinerante.23 O súbito aumento e a diversificação do
público traziam, todavia, novas exigências ao setor. Surgia
assim, pela primeira vez, a necessidade de um fluxo constante de películas novas e de qualidade.
É, portanto, em consonância a tais mudanças, que os projetos de regionalização e racionalização da cadeia produtiva da Pathé devem ser entendidos. Seu peso e liderança
no mercado lhe permitiram sucesso na empreitada, logo
copiada pelos concorrentes e pelas sucursais no exterior.24
Em pouco tempo, a firma exporta o sistema para países
como a Itália e a Rússia.25 Em outras nações – especialmente em mercados mais desenvolvidos –, a Pathé optou
por estabelecer alianças estratégicas com empresas
locais. Os resultados dessas decisões são surpreendentes
e, no início dos anos 1910, a Pathé atingiu 50% do mercado
mundial de filmes e quase 80% no ramo de equipamentos.26 O Brasil e a América Latina não serão exceções
dentro dessa tendência expansiva.27 Em um relatório de
atividades da Marc Ferrez & Filhos, os filmes da Pathé – e
também de sua principal concorrente, a Gaumont – são
chamados de “a base de nossas compras”28. José Inácio
de Melo Souza, apoiando-se em dados compilados por
Jean-Claude Bernardet, indica que os filmes franceses
mantiveram, ao longo dos anos 1910, média de 50% do
mercado de novos títulos junto a salas fixas de São Paulo,
sendo que só a Pathé responderia por cerca de 40% do
total de películas exibidas.29
Parece, contudo, que a dinâmica da distribuição na América
Latina desenvolveu certas particularidades em relação a de
outros pontos do globo. A análise de dados primários e da
bibliografia especializada indica que as companhias francesas – Pathé, mas também Gaumont – instalavam sucursais
diretas de onde elas mesmas podiam definir as quantidades
e títulos a serem disponibilizados para cada região.30 Já no
caso latino-americano, ou pelo menos no brasileiro, a intermediação não se dava de maneira direta, sendo triangulada
por um terceiro – no caso, a MF&F – detentor de direitos de
exclusividade dos produtos.31 Esta firma, por sua vez, possuía agentes de escritórios europeus responsáveis por parte
das negociações diretas com fornecedores.
Se levarmos em conta o volume de correspondência do
Fundo Ferrez no período, chegaremos à conclusão de que o
escritório mais importante da MF&F era o de A. Neviére, cujas
rubricas ora vêm com o endereço de Paris, ora de Bordeaux.32
Além dos contratos com a Pathé e a Gaumont, encontramos negociações realizadas por agentes instalados em
outras partes da Europa. A correspondência de Luciano
Ferrez ao longo da década de 1910 indica a existência de
uma rede de agentes: dois representantes na França (A.
Neviére e Levy), um em Londres (Juan Sala) e um em
Milão (Enea Malagutti).33
Além de agirem como intermediários nas negociações
de compra de produtos, esses agentes atuavam como
“correspondentes estrangeiros”. Há uma série de cartas de
Luciano e Julio sobre as novidades tecnológicas da Europa,
a lista de filmes e produtos de maior sucesso no continente
e, durante a Primeira Guerra Mundial, observações sobre
a situação de fábricas e portos para o embarque de filmes
e equipamentos. Sobre esse tipo de correspondência, os
documentos mais interessantes do arquivo Marc Ferrez são os catálogos de novos produtos e filmes, canais
importantes de propaganda e marketing das empresas
cinematográficas da época.34
Em outros casos, as negociações eram feitas diretamente entre os irmãos e os produtores de equipamento e
fornecedores, sem a intermediação dos agentes. É o caso
da troca de correspondência com a firma norueguesa Det
Oversoiske, vendedora de motores cinematográficos, ou
com a produtora francesa Dion Bouton.35 Por fim, é inegável
a participação do próprio patriarca em parte das negociações. A correspondência entre ele e seus filhos indica que
Marc Ferrez reservava-se às negociações de cunho mais
institucional, exercendo papel de “relações públicas” da
firma junto aos grandes fornecedores e produtores. Não
parece haver índice maior desse papel do que uma troca
de correspondência entre Marc Ferrez e o próprio Charles
Pathé, quando este informava ao amigo brasileiro sobre
suas viagens aos Estados Unidos, anexando recomendações
de filmes e séries.36
Essa rede de contatos no exterior permitiu à MF&F um
regime de semimonopólio no fornecimento de filmes e de
equipamentos dentro do território nacional. Ao longo da
análise de sua correspondência comercial, encontramos
contatos e negociações de Julio e Luciano com os mais
afastados lugares do país, como Maceió, Salvador, Manaus,
Belém e cidades do interior do Nordeste.37
Obviamente, o grosso da clientela da MF&F encontrava-se
nos centros urbanos do sudeste do país. Pelo volume do público, o Rio de Janeiro representou até a metade da década
de 1910 o destino principal do fornecimento de fitas e equipamentos.38 De fato, se a disputa empresarial junto ao setor
exibidor carioca avolumava-se ano a ano, com entrada de
novos empresários e grupos na disputa, o núcleo fornecedor
parecia afunilar-se nos Ferrez. A documentação de contratos
no período menciona negócios com o já citado Arnaldo Gomes, mas também com Paschoal Segreto e Jacomo Staffa.39
Além do Rio de Janeiro, veremos uma farta correspondência
entre a MF&F e parceiros comerciais do sul do país. São
contratos de fornecimento de filmes da Pathé com firmas
como a casa Hirtz & Irmão, de Porto Alegre, Annibal Rocha
& Cia., Ildefonso & Cia., de Curitiba, e com Paschoal Limone,
de Florianópolis.40 Também em 1908, a MF&F entabulava
negociações com Antonio Gadotti, procurador e contador
da empresa de Francisco Serrador. O contrato, assinado em
maio daquele ano, assegurava fornecimento exclusivo de
filmes e equipamentos aos negócios de Serrador em São
Paulo e no Paraná.41 Iniciava-se aí uma lucrativa e turbulenta
parceria entre a maior casa importadora do país e aquela
que em breve seria a maior cadeia exibidora do país, a Companhia Cinematográfica Brasileira (CCB).
A MF&F e a Companhia Cinematográfica Brasileira
Os diversos contratos firmados com exibidores de outros
estados indicam a extensão da MF&F no período, bem como
sua supremacia no comércio fílmico nas primeiras décadas
do século XX. A documentação do Arquivo Família Ferrez
traz subsídios para outras discussões fundamentais sobre
os primórdios do setor cinematográfico brasileiro, referentes
tanto a disputas locais – entre grupos rivais do Rio de Janeiro e de São Paulo – quanto globais – a emergência do cinema norte-americano e a derrocada francesa. O pivô dessas
polêmicas foi o empresário espanhol Francisco Serrador.42
Serrador é uma das mais importantes personalidades da
história do cinema brasileiro. O imigrante espanhol chegou
ao país no ano de 1887, fixando-se primeiramente em Santos e depois em Curitiba. Ao que tudo indica, o empresário
teria iniciado sua capitalização através de atividades de lazer
e variedades, mas também com jogos de azar, sobretudo
o jogo do bicho. Especializou-se no ramo das diversões e,
entre 1905 e 1907, percorreu cidades do Paraná e de São
Paulo levando atrações itinerantes pelo interior – rinques de
patinação, barracas de tiro ao alvo, aparelhos mecânicos, etc.
Na reconstituição biográfica de Serrador feita por José
Inácio de Melo Souza destaca-se a constituição, em julho
de 1911, da CCB, sociedade anônima sediada em São Paulo,
dedicada à exibição fílmica. A constituição da CCB representou um passo importante em uma ascendente trajetória
de expansão do setor exibidor paulistano. Do ponto de vista
do passivo, vemos que a empresa valia-se basicamente de
capitais próprios de Serrador e de seus parceiros e sócios
de negócios anteriores, bem como das ações abertas no
mercado, cujos principais acionistas eram grupos ligados
aos grandes capitais cafeeiros paulistas e aos interesses
imobiliários em São Paulo.43 Já a carteira de ativos, com
pouco mais de dois mil contos de réis, dividia-se em: 648
mil no estoque de filmes, 338 no contrato de exploração do
Cine Bijou em São Paulo, 297 mil em contratos de locação com outros teatros, 246 mil em posse de imóveis em
Santos e Curitiba e 10 mil na “Ola Giratória”, uma espécie de
montanha russa pertencente a Serrador.44
Em assembleia de 23 de junho de 1912, a diretoria da CCB
resolveu expandir o capital da empresa para quatro mil
contos. Desse segundo lote de ações, a maior subscritora foi
justamente a MF&F.45 Pouco tempo depois, em reunião de 5
de julho de 1912, sabemos que a firma “vendeu seu estoque
de filmes para a Companhia Cinematográfica Brasileira”.46
revista da cinemateca brasileira
35
Notas para uma história econômica do cinema brasileiro: o caso da firma Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
36
O momento é bastante importante pois indica uma possível
reorientação das atividades da MF&F.
Já por este período as atividades exibidoras da CCB espalhavam-se por diversas cidades do Brasil, contando com
salas em São Paulo, Santos, Rio e Minas. Para a MF&F uma
aliança com a CCB significaria um incrível ganho de escala
no fornecimento de filmes para um cliente único, haja vista a
dimensão e o ritmo de expansão da companhia paulista. Por
outro lado, é inegável reconhecer que a MF&F, agora no papel
de acionista da CCB, tornava-se dependente dos negócios da
parceira. Tratemos, antes de mais nada, de analisar os termos
das negociações estabelecidas entre as duas empresas.
Além da já citada venda de estoques de filme, um documento menciona o contrato em que a MF&F tornava-se
a sucursal da CCB no Rio de Janeiro. “À sucursal do Rio
Janeiro­competia o serviço de locação de filmes nos estados do norte e sul do Brasil (…) e o serviço de exibição nos
três cinemas situados no Rio – Avenida, Odeon e Pathé.”47
Contudo, outra parte da documentação sugere que a sucursal seria também responsável pela importação de fitas
da Europa. Ao que parece, esse foi um dos pontos de maior
atrito entre a firma carioca e a firma paulista nos anos subsequentes.48 No relatório da CCB de 1912, lemos que: “A verba
de despesa [com aluguel de fitas] é a mais importante e é
bem menor do que no outro exercício, justamente porque a
CCB passou a negociar sem os agentes de fábrica.”49
A enorme taxa de expansão da CCB só pode ter sido mantida
pelo volumoso fluxo de filmes dos agentes da MF&F. Se, por
um lado, a MF&F via-se dependente da CCB, também esta
passou a ser demandante de um altíssimo e constante volume de importação.
O ano de 1915 é um momento de súbita queda e até mesmo
de interrupção nas importações. A bibliografia ligada à
história do cinema é unânime em reconhecer aí uma crise
de abastecimento de películas na Europa, decorrência da
conflagração da Primeira Guerra Mundial. A troca de correspondência entre Julio e Luciano Ferrez com seus intermediários indica que esta queda abrupta no envio de películas
para o Brasil pode ter sido um dos principais motivos do
rompimento entre a MF&F e Serrador.
Para além de simples desavenças pessoais entre Serrador
e os Ferrez, a hipótese mais consistente para o rompimento
entre as partes é a de que Serrador, valendo-se da instabi-
lidade do mercado cinematográfico europeu, tentou passar
por cima dos irmãos, iniciando um movimento de negociações diretas com os fornecedores europeus.50
Alia-se a isto a aproximação de Serrador com fornecedores norte-americanos, notadamente com a Fox, uma
das empresas que mais se beneficiou da desestruturação
francesa.51 A opção do imigrante espanhol desagradou os
Ferrez, tradicionais parceiros das companhias francesas e
sobretudo da Pathé, que manifestaram oposição à entrada
de produtos norte-americanos.52
Cine Pathé e a Marc Ferrez Cinemas
e Eletricidade Ltda.: a firma no pós-guerra
Qualquer que tenha sido o motivo do rompimento, há fortes
indícios de que a MF&F saiu desgastada de sua querela
com a CCB. A análise da documentação primária, sobretudo dos anúncios em jornal, mostra que a companhia de
Serrador teve crescimento ininterrupto no período que se
seguiu à Guerra, motivada, em grande parte, pelo sucesso
dos filmes norte-americanos.
Por sua vez, a MF&F optou por manter-se vinculada aos canais
europeus, tentando retomar seu regime de exclusividade do
pré-Guerra. O assunto surge em uma carta em que Luciano
expõe a Julio os planos de retomada dos negócios com a Pathé e a Gaumont, sem a intermediação da CCB, em uma clara
tentativa de retorno à situação anterior ao contrato de 1912.53
Parece, contudo, que neste momento a opção não se mostra das mais lucrativas. Isto porque, no final dos anos 1910,
a concorrência dos filmes norte-americanos já é bastante
acentuada, diminuindo a taxa de lucro da firma. Soma-se a isto um aumento no preço de produção dos filmes
franceses e os constantes custos de transporte. Em carta
de 1916, Marc Ferrez sugere aos filhos que mantenham a
representação da Pathé, mas ressalta a “necessidade de
alugar uma sala de cinema para compensar as despesas
devido ao aumento de preço dos filmes.”54
Os irmãos decidem acatar a sugestão do pai e voltam-se ao
setor exibidor. Tal decisão representa um segundo momento dos negócios entre os irmãos Ferrez e Serrador.55 Assim,
a MF&F arrenda, em 1917, o segundo Cine Pathé, propriedade da CCB, passando pela primeira vez ao controle efetivo da
direção de uma sala exibidora. No início da década seguinte
há uma inflexão da trajetória econômica da MF&F, que opta
pelo ramo de equipamentos elétricos. São indicativas dessa
mudança a alta participação no balanço dos “ativos não relacionados à atividade fílmica” e a alteração da razão social
da firma para Marc Ferrez Cinemas e Eletricidade Ltda.
Conclusão
O trabalho apresentou novos elementos ao estudo da História
do Cinema no Brasil, mediante análise das atividades da
firma carioca Marc Ferrez & Filhos no período entre 1907 e
1917. Vimos a maneira pela qual Marc Ferrez, já consagrado
como fotógrafo de renome do Segundo Império e profissional
atuante no mercado de importação de produtos fotográficos,
adentrou no universo do cinema ao obter os direitos de representação exclusiva de diversas firmas, sobretudo a Pathé
Frères, maior empresa do período. Esse contrato foi fundamental não apenas para a trajetória da empresa, mas para a
dinâmica do setor cinematográfico nacional como um todo.
presença de uma densa teia de relações nacionais e internacionais, tornando mais complexo o estudo do Primeiro
Cinema no Brasil. Julgamos que o artigo auxilia, nesse
sentido, no rol de reflexões sobre a História do Cinema no
país, abrindo portas para a constituição de novos paradigmas de estudo. Para além do primado estético ou exclusivamente artístico, focamos nossas análises na dimensão
econômica do cinema.
Esperamos, dessa maneira, que o presente trabalho
encoraje novas pesquisas no fértil universo das fontes históricas administrativas e contábeis. Embora pouco afeitos
às fontes usuais de pesquisas sobre filmes, artistas e diretores, esses documentos são simplesmente fundamentais
para os estudos do cinema, arte que surgiu e, em grande
medida segue sendo, a “filha do capitalismo”.
A atenção dedicada a fontes poucos exploradas (informações comerciais, registros contábeis etc.) indicou a
Notas
Cf. ABEL, Richard. The Red rooster scare: making cinema american,
1900-1910. Berkeley: University of California Press, 1999.
1
Cf. LE FORRESTIER, Laurent. Aux sources de l’industrie du cinéma:
le modèle Pathé (1905-1908). Paris: l’Harmattan, 2006. e BOUSQUET,
Henri. Catalogue Pathé des années 1896-1914. Paris: Bousquet, 1994.
De acordo com Meusy, no ano de 1907, o segmento cinematográfico da
empresa ultrapassa o fonográfico. Desde então, sua participação não
para de crescer. Cf. MEUSY, Jean-Jeacques. La stratégie des sociétés
concessionaires Pathé et la locations des films. In: MARIE, Michel e LE
FORESTIER, Laurent. La firme Pathé-Frères: 1896-1914. Paris: AFRHC,
2004. pp.21-48.
2
O livro La firme Pathé-Frères e o álbum Pathé: premier empire du
cinéma trazem fotos das diversas instalações industriais e administrativas da Pathé na França.
3
Cf. CRETON, Laurent. Pathé: 1900-1910: finances et stratégies. In:
KERMABON, Jacques. Pathé: premier empire du cinéma. Paris: Centre
Georges Pompidou, 1994. pp.74-81.
4
Sediada em Paris, a Fundação Jérôme Seydoux-Pathé dedica-se à
conservação e pesquisa de documentação não fílmica (material publicitário e iconográfico, documentos impressos, aparelhos e acessórios
cinematográficos, objetos, periódicos, bem como arquivos adminis-
trativos e jurídicos da Pathé desde sua criação em 1896). Reconhecida
como fundação de utilidade pública em 2006, acolhe pesquisadores e
historiadores interessados na temática.
Cf. BOUSQUET, Henri. Op. cit. (p.III) Informações detalhadas sobre as
atividades das sucursais podem ser encontradas também na coleção de
inventários da Pathé no Arquivo Jérôme Seydoux-Pathé.
6
Cf. CRETON, Laurent. Op. cit. p.78.
7
A maioria desses trabalhos aparece nas já mencionadas publicações
organizadas por Michel Marie, Laurent Le Forestier e Jacques Kermabon. Outros estudos podem ser encontrados também em periódicos
especializados como a revista 1895.
8
9
Cf. sobretudo TURAZZI, Maria Inez. Marc Ferrez. São Paulo: CosacNaify, 2000. FERREZ, Gilberto. Fotografia no Brasil e um de seus mais
dedicados servidores: Marc Ferrez (1843-1923). In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Brasília, n.26, pp.294-355.
Cf. TURAZZI, Maria Inez. Op. Cit. p.112.
10
5
11
A interpretação de Maria Inez Turazzi é que, já na virada do século, o
setor de importação da firma seria majoritário. O argumento é de que
o Almanaque Laimmert, principal catálogo de profissionais da área,
revista da cinemateca brasileira
37
Notas para uma história econômica do cinema brasileiro: o caso da firma Marc Ferrez & Filhos (1907-1917)
38
coloca Ferrez na rubrica dos “fabricantes, depósitos, importadores,
exportadores e negociantes de objetos e artigos para fotografia”, e não
como fotógrafo. Também sobre o tema ver MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: NOVAIS, Fernando (org.).
História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1997.
pp.181-231.
GERVEREAU, Laurent. Da foto ao filme. In: REYNAUD, François (org.).
O Brasil de Marc Ferrez. Rio de Janeiro: IMS, 2005. p.112. Para uma discussão sobre a evolução dos produtos e equipamentos comercializados
no Brasil no período Cf. TRUSZ, Alice Dubina. Entre lanternas mágicas
e cinematógrafos: as origens do espetáculo cinematográfico em Porto
Alegre: 1861-1908. São Paulo: Ecofalante, 2010.
Cf. MEUSY, Jean-Jacques. Op. cit. pp.32-33.
21
22
É fundamental apontar as inegáveis variações internacionais e
regionais. São valiosos, nesse sentido, os esclarecimentos de Alice Trusz
sobre o setor exibidor em Porto Alegre que calibra, em grande medida
as reflexões brasileiras, sobremaneira centradas no caso histórico do
Rio de Janeiro e São Paulo.
12
Um dos atuais focos de nossa pesquisa é a identificação de referências
ao grupo Ferrez em arquivos no exterior. Há ainda diversas lacunas na
compreensão da relação entre Pathé e os Ferrez, pela ausência de documentos fundamentais. Não foi encontrada cópia do contrato entre as duas
firmas no acervo da Família Ferrez. Tudo leva a crer, contudo, que o contrato foi realizado nos momentos finais de 1907. Condé chega a conclusão
semelhante. Cf. CONDÉ, Willian Nunes. Marc Ferrez & Filhos: comércio,
distribuição e exibição nos primórdios do cinema brasileiro (1905-1912).
(Dissertação de mestrado). Rio de Janeiro: UFF, 2012. pp.45-46.
13
“Marc Ferrez continuava à frente da gerência da firma, cuidando também do caixa e das assinaturas de papéis de crédito relativos à sociedade;
enquanto Julio ficava responsável pela direção da oficina de reprodução
de ‘vistas’ e Luciano pela parte de correspondências e escrituração dos
livros auxiliares, sendo que ambos não poderiam ter outros negócios de
nenhuma espécie.” CONDÉ, Willian Nunes. Op.cit. p.70.
14
Cf. MEUSY, Jean-Jacques. Op. cit. Exemplos desse padrão na análise
das sucursais ou casas de representação são encontrados nos mais
diversos cantos do planeta, da Argentina à Indonésia.
15
Essa origem itinerante do cinema, muito discutida na nova história social do cinema, foi encenada no Salão das novidades, espetáculo circense
e teatral que integrou a VI Jornada Brasileira de Cinema Silencioso (2012),
evento realizado pela Cinemateca Brasileira.
16
Sobre o tema, ver o trabalho de ABEL, Richard. The ciné goes to town:
French cinema 1896-1914. Berkeley: Unviersity of California Press, 1994.
Além das diversas reflexões de autores como Tom Gunning, Robert
Allen e Rick Altman.
23
24
É o caso, por exemplo, da principal rival da Pathé, a também francesa
Gaumont. De acordo com Le Forestier, a empresa valia-se de uma
estratégia “copista”, imitando com alguns meses de diferença as estratégias da Pathé. Cf. LE FORESTIER, Laurent. Op. cit. p.37.
25
Cabe destacar que a aceitação do modelo variou de lugar para lugar.
Cf. BOUSQUET, Henri. Op. cit. p.62.
Cf. WENDEN, D. J. The birth of the movies. Londres: McDonalds &
Jane’s, 1975. p.90.
26
27
A leitura da bibliografia internacional provê evidências sobre outros
casos latino-americanos. Kristin Thompson afirma, por exemplo,
que “os filmes entravam na Argentina por Buenos Aires, onde duas
grandes companhias dominavam o mercado: Max Glucksmann, agente
da Pathé, e a Sociedad General Cinematografia, agente da Gaumont.
Eles também negociavam outras marcas de filmes havendo também
pequenos importadores.” Cf. THOMPSON, Kristin. Exporting entertainment: America in the world film market (1907-1934). Londres: British
Film Institute, 1985. p.54.
28
Relatório da diretoria da Companhia Cinematográfica Brasileira (CCB),
29.11.1914. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
SOUZA, José Inácio Melo. Imagens do passado: São Paulo e Rio de
Janeiro nos primórdios do cinema. São Paulo: SENAC, 2004. pp.176-177.
29
GARÇON, François. Op. cit. pp.32-33.
30
Obviamente registraram-se diferenças nos níveis de capitalização dos
exibidores itinerantes, sendo a figura de Francisco Serrador contraexemplo. A questão é trabalhada centralmente em MORAES, Julio Lucchesi.
O magnata de Valência: capitalistas, bicheiros e comerciantes do primeiro
cinema no Brasil (1904-1921). In: Revista Movimento, n.1, junho 2012. São
Paulo.
17
Contrato de escritura do Cine Pathé, 21.03.1907. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
18
SKLAR, Robert. O consórcio de Edison e como se arruinou. In: ______.
História social do cinema americano. São Paulo: Cultrix, 1975. pp.47-63.
19
Cf. MEUSY, Jean-Jacques. Op. cit. pp.25-26. GARÇON, François. La
distribuition cinématographique en France (1907-1957). Paris: CNRS, 2005.
pp.10-11.
20
31
Tudo leva a crer que essa modalidade era empregada nos países
onde o volume de negócios era reduzido.
32
Porto de onde provavelmente boa parte dos produtos da Pathé saíam
para chegar ao Brasil.
Embora as cifras de transações com a Pathé seja elevadas, não
podemos deixar de destacar a importância de filmes da Gaumont, bem
como de material e equipamentos de outras firmas, algumas delas de
outras nacionalidades que não a francesa. Os documentos consultados
foram as Cartas entre a firma Det Oversoiske Compagnie e a MF&F,
15.09.1911 – 10.06.1912, a Correspondência de Luciano Ferrez ao irmão,
30.11.1914 – 29.09.1915 e as Cartas entre Luciano Ferrez e A. Neviére,
12.07.1914 – 12.06.1915. Há também referências, a partir de 1915, de
outro agente na Itália, Salvador dell’Osso, atuante em Roma. Cartas de
33
Luciano Ferrez e Salvador dell’Osso, 12.07.1914. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. É preciso algum cuidado na análise
de tais contratos, já que muitas empresas do período eram aliadas ou
subsidiárias da Pathé em outras partes da Europa.
Cf. GARÇON, François. Op. cit. p.24.
49
Relatório da Diretoria da CCB, 29.11.1914. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Cartas de Marc Ferrez ao filho e nora Jules e Claire, 02.10.1914 e
20.04.1915. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
50
34
Carta da firma MF&F à Det Oversoiske Compagnie, 15.09.1911 e Contrato com a Dion Bouton, Puteaux, 02.05.1012. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
35
Cópia de carta de Charles Pathé a Marc Ferrez, 02.11.1914. Arquivo
Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
36
37
Cf. CONDÉ, Willian Nunes. Op. cit. pp.106.124. Assim como Carta de
Abilio Monteiro, solicitando catálogo de material e preços a Marc Ferrez,
Aracati, Ceará, 22.05.1913. Carta de MF&F aos proprietários da Empresa
Cinematographica de Werk-Geskaft, 19.11.1908, e também Carta da
MF&F a José Tous Rocca, agente da firma para as cidades do Norte e
Nordeste do Brasil, 18.11.1908 – 25.02.1911. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
38
Relatório da diretoria da CCB, 29.11.1914. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
39
Cartas de MF&F a Paschoal Segreto, 18.04.1908 e 01.06.1908, Cartas
entre a firma MF&F e Jacomo Rosario Staffa, proprietário do Cinematografo Parisiense, 22.04.1908 e 16.10.1908. Arquivo Família Ferrez.
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
40
Contratos, cartas de fiança, recibos, etc. da MF&F, datas diversas.
Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Idem, 30.05.1908. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional.
Rio de Janeiro.
41
42
Para uma discussão sobre a polarização entre grupos cariocas e
paulistas no período, ver SOUZA, José Inácio de Melo. Op. Cit. Para a
trajetória econômica de Francisco Serrador ver MORAES, Julio Lucchesi. Op. cit.
Cf. MORAES, Julio Lucchesi. Capital artística: a cafeicultura e as artes
na Belle Époque (1906-1922). (Iniciação científica) São Paulo: USP, 2007.
43
Relatório da diretoria da CCB. 29.11.1914.
44
SOUZA, José Inácio de Melo. Op. cit. p.227.
45
46
Ata da reunião da Diretoria e do Conselho Deliberativo da CCB,
05.06.1912. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Documentos contábeis da Sucursal do Rio de Janeiro da CCB.
Janeiro a fevereiro de 1915. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional.
Rio de Janeiro.
47
48
Faturas da firma A. Neviére, 20.03.1915 e 31.03.1916. Arquivo Família
Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
51
Essa desestruturação francesa é tema amplamente discutido. Cabe
menção a um clássico da bibliografia: SADOUL, Georges. Histoire générale du cinéma, Paris: Denöel, 1951, vol.3, tomo 1.
Correspondência de Marc Ferrez a seus filhos, 11.01.1916; 23.06.1916;
27.09.1916; 30.01.1918. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de
Janeiro.
52
53
Correspondência de Julio Ferrez ao irmão Luciano, 30.11.1914;
29.09.1915. Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
Correspondência de Marc Ferrez a seus filhos, 11.01.1916; 23.06.1916.
Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional. Rio de Janeiro.
54
55
Documentos do arrendamento do Cinema Pathé e de sua posterior
venda à MF&F, 20.07.1915; 31.12.1917. Arquivo Família Ferrez. Arquivo
Nacional. Rio de Janeiro.
revista da cinemateca brasileira
39
40
ensaio
Arte e mercado em
Verdades e mentiras, o falso
documentário de Orson Welles
Marcos Soares
Professor de literatura norte-americana da FFLCH – USP
“As ideias melhoram. O sentido das palavras entra em jogo. O plágio é necessário. O progresso supõe o plágio.
Ele se achega à frase de um autor, serve-se de suas expressões, apaga uma ideia errônea, a substitui pela ideia correta.”
Guy Debord
A total ausência de textos analíticos, tanto da parte dos fãs
quanto dos detratores, sobre o filme Verdades e mentiras
(F for Fake – 1976) na crítica especializada pode, em
princípio, causar certo espanto entre os interessados pelo
trabalho de Orson Welles, pois, passados quase quarenta
anos de seu lançamento, o filme parece não ter envelhecido e suas reflexões sobre o estatuto do real e os modos de
sua apreensão histórica através das formas artísticas continuam complexas e pertinentes em um momento no qual
a obsessão pelo “real” parece dominar parte importante da
produção audiovisual mundial1. Entretanto, essa ausência
corresponde tanto à sua recepção no mundo todo (o filme
foi um fracasso de crítica e público em 1976 e praticamente
desapareceu das telas de cinema desde então), quanto ao
acerto do diagnóstico feito pelo cineasta em relação ao
conjunto de assuntos e materiais sobre o qual o filme se
debruça. Esta última afirmação exige demonstração e é
esse o objetivo das considerações que se seguem.
Depois dos episódios dramáticos em torno da finalização,
reedição e lançamento de A marca da maldade (Touch of
Evil – 1958), quando Welles viu se repetirem os problemas
com a censura que haviam se tornado comuns em sua
carreira desde Soberba (The Magnificent Ambersons – 1942),
as portas do investidores norte-americanos lhe foram fe-
chadas definitivamente. O período de exílio na Europa (onde,
apesar da fama de auteur criada pelos franceses, a questão
do financiamento de seus projetos NÃO foi solucionada de
modo mais fácil) “coincidiu” com um ataque sistemático do
aparato crítico conservador, que reforçou o antigo mito do
cineasta inconsequente, irresponsável (artisticamente, mas
também, ou principalmente, com o investimento alheio) e
autodestrutivo. No início dos anos 1970, duas publicações
de críticos influentes do establishment cinematográfico
ajudaram a enterrar qualquer possibilidade de que Welles
conseguisse financiamento para filmar um antigo roteiro
que havia se tornado uma obsessão (Welles iniciou a filmagem de The Other Side of the Wind, filme que pretendia fazer
uma radiografia feroz de Hollywood e cujo ator principal era
o diretor John Huston, mas o projeto nunca foi concluído): a
primeira foi o livro The Films of Orson Welles (1970), em que
Charles Higham acusava Welles de ter um medo patológico,
com motivações de caráter provavelmente “psicanalítico”,
de concluir seus projetos; e a segunda foi o notório artigo da
crítica Pauline Kael (publicado em The New Yorker em 1971)
“Raising Kane”, no qual ela desmentia a tese de que Welles
teria sido o principal responsável pela qualidade de Cidadão
Kane. Para um cineasta que havia passado grande parte
da carreira procurando um equilíbrio dificílimo, frequentemente impossível, entre o confronto aberto com o aparato
revista da cinemateca brasileira
41
Arte e mercado em verdades e mentiras, o falso documentário de Orson Welles
42
industrial e as negociações com produtores e financiadores,
trabalhando como ator ou narrador em filmes de terceira
categoria para financiar seus próprios projetos, enquanto via dezenas deles serem abortados e bruscamente
interrompidos, as acusações eram inaceitáveis. Entretanto,
ajudaram a esclarecer e afiar o senso crítico de Welles, que
em Verdades e mentiras faz um mapeamento das duas
questões: de um lado, o conceito moderno de autoria e, de
outro, sua relação intrínseca com o mercado. Assim, como
veremos mais adiante, os retratos satíricos de Higham e
Kael que Welles planejou no roteiro de The Other Side of the
Wind, mas não pode realizar, encontram expressão mais ou
menos velada, mas nem por isso menos contundente, em
Verdades e mentiras.
Quando, no meio de tantas reviravoltas profissionais, todos
os seus projetos pareciam destinados ao fracasso, Welles
viu a chance de voltar a trabalhar quando a televisão francesa lhe fez uma oferta: completar, junto ao famoso documentarista francês François Reichenbach, um programa sobre
o notório falsificador de arte Elmyr de Hory. Reichenbach,
que havia sido dono de uma galeria de arte, o primeiro a
comprar desenhos de Modigliani feitos por Elmyr, já havia
realizado parte considerável das entrevistas com o pintor
na ilha de Ibiza, onde também se encontrava seu biógrafo,
Clifford Irving, autor do livro Fake! (1969), no qual contava
a vida do falsário húngaro. Para surpresa de todos, em
meio ao processo de edição do documentário, a imprensa
anunciou de modo bombástico a notícia de que a biografia
de Howard Hughes, o misterioso magnata norte-americano
que há anos vivia em total reclusão, escrita por Irving, que
em teoria teria tido acesso inédito ao milionário, era, na
verdade, fruto de uma série de falsificações, incluindo aí
uma série de documentos assinados por Hughes em que
ele dava permissão para o projeto biográfico. Para delícia
dos interessados pelo escândalo, os tais documentos foram
submetidos a um painel de experts em caligrafia, que em
poucos dias emitiram um parecer confirmando a autenticidade dos papéis, apesar das afirmações insistentes do
próprio Hughes de que jamais havia sequer ouvido falar
de Irving. Diante da complicação dos episódios em torno
do assunto, assim como da publicidade inesperada, Welles
insistiu que haveria interesse e matéria para um longa-metragem desde que as entrevistas já feitas pudessem ser
reeditadas junto com cenas filmadas pelo próprio Welles.
Como o escândalo envolvendo Irving assumia proporções
cada vez mais inesperadas e dramáticas, Welles recebeu
sinal verde dos produtores e passou vários meses filmando
novas cenas e mais de um ano editando o material coletado.
O resultado é um filme que discorre sobre quatro casos
com o tema da falsificação, alguns “verdadeiros”, um outro
“falso”: o caso do “maior falsificador de arte do século XX”
(Elmyr); as aventuras de seu biógrafo e autor do livro sobre
Hughes (Irving); um caso de “charlatanismo cinematográfico” (o do próprio Welles, narrador e mestre de cerimônias do
filme); e, finalmente, o episódio envolvendo a atriz Oja Kodar
(colaboradora de Welles) em que ela teria encontrado, sido
amante e trabalhado como modelo para Picasso. Trata-se
de um “filme sobre a mentira”, como anuncia Welles logo
no início: mas seria essa afirmação verdadeira e nosso
narrador confiável? Ou seria essa frase ela mesma parte de
uma mentira, o que tornaria tudo o que veremos a seguir
“verdadeiro”? É dessa “indeterminação”, ou, para sermos
mais precisos, dessa dialética, no sentido mais legítimo do
termo, que o filme tratará.
O tema do engodo já aparece nas cenas iniciais, que mostram Welles numa estação de trem fazendo truques de
magia para duas crianças, enquanto espera pela chegada
de Oja Kodar (o interesse do cineasta pela mágica, assim
como pelas mulheres bonitas, era antigo). Os objetos
escolhidos para a realização dos truques são sugestivos: uma chave e uma série de moedas. Seria o dinheiro
que desaparece a chave do enigma proposto pelo filme?
Porém, o próprio Welles nos assegura que esses objetos
não têm “valor simbólico algum” e, em princípio, nos libera
da tarefa interpretativa. Seria essa a primeira mentira do
filme? Insere-se, logo de saída, uma questão pertinente
que se refere não apenas ao tema da confiabilidade do
narrador (tema central de Cidadão Kane 2), mas, de modo
mais amplo, ao próprio domínio do autor sobre sua obra,
que não se restringe à expressão de sua subjetividade
ou de seus atos volitivos. Entretanto, isso não impede a
tentativa de um pacto entre o “autor implícito” da obra (é
preciso aqui fazer uma distinção entre o Welles cineasta e
o Welles personagem-narrador do filme) e a plateia, que
pode ser encorajada a fazer uma leitura desmistificadora
do filme, a despeito da suposta confiabilidade que o registro fotográfico traz à expressão cinematográfica, principalmente em um filme que pretende ser um “documentário”.
Welles responde ao debate sobre o elogio ou a condenação do aparato cinematográfico e de sua suposta ênfase
(reveladora ou enganosa, dependendo da perspectiva) no
“real”, recolocando no centro desse debate a questão da
interpretação e da capacidade do público de encarar o desafio, num momento em que o próprio desejo de interpretar já estava sob ataque cerrado do pós-estruturalismo3.
Entretanto, o que dizer do público dos truques da magia
na estação? Indicaria a crença de que a plateia é inocente
e facilmente iludida pelo tipo mais tolo de engodo assim
como uma criança (como parece sugerir a teorização de
críticos como Jean-Louis Baudry ou mesmo a insistência de reflexões sobre o estilo “transparente” do cinema
clássico)?4 Porém, como a continuação do filme propõe
um desafio que não corresponde em qualquer nível ao
tipo de infantilização do público típico do produto industrial,
esse prólogo tem algo de “falso”, sugerindo que a ação interpretativa deve ser efetuada a contrapelo das aparências
(como no noticiário que abre Cidadão Kane).
Essa insistência naquilo que está por trás do imediatamente apreensível encontra sua figuração mais clara no
elemento autorreflexivo que pontuará o filme e que já se
anuncia desde o início, através da escolha da estação de
trem (desde sempre um locus classicus da representação no cinema, devido às associações com o filme dos
irmãos Lumière, e também às inúmeras semelhanças
entre a montagem no cinema e a visão proporcionada pela
viagem de trem, tema de diversas reflexões sobre o nascimento da “jovem arte” 5), por meio da comparação feita
por Welles (citando Houdin) entre mágicos e atores. Essas
referências se ampliam em seguida, no momento em que
se encena o próprio processo de filmagem, com a equipe
de técnicos agindo em torno de Welles, que os nomeia
enquanto interage com eles. A ênfase no processo produtivo coletivo será mantida por todo o filme6, que mostra
diversas equipes de trabalhadores em ação, dentre eles
o próprio Welles, que ora narra, ora aparece por trás da
câmeras, ora se concentra na moviola enquanto comenta
ou faz a edição de cenas específicas. Diversas das cenas
de entrevista, como apontado anteriormente, nem sequer
foram filmadas por Welles, mas por Reichenbach, que
também participa do processo como produtor e entrevistado7. Seria esse o motivo da insistência por parte de diversos críticos de que esse não é propriamente “um filme de
Welles”, apesar de sua presença constante em cena? Mas
o próprio filme parece encorajar, ou pelo menos, incluir,
no plano dos materiais, essa “percepção”, pois o processo
de avaliação crítica do “estilo Welles” se inicia logo após o
prólogo, quando a primeira personagem é apresentada.
Enquanto Oja anda pelas ruas de Paris, diversos observadores a seguem com o olhar, causando tumulto no trânsito
ruim da cidade. Apesar da música de Michel Legrand
fornecer uma ponte sonora que une as cenas e reforça a
ilusão de continuidade, é preciso atentar para o fato de que,
ao contrário das expectativas dos fãs de Welles, que gastaram centenas de páginas para louvar o longo plano de
abertura de A marca da maldade e a sequência do baile de
Soberba, a utilização do plano sequência, assim como das
tomadas em profundidade de campo, marcas registradas
do cineasta, estão praticamente ausentes neste filme. De
fato, esta sequência de abertura, uma das mais longas
do filme, parece mais uma paródia da longa abertura de
A marca da maldade, na sua insistência no corte rápido
e na montagem rítmica, que encena algo mais próximo
dos famosos experimentos de Kuleshov, de modo que a
aparência de desejo sexual nos rostos dos observadores
de Oja se constitui muito mais pela justaposição entre suas
imagens e as tomadas em close-up do quadril da atriz
do que pelo “conteúdo intrínseco” (ou “realista”) de cada
imagem tomada isoladamente.
Essa geografia criativa no desenho do tempo e do espaço,
que cria uma impressão de continuidade sem equivalente
no plano da “vida real” constitui, é claro, outro engodo,
que o narrador Welles procura reforçar através da ênfase
no “realismo” da cena, quando afirma que a autenticidade da sequência se deve ao fato de que os cinegrafistas
esconderam suas câmeras para que os observadores nas
ruas fossem pegos desprevenidos (como melhor capturar
a “ontologia da imagem cinematográfica”?). No entanto,
mesmo que de um ponto de vista pragmático isso seja
verdade, qual seria a validade da afirmação, já que ela não
tem valor explicativo no que tange a configuração formal
da sequência?
Algo da mesma ordem se insinua em um outro momento
do filme, em que Welles e sua equipe, sentados ao redor
de uma mesa de restaurante, conversam sobre Ibiza: no
momento em que quer apontar para a ilha, Welles deixa
cair uma taça de vinho sobre o mapa. Como a cena não
foi cortada da edição final, supõe-se que não se trata de
erro: mas teria a sequência sido mantida para garantir a
autenticidade do registro através da filmagem do acaso e
do contingente? Se o acidente com a taça for proposital e
encenado, seria o registro menos ou mais verdadeiro? Mais
do que responder a pergunta, Welles parece sugerir que
ela pode não fazer sentido: trata-se de outro assunto que o
filme vai tratar de explorar. O que dizer então de um filme
que insiste em negar as marcas que foram consagradas
como típicas do cinema de Welles? Estaríamos diante de
um Welles “falso”? Seria a imitação do estilo já consagrado,
estabelecido a priori a despeito dos conteúdos tratados,
capaz de dar mais “autenticidade” ao filme? Como pode-se
ver, em menos de dez minutos de filme, já foram introduzidas as questões que serão tratadas a seguir.
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Entretanto, a parte do entrecho que tratará de Oja é subitamente abandonada, ou melhor, adiada para “mais tarde”
(o espectador atento se lembrará neste momento de que o
mesmo acontece com a primeira entrevista de Susan Alexander em Cidadão Kane). Quando o episódio for retomado
no final do filme, seu estatuto será definido pela justaposição com o conjunto dos episódios anteriores, como
veremos mais adiante: o emprego da montagem não é
apenas localizado, mas funciona como uma função global
que abarca a totalidade da estrutura do filme, criando uma
forma em espiral, na qual cenas, personagens e objetos se
repetem sempre em outro nível, adensados pela justaposição com sequências anteriores.
Antes de iniciar a exposição dos casos de Elmyr e Irving,
o narrador mais uma vez faz uma intervenção para
assegurar a veracidade do que se segue, afirmando para
os espectadores que “o que vocês verão na próxima hora
é absolutamente verdadeiro”. A adoção de um estilo
“documental” através da utilização das entrevistas feitas
em Ibiza por Reichenbach, em princípio busca garantir a
verdade prometida, enquanto o emprego de um estilo de
montagem frenético nos mantém atentos aos “truques” da
armação geral. Já o conteúdo dos episódios é a fabricação
de “mentiras”: nelas vemos Elmyr falsificar quadros de
Matisse, Modigliani e Picasso, entre outros, com técnica
impecável e certeira, enquanto seu biógrafo tece considerações sobre a vida misteriosa do pintor, que gosta de “falsificar” os eventos de sua própria trajetória, a começar pelo
próprio nome, colocando em xeque a veracidade do relato
feito na biografia. Surgem através dos relatos as histórias
de dois artistas que, incapazes de entrar no mercado das
artes, um na área das artes plásticas, outro na literatura,
com suas próprias obras, passam a viver de falsificações
de mestres e celebridades consagradas. O que espanta em
ambos os casos é a perfeição do objeto falso: as pinturas
de Elmyr, oferecidas para os mais importantes museus do
mundo e submetidas ao escrutínio dos maiores especialistas no ramo são, invariavelmente, consideradas autênticas.
A ousadia de Elmyr, que às gargalhadas lança desafios aos
experts do mundo do mercado das artes, vai tão longe que
ele afirma que na imitação dos quadros de Matisse, ele tem
que “piorar” seu próprio traço, muito mais firme do que
aquele do mestre, para conseguir simular seu “traço hesitante”. Elmyr surge, assim, nas palavras de Irving, como
um “herói folk moderno”, que ridiculariza o establishment
artístico e seus supostos especialistas, mostrando, através
da falsificação, os embustes efetuados por donos de museus e galerias, que surgem como os verdadeiros vilões
da história. Desse modo, em cada uma de suas aparições,
os quadros de Elmyr transitam entre categorias diferentes:
ora são mera cópia barata, ora arma desmistificadora e é
com certo horror que o espectador testemunha o pintor
jogando falsificações de Matisse e Picasso, mercadorias
tão valiosas, no fogo da lareira.
Ao mesmo tempo, a montagem intercala o desenvolvimento dessa história com os eventos que marcam a
falsificação da biografia de Howard Hughes escrita por
Irving: ao justapor imagens dos documentos que em teoria
foram assinados por Hughes, da entrevista concedida pelo
magnata para a televisão ao telefone e dos depoimentos
cândidos e “objetivos” de Irving, o filme não apenas amplia
a discussão sobre o caráter problemático da crença na
fidelidade do registro fotográfico e documental, ao sugerir
que por trás dos depoimentos equilibrados e analíticos
de Irving sobre as falsificações de Elmyr está a mente
que naquele mesmo momento planejava seu próprio
golpe, mas também começa a sugerir a generalidade
do processo discutido para a manutenção do mercado
das artes. Isso se confirma no momento em que, após a
confissão de Irving diante dos tribunais sobre a falsidade
da biografia de Hughes, o mercado editorial o contrata para
escrever um “livro sobre o livro”, em que ele esclareceria a
“verdade” sobre o golpe. A sugestão de Reichenbach de que
a possibilidade de novas mentiras poderia dar origem ao
“livro sobre o ‘livro sobre o livro’” amplia o jogo vertiginoso
de espelhos que caracteriza o filme (retomando, em nova
chave, a última aparição de Kane em Cidadão Kane ou o
jogo de distorções que marca o fim de A dama de Shanghai). O paroxismo que enquadra e fornece uma chave
para tais tipos de “indeterminação” surge na sequência em
que Reichenbach relata a compra de desenhos de Modigliani feitos por Elmyr: apesar das evidências óbvias de que
eles eram falsificados, o art dealer se recusou a insistir na
investigação da origem das obras porque não “queria saber
demais”. Desenha-se aqui não apenas a função estrutural
das obras falsas – permitir giro de capital entre museus
e galerias num momento de escassez de mercadorias
(Modigliani trabalhava pouco e morreu cedo, como lembra
Elmyr) e consequente hiperinflação –, mas também uma
potente explicação histórica e econômica sobre a origem
e a função do pós-modernismo, como veremos. Vale a
pena notar aqui que a generalização do processo encontrou outro exemplo extra-fílmico esclarecedor num dos
livros de Charles Higham, desafeto assumido de Welles
mencionado anteriormente: sua biografia de Errol Flynn,
na qual acusava o ator de ter sido espião nazista durante a
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II Guerra Mundial, foi desmascarada por dois biógrafos que
demonstraram que Higham havia “manipulado” informações obtidas em documentos do FBI.8
Entretanto, esse movimento generalizante não poupa
nem o próprio Welles, pois nosso narrador inclui nele um
momento autobiográfico no qual expõe sua versão do
“charlatanismo” que caracteriza a totalidade de eventos
e personagens do filme. Welles explica, então, que não
apenas havia conseguido seu primeiro emprego nos palcos
europeus, no Gate Theatre de Dublin em 1931, através de
um embuste (ele teria dito aos diretores do teatro que,
apesar dos dezesseis anos de idade, vinha de uma carreira
longa e bem sucedida na Broadway), mas que obtivera
seu passaporte para Hollywood (com direito a um contrato
que lhe dava liberdades praticamente inéditas dentro do
sistema de produção industrial avançado que caracterizava
o cinema norte-americano) por ter participado de um dos
mais notórios engodos da história da indústria cultural no
século XX, a saber, a transmissão radiofônica da “Guerra
dos mundos” de H. G. Wells em 1938. O fato de que Cidadão
Kane, um dos maiores filmes da história do cinema, tenha
sido fruto de um “golpe”, e de que o próprio filme é uma
biografia “falseada” de Hearst, nos lembra que um dos
sentidos possíveis de “engodo” é “estratégia” e que toda
obra de arte é um falseamento, ou transformação criativa,
de materiais da vida social, transformação que pode ter
objetivo mistificador ou esclarecedor. Nesse sentido o
contraste entre a transmissão da “Guerra dos mundos” e a
realização de Cidadão Kane ganha contornos que adensam
a discussão de Verdades e mentiras, pois apontam para a
encruzilhada histórica do próprio Welles no final da década
de 1930, quando as possibilidades artísticas do uso do
aparato da indústria cultural se dividiam entre a manipulação e engano do público (emprego do qual a ascensão do
nazi-fascismo soube se aproveitar) ou seu esclarecimento
(a aposta da arte engajada dos anos 30).9
Prosseguindo na linha dos esclarecimentos, o filme aprofunda sua reflexão sobre a carreira de Welles e apresenta
duas entrevistas, uma com Richard Wilson, outra com Joseph Cotten, ambos atores em Cidadão Kane (nos papéis do
repórter e de Leland, respectivamente), que, para surpresa
do espectador, revelam que, quando surgiu a ideia de fazer
um filme baseado na vida de um grande magnata norte-americano, a primeira vítima que a equipe do Mercury
Theater pensou em parodiar havia sido... Howard Hughes.
Para compensar a troca de Hughes por Hearst, o narrador introduz um noticiário sobre o primeiro, claramente
inspirado naquele que abre Cidadão Kane, de que a nova
sequência é obviamente uma paródia: a mesma inflexão
da voz do narrador, a mesma ênfase em momentos-chave
da face pública da vida de um “grande herói americano”.
Assim como o noticiário do primeiro filme se mostrava
insuficiente para revelar o “verdadeiro Kane”, inaugurando
a fase investigativa da narrativa, este também se restringe
a fatos amplamente conhecidos da vida de Hughes, a partir
de cenas registradas e veiculadas pelos meios de comunicação de massas, que pouco revelam sobre a matéria
histórica em questão. Porém, a execução da sequência tem
grande poder de fogo ao apontar que a paródia, em certo
sentido o momento mais “autenticamente wellesiano” do
filme, aquele em que cinéfilos podem reconhecer as marcas do grande autor, não passa de mera imitação barata,
ou pastiche, de traços imediatamente reconhecidos através
de sua canonização e de sua degradação em “marca”
facilmente imitável.
O quarto caso do filme, aquele envolvendo Oja Okar e
Picasso, vem ampliar essa discussão. Porém, antes que
a atriz retorne, a introdução a Picasso fica por conta de
Elmyr: é da boca do falsário que ouvimos uma das mais
esclarecedoras falas sobre o conjunto de assuntos do
filme. Pois ao comentar o alto valor que suas falsificações
do mestre atingem no mercado das artes, Elmyr localiza, corretamente, uma das mais incríveis reversões que
caracterizaram a carreira de Picasso, ou seja, o fato de que
ele talvez seja o primeiro pintor moderno que “com um
simples traço, um simples movimento do braço que não
dura mais do que alguns segundos, pode criar milhares
de dólares”. A afirmação interessa por apontar para uma
reversão escandalosa da tese marxista sobre a relação entre valor e trabalho (ou seja, a ideia de que o valor de cada
mercadoria é medido através do cálculo da quantidade de
trabalho humano embutida nela10), instaurada pela especulação no mercado de artes, que, é bom lembrar, desde
meados dos anos 40 é assunto do Estado norte-americano11. Além disso, ela também demonstra que esse jogo
especulativo, que efetua uma reversão da ênfase no “fazer
novo” dos modernistas, depende justamente de uma aparato crítico que faça a seleção e canonização das “marcas
autorais” dos artistas, facilitando sua imitação para o fornecimento ininterrupto de mercadorias. Tal percepção não
escapa ao próprio Picasso, que numa frase citada no filme,
afirma que ele também é capaz de “falsificar Picassos”.
Essa jogada mercadológica por parte de museus e galerias
é sustentada por especialistas, lacaios do mercado, que
tratarão de reificar e difundir o estilo de artistas valiosos
através de publicações, cursos, campanhas de publicidade,
etc., reforçando uma estratégia que inclui a possibilidade de
falsificação como pilar da expansão do mercado.
Eis, portanto, que a última parte do filme, sobre o suposto
encontro entre Oja e Picasso, o único episódio “falso” do
entrecho, fornece uma das chaves centrais para os teoremas desenvolvidos. Mas é claro que essa chave não surge
desde o início sob o signo da “falsidade”: sua justaposição
com os casos anteriores, “baseados em eventos da vida
real”, lhe garante por alguns momentos certo grau de
veracidade. Assim, é com espanto que ficamos sabendo
sobre a fascinação de Picasso por Oja numa cidade de
veraneio onde ambos passavam as férias, as observações
diárias da moça através da janela (a edição dessas passagens, que mostram fotografias do olhar fixo de Picasso
justapostas a imagens do andar sensual de Oja, também
adquirem “veracidade” através de sua contaminação pela
“autenticidade” da sequência de abertura do filme), o caso
amoroso, as dezenas de retratos pintados com a jovem
como modelo. A aparição do avô de Oja, excelente falsário
que destrói os originais de Picasso, mas sem antes imitá-los com tal perfeição que acaba por lançar uma nova fase
do pintor, introduz um elemento ainda mais fantástico na
história, mas tem a pretensão de convencer através da
utilização de “documentos”, especialmente fotografias,
que procuram dar um estatuto de autenticidade ao relato.
A encenação do encontro entre Picasso e o avô feita por
Welles e Kodar, um dos momentos mais extraordinários
do filme e uma das mais interessantes incorporações do
efeito de distanciamento brechtiano do cinema moderno,
quebra com o registro realista, sem, contudo, desviar a
atenção do conteúdo do diálogo, que expõe com clareza a relação entre a reificação do estilo e sua potencial
utilização mercadológica. (A pertinência e generalidade do
diagnóstico podem ser atestadas por inúmeros exemplos,
não menos, é claro, na indústria cinematográfica: quantos
espectadores não “conhecem” a sequência da escadaria de
Odessa, por exemplo, através de suas diversas imitações,
muito melhor sucedidas do ponto de vista mercadológico
que o filme russo?). Só então ficamos sabendo, através do
Welles narrador, que tudo não passa de engodo: a sequência final já havia excedido o tempo de uma hora inicial do
filme (Welles relembra a promessa feita inicialmente), de
modo que a mentira não caracterizava quebra de contrato
com o espectador. Entretanto, seria a admissão do engodo
outra mentira? O fato de que o encontro entre Oja e Picasso
nunca tenha acontecido invalida a “verdade” do relato? Sim,
se o critério for a adesão a um realismo de fachada; não,
se, ao contrário, o centro do filme for o desenvolvimento de
teses historicamente válidas.
Voltando à questão sobre o acerto do diagnóstico, vale a
pena lembrar que, em 1976, o sucesso mercadológico de
“cópias” já era um fenômeno em estado avançado de proliferação na indústria cinematográfica. E não apenas na mania pelos “remakes”, caso mais inofensivo devido à franca
admissão do caráter comercial da maioria dessa produções
(trata-se em geral de requentar produtos de grandes sucessos de bilheteria do passado com roupagem tecnológica
mais “avançada”), mas no fenômeno que ficaria conhecido
como pós-modernismo, com seus gosto pelas citações
(que encontrou no próprio trabalho de Welles diversas
“cenas memoráveis”, facilmente imitáveis). É do início dos
anos 1970 o sucesso das imitações de Hitchcock feitas pelo
mais pós-moderno dos cineastas norte-americanos, Brian
de Palma, assim como o elogio crítico dos empréstimos
(em geral localizados em filmes que em seu arcabouço
geral mantiveram uma estrutura convencional), que a nova
geração de cineastas fazia do cinema de arte europeu (de
fato, a fortuna crítica sobre a “renascença Americana” até
hoje investiga com ardor incomum as semelhanças estilísticas e iconográficas entre, por exemplo, Jules e Jim e Butch
Cassidy e Sundance Kid, ou, para tomar outro exemplo muito comentado, a influência de Acossado e O último samurai
sobre a montagem elíptica de Bonnie e Clyde)12.
Na verdade, o que testemunhamos nos Estados Unidos,
após a crise que quase levou à falência boa parte dos
grandes estúdios no final dos anos 60, é a construção de um
novo “estilo internacional”, ou seja, a combinação de diversas
tradições nacionais sob os olhos atentos dos produtores de
Hollywood. As regras de construção dessa prática foram
fortalecidas pela expansão do mercado para o cinema americano no período, cuja base material foi fornecida por duas
medidas de Richard Nixon na área da economia. Uma delas
afetava diretamente a indústria cinematográfica: seguindo
a enorme ampliação de crédito promovida pela política
governamental, que procurava compensar pelo arrocho
salarial generalizado do período, Nixon aprovou diversos
cortes de impostos para investidores locais na indústria
cinematográfica (plano que ficou conhecido como “Plano
Schrieber”). Já no plano internacional, foi uma medida não
diretamente ligada à indústria que a salvou da falência: o fim
do lastro ouro, decretado pelo governo Nixon, a ascensão do
“dinheiro desmemoriado” e a consequente desvalorização
do dólar, que tornou as moedas estrangeiras mais caras e
inundou o mercado local com investimentos internacionais,
revista da cinemateca brasileira
51
Arte e mercado em verdades e mentiras, o falso documentário de Orson Welles
52
produzindo um lucro imediato de aproximadamente $34
milhões em vendas de filmes para exibição em cinema e
televisão em âmbito global. Ambas as medidas fortaleceram
os laços entre a indústria cinematográfica e o capital financeiro internacional. As novas qualidades exigidas dos filmes,
que tinham que atender aos gostos e investimentos de uma
vastíssima plateia internacional, ajudaram a abrir o caminho
para as abstrações do pós-modernismo (a dissolução das
fronteiras entre a alta arte e a cultura de massas, a mistura
indiscriminada de gêneros e estilos, a ideia de um novo
espaço internacional sem centro, etc.).13
Como Verdades e mentiras demonstra na prática, a simples
cópia de traços estilísticos facilmente identificáveis por
uma plateia alfabetizada pelos hábitos da cinefilia representa a parte mais fácil do processo criativo (porém a mais
rápida e lucrativa dentro do sistema de divisão industrial do
trabalho), pois se trata apenas da apreensão pragmática de
dados da “carpintaria” da execução técnica. O filme também
demonstra, através de seu caráter de filme-síntese da obra
anterior de Welles, que a utilização do repertório técnico e
artístico do passado não pode se restringir à imitação de
características definidas a priori, o que redunda em mero
formalismo vazio, mesmo quando a destreza “técnica” do
imitador é grande, mas deve avançar na direção do teste
criterioso das formas diante da matéria histórica para, a
partir daí, executar sua transformação, atualização ou, em
alguns casos, seu simples abandono14.
Não se trata tampouco de uma defesa da “obra original” ou
do “autor verdadeiro”: como mostra a longa sequência do
filme em que Welles faz uma visita à catedral de Chartres, obra-prima da cultura ocidental de autoria coletiva e
anônima, o conceito de autoria é histórico. Se o Romantismo
europeu do século XIX havia insistido na figura do gênio e no
valor da subjetividade do autor individual, o cinema, como
demonstrou Walter Benjamin no famoso ensaio sobre a
reprodutibilidade técnica, poderia ter levado a cabo o longo
processo de destruição do conceito tradicional (aurático) de
autor que se iniciara nas artes visuais no período que vai do
pós-impressionismo, passa pelo cubismo e pela abstração
e chega à fotografia, que prometia “libertar a pintura do
cavalete” e democratizar o processo produtivo15. Pois no
cinema, onde centenas de técnicos e artistas trabalham na
execução de um filme, haveria sentido falar de um autor
individual (Benjamin identificou a ênfase do cinema na figura
do indivíduo especial com a estética do fascismo)?16. Com a
interrupção desse processo de superação da arte que foi o
projeto dos dadaístas e dos surrealistas e chega a um tipo
de clímax no construtivismo russo, e a transformação do
diretor-estrela em marca vendável, não é de se estranhar
que o ato corajoso de Welles tenha ficado esquecido por
tanto tempo. No entanto, é claro que o filme não “soluciona”
o problema, nem tampouco isenta Welles de fazer parte
dele, como ele próprio admite no filme, no momento em que
declara abertamente que conhece seu status de mercadoria,
ao qual ele em parte adere (para o bem ou para o mal seu
nome foi frequentemente usado para tentar garantir financiamento de seus projetos) para melhor expor o problema
criticamente. Não se trata, entretanto, de uma defesa da ideia
da “morte do autor”, já em voga no momento da produção do
filme, seja na versão de Foucault, seja na versão de Barthes,
mas da ênfase no “plágio” criativo e coletivo (inclusive de si
próprio), no sentido, como afirmei antes, da insistência de
uma relação forte com a história e com o repertório cultural
do passado reavaliado no confronto com o presente.
Já para a crítica, e especificamente para os interessados
no trabalho de Welles, e não apenas neste filme, fica um
problema. Parte considerável da fortuna crítica que comentei
no início até hoje se esquiva de estudar filmes como Soberba
porque a cópia que nos restou do filme não é a original
(o filme foi reeditado pela RKO e algumas cenas foram
refilmadas enquanto Welles estava no Brasil). Entretanto,
se uma das funções da arte é mapear seu tempo histórico,
não seria a cópia desfigurada que nos restou o testemunho
mais eloquente de seu tempo, em um momento em que o
“falso” é a real objetificação da violência do jogo da cultura
contemporânea? Dessa perspectiva, uma das diversas mentiras do filme, desta vez afirmada por Irving, é a acusação
de que Elmyr não consegue desenvolver uma “voz própria”,
uma visão autêntica do seu momento: ao contrário, na sua
insistência na falsificação, Elmyr surge como um genuíno
“artista da fome” moderno.
Como afirmou recentemente o crítico inglês Terry Eagleton17,
antes de 2008, quando o inimigo parecia ser invencível, a vitória foi a de uma cultura de adesão, nas quais as imposturas
pós-modernas mimetizaram os procedimentos que interessam ao jogo bruto do mercado financeiro, como Verdades e
mentiras demonstra. Com a crise sistêmica atual, o interesse
pelo filme de Welles pode crescer.
Notas
1
No livro mais recente de análises dos filmes de Orson Welles,
(GARIS, Robert. The Films of Orson Welles. Cambridge: CUP, 2004), o
crítico Robert Garis faz uma análise detida de todos os filmes, com
exceção de Verdades e mentiras, que nem sequer é mencionado. A
situação se repete em praticamente todos os livros importantes sobre
o cineasta. Em outra publicação importante (NAREMORE, James. The
Magic World of Orson Welles. Dallas: Southern Methodist University
Press, 1989), livro do especialista James Naremore em que se podem
encontrar as mais longas e detalhadas análises de todos os filmes
de Welles, o autor não dispensa mais do que cinco ou seis linhas a
Verdades e mentiras e encerra o assunto afirmando que “o filme é
repleto de especulações abstratas sobre arte e sociedade”. Os textos
“First Impressions on F for Fake” e “Orson Welles’s Purloined Letter: F
for Fake” (ROSENBAUM, Jonathan. Discovering Orson Welles. Berkeley:
University of California Press, 2007) são, como o título do primeiro
ensaio deixa claro, impressões gerais e vagas sobre o filme.
Para uma análise detida sobre a questão da confiabilidade dos
narradores em Cidadão Kane, ver Marcos Soares, “O projeto inacabado de Cidadão Kane” in SOARES, Marcos & CEVASCO, Maria Elisa.
Crítica cultural materialista. São Paulo: Humanitas, 2008.
2
Sobre o debate crítico a respeito do poder de esclarecimento ou
engano do cinema, ver XAVIER, Ismail “Cinema: revelação e engano”.
In: O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. Sobre o ataque
pós-estruturalista à noção de interpretação, ver EAGLETON, Terry.
Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
3
4
O texto mais influente sobre o assunto é o ensaio de Jean Louis
Baudry, “Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho
de base”. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. Rio de
Janeiro­: Graal, 1991.
5
Sobre as diversas reflexões a respeito das relações entre o surgimento do cinema e a viagem de trem, ver SCHIVELBUSCH, Wolfgang.
The Railway Journey: The Industrialization of Time and Space in the 19th
Century. Berkeley: University of California Press, 1986.
A respeito desse assunto, o livro de Robert Carringer sobre o
processo de produção de Cidadão Kane (CARRINGER, Robert. Cidadão Kane: o Making Of. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996)
fornece dados claros sobre o trabalho coletivo, praticamente sem
paralelos em Hollywood, que tornou possível a qualidade do filme.
pierre, que lhe dá as costas e vagarosamente enxuga uma lágrima.
A legenda dizia, aproximadamente, “Em nome da liberdade, tive de
sacrificar um amigo...” Fim. Mas quem poderia imaginar que, no
original alemão, Danton, apresentado como indolente, mulherengo,
excelente camarada e única figura positiva no meio de personagens
cruéis, correu para o diabólico Robespierre e... cuspiu em seu rosto?
E que foi este cuspe que Robespierre enxugou com um lenço? E
que a legenda indicava o ódio de Robespierre a Danton, um ódio que
no final do filme motiva a condenação de Jannings-Danton à guilhotina?! Dois pequenos cortes reverteram todo o significado desta
cena!” Ver “Do teatro ao cinema”. In: EISENSTEIN, Sergei. A forma do
filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 20.
8
Ver THOMAS, Tony. Errol Flynn: The Spy Who Never Was. New
York: Citadel, 1990.
Sobre o significado dessa encruzilhada histórica ver DENNING,
Michael. The Cultural Front. London & New York: Verso, 1999.
9
10
A formulação mais conhecida deste princípio é aquela do primeiro capítulo de O capital.
11
O crítico francês Serge Guilbaut mostrou que a ascensão do
expressionismo abstrato norte-americano como centro da arte moderna foi financiado pela Casa Branca e pela CIA desde o final dos
anos 40. GUILBAUT, Serge. How New York Stole the Idea of Modern
Art – Abstract Expressionism, Freedom, and the Cold War. Chicago &
London: The University of Chicago Press, 1983.
Ver, por exemplo, BISKIND, Peter. Easy Riders, Raging Bulls. New
York: Touchstone Books, 2003; HARRIS, Mark. Pictures at a revolution. Five Movies and the birth of the new Hollywood. New York: The
Penguin Press, 2008; KING, Geoff. New Hollywood Cinema. New York:
Columbia University Press, 2002
12
A melhor descrição e análise da crise do sistema de estúdios
do final dos anos 60 é a de COOK, David. Lost Illusions. New York:
Scribner, 2000.
13
6
Os interessados pelo cinema político lembrarão que o emprego
de cenas de outros filmes reeditadas para que outros sentidos lhe
sejam atribuídos constitui o procedimento central dos filmes de Guy
Debord. Também Eisenstein comenta um procedimento semelhante: “Não posso resistir ao prazer de citar aqui uma montagem tour
de force deste tipo, executada por Boitler. Um filme comprado da
Alemanha foi Danton/Tudo por uma mulher, com Emil Jannings.
Foi mostrada, em nossas telas, a seguinte cena: Camille Desmoulins é condenada à guilhotina. Muito agitado, Danton corre a Robes7
14
Ismail Xavier analisa os modos através dos quais o cinema brasileiro moderno fez uma avaliação deste tipo do trabalho de Welles.
Ver XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema­novo,
tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: CosacNaify, 2012.
15
Sobre o caminho que leva de Manet ao surgimento da fotografia
do ponto de vista da democratização do processo produtivo, ver
GONÇALVES, Marcos T. Fabris. Correspondências: Arte, Técnica e
Processo Histórico. (Tese de doutorado, FFLCH, USP, 2011).
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense,
vol. 1, 1993.
16
17
EAGLETON, Terry. Why Marx Was Right. New Haven & London:
Yale University Press, 2011.
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ensaio
Hollywood : duas faces
de uma mulher
Jair Leal Piantino
Bibliotecário aposentado da Cinemateca Brasileira
Entre o fim da década de 1920 e o começo dos anos 1930,
o que na história do cinema significa dizer a transição do
silencioso para o sonoro, pelo menos quatro brasileiros
emigram para Hollywood. A ambição de todos é semelhante: atores, procuram fama e glória internacionais no
palco central da indústria cinematográfica do período.
talentos com os quais excursiona pelos teatros do país.
Em 1930, filma um teste nos estúdios da Cinédia, organiza
algumas cartas de recomendação e, ao lado de Diva Tosca
(1909-1933), sua mulher e também atriz, parte para Nova
York com os mesmos intuitos de Torá e Guilherme, de
ganhar Hollywood e o mundo.
Os livros de história do cinema brasileiro assim resumem
suas trajetórias. Lia Torá (1907-1972), ganhadora em 1927
de um concurso da empresa Fox-Film, participa como
extra de vários filmes americanos, ganha destaque com
A Mulher-enigma (1929). Com o marido, assume uma
produção própria (Alma camponesa, do mesmo ano), no
advento do som, atua em versões em espanhol de filmes
norte-americanos, e, em 1931, abandona a carreira. Olympio Guilherme (1902-1973), repórter de A Gazeta, envolve-se
casualmente com o mesmo concurso e dele sai vencedor.
Intérprete sem destaque em duas películas norte-americanas, faz-se presente em O Rei do jazz (1930), ao lado de
Lia Torá, num esquete de apresentação desse primeiro
filme sonoro para o público brasileiro. Com recursos
pessoais, ainda produz, escreve, dirige e interpreta Hunger
(Fome), em Hollywood, 1929. Raul Roulien (1905-2000) de
família ligada ao meio artístico, tem relativa fama desde
meados da década de 1920 como pianista e chansonnier,
Lia Torá não cabe nos limites deste artigo, enquanto Diva
Tosca apenas figura. Olympio Guilherme e Raul Roulien,
porém, merecem atenção por terem escrito dois livros que
apresentam reflexões muito peculiares sobre os bastidores de Hollywood. A proximidade da data de publicação (o
de Guilherme é de 1932, e o de Roulien de 1933) permite
observar o sistema de produção cinematográfica em curso
nos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, comparar os motivos que animaram a escritura dos dois autores/atores.
Olympio Guilherme elabora uma novela ficcional, o que
parece apontar para ambições literárias mais elevadas,
coerentes com seu trabalho jornalístico. Sua finalidade é
reproduzir ou alertar sobre as ilusões e frustrações provocadas pelo sonho hollywoodiano, e não exatamente propagá-lo. Já Roulien escreve no aproveitamento mercantilista
de um sonho que está dando certo, talvez no auge de uma
fama que não se sabe ainda curta, mas que é necessário
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capitalizar conforme as oportunidades de marketing que,
nesse momento, lhe são oferecidas pelo mercado editorial
brasileiro, justamente por seu sucesso. Para simplificar a
questão, fiquemos com a ideia de que Guilherme fracassa
e que Roulien triunfa em Hollywood – o que justifica a
diferença de tom e de visão entre ambos.
Obviamente, nem a publicação de Guilherme, e muito
menos a de Roulien, assumem um questionamento
político. Hollywood não é o colosso monopolístico que
análises posteriores irão lhe imputar. Estamos no domínio
do amor, da paixão, do fascínio, do brilho e, mesmo no livro
de Guilherme, essas emoções oscilam entre a denúncia
e o deslumbramento. A capa de seu livro é, neste sentido,
reveladora de seus propósitos. Nela, mãos retorcidas em
sinal de aflição disputam uma estrela brilhante, enquanto
uma mão isolada, de dedos firmes, dela já se apodera.
No livro de Roulien, a capa exibe o ator de pé, a pisar estrelas (dos concorrentes?, da bandeira norte-americana?)
e percebe-se fácil a postura do vencedor. As páginas
iniciais repercutem o deslumbre com os Estados Unidos,
tendo Nova York como porta de entrada. Um arranha-céu da cidade é para ele a criação de um “lar coletivo
pela necessidade de solidariedade humana dentro do
seu dinâmico individualismo mercantil” (p. 16). A “formidável criminalidade americana acompanha o progresso
nacional: é um dos seus reflexos mais lamentáveis, porém
lógicos” (p. 18). E repete o clichê de que a América do Norte
“é a terra da ‘chance’: é preciso, porém, ficar perto da roleta de onde poderá sair o número da nossa sorte” (p. 27).
Quanto às oportunidades, Roulien não começa por baixo:
tem contatos, cartas de recomendação, uma delas escrita
pelo cônsul Sebastião Sampaio, um currículo demonstrável que lhe dá o luxo de recusar o emprego num cabaré
e, depois, já contratado por Hollywood, de negar o rótulo
de “espanhol” que o departamento de publicidade dos
estúdios da Fox-Film quer lhe impingir.
A primeira metade de seu livro descreve os papéis de
destaque que o ator interpreta nas versões em castelhano
de filmes americanos sonoros destinados ao público da
Espanha e da América Latina. É o sucesso possível e não
é pouco, pois salienta o fracasso de atores que têm as
mesmas pretensões, incluindo Olympio Guilherme, que
não é a peça que a indústria cinematográfica necessita
nessa etapa de transição, quando maior importância têm
as vozes e os sons, e não as imagens. Roulien canta, toca
piano, sabe dançar. O mundo de Hollywood nesse momen-
to é um musical de oportunidades que Roulien nem pode
reconhecer como limitadas, pois escreve o livro apressadamente, durante o intervalo de férias no Rio de Janeiro,
antes de retornar às filmagens de uma película em inglês
que coroaria sua “promoção a astro” (p. 197).
Mas, essa distinção entre “fotogenia”e “sonogenia”, entre
a negação e a aceitação de novos talentos pelo mercado,
explica apenas uma parte das diferenças de visão que os
dois atores têm de Hollywood.
Para Roulien, a capital internacional do cinema – “um
milagre do homem (...) o conto da Carochinha reduzido a
uma banalidade diuturna” – (121), além do glamour, dos
incidentes cômicos com extras (p. 122), das distâncias
hierárquicas que separam a estrela da girl (p. 125), é o
trabalho árduo mas compensador, é a magnitude de uma
grande empresa, que em tudo repete a grandiosidade da
economia nacional americana. Está impressionado com os
estúdios da Fox: um pátio para seis filmagens simultâneas
ao dia, usina própria de geração de energia elétrica, museu
de figurinos e de veículos de todas as épocas, um jardim
zoológico de animais amestrados e um departamento
exclusivo para o desenvolvimento de novas tecnologias.
Roulien descreve exaustivamente a parte técnica da filmagem, tudo o que ocorre nos bastidores e que desaparece
quando o espectador, de olho na tela, acredita estar diante
da própria realidade. Com efeito, tudo funciona bem na
linha de produção hollywoodiana. Todos os departamentos
estão planejados para ocupar os seus devidos lugares
no fluxo de produção, todos os funcionários obedecem
a uma escala de valores, todas as máquinas funcionam
em harmonia para que os produtos sejam colocados em
distribuição e exibição, realimentando a indústria.
Olympio Guilherme reconhece o aparato montado, mas
procura os homens que estão abaixo dessa engrenagem,
os que circundam a indústria querendo chegar até seus
bastidores. Como é o cotidiano do ser humano que lhe
interessa, e não a estrutura de funcionamento da economia, o espírito “moderno” de Roulien, que cria uma pose
documentária e jornalística para narrar os fatos como eles
são, na visada de Guilherme se torna narrativa de ficção: a
capa do livro sugere um romance, a página de rosto exibe
o subtítulo “novela da vida real”, o prefácio insiste em vincular a ficção como estratagema para atingir a realidade,
pois a forma mais convincente de dizer a verdade tem a
aparência da mentira, como afirma também a epígrafe,
retirada do escritor José Américo de Almeida.
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A verdade a que se propõe o autor parte da premissa de
que Hollywood é uma mulher de duas faces. A mais vistosa
delas, “cheia de viço e sol, fotogênica, de cabelos fulvos à
brisa deliciosa da Califórnia” (p. 9), é a que deixa suas marcas
internacionais: é uma Hollywood de “revista cinematográfica” que “impõe ao mundo inteiro (…) tanto os costumes por
que se devem pautar as sociedades, como os figurinos da
próxima estação” (p. 10). A outra, com quem o personagem
de seu livro convive no cotidiano, é “a matrona circunspecta
(…), trajada sem gosto, abraçada a um pão do tamanho de
uma bola de futebol” (p. 11).
É entre essas duas figuras simbólicas que o autor vai
construir sua narrativa. Personagem central, Lúcio Aranha
é um dos milhares de atores que, vindos de diversas
partes do mundo, procura um lugar na fama que o Cinema
(com maiúscula, significando o cinema hollywoodiano)
pode propiciar. A bela mulher é o desejo, a mulher séria, a
realidade, e entre essa e aquela ganhar o papel de figurante é a única ponte possível para fugir das margens, superar a fome e permanecer dentro da Hollywood de revista.
A ação se passa numa “república” – uma residência que
se subloca, onde os demais personagens passam o dia
ligando para o departamento de casting, à espera de uma
súbita oportunidade, e onde a solidariedade se estabelece,
pois o punhado de dólares obtido por qualquer um deles
num dia de trabalho serve de alimentação para todos.
É certo que os personagens são estereotipados: um judeu,
um dublê de Jesus Cristo, uma sósia de Greta Garbo, um
argentino de caráter duvidoso, um cachorro treinado (por
sinal, o que consegue o maior número de figurações).
Suas ações também são um tanto limitadas pela necessidade repetitiva de provar que eles estão aí para “lutar até
vencer”. Mas, em alguns momentos, a ação ficcional se interrompe para que a voz “superior” do narrador, assumindo um ar professoral, sociológico ou de cunho observativo,
exponha o sistema que vincula os personagens a uma
interpretação social da realidade. O leitor agora já não se
encontra no reino imaginativo do drama, mas se avizinha
de uma verdade de caráter jornalístico e documental, que
colide com o ponto de vista de Roulien.
Para Roulien, deve ter sido difícil construir uma visão crítica do que contou, pois sua perspectiva é a de um narrador
privilegiado, efetivo participante da indústria, e o efeito
final, formado pela acumulação de eventos e celebridades,
acaba por criar um resultado desabonador: não há reflexão
nem análise a respeito da “sucessão” dos fatos – que é
bem verdade não existe, por ser um apanhado de casos
que glorificam o autor e o assunto retratado –, predominando a superficialidade, ainda que seu objetivo seja
apresentar a “verdadeira Hollywood”. A novela de Guilherme, quando cede ao impulso de interpretar a realidade, e
quando narra as tentativas inglórias de seus personagens,
permite adensar a visão sobre o objeto narrado, oferecendo uma descrição não edificante do aparato cinematográfico americano. Hollywood é agora um dínamo industrial
globalizante, como provam a dublagem e as versões de
filmes americanos para outras línguas, um microcosmo
impiedoso em que as provas fotográficas extenuantes dos
extras evitam o desgaste desnecessário dos astros, um
péssimo ambiente de trabalho durante as filmagens que
perduram horas dentro de estúdios abafados, um lugar de
discussões inúteis que se sucedem em torno de roteiros
cujos entrechos se repetem indefinidamente de filme a
filme, sem qualquer proposta de originalidade.
Se os homens de Roulien interagem no espaço de uma
“distância hierárquica”, funcional e conveniente à indústria,
os de Olympio Guilherme são elementos intrínsecos do
conflito de classes. Ao redor da organização hollywoodiana,
imperam as intrigas que trazem alívio para o ressentimento
dos “desqualificados” ante os famosos; existe um submundo também articulado economicamente (com um jornalzinho de fofocas que dá voz à categoria dos figurantes), que
engendra um subsistema habitado pela estrela decadente,
o jornalista sem escrúpulos, as starlets de cabaré, o gigolô
e o tipo, que não é o astro, mas aquela figura “intermediária,
que pode ser reconhecida entre os atores principais e a
massa indecisa das sombras que se movem ao ‘fundo’ ” (p.
122), aqueles que assumem um papel e o repetem a cada
película, até incorporar o personagem estereotipado das
telas no seu próprio dia a dia.
A tentativa de maior fôlego analítico, baseada na anteposição
entre as duas figuras femininas, faz com que fraqueje a
apresentação mais “política” dessa realidade “inventariada”,
pois Olympio Guilherme termina por colocar a realidade
numa divisão esquemática do bem contra o mal, na qual o
real de certa forma parece domesticado pela ficção “barata”
de Hollywood. Boa parte desse esquematismo provém de
uma “angústia” individual, como reconhece logo de início o
personagem Lúcio Aranha, ao confessar sua fraqueza diante
do mundo competitivo. É filho de fazendeiro, criado por um
tio em razão da morte do pai, obediente à mãe, educado por
jesuítas que lhe deram “duas graves imperfeições: a falta
absoluta de iniciativa e a submissão” (p. 24). Mas, ao abando-
nar a vida de jornalista para procurar a glória em Hollywood,
não perde o orgulho da origem social e da estirpe familiar,
oscilando entre o sonho da fama, a dificuldade no cumprimento do sonho e a agudeza do olhar do “fracassado” que
espia criticamente o mundo sonhado. Nessa sistemática
oposição entre desejo e realidade, o leitor sai do “possível
real” para adentrar na tipologia do melodrama. Abandona-se
a análise mais aprofundada das contradições da realidade,
da vida social, do embate homem-trabalho, para permanecer no imaginário de “uma pedagogia do certo e do errado”,
em que ganha corpo a moral, conforme as palavras de
Ismail Xavier. O que predomina é a virtude da vítima que
denuncia a ganância e a decadência dos poderosos estabelecidos na indústria.
todos os valores humanos encontram sua justa cotação
desde que se tornem necessários” (p. 85). Roulien também
defende posturas estéticas bastante claras, em contraposição à caricatura que Guilherme apresenta dos roteiristas
(pp. 247-259). As críticas ao convencionalismo hollywoodiano
são frutos das “elites cerebrais de todos os países” (p. 157),
que não entendem que o “cinema é uma diversão popularíssima e que deve procurar agradar, por isso mesmo, a um
público superficial e refratário às elucubrações nebulosas
da câmera” (p. 158). Os filmes americanos filmam o “clarão
de felicidade” (p. 160), que o público localiza no happy-end,
e exercitam o “milagre da universalização psicológica” (p.
158) pelo qual os personagens podem ser os mesmos em
qualquer ambiente, país ou época.
Do mesmo modo, uma espécie de bom sentimento piegas
mantém preso à moralidade provinciana o personagem
de Olympio Guilherme, que se poupa diante do leitor, negando assumir romances escusos para arrancar dinheiro,
e aceitando a ajuda da dona do jornalzinho, até então
desenhada com ares de vilania, para redimi-lo de seus
pecados. Isso retira a fúria anunciada pelo prefácio, pois
o personagem, enquanto foco da narração, não descobre
nem vivencia o seu embate racional e político com a cidadela do cinema; pelo contrário, ao enunciar repetidamente
sua fraqueza, exibe avanços e recuos motivados ora pela
necessidade de conquistar o amor da dublê de Greta Garbo, ora pelo desconsolo de estar inserido num lugar onde
impera a sordidez. Se, para o narrador, Hollywood é “um
planeta diminuto (…) que brilha como um fósforo e pensa
que ilumina o mundo inteiro”(p. 57), a ação do personagem
– permanecendo num frenesi interminável de expectativa
e frustração – indica exatamente o oposto: Hollywood é
o farol do mundo. A ponto de um extra se gabar de, na
única cena de um filme em que aparece, ter permanecido
“quase em foco” (p. 68).
As idas e vindas do personagem de Olympio Guilherme,
entre a ação da vontade e a obsessão – substrato masoquista que muitas vezes sustenta o elemento melodramático
– possuem uma condição básica de existência que o livro de
Roulien consegue explicar com mais ênfase. Existem as fãs
(um grau a mais nos limites do “público superficial” de que
nos fala Roulien) e é em nome delas, ou melhor, em nome
do que elas representam para os atores, que o mundo de
sonho e de deslumbramento faz sentido e do qual é quase
impossível escapar, a não ser pela via de um conservadorismo puritano e de uma ânsia familiar que alimentam o melodrama comum. No romance de Olympio Guilherme, seu personagem cede à primeira tentação de abandonar Hollywood
por conta da cartinha de uma fã caipira que se confessa
“sincera admiradora do (…) talento artístico e soberba beleza
física masculina” (p. 144) do ator, atributos intuídos por quem
o viu apenas por uma fotografia na revista Cinearte.
Ao contrário dessa nomeação de vítimas declaradas, Raul
Roulien fotografa a indústria hollywoodiana com as lentes
de uma comédia romântica, de um “telefone branco” (com
a devida dose de voyeurismo que o seu leitor deseja),
mas tem dela, paradoxalmente, uma visão antirromântica porque pragmática, sugerindo que o livro fosse uma
resposta ao romance de Guilherme: “Hollywood tem sido
apresentada ao mundo como um lugar de injustiças e
de sofrimento, como uma terra de senhores feudais e de
escravos. Considero essas lendas menos uma vingança dos
despeitados do que um erro de visão” (p. 83). “A minha experiência pessoal me convenceu do seguinte: em Hollywood
Na visão de Guilherme, o fã justifica a existência do astro
e o astro existe em função do desejo do fã. Na postura
pragmática de Roulien, porém, o fã é também o “precioso
termômetro da popularidade” (p. 173), pertence à escala econômica de Hollywood e ocupa um outro extremo
da pirâmide social que sustenta a indústria. Ele chega a
transcrever oito cartas recebidas (pp. 176-194), demonstrando sua rendição a essas demonstrações de estima,
que recompensam não apenas o sonho narcisístico do ator,
mas também o trabalho árduo (p. 174) e a recompensa
monetária que não vem, é claro, do dinheirinho miúdo com
que os extras do livro de Guilherme sobrevivem.
O romantismo de Olympio Guilherme diz que são os fãs
que mantêm acesa a chama da vontade de triunfar e escamoteia assim outro real motivo dessa busca insaciável.
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Roulien, mais preciso, aponta para o elemento que permite a construção da fama e serve como prova do triunfo não
apenas artístico mas financeiro: o contrato! Transcreve
então em 26 páginas o acordo jurídico que firma com a
Fox Film Corporation em 06 de junho de 1931 (pp. 85-111)
– pois ele é a prova decisiva, para o leitor brasileiro, para
os fãs, de seu sucesso no exterior. Com a explicitação
impressa, e que se torna pública, de seu contrato, Roulien
alcança mais contundência que a ficção de Olympio
Guilherme. Por meio dele, o leitor fica sabendo do poder
absoluto do produtor, que “adquire o direito exclusivo de
utilização e propriedade sobre os serviços profissionais do
artista” (p. 93) e também sobre a sua vida pessoal: “caso o
artista (…) se comporte de maneira a que seus atos redundem em desrespeito às leis (…), em ofensa à decência (…),
ou contribua para ridicularizá-lo (…), poderá o produtor (…)
cancelar o contrato” (p. 101).
Roulien reconhece que “o rigor dos contratos (…) parece
à primeira vista excessivo e quase humilhante” (p. 77),
mas defende, em seu pragmatismo, a necessidade do que
chama “contratos fortes”, com cláusulas “perfeitamente
lógicas e humanas” (p. 77), em que o artista está à disposição total do produtor, num compromisso funcional que
implica inclusive na intervenção cirúrgica para correção
das suas orelhas de abano (p. 109), a fim de que não seja
prejudicado o “vultoso empate de sabedoria, de dinheiro
e de trabalho” (p. 78). Por vias transversas, ao aceitar a
equiparação do artista à mercadoria industrial, o livro de
Roulien acaba por dar subsídios reais às fundamentações
ficcionais de Olympio Guilherme. A função industrial de
Hollywood no interior da economia norte-americana se
articula nessa intersecção de ideias.
Um único ponto não sofre discordância. Guilherme descreve com riqueza de pormenores a maneira de ação dos
órgãos de imprensa na manipulação de fatos visando as
notícias mais “quentes”. Roulien não poupa a imprensa,
cujo “veneno extravasa das colunas dos jornais amarelos” (p. 142), tudo em nome de uma hipocrisia social que
se delicia com as “pequenas” transgressões das leis da
decência convencional (p. 137). Agora é a vez de Roulien
denunciar, por temer a ação nefasta dos mexericos diante
do moralismo pequeno-burguês do produtor e do público,
enquanto Olympio Guilherme, ao encadear a distorção dos
fatos, demonstra que boa parte dessa distorção é fruto do
departamento de publicidade dos próprios estúdios, quando
cria um fato escandaloso ou abafa o escândalo de um fato.
Diva Tosca, atriz sem sucesso e esposa de Raul Roulien, no
mesmo ano (1933) em que o marido publica seu livro no
Brasil, é atropelada pelo carro do playboy John Huston, filho
do astro Walter. Em sua biografia, o futuro grande diretor
de cinema declara não estar bêbado “naquele dia” e que a
pobre moça, ao desviar de outro veículo, não conseguira
escapar do seu. Diz também que, por causa da publicidade
desfavorável, foi processado por um júri popular, mas o
testemunho de um suposto homem a quem deu carona
quadras antes do acidente conseguiu inocentá-lo: “Ninguém
tocou mais nesse assunto”, deixando a entender que o departamento de publicidade soube resolver a contento a delicada questão. Qualquer que seja a verdade, Diva Tosca foi
vítima da velocidade e do mecanicismo – marcas de uma
modernidade que aproximam irônica e dramaticamente a
indústria automobilística da indústria cinematográfica.
Na época de publicação de seu livro (1932), Guilherme Olympio já está de volta ao Brasil. Escrevera, alugara equipamentos, pagara equipe técnica e dirigira, provavelmente graças
ao dinheiro que como ator recebera de seu contrato com a
Fox, o filme Hunger (Fome), uma produção independente de
1929, citada por alguns como pioneiro docudrama em plena
erupção da Grande Depressão econômica. Também aproveitara o tempo para estudar economia e aperfeiçoar-se no
jornalismo especializado dessa área. Nos anos posteriores,
escreve livros sobre os Estados Unidos e a União Soviética,
participa da campanha pela criação da Petrobras e dedica-se ao rádio como comentarista político. Morre em 1973,
“sempre elegante na apresentação pessoal e no trato com
as pessoas, e um ar contagiante de homem feliz”, segundo
os dizeres do escritor José J. Veiga.
Raul Roulien cumpre o contrato com a Fox até 1935, que
não sofre renovação, e retorna nessa época ao Brasil, em
companhia de Conchita Montenegro, estrela de magnitude
semelhante à sua, com quem se casara. Fizera com grande
êxito Voando para o Rio, ao lado de Ginger Rogers e Fred
Astaire, e em 1947 atuaria nos Estados Unidos como ator
convidado em A Caminho do Rio. No Rio de Janeiro, trabalha
como jornalista. Como diretor de cinema tenta realizar Asas
do Brasil (1940) e Jangada (1948-49), ambos perdidos num
incêndio antes de prontos, deixa inacabado Maconha, erva
maldita (1950), mas lança Grito da Mocidade (1936) e Aves
sem ninho (1939); dedica-se novamente ao teatro (década
de 1940), conduz programas de rádio (anos 1950) e atua na
televisão a partir da década de 1960. Morre em 2000, contabilizando 16 filmes como ator em Hollywood.
Resta uma última pergunta: o que existe de verdade
autobiográfica entre a ficção de Olympio Guilherme e a reportagem de Raul Roulien? Muito e pouca coisa ao mesmo
tempo. Otto Friedrich, ao analisar a Hollywood dos anos
1940, afirma que é necessário sempre lembrar “que as
pessoas de Hollywood viveram e ainda vivem num mundo
de fantasia e estão acostumadas a inventar coisas, a mentir e a exagerar – e a acreditar em todas as suas mentiras e
exageros.” Onde fica a verdade, então?
Referências
FRIEDRICH, Otto. A cidade das redes: Hollywood nos anos 40. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.13.
GUILHERME, Olympio. Hollywood: novella da vida real. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, 1932. 315 p.
HUSTON, John. Um livro aberto. Porto Alegre, São Paulo: L&PM,
1987. p.76.
PRADO, José Maria do. Foi, viu e não venceu. In: D.O. Leitura, São
Paulo, ano 2, n. 17, out. 1983, p. 13.
ROULIEN, Raul. A verdadeira Hollywood. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1933. 199 p
VEIGA, José J. Brasileiros em Hollywood (não fizeram carreira). In:
Nicolau, Curitiba, ano IX, n. 57, 1995 [?], p. 30.
XAVIER, Ismail. Melodrama, ou a sedução da moral negociada. In:
Novos Estudos CEBRAP, n.57, jul. 2000, p. 85.
Talvez nas entrelinhas de documentos e nas confrontações
de pontos de vista. Para apresentar Hollywood sob o ponto
de vista brasileiro, Roulien e Guilherme são ambos bons
observadores. Roulien involuntariamente desenha a linha
de produção fordiana que anima a indústria cinematográfica de Hollywood. Guilherme, nas bordas, registra a indústria de fornecimento de peças até o pátio de montagem da
produção propriamente dita. Belos documentos históricos.
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70
ensaio
O álbum de fotografias
de Walter Benjamin
Bernd Stiegler
Professor de Literatura Alemã Contemporânea
da Universidade de Constanza, Alemanha
“Há uma delicada empiria, que se torna intimamente idêntica com o assunto e se transforma assim na própria teoria.”
Goethe citado por Benjamin (p. 311)1
“(...) buscar aqui e agora, nesta imagem, o mínimo vislumbre de acaso, pelo qual a realidade simultaneamente destruiu o
caráter de imagem. Encontrar o lugar insignificante, no qual, na origem desse minuto há muito passado, o futuro ainda hoje e
tão eloquentemente se aninha, de modo que nós, retrospectivamente, possamos descobri-lo.” (p. 303)
Imagens e livros
1) O álbum teórico de fotografias de Walter Benjamin não
contém muitas fotografias e sua biblioteca fotográfica,
apenas poucos livros. Isto é sem dúvida surpreendente,
pois os textos sobre fotografia de Benjamin estão indiscutivelmente entre as poucas obras canônicas da teoria de
mídias e fotografia ainda relativamente recente. Ao buscar
nas Obras reunidas fotografias explicitamente reproduzidas ou citadas, mal se encontram imagens: são mencionados ou reproduzidos os retratos de Schelling, Dauthendey e Schopenhauer, assim como da vendedora de peixes
de New Haven e um de Robert Bryson, que são de Hill; o
retrato de Kafka criança e sua própria fotografia retirada
da Infância berlinense; os retratos de Sander de um padeiro e de um deputado, uma fotografia da Vierge Sage de
Estrasburgo, assim como diversas tomadas de Blossfeldt,2
de Atget 3 e Krull4; e, por fim, são citadas ou reproduzidas
fotografias de Westminster, Lille, Antuérpia e Breslau,
não especificadas em detalhes, que foram publicadas nas
revistas de vanguarda Bifur e Variété. Outras ainda – como
os retratos de Disderi – são apenas mencionadas de passagem e não apresentam exemplos concretos.
Um quadro semelhante verifica-se para a literatura sobre
a história da fotografia que, tal como Benjamin ressalta em
sua resenha sobre a obra de Gisèle Freund, ainda se encontra nos primeiros estágios de desenvolvimento. “Há oito
ou dez anos”, consta na resenha de 1938, “iniciei a pesquisa
da história da fotografia.” Em outras palavras: a Pequena
história da fotografia de Benjamin, publicada em 1931 no
Literarischen Welt, pertence, segundo constata seu autor
post hoc, aos trabalhos pioneiros do gênero, e Benjamin
é um dos primeiros a sondar este campo praticamente
inexplorado. Que picadas são abertas por Benjamin no
matagal da história da fotografia, que por esta época já
contava pelo menos com quase cem anos e produzira inúmeros livros e imagens? E que tipo de biblioteca Benjamin
organizou como cicerone para esta viagem de descoberta
no continente ainda pouco conhecido da fotografia? Ao se
organizar uma segunda lista com todos os textos citados
por Benjamin, que se relacionam com a fotografia, essas
poucas fotografias correspondem aqui sucintamente a
trinta livros de diferentes tipos.
Primeiramente os livros que hoje são os incunábulos da
fotografia de vanguarda: Die Welt ist schön [O mundo é belo]
revista da cinemateca brasileira
71
O álbum de fotografias de Walter Benjamin
72
(239, 337) de Renger-Patzsch, que logo é aplicado em vários textos e serve como exemplo do lado sombrio da arte
moderna [der Moderne], como também do lado iluminado,
que se irradia em Urformen der Kunst [Formas originais
da arte] de Blossfeldt, Antlitz der Zeit [Fisionomia do tempo]
de August Sander e Malerei, Photographie, Film [Pintura,
fotografia, filme] de Lászlo Moholy-Nagy. Acrescentam-se
aqui as já mencionadas revistas Bifur e Variété, o romance
Nadja de André Breton, onde estão reproduzidas algumas
fotografias, e o artigo de Louis Aragon, John Heartfield et la
beauté révolutionnaire.5 Em segundo lugar, na bibliografia
de consulta de Benjamin sobre fotografia, encontram-se
alguns livros sobre história da fotografia, ensaios e livros
ilustrados de Bossert e Guttmann, Camille Recht, Heinrich
Schwarz, Erich Stenger, Jean Loize, Wolfgang Schade, Georges Besson e Dolf Sternberger,6 o livro de Gisèle Freund,
em três versões7, e, finalmente, em terceiro lugar, as fontes
do século XIX: Benjamin cita com mais ou menos pormenores Arago, Lemercier, Disderi, Figuier, Liébert, Baudelaire, Wiertz, Gautier, Nadar, as fotografias pictorialistas de
Matthies-Masuren e Lichtwark e, é claro, também aquele
famoso texto, que se supõe vir do Leipziger Anzeiger [Noticiário de Leipzig], cuja proveniência, por outro lado, advém
possivelmente da pena de Dauthendey.8 Juntam-se a estes
alguns outros poucos textos como, por exemplo, observações de Brecht e Kracauer, o artigo Sobre fotografia9, de
Emil Orlik, ou textos de Valéry que tratam da fotografia.
Ao examinar estas duas listas, chama a atenção o fato de
que Benjamin se dedica claramente tanto ao campo da
fotografia quanto ao dos textos. Essas listas mostram que
Benjamin, em relação às fotografias, se concentra de um
lado em retratos, mas, de outro, em despovoadas fotografias de vanguarda, fotografias de pátios, passagens e
tomadas de detalhes. À fotografia científica faltam, porém,
tanto as tomadas topográficas, as fotografias de viagem ou
também, o que teria sido perfeitamente possível em face
do temperamento teórico de Benjamin, a fotografia espiritista, como a fotografia de amador e a fotografia pictorialista, que se torna importante e só é mencionada à margem e
sem qualquer indicação nominal.
O mesmo também vale para os livros escolhidos: enquanto
as obras sobre a história da fotografia atentam para algumas das mais importantes publicações da época – com
algumas omissões e uma orientação muito centrada na
Europa – e o mesmo ocorre também com a fotografia de
vanguarda, mas o inventário da literatura do século XIX
permanece estranhamente lacunar. Muitos dos textos
acessíveis em sua época, que hoje em dia estão reunidos
em diversos Reader (como, por exemplo, os mais conhecidos de Wolfgang Kemp e André Rouillé), faltam na íntegra –
e isto também vale para a tradição francesa, que, aliás, é a
única a aparecer em Benjamin. Nenhuma das revistas que
dizem respeito à fotografia é por ele citada, raramente uma
das monografias, nem mesmo um único dos inúmeros
manuais, restringindo-se em grande parte às fontes exploradas por Gisèle Freund.10 Isto é realmente notável – não
para acusar Walter Benjamin de uma pesquisa lacunar,
porém muito mais em razão das acentuações claramente
assumidas, que, de modo análogo à escolha das imagens
para um álbum de fotografias, estabelecem relações, sondam constelações e procuram apresentar relações entre
a tradição e a interpretação. Como lê Benjamin estas fotografia e textos e qual(is) a(s) história(s) dela(s) derivada(s)?
Técnicas da cultura
A Pequena história da fotografia realiza, após pouco mais de
cem anos de história da fotografia, um primeiro inventário
deste campo imenso já na sua época, mas ainda pouco
delimitado, ou talvez até mesmo cartográfico. A citação de
Moholy-Nagy, em lugar de destaque em seu ensaio, assim
como em sua resenha sobre Blossfeldt, pode ser entendida
como um programa teórico e uma tomada de posição:
As fronteiras da fotografia não podem ser previstas. Aqui tudo ainda é muito novo, de modo que até
mesmo a busca já conduz a resultados produtivos.
A técnica é o seu guia natural. O analfabeto do futuro
não será aquele que desconhece a escrita, mas sim
aquele que desconhece a fotografia. (p. 294)
Na Pequena história permanece apenas a última frase e,
com ela, a pergunta da legibilidade da fotografia. Esta será a
pergunta central de todos os seus textos e reflexões sobre a
fotografia.11 Como podem ser lidas as fotografias? A leitura
de fotografias torna-se uma nova técnica da cultura, necessária para compreender, interpretar, decifrar o presente, ou,
formulando de modo mais enfático, para se reconhecer os
sinais da época. A cultura dos modernos permanecerá incomunicável para aquele que não for capaz de ler fotografias,
interpretar a enchente de imagens como fenômeno natural
e não cultural, para quem as fotografias nas revistas ilustradas se apresentam como prova irrefutável do representado
e não como resultado de uma codificação cultural. Como
surge, então, uma técnica cultural que possibilite que estas
novas imagens técnicas sejam compreendidas? O que é
necessário para isto? E como se pode isolar esta de outras
técnicas culturais para então poder representá-la e, no melhor sentido, torná-la pedagogicamente utilizável?
Nesta perspectiva interpretativa, a teoria do álbum de
fotografias de Walter Benjamin é uma espécie de cartilha
ilustrada da fotografia, que objetiva aproximar e ensinar
o observador a ler fotografias. Poder-se-ia assim considerar sua própria busca histórica como transferência do
teorema de Moholy-Nagy para a história. Em Benjamin, a
busca também conduz a resultados produtivos e a técnica
é igualmente sinalizadora de caminhos – mesmo quando a sondagem coloca menos peso nas descobertas na
câmera escura e muito mais nas no âmbito da história.
Enquanto em Moholy-Nagy experimentos fotográficos
completamente distintos como, por exemplo, o trabalho
com perspectivas extremas, o fotograma e a solarização,
produzem um novo olhar e devem antes de tudo revelar o
mundo objetivo, em Benjamin o olhar retrospectivo para a
história da fotografia serve para perfilar o novo olhar como
técnica cultural nova, para só então poder compreender as
imagens produzidas. Trata-se, para ele, de um novo olhar
sobre a história e o presente. Não basta produzir as imagens, também é necessário conseguir ler estas imagens.
Não é suficiente proclamar um novo olhar, se este não vier
acompanhado de uma nova leitura. Ou nas palavras da
Pequena história da fotografia, não sem ambivalência em
relação à máxima de Moholy-Nagy: “O fotógrafo que não
consegue ler suas próprias fotografias deve ter menos
valor que um analfabeto?”
A pergunta sobre a legibilidade das novas fotografias,
sua gramática e semântica, encontra-se em inúmeras
publicações por volta de 1930. Muitas delas compreendem-se como verdadeiras cartilhas, que devem ensinar ao
leitor a nova linguagem da fotografia e do filme, que com
frequência são aqui tomadas paralelamente. Assim,
muitas destas publicações mostram em imagem e texto
quais regras desta nova arte fotográfica são passíveis
de serem aprendidas; o significado que têm o horizonte
e a série; o papel da perspectiva ou do tempo de exposição à luz; quais as possibilidades da câmera escura e
as descobertas a serem ali realizadas. Assim, quando se
pensa, por exemplo, em manuais como Es kommt der neue
Fotograf! [Viva o novo fotógrafo!], Foto-auge [Olho fotográfico], Filmgegner von heute – Filmfreunde von morgen
[Inimigos do filme hoje – Amigos do filme amanhã], Malerei
[Pintura], Fotografie [Fotografia], Film [Filme] ou ainda, para
se tomar aqueles volumes fotográficos pertencentes a
outro espectro político, os organizados por Ernst Jünger –
e aqui em especial Veränderte Welt [Mundo transformado]
–, mostra-se que o Novo Olhar também vinha munido de
um rigoroso Eros pedagógico, que de modo muito diverso
iniciava uma didática da fotografia como nova arte do desenho, mas também do signo, da fotografia regulada. Além
destes, poderiam ser acrescentados ainda inúmeros livros,
que hoje se encontram à sombra das gigantescas obras de
vanguarda, mas que, em sua época, faziam muito sucesso
e, em muito sentidos, tanto prática quanto pragmaticamente, efetivavam aquilo que de outro modo era vindicado nos
gestus revolucionários: manuais e materiais de autores
como Windisch, Croz ou Wolff, que em sua época atingiam
grandes tiragens e contribuíram decisivamente para que a
fotografia amadora pictorial dominante acolhesse e realizasse os impulsos da vanguarda.
Ao acoplar em sua Pequena história a pergunta da legibilidade da fotografia àquela da legibilidade através dos
fotógrafos, trata-se para ele de munir o Novo Olhar com um
índex histórico e dar-lhe uma história e, com o auxílio desta,
determinar as regras da linguagem fotográfica, a gramática
das imagens. Enquanto a fotografia de vanguarda se apresenta expressamente como a-histórica, o que, em última
instância, se mostra no fato de que muita coisa é alardeada
como descoberta nova, como Novo Olhar, quando há muito
já existia (assim a fotomontagem, o fotograma, a solarização
ou também as novas perspectivas), Benjamin se apresenta
expressamente como histórico, na medida em que, em
geral, ele forra a fotografia do presente e do Novo Olhar com
uma história, acrescentando-lhe uma segunda camada
histórica, através da qual, antes de tudo, se pode ver aquilo
que o Novo Olhar oferece para ver. E enquanto a fotografia
de vanguarda elimina o sujeito em favor de uma descoberta
autêntica de uma suposta realidade objetiva visível (quando
se pensa, por exemplo, nos textos programáticos de Moholy-Nagy ou de Rodtchenko, mas também nos artigos de Albert
Renger-Patzsch, muito criticado por Benjamin), trata-se em
Benjamin de uma oscilação peculiar entre sujeito e objeto, na
qual a fotografia de modo particular é definida como meio.
Benjamin desloca – assim se poderia resumir a sua estratégia exegética, a lógica do arranjo de seu álbum de fotografias – a pergunta da técnica cultural do presente para a
história, do objeto ao sujeito da averiguação e, finalmente,
da cultura à técnica, que contribui de modo determinante
para tornar a primeira acessível. Pretendo recapitular estes
três passos e, ao mesmo tempo, colocar a pergunta sobre
a legibilidade: o que se torna perceptível no momento em
revista da cinemateca brasileira
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O álbum de fotografias de Walter Benjamin
74
que aprendemos a ler fotografias como técnica cultural?
Quais signos saltam aos olhos, quais figuras importam e
quais constelações surgem diante do olho decifrador de
fotografias? O que a fotografia oferece para ler na história e
no presente?
História da fotografia como história
de uma técnica cultural
Em Benjamin, a questão da fotografia como técnica cultural transforma-se, no correr desta perspectivação histórica, na pergunta sobre sua história: qual história da técnica
cultural – assim se poderia formular melhor a questão
– se deixa apresentar com base na história da fotografia? E
mais: desenvolveu a fotografia técnicas culturais especiais
e, para além disso, é ela um indicador para determinadas
mudanças culturais?
Mesmo quando Benjamin não fala em “técnicas culturais”,
inúmeros textos tratam de gestos, ações ou operações que
podem ser vinculados a este conceito. Penso, por exemplo, nas suas reflexões sobre a interpretação do signo e
sobre o ler, o colecionar ou o contar. Às vezes esses textos,
em geral extremamente especulativos, partem de observações concretas do cotidiano, de detalhes. Na obra de
Baudelaire há, por exemplo, um excerto mais extenso para
uma suposta descoberta marginal: a invenção do palito de
fósforo. E também aqui Benjamin toma o palito de fósforo
como princípio para lançar uma ponte com a fotografia,
para determiná-la novamente como evolução de uma nova
forma de temporalidade e, ao mesmo tempo, firmá-la como
prenunciadora de conhecimentos, que seriam essenciais
na moderna metrópole. O fósforo ilumina uma constelação
histórica extremamente rica de implicações. Para Benjamin,
trata-se também da identificação de técnicas culturais, que
estão ligadas às inovações técnicas, mas servem menos ao
tratamento de novos equipamentos do que à superação das
modificações por elas evocadas.
Com a descoberta do fósforo, por volta da metade do
século, surge uma série de inovações, que tinham em
comum o desencadeamento de inúmeras evoluções
por meio de um movimento abrupto. O desenvolvimento se realiza em muitos campos e torna-se visível, dentre outros, por exemplo, no telefone, no qual
o constante movimento, através do qual a manivela
dos velhos aparelhos era manejada, é substituído
pelo levantar de um fone. Sob os incontáveis gestos de
ligar, introduzir, moldar, etc. o ‘clique’ do fotógrafo foi
especialmente bem sucedido. Bastava a pressão de
um dedo para fixar um acontecimento por um tempo
indeterminado. O aparelho concedeu ao instante, por
assim dizer, um choque póstumo. Experiências táteis
desta sorte se colocaram ao lado das óticas, como
as incluídas na seção de anúncios de um jornal, mas
também no tráfego nas grandes cidades. Mover-se através dele pressupõe para o indivíduo uma
sucessão de choques e de colisões. Nos pontos de
cruzamento perigosos vibram nele, tal como impulsos de uma bateria, inervações em sequência rápida.
Baudelaire se refere ao homem que se dissipa na
multidão como em um reservatório de energia elétrica. Mantendo-o circunscrito à experiência do choque,
denomina-o logo em seguida ‘um caleidoscópio, que
é dotado de conhecimento’. Quando os transeuntes
em Poe ainda lançam olhares aparentemente sem
fundamentos para todos os lados, os passantes dos
dias atuais necessitam fazê-lo para se orientarem em
relação aos sinais de trânsito. Deste modo, a técnica
subjugou o sensório humano a um treinamento de
arte complexa. (I, p. 621)
À primeira vista, esta estratégia de argumentação também
parece assemelhar-se àquela de Moholy-Nagy e de outros
teóricos da vanguarda, que haviam marcado na fotografia
uma espécie de campo de exercício neutro dos sentidos,
no qual o cotidiano ameaçador e o “instante perigoso”
poderiam ser simulados. Segundo Moholy-Nagy, que
representa boa parte da teoria de vanguarda, a fotografia
serve para um treinamento da percepção, que contribui
para a boa forma física no dia a dia e que, por conseguinte,
também deve se adaptar às exigências da cidade grande
com todas as suas mudanças técnicas e culturais: a fotografia, a fototipia e a montagem fotográfica devem colocar
em prática, também visualmente, fenômenos como
aceleração, simultaneidade ou multiperspectivismo, pois
somente assim poderão mover por sua vez o observador,
transferi-lo para um espaço estético, que objetiva não só
representar estes fenômenos, mas também torná-los,
enfim, acessíveis dissimuladamente através da tradição. A
fotografia, segundo Moholy-Nagy, busca retransfigurar a
estética na aisthesis e cultivar novas técnicas de percepção.
Neste modelo, a história se reduz ao momento, que já é
apresentado como tão complexo que exige um treinamento especial de percepção. E, além disso, a fotografia
deve tão somente anatematizar em imagens o presente;
enfim, deve, antes de tudo, torná-lo visualmente acessível
e disponível para a percepção humana.
De um lado, Benjamin desloca – e isto deve soar para a vanguarda como provocação – este cenário de ruptura para o
século XIX, para então dar também outro índex à temporalidade. Para ele, trata-se menos de selecionar do processo
temporal o momento, o instante, a presença, de explorar o
presente e nele vislumbrar a conquista histórica da fotografia, mas muito mais de sondar e diferenciar a nova constelação temporal complexa, que somente se dá por meio
da fotografia. A técnica cultural da fotografia, o ‘clique’ do
fotógrafo, não conduziu simplesmente a tomadas instantâneas, que poderiam ser então contempladas e, possibilitar
a visão do mundo com outros olhos, mas, em geral, levou a
um deslocamento da temporalidade do momento e a uma
postura transformada do sujeito, que realiza estas tomadas
ao pressionar o disparador. O ato de disparar o aparelho
de fotografia é um ‘gesto consequente’ que, pode-se dizer,
também disparou mudanças culturais duradouras. A técnica
cultural da fotografia exige uma nova fixação da temporalidade, assim como da relação do sujeito com seu meio
ambiente e com sua história. O simples ‘clicar’ da câmera
conduz a uma nova ordem das imagens, da história e da relação do sujeito com elas e com as coisas à sua volta. Quando se considera a fotografia como técnica cultural e como
aquela que desencadeia uma série de acontecimentos por
meio de um movimento, o momento histórico mostra que
ela não é apenas uma realização histórica ou uma inovação
técnica, mas que, enquanto técnica cultural, modificou a cultura como tal. Ao se apontar para a fotografia como técnica
cultural, abre-se um olhar para as mudanças da história, da
memória [gedächtnis] e da recordação [erinnerung]. Quando
Benjamin, em sua interpretação de Baudelaire, combina
uma relação da fotografia com a memória e a recordação,
trata-se para ele da determinação de uma constelação tanto
histórica quanto teórica. Sob a diferenciação superficial entre
fotografia e arte, que Benjamin repreende em diversos trechos de seus textos, dissimula-se, por um lado, uma história
da percepção e, por outro, da memória, da recordação:
A grande perplexidade de Baudelaire, através da
daguerreotipia, recomenda o exame das relações,
que, de um lado, predominam entre a fotografia e
a experiência do choque e, de outro, entre a arte e a
memória. A fotografia e as técnicas posteriores, que
permitem fixar imagens autênticas de um acontecimento e reproduzi-lo a qualquer hora, satisfazem
uma necessidade de informação, que corresponde à
memória voluntária (mémoire volontaire). O desejo
– cuja realização a obra de arte se atribui – permanece retido na mesma e se alimenta da memória (da
mémoire involontaire). Seus dados se reúnem sob o
conceito de aura. (I, p. 1187)
Esta diferenciação entre memória e recordação, fotografia
e arte, experiência do choque e percepção de duração, a
aura e um procedimento fotográfico que objetiva a reprodução, compõe o esquema que se encontra em uma forma
um pouco modificada e com mais elementos também no
capítulo sobre a obra de arte e que, na Pequena história da
fotografia, serve para a distinção entre as diversas fases. Lá
a narração histórica um tanto grotesca da “ascensão e queda” da fotografia, de uma “época de apogeu” pré-industrial,
de uma decadência como procedimento análogo à indústria
e de uma fotografia contemporânea, que só vive do e para o
instante, sucede a estas diferenciações fundamentais.
À primeira vista tem-se a impressão de que a fotografia
deve ser necessariamente adjudicada ao lado da recordação
e da reprodução e não da memória e da arte. Contudo, num
sentido mais preciso, esta constelação mostra-se mais
complexa e as delimitações históricas mais permeáveis do
que se supunha. Assim, passa-se a levar em conta o sujeito,
que, de modo sutil, está envolvido no processo fotográfico.
Sujeito e objeto da fotografia
Em um dos fragmentos do volume VI das Obras reunidas
encontra-se a notícia, datada dos anos 1920, segundo o organizador, de que mais uma vez há comparação entre a concepção de arte de Baudelaire e a fotografia, a leitura de fotografias:
Uma imagem para descrever a concepção de Baudelaire das coisas. Façamos uma comparação do tempo
de um fotógrafo – o tempo mundano de um fotógrafo,
que fotografa a essência das coisas. Segundo a
natureza deste tempo mundano e do seu aparelho,
ele obtém, todavia, apenas o negativo da essência
sobre a placa. E ninguém consegue ler estas placas,
ninguém consegue deduzir do negativo da essência,
tal como o tempo mostra isto das coisas, a verdadeira
essência, tal como é. E o elixir do desenvolvimento é
desconhecido. Aí está Baudelaire: também ele não
possui a aquavita, na qual estas placas precisam ser
banhadas, para mostrar a imagem verdadeira. Mas
ele, somente ele, com um esforço infindável do seu
espírito, é capaz de ler estas placas. Somente ele é capaz de obter do negativo da essência uma ideia de sua
imagem. E, a partir desta ideia, o negativo da essência
fala em todos os seus poemas. (VI, p. 133)12
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Aquilo que para a poética de Baudelaire está aqui formulado
como metáfora de uma placa fotográfica, aparece na Berliner
Chronik [Crônica de Berlim] transposto para a autografia e
a teoria da recordação. A poética fotográfica de Baudelaire
torna-se então a autobiografia fotográfica de Benjamin. Neste
esboço, a recordação é captada na imagem de uma “placa
fotográfica da recordação”, na qual o tempo de exposição à luz
estabelece o tempo de vida. As fotos de recordações assemelham-se a fotografias, que esta placa fixou. Em razão do
longo tempo de exposição à luz, elas são – assim poderia ser
entendido este trecho – necessariamente difusas e desfocadas. A estas fotografias acrescentam-se outras, pois Benjamin
constata, além disso, o afloramento repentino de fotografias
de recordação: estas são, assim deveriam ser definidas,
fotografias da memória que, em razão do curto tempo do obturador, são particularmente ricas de contornos, nítidas, quase
meticulosas. Há também, como aponta Benjamin, “casos em
que o crepúsculo do hábito da placa privou durante anos a luz
necessária, até que esta um dia explode de fontes desconhecidas como, por exemplo, do pó de magnésio inflamado e,
então, na imagem de uma fotografia instantânea proscreve o
espaço sobre a placa.” O tempo, e não o fósforo, torna-se aqui
espaço, mas certamente o flash do pó de magnésio conduz à
iluminação de imagens na câmera escura do eu, que, assim se
deveria completar, não estão ao alcance da mémoire volontaire,
mas surgem como imagens da mémoire involontaire: como de
mãos desconhecidas, de modo contingente, espontâneo, não
calculado, enfim, de modo repentino. Fotografias de recordação expostas por longo tempo à luz são confrontadas com
fotografias instantâneas da memória, da duração desfocada do
instante invulgarmente claro. Com base no método da duração
da iluminação, a fotografia serve aqui para a diferenciação de
tipos diversos de imagens da recordação, ou seja, da memória.
A leitura de fotografias objetiva, primeiramente, poder dizer de
que tipo de imagens se trata. Enquanto as imagens expostas
durante longo tempo à luz mostram aquilo que há muito é conhecido e que podem conduzir para uma conexão tradicional,
as fotografias instantâneas da memória mostram aquilo que
permaneceu oculto ao olho da recordação. Assim, como nos
estudos de movimento em Muybridge ou Marey se revela repentinamente um novo modo de ver o mundo visível, também
as fotografias instantâneas da memória mostram imagens
que se haviam retirado da percepção: “suas imagens”, como
consta em uma anotação sobre Proust, na qual se estabelece
novamente uma comparação entre fotografia e imagens da
memória: “não surgem por si sem serem chamadas, nelas
trata-se muito mais de imagens, que nunca víamos, antes
de nós nos recordarmos delas.” 13 Ao contrário das imagens
de recordações expostas longo tempo à iluminação, estas
imagens da mémoire involontaire são fotografias instantâneas,
que todavia parecem abarcar toda a vida: elas mostram um
“passado primordial”.
Nestes apontamentos da Berliner Chronik, como se Benjamin
quisesse acentuar que as imagens da memória caem no
reino da mémoire involontaire e, portanto, da indisponibilidade, a teoria da memória enquanto iluminação fotográfica é
associada com a experiência traumática de uma notícia de
morte, que, por sua vez, é posta em paralelo com o “sacrifício
do eu mais profundo”.
Mas no ponto central destas imagens raras estamos
sempre nós mesmos. E isto não é tão enigmático, pois
tais momentos de iluminação repentina são simultaneamente momentos do estar-fora-de-si e, enquanto
nosso eu desperto, habitual, equitativo, se mescla atuante ou padecedor nos acontecimentos, nosso eu mais
profundo repousa em outro lugar e é atingido por um
choque, tal como o pequeno monte de pó de magnésio
pela chama do fósforo. A este sacrifício do nosso mais
profundo eu no choque é que nossa lembrança deve
agradecer suas imagens mais indestrutíveis.” (VI, p. 516)
Estas fotografias instantâneas da memória assemelham-se
a quadros oníricos e mostram finalmente em geral o eu, que
se torna assim o objeto de sua própria observação e iluminação fotográfica. O eu torna-se o objeto, que emerge em uma
imagem e passa, assim, a ser visível.
Em seus textos autobiográficos, mas também em alguns
teóricos, Walter Benjamin procurou desenvolver imagens,
concepções visuais do eu. A experiência mais conhecida
talvez seja a famosa sobreposição do retrato de Kafka
criança, descrito minuciosamente nos apontamentos sobre
ele, mas também na Pequena história da fotografia, com
sua própria foto da Infância berlinense. Ambas descrições
notoriamente diferem apenas em nuances e são encenadas
na verdade como palimpsesto correlato. O retrato de Kafka
criança, sobre o qual até hoje permanece uma incógnita a
respeito de como ele chegou até Benjamin, não é apenas
um “Pendant das primeiras fotografias”, mas também uma
das únicas imagens que, de sua parte, visam outra forma de
transmissibilidade, pois, para Benjamin, na Infância berlinense
não se trata de “traços biográficos” individuais, inconfundíveis,
mas de imagens, que podem em caso ideal “pré-formar a
experiência histórica posterior” e são assim necessariamente
transmissíveis. Aqui também Benjamin destaca a temporalidade inerente na fotografia de Kafka, que, embora pertença à
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época de declínio, é um “Pendant das primeiras fotografias”.
Mesmo que já seja uma fotografia instantânea, ela ainda
assim revela uma postura, que expõe um tempo indeterminado e que também parte de uma longa exposição à luz.
Benjamin utiliza a fotografia como uma espécie de meio de
transmissão, que lhe permite não só associar a poética de
Baudelaire e o retrato de Kafka com a exploração de suas
próprias imagens de memória, mas sobretudo primeiramente viabilizá-la. A legibilidade da fotografia, salientada e
convertida em práxis por Benjamin, decifra, nas imagens e
teorias, constelações históricas, nas quais também se insere
sua própria experiência, que deste modo se torna legível. A
legibilidade da fotografia tem um índice, que se articula pela
sobreposição e exposição dupla [Doppelbelichtung]. Assim
como as fotografias de Blossfeldt expõem um “tesouro
imprevisto de analogias e formas”, do mesmo modo a exposição dupla da fotografia de infância serve a outra forma de
legibilidade, engrena a autobiografia com teoria da história,
história da mídia com teoria da memória e, por fim, uma
imagética [bildwissenschaft] histórica concreta com uma teoria da literatura [literaturwissenschaft]. Todavia, o pressuposto aqui é que o eu se transforme em imagens, se converta
em fotografias. Esta observação supostamente marginal,
de transferência própria de imagens, está intimamente
ligada com o princípio poetológico da Infância berlinense. Lá,
o espaço vazio do sujeito, preenchido pelas coisas ou pela
língua, é a condição da possibilidade de pré-figurar imagens
de experiência histórica. Assim como na Pequena história da
fotografia todas as fotografias do presente, selecionadas por
Benjamin, se caracterizam pelo fato de serem despovoadas
ou então, no caso das fotos de August Sander ou do filme
da Revolução Russa, são “fenômenos sem nome” ou parte
de uma “galeria fisionômica”, também a Infância berlinense
esboça um procedimento narrativo de deixar o sujeito desaparecer na imagem, transformá-lo em meio, que, enfim, faz
emergir as imagens. Eckhard Köhn já descreveu isto como
“concepção de uma obra, que tem como objeto não a vida na
cidade, mas a vida como cidade”, o qual depende da “unidade
entre sujeito e objeto, entre o eu e a cidade”.14 O esvaecimento
na imagem, mostrado paradigmaticamente na passagem
Die Mummerehlen15 no exemplo do pintor chinês, que desaparece no quadro recém-pintado por ele, é, pode-se assim
dizer, o procedimento específico da Infância berlinense, e a
língua, seu meio.16 A legibilidade da fotografia, que também é
ponto central da Pequena história da fotografia, corresponde
aqui à pergunta sobre a legibilidade de narrativas, que se
tornam fotografias.
Quando se correlaciona estas com aquela, segundo a temporalidade específica das fotografias, que tem significado
tanto teórico quanto heurístico para Benjamin, surge então
um quadro complexo. Nos três exemplos – na poética de
Baudelaire, no retrato de Kafka criança e na Berliner Chronik,
ou seja, na Infância berlinense – são apresentadas tomadas
instantâneas com longa exposição à luz, o momento e a
duração engrenados entre si e mostrados em diferentes
imagens fotográficas. Uma diferenciação assim complexa de
conceitos da temporalidade encontra-se também no elenco
da mémoire volontaire, isto é, da involontaire, do choque, do
reconhecimento, da diferença entre experiência e vivência
e, por fim, do conceito de aura que, particularmente no livro
sobre Baudelaire, guia teoricamente os capítulos referentes
a Proust e ao narrador, bem como os textos sobre fotografia.
A pergunta da temporalidade tem assim um significado constitutivo – e isto igualmente para os textos sobre
fotografia. Também aqui Benjamin procura apontar a leitura
de fotografias como decifração de formas específicas da
temporalidade. Para esse fim, o instrumental técnico da
fotografia tem para ele especial utilidade. Trata-se, pois, da
técnica como técnica cultural.
Da técnica como técnica cultural
A estratégia interpretativa realmente surpreendente de
Benjamin, que, a meu ver, até hoje ainda não teve prosseguimento, mostra-se já nos primeiros esboços, nas primeiras
anotações da coletânea de Passagen-Werk [Passagens]:
Em razão de sua natureza técnica, a fotografia, em
oposição à pintura, pode e deve estar relacionada
com um período de tempo (tempo de exposição à luz).
Nesta precisão cronológica já se encontra sumariamente decidida sua interpretação política. (V, p. 844)17
A questão do tempo de exposição que, como vimos, determina a diferença entre memória e recordação, surge em
Benjamin em diversos contextos teóricos e serve em geral
para tornar legível fotografias, qualquer que seja o objeto, e
provê-las com um índex temporal. Na Pequena história da
fotografia, a diferenciação efetuada por Benjamin procede
das primeiras fotografias e a acentuação do longo tempo
de exposição à luz da daguerreotipia, passando pela época
de transição dos ateliês de fotografia, cuja instalação ainda
lembrava a época antiga, até a fotografia contemporânea,
para a qual o rótulo é necessário, caso a atribuição se refira
a um período de tempo [Zeitstelle] preciso.18 A teoria de
Benjamin acerca da temporalidade das imagens da recordação e da memória, assim como da aversão ao choque
em Baudelaire, segundo a qual se trata de um “rendimento
máximo da reflexão”, caso se possa atribuir a um acontecimento um espaço preciso de tempo na consciência, é
transferida para a história, na qual espaços de tempo são
passíveis de comprovação através das fotografias. Assim
como Benjamin, na Infância berlinense ou na exposição
dupla [Doppelbelichtung] do retrato de Kafka criança, oscila
entre subjetividade e intersubjetividade, entre individualidade e fenômenos culturais coletivos, na Pequena história da
fotografia a diferenciação entre tempo de exposição à luz da
memória e da recordação, enquanto categorias do sujeito,
é transferida às categorias da sociedade. Assim, de modo
análogo, a questão da legibilidade da fotografia inclui, por um
lado, a duração do espaço de tempo ou, em termos técnicos,
o tempo de exposição à luz de uma fotografia, para então, de
outro, interpretá-la como indicador de uma forma específica
de história, como expressão de uma codificação cultural de
conexão de tradição [traditionszusammenhang]. O olhar nos
ateliês de fotografia busca decifrar “necessidades internas
de imagem” produzidas por meio de pressupostos técnicos
e, deste modo, descrever simultaneamente um “espaço do
olhar da fotografia”, no qual se esboça uma história de uma
percepção induzida tecnicamente, que apresenta profundas
implicações para as conexões de tradição e de experiência
da cultura de uma maneira geral. A história da fotografia
compõe-se de auto-retratos de uma cultura em processo de
mudança. O álbum de fotografias de Benjamin reúne estes
retratos para poder, em sua seleção, descrever constelações
históricas. Os retratos falam uma língua eloquente, quando
se consegue lê-la.
Para os primeiros tempos da fotografia, Benjamin ajusta
uma equivalência entre objeto e técnica, que então “se
dispersa no período de decadência posterior”,19 mas ainda
nas poses congeladas, na “imobilidade, [ele denuncia] a
impotência daquela geração no momento da evolução
técnica”. Mesmo que as tomadas tecnicamente já se deem
em frações de segundos, os fotografados permanecem de
tal maneira, como se necessitassem se manter quietos para
não desfocar a imagem. Seu comportamento corresponde
àquele de uma época já extinta. No presente, afinal, desempenha um papel central para Benjamin a tese da outra natureza, de um espaço “inconscientemente entrelaçado”, que se
torna legível na fotografia. As fotografias mostram espaços
do estranhamento, caracterizados pelo seriado, despovoamento e detalhe. Estranhamento chama-se também
objetivação, substancialização, reificação. O espaço do olhar
da fotografia do presente é – tomando-se de empréstimo
uma máxima de Moholy-Nagy – , compreendido no sentido
de uma “forma de ver objetiva”, que a fotografia desloca o
sujeito como reificado para junto do campo do visível. Já não
se trata mais de imagens da recordação ou da memória,
mas de tomadas instantâneas de um mundo estranho e
de um sujeito reificado. O espaço de tempo destas imagens
não deve mais ser procurado no sujeito, mas sim atribuído
às fotografias por meio de legenda. Segundo Benjamin, a
fotografia se transforma pois em um espaço de experiência, no qual a “alienação salutar entre meio ambiente e ser
humano [...] cede lugar para o olhar politicamente atento, ao
qual todas as privacidades caem em favor da iluminação
do detalhe.” O espaço interior, que no século XIX ainda era o
espaço interior do mundo do sujeito, ou a passagem que na
cidade servia de moradia ao flâneur, proporciona imagens
nas quais a cidade “está desocupada como uma moradia
vazia, que ainda não encontrou um novo inquilino”. É válido
nela se instalar. E neste novo espaço, como também nova
moldura, a leitura de fotografias pertence a uma das mais
novas técnicas culturais. Ele permite uma dupla comparação: de um lado, retrospectivamente por meio do estudo
da história da fotografia, tornam-se decifráveis outras
codificações individuais e culturais da fotografia e, de outro,
também fotografias do presente permitem um estudo comparativo. De um lado, o álbum de fotografias reúne imagens
da história como imagens da história mas, de outro, agrupa
também tomadas, que devem tornar o presente decifrável.
Benjamin acentua algo assim como a anatomia comparativa
em Sander, cuja obra Antlitz der Zeit [A fisionomia do tempo],
portanto, “mais que um livro de fotografias: [é] um atlas de
exercício”, que se poderia estudar com “interesse fisionômico, político, científico”. Algo semelhante poderia ser alegado
em Blossfeldt, em cujos livros há um “tesouro em analogias
e formas” para se resgatar. E em torno de um tesouro assim,
trata-se para Benjamin, na sua prática de leitura, de analogias e formas de temporalidade na fotografia, da teoria da
memória e da prática cultural de conexões de tradição, mas
também daquelas na fotografia do presente. Ler fotografias
significa tornar a cultura legível e toda imagem interpretável
enquanto prova documental no processo histórico.
(Trad. Marlene Holzhausen)
revista da cinemateca brasileira
83
O álbum de fotografias de Walter Benjamin
84
Notas
As citações de Walter Benjamin e as respectivas referências de
página se darão segundo a edição dos Medienästhetischen Schriften
[Escritos estéticos da mídia] (com um posfácio de Detlev Schöttker,
stw 1601, Frankfurt/Main 2002) e, nos casos em que houver a indicação do volume através de números romanos, segundo a edição
das Gesammelten Schriften [Obras reunidas].
1
São citadas fotografias de cavalinhas [bot.], de uma touceira de
samambaia, uma esporeira [bot.], um broto de castanheira, de ácer
e de acônito (294ss. e 303).
2
Aqui Benjamin traz explicitamente fotografias de moldes de sapatos em madeira, pátios parisienses, mesas e peças de porcelana,
bordel rue ... n.5, Porte d’Arcueil, escadas admiráveis, Place du Tertre
(p. 310).
3
Aqui: [Bains] (p. 322) bem como fotografias da obra Passagen-Werk [Passagens].
4
5
Publicado em: Commune, maio 1935, n. 2, Citado em: Der Autor
als Produzent [O autor como produtor].
Bossert/Guttmann, Aus der Frühzeit der Photographie [Dos inícios
da fotografia]. 1840-1870 (300, 333); Camille Recht (Org.), E. Atget.
Lichtbilder [E. Atger. Fotografias], Paris e Leipzig 1930 (308); Camille
Recht, Die alte Photographie [A velha fotografia], Paris 1931; Heinrich
Schwarz, David Octavius Hill, Der Meister der Photographie [O mestre
da fotografia], Leipzig 1931; Jean Loize, Emile Zola photographe
[Emile Zola fotógrafo], in: Arts et métiers graphiques nr. 45, 15.2.1935
(V XXX); Wolfgang Schade (Org.), Europäische Dokumente. Historische
Photos aus den Jahren 1840-1900 [Documentos europeus. Fotos
históricas dos anos 1840-1900], Stuttgart, Berlim, Leipzig, (V 839);
George Besson, La photographie française, Paris 1936 (V 840); Dolf
Sternberger, Das wunderbare Licht. Zum 150. Geburtstag Daguerres
[A luz extraordinária. Comemoração dos 150 anos de Daguerre], in:
Frankfurter Zeitung [Jornal de Frankfurt], 21. November 1937 (V 844);
Erich Stenger, Daguerres Diorama in Berlin. Ein Beitrag zur Vorgeschichte der Photographie [Os dioramas de Daguerre em Berlim. Uma
contribuição para os antecedentes da fotografia], Berlim 1925 (V 1320).
6
Benjamin cita Gisèle Freund, La photographie en France au dix-neuvième siècle. Paris, 1936; Gisela Freund, La photographie du
point de vue sociologique, e ainda: Gisela Freund, Entwicklung der
Photographie in Frankreich [Evolução da fotografia na França], Ms.
não impressa (V, p. 191).
7
Disderi, Manuel opératoire de photographie. Paris, 1853; Nadar,
Quand j’étais photographe. Paris, 1900, (V, p. 94); Louis Figuier, La
photographie au salon de 1859. Paris, 1860; Charles Baudelaire, Le
salon de 1859; A. Liébert, Les ruines de Paris. 100 photographies. Paris, 1871 (V, p. 199); Lemercier, Lampélie et Daguerre, V, p. 662s.; A. J.
8
Wiertz, La Photographie, in: Oeuvres littéraires. Paris, 1887, (V); Théophile Gautier, Photosculpture. Paris, 1864, V, p. 843, Leipziger Anzeiger
[Noticiário de Leipzig], citado em: Max Dauthendey, Der Geist meines
Vaters. Aufzeichnungen aus einem begrabenen Jahrhundert [O
espírito de meu pai. Anotações de um século sepultado], München
1912; [Dominique François Jean] Arago, Bericht [Relatório][...]. Devolvido à Câmara de Deputados Francesa em 3 de julho de 1839 por
[Dominique François Jean] Arago, deputado da região dos Pirineus
Orientais, citado em: Josef Maria Eder, Geschichte der Photographie
[História da fotografia], 3. ed. (Ausführliches Handbuch der Photographie, Bd. 1) [Manual pormenorizado da fotografia, vol. 1], Halle a.
S. 1905, 187-195; Fr. Matthies-Masuren, Künstlerische Photographie.
Entwicklung und Einfluss in Deutschland. Vorwort und Einleitung von
Alfred Lichtwark [Fotografia artística. Desenvolvimento e influência
na Alemanha. Prefácio e introdução de Alfred Lichtwark] (Die Kunst.
Sammlung illustrierter Monographien, hg. von Richard Muther, Bd.
59 und 6o) [A arte. Coleção monografias ilustradas, org. por Richard
Muther, vol. 59 e 60], Leipzig 1907; Alfred Lichtwark, Die Incunabeln
der Bildnisphotographie [Os incunábulos de retratos], in: Photographische Rundschau [Panorama fotográfico], 1900 (Ano 14), 25 ss.
Emil Orlik, Kleine Aufsätze [Pequenos ensaios], Berlim 1924, 38s.
(Über Photographie [Sobre fotografia]).
9
10
Poder-se-ia ainda completar uma terceira lista – aquela dos
fotógrafos mencionados. Para esta lista também se constataria algo
semelhante. Em forma de lista secundária, ela contém: Renger-Patzsch 239, 314, 337; Heartfield 239, 337ss.; Blossfeldt 294ss., 303;
Moholy-Nagy 294, 313; Hill 300, 302ss., 307; Cameron 300; Hugo
300; Nadar 300, 306, V 49, 94; Daguerre 301s., 305 ; Dauthendey 302;
Stelzner 306; Pierson 306; Bayard 306; Atget 308ss., 315, 362; Abbot
308; Disderi implicito 300, explicito 335; Sander 311s.; Krull 313; Stone
313; Man Ray 338; Carjat V 153.
Na Pequena história, o discurso de Arago sobre a daguerreotipia,
na qual imagina novos campos de aplicação, que vão da astrofísica
até a filologia, é citado com ênfase. Um exemplo disto é o arquivamento dos hieroglifos, que desta maneira podem tornar-se mais
legíveis. Do mesmo modo, no ensaio sobre a obra de arte, cita Abel
Gance, que compara o filme com hieróglifos. (363s.)
11
Cf. também o trecho na mesma direção em: I 644s.: “sem levá-la
em consideração, Baudelaire se esforça por uma contemplação
mais conciliadora. A fotografia, sem ser importunada, pretende
tornar próprias as coisas transitórias, que têm direito a ‘um lugar
nos arquivos de nossa memória’, quando ela então se detém somente diante da ‘zona do intangível, imaginativo’: diante daquela da
arte, na qual somente há lugar para um, “aquele a quem o homem
entrega a sua alma”. O arbítrio é dificilmente de Salomão. A prontidão permanente da reminiscência, que é beneficiada pela técnica
12
reprodutiva, constrange o campo de ação da fantasia. Esta talvez se
deixe compreender como uma faculdade de realizar desejos de um
tipo especial; aqueles, a quem como realização possa ser destinado
algo belo.”
13
Cf. também na íntegra o parágrafo do qual provém esta citação,
relacionada com a comparação entre mémoire involontaire e a fotografia: “Com respeito à mémoire involontaire, não só suas imagens
não vêm quando tentamos evocá-las, como também, ao contrário,
são imagens que nunca vimos antes de recordá-las. Isso ocorre
com a máxima clareza com as imagens em que – como em alguns
sonhos – vemos a nós mesmos. Postamo-nos diante de nós, tal
como talvez tenhamos ficado em algum lugar de um passado pré-histórico, mas nunca diante do nosso olhar desperto. No entanto,
essas imagens, reveladas no quarto escuro do momento vivido,
são as mais importantes que jamais veremos. Seria possível dizer
que nossos momentos mais profundos foram dotados – como os
maços de cigarros – de uma pequena imagem, uma fotografia de
nós mesmos. E a tal ‘vida inteira’ que, segundo dizem, passa pela
cabeça das pessoas quando elas estão agonizando ou correndo um
perigo mortal, é composta dessas pequenas imagens. Elas piscam
numa sequência tão rápida quanto a dos livrinhos da nossa infância,
precursores do cinema, nos quais admirávamos um boxeador, um
nadador ou um tenista.” (II, p. 1064)
Eckhardt Köhn, Strassenrausch. Flanerie und kleine Form. Versuch
zur Literaturgeschichte des Flaneurs bis 1933 [A embriaguez das
ruas. Flânerie e pequena forma. Ensaio para a história literária do
flâneur até 1933], Berlim 1989, p. 211.
14
O termo Mummerehlen, que intitula uma das passagens de Benjamin, apresenta uma tradução particularmente indefinida e retoma
versos que na sua infância eram entoados por pessoas adultas.
Observa-se que, na passagem, o termo ora aparece grafado com m
(Mummerehlen), ora com h (Muhmerehlen). Os estudiosos, ao desdobrarem o termo (Mumme+rehlen), costumam considerar Rehlen
um nome próprio. Muhme (com h), por sua vez, significa em alemão
tia. Poder-se-ia dizer então Tia Rehlen. Contudo, Mumme (com m)
remete à palavra máscara, também muito usada pelas crianças, de
modo que se poderia falar de uma Rehlen mascarada. [N.T.]
15
16
Na última edição redigida e supervisionada pelo próprio autor,
tanto o capítulo relacionado com a fotografia quanto aquele do pintor
chinês são deixados de lado. Cf. GS VII, p. 417s. Na edição de Giessen,
ambos os capítulos ainda podem ser encontrados e também – quase como uma orientação de leitura – Die Mummerehlen no início do
texto completo. Cf. Walter Benjamin. Berliner Kindheit um neunzehnhundert [Infância berlinense por volta de 1900]. Giessener Fassung.
Edição e prefácio de Rolf Tiedemann. Frankfurt/M. 2000, p.7-10.
17
Este pensamento encontra-se também, em outro contexto teórico e em outra forma, no livro sobre Baudelaire, para caracterizar
a aversão ao choque: “Quanto maior é a participação do momento
de choque nas impressões individuais, quanto mais constantemente precisa estar no plano a consciência no interesse da defesa
do estímulo, quanto maior é o êxito com o qual opera, tanto menos
se comprometem com a experiência, tanto antes correspondem
ao conceito de vivência. Talvez se possa, em última instância, ver
o resultado particular da aversão ao choque nisto: em detrimento
da integridade de seu conteúdo, indicar ao incidente um lugar exato
do tempo na consciência. Este seria um rendimento máximo da
reflexão.” (I, p. 615)
18
Em todas as três fases trata-se de nomes: Benjamin diferencia
nomes impressos de nomes pronunciados (304), “manifestação
inominada, que eles mantêm na fisionomia“ (310) nos filmes russos
e, por fim, “imagens humanas inominadas, não retratos. Há muito
tempo já havia cabeças deste tipo em quadros pictóricos. Quando
encontravam-se na posse da família, vez ou outra questionava-se
sobre a pessoa ali representada. Após duas, três gerações, contudo,
este interesse se dissipava: as imagens, na medida em que duram,
somente o fazem como testemunho para a arte daquele que os
pintou.“(p. 302). O mesmo não se dá com a Vendedora de peixe de
New Haven, de Hill, que “jamais desejará passar completamente
para a arte“(p. 302): postula-se o seu nome.
19
Cf. também o apontamento na obra das Passagens: “Aquilo que
torna as primeiras fotografias incomparáveis talvez se deva a isto:
elas apresentarem a primeira imagem do encontro entre a máquina
e o homem.” (V, p. 832)
revista da cinemateca brasileira
85
dossiê
restauração cinematográfica
O dossiê do segundo número da Revista da Cinemateca Brasileira traz diferentes contribuições
sobre as formas que pode assumir a Restauração Cinematográfica. Patricia de Filippi, restauradora de grandes obras do cinema brasileiro, faz um balanço de sua experiência frente à diretoria
da Cinemateca Brasileira, onde coordena o Laboratório de Restauro da instituição, e questiona
a tecnologia digital, seus usos e abusos, defendendo uma política institucional da preservação.
Em seguida, há a homenagem a Saulo Pereira de Mello, o guardião de Limite, principal responsável pela sobrevivência do filme de Mário Peixoto. Como complemento ao dossiê, a Revista
da Cinemateca­Brasileira traz a edição em dvd de Limite, cujos trabalhos de restauro foram
feitos pela Cinemateca, em parceria com a World Cinema Foundation e o laboratório Immagine
Ritrovata­. Com essa restauração, a Cinemateca afirma suas principais funções de preservação e
difusão, devolvendo ao público um dos maiores clássicos do cinema brasileiro.
O dossiê segue com um retrato do poeta Fernando Pereda, um dos principais nomes da cultura cinematográfica latino-americana, cuja coleção foi decisiva para o restauro de clássicos da
cinematografia mundial. Um fragmento do roteiro do filme Gigi (1919) é publicado junto com as
fotografias remanescentes do filme. Recuperar esse roteiro é uma forma de contribuir para o
que Paulo Emilio chamou de “reconstituição ideal”, já que o filme não existe mais. Além disso,
é também uma forma de homenagear seu realizador, José Medina, nos seus 120 anos.
Com essas diferentes formas de preservação e restauração, o dossiê procura refletir sobre a restauração fotoquímica, a restauração digital e a restauração dos filmes na cabeça das pessoas.
88
dossiê
Preservação Cinematográfica:
Entrevista com
1
Patricia de Filippi, ABC
A ideia de um laboratório para a Cinemateca Brasileira
está na origem da história da instituição. Entretanto,
essa ideia só ganha concretude mesmo no final da década de 1970. De lá para cá o laboratório da Cinemateca
se tornou um dos mais bem equipados do país.
Como isso aconteceu­?
fora de quadro, versões diferentes de materiais de imagem
e som, e assim vai. A partir daí, os trabalhos técnicos
de extrema urgência começaram a ganhar corpo. Por
exemplo, a preservação de Rio 40 graus aconteceu nesse
momento, quando a Cinemateca conseguiu pela primeira
vez reunir esforços para se voltar à preservação ativa.
Essa é uma longa história, e o seu primeiro capítulo começa em meados da década 70, quando o primeiro laboratório
foi montado. De fato, foi Carlos Augusto Calil quem reuniu
pessoas e máquinas e fundou, em 1976, o laboratório da
Cinemateca, com equipamentos doados por laboratórios
comerciais. Dada a especificidade dos trabalhos de uma
cinemateca, os laboratórios comerciais sempre viram o
filme antigo como problema. Recuperá-lo de alguma forma
sempre foi um incômodo e um ônus para o mercado, já
que exige um tipo de intervenção próxima ao trabalho
artesanal, uma investigação e atualização contínua dos
procedimentos mais adequados e muitas vezes imensamente mais dispendiosos em termos de recursos, – equipamentos específicos e, sobretudo, tempo de operação – o
que foge completamente do cotidiano de um laboratório
comercial. Quantos filmes antigos não carregam essa incompatibilidade. Um com intertítulos invertidos, ou mesmo
somente com a referência do texto, outro completamente
Claro, antes mesmo de Calil, já havia toda uma luta
anterior para transformar o filme antigo em patrimônio
cultural. Desde Linduarte Noronha, Paulo Emilio, o Centro de Pesquisadores. Mas essas são apenas manifestações de uma consciência cinematográfica. O capítulo
inaugurado por Calil prima pelo conhecimento técnico e
pelo cálculo objetivo. Foi com ele que a coisa se deu de
fato, a visão técnica, tecnológica de um novo momento
para a Cinemateca. Mas quando e como você começou a
trabalhar na Cinemateca?
Quando entrei para a Cinemateca, em fins de 1983, já havia
uma mentalidade técnica avançada, porém, diametralmente
oposta à capacidade técnica instaladwa. Tanto as instalações
quanto os aparatos eram completamente precários.
Percebi imediatamente que, junto com a precariedade material, havia uma vontade gigantesca para superar os problemas. O que me instigou a ficar foi sentir a existência de um
revista da cinemateca brasileira
89
Entrevista
90
espaço amplo para a pesquisa. A vontade de transformar
se unia à imaginação na pessoa de João Sócrates. Ele era
um tipo peculiar, com profundo conhecimento técnico. Ele
reconheceu logo minha curiosidade e logo construímos uma
parceria de troca e aprendizado constantes.
Conhecia João da área da fotografia e o havia procurado para
investigar um problema com um revelador de papel, quando
ele me convidou para estagiar no laboratório. Não havia vaga
de estágio, então permaneci como colaboradora voluntária.
Depois­veio a vaga de estágio até que, com a morte do Sr.
Aloysio­2, fui contratada no seu lugar, como vigia da Cinemateca.
Na época, a Cinemateca era dividida fisicamente: a documentação em papel, a biblioteca, a diretoria, uma pequena área
climatizada para filmes, a catalogação e a fotografia ficavam
na sede no Parque da Conceição; parte do acervo fílmico e o
laboratório ficavam no Parque Ibirapuera. Nesse laboratório,
mais que improvisado, implantamos métodos de restauro
incríveis. Construímos, adaptamos e modificamos equipamentos, o que nos permitiu restaurar filmes em 9,5mm como
Festa do Divino Espirito Santo [1936], do Departamento de
Cultura do Mário de Andrade, o filme em que Santos Dumont
faz uma decolagem com seu avião. Alteramos a velocidade
de 16 para 24 quadros para permitir a exibição em projetor
sem variação de velocidade. Na truca-torno ficávamos horas
marcando o compasso no pé, como um metrônomo, para dar
a cadência das manivelas da câmera 35mm, operada por um,
e do projetor 9,5mm, operado pelo outro. Era uma música.
Nessa época, não havia nenhuma Sala Cinemateca e o projetor que tínhamos no Laboratório para o controle de qualidade
não permitia a variação de velocidade. No processo de restauro desses filmes, apesar de todo o conhecimento, requinte e
imaginação, cometemos erros primários. Lembro de quando
consideramos esse filme acabado. Fomos ver a projeção e o
avião de Santos Dumont, ao invés de decolar, descia subitamente do céu, de ré. O que antes eu acreditava inconfessável,
hoje vejo como impulso fundamental para o avanço do trabalho de restauração. Oswald de Andrade é que tinha razão
quando falava na contribuição infinita dos erros.
Nessa época, o laboratório começou a querer se estruturar
e formar uma equipe técnica, arquitetando a formulação de
novas instalações, construindo e organizando os espaços para
cada máquina. Chegamos até a fazer uma processadora inteiramente de madeira. Concebemos essa máquina peça por
peça, estudando materiais de diversas procedências, o tipo de
madeira, o verniz naval mais adequado, emprestando a tecnologia de um amigo construtor náutico, as engrenagens, tudo,
tudo foi desenhado do zero, com uma pesquisa detalhada
para cada componente, e tudo funcionou.
Outro lance bem ousado foi assumir o restauro do filme
Companhia Fabril de Cubatão [1922], com a reprodução dos
tingimentos feitos quimicamente na versão restaurada. Não
utilizamos o método Desmet, que permite a copiagem em
filme com viragens em película colorida, pois as tentativas em
laboratório comercial haviam sido frustrantes. Partimos para
fazer os trechos com as respectivas cores e depois emendamos para formar a sequência do filme.
Um episódio interessante foi a ampliação de fotogramas de
dois filmes de Fritz Lang Depois da tempestade [Das Wandernde Bild, 1920] e Corações em luta [Kämpfende Herzen,
1921], também com viragem e tingimento, para serem enviados à Alemanha como prova dos filmes encontrados aqui, pós
incêndio dos arquivos de nitrato no Parque do Ibirapuera3. Aliávamos à técnica e à imaginação, grandes lances de incrível
ousadia. Imagine um laboratório em condições extremamente artesanais pretender restaurar essas duas pérolas que se
acreditava perdidas. Era muita pretensão, muita ousadia. Os
alemães custaram a crer, mas nós restauramos esses dois
filmes maravilhosos.
Esse empenho todo foi resultando em pequenas conquistas que,
uma a uma, iam fortalecendo a legitimidade técnica da Cinemateca e expondo gradativamente a urgência da preservação da
memória audiovisual. A história se desenvolveu dessa forma,
com muito empenho e criatividade orientando nossas ações. Seguimos assim por anos, até que um dia, em 1987, numa das crises da Cinemateca, fui desligada súbita e incompreensivelmente.
Na sequência, fui convidada a trabalhar no Centro Técnico
Audiovisual (CTAv), que passava por seu melhor momento,
quando a parceria com o Canadá deu origem a um centro de
referência nacional, de apoio técnico à produção cinematográfica, com núcleos tecnicamente fortes em som, animação,
projeção, óptica, câmera, manutenção, atividade cinematográfica. Lá, contei com o apoio decisivo de Ana Pessoa, Vera
Zaverucha e Affonso Beato. O ambiente favorável fez com que
eu redigisse a Introdução ao Laboratório Cinematográfico, uma
pequena brochura, mas da qual me orgulho bastante, que
acompanhava as oficinas do tema, por núcleos ligados ao audiovisual Brasil afora. Foi a primeira publicação de uma série
de dez, das quais as nove outras não chegaram a ser editadas,
e nem mesmo o duro trabalho de paste-up, com tesoura e
cola, da última revisão foi incorporado: o processo subtrativo
virou substantivo, e por aí vai.
Em seguida, veio o governo Collor e o projeto do CTAv foi violentamente interrompido. O CTAv quase morreu e nunca mais
foi o mesmo, renasceu, mas com outro corpo, outra estrutura,
outra concepção, outra ação. A morte de uma instituição de
cultura é uma perda enorme para a sociedade, e dificilmente há
a reparação necessária. As pessoas não têm essa dimensão,
mas o ciclo nefasto de morrer-e-renascer de uma instituição
faz com que ela nunca floresça como deve e fique sempre a
reboque do empenho apaixonado de um grupo, o que muitas
vezes pode contribuir para a sua decadência. Uma instituição
como a Cinemateca Brasileira não pode mais ser pensada no
âmbito particular, ela agora é um patrimônio público gerido
pelo Estado, faz parte das políticas de cultura e participa das
questões da cultura nacional.
Mas o que aconteceu com você depois da crise dos
anos 1990?
Novamente, de forma abrupta, fui obrigada a me afastar de
uma experiência fascinante de arquivo cinematográfico. Resolvi
então mergulhar nos estudos e voltar à área da Fotografia, o
berço do meu aprendizado na área da imagem. Eu trabalhava
como técnica autodidata, e buscava a especialização constante,
refletindo sobre as imagens fixa e em movimento. Escrevi um
projeto e ganhei uma bolsa Fullbright. Parti para Nova York
onde tive o privilégio de estar ao lado de Peter Mustardo, do
Arquivo Público da Cidade de Nova York, e Nora Kennedy, do
Metropolitan Museum, referências na área da Conservação Fotográfica, que me orientaram no projeto de pesquisa pelos arquivos da cidade. Foi assim que me voltei aos estudos da fotografia. Sem condições para desenvolver um trabalho institucional, decidi conhecer em profundidade as primeiras experiências
em fotografia, conhecer a gênese da imagem em movimento.
Para isso, eu realizei trabalhos de restauração e pesquisa com
uma diversidade riquíssima de processos, técnicas, materiais
do século XIX, como a albumina, a fotogravura, a platina, o ouro,
o selênio, os plásticos e os vidros. A ciência da permanência da
imagem me fascinou desde sempre.
Já o Laboratório da Cinemateca Brasileira, assim como o
CTAv, não resistiu à conjuntura política sinistra do período
Collor e aos poucos foi definhando e reduzindo suas atividades. Ainda no princípio da década de 1990, o Laboratório
foi desativado, saiu do Parque Ibirapuera, e muitas de suas
máquinas permaneceram embaladas e guardadas. Em 1997,
Carlos Roberto Souza e Tania Savietto me convidaram para
remontar o laboratório da Cinemateca Brasileira. Agora com
mais experiência técnica, outras perspectivas, concentrei-me
no desenho de uma nova arquitetura para o Laboratório, que
estava todo fragmentado, defasado, embrulhado e espalhado
pelos galpões da instituição, já instalada no complexo do
Matadouro. Para os trabalhos de reconstrução, contei com
a ajuda dos dois técnicos remanescentes, mas ainda estávamos longe de ser um laboratório de restauro profissional.
Lentamente colocamos em condições de operação uma
reveladora e uma copiadora. O compromisso assumido de
restaurarmos São Paulo, a symphonia da metrópole [1929],
dos húngaros Adalbert Kemeny e Rudolf Lustig foi o impulso
necessário para conseguimos montar a primeira copiadora
com janela molhada do Laboratório, uma máquina doada
pela Unesco, que estava encaixotada na Cinemateca havia
anos. Em seguida, vieram alguns projetos com o patrocínio do
IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] e
da SAv [Secretaria do Audiovisual]. Restauramos fotoquimicamente filmes como O caçador de diamantes [Vittorio Capellaro, 1933], Minas em armas [Aristides Junqueira, 1933], Sinfonia
amazônica [Mario Latini, 1953] O padre e a moça [Joaquim­
Pedro de Andrade, 1966], O homem nu [Roberto Santos, 1968],
Boca de ouro [Nelson Pereira dos Santos, 1963]. Depois da
remontagem inicial e da formação de uma equipe mínima, o
Laboratório foi retomando suas atividades, mas sempre na
dependência dos laboratórios comerciais, que ajudavam, às
vezes com uma ponta de dúvida, com doações de maquinário
antigo. Nessas condições, gastávamos a maior parte do tempo fazendo com que essas velhas máquinas funcionassem e
não com as questões do restauro propriamente ditas. Nesse
cenário, era impossível pensarmos em prazo de entregas,
cronogramas, metas, planejamento.
O Laboratório sobrevivia graças à dedicação, às relações pessoais, à militância de uns poucos sobre a importância do trabalho de um arquivo de filme, ou seja, continuava dependendo
da boa vontade particular. A situação era penosa, na medida
em que percebíamos as possibilidades de nosso trabalho,
contido pela precariedade material, que impedia os saltos
mais significativos. Havia um sentimento de impotência, diante do volume de filmes em processo de deterioração versus a
baixa capacidade de recuperação. Além da dificuldade material
havia também a de recursos humanos. Pensar em uma equipe técnica profissional era algo simplesmente longínquo.
Nesse período a Cinemateca havia conseguido recursos
para a preservação de muitos títulos, com copiagem em
laboratório externo. Naturalmente, filmes com materiais
muito comprometido em termos de conservação não podiam ser escolhidos pela impossibilidade de restauro nos
equipamentos velozes dos laboratórios comerciais da época,
a Líder e o Curt-Alex.
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O material colorido era feito em São Paulo e os filmes em
preto e branco eram copiados no Rio de Janeiro, com a
imensa colaboração dos marcadores de luz, que sempre
ficavam na torcida para tudo dar certo. Os primeiros projetos
de preservação estavam despontando mas, no entanto, sem
o suporte de um laboratório institucional forte e consistente.
Uma mudança veio no ano de 2000. Apesar de estar nos
Estados Unidos, estudando na George Eastman House,
mais exatamente na Selznick School of Film Preservation,
dediquei-me intensamente à Cinemateca Brasileira. Pesquisando novas áreas da preservação fílmica, conhecendo
laboratórios com diferentes vocações, investigando equipamentos atualizados e suas condições de compra, importação e manutenção e participando de decisões técnicas. Era a
época em que a Kodak ainda se voltava para o desenvolvimento de escaners de alta resolução e softwares de restauração. A atenção para a mudança tecnológica foi mundial, de
fornecedores a usuários variados. No ano seguinte, quando
voltei ao Brasil, para integrar o projeto em curso na Cinemateca – o Censo Cinematográfico, patrocinado pela Petrobras,
estava com um projeto muito claro de estruturação do campo da restauração cinematográfica, tinha em mente formas
diferentes e complementares para viabilizar o Laboratório
da Cinemateca: um modelo de funcionamento mínimo, a
ser implantado imediatamente; um modelo de médio porte,
para os anos seguintes; e um modelo de grande porte, o
modelo ideal, com todos os equipamentos da cadeia cinematográfica, capaz de restaurar e preservar todos, ou quase
todos os suportes e formatos, veiculados no Brasil, inclusive
vislumbrando a novidade digital, ainda quase desconhecida.
Não houve dúvida em relação ao primeiro ato de renovação
do laboratório: uma reveladora confiável. Não dava mais
para sermos reféns da reveladora existente e descontrolada,
que inúmeras vezes colocou a perder todo o minucioso
e sofrido trabalho da etapa anterior de copiagem, feita
também em máquinas frágeis, onde a maior garantia
era a nossa torcida. Assim, a primeira peça configurada e
adquirida foi a reveladora inglesa Calder, depois de muita
comunicação com o próprio Mr. Calder, que atendeu a todas
as exigências apresentadas. Esta máquina foi instalada em
meados 2002 e o primeiro filme processado foi O Anjo nasceu (1969), de Julio Bressane; a técnica convidada para ser
a responsável voluntária, foi uma amiga com conhecimento
de laboratório fotográfico, que integra a equipe até hoje. Aos
poucos uma mentalidade mais profissional foi se aglutinando. Mas sempre com o mesmo desafio e temor: a formação
do corpo técnico.
Nada foi da noite para o dia e muito trabalho coletivo foi necessário. Ao contrário dos tempos anteriores, pudemos estabelecer metas e honrar os prazos, no caso o processamento
de 10 mil metros de filmes por mês, totalizando 240 mil
metros em dois anos, entre contratipos de imagem e som,
másteres de imagem e som, e cópias de som e imagem.
A cópia de exibição era um detalhe frente à importância da
produção de matrizes de preservação. Um trabalho notável e
com envolvimento de todas as áreas técnicas da Cinemateca,
que permitiu o renascimento de muitos filmes: vários de
Humberto Mauro, a série inesquecível d’O vigilante rodoviário,
cinejornais como os da Carriço Filmes, longas importantes
como Gigante de pedra [Walter Hugo Khouri, 1953], Leonora
dos sete mares [Carlos Hugo Christensen, 1955], Viagem ao
fim do mundo [Fernando Coni Campos, 1968] e tantos outros.
Um momento marcante para a instituição, que pela primeira
vez impulsionava de fato ações de preservação ativamente.
Faltava ainda cuidar da frente de restauro, da continuidade
de implantação do que estava somente começando e da
formação­do corpo técnico.
Paulo Emilio tinha razão quando afirmava: “É assim no
Brasil, especialmente na área da cultura. Freqüentemente uma coisa em torno da qual houve uma incompreensão enorme, por anos e anos, de repente tudo se
acelera. Num país subdesenvolvido pode de repente
acontecer de em três, quatro anos haver uma aceleração
e se fazerem as coisas que a gente acha absolutamente
impossíveis de se realizar em cinquenta.” Ele disse coisa
parecida no filme do Alain Fresnot [Nitrato, 1973].
Claro, Paulo Emilio mantém sempre o otimismo da vontade,
mas sabemos que o subdesenvolvimento tem das suas. A
coisa pode tanto se dar para um lado, e se desenvolver repentinamente, como também ir para um outro, entravar tudo de
uma hora para outra e morrer assim sem mais, como aconteceu com outras instituições. Pelo visto, as fases, os ciclos
que perseguem a história do cinema brasileiro, também são
as marcas da história de sua preservação.
Mas o que significou para o projeto de restauração a
incorporação­da Cinemateca ao Ministério da Cultura?
Foi simplesmente fundamental. A Cinemateca foi incorporada
ao MinC e se legitimou como instituição nacional, ganhando o
reconhecimento ansiado há décadas. Ocorreram avanços importantes, graças a uma conjuntura política muito favorável,
quando o poder público se voltou com interesse verdadeiro
para a instituição.
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Mas é fundamental relatar que essa feliz conjuntura se completa com a chegada de Carlos Magalhães, administrador e
gestor público, como diretor executivo da Cinemateca, em setembro de 2002. Já conhecedor das lides do mundo da cultura,
ele chegou na instituição para resolver mais uma das crises
da “família Cinemateca”. Com a morte de Paulo Emilio em
1977, um grupo de discípulos e epígonos se engajou admiravelmente na luta por uma instituição viva. Um misto de disponibilidade, ideologia e paixão (não necessariamente nessa
ordem) conduziu as ações desse grupo, que fez o que pode. A
orientação administrativa de Carlos contrastava radicalmente
e ele era a pessoa certa para os novos tempos. No jogo entre
o interesse econômico da cultura e as alegações culturais da
economia, a experiência de Carlos com o universo institucional da cultura ultrapassava em muito nossos conhecimentos.
Em tempos de fortalecimento do Ministério da Cultura, em
que a administração da cultura exigia objetividade técnica, clareza na relação com a coisa pública e uma estratégia a curto,
médio e longo prazo, ele foi uma figura-chave.
Sem dúvida, e foi a partir daí que veio a constatação institucional daquilo que havia sido preconizado, de que o Laboratório
poderia ampliar suas bases e se tornar um laboratório robusto, com o planejamento da estrutura da intercomunicação dos
processos fotoquímico, eletrônico e digital. Tal diálogo não é
simples pois cada universo tem infinitas particularidades, e
facilitar a dinâmica para a migração dos conteúdos e suportes
não é um campo banal. A tecnologia digital nesse momento
estava na sua fase criança. Apostar na evolução de um Laboratório diversificado e com tecnologia de ponta foi certamente
apostar na preservação do amplo acervo audiovisual sob a
responsabilidade da Cinemateca.
As parcerias foram imprescindíveis e foram em muitos níveis.
Carlos conseguiu atrair a atenção de vários apoiadores nos
âmbitos público e privado. Os apoios de instituições como a
Fundação Vitae, Ministério da Justiça, Ministério da Ciência,
Tecnologia e Inovação, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social, a Petrobras, o Itaú, a FAPESP [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], Caixa
Econômica Federal, TBE [Transmissão Brasileira de Energia],
SABESP, entre outros tantos, foram decisivos para o desenvolvimento e expansão de nosso parque tecnológico.
Foi assim que a Cinemateca conseguiu se estruturar e amplificar sua ação em todo o país. Promovemos seminários e encontros técnicos convidando expoentes internacionais e reunindo instituições brasileiras. Em 2006, sediamos o Congresso
mundial de Cinematecas da FIAF [Federação Internacional
de Arquivos de Filmes], e nos transformamos na referência
mundial que somos hoje, em diversas áreas como as de Documentação, Difusão, Preservação e Restauro.
Na língua do nosso cinematequês cotidiano costumamos
dizer que existem dois momentos na história da instituição: a “fase Langlois”, onde se guardava tudo a qualquer
custo, para um dia se preservar, e a “fase Lindgren”,
quando se passou a analisar em profundidade o acervo.
Carlos é o artífice principal dessa segunda fase. Quem um dia
escrever uma verdadeira história de nossa cinemateca, como
fez na França Laurent Manonni, vai ter que se debruçar no
salto qualitativo promovido nas suas gestões, na sua capacidade incrível de trabalho, no seu projeto de arquivo de filme,
na sua franqueza impaciente que tanto desconcertou pessoas
habituadas a lidar com certo desleixo com a coisa pública.
O Programa de Restauro é a ação de preservação de maior
alcance no Brasil, com patrocínio da Petrobras, desenvolvido
com a estreita colaboração da Sociedade Amigos da Cinemateca. Ao invés de cada família ou detentor de direito formular
um projeto e apresentá-lo ao poder público, como foram os
casos das obras de grandes cineastas do cinema novo (Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha), o poder público investiu de fato na estruturação de um sistema de preservação
e restauração como jamais havia feito na história do país. No
Programa de Restauro de 2007, como já tínhamos uma expertise com material fotoquímico, em preto e branco, mais de
duzentas obras significativas foram preservadas. O objetivo do
Programa foi tratar os materiais de modo a garantir matrizes
de preservação, cópias de difusão para o proponente e para o
acervo da Cinemateca além de materiais em vídeo e arquivos
digitais. Todos os longas-metragens tiveram também o áudio
restaurado digitalmente.
Esse Programa é original por estruturar o campo em diversos
níveis. Desaparece a lógica do favor e os ditames do mercado
e se implanta critérios objetivos. O Programa não se restringe
a formatos, períodos ou qualquer outra classificação redutora.
Uma grande diversidade de títulos foi escolhida, de diferentes
gêneros, autores e produtores, para a primeira edição. Tratamos
diversas coleções como Veja o Brasil, de Alceu Maynard, uma
coleção voltada para a veiculação na TV Tupi e hoje pertencente ao acervo da Prefeitura Municipal de São Paulo; a coleção
Águias de Fogo, também concebida para a televisão, quando
tivemos a sorte de ter o acompanhamento do diretor e produtor
Ary Fernandez; uma coleção de cinejornais da cidade de Aquidauana, Mato Grosso; filmes do Museu Hipólito José da Costa
de Porto Alegre/RS; filmes do Foto-Cine Clube Gaúcho e filmes
domésticos do Dr. Fernando Moreira, também de Porto Alegre,
da Cinemateca do Capitólio. Foram vários longas contemplados
de instituições como Dimas - Diretoria de Audiovisual da Fundação do Estado da Bahia, com os filmes Caveira my friend [Álvaro Guimarães, 1970] e Tocaia no Asfalto [Roberto Pires, 1962],
dois longas de Fernando Coni Campos, Morte em três tempos
[1964] e Um Homem e sua jaula [1969]; do Ceará restauramos
o clássico Lampião, o rei do cangaço [Alexandre Wulfes e Al
Ghiu, 1959], e do Museu da Imagem e do Som do Pará, foram
restaurados o longa Um dia qualquer [Líbero Luxardo, 1965], e
os curtas Cidade de Belém [Líbero Luxardo, 1966], Homenagem
Póstuma a Magalhães Barata [Líbero Luxardo, 1959] e Marajó,
barreira do mar [Líbero Luxardo, 1967]. Também constam na
lista dos restaurados da primeira edição do Programa outros
longas como os quatro filmes divertidos do Mazaroppi, O puritano da rua Augusta [1966], Zé do periquito [1961], O lamparina
[1964] e O corintiano [1966]; O Batedor de carteiras [Aloizio de
Carvalho, 1958], com o Zé Trindade; e O despertar da besta [José
Mojica Marins, 1968].
O ciclo se fecha quando a Programadora Brasil, outro programa fundamental, difunde esses filmes por todo um circuito
nacional não-comercial.
A segunda edição do Programa foi tecnicamente mais abrangente. Em 2009 as ferramentas e possibilidades implantadas
no complexo do Laboratório eram tão amplas que cada filme
pode receber tratamento de restauro fotoquímico colorido ou
preto e branco, aliado ao restauro digital de imagem e som,
tanto para filme 35mm quanto para 16mm. Igualmente à edição anterior do Programa, foram elaboradas materiais para
garantir a preservação e difusão das obras. Trabalhamos com
muitos tipos de filmes, diagnosticando os problemas, lidando
com a pesquisa de materiais, cuidando para que os produtos
todos fossem entregues da melhor forma possível, respeitando a obra e ouvindo sempre quem pudesse contribuir de
alguma forma. Nesse sentido, diretores, produtores e fotógrafos foram sempre consultados. Não posso deixar de citar o
caso de Cabra marcado para morrer [Eduardo Coutinho, 19641984]. Como foi fantástico ter o Coutinho ao lado, injetando
energia a cada vinda ao laboratório e às projeções !
Restaurar Cabra foi fundamental para nós. Ele foi o primeiro
filme a ser inteiramente restaurado aqui. Foi desafiante. O
conjunto dos materiais era um verdadeiro labirinto, aproximadamente 100 latas de filme para serem compreendidas. Para
decifrar esse palimpsesto, contamos com o auxílio decisivo do
Coutinho, assim como as ótimas e diversas conversas com
Fernando Duarte, o fotógrafo da primeira fase do filme. Foram
enormes os desafios, pois o filme, rodado com diferentes
materiais (35mm, 16mm, colorido e preto e branco), exigiu
um tratamento específico para cada suporte. A pesquisa para
estabelecer o padrão dos diferentes suportes originais foi
intensa e muito rica para o aprendizado de todos e desespero
do Coutinho. Desvendar as especificidades do material fotoquímico nos permitiu avançar em muito no trabalho digital,
cuja intervenção alcançou um alto nível de excelência, recuperando características técnicas e estéticas que os anos tinham
degradado. Acredito que o filme nunca havia sido visto assim
como ficou, pois o esforço feito para que o filme tivesse uma
carreira trouxe prejuízo à qualidade da imagem que foi reduzida ao 16mm e depois ampliada para o 35mm.
Imperativo mencionar que a riqueza de se ter uma sala de
projeção em condições segundo as normas técnicas para a
avaliação de todo o trabalho de preservação, difusão e restauração. A análise e controle de qualidade dos resultados de
restauro e duplicações ganham força quando vistos em uma
projeção de confiança. É o coroamento do trabalho, pois nas
ações de restauro lidamos com tantas variáveis que ter a certeza de uma projeção controlada é um alívio.
Já o Programa de Preservação e Restauração de Obras Audiovisuais merece destaque, pois ao invés de uma intervenção pontual, que se esgota em alguns títulos, ele foi concebido para ser
uma ação contínua e de médio prazo, colocando em jogo várias
ações e dessa vez contando com os fornecedores de serviços
ainda existentes no Brasil, tão caros para nós, que trabalhamos
em parcerias e nos aliando aos laboratórios comerciais ainda no
mercado para darmos vazão aos trabalhos de preservação.
Com a estruturação do Laboratório de Restauro da Cinemateca foi possível que o poder público estabelecesse uma
política de restauração da memória audiovisual para si não
a deixando entregue apenas à lógica mercantil, que muitas
vezes não coincide com o interesse da cultura e da memória.
É necessário que se entenda que uma ação consequente de
Estado precisa ordenar os campos de interesse da sociedade.
E a cultura audiovisual interessa muito!
Graças aos dois programas de preservação e restauro, a Cinemateca devolveu para a sociedade obras fundamentais como
Imagens do inconsciente [Leon Hirszman, 1983-1986], Cabra
marcado para morrer, Tempo do mar [Pedro de Moraes, 1971];
Abá [Raquel Gerber, 1992]; Adultério a brasileira [Pedro Rovai,
1969]; O Caso dos irmãos Naves [Luiz Sérgio Person, 1967],
e os curtas-metragens Lacrimosa [Aloysio Raulino e Luna
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Alkalay, 1970] e O Tigre e a gazela [Aloysio Raulino, 1976] e
Porto de Santos [Aloysio Raulino, 1978); Chico Fumaça [Amácio Mazzaropi, 1957]; A Margem [Ozualdo Candeias, 1967]; O
beijo [Flávio Tambellini, 1964]; A morte comanda o cangaço
[Carlos Coimbra, 1960]; Xica da Silva [Carlos Diegues, 1976),
Chuvas de verão [Carlos Diegues, 1977] e Os herdeiros [Carlos Diegues, 1969]; Cidade ameaçada [1959], e mais de uma
dezena de cópias de filmes de Roberto Farias; Maranhão 66
[Glauber Rocha, 1966]; Bebel, garota propaganda [1967], O jogo
da vida [1977] e O profeta da fome [1969], os três de Maurice
Capovilla, Os abas largas [Sanin Cherques, 1963], proposto
pela Brigada Militar de Santa Maria, RS; Turista aprendiz [Lúcio
Kodato e Maureen Bisilliat, 1985] obras de Carlos Reichenbach, obras de Andrea Tonacci, muitos longas dos acervos
adquiridos pelo Ministério da Cultura como as comédias da
Atlântida, longas do acervo Companhia Cinematográfica Vera
Cruz, cinejornais do Acervo Canal 100, o longa-metragem A
hora e vez de Augusto Matraga [Roberto Santos, 1966], entre
tantas outras obras.
Mas não é tarefa fácil atualizar o campo da preservação, colocar em dia o acervo da Cinemateca, um acervo marcado por
décadas de desamparo. Citei alguns casos de êxito, em que
conseguimos preservar obras da cultura brasileira. Mas é preciso citar também o outro lado da moeda: o que se perdeu. E
não foi pouco. Só em 2012, 8 toneladas e meia de filmes sem
qualquer possibilidade de recuperação foram tecnicamente
descartados. É preciso coragem política e determinação científica para reconhecer que as diversas mortes da Cinemateca
tiveram consequências indeléveis para nossa memória. Nosso clima tropical não perdoa postergações pessoais e/ou institucionais no cuidado da preservação dos filmes em película.
Muita coisa foi feita, muito foi feito nesses últimos dez anos.
Mas muito, muito mais precisa ser feito para que a memória
audiovisual brasileira seja preservada com segurança técnica.
Um passivo histórico de décadas não é zerado facilmente. É
preciso mais esforços, é preciso mais empenho para preservar e restaurar, isso sem isolar a Cinemateca do debate da
atualidade. E o debate da atualidade de um arquivo de filmes
é o mundo digital. É preciso pensarmos em profundidade os
usos e abusos do digital.
A tecnologia fotoquímica atingiu seu ápice. Conhecemos hoje
em dia seus limites e o quanto se pode mesclar com a tecnologia digital. A tecnologia digital, ao contrário, está em pleno
curso e nos últimos dez anos acompanhamos sua evolução
e a ampliação constante de seus limites, na prática. E aliar as
duas plataformas tecnológicas é primordial.
Os desafios são múltiplos nesse cotidiano: a passagem do
tempo promove a deterioração dos suportes físicos em que
estão registrados imagens e sons e o desenvolvimento de novas tecnologias faz com que a preservação desses conteúdos
ganhe novas funcionalidades, mas também novos problemas
para sua permanência a longo prazo.
Já que você mencionou a questão do digital, vamos passar a ela. A Cinemateca tem recuperado digitalmente
obras fundamentais do cinema brasileiro. Como se deu
a opção pelo digital, pela tecnologia a mais moderna em
uma cinemateca tão atrasada?
Em primeiro lugar, quem quiser se iniciar nesse debate,
precisa ler o fundamental Dilema digital. Trata-se do melhor
estudo sobre o tema, realizado nos Estados Unidos e que a
Cinemateca publicou no Brasil. Quem quiser conferir, basta ir
ao site da Cinemateca e baixar o pdf. Nesse estudo incrível, é
feita a análise mais completa da questão nos mais diferentes
campos, na medicina, no exército, nas Ciências da Terra, na
supercomputação, na administração governamental, até
chegar­ao cinema.
Realizado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, o Dilema digital descreve as
dificuldades enfrentadas por quem tem que lidar com a nova
tecnologia: a migração constante de mídias, a elaboração de
processos de recuperação de tecnologias ultrapassadas em
um circuito onde a obsolescência é programada, as formas de
se armazenar e proteger o digital contra os danos do tempo.
O desenvolvimento constante, a variação de formatos, que
tornam obsoleto em pouco tempo as mídias, mas também
as máquinas que as leem, exigem do arquivo de filme um
investimento praticamente ininterrupto e bem custoso. E
não tem jeito, essa é uma condição com a qual devemos
nos conscientizar: investimentos e investigações constantes.
Evidentemente, que esse acompanhamento da evolução tecnológica deve ser refletido e crítico. As conclusões do Dilema
não são muito otimistas. Em breve publicaremos a tradução
do Dilema Digital 2.
Se não seguirmos os desenvolvimentos tecnológicos colocaremos em risco o que preservamos a duras penas. Claro, a
situação se agrava ainda mais quando pensamos na preservação da produção atual, feita praticamente com tecnologia
digital. As obras em películas, essas têm uma longevidade
comprovada, desde que preservadas em condições adequadas e manipuladas com os devidos cuidados decorrentes do
conhecimento técnico. Mas os materiais produzidos direta-
mente no digital, esses engendrarão grandes problemas para
o futuro próximo.
A restauração digital de uma obra em película é realizada com
a geração de arquivos digitais, a manipulação desses arquivos
com fins de preservação e restauro, e muitas vezes o retorno
à película. É o que se convencionou chamar de intermediação
digital com transfer back to film. Esse é um trabalho que permite ampliar em muito o metiê da restauração. Dessa forma,
obtemos uma versão em película, cuja longa vida é garantida,
e uma versão digital, cuja capacidade de acesso é enorme
mas cuja sobrevivência depende de providências constantes.
Nesse sentido, o processo de restauração com tecnologia
digital desenvolve aportes inéditos para a restauração e a preservação audiovisuais.
Mas a questão se adensa quando pensamos na preservação
dos materiais captados unicamente em tecnologia digital.
Esses precisam de migrações periódicas, precisam de planos estratégicos muito bem definidos, que acompanhem as
inovações da indústria sem que nos tornemos reféns desse
progresso cujo fim é em si mesmo. Por isso, uma Cinemateca
viva deve refletir incessantemente sobre sua política de restauro, preservação e acesso. E foi esse o esforço da Cinemateca
Brasileira nesses últimos anos: formular ações de curto, médio e longo prazo, que protejam e garantam a permanência
dos acervos. Evidentemente esse tipo de consciência precisa
ser amparado pelo reconhecimento institucional e político que
merecem nossa história e cultura audiovisual. É preciso que o
Brasil supere suas dificuldades com a preservação de sua memória e enfrente decididamente o que fará com as imagens
e sons do passado e do presente mais recente. E isso é uma
questão que envolve cineastas, políticos, historiadores, restauradores, espectadores, produtores, toda a sociedade.
que promove e louva a tecnologia digital, investe muito pouco
na sua preservação e, ela mesma, faz cópias em películas de
qualquer lixo produzido digitalmente.
Por outro lado, demonizar o digital é um erro, sobretudo quando ele pode fazer com que saltemos etapas de desenvolvimento tecnológico, construindo possibilidades de recuperação
da memória audiovisual brasileira de forma inédita. As novas
ferramentas fornecidas pela ciência e pela indústria podem
nos ajudar a proteger e melhorar a vida, mas também podem
destruir nossa herança e comprometer o futuro. Por isso, o
uso crítico e em diálogo é decisivo.
O digital não é só risco. O acesso permitido por ele é sua
maior qualidade, e, para fazer uso de novo do cinematequês:
difundir é preservar e vice-e-versa. O digital tem outras qualidades também, como sua inestimável contribuição para os
trabalhos de restauro. Ele pode ajudar muito na preservação,
como ajudou na recuperação do acervo do cineasta Andrea
Tonacci, um acervo com muitos materiais em formatos pequenos – 8mm, Super-8 e 16mm.
O trabalho com o digital nesses formatos reduzidos é de extrema valia para a recuperação de acervos privados não-profissionais. A transição do conteúdo para o formato digital deu
acesso a uma rica diversidade de material amador e familiar,
cuja importância histórica é possível conferir no movimento
Homemovie Day, do qual a Cinemateca participa anualmente.
Quais os limites do restaurador? Quanto ele pode intervir
no trabalho original do cineasta?
O digital é sem dúvida um risco. Mas um risco do qual não
podemos nos furtar. Ele é uma realidade. Penso que não é
possível para uma cinemateca deixar de acompanhar o desenvolvimento dessa plataforma. É certo que, nos dias que
correm, nunca se produziu tantas imagens, e mais certo ainda
que as perderemos também como nunca. A pretensão de
uma memória total é uma grande ilusão.
O trabalho do restaurador passa por diversas instâncias, não
apenas a execução técnica. A curiosidade e a intuição são as
principais ferramentas de um restaurador. É necessário um
espírito de constante questionamento do objeto em restauro,
disposição que faz com que surjam problemas de ordem histórica, estética, econômica e até afetiva. Quantos detentores
de direito não insistem para que “erros” nas versões “originais”
sejam “corrigidos” nas versões restauradas? É o famoso binômio defeito/efeito! É uma situação muito delicada a do restaurador. Nos movemos por campos diversos e a inquietação
técnica já mencionada precisa sempre dar lugar aos conhecimentos objetivos organizados durante o processo.
Em um texto recente e provocador, Paolo Cherchi Usai se coloca na pele de um cidadão em 2030, interessado em memória. Apesar de bem humorada, não é nada animadora a “futurologia” do arquivista italiano. A própria indústria do cinema,
Mas já que você falou nos limites do restaurador, vamos
ao caso emblemático de Limite (1930). (Risos). Como
sabe qualquer iniciante no cinema brasileiro, Limite é um
mito nacional, que toca a todos, quer saibamos ou não
O digital é um risco?
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de sua existência. Quem não gosta de Limite bom sujeito
não é. Até Glauber, quando escrevia sua Revisão crítica,
precisou tratar do filme sem tê-lo visto.
Para a nova restauração de Limite, a Cinemateca foi convidada
pela Videofilmes para se engajar na empreitada. Saulo Pereira
de Mello e Walter Salles já trilhavam a missão de salvar os
materiais sobreviventes e feitos por Saulo 30 anos antes. Intencionavam fazer uma cópia com a banda sonora impressa, para
que o filme pudesse ser exibido em projetor 35mm em sala
de cinema convencional, sem que precisasse sincronizar com
os discos e a vitrola. Porém, diante dos resultados do trabalho
desenvolvido até então, e perseguindo um melhor resultado na
tela, os empreendedores e batalhadores de Limite nos procuraram para juntos reunirmos todos os esforços possíveis. Isso foi
em 2002, quando não tínhamos ainda toda a infraestrutura digital implantada no laboratório da Cinemateca. Parti para a copiagem óptica, com janela molhada, para gerar um novo máster.
Com esse material em mãos, pudemos fazer o escaneamento
em alta definição e partir para a restauração digital. A primeira
parte desse trabalho foi feita na França, até que, em 2007, o
filme foi exibido no Festival de Cannes, e coincidiu com o início
das atividades da World Cinema Foundation (WCF), fundada
por diversos cineastas e encabeçada por Martin Scorsese para
a preservação de obras audiovisuais. Nasceu nesse momento
mais um avanço para a restauração de Limite. A etapa digital
que faltava foi encampada pela WCF e a restauração da obra
de Mário Peixoto finalmente foi terminada pela Cinemateca
Brasileira em conjunto com o laboratório Immagine Ritrovata,
ligado à Cineteca de Bologna, responsável por um sem número
de restaurações. Antes dessa restauração e de ser reconhecido
como patrimônio regional pela Unesco, em 2009, Limite tem
toda uma história. O Chaplin Club de Octavio de Faria e Plinio
Sussekind Rocha defendeu Limite incondicionalmente.
Mas voltando à última restauração, Limite foi recuperado conjuntamente, com a Cinemateca definindo os parâmetros do
trabalho, e com supervisão total de Saulo. Foi com Limite que
percebi os limites da tecnologia digital. É fundamental para
qualquer restaurador conhecer as capacidades e alcances de
suas ferramentas. Com Limite chegamos a um nível de preservação, onde a intervenção digital, para superar as marcas
do tempo, ameaçava descaracterizar a obra. E foi nesse ponto
que eu disse: “Aqui nós paramos!” É preciso saber quando a
tecnologia deve conviver com as marcas deixadas pelo tempo
e não simplesmente elidi-las na busca de uma pureza técnica.
Para essa restauração também foi imprescindível a pesquisa musical. Adriano Campos, um amante e conhecedor da
música­, foi incansável buscando no mundo todo as gravações
remasterizadas das versões utilizadas por Mário Peixoto para
compor a trilha do filme. E, todo esse complexo foi regido por
Saulo, com grande sinergia.
Existe uma restauração definitiva?
É óbvio que não! Diante de uma obra, não importa qual seja
ela, o restaurador deve ter profunda humildade e consciência
de seu trabalho provisório, que pode (e deve) ser continuado
por outrem. Os instrumentos e as soluções encontradas em
um determinado momento para o restauro de uma obra cinematográfica, podem não ser os mais adequados. Muitas vezes
descobrimos que o que nos ocupou durante meses, pode ser
pensado e executado de outra forma, em outro momento, às
vezes até menos custosa. Então esse trabalho de restaurador
é uma pesquisa constante, uma busca sem fim. Não existe o
definitivo neste trabalho. Isso é arrogância, que supõe sempre
ignorância. Como nos lembra Sarah Walden, tratando do restauro em pintura, a regra fundamental é evitar os extremos
românticos, que se manifestam na forma de um estetismo
deliberado, ou pelo equívoco da própria ciência e seu teatro
contínuo de novas “descobertas”. Ninguém nega a importância da ciência nesse domínio, mas, para um profissional, ficar
demasiadamente enfeitiçado por suas ferramentas revela
uma fraqueza e uma falta de maturidade perigosas. O que
existe é o trabalho paciente, coletivo, científico que não deve
enrijecer a prática artesanal exigida por cada filme.
O trabalho verdadeiramente coletivo é fundamental. Parece algo
óbvio, mas não é, principalmente quando falamos do meio de
restauração. O gosto pelo segredo que tem os restauradores, de
quem os métodos e as receitas raramente são públicas, é algo
contrário ao metiê, pois impede que uma crítica nasça e renove
constantemente os trabalhos. É preciso que haja debate, críticas
e que se forme uma comunidade ativa, principalmente nesse
momento dos primeiros passos no digital.
Todo o trabalho realizado na Cinemateca nos últimos anos só
foi possível graças ao conjunto de colaboradores e parceiros,
mas sobretudo à formação de uma nova equipe técnica.
Ao longo dos últimos anos, recebemos restauradores e profissionais do mundo todo, grandes nomes que contribuíram
para o nosso desenvolvimento com cursos e oficinas, sempre
abertos aos interessados. Recebemos Johan Prijs, restaurador
experiente, fundador do laboratório de restauro Haghefilm
(Holanda), e, nessa época, ligado ao acervo de um colecionador
italiano; Ray Edmondson, profundo conhecedor de diversas
tipologias de arquivos de filmes no mundo todo e militante da
Filosofia do Arquivo Audiovisual, se propôs a fazer várias dinâmicas de oficinas envolvendo todos os técnicos da Cinemateca
na semana que aqui esteve. Vieram outros técnicos de áreas
diversas, como Katie Trainor, especialista em Projeção, do
MoMA/NY, Chad Hunter, coordenador de preservação da George Eastman House, Davide Pozzi, do laboratório Immagine
Ritrovata, Eric Rault, do INA Institut National de l’Audiovisuel,
Noel Desmet, então da Cinémathèque Royale de Belgique e
quem emprestou o nome para processo Desmetcolor, Luigi
Pintarelli, na época ligado à Cinemateca Portuguesa, Daniel
Wagner, coordenador de restauro digital da George Eastman
House, na tentativa de convergir para a discussão em torno da
realidade brasileira, latino-americana e mundial.
Notas
Entrevista realizada ao longo dos três primeiros meses de 2013, com
Adilson Mendes, Carlos Marques, Fernanda Guimarães, Ligia Farias,
Olga Futemma e Rodrigo Mercês.
1
Aloysio Pereira Matos é um personagem importante na história da
Cinemateca Brasileira. Ao longo da década de 1960 ele foi o zelador
geral, o revisor de filmes e o responsável pelo envio e entrada de filmes.
2
O sinistro aconteceu no depósito 4, que tinha filmes em nitrato, no
Parque Ibirapuera no dia 06 de novembro de 1982..
3
Nossos técnicos também realizaram cursos importantes.
Luiza Malzoni desenvolveu trabalho de restauro no ANIM –
Arquivo Nacional de Imagens em Movimento, da Cinemateca
Portuguesa, visitou o especialista Noel Desmet na Cinémathèque Royale de Belgique e as oficinas da ARRI em Munique.
Flavia Barreti e Rodrigo Mercês participaram da Fiaf Summer
School, na Cineteca de Bolonha, em 2008 e 2009. Ernesto
Stock estagiou no National Film Board, em Montreal, Canadá,
no campo da digitalização e Frederico Arelaro participou de
encontros técnicos no INA. Enfim, um debate constante cujo
resultado é a avançada instituição que vemos hoje. Ou seja,
uma verdadeira revolução que, esperamos, não seja inter­
rompida na perspectiva dessa nova gestão que se apresenta.
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O Mapa de Saulo
Adilson Mendes
Pesquisador da Cinemateca Brasileira
O trabalho do restaurador de filmes se transformou radicalmente com o advento da tecnologia digital, exigindo conhecimento científico e constante pesquisa bibliográfica, sempre
atenta às novas ferramentas e aos avanços da profissão. Se
o trabalho se complexificou e as novas possibilidades são
gigantescas, por outro lado, o perigo da tecnificação nunca
foi tão grande. O trabalho de restauro feito pelos primeiros
homens de cinemateca, homens empenhados em comprovar
o valor de uma cultura underground, contava com um forte aspecto artesanal, o que fazia com que esses restauradores se
tornassem conhecedores das diferentes etapas do processo.
Elemento decisivo, a erudição cinematográfica se somava ao
domínio técnico rudimentar, e ao profundo amor pelas obras,
por suas histórias, pelos lugares que ocupavam na história
geral do cinema. A intuição completava esse restaurador, cuja
figura era uma espécie de cinéfilo alquimista. Há na história da
arte um tipo semelhante, o perito, no sentido de “conhecedor”
(conoscitore). O perito construía seu trabalho menos por uma
pesquisa sistemática e teórica, e muito mais por uma prática
intensa da arte. Com o conhecimento da obra e de seu contexto, ele distinguia a escola, a personalidade, o estilo do autor por
detrás da obra. Graças ao trabalho dos peritos autores como
Vermeer foram salvos para a história da arte.
Saulo Pereira de Mello é um dos últimos representantes
dessa tradição de restauradores-peritos. Seu trabalho em
torno de Limite possui momentos que alternam intuição,
improviso técnico e júbilo intelectual e artístico. Desde a
primeira vez que viu o filme de Mário Peixoto, no começo
da década de 1950, numa das apresentações patrocinadas
por Plinio Sussekind Rocha na Faculdade Nacional de Filosofia, Saulo foi arrebatado pelo filme e nunca mais deixou
de pensar na obra. Quando mestre Plinio informou a ele
que Limite corria sérios riscos em razão de sua deterioração, Saulo não poupou esforços para impedir o desaparecimento dessa obra que, para ele, está entre as maiores da
cultura ocidental.
Para a recuperação de Limite, Saulo lançou mão de seus conhecimentos de estudante de física, leu inúmeros manu­­­ais,
frequentou diversos laboratórios comerciais, ouvindo técnicos e pessoas dispostas a ajudar. As soluções imaginadas
para conter a lepra do tempo possuíam grandes doses da
ousadia dos obstinados. A história de Limite tem em Saulo
um capítulo fundamental e sua ação restauradora ultrapassa em muito a finalidade técnica e a vontade de devolver um
clássico à humanidade.
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O Mapa de Saulo
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O Mapa de Saulo
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Sem nunca ter sido lançado comercialmente, o filme se
transformou em mito graças ao Chaplin Club, o primeiro
cineclube brasileiro. Para aqueles jovens vanguardeiros,
o filme era a realização de seus ideais estético-místicos.
Entre eles estavam Octavio de Faria, Almir Castro e Plínio
Sussekind Rocha, que se tornou o eterno defensor do filme,
realizando projeções privadas e angariando corações para
uma restauração.
Enquanto o culto ao filme se ampliava, a deterioração de
seus materiais o ia transformando numa obra de difícil
acesso. Saulo fala em quatro projeções realizadas por
mestre Plínio na Faculdade Nacional de Filosofia: 1946, 1948,
1952 e 1959, esta última repleta de problemas em razão da
avançada decomposição da obra.
Com a morte de Edgar Brasil (1954), Mário Peixoto entrega
os materiais do filme para que Plínio o restaure. Em 1971,
graças aos esforços e invenções de Saulo, foi concluída a
primeira e decisiva restauração. O filme foi exibido publicamente em 1978. Uma etapa posterior ao restauro se deu
com a confecção do Mapa de Limite, livro realizado inteiramente por Saulo, onde aparecem todos os fotogramas
remanescentes do clássico, reproduzidos pelo próprio Saulo.
Concebido como desdobramento do ato de restauro, o Mapa
de Limite foi publicado em 1979, com o título Limite: filme de
Mário Peixoto.1 A “boneca” que suscitou esta nota se encontra
no Arquivo Mário Peixoto, no Rio de Janeiro.
No livro publicado, Saulo, com seu espírito zoroástrico,
evidencia a leitura de Spengler, faz menção a Goethe, Bach,
Malraux e até Walter Benjamin. Sua visão é ciclópica e está
voltada para o universal. A grande Arte e o posicionamento­
de Limite diante dela são seus temas. Para defender “a
linhagem que vai de Intolerance a Limite”, Saulo procura­uma
nova forma de tradução da experiência da obra cinematográfica e inventa um livro-forma, cujo paralelo é com as
antigas iluminuras. O propósito do Mapa de Limite é manter
as sensações do filme naquele que já conhece a obra e, para
o iniciado, o livro traz a potência fotogênica criada por Mário
Peixoto e Edgar Brasil. O esforço do Mapa de Limite é salvar
a forma do roteiro, conduzi-la à autonomia artística que tem
uma peça teatral como Hamlet, cujo texto persiste independente da encenação.
Mas um outro significado subjaz no livro, um significado mais
pessoal, que se perdeu na passagem da “boneca” artesanal
para o livro editado: um significado que nos remete ao drama
de um restaurador-perito e à perda da obra amada. No livro
editado, as imagens são esmaecidas e o contraste entre o
preto e o branco perde completamente sua força. Já a brochura confeccionada por Saulo guarda as marcas do tempo:
o papel amarelado que serve de suporte para as imagens
fez vibrar ainda mais o contraste entre os planos e dentro de
cada um deles. Além disso, essa brochura possui a escrita
de seu autor, que pontuou cuidadosamente cada fotograma,
descrevendo os procedimentos da montagem do filme e comentando sinteticamente as imagens. Nessa obra de artesão
vemos toda a verdade poética do trabalho rigoroso e a paixão
que só admite comparações com os grandes momentos da
humanidade. Entretanto, confeccionado com a intensidade
virulenta que marca a personalidade de Saulo, o Mapa amplia
seus significados se o vemos como um mecanismo compensatório, um substitutivo para o que realmente era importante
para ele: o convívio com a obra-prima.
Foi Péguy quem disse que a pessoa que tudo compreende
está pronta para todas as capitulações. Quando o desejo de
ação, de construção, encontra barreiras ao mesmo tempo
absurdas, injustas e intransponíveis, quando se atinge o
limite em que habitualmente se perde a cabeça, só resta racionalizar a situação e se perdemos a parada sobra apenas
o consolo em relação às forças que nos venceram, uma lucidez que elas não têm quanto a nós ou a si próprias. E o Mapa
de Limite nasce desse embate do homem com a realidade
adversa. Em 1974, após a conclusão da primeira restauração
de Limite, Mário Peixoto vendeu o filme para a Funarte, e o
material, que por quase duas décadas permaneceu sob o
poder de Saulo, foi recolhido inteiramente. A tristeza e a sensação de vazio que tomou Saulo fez com que sua imaginação inquieta buscasse uma compensação imediata para tal
perda. Segundo o próprio restaurador, na introdução do livro
publicado, o Mapa “é apenas uma aproximação à ‘realidade’
Limite, uma espécie de intermediário, um meio-caminho
entre o recordar e o momento da existência: o reinstaurar,
na sensibilidade de quem “lê” ou contempla, as vivências
provocadas pelo filme no momento da projeção.”
Com a separação do filme, Saulo se viu como o pintor de
Poe, que após concluir o retrato da amada, percebe que ela
está morta, apesar de ter ganhado vida no quadro. Foi assim
que tratou de pintar seu “quadro” de Limite para o único fim
de sua contemplação; se anos depois o trabalho veio a ser
publicado, isso foi apenas uma consequência inesperada.
Enquanto fazia seu “duplo” de Limite, ele se apercebeu
da tarefa impossível a que se submetera, pois a obra em
processo nunca seria o próprio filme, e para superar tal
situação sonhou algo ainda maior, sonhou e realizou uma
obra a partir de Limite, uma obra em que o filme é o centro,
mas para a qual o trabalho do restaurador se tornou uma
espécie de equivalente ao do próprio demiurgo fundador
da obra. Com o Mapa de Limite, Saulo agiu como Edmond
de Goncourt que, após a morte de seu irmão Jules, fez
editar um livro sobre os objetos colecionados por ambos, na
tentativa de diminuir a falta. Em cada objeto fotografado há a
Notas
1
MELLO, Saulo Pereira de. Limite: filme de Mário Peixoto. Rio de
Janeiro: Funarte, 1979. Vale destacar a ousadia editorial do livro, um
tipo inédito no mercado editorial brasileiro que deve ser creditado a
Fernando Ferreira, então diretor da Inelivro, co-editora da obra.
presença do irmão morto. Em cada imagem da brochura de
Saulo pulsa a perda de Limite.
Esse Mapa, muito mais do que auxiliar na geografia do filme,
permite uma viagem ao insondável da criação e ao gênio de
quem se aventura nas altas esferas.
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dossiê
Por um acaso da paciência –
a coleção de Fernando Pereda
Sofi Richero e Alejandra Trelles
pesquisadoras da Cinemateca Uruguaia
“Ser testemunhas de uma vida que passou e que nos conduz ao domínio da ficção cinematográfica, a uma época
passada cheia de luzes e sombras, de muros reluzentes, de brancas mãos enluvadas, de perfumes violetas, de
galanterias e romantismos produz em nós uma infinita tristeza e a singular emoção de nos aproximarmos de um outro
mundo animado, distinto de nosso cotidiano que, por sua vez, um dia, inevitavelmente, não mais será (passado).”
Fernando Pereda
“(…) com a valiosa colaboração de meu amigo José Carlos Álvarez, pudemos fazer o estudo de filmes do período primitivo
e ocuparmo-nos de uma parte ainda desconhecida; inominada para nós mesmos, desta cinemateca que tenho o trabalho
e o prazer de vir criando desde 1935 para o Uruguai. Aparecem testemunhos que corroboram ou retificam a história
já feita. Ocorre a circunstância singularíssima de que seja possível, sem sair de Montevidéu, continuar aumentando a
história europeia e geral do cinema e encontrar ‘novos’ filmes que pomos entre os ferros do projetor para uma forçada
resurreição. Este é um momento muito particular, porque existe um risco em se assistir a um filme que ficou oculto
durante muito tempo e que ainda não se conhece: em quase todos há demasiada ‘morte indissimulável’. E acrescento
agora: um filme depois de anos de clausura já não é idêntico ao de sua primeira projeção; o tempo também filma.”
Fernando Pereda
Em 1910, Montevidéu era uma cidade habitada por apenas
328.410 pessoas e contava com 33 salas de cinema que
vendiam um milhão e meio de entradas. Os números foram
crescendo até alcançar seu recorde em 1953: 19 milhões
de entradas em 105 salas, em uma cidade que tinha uma
população de menos de 826 mil habitantes. Ao chegar no
Uruguai, o cinema logo conquistou o interesse do público,
que rapidamente se tornou um país de fãs e de críticos.
Raro era não ser nem uma coisa nem outra; o cinema, na
primeira metade do século XX, foi no Uruguai um verdadeiro
acontecimento a que ninguém era alheio. Assim, a intelectualidade uruguaia logo reconhecerá a nova arte emergente
e escritores da magnitude de Horacio Quiroga ou Felisberto
Hernández lhe reservam um lugar privilegiado: Quiroga
dirigirá a sessão (coluna) de cinema da revista bonaerense
Atlántida; Felisberto Hernández percorrerá o país inteiro
com seu piano virtuoso acompanhando exibições de cinema
mudo. A paixão do cinema também arrebatará o poeta
bissexto Fernando Pereda.1
Nessas sessões de cinema, o jovem Fernando Pereda, que
havia nascido no ano de 1899 na cidade de Paysandú, ao norte do país, no litoral do rio Uruguai, foi formando seu gosto
cinematográfico e colhendo os frutos de uma admirável
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Por um acaso da paciência – a coleção de Fernando Pereda
116
erudição a respeito do cinema mudo que chegava de todos
os cantos do planeta. Com o advento do cinema sonoro, e
em um ato ao mesmo tempo nostálgico e redentor, Pereda
decide se encarregar da recuperação das cópias daqueles
filmes que haviam formado seu espírito durante sua infância
e adolescência. O empreendimento durará a maior parte de
sua vida e lhe valerá a justa reputação de haver sido um dos
mais importantes colecionadores de cinema da América
Latina, quiçá do mundo. Em um artigo datado de 1984,
Homero Alsina Thevenet o compara a Henri Langlois e, após
mencionar a cópia de O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinet
Der Dr. Caligari, 1919), que Alsina Thevenet2 equivocadamente
acreditava única na cinemateca de Pereda – havia duas,
como se soube mais tarde –, conclui que essa cópia singular,
com viragens coloridas, “em colorações azuis e marrons”,
teria atormentado a vaidade do francês: “
Junto a outras cópias diversamente incompletas
obtidas em Londres, Berlim e Munique, a versão de
Fernando Pereda deverá servir para reconstruir com
a maior precisão um reconhecido clássico do cinema
alemão. Se Langlois tivesse chegado a saber desse
tardio logro de Pereda, certamente haveria atravessado agridoces sensações de inveja e de alegria.
“Colecionador”, dissemos, e, no entanto, a palavra é infiel ao
périplo obstinado que o levou a procurar, copiar, classificar e preservar uma coleção abastecida por cerca de 300
cópias entre as que se contam, como se verá, não poucas
do primeiro cinema, verdadeiros incunábulos e outras de
quase milagrosa sobrevivência. O crítico uruguaio Hugo
Rocha opõe à definição de “colecionador” o atributo mais
apropriado de “antologista”, e Wilfredo Penco, crítico literário, amigo e atual guardião de seu arquivo literário, prefere
falar de um “selecionador”. Sua cinemateca privada não foi
meramente produto da “paciência do acaso” ou do “acaso
da paciência”, como certa vez ele mesmo definiu, mas sim
um exercício deliberado, ponderada operação crítica em
que o cinema antigo aparece em destaque. Porque, uma
vez mais, e como explicou ao semanário Brecha 3 de Montevidéu, sua concentração no cinema mudo não obedeceu
a condicionamentos externos, senão a uma vocação sobre
a qual meditou com sua alucinada pluma de ensaista em
longos e rigorosos artigos:
Eu procurava o que queria ver do cinema mudo. Posso esclarecê-lo melhor com o que eu disse para uma
sessão retrospectiva que fizemos nos Amigos del Arte
(cine Mogador, 12 de dezembro de 1941): ‘É comovedor
– talvez por algo próximo do esquecimento e de uma
erudição do sentimento – ver agora certas mostras
anônimas do princípio do século. Qual é o valor atual
destes filmes? O espírito do cinema já está em alguns
deles, equivocando-se ou acertando, desenvolvendo
formas, destacando objetos, sob uma chuva que os
antigos não conheciam, a chuva do celuloide habitado.
Já está lá preparando, para mais tarde, sua grande
aparição em René Clair, Eisenstein, Fritz Lang, Ruttmann, Disney, Chaplin… (…).
Tratando-se do homem a quem o crítico literário Alberto
Zum Felde definiu como “de temperamento apaixonadamente epicúreo, voluptuoso na vida, austero na arte”, não
podia ser de outra maneira. Os mesmos atributos que
Wilfredo Penco lhe reservou em um artigo 4 para falar de
seu obsessivo trabalho poético valem também para sua
condição de “antologista” do cinema:
a concentração, o rigor, o obsessivo afã de perfeccio­
nismo, as minuciosas estratégias sobre cada poema,
o afã obstinado de coerência, a independência como
critério orientador, seu rechaço à publicação que
chamou de “sanha classificatória”.
Em uma carta datada de 7 de outubro de 1940, e enviada a
Guillermo de Torre, Penco menciona a seguinte afirmação
de Pereda: “a cada dia, sobre este maravilhoso e espantoso
mundo, me afirmo mais em uma poética com responsabilidade cabal. E não faço concessões.” Essa mesma poética
do rigor manteve a sua cinemateca, fruto da combustão
entre curiosidade e nostalgia – como certa vez explicou-se
a si mesmo –, em que cada escolha constituiu um “ato de
fé”, tamanho o empenho de Pereda a respeito de qualquer
preferência ou juízo estético:
Então, necessariamente, o juizo é um ato de fé e de
novo deixamos de ouvir a objeção, tão característica da
insensatez na mediocridade, que nos adverte, como se
não nos houvéssemos dado conta, que o que estamos
dizendo é segundo nosso próprio ponto de vista.5
Revelado ao mundo
Em 1985, o atual diretor do Arquivo Nacional da Imagem do
SODRE (Serviço Oficial de Difusão Rádio-Elétrica) do Uruguai,
Juan José Mugni, é convidado a participar do festival Le giornate del cinema muto, de Pordenone, na Itália. Seria a primeira
viagem de Mugni como subdiretor do Arquivo e uma grande
oportunidade, que aceitou com entusiasmo. O diretor italiano
Sergio Leone foi o encarregado de apresentar a retrospectiva-homenagem a seu pai Roberto Roberti, que tinha também
o lançamento de um livro, em cuja capa estava reproduzido
um fotograma de seu filme mais importante, La contessa
Sara, com Francesca Bertini. Leone mencionou com muita
pena que este filme, o mais famoso de seu pai, era considerado perdido e lamentava nunca tê-lo visto. Não existia,
segundo Leone, cópia alguma desse filme em nenhum lugar
do mundo. Mugni, porém, sabia que em Montevidéu estava
guardada uma cópia do filme, incompleta, e subitamente faz
essa revelação em meio à conferência. A reação imediata dos
participantes foi uma mistura de fascinação e incredulidade.
Como poderia existir no Uruguai uma cópia de um filme tão
procurado durante anos e que havia sido finalmente dado por
perdido? O crítico e historiador de cinema Vittorio Martinelli,
impulsionado por um entusiasmo digno do caso, se aproximou imediatamente de Mugni. Assim foi como começou um
trabalho que duraria anos de investigação, recuperação e restauração de alguns dos filmes italianos que se preservavam­
em Montevidéu.
Logo teve início o envio de cópias de filmes emblemáticos
para serem restaurados na Europa. A condessa Sara (La
Contessa Sara, 1919), de Roberto Roberti, foi restaurado
de imediato e exibido na edição seguinte desse mesmo
festival na presença de um emocionado Sergio Leone. Em
seguida foi a vez de outros, como Malombra (idem, 1917), de
Carmine Gallone, ou Carnevalesca, com Lyda Borelli, filmes
que, na sua época, haviam cativado verdadeiras multidões. Pouco a pouco, a notícia de que no Uruguai existiam
cópias de alguns dos filmes que eram dados por perdidos,
incunábulos da cinematografia mundial, foi se difundindo
e, em 1992, quando a Cinemateca Uruguaia organiza o 48 o.
Congresso da Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (FIAF) em Montevidéu, são vários os historiadores que
pedem para conhecer a coleção, cujas cópias se preservavam – e ainda se preservam – no depósito de nitrato do
arquivo da instituição. Segundo Eugenio Hintz6,
Ali mesmo nasceu a iniciativa dos enviados italianos,
que traçaram seu interesse pela realização de novas
cópias dos filmes (…). Propuseram também criar
programas especiais para fazer os filmes circularem
na Itália e em toda a Europa, e inclusive editar um
livro em homenagem a Pereda com a história de sua
extraordinária coleção. Ainda que a ideia do livro não
tenha chegado a se concretizar, em razão das dificuldades de se assumir uma pesquisa densa estando em
um país distante, e pela escassez de dados precisos­,
tudo o mais relativo ao programa se cumpriu.­
Entre 28 de junho e 5 de julho de 1997, se realizou a XXVI
Mostra Internazionale del Cinema Libero, organizada pela Cineteca del Comune di Bologna e o Nederlands Filmmuseum.
Para esta edição, os organizadores escolheram o nome de Il
Cinema Ritrovato e o editorial de seu catálogo afirma:
A parte mais rica desta sessão (Ritrovati e restaurati)
é composta por filmes europeus encontrados em
Montevidéu em cópias completas e esplêndidas. É
difícil acreditar mas, para encontrar a famosa bobina
perdida de Louise Brooks e Siegfried Arno em Diário
de uma perdida (Tagebuch einer Verlorenen, 1929),
de Pabst, foi necessário chegar ao Rio da Prata,
onde o maior poeta uruguaio, Fernando Pereda, em
contato com o ambiente da vanguarda francesa,
havia conservado (os) filmes que amava, obras de
arte em cópias extraordinárias. E junto com Diário de
uma perdida nos restituíram também O estudante de
Praga (Der Student von Prag, 1926), de Henrik Galeen,
e A queda da casa de Usher (La chute de la maison
Usher, 1928), de Epstein.
Nesta edição, dedicada ao cinema redescoberto e restaurado, foram programados 32 filmes de curta metragem
de sua coleção de filmes antigos e 4 longas-metragens
(Diário de uma perdida, O estudante de Praga, A queda da
casa de Usher e O braseiro ardente [Le brasier ardent, 1926],
de Mojukin).
Juan José Mugni conta, com uma mistura de humor e
frustração, que seu primeiro trabalho no Cine Arte do Sodre
foi ordenar os fragmentos existentes da cópia do filme de
Pabst. Eugenio Hintz lhe entregou o roteiro e os nitratos e ele
empreendeu pacientemente a tarefa que o manteve atado à
moviola durante longos dias. Mesmo assim, não pôde ordenar o filme, pois além de faltarem partes, vários fragmentos
não constavam do roteiro. Quando Mugni viaja a Wiesbaden
em 1986, levado por uma curiosidade que havia crescido
nele durante muitos meses, pede à Fundação Murnau para
ver a cópia completa do filme. Ao fim da projeção, sem dissimular seu espanto, Mugni lhes disse: “Agora entendo o filme,
mas nós temos pelo menos uma parte e várias cenas que
não aparecem aqui e que são necessárias para completá-lo”.
Mugni descreveu então detalhadamente a longa cena do
prostíbulo e narrou tudo o que acontecia nesses rolos,
que­ele conhecia de memória, mas ninguém lhe deu crédito.­
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Foi preciso esperar a visita de Farinelli e Martinelli a
Montevidéu­para que finalmente essa versão do filme fosse
restaurada. Dezenas de títulos de filmes mudos provenientes da coleção de Fernando Pereda têm sido copiados e restaurados, num trabalho que continua, pois constantemente
cinematecas e arquivos do mundo todo solicitam materiais
para a recuperação das jóias cinematográficas que Pereda
encontrou e selecionou durante longas décadas.
O prestidigitador
“Minha mãe, Maria Francisca Mantero, era muito sensível.
Ela amava a poesia: a sensibilidade e a emoção, em mim, vêm
muito especialmente dela”, afirmou Pereda a Jorge Arias em
outra entrevista ao semanário Brecha 7. E a sensibilidade,
a paixão, o “gozo” – palavra que retorna em tantas de suas
páginas – eram qualidades de um homem a quem caberia
qualificar de excêntrico, quando o termo é o estrito sinônimo
da pura virtude. O próprio Pereda, que provinha de uma
família abastada, não se reserva em contar suas “excepcionalidades” precoces, e menciona com orgulho suas inquietas
recitações de Don Juan Tenorio com apenas oito anos – daí
vinha também seu gosto e a perícia para a esgrima –, e o
fascínio que lhe provocavam a prestidigitação e a magia
(o cinema, claro, mas também a alquimia, a levitação e os
circos ambulantes do interior do Uruguai).
Em 1924, durante sua primeira viagem à Europa com a
familia, Pereda ficou encantado com a levitação de Frégoli,
“o prestidigitador transformista italiano”. Naquela época já
sentia forte empatia pela Espanha e em especial pelo “cante jondo”, que conheceu em um prostíbulo de Cádiz durante
aquela viagem, iniciando-se assim em uma vocação duradoura, que mais tarde o levaria a investigar com grande
rigor a música flamenca. Ao lado de sua segunda esposa e
companheira da vida inteira, a crítica de dança e fotógrafa
Isabel Gilbert, e em algumas das auráticas tertúlias que
acompanhavam as projeções privadas que Pereda realizava para um seleto grupo de convidados em suas duas casas – primeiro na parte de cima da casa da rua Yí, no centro
de Montevidéu; mais tarde em sua casa da rua Divina
Comédia em Carrasco, um bairro residencial na costa da
cidade –, vez ou outra os anfitriões recebiam seus convivas
com trajes de luzes e vestidos flamencos. Em uma crônica,
Paulo Emilio Salles Gomes narra com precisão o que era a
personalidade de Pereda e como os filmes faziam parte de
um todo, constituído por poesia, performance, dandismo e
cinema. Diz o crítico brasileiro:
Fernando Pereda é um poeta uruguaio que possui
em sua mansão do bairro de Carrasco, em Montevidéu, uma extraordinária coleção de filmes primitivos
e clássicos. O pouco que o poeta publicou se encontra
disperso em revistas, na memória dos ferventes
admiradores e em fios de magnetofone. A respeito de
filmes creio que escreveu apenas alguns textos curtos
publicados numa revista de cineclube. Encontrei
Pereda duas vezes e apesar do fascínio que exerceu
sobre mim não pude forçar suas defesas. Comigo a
forma de diálogo que escolheu foi a exibição de uma
cópia rara de O estudante de Praga, com Conrad Veidt
e Werner Krauss. Manipulando pessoalmente um
modelo de projetor cinematográfico de 1911, o poeta
e colecionador é, nos gestos e nas observações, um
grão-senhor empenhado num elaborado ritual de
cortesia. Ao mesmo tempo que coloca o visitante
à vontade, Pereda resguarda-se e opõe um pudor
extremo à curiosidade intelectual que o escolhe como
alvo. Ele deve ser bastante enigmático, pois observei
que amigos chegados encontram dificuldade em,
não direi explicá-lo, mas simplesmente descrevê-lo.
Ouvi algumas poesias, li um seu artigo, vi-o dançar
o flamenco, sei muito pouco a seu respeito, mas
impressionou-me a presença soberana ou infiltrada
da morte em sua obra. Quando contempla os velhos
filmes, ele não escapa a essa temática obsessional.
Aos seus olhos, as fitas primitivas eram, na ocasião
em que foram realizadas, uma prestidigitação alegre,
uma magia branca. Nenhum espectador experimentara ainda a surpresa de ver na tela seres que haviam
deixado de existir. Em seguida, porém, as mortes e
as ruínas fizeram com que a magia se tornasse cada
vez mais obscura. Pereda está convencido de que
certos animais – os cachorros que acompanham as
correrias nas fitas cômicas – “son los primeros fantasmas inadvertidos”. 8
Essa sessão que Paulo Emilio descreve era uma prática
constante em Pereda. A noção de “projeções privadas” é, no
entanto, muito tímida para nomear o que aqueles eventos
proporcionavam. “Tertúlias” é um termo mais exato porque,
junto ao privilégio de se assistir a uma sessão de Um
chapéu de palha da Itália (Un chapeau de paille d’Italie, 1926),
de Clair; A mãe (Mat, 1927), de Pudovkin; A condessa Sara;
O diário de uma perdida, Os quatro demônios (Vier Teufel,
1928), de Murnau; O estudante de Praga, Os Nibelungos, a
morte de Siegfried (Die Nibelungen: Siegfried, 1924), de Lang;
e O gabinete do Dr. Caligari, somava-se a atmosfera de
sofisticada elaboração com que Pereda se empenhava em
receber seus amigos.
Não se tratava unicamente, ainda que fosse o principal, de
assistir na tela o que quase ninguém podia ter visto antes;
havia também jogo, jantar e vinhos deliciosos, e uma atividade performática que às vezes se estendia até o amanhecer e incluía a prática da esgrima, a leitura de poesia, o comentário e a análise cinematográfica, e a exibição de “raras
peças bibliográficas”, segundo descreveu Wilfredo Penco.
Gabriel Peluffo 9 recorda, com seu pai, Darwin Peluffo,
grande amigo de Pereda, que visitou algumas vezes sua
residência em Carrasco; certa vez disse ter ficado mudo ao
descobrir que aquele brasileiro que tocava tão bem o violão
era ninguém menos que Dorival Caymmi.
Nas cadernetas confeccionadas por Isabel Gilbert, que pertencem ao arquivo de Pereda, cada convidado corresponde
a um número e em apêndice há represálias para os que
faltavam sem aviso: “16 de julho de 1940, faltou o [número]
35 sem avisar”, ou “28 de novembro, 5, tendo insistido para
trazer um amigo, e tendo se comunicado em cima da hora
para avisar que chegariam tarde, não chegou, nem avisou
mais nada. Não convidá-lo mais.”
Uma passada de olhos rápida e desordenada por essas
cadernetas traz este rosário de nomes: Rafael Alberti,
José Bergamín, Guillermo de Torre, Giuseppe Ungaretti, Henri Langlois, Gisele Freund, Hagen Hasselbach,
Norman McLaren, Jiri Trnka, Jules Supervielle, Leopoldo Torre-Nilsson, Villegas López, Cap Callaway, Inezita
Barroso, Paulo Emilio Salles Gomes, León Klimovsky,
Roger Caillois, Ernesto Sábato, Willy Marchand, Pedro
Figari, Carlos Vaz Ferreira, Susana Soca, Homero Alsina
Thevenet, Hugo Rocha, Danilo Trelles, Lauro Ayestarán,
Enrique Amorim, Darwin Peluffo, Zapicán Regules, Laura
Escalante, Antonio Larreta, José Pedro Díaz, Amanda
Berenguer, Fernán Silva Valdés, Pepe Abbondanza, Hugo
Alfaro, Alberto Zum Felde, Clara Silva, e tantíssimos outros
intelectuais e artistas.
Excêntrico, refinado, epicúreo, gozoso, hermético, cosmopolita e de um cultivado misticismo, Pereda gostava de
seduzir desestabilizando com astuta discrição; ele mesmo
era um sábio prestidigitador de climas especiais, mas ao
mesmo tempo “não era um homem histriônico, havia nele
algo apagado, encarava tudo com muita seriedade”, como
lembra seu amigo e historiador de arte Gabriel Peluffo.
Ainda assim, teimava em provocar desconcerto: no já
citado artigo de Penco, se conta a história de seu encontro
com Jorge Luis Borges em Buenos Aires. Diante da pergunta do argentino sobre quem considerava seu mestre
entre os poetas uruguaios, lhe soltou um “Eu sou discípulo
de meu próprio esqueleto”. O mesmo artigo menciona
o hotel Ermitage de Montevidéu, onde viveu os últimos
trinta anos de sua longa vida. Segundo Penco, seu quarto
iluminava e se desdobrava em “dezenas de livros e outros
objetos que o acompanharam quase até o fim; uma vasilha
persa, um pedaço de ladrilho da Vila Adriana, um prego de
uma porta de El Toboso, papéis de outros séculos, baús repletos de recordações, duas magníficas lanternas mágicas.
Às vezes uma delas projetava no alto do quarto escurecido a
provocadora imagem de um arlequim a cavalo, galopando
sobre as estantes onde se acomodavam com certa desordem poemas com autógrafos de Vicente Huidobro, Oliverio
Girando, Alfonsina Storni, Cecilia Meireles, José Bergamín,
entre outros.”
“Viajante vagaroso”, afirma Penco, e “homem do mundo”,
dizem outros, foi também amigo e correspondente privilegiado de muitos intelectuais, colecionadores e críticos de
peso: em seu arquivo zelado por Penco há cartas trocadas
com José Bergamín, Luis Campodónico, Sergio de Castro,
León Klimovsky, Manuel Peña, Nei Duclós, Henri Langlois,
Paulo Emilio Salles Gomes, entre outros. Houve muitos
homens de talento em seu círculo: como recorda Gabriel
Peluffo, León Felipe frequentou algumas vezes sua casa de
infância na Colonia Valdense; seu pai, Darwin Peluffo, muito
amigo de Pereda, era o privilegiado anfitrião daqueles
encontros. Federico García Lorca esteve também entre os
convidados, durante sua visita ao Uruguai em 1934. E se
sabe que Julio Cortázar lhe confiou a primeira leitura de
seu Bestiário.
A doação
Em 1935, quase por graça do destino, Pereda adquire seu
primeiro projetor de cinema, acionado a manivela. Um incêndio ocorrido em uma loja de brinquedos da cidade velha
de Montevidéu originou a venda do pouco que se havia
salvo das chamas: os projetores e uma certa quantidade de
filmes mudos de apenas uma parte. Poucos meses depois,
em abril de 1936, em uma livraria vizinha à sua casa do
centro de Montevidéu, em plena Avenida 18 de Julio, o jovem Pereda descobre uma importante quantidade de rolos
de filme que ficaram esquecidos no porão desse mesmo
edifício, depois do fechamento do Cine Sol, que ali funcionara entre 1915 e 1929. Ele adquire então 2.850 metros de “fita
revista da cinemateca brasileira
123
Por um acaso da paciência – a coleção de Fernando Pereda
124
de biógrafo” – como mostra a fatura de compra – a 2 pesos
o metro. Em uma entrevista realizada por José Wainer no
semanário Brecha em 1986, Pereda conta sobre este início
de sua coleção:
Não havia propriamente um método, mas sim múltiplas circunstâncias: a sensação de se sentir guiado
em direção ao que se quer descobrir estava entre essas circunstâncias, e já na zona do cinema resgatável,
onde cada um dos fotogramas que são recuperados
pertencem a pequenos ou grandes filmes, desconhecidos ou famosos, encontrados – algumas vezes só
podia ser! – por uma paciência do acaso, ou, dito de
forma mais clara, pelo acaso da paciência.
E aconteciam saborosas situações de descobertas em
lugares inesperados, por exemplo: no porão de uma
livraria vizinha, que conhecíamos há muito tempo,
mas apenas como uma livraria de rotina e normal,
não como depósito escondido de filmes perdidos.
E outro exemplo, ainda mais extraordinário: em uma
arca do sótão de um antigo restaurante do Parque
Urbano (hoje Parque Rodó), onde vinte anos antes
funcionara um cinema ao ar livre. Ali sim foi para ter
certeza do destino, mas de tão justo, era inverossímel!
E encontrei filmes primitivíssimos, como Un drame
au fond de la mer (de 1901, que totalizava dezesseis
metros!), um filme que Sadoul nunca viu, e como ele
mesmo diz, com honradez exemplar, só conhecia “por
catálogos da época ou por alguns raros testemunhos”.
A estes achados se seguiram buscas mais sistemáticas,
e assim foram aparecendo, a partir de uma conscienciosa
tarefa de investigação, outras fitas de imenso valor, em salas
cinematográficas do interior do país, e inclusive na Argentina
(provavelmente enviadas por seu amigo León Klimovsky) e no
Brasil, já que a coleção conta com algumas cópias com intertítulos em português. Anos mais tarde, em sua segunda viagem
à Europa, Pereda acha, no mercado das pulgas de Paris
o rolo de Siegfried que lhe faltava para completar o
filme. Com certeza, foi também lá que comprou um
filme chamado O presente de Toríbio (Il regalo di Cretinetti, 1911), desse célebre cômico francês antecedente
de Chaplin”,
segundo recorda seu amigo Gabriel Peluffo.
Quando Pereda se instalou para morar no hotel Ermitage,
confiou sua coleção de filmes a um casal muito amigo:
Marta Linari e Darwin Peluffo, que depositaram os filmes
no sótão de sua casa. A cada sábado, pontualmente, Pereda ia até lá revisar e arejar as cópias e escolhia uma para
projetar no salão da casa, talvez um gesto nostálgico que
lhe trazia algo do ambiente de suas tertúlias.
Era evidente que os filmes não poderiam permanecer ali
por muito mais tempo, as condições não eram adequadas
à preservação da coleção, e o perigo aumentava junto
com os graus da temperatura a cada verão. Mesmo que o
poeta soubesse desde o início que sua coleção de filmes
seria para seu país, a decisão final de doá-las se estendeu
por quase dez anos. E foi tomada em um momento difícil,
em circunstâncias que ele não considerava apropriadas,
já que o Uruguai se encontrava sob uma ditadura militar e
Pereda, sem ser um homem de esquerda, se autodefinia
como um democrata: “a democracia é o menor dos males”,
dizia. E, desde o começo do processo, deixou bem claro a
Eugenio Hintz que não queria ter o menor contato com as
autoridades do SODRE, na época sob intervenção oficial do
regime. Tratava-se portanto de uma “doação condicionada”
e Pereda o explica no documento que ele mesmo redige
para a doação, para a qual acrescenta um inventário dos
filmes. Escreve no documento:
Esta doação está relacionada com dois propósitos: o
primeiro, que minha cinemateca continue dentro do
nosso país, formando parte de seu tesouro cultural
(já em 1953, na revista do Cine Club, me referia a “esta
cinemateca que tenho o trabalho, o prazer de seguir
criando, desde 1935, para o Uruguai”, propósito unido,
agora, à confiança que me inspira o Sr. Eugenio Hintz,
Chefe do Cine Arte, pessoa que viu de perto a criação
desta cinemateca). O segundo é construir, ao mesmo
tempo, um fundo que sirva, pelo menos, como base
a um prêmio de estímulo que se outorgaria, a cada
dois anos, em um certame aberto e livre, ao melhor
filme nacional.
Como era de se supor, houve grande demora na resposta
por parte das autoridades do SODRE. Pereda havia enviado
uma carta confirmando o oferecimento da doação em janeiro de 1974 e, em março, Hintz remete ao conselho diretivo do
SODRE uma advertência impaciente:
Sinto-me obrigado a expressar minha profunda
preocupação pelo trâmite que se segue à oferta
feita pelo Sr. Fernando Pereda de transferir sua
coleção privada de filmes ao Sodre. Considero que é
uma grande responsabilidade que assume, nestas
circunstâncias, não apenas o Sodre, senão o próprio
Estado, procurando resgatar este material para a
cultura e o patrimônio artístico nacional. Devo insistir
que se trata de um material histórico de enorme
valor no mundo cinematográfico, cobiçado em
outros países e cujo interesse ultrapassa de longe
a importância que possa ter para o Cine Arte como
base para a reconstrução de sua cinemateca. Sua
incorporação ao Sodre deveria ser celebrada em alto
e bom som. O atraso das gestões pode anular esse
oferecimento (...).”
Depois da persistência de Pereda, a doação se efetivou em
1975, o prêmio se instaurou e suas bases foram redigidas
por uma comissão integrada por ele mesmo, Eugenio Hintz
e José Carlos Álvarez, mas lamentavelmente o concurso
se realizou apenas durante os primeiros anos. Considerando que foi a única condição acordada, seria mister que
o prêmio Fernando Pereda de cinema uruguaio voltasse
a existir. Por respeito à sua memória e à memória da
cinematografia mundial, com a qual ele soube desde muito
cedo contribuir com lucidez. 10
(Trad. Olga Fernández)
Notas
O primeiro e único livro de poesia que Pereda publicou saiu em
1990, quatro anos antes de sua morte, e quando já tinha 91 anos.
Trata-se da antologia Pruebas al canto. Pelo título já se vê a constante autocrítica, o perfeccionismo e o rigoroso adiamento de um labor
poético que há mais de seis décadas agitava seus dias.
1
La conservación del Cine. De Caligari a Pereda. In: Revista Jaque,
Montevidéu, 8 de junho de 1984.
2
3
El tiempo también filma. Entrevista con Fernando Pereda. Questionário de José Wainer. Semanário Brecha, Montevidéu, 29 de agosto
de 1986.
Fernando Pereda (1899-1994). El poeta de un siglo. In: El País Cultural, ano VII, nº 336, Montevidéu, 12 de abril de 1996
4
Entrada a la Poesía. In: PEREDA, Fernando. Pruebas al Canto.
Poemas (Antología). Arca, Montevidéu, 1990.
5
6
Algo para recordar. La verdadera historia del Cine Club del Uruguai.
Ed. de La Plaza, Montevidéu, 1998.
Con Fernando Pereda. La poesía es levitación. Entrevista de Jorge
Arias. Semanário Brecha, Montevidéu, 19 de setembro de 1986.
7
8
PEREDA, Fernando. En la experiencia con los films primitivos. La
magia del cinematografo escapa de las clasificaciones conocidas. In:
Cine-club, n. 17. junho de 1953. Cf. GOMES, Paulo Emilio Salles. Amor
e morte. In: Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, 04.06.19609
Sobre o significado dessa encruzilhada histórica ver DENNING,
Michael. The Cultural Front. London & New York: Verso, 1999.
9
Em entrevista com Gabriel Peluffo Linari, realizada especialmente para este artigo.
Este artigo não seria possível sem os valiosos aportes de Alfredo
Alzugarat, Ignacio Bajter, Eduardo Correa, Nelly Huerta de Hintz,
Manuel Martínez Carril, Juan José Mugni, Amalia Pedreiras, Gabriel
Peluffo Linari, Wilfredo Penco, Hugo Rocha e Nancy Urrutia.
10
revista da cinemateca brasileira
125
126 dossiê
Gigi - Um filme desaparecido
e sua reconstituição ideal
Joaquim Canuto Mendes de Almeida e José Medina 1
GIGI
Letreiro 1 [sem indicação] 5
Adaptação da novela de Viriato Corrêa do mesmo nome
Personagens
Distribuição
Gigi
Seu Dedé
Caetano Nacaratto
Feitor
João Cotó
Os pais
Florência
Chiquinho Beijoca
Boticário
Esposa do Dedé
Oswaldo Fleury
4
(INTERNO) – (1) – (QUARTO RICO DE MOÇA)
a) Moça ricamente vestida – Criada
PP b) – Mira-se orgulhosa no espelho...
c) … continua a mirar-se no espelho enquanto as criadas
saem.
(INTERNO) – (2) – (SALA DE CHOÇA)
a) Gigi olha no modelo de uma revista colocando-se na
mesma posição do modelo imóvel.
Letreiro 2
Gigi entrava na quadra em que mulheres começam
a florescer, no período encantador em que se passa
de menina para mulher e no qual o coração vai
estremecendo às primeiras palpitações do amor.
PP
b) Gigi sente algum cheiro...
PP
[x] Caldeirão de feijão no fogão fumegando.
c) Imediatamente Gigi larga a revista e corre para o fogão
a um canto.
d) Toma um prato que enche de feijão e...
e) ...traz pra mesa já convenientemente arrumada... em
seguida caminha para a porta...
PP
f) …e a abre. Chama alguém e se detém a contemplar.
(EXTERNO) - (3) - (LUAR-JARDIM)
a) Um par aos beijos.
Letreiro 3
Florência, a prima de Gigi e Chiquinho Beijoca, o rapaz mais
querido das redondezas, casados há bem pouco tempo.
revista da cinemateca brasileira
127
GIGI
128
PP2
b) Florência fala a Chiquinho alguma cousa que ele
responde:
Letreiro 4
Estou só à espera desse dinheiro do meu falecido
tio e então, vendida a ferraria, iremos viver
confortavelmente na capital.
b) (cont.) … abraçam-se radiantes.
(INTERNO) - (4) - (SALA DE CHOÇA)
PP
a) (como em 2f) Gigi olha tristonha...
(EXTERNO) – (5) – (LUAR-JARDIM)
a) Florência e Chiquinho levantam-se e saem.
(INTERNO) – (6) – (SALA DE CHOÇA)
a) Entram em casa. Florência e Chiquinho após os
preparativos [?].
[?] sentam-se os três.6
Letreiro 6
Décio, “seu Dedé”, estudante de Direito, a gozo de
férias na fazenda do pai.
(EXTERNO) – (7) – (FAZENDA)
a) Seu Dedé trabalhando numa instalação
PP
radiotelefônica.
b) (vista geral tomando a casa da fazenda)
Empregado que sobe do alpendre onde está Josias.
c) Empregado caminha para Josias, esbarra-lhe nos
pés, e entrega cartas.
Letreiro 7
O proprietário da fazenda, Cel. Josias, pai de Dedé.
c) Josias recebe as cartas, separa as suas e chama
PP
Décio.
PP d) Décio ouve...
e) (como b) …larga o trabalho e caminha para o
alpendre.
PP2 f) (Josias e Décio) – Josias entrega a Décio um maço
de cartas... Décio lê...
PP
g) (Décio) Procura alguém com o olhar...
h) … desce as escadas, pergunta à 1a. pessoa que
encontra...
PP2 i) … esta não sabe responder e sai...
j) … pergunta a outra; o resultado é o mesmo. Vai
desistir quando...
PP k) … repara na...
i) … garagem fechada.
j) Para lá caminha e abre a porta; um par que se
beija.
PP
k) Décio surpreendido...
l)… ela envergonhada sai a correr... ele nem se move...
Letreiro 8
Ignácio Musa, inspirado poeta modernista, acha-se
grandemente ocupado na elaboração de um novo
livro denominado “Os Cem Beijos”.
PP
m) Ignácio cínico olha, como se tivesse feito a cousa
mais natural do mundo.
PP2 n) Décio censura Ignácio que se levanta e declara
poético.
Letreiro 9
Onde quer você que eu vá beber inspiração para o meu
livro senão na realidade dos fatos?
n) (cont.) Tira um caderno do bolso e lápis...
PP
o) ... e depois de curto pensar escreve...
PP p) Mão que num papel escreve:
36o. Beijo – sensação deliciosa só semelhante um
mergulho n’um mar de rosa
PP2 q) (como n) Décio entrega-lhe as cartas
Letreiro 10
[não há indicação]
(INTERNO) – (8) – (FERRARIA)
a) Chiquinho trabalha e conversa com o João Cotó.
Letreiro 11
João Cotó, rapaz de ótimo coração, apaixonado por
Gigi.
b) João Cotó tristonho fala algo:
PP
Letreiro 12
Eu nunca lhe disse que a amo porquanto pobre como
sou por ora só poderia fazê-la infeliz.
c) (2 pessoas) Chiquinho consulta o relógio.
Letreiro 13
Pois bem, ela deve vir daqui a pouco trazer-me o
almoço, e você tirará de uma vez isso a limpo.
c) (cont.) continuam conversando...
(EXTERNO) – (9) – (ESTRADA)
a) Gigi carrega o almoço. Ao longe um auto...
PP
b) [Gigi] nota que vem o auto
c) … afasta-se e o auto alcança-a...
PP
d) Ignácio que guia o auto cumprimenta-a risonho
PP
PP2
e) Gigi responde desconfiada e aperta o passo
f) …auto sempre a acompanhar Gigi. Gigi aperta
o passo. Ignácio acelera o automóvel e com uma
manobra consegue interceptar a passagem de Gigi
que é
g) obrigada a parar
h) Ignácio pega-lhe no braço e apontando o
j) …horizonte
i) lhe diz:
Letreiro 14
Que bonita paisagem!
l) Gigi olha a paisagem. Nota que tem os pulsos PP
presos e indigna-se.
PP2 m) Gigi consegue libertar-se e sai depressa...
n)…a correr com as marmitas na mão.
PP
PP
o) Ignácio quer acompanhá-la com o automóvel mas este não mais funciona; desce.
p) Ignácio vai verificar o motor e coça a cabeça
aborrecido. Olha e percebe...
q) que Gigi já vai longe.
r)… Mergulha então no conserto do carro.
(INTERNO) – (10) – (FERRARIA)
a) Chiquinho e João conversam. Gigi aparece na
porta com o almoço.
b) Gigi entra...
c) João e Chiquinho entreolham-se. Chiquinho toma
o seu almoço das mãos de Gigi e João cumprimenta
esta confundido. Chiquinho retira-se à direita.
d) (Só) Chiquinho olha...
e) (2 pessoas) João atrapalhado amassa o chapéu...
olha à direita
f) Chiquinho pisca-lhe e sai.
g) João ri... fica sério... ri... Gigi estranha... João
consegue dizer...
Letreiro 16
Vou fazer uma grande viagem... e voltarei rico se
Deus quiser.
g) Gigi ouve-o...
(EXTERNO) – (11) – (RUA DA FERRARIA)
a) Chega Ignácio de automóvel. Para, desce com uma
peça do auto n’uma mão e com cuidado toma uma
flor...
(INTERNO) – (12) – (FERRARIA)
a) (como g) João atrapalhado quer falar... enche-se
de coragem:
Letreiro 17
Antes porém...
b) Engolindo saliva e com esforço continua
PP
Letreiro 18 - …queria perguntar-lhe...
c) Surge Ignácio na porta. Gigi não nota. João vê e
perde o jeito e amolado acaba...
Letreiro 19
…si deseja alguma cousa!
c) Gigi responde:
Letreiro 20
Só lhe posso desejar felicidades!
c) Ignácio se aproxima de João julgando ser ele
ferreiro, vai mostrar-lhe a peça do auto quando ele
aborrecido o repele, despedindo-se de Gigi.
(EXTERNO) – (13) – (RUA DA FERRARIA)
João sai tristonho e imobiliza-se pensativo abraçado
ao seu cavalo.
(INTERNO) – (14) – (FERRARIA)
a) Ficam Ignácio e Gigi sós.
PP1 b) Ignácio cheira a flor apaixonado e com um riso
malicioso olha Gigi. Em seguida com pose poética
oferece-lh’a.
c) Gigi toma a flor violentamente e acintosamente
vem agradecer, vai saindo...
d) sob espanto de Ignácio...
(EXTERNO) – (15) – (RUA DA FERRARIA)
a) Gigi sai indignada e por pirraça dá a flor a João,
retirando-se.
PP
b) João alegra-se venturoso e beija a flor...
(INTERNO) – (16) – (FERRARIA)
a) Chiquinho entra e Ignácio mostra-lhe a peça do
automóvel para consertar.
(EXTERNO) – (17) – (RUA DA FERRARIA)
PP1 a) (como b) João acariciando o cavalo lhe fala:
Letreiro 21
Agora sim! Poderemos partir contentes porque já me
enchi de esperança.
Monta e sai.
(EXTERNO) – (18) – (FAZENDA)7
PP
a) Seu Dedé sentado na cerca admirando...
b) acrobacias de um cavaleiro.
c) (Só) Vê alguma cousa
d) na estrada Gigi chega.
e) (Só) Contente Dedé desce da cerca e caminha para
ela.
PP2 f) Cumprimentam-se... De mãos dadas ainda, Dedé
fala:
Letreiro 22
Já sabe que tenho sentido muitas saudades da noite
da minha chegada e principalmente das vezes que
dançamos juntos.
f) Gigi ri contente e fala qualquer coisa de mãos
dadas ainda. Nota que se demoram de mãos dadas e
largam-se, estando Gigi acanhada.
g) Vem chegando Ignácio de automóvel.
h) Gigi e Dedé viram-se para admirar as acrobacias do
cavaleiro.
j) Acrobacias do cavaleiro.
k) Ignácio chega e sai do automóvel; vê algo que o
agrada.
l) Gigi e Dedé admirando da cerca e de costas.
m) Ignácio arruma-se, endireita-se maravilhosamente
e caminha para...
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n) … a cerca onde já estão Dedé e Gigi. Coloca-se
ao lado de Gigi que só após certo tempo nota sua
presença; Dedé também nota. Ignácio estica a mão a
Gigi que lhe diz com riso forçado:
Letreiro 23
Parece que já nos cumprimentamos no meio da
estrada.
Ignácio disfarça o gesto cínico.8
Dedé ouve intrigado isto e Gigi, pedindo licença, sai.
Ignácio é agarrado por Dedé que metendo-lhe a mão
no bolso, diz:
Letreiro 24
O beijo da garagem é o 56o, não é?
Dedé abre o caderno de apontamentos e olha. Fica
contente.
PP
O beijo 56o. É o último. Dedo que aponta. Ignácio toma
a caderneta que põe no bolso.
(EXTERNO) – (19) – [NÃO HÁ INDICAÇÃO]
Letreiro 25
[não há a descrição]
PP a) Dedé adormecido na relva.
b) Gigi que chega e começa a pescar.
PP c) Gigi pesca, puxa o anzol...
d) …que se enrosca...
PP e) ...na gravata de Dedé que...
f) …com os puxões de Gigi...
PP g) …acorda assustado...
h) … levanta-se e Gigi nota. Vão ao encontro um do
outro.
i) Gigi desprende o anzol da gravata de Dedé.
j) Ambos sentam-se a pescar...
k) Gigi lança o anzol e ambos puxam a vara. A mão de
Dedé em cima da de Gigi a auxilia.
PP1 l) Dedé fala:
Letreiro 26
Costuma vir aqui todas as tardes? Quis o acaso que
nós nos encontrássemos sós aqui?
PP2 m) Gigi responde afirmativamente.
n) Pescam um peixe... Continuam [?]9
Letreiro 27
Depois deste encontro, a velha árvore à beira do
riacho, todas as tardes, presenciou as juras de amor
dos namorados.
n) Os dois namorados abraçados. Gigi fala:
Letreiro 28
Já tive muita inveja da Florência quando se casou com
o Chiquinho. Hoje porém considero-me a pessoa mais
feliz do mundo.
n) Abraçam-se...
PP1 o) Dedé fala:
Letreiro [sem numeração]
Amanhã cedinho vamos fazer uma excursão à serra e
talvez não possamos nos encontrar aqui.
p) (cont.) … Levanta-se Dedé...
(INTERNO) – (20) – (ALPENDRE OU SALA)10
Letreiro 29
A música encanta a todos... principalmente ao poeta.
PP1 a) Ignácio ouve música da...
b) radiola. Josias adormecido... Entra
PP
PP1
c) a criada com café ou licor... oferece a Ignácio.
c) Ignácio toma a xícara de café e pisca ainda.
d) (Criada envergonhada)
Ignácio olha pra...
e) …Josias que está dormindo.
f) Puxa um pouco a cortina de forma a esconderemse ele e a criada.
PP1 g) Josias tosse... e vai acordar.
h) Volta a cortina ao seu lugar. Ignácio toma a
xícara de café e dá mais que depressa a Josias que
acordou Enquanto Josias bebe... ele senta-se...
PP1 i) Toma a caderneta. Ignácio escreve.
PP
j) Mão que escreve: 39o. Beijo.
Ósculo de chocolate... etc... etc...
k) … acaba de escrever... Josias acaba de beber... e a
criada vai sair...11
Letreiro 30
As excursões obrigam muitas vezes a verdadeiras
acrobacias.
(EXTERNO) – (30) – (SERRA)12
a) Acrobacias de Ignácio – Dedé vai sucedê-lo.
b) Ignácio tem de auxiliar.
c) Dedé apronta-se... Outras pessoas
d) Ignácio amarra e senta no chão.
e) Dedé não começa a subir.
f) Ignácio vê a d[ona] X. que ri pra ele.
Ignácio levanta-se e persegue-a.
g) Dedé sobe (ou prepara-se para subir)...
h) Pessoas aguardam.
i) Ignácio agarra d. X.
PP
j) que vai deixando beijar-se mas se esquiva e corre
k) Ignácio persegue-a a correr
l) Dedé sobe...
m) Ignácio corre atrás de d. X. que para antes de
entrar n’uma casa. Ignácio também.
PP1 n) d. X. atira um beijo pra...
PP1 o) ...Ignácio que orgulhoso da conquista tira o
caderninho do bolso e marca...
p) Mão que escreve: 43o. Beijo: É “sopa”.
q) Prepara-se pra entrar na casa quando de lá sai
um homenzarrão com uma espingarda... Ignácio
detém-se.
PP
r) Ignácio atrapalhado.
revista da cinemateca brasileira
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GIGI
136
PP
PP
s) Homem carrancudo.
t) Ignácio disfarça seu gesto colocando no pescoço
à guisa de colar uma casca comprida de laranja que
encontra no chão.
u) Ignácio sai atrapalhado.
v) Dedé sobe...
x) Corda que vai se desamarrar.
y) Ignácio que risca na caderneta...
z) Mão que risca: “43o. Beijo. É sopa” e escreve: Gorou,
A) Corda desamarra.
B) Dedé cai... Pessoas aterradas.
C) Queda. Pessoas que socorrem-no.
D) Abre os olhos. Machucou o pé.
E) Tiram-lhe os sapatos. A dor é grande. Levam-no
dali.
F) Ignácio encontra Dedé e o médico ou curandeiro
lhe diz:
Letreiro 31
Destroncou o pé... não é grave.
F) (cont) Ignácio conserva-se ali.
G) Um velho X diz a um Y. Uma velha chega.
Letreiro 32
Tenho um compadre que com um tombo destes
precisou cortar o pé.
H) A velha que chegou, ouve e sai...
I) Ignácio e o médico levam Dedé pra o automóvel.
J) A velha encontra uma amiga e diz. Um velho ouve.
Letreiro 33
Coitado! O velho Josias preferiria ver o filho morto
que de perna cortada...
J) (cont) Curiosas cercam a velha faladora.
[SEM INDICAÇÃO] – (32) – [SEM INDICAÇÃO DE
ESPAÇO]
Letreiro 34
Naquela tarde, Gigi não se encontrou com Dedé.
Gigi só à beira do rio. Levanta-se de cabeça baixa e
vai saindo.
(INTERNO) – (33) – (SALA DE CHOÇA)
a) Florência e Chiquinho conversam.
b) Entra Gigi tristonha. Para a ouvir.
c) Chiquinho fala:
Letreiro 35
Dizem até que já cortaram a perna do pobre Dedé e
que se não tomar cuidado baterá as botas.
d) Florência nota a presença de Gigi.
e) Gigi não sabe como dissimular seu desespero com
a notícia e sai, entrando no seu quarto.
(INTERNO) – (34) – (QUARTO DE GIGI)
Gigi se atira na cama a chorar.
(INTERNO) – (35) – (QUARTO DE DEDÉ)
a) Dedé muito bem aceita os conselhos...
b) ...do médico e do pai.
c) Ignácio está presente.
d) O médico e o pai saem. Ignácio fica.
(INTERNO) – (36) – (QUARTO DE GIGI)
a) Gigi chora estirada na cama.
PP b) ...fica a pensar:
Letreiro 36
Mas se Dedé estava tão mal era preciso que
de qualquer forma ela o fosse ver. Estaria ele
precisando dela naturalmente.
b) Gigi levanta-se. Embrulha-se num xale.
c) Abre sorrateiramente a porta e pé ante pé sai.
(INTERNO) – (37) – (SALA DE CHOÇA)
Escuro – noite
d) Pé ante pé Gigi atravessa a sala.
(INTERNO) – (38) – (QUARTO DE DEDÉ)
Ignácio sai. Dedé fica lendo.
(EXTERNO) – (39) - (CAMPO)
Noite
a) Gigi atravessa os campos.
b) Homem que passa.
c) Gigi se esconde.
d) Homem vai além...
e) Gigi continua o caminho.
f) Avista a casa.
g) Alguém ao lado.
h) Gigi se esconde...
i) Alguém sai.
j) Gigi aproxima-se da casa.
k) A porta está encostada. Ela bate de leve.
(INTERNO ) – (40) – (QUARTO DE DEDÉ)
PP1 a) Dedé manda entrar.
PP1 b) Gigi abre tímida a porta.
PP1 c) Dedé se espanta e senta-se na cama.
d) Gigi vendo-o bem disposto se espanta.
PP1 e) Dedé espantado pergunta-lhe algo.
PP1 f) Gigi responde...
Letreiro 37
Julguei que estivesse deveras passando mal... ouvi
dizer que estava à beira do túmulo.
g) Dedé mostra o pé machucado e ri...
PP
h) Gigi ri encabulada... e vai sair.
i) Dedé pede-lhe que fique... Gigi não quer, vai sair
PP
j) … trinco que remexe
k) Gigi espanta-se
l) e se esconde atrás da porta. Dedé alerta. Entra
Ignácio...
PP1 m) com uma pilha de livros.
n) Dedé se espanta. Ignácio deixa os livros em cima
da mesa e diz:
Letreiro 38
São alguns livros para caso você não possa conciliar
o sono [e] devorar a leitura.
n) (cont) Dedé nada diz.
PP1 o) Gigi escondida.
p) Ignácio fala. Toma um livro. Derruba outros.
PP1 q) Dedé impaciente, olha interrogativamente.
r) Ignácio toma um livro, abre-o e começa a ler.
PP1 s) Dedé desanima, deita-se.
t) Ignácio senta-se a ler.
PP1 u) Dedé está impaciente, cerra as pálpebras.
PP1 v) Gigi espera...
PP1 x) Ignácio lê. Olha.
PP1 w) Dedé dorme.
y) Ignácio fecha o livro... e sai pé ante pé.
PP1 z) Dedé espia com um olho aberto.
A) Ignácio fecha a porta. Dedé senta na cama. Gigi
vai sair. Dedé vai levantar-se; sente dor no pé. Gigi
paralisada aproxima-se e delicadamente toma-lhe o
pé e coloca-o novamente na cama.
PP1 B) Dedé sente dor.
C) Gigi senta ao seu lado.
Ele beija-lhe docilmente a mão. Beija-lhe o braço.
Abraça-a. Dedé fala...
Letreiro 39
Gigi fez muito bem em vir... e agora não deve
abandonar-me só!
(EXTERNO) – (41) – (SERRA)
Sol que nasce por trás dos montes.
(INTERNO) – (42) – (QUARTO DE DEDÉ)
a) Gigi beija a mão de Dedé.
PP1 b) Gigi beija e acaricia a mão de Dedé.
Letreiro 40
Numa doçura daquelas devia ser bom passar a
existência inteira.
PP2 c) Gigi beija a mão de Dedé que lhe beija a cabeça.
Súbito Gigi ouve...
(EXTERNO) – (43) – (TORRE DE IGREJA)
Sinos que dobram.
(INTERNO) – (44) – (QUARTO DE DEDÉ)
PP2 d) (como c) Gigi levanta-se, fala algo. Dedé estreita-a
nos braços, beija-a e fala.
Letreiro 41
Gigi virá todos os dias como hoje?
PP2 a) (cont.) Gigi responde afirmativamente. Beijo
prolongado.
b) Gigi sai.
Letreiro 42
Foi p’ra Gigi um tempo de ouro este e como tudo
que é bom dura pouco passaram-se depressa três
meses e Dedé tinha que voltar para os estudos.
PP1 c) Mãos de Dedé que arrumam a mala.
PP1 d) Mão de Gigi que bate à porta.
PP1 e) Mãos de Dedé que param de arrumar a mala.
PP2 f) Pés de Dedé. Abre a porta. Pés de Gigi que entram
sorrateiramente. Levantam-se de leve com o beijo
que Dedé dá em Gigi. A objetiva vai subindo até pegar
os dois namorados após o beijo.
Gigi tristonha. Dedé também. Gigi diz:
Letreiro 43
Então você vai mesmo amanhã?
Dedé de cabeça baixa responde afirmativamente.
Letreiro [sem numeração]
À hora da partida...
(CAMPO) – (45) – EXTERNO
a) Gigi à espreita (no meio da estrada)
b) Despedida. Dedé despede-se do pai abraçando-o
e amigos.
c) Entra no automóvel e vai sair. Detém-se.
d) Vem correndo Ignácio cheio de malas que caem
umas após outras. Leva um tombo com as malas.
PP
Negrinho ri.
(3-4p) e) Dedé aborrece-se. Outros riem.
f) Ignácio levanta-se. Negrinho ajuda-o a pegar as
malas.
g) Cai-lhe do bolso a caderneta.
h) Caminha para o automóvel. Entra com as malas.
(3-4p) i) Vão sair. O auto não funciona. Dedé desce e...
j) … vai verificar o motor.
PP k) Ignácio protesta.
l) Negrinho vem andando.
PP m) Pé que pisa a carteira.
PP n) … Negrinho olha.
PP o) Abaixa-se. Mão que pega a carteira.
PP p) abre-a e... sai lendo-a.
(3-4p) q) Ignácio aborrecido desde do auto e vem …olhar o
conserto do motor.
PP
r) Ignácio atrapalha Dedé, que o empurra.
revista da cinemateca brasileira
137
GIGI
138
PP PP PP PP3
PP PP PP
PP PP
PP PP PP PP
PP PP PP 3p. PP s) Negrinho entrega a caderneta à snra. que...
t) a lê. Indigna-se.
u) Livro na tela : Lista poética dos beijos que sapequei
em virtude do compromisso artístico da elaboração
da supermonumental obra modernista “Os Cem
Beijos”.
t) (continuação)
v) Ignácio atrapalha novamente Dedé que o empurra.
(Gigi espera). Outras pessoas olham. Ignácio sai.
x) Aborrecido vai sentar-se num tronco ou pedra ao
lado...
y) Snra. que o reconhece abana a cabeça.
z) Ignácio sentado...
AA) Snra. V. sai depois de se aprumar...
AB) Snra. V. passa toda apaixonada ante Ignácio.
AC) Ignácio olha, nota.
AD) Snra. V. para. Ri virando o rosto para olhá-lo.
AE) Ignácio espanta-se.
AF) Snra. V. volta a passar ante ele.
AG) Snra. V. rebola e se remexe toda.
AH) Espanto de Ignácio. Sorri contente.
AJ) Snra. V. caminha para uma alameda de iprestes...
para a entrada.
AK) Ignácio olha, olhos acesos.
AL) Snra. V. ri. Pisca-lhe um olho, com um sinal
chama-o acenando a cabeça.
AM) Ignácio contente apruma-se...
AN) … e sai contente.
AO) … vai encontrar a Snra. V. que foge-lhe entrando
pelos ciprestes. Para.
AP) Dedé acaba o conserto e procura Ignácio com o
olhar. O vê...
AQ) (ao longe) Ignácio pé ante pé caminha pelos
ciprestes entrando no mesmo lugar em que entrou
a Snra. V.
AR) Dedé interroga a si mesmo. Espanta-se.
AS) Ciprestes que sacodem violentamente. Mala
que voa de dentro deles. Chapéu, lenço, pedaço de
[paletó?].
AT) Dedé espantado...
AU) Negrinho e algumas outras pessoas espantadas.
AV) Ignácio sai maltrapilho e machucado de dentro
dos ciprestes. Com a caderneta na mão e lápis.
AX) Ignácio marca na caderneta...
AY) Mão que escreve: 100o beijo. Com música própria
(de pancadaria)
AZ) Toma as malas após guardar a caderneta e lápis
e de chapéu de banda não muito firme das pernas
sai e...
AW)… cínico entra no auto causando espanto a todos.
BA) Dedé senta-se. Despede-se do pai novamente.
BB) Ignácio arregala os olhos ao ver...
BC) A Snra. V. que sai dos ciprestes...
2p.
BD) Pede a Dedé que apresse a saída. Dedé sai.
BE) Auto que parte...
BF) Pais e amigos de Dedé. Feitor, etc.
BG) Gigi espera Dedé. Auto passa ao longe. Gigi
abaixa a cabeça.
Letreiro [sem numeração]
Ela esperou. Esperou um ano... dois anos...
PP (EXTERNO) – (46) – (CAMPO)
PP1
PP PP2
a) Em baixo da árvore. Gigi sentada à sombra de uma
árvore pensativa.
a) Vem chegando do outro lado Josias e o feitor.
Param, conversam.
b) Gigi encolhe-se para não ser vista e ouve.
c) Josias fala; o feitor alega:
Letreiro [sem numeração]
Não há meio mesmo de seu Dedé pensar em vir a
fazenda? Não quer saber do [sertão? (cont) Josias ri.
O feitor continua a falar.
PP1 d) Gigi ouve.
PP1 e) Josias fala:
Letreiro [não há numeração]
Dentro em pouco ele estará formado e pretende
fazer uma viagem a Europa...
PP1
f) Gigi entristece.
Josias e o feitor saem a conversar.
(SALA CHOÇA) – (47) – (INTERNO)
a) Florência e Chiquinho à mesa. Lugar de Gigi vago.
Chiquinho estranha.
PP1 b) Chiquinho fala:
Letreiro [sem numeração]
Que faz Gigi que não está? Anda por aí apaixonada
por algum rapazola?
PP2 c) Florência com má disposição responde:
Letreiro [sem numeração]
Qual! Aquela lá de há muito que anda esquisita. Não
há um rapaz que mereça dela um sorriso ao menos.
d) Acabam de falar. Gigi abre a porta.
PP1 e) Gigi vai entrando, ouve ainda algo.
f) … Gigi senta-se à mesa.
PP2 g) Chiquinho intrigado a olha. Florência e Chiquinho
entreolham-se.
PP h) Mão que bate à porta.
PP1 i) Chiquinho interrogativo.
j) Florência levanta-se. A porta se abre.
k) … aparece chic João Cotó.
l) [in?)] Surpresa total. Chiquinho corre a abraçá-lo.
Gigi levanta-se.
3p
m) … abraçam-se. Florência cumprimenta-o...Vê...
(Gigi)
PP (INTERNO) – (50) – (SALA DE CHOÇA)
n) Gigi olha-o fingindo contentamento.
a) Florência conversa com Chiquinho que limpa sua
espingarda.
o) João Cotó cumprimenta-a um tanto acanhado.
p) Gigi se aproxima. João Cotó lhe mostra uma caixa
embrulhada. Desembrulham a caixa. Abrem-na.
Surpresa de todos.
PP q) Pedras preciosas.
PP1 r) Chiquinho – surpresa
PP1 s) Florência – surpresa
t) João Cotó toma as pedras e as entrega a Gigi que
as agradece recebendo-as indiferentemente. João
diz:
Letreiro [sem numeração]
São as melhores pedras que encontrei na minha luta
pela vida. Graças a Deus sou hoje um homem rico.
Tenho minhas cabecinhas de gado.
Letreiro [sem numeração]
Felizmente com nossas economias e com o produto
da venda da ferraria poderemos realizar o sonho
dourado de morarmos na capital.
PP2
PP u) Gigi olha as pedras triste; fecha-as na mão...
v) … e sai para seu quarto. João tira um presente para
Florência e Chiquinho.
(QUARTO DE GIGI) – (48) – (INTERNO)
a) Gigi espalha indiferente pela gaveta pérolas.
b) Mão que espalha as pérolas e toma uma flor
murcha com carinho...
c) Gigi beija a flor.
PP
Letreiro [sem numeração]
Cinco anos de desilusões não mataram as
esperanças.
Florência fala.
b) Chiquinho fala:
PP c) (Continuam conversando)
(PANORAMA) – (51) – (ESTRADA) (EXTERIOR)
Gigi anda. João atrás quer se explicar. Alcança Gigi.
[E vem?] [ele?] com a mão. Gigi para indignada
e batendo o pé protesta contra João que para
sem poder falar. Gigi continua a andar. João a
acompanhá-la.
(INTERNO) – (52) – (SALA DE CHOÇA)
Florência e Chiquinho conversam.
(EXTERNO) – (53) – (PORTEIRA E PORTA)
a) Gigi fecha a porteira depois de passar e deixar
João do lado de fora.
b) João tristonho vai embora.
c) Gigi abre a porta de casa e para a
escutar.
(EXTERNO) – (49) – (SERRA)
a) Gigi espera no mesmo lugar (45a). Vem
chegando João Cotó.
b) que com uma perna lhe faz cócegas. Gigi
julgando ser uma mosca espanta com as mãos
PP1 c) João Cotó ri da brincadeira.
d) João Cotó repete a brincadeira.
PP1
e) Gigi espanta com a mão o inseto.
f) A repetir pela 3 a vez. Gigi nota João que ri e
senta-se ao seu lado e pega-lhe a mão dizendo:
Letreiro [sem numeração]
Quando é que a Gigi me aceita por esposo?
Hospeda meu amor no seu coração.
f) Gigi não responde, abaixa a cabeça.
PP1 g) João Cotó a olha com amor e paixão.
PP1 h) Gigi de perfil – cabeça baixa.
2p. i) João Cotó quer forçá-la a beijá-lo. Ela o empurra
– o repele.
j) E sai a fugir. João se arrepende, abaixa a cabeça.
Depois sai a pedir-lhe perdão.
(INTERNO) – (54) – (SALA DE CHOÇA)
PP1 a) Florência fala:
Letreiro [sem numeração]
Por enquanto só o que atrapalha nossa vida é essa
Gigi que deve ser alguma praga que alguém nos
rogou.
2p.
b) Chiquinho protesta contra a forma de falar de
Florência.13
[Transcrição do roteiro e notas: Jair Leal Piantino]14
revista da cinemateca brasileira
139
GIGI
140
Notas
1
Por volta de 1925, Joaquim Canuto Mendes de Almeida, jovem
estudante de 19 anos, aconselha José Medina, um dos cineastas de
maior relevo do cinema silencioso paulistano, a filmar o conto Gigi,
do escritor Viriato Corrêa. Medina, que já dirigira Do Rio a São Paulo
para casar (1922), com argumento do próprio Canuto, adquire os direitos de filmagem e, com adaptação sua e de Canuto, fotografia de
Gilberto Rossi, alguns atores de uma companhia teatral portuguesa
que se apresenta em São Paulo e os recursos financeiros de sua
distribuidora ABAM – Associação Brasileira de Arte Muda, em não
mais que duas semanas, dá por concluído o filme – em sua opinião
um de seus melhores trabalhos.
Todas as cópias e o negativo se perderam quando do incêndio do
laboratório da Rossi Film, na ocasião do bem sucedido lançamento
do filme no final de 1925. Restou apenas uma cópia, levada por Gervásio Guimarães, um dos atores, para exibição no norte e nordeste
do país, a qual nunca foi localizada.
2
“A volta à vida dos filmes perdidos e esquecidos é tanto mais
comovente que nunca é conclusiva. O progresso no conhecimento
de um filme desaparecido é sempre possível, tudo se passa como
se pudéssemos conhecer cada vez mais de perto o que foi o filme
em questão. A progressão nos aproxima da projeção que nunca é
alcançada. Algo porém ocorre às vezes – um certo tipo de escamoteamento mágico – que permite prolongar o comentário como se
um filme irremediavelmente perdido acabasse de ser projetado.”
(Paulo Emilio Salles Gomes)
3
4
Este é um dos dois roteiros de Gigi pertencentes ao fundo pessoal
de Joaquim Canuto Mendes, depositados na Cinemateca Brasileira.
Escritos à mão, sem enumeração, em 32 páginas, de frente e verso
de papel almaço, mesclado um a outro, nenhum deles infelizmente
está completo. A versão 2, que transcrevemos, foi assim considerada por ser maior, mais elaboradamente decupada e principalmente
por constar a indicação de alguns atores já contatados, o que parece
um bom indício de roteiro de trabalho já bem próximo da produção
propriamente dita.
O que sobrou cobre provavelmente um pouco mais da primeira
metade do filme e corresponde ao pedaço inicial do esquema introdutório que apresenta as cenas a serem decupadas:
“Gigi tem inveja quando sua prima Florência se casa com Chiquinho
Beijoca.
Seu Dedé aparece na fazenda debaixo de festa.
Uma semana depois à sombra do tamarindeiro do riacho.
…. todas as noites e cenas de amor.
Agora já não mais invejava a Florência.
Comparação de seu Dedé com Chiquinho.
Noite de despedida. Nenhum rapaz do povoado tira lasca com ela.
As poucas notícias que dele saía retalhavam-lhe o coração.”
5
O roteiro original procura ser rigoroso na decupagem de cenas,
planos e intertítulos, mas apresenta inúmeras diferenças na forma
de indicá-la. Para que houvesse melhor acompanhamento da
leitura, procedeu-se a uma padronização dessas indicações, sem
contrariar sua forma básica. PP é a indicação geral para um enquadramento mais fechado (hoje primeiro plano), mas possui algumas
gradações:
PP1 = plano com 1 pessoa
PP2 = plano com 2 pessoas
PP3 = plano com 3 pessoas
6
Não existe notação para o Letreiro 5. Deve estar faltando uma
página, que corresponde ao primeiro encontro de Gigi e seu Dedé.
7
A partir desta cena até antes da entrada do letreiro 27, trechos e
páginas do manuscrito estão riscados, como se indicassem eliminação. Sabe-se que houve a imposição de cortes pela censura da
época e talvez o manuscrito guarde um pouco essa marca.
8
Não há marcação de planos no original.
9
Terminam aqui o trecho riscado, como mencionado na nota 7
10
Original riscado da indicação desta cena até antes da entrada do
letreiro 30. Ver nota 7
11
Terminam aqui os riscos indicados pela nota 5.
A numeração dá um salto da cena 20 para a cena 30, mas é erro
do “cenarista”, pois a indicação dos letreiros permanece na numeração corrente.
12
13
Aqui se encerra o manuscrito do roteiro localizado. José Medina,
em depoimento a Maria Rita Galvão, descreve o restante do filme:
“Gigi sofre muito com a ausência [de seu Dedé], e passa o tempo a
esperar sua volta. Finalmente chega o grande dia: ela fica sabendo
que o rapaz vai voltar. Ele volta, realmente, mas vem acompanhado;
casara-se com uma moça da capital. Assim que chega, o rapaz
manda chamar Gigi para apresentá-la à sua esposa. É então que a
estória chega ao seu clímax; Gigi resistira à notícia do casamento,
mas não resiste ao golpe final: o rapaz vira-se para a esposa e diz:
‘Querida, está aqui uma boa criadinha para nós’. A dor é tanta que
Gigi se envenena e morre.”
O esquema introdutório das cenas a serem decupadas pelo roteiro
indica um final mais fiel ao conto de Viriato Corrêa:
“Casamento com o João Cotó.
Comparação entre João Cotó e Dedé.
Cenas íntimas em que demonstrem a cada vez menos
tolerância de Gigi.
Morte dos pais de Dedé.
Ideia [de] exterminar o marido.
Notícia que Dedé vem administrar a fazenda.
Véspera, morte e execução do plano.”
14
Algumas referências para pesquisa:
CORRÊA, Viriato. Novellas doidas. Rio de Janeiro: Livraria Castilho,
1921. p. 295-306.
GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Crônica do cinema paulistano. São Paulo:
Ática, 1975. (Ensaios, 15). p. 226-229.
NACCARATO. Fragmentos da história da cinematografia paulista.São
Paulo, 10 ago. 2006. Disponível em: <http://wnaccarato.blog.uol.com.
br/>. Acesso em: 15 jun. 2012.
SALIBA, Maria Eneida Fachini. Cinema contra cinema: o cinema educativo de Canuto Mendes (1922-1931). São Paulo: Annablume; Fapesp,
2003. p. 32-33.
revista da cinemateca brasileira
141
142 pauloemiliana
A apresentação de Argumento
Pedro Plaza Pinto
Professor no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná
A reorganização política de setores da vida intelectual brasileira contra o autoritarismo, durante os primeiros anos da
década de 1970, teve como um dos pontos de convergência
a Revista Argumento, publicada pela Editora Paz e Terra.
Tentativa de oposição logo abafada pelo aparato repressivo, foi
conduzida por uma “comissão de redação” formada por Anatol
Rosenfeld, Antonio Candido de Mello e Souza, Celso Furtado,
Fernando Henrique Cardoso, Francisco Corrêa Weffort, Luciano Martins e Paulo Emilio Salles Gomes. A proposição de
Argumento pode ser considerada dentro de uma vertente intelectual-acadêmica que emerge com a promoção e trabalho
do editor Fernando Gasparian no debate nacional, intervenção
esta que começara em 1972 com o semanário Opinião. É um
ramo da imprensa que o próprio Paulo Emilio denominou, no
prefácio ao livro Glauber Rocha, como a imprensa de Davi –
depois denominada imprensa alternativa –, em contraponto
com os grandes grupos, que seriam a imprensa de Golias.
Intelectual de arguto pensamento político, levado para a
comissão de redação por Antonio Candido, Paulo Emilio foi
o responsável pela apresentação do primeiro número, onde
sintetizou, a partir do diálogo com os colegas, quais eram os
principais desafios do intelectual naquele regime de exceção.
O objetivo deste comentário ao texto é evidenciar alguns dos
pontos de tensão que se denodavam na intervenção do crítico,
além de trazer à discussão o tipo de inserção político-intelectual da revista, que foi especificamente importante para o
pensamento sobre o cinema local, mas que se projetava mais
amplamente sobre problemas da sociedade brasileira. Também será oportuno apontar modificações na redação da apresentação desde a primeira versão, corrigida e alterada. Tais
alterações são elucidativas e definem o horizonte histórico
mais amplo, lastreado na presença de figuras tão importantes
para o desdobramento intelectual do modernismo brasileiro
como Antonio Candido e Paulo Emilio.
Argumento veio à luz sob os auspícios do editor Fernando
Gasparian, que havia comprado de Ênio da Silveira, em 1973, a
famosa editora Paz e Terra. É importante lembrar que a editora, fundada em meados da década anterior, foi uma referência
de resistência cultural à ditadura civil-militar em seus primeiros anos. A Paz e Terra de Fernando Gasparian possuía um
sistema de cotas com acionistas que tinham em seu conselho
­nomes como Alceu Amoroso Lima, Barbosa Lima Sobrinho­­,
Celso Furtado, Dias Gomes, Érico Verissimo, Fernando
Henrique­Cardoso e José Aparecido de Oliveira. Foi, portanto,
um ponto de convergência de grupos intelectuais diversos.
Esta característica se transfere para a revista Argumento, mas
com o acréscimo significativo de Anatol Rosenfeld, Antonio
Candido e Paulo Emilio na sua comissão de redação.
revista da cinemateca brasileira
143
A apresentação de Argumento
144
A revista circulou em quatro números entre outubro de 1973
e fevereiro do ano seguinte. Renovou o tratamento de temas
da política, da economia, dos esportes e das artes com
alta tiragem e sucesso de vendas, mas já teve exemplares
recolhidos das bancas desde o lançamento1. Quando veio
a censura prévia, o diretor-responsável, Barbosa Lima Sobrinho, não aceitou a tentativa de tutela da linha editorial pelos
censores e suspendeu a circulação da revista. O conselho
consultivo era formado por Florestan Fernandes, Helio
Jaguaribe, Paulo Duarte, Octavio Paz, Sérgio Buarque de
Holanda, Aníbal Pinto, Alain Torraine, Érico Veríssimo, Albert
Hischman, Alceu Amoroso Lima, entre outros que também
faziam parte do jornal Opinião.
A revista foi censurada com base no artigo nono do
Ato Institucional de número 5, sendo o segundo caso de
censura prévia defendido pelo regime junto ao Supremo
Tribunal Federal. O primeiro fora justamente a batalha
jurídica do semanário Opinião. A briga judicial sobre a
revista Argumento se estendeu da retirada definitiva das
bancas, no começo de 1974, até pelo menos o ano seguinte. Localizamos uma rara notícia na imprensa de Golias,
no Jornal do Brasil de 14 de dezembro de 1974, reportando
a estratégia do governo militar de defesa da censura com
base no tal artigo nono do AI-5 junto ao STF.
a orientação de Clima teve dois momentos distintos. O primeiro vai até o número 11, de agosto de 1942, e diz respeito a uma
revista concentrada no trabalho intelectual. A publicação da
“Declaração”, no décimo primeiro número, assume o ataque
ao fascismo. Mesmo contendo sugestões do grupo, a “Declaração” foi formulada e escrita por Paulo Emilio. No número
seguinte, de abril de 1943, foi publicado o texto “Comentário”,
também redigido por Paulo Emilio, que responde críticas e
apresenta o viés político do grupo, nas palavras de Candido,
“exprimindo a sua posição de socialista independente de base
marxista, que alguns de nós adotariam por sua influência”4.
Sinal dos tempos e do encontro de gerações está contido em
dois dados dispostos nas páginas de Argumento. O primeiro
é a publicação da nota de falecimento de Anatol Rosenfeld no
terceiro número, e do depoimento biográfico fúnebre sobre
Arnaldo Pedroso d´Horta escrito por Paulo Emilio para o volume seguinte. O segundo dado é a “estreia” do então jovem
crítico Ismail Xavier, com o artigo Em torno de S. Bernardo,
sobre as visões que se formaram na recepção crítica do
filme de Leon Hirszman. Uma estreia muito importante, sem
dúvida, por apontar a continuidade do viés crítico presente
nas obras dos mestres.
Ponto de convergência, a revista comportou, por exemplo, a
primeira leitura da poesia dita marginal, com a publicação do
ensaio “Nosso verso de pé quebrado”, de autoria de Heloísa
Buarque de Hollanda e Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, que
apareceu no terceiro número, já no ano de 1974.
Do mesmo modo, as primeiras abordagens sociologicamente
relevantes do futebol brasileiro também aparecem nas páginas da revista, com destaque para as intervenções de Anatol
Rosenfeld. Em Argumento podemos notar a emergência da
linha de atuação que Paulo Arantes ironicamente denomina
Partido Intelectual2, com a presença na revista de figuras
que compuseram o famoso Seminário Marx – a exemplo do
próprio FHC –, que dariam origem ao CEBRAP, e também
abasteceram a organização do ideário de embate contra a
ditadura em declínio, fato nada óbvio naquele momento.
Um aspecto definidor do caráter da revista, em termos
mais gerais, é a tentativa de uma abordagem ampliada
das questões de política internacional e das artes. A revista
pautou problemas econômicos, sociais e culturais latino-americano, como no artigo de Roberto Cortés Conde sobre
a Argentina­, ou em outro de Fernando Henrique Cardoso
sobre o Chile, além de outros textos que tratam da América
Latina como um todo, a exemplo do artigo de Anibal Pinto
sobre as relações dos Estados Unidos com a região depois
da Guerra Fria. Em relação à literatura, Argumento procurava cumprir sua proposta de integração com artigos como
o de Davi Arrigucci Jr. sobre a poética de Pablo Neruda,
a resenha de Ángel Rama sobre Julio Cortázar, também
trazendo em suas páginas fragmentos de poesia de Pablo
Neruda. De Ángel Rama, foi publicado no terceiro número da
revista o importantíssimo artigo Um processo autonômico:
das literaturas nacionais a literatura latino-americana.
A presença dos críticos ligados à revista Clima, da década de
1940, é substancial pelo modo de intervenção e pelos textos
depois célebres que apareceram no primeiro volume, a
exemplo da apresentação aqui focalizada. Da mesma forma
que em Clima, foi Paulo Emilio o responsável por escrever a
intervenção de viés político que em Argumento já aparece no
primeiro número. Segundo o depoimento de Antonio Candido3,
Em seu Literatura e subdesenvolvimento, publicado no
primeiro número, Antonio Candido analisa a produção
literária da América Latina partindo do exame sobre a lida do
pensamento com o subdesenvolvimento. Candido examina
de que modo uma “consciência do atraso”, implicada no
subdesenvolvimento, afetava a literatura. Para esta análise, o
crítico divide a literatura latino-americana em duas épocas: o
momento da consciência amena de atraso, que corresponde
à ideologia de país novo, e a da consciência catastrófica de
atraso, que corresponde à noção de país subdesenvolvido.
O artigo faz par com o ensaio do Paulo Emilio sobre a lida
dos agentes do cinema brasileiro com sua formação truncada, o também célebre Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Ambos foram publicados no mesmo número.
É muito curioso, entretanto, que o foco sobre o cinema, pelo
viés de uma abordagem sobre o cinema subdesenvolvido,
esteja ligado mais estritamente ao cinema brasileiro em
comparação a cinematografias fora do continente. O caso
brasileiro aparece em primeiro plano em relação a outras
cinematografias como a indiana, a europeia e a japonesa. É
neste escrito que aparece a famosa e controversa fórmula
“ocupante/ocupado”. O desdobramento da leitura do ensaio
muito influente de Paulo Emilio aparece já no número 3 da revista. O artigo “Choveu na catinga?”, de Jean-Claude Bernardet,
traz aos leitores a repercussão do artigo de Paulo Emilio entre
os cinemanovistas durante um encontro de cineastas ligados
ao grupo na PUC do Rio de Janeiro, que fora interrompido por
sugestão de Sérgio Santeiro para que todos debatessem o texto5. É de notar a conclusão do artigo de Bernardet, que reporta
palavras ditas por Leon Hirszman no encontro. Após a leitura e
alívio geral entre os cineastas, Leon alertou a todos de que só
a consciência dos fatos não leva necessariamente à ação.
A questão é pertinente, mas devemos ter em conta aquilo
que veremos na apresentação pauloemiliana: o esforço de
lucidez já é uma luta contra a acomodação e a dependência.
Aqui, o crítico de cinema não se reduz a um especialista de
área, preocupado tão somente com problemas particulares.
Ao contrário, o texto conclama ao preparo e à participação
no vivo da sua época e sociedade, entre obstáculos e estímulos diversos. Ao invés de ao longe observar o vendaval, o que
se busca é o enraizamento e a nitidez, fugindo da perplexidade e do desespero.
Vejamos, então, o texto da apresentação da revista, manuscrita por Paulo Emilio, sobre o qual é possível apontar
algumas alterações entre dois materiais contidos no arquivo
do crítico depositado na Cinemateca Brasileira. Há o aprimoramento da redação, com trechos cortados ou alterados que
são elucidativos para a compreensão do material.
O primeiro parágrafo possui sinais importantes. A primeira
redação, levemente alterada na segunda, traz a palavra vazio
em vez de vácuo, numa intensificação do sentido de um espaço não-preenchido pela acomodação. Na primeira versão,
também não havia a palavra dependência, que é incluída e
levada ao primeiro plano da afirmação. As supressões para a
versão publicada, contudo, atenuaram levemente a construção que lista as formas conservadoras de ocupação deste
vácuo cultural. A primeira versão falava em “ceticismo” e “cinismo”, ao lado de “dependência”, “acomodação” e “arrivismo”.
Sem dúvida, uma caracterização virulenta de formas mais
ativas de ocupação do “vazio” ou “vácuo” cultural pela “natureza social”. Um começo de parágrafo que remete às atitudes
provocativas da postura de ideólogo da época de Clima e do
primeiro Clube de Cinema, quando dizia aos jovens colegas
que era melhor ser de direita do que ser politicamente apático.
O segundo parágrafo, em que pesem pequenas correções de
ordenamento e troca de palavras, ficou praticamente inalterado em relação à primeira versão. É a exposição do projeto em
oposição às atitudes expostas no trecho anterior: tratava-se
de criar um “veículo novo” para um grupo “vário na idade e
na preocupação” e “ponto de encontro” do pensamento com
outras terras e, principalmente, as do continente, definindo, assim, outra forma de preenchimento do vazio cultural, estabelecida no “percurso” do grupo. Em outras palavras, tratava-se
de um projeto que partia de uma plataforma incomum, com
experiências de vida e visões de mundo diversas, unificadas
pela exigência de renovação da intervenção no campo cultural
e político. A ideia de veículo e ponto de encontro deixa muito
explícito o objetivo de dialogar e promover a organização
daquilo que o texto identifica de “vivo, válido e independente”
em circunstância nada favorável. É uma noção arguta de
processo como finalidade, em inversão tão estranha aos
tempos de hoje, uma vez que coloca como meta a fabricação
de seta e arco, e não admite o resultado de atingir um só alvo
ou o mesmo alvo em um único círculo. Na qualidade de ponto
de encontro, vale o tiro coletivo diante de uma configuração
humana variada “na idade e na preocupação”6.
Segue o parágrafo seguinte, o terceiro, com palavras premonitórias, talvez cientes dos prováveis impedimentos que
obstariam mais longa vida para o “veículo novo”:
Os obstáculos que eventualmente encontrarmos e os
estímulos que recebermos serão igualmente indicativos da utilidade de nossa função. Muito intelectual
brasileiro foi arrancado de seu mundo. É preciso que
encontre um terreno onde possa novamente se enraizar. A limitação de nosso campo pode ser restringida
mas sempre haverá um papel a ser cumprido por
um intelectual que resolva sair da perplexidade e se
recuse a cair no desespero.
revista da cinemateca brasileira
145
A apresentação de Argumento
146
Cabe um comentário sobre o trecho que foi suprimido entre a
primeira e segunda versões. Onde lê-se “Muito intelectual brasileiro foi arrancado de seu mundo”, antes estava escrito “Muito
intelectual brasileiro foi arrancado de seu mundo e se encontra
em estado provisório de suspensão”. Ou seja, nas versões manuscritas ficava mais clara a referência à repressão política.
Além desta alteração, há a retirada de duas palavras. Onde
lemos “A limitação de nosso campo pode ser restringida...”
antes estava escrito “A limitação NATURAL de nosso campo
DE EXISTÊNCIA pode ser restringida...”. É perceptível o sentido
próprio do tipo de limitação da ação do intelectual no campo
social, numa caracterização mais peremptória que marcava
a autocrítica sempre presente na prosa pauloemiliana. Não
obstante esta “limitação natural” do “campo de existência”
do intelectual, a apresentação de Argumento impõe-se séria
missão de compreensão ampla da realidade e de esforço de
lucidez política, contra a dependência, segundo os termos
claros e diretos da prosa política do crítico de cinema.
A primeira oração do parágrafo seguinte, o penúltimo,
originalmente versava: “Argumento nasce sem ilusões, e
não está em seu programa nutri-las.” O parágrafo alterado
transforma a pessoa do verbo para o plural: “Nascemos sem
ilusões, e não está em nosso programa nutri-las.” A despeito
desta pequena mudança, aqui, quase de prima, ficou escrito
um parágrafo que é uma pérola. Outro curto aprimoramento
entre as versões foi a retirada de “em qualquer momento da
história” para dar lugar a “em qualquer tempo”, quando fala
da lucidez como alimento indispensável. Uma alteração muito esclarecedora sobre o vasto horizonte da apresentação.
A frase final, em ponto e parágrafo, que finda a apresentação, é uma espécie de lema: ”Contra fato, há argumento”.
É patente a inversão do conhecido ditame de que não há
argumentos contra fatos. Na primeira versão, estava escrito
“contra os fatos”. O teor genérico, contudo, dá lugar à afirmativa de caráter mais universal, primeiro, com a retirada do
artigo “os” - “Contra fatos, há argumentos” - depois, com a
colocação das palavras “fatos” e “argumentos” no singular.
É o polimento da finalização do manuscrito.
A revista Argumento, por sua proposta de tornar-se um instrumento de resistência ao poder autoritário, como está claro
em sua apresentação, assume o ângulo crítico de tentativa de
compreensão sobre a realidade brasileira e latino-americana.
Tal viés fora fortalecido pela experiência aglutinadora oriunda
de Clima, e que se resume muito bem em duas fórmulas sintéticas estabelecidas por Antonio Candido no seu depoimento
de 1943, Plataforma da nova geração7, que demonstram forte
influência de Paulo Emilio e explicam a sua missão e de seus
pares nos anos da Segunda Guerra: tratava-se de um grupo
de intelectuais cuja tarefa “deveria ser o combate a todas as
formas de pensamento reacionário” e que buscou uma regra
de conduta como “solução” para o sério problema do medo
de não estar à altura da tarefa de realizar algo útil para o seu
tempo, a exemplo do fizeram “os rapazes de 20”.
Notas
Consta a tiragem de 45.500 exemplares na contracapa do terceiro
número. Depoimentos de época apontam para uma difusão bastante
significativa. A comercialização do primeiro número teria sido de
25.000 exemplares, segundo consta na biografia Paulo Emilio no Paraíso, onde Melo e Souza traz o depoimento da secretária de redação,
Maria Hermínia Tavares (p. 529 e 530).
1
Conferir a conversa publicada em ARANTES, Paulo. O Fio da meada.
Uma conversa e quatro entrevistas sobre filosofia e vida nacional. Rio
de janeiro: Paz e Terra, 1996. Há indicações sobre a discussão nas
páginas 165 a 167.
2
Ver o texto Clima, em CANDIDO, Antonio. Teresina etc. Rio de
janeiro: Ouro sobre azul, 2007. pp. 145 e 146.
3
CANDIDO, Antonio. Informe político. In: CALIL, Carlos A. &
MACHADO, Maria Teresa (org.). Paulo Emilio: um intelectual na linha
de frente. (Coletânea de textos). São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro:
Embrafilme, 1986. pp.58-61.
4
Disposto nas páginas 102 a 104 do número 3, o artigo de Bernardet
tem em seu título uma paráfrase com a epígrafe do I Encontro de
Cinema na Universidade: “Vai chover na caatinga”.
5
Evidencia-se mais uma afinidade à distância entre a exposição do
projeto da revista e o escrito político do número 11 de Clima, o definitivo
Comentário. Entre os pontos do texto destacados por Candido no
seu informe político de geração, redigido muitos anos depois como
homenagem ao influente amigo, lemos: “Primeiro: a convicção de
que há uma afinidade essencial entre as posições que podem ser
qualificadas de progressistas, porque representam a corrente positiva
da civilização do Ocidente a partir do cristianismo, exprimindo-se pela
busca da igualdade e da liberdade sob diversas formas, que animam
variedades da democracia e do socialismo [...]. Segundo: a noção de que
o internacionalismo terminara a sua função e o futuro se encaminhava
para formas plurinacionais, devendo-se repensar a luta pela liberdade
e a igualdade em termos de cada nação.” CANDIDO, Antonio. Informe
político. In: CALIL, Carlos A. & MACHADO, Maria Teresa (org.). op. cit. p.59.
6
Conferir a reedição do depoimento entre os textos selecionados no
livro organizado por Vinicius Dantas com os escritos de intervenção
de Antonio Candido. In: CANDIDO, Antonio. Textos de intervenção. São
Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2002. p. 245 e 249.
7
revista da cinemateca brasileira
147
A apresentação de Argumento
148
revista da cinemateca brasileira
149
150
Legendas
p. 02 Raul Roulien em Granaderos del amor (1934), a versão em espanhol de Masquerade, dirigido por John Reinhardt.
p. 04
Edgar Brasil e Mário Peixoto em intervalo de filmagem de Limite (1931).
p. 06
Realizar a identificação.[Fotomontagem da autora]
p. 12
Estabelecer a doença.[Fotomontagem da autora]
p.13
Definir o culpado.[Fotomontagem da autora]
p.14
Marcar com a infâmia. [Fotomontagem da autora]
p.15
Eliminar o nocivo à espécie. [Fotomontagem da autora]
p. 24
Catálogo de equipamentos de revendedor da Pathé. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p. 28
Catálogo de equipamentos de revendedor da Pathé. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p. 29
Catálogo de equipamentos de revendedor da Pathé. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p. 30
Catálogo de equipamentos de revendedor da Pathé. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p. 31
p. 48
Fotogramas de Cidadão Kane (1941).
p. 54
Olympio Guilherme, 1929.
p. 57
Em cima: Raul Roulien em El ultimo varón sobre la Tierra (1933), versão em espanhol de It’s great to be alive, dirigido por James Tiling.
Em baixo: Raul Roulien em El ultimo varón sobre la Tierra. Anotação de Roulien no verso: “No sofá com girls fumando.”
p. 58
Capa de A verdadeira Hollywood, de Raul Roulien (Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1933).
p. 59
Capa de Hollywood: novela da vida real, de Olympio Guilherme. (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932).
p. 60
Raul Roulien em El ultimo varón sobre la Tierra.
p. 61
Raul Roulien em Granaderos del amor (1934).
p. 62
Em cima: Raul Roulien em No dejes la puerta abierta (1933), versão em espanhol de Pleasure cruise, dirigido por Lewis Seiler.
Em baixo: Em intervalo das filmagens de The world moves on (1934), dirigido por John Ford, Raul Roulien posa com mutilados da Primeira Guerra Mundial.
p. 63
Raul Roulien em El ultimo varón sobre la Tierra.
Catálogo de equipamentos de revendedor da Pathé. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p.64
Raul Roulien (dir.) com Gregorio Martinez Sierra (sentado com o roteiro) em filmagem de Primavera en Otoño (1933), a versão em espanhol de Spring time in Autumn, dirigida pelo mesmo Sierra.
p.32
Correspondência de Marc Ferrez para José Staffa, 22.04.1908. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
pg.65 Raul Roulien com Rosita Moreno em El ultimo varón sobre la Tierra.
p. 33
Balancete da firma Marc Ferrez e Filhos. (Arquivo Família Ferrez. Arquivo Nacional)
p. 70
Walter Benjamin. Carte-de-Visite-Photographie de Selle e Kuntze, por volta de 1902.
p. 40
Orson Welles em Verdades e mentiras (1976).
p. 76
Em cima: Werner Lindner, Bauten der Technik [Construções da técnica], 1927. (detalhe)
p. 44
Orson Welles em Verdades e mentiras (1976).
p. 45
Orson Welles em Cidadão Kane (1941).
p. 46
Em cima: Fotograma de Verdades e mentiras (1976).
Em baixo: Fotograma de Cidadão Kane (1941).
p. 47
Fotogramas de Verdades e mentiras (1976).
Em baixo: Karl Blossfeldt, Photographische Pflanzenbilder [Imagens fotográficas de plantas] [vista geral/Cornus Nuttallii, Cornus florida, Acer pennsylvanicum], 1929. In: Urformen der Kunst. Photographische Pflanzenbildern [Formas originais da arte. Imagens fotográficas de plantas ], Berlim, 1929, p. 17.
p. 77
Werner Lindner, Bauten der Technik [Construções da técnica], 1927. (detalhe)
p. 78
Em cima: Werner Gräff, Es kommt der neue Fotograf! [Aí vem o novo fotógrafo!], Stuttgart, 1929, p.6s.
Em baixo: Werner Gräff, Es kommt der neue Fotograf! [Aí vem o novo fotógrafo!], Stuttgart, 1929, p.10s.
p. 79
Em cima (esq.): Germaine Krull, Auslage mit Korsetten [Exposição com espartilhos], não datado.
Em cima (dir.): Jean-Eugene-Auguste Atget, Boulevard de
Strasbourg, 10e arrondissement, Paris 1912. In: Ann Thomas
(org.), Photographies modernistes du Musée des beaux-arts du
Canada,[Museu de Belas Artes do Canadá, 4 maio a 26 agosto de
2007], Ottawa, 2007, p. 190.=
Em baixo (esq.): Walter Benjamin. Kleine Geschichte der
Photographie [Pequena história da fotografia], publicada em Die
Literarische Welt, n. 39, 25 set. 1931.
Em baixo (dir.): Jean-Eugene-Auguste Atget, Friseur, Boulevard de
Strasbourg, Paris, por volta de 1906. In: Thomas Weski und Heinz
Liesbrock, how you look at it. Fotografien des 20. Jahrhunderts
[Fotografias do século XX], Köln, 2000.
p. 80
Um retrato de Franz Kafka criança, da coleção de Walter Benjamin,
por volta de 1888/89.
p. 86
“Catito pensando.” Carlos Eduardo de Freitas configurando o copiador ótico quadro a quadro com janela aquário. (fot. Luiza Malzoni)
p. 88
Instalações do laboratório da Cinemateca Brasileira. 1983. (fot. Patricia de Filippi)
p. 93
Esboços de projetos de maquinário de Patricia de Filippi para o laboratório da Cinemateca Brasileira. 1984. (fot. Luiza Malzoni)
p. 94
Maria Aparecida dos Santos retira rolo preto e branco da reveladora Calder. (fot. Luiza Malzoni)
p. 95
Em cima: Detalhe do processo de revelação da Calder. Banheira de fixador e lavagem. (fot. Luiza Malzoni)
Em baixo: Filme colorido no processo de secagem da reveladora
Calder. (fot. Luiza Malzoni)
p. 96
Em cima: Johan Prijs carregando copiadeira para impressão contínua por contato. (fot. Luiza Malzoni)
Em baixo: Detalhe do perfurador de band com vinte luzes. (fot.
Luiza Malzoni)
p. 97
Em cima: Rodrigo Mercês gerenciando dados na central técnica analógica e digital de equipamentos. (fot. Luiza Malzoni)
Em baixo: Detalhe da central técnica analógica e digital de
equipamentos. (fot. Luiza Malzoni)
p. 98
p. 99
p. 108
Mapa de Limite. Livro confeccionado artesanalmente por Saulo Pereira de Mello, e que serviu de base para a publicação da Funarte, Limite: filme de Mário Peixoto (1979). (fot. Zetas e Luiza Malzoni)
p. 109
Mapa de Limite. Livro confeccionado artesanalmente por Saulo Pereira de Mello, e que serviu de base para a publicação da Funarte, Limite: filme de Mário Peixoto (1979). (fot. Zetas e Luiza Malzoni)
p. 110
Mapa de Limite. Livro confeccionado artesanalmente por Saulo Pereira de Mello, e que serviu de base para a publicação da Funarte, Limite: filme de Mário Peixoto (1979). (fot. Zetas e Luiza Malzoni)
p. 111
Mapa de Limite. Livro confeccionado artesanalmente por Saulo Pereira de Mello, e que serviu de base para a publicação da Funarte, Limite: filme de Mário Peixoto (1979). (fot. Zetas e Luiza Malzoni)
p. 114
Fernando Pereda e Henri Langlois; Blanco Pongibove e Jaime Botet, Montevidéu, 1959.
p. 118
Fotogramas de O estudante de Praga (1926), de Henrik Galeen.
p. 119
Fotogramas de O estudante de Praga (1926), de Henrik Galeen.
p. 120
Fotogramas de A queda da casa de Usher (1928), de Jean Epstein.
p. 121
Em cima: Amanda Berenguer, Laura Escalante, Isabel Gilbert e Fernando Pereda. Paris, 1951.
Em baixo: Fernando Pereda, Isabel Gilbert, José Pedro Diaz, Alicia
Conforte, Amalia Nieto e Laura Escalante. Paris, 1951.
p. 126
Foto de cena de Gigi (1925), de José Medina. Gilberto Rossi recebe orientações de Medina para filmar Rosa de Maio e Carlos Haillot.
p. 130
Fragmento manuscrito do roteiro de Gigi.
p. 131
Intervalos de filmagens de Gigi.
p. 132
Fotogramas remanescentes de Gigi.
p. 133
Em cima: intervalo durante a filmagem de Gigi.
Em baixo: Foto de cena de Gigi: Gilberto Rossi filma Rosa de Maio.
Fora de campo, o ator Carlos Haillot.
Em cima: Carlos Eduardo de Freitas configurando o copiador ótico quadro a quadro com janela aquário. (fot. Luiza Malzoni)
p. 134
Foto de cena de Gigi. Gilberto Rossi filma a atriz Rosa de Maio.
Em baixo: Rodrigo Mercês no lustre durante o processo de
finalização do restauro de Chico fumaça (1957), de Victor Lima. (fot.
Luiza Malzoni)
p. 142
Fac-simile do texto de Paulo Emilio, publicado em Argumento, n.1, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1973.
p. 148
Manuscrito da apresentação de Argumento, 1973.
p. 149
“O que dá vontade de brigar.” Paulo Emilio logo após a escrita num jato de Cinemateca e briga. In: Brasil Urgente, São Paulo, n.4, 7 abr. 1963.
Parâmetros para o tratamento digital de Os fuzis (1963), de Ruy Guerra. (fot. Luiza Malzoni)
p.106
Mapa de Limite. Livro confeccionado artesanalmente por Saulo Pereira de Mello, e que serviu de base para a publicação da Funarte, Limite: filme de Mário Peixoto (1979). (fot. Zetas e Luiza Malzoni)
revista da cinemateca brasileira
151
Revista da Cinemateca Brasileira. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2013 - Semestral.
ISSN 2238-5517
1. Cinema B rasileiro 2. Crítica 3. História do cinema I. Cinemateca B rasileira
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Tiragem: 1.500 exemplares
Os artigos do n.2 da Revista da Cinemateca Brasileira foram recebidos em dezembro
de 2012 e aceitos para a publicação em fevereiro de 2013.
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Tratamento de imagem
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Cinemateca Brasileira
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Impressão
Stilgraf
Rodrigo Archangelo
Felipe Moraes
Marina Takami
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Pedro Plaza Pinto
Universidade Federal do Paraná - Curitiba
Editor
Adilson Mendes
Assistentes
Alexandre Miyazato
Fernanda Guimarães
Rafael Carvalho
Rodrigo Archangelo
Pesquisa
Alexandre Miyazato
Bruno Logatto
Daniel Shinzato
Daniela Giovana
Gabriela Sousa de Queiroz
Rodrigo Archangelo
Coordenação
Lígia Farias
Pesquisa de imagem
Karina Seino
César Ricardo Palmeira
Realização
Apoio
2
J U L H O
www.cinemateca.gov.br
D E
2 0 1 3
revista
da cinemateca
brasileira
NÚMERO 2 | JULHO DE 2013
revista da cinemateca brasileira

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