Edição nº18
Transcrição
Edição nº18
CAPA 2 Asas da Palavra Asas da Palavra Copyright @ 2004, by UNAMA REVISTA DA GRADUAÇÃO EM LETRAS União de Ensino Superior do Pará Entidade Mantenedora da Universidade da Amazônia Conselho Diretor Antônio de Carvalho Vaz Pereira Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco Marlene Coeli Vianna Paulo Roberto Carvalho Batista (Presidente) Ana Paula Mufarrej Asas da Palavra Revista da Graduação em Letras A revista Asas da Palavra é uma publicação semestral da GRADUAÇÃO em LETRAS da UNAMA que se define como um espaço multidisciplinar para a divulgação de trabalhos científicos e críticos no âmbito dos estudos da linguagem, com ênfase à cultura amazônica. Pretende, ainda, ser um fórum de discussão de questões relativas ao ensino de língua, literatura e tradução; e trazer, a cada ano uma edição especial, dedicada a um nome de expressão da Amazônia, ou da literatura universal, qualquer que seja sua forma de linguagem para expressar a arte, com o intuito de incentivar a participação de alunos e professores na pesquisa e produção crítica. É um espaço aberto, também, para a divulgação de trabalhos desenvolvidos em cursos de graduação e pós-graduação, assim como textos de criação e tradução literária, a fim de dinamizar a circulação da informação relevante ao fazer acadêmico e, acima de tudo, colocar em pauta a expressão cultural do homem da Amazônia. Asas da Palavra 3 Asas da Palavra 4 Asas da Palavra Asas da Palavra Revista da Graduação em Letras V.8 • Nº 18 • Dez bro/2004 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA - UNAMA • REITOR - Édson Raimundo Pinheiro de Souza Franco • VICE-REITOR - Antônio de Carvalho Vaz Pereira • PRÓ-REITOR DE ENSINO E GRADUAÇÃO - Mário Francisco Guzzo • PRÓ-REITOR DE PESQUISA , PÓS-GR ADUAÇÃO E EXTENSÃO - Núbia Maria Vasconcelos Maciel • DIRETORA DO “CAMPUS” QUINTINO - Marlene Coeli Viana • DIRETOR DO “CAMPUS” SENADOR LEMOS - Eduardo Silva de Souza Franco • DIRETORA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO - Ana Célia Bahia Silva • COORDENADORA DO CURSO DE LETRAS - Maria Célia Jacob • COORDENADORA DA INTERIORIZAÇÃO DE LETRAS - Maria das Graças Alves Salim • COMISSÃO EDITORIAL - Ana Célia Bahia Silva - Josebel Akel Fares - Josse Fares - Lucilinda Teixeira - Maria Célia Jacob - Paulo Nunes - Rosa Assis • EDITORA UNAMA - Coordenação: João Carlos Pereira Di s tri bu i ç ã o / A s s i na tu ra s / In terc â mbi o Assessoria de Comunicação da UNAMA Coordenação: Vanessa Alcântara Av. Alcindo Cacela, 287 • CEP 66.060-902 - Belém-Pará Telefone geral: (91) 4009-3000 - Fax: (91) 4009-3909 http:/www.unama.br [email protected] Asas da Palavra - revista da graduação em Letras Belém: UNAMA, v.8 Nº 18, 2004 Semestral 1. Literatura - Estudos críticos, artigos, ensaios, resenhas, tradução, poesia Periódicos 2. Lingüística. I. UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA Curso de Letras 800 CDD 400 ISSN 1415-7950 Universidade da Amazônia Centro de Ciências Humanas e Educação Asas da Palavra 5 Asas da Palavra Revista de Graduação em Letras Semestral V.6 • Nº 18 • Dezembro 2004 - ISSN 1415-7950 6 Asas da Palavra Esta revista é uma publicação elaborada por professores da Graduação em Letras da UNAMA- Universidade da Amazônia, desde o ano de 1993, graças ao apoio do Banco Itaú. Os textos que fazem parte deste número foram apresentados durante o X FÓRUM PARAENSE DE LETRAS, promovido pelo Curso de LETRAS da UNAMA, com o tema: Rio abaixo, rio acima: memória, literatura, cultura e identidade s na Amazônia, em outubro de 2004. IMAGEM DA CAPA: Barco de Miriti, artesanato típico da cultura amazônica, fotografados pela arquiteta Daniella Jacob Fernandes. Asas da Palavra 7 S U M Á R I O Apresentação ................................................................................... 9 Memória das águas .......................................................................... 13 Jer usa Pires Fer reira Imagens poéticas das águas amazônicas ............................... 17 Josebel Akel Fares Amazônia, verbo transitivo e aquonarrativas ........................ 29 Paulo Nunes Miltom Hatoum: palavras mágicas, culturas híbridas ........... 37 Josse Fares A água, o feminino e as projeções em Alfredo, de Dalcídio Jurandir ................................................................................................. 41 Marli Tereza Fur tado Rio-Mar: imagens de Soure em Marajó, de Dalcídio Jurandir ................................................................................................... 47 Er nani Chaves Outra face da Lua, outra face do Sol: olhares Suruí ............ 53 Ivânia Neves Corrêa Cultura Popular e Cultura Espe(ta)cular .................................... 61 José Guilher me dos Santos Fer nandes Alma da Gente das Brenhas: O Verbo dos Missionários ....... 71 Lúcia Tupiassú Identidades, fronteiras e relações de poder na Amazônia colonial paraense.............................................................................. 85 Marcus Vinnicius Leite Memória e iconografia de Belém- 1896 a 1908 ................... 93 Luiz Tadeu da Costa 2004: 2 x Bruno .............................................................................. 109 José Ar thur Bogéa 8 Asas da Palavra APRESENTAÇÃO O Curso de Letras do Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade da Amazônia tem atuado com o objetivo de fazer valer seu “compromisso com o homem todo e com todos desta região” onde ele atua. Para tanto, desenvolve ações como o Fórum Paraense de Letras e a publicação da revista Asas da Palavra, que já se tornaram referências entre os que militam na área de Letras e reúnem cabeças pensantes de várias IES do Brasil e do exterior. Este número da revista Asas da Palavra demonstra, portanto, esse nosso compromisso, agrupando aqui parte significativa dos textos que compuseram os simpósios de estudo que reuniram em Belém, na preamar cultural que antecede ao Círio de Nazaré, em outubro de 2004, o X Fórum Paraense de Letras, o qual abordou o tema “Rio abaixo, rio acima memória, cultura e identidades”. Encontro que constituiu uma sagração às forças aquáticas amazônidas. Esta revista descortina-se diante de nossos olhos, feito painel de densas folhagens, com o texto “Memória das águas”, de Jerusa Pires Ferreira (ela que é das grandes autoridades brasileiras quando se trata de Paul Zumthor, de quem é tradutora) que, com sua reconhecida excelência, nos (in)forma, a partir de referências literárias e fílmicas, que na Amazônia “a água é o bordão da memória”. Sabor e saber, desculpem-nos a não original apropriação de Barthes, é feliz associação sensorial que o leitor perceberá ao ler Jerusa. Asas da Palavra 9 10 Asas da Palavra Josebel Akel Fares, autora do segundo ensaio, articula teorias e põe em cena exploradores e viajantes das imensidões da Amazônia para discorrer sobre as cosmogonias aquáticas da região. Este estudo abre-alas para uma série três de ensaios sobre Dalcídio Jurandir – DJ – (embora o autor de Marajó não seja o foco principal deste número da revista) e constitui um fragmento da tese “Cartografias marajoaras: cultura, oralidade, comunicação”, defendida pela professora na PUC-SP. Conforme sinaliza o título do artigo – Amazônia, verbo transitivo e aquonarrativas –, Paulo Nunes, neste ensaio, debruça-se sobre o elemental água e sua relevância no cotidiano e na literatura do homem amazônico. Para justificar sua aquonarrativa, o ensaísta mergulha na obra de três escritores: Benedicto Monteiro, Ildefonso Guimarães e Dalcídio Jurandir. Monteiro é o autor de A terceira margem, protagonizado por Miguel dos Santos Prazeres, que acaba imerso “numa outra margem”; Ildefonso Guimarães, no conto “O rio”, apresenta personagens que são vítimas da vilania da águas. Por fim, Paulo traz à cena aquática o romancista Dalcídio Jurandir, cuja obra é colocada em contraponto com a de Graciliano Ramos que, em Vidas Secas, constrói o que o ensaísta chama de sedenarrativa. Josse Fares, por conseguinte, empreende um estudo sobre os processos que sustentam os romances de Milton Hatoum e “suas miragens árabes”, margeadas pelo rio Negro. A professora, também ela descendente de libaneses, destaca os romances do escritor manauara: “narrativas tecidas pelo verbo”, assomadas a outras, construídas pelas imagens das fotografias que perpassam o texto romanesco. Josse, a fim de discutir o complexo processo de hibridação cultural do Brasil (especialmente no extremo norte) instrumentaliza sua leitura com teóricos como Homi Bhaba, Lezama Lima, Néstor G. Canclini e Adélia Bezerra de Menezes. Marli Furtado, por sua vez, mergulha no universo feminino do autor do “Ciclo do Extremo Norte”. Ela discorre sobre as matrizes femininas em DJ, e faz desfilar Irene, Felícia, D.ª Amélia, Andreza e Luciana. A estudiosa, um dos nomes de destaque dos novos estudos dalcidianos, se ocupa em explicitar os andaimes míticos e/ou psicanalíticos de que Dalcídio lança mão para construir seu sólido edifício no moderno romance brasileiro. Ernani Chaves, sempre cioso, em seu “Rio-mar: imagens de Soure em Marajó”, parte de uma curiosidade pessoal para averiguar como se “articulam estados psicológicos de ‘Missunga’ [e] a representação da cidade” de Soure, onde o ensaísta nasceu. Freud e seu “Luto e melancolia” dá o tom deste ensaio emocionado, lúcido e elucidativo do filósofo paraense. A partir da narrativa de Arihera, “matriarca de uma das mais importantes famílias Suruí”, Ivânia Neves empreende uma incursão no universo mítico da Amazônia, levando em consideração os elementais água, fogo e ar e suas aproximações com os mitos pagão (clássico) e cristão, em seus desdobramentos entre a cosmogonia e a escatologia. Assim, em seu artigo “Outra face da lua, outra face do sol: olhares Suruí”, Ivânia, ao trazer à tona o esforço humano para compreender os mistérios da vida e da morte, deixa patente a universalidade do mito, uma vez que, independente do tempo e do espaço, o homem movimenta-se pelas veredas que desembocam numa trilha comum porque universal. José Guilherme Fernandes, em “Cultura popular e cultura espa(ta)cular”, lança mão de teóricos com Jacques Lacan, Walter Benjamin e Alfredo Bosi para discutir as complexas relações de poder que perpassam as culturas popular, de massa e artística. O professor, como não poderia deixar de ser, ilustra seus argumentos com uma manifestação popular amazônica: o boi Tinga, de São Caetano de Odivelas, município do interior do Pará. Sem intenção de fazer-se conclusivo, Fernandes, ao investigar a recepção de nossas manifestações culturais, pretende contribuir para a avaliação dos resultados das diversas modalidades de cultura na contemporaneidade. Em “Alma da gente das brenhas: o verbo dos missionários”, Lúcia Tupiassú propõe-se a estudar a “identidade do discurso poético paraense ou a identidade da literatura paraense. A fim de alcançar seu objetivo, a pesquisadora volta-se para os primórdios da produção literária da Amazônia, que coincide com a chegada de colonos e missionários, movidos, basicamente, por dois intentos: a extração de riquezas e a catequese dos nativos. O etnocentrismo dos missionários carrega em si o desrespeito às questões da alteridade. Segundo a ensaísta, a conseqüência desse desrespeito em relação ao aborígene resvala no exotismo que, não necessariamen- Asas da Palavra 11 12 Asas da Palavra te, é total e irrestrito na literatura paraense. O poema “Ver-o-Peso” é citado como exemplo da uma literatura que dá ênfase ao universal. O ensaio de Marcus Vinnicius Leite – “Identidades, fronteiras e relações de poder na Amazônia colonial paraense”- tem por objetivo “abrir um debate sobre o processo de construção das identidades da região amazônica a partir da sua formação colonial”. Com esse intento, Marcus percorre a trilha das crônicas coloniais de viajantes e missionários que aportaram no Pará. As crônicas são, portanto, os subsídios de que lança mão o ensaísta para interpretar o “curso da constituição daquilo que chama(mos) de paraensidade”. Fascinante é o ensaio de Luiz Tadeu Costa, que se une a outros estudos com o objetivo de “desvelar esse pedaço da Amazônia à civilização”. Luiz Tadeu analisa as representações visuais da “Belém de Paris”, a instauração utópica da modernidade na capital do Pará, entre os fins do séc. XIX e início do XX. As imagens de fotógrafos e pintores põem em cena as políticas que culminaram com a ação do intendente Antônio Lemos e estende-se até a derrocada da belle-époque. Trata-se de um ensaio detalhado e elucidativo. A Asas da palavra n.º 18, exemplarmente ilustrada com o artesanato dos barquinhos de miriti, encerra com um artigo do professor e jornalista José Arthur Bogéa, um dos mais significativos pesquisadores da Amazônia paraense. “2004: 2 x Bruno” é um texto-homenagem, em que Arthur Bogéa plaina sobre a literatura do “poeta da lua”, figura essencial ao Modernismo em terras amazônicas. Em rápidas pinceladas, Bogéa dá-nos notícia de Maria Dagmar, Calunga, Bailado Lunar, Crucifixo, entre outros livros do poeta de Batuque. Trata-se de um trabalho fundamental para os que se desejam iniciar na literatura de Bento Bruno de Menezes Costa. Que ao leitor fique a certeza de que este exemplar de Asas da palavra é mais uma ponte de diálogo que se instala para palmilhar a complexa e intrincada rede que é a cultura brasileira do extremo norte. A textual cortina de folhas verdes descerra-se. Descerra. Será? Josse Fares e Paulo Nunes Asas da Palavra 13 MEMÓRIA DAS ÁGUAS* Jerusa Pires Ferreira - USP/ PUC Quero agradecer à professora Célia Jacob pelo amável e carinhoso convite, e aos deuses e deusas das águas que me permitem estar mais uma vez em Belém (espaço de grandes afetos e descobertas). Vim aqui pela primeira vez, há uma década, século, milênio (era o ano de 1995) a convite da professora Maria do Socorro Simões (projeto IFNOPAP-UFPa) e não parei mais. Quero dedicar minha fala a Josebel Akel Fares, senhora de todas as matintas amazônicas. Assim aos meus amigos escritores, poetas, músicos (que não cito por não querer omitir). O Trabalho que aqui apresento, sob forma resumida compõe-se de: 1. Uma evocação , espécie de vinheta sobre a Memória das Águas. 2. Uma reflexão sobre a memória (que prossegue nos cursos, trabalhos, livros que tenho publicado e pretendo publicar nos próximos anos). 3. A leitura e relação com o tema deste Simpósio (memória, cultura, identidades), numa breve leitura de livros do escritor Milton Hatoum, começo de um trabalho maior e em curso . 1. Memória das Águas Quando se trata do Sertão, as águas são raridade e remédio, são força e esperança. Ganham a dimensão de uma Promessa. O filme Sinais da Chuva, rude almagesto de Olney São Paulo guarda a marca de entendimentos e de presságios. Por isso alguém prevê que a chuva cairá ou deixará de cair. E a chuva que cai forma os rios, abastece a terra, enche de fartura o Sertão. E se caí demais, traz a desolação de todos os desastres. Na Amazônia, a água é presença e movimento, é a própria organização das paisagens culturais e humanas, anímica e definidora, a água é o bordão da memória. O primeiro contato é de tal maneira impressionante que parece estarmos cercados por toda a vida do mundo, e esta imagem parece que penetra os nossos corpos e nos envolve, creio para sempre. É a imagem da grandeza, do mistério insondável, da profusão do líquido que é, antes de tudo vida. Ao contrário dos ermos desérticos, a água fecunda, arrasta, para frente, por onde correm os rios, - ou para trás até onde alcança nossa memória, em fluxos e correntes. No caso da chuva, que ao longo da literatura quis dizer memória e se associou a estados de alma, de melancolia ou de apreensão, de suavidade ou de tragédia, não sei se em algum momento ela deixou de ser mencionada aqui, nos espaços desta cultura. Estudante secundária gravaria para sempre a impressão e a sonoridade do título: “Chove nos Campos de Cachoeira” de Dalcídio Jurandir. A primeira vez que assisti ao Sacrifício de Tarkóvski, filme que além de constituir-se num rito é um modo especial de tratar o tempo, fui tomada de modo especial. Há um determinado momento em que as cortinas finas se mexem pela força da chuva e nas calçadas escorre a água que pode vir de não * Conferência proferida na abertura do X Fórum Paraense de Letras, promovido pela UNAMA, outubro, 2004, Belém-Pará. 14 Asas da Palavra MEMÓRIA DAS ÁGUAS sei onde mas que, em seu percurso, vai levando pequenas coisas. Nesta observação parecemos levitar e estar suspensos numa espécie de tempo incomparável, o da água que corre. Vou, em companhia de um amigo à sua casa nos arredores de Paris e, em grandes conversas chegamos às margens do Rio Marne e de repente, somos surpreendidos e, em tom de admiração ele me diz : “Ça coule”. De fato o rio corria numa velocidade espantosa e como que trazia até nós o fluir do tempo e da consciência, a clepsidra que nos regula para o inevitável. Na seqüência, e desde que me detive a pensar sobre a água, um dia sonho que estou voltando a um bairro onde vivi para comprar minha antiga casa que deixei com muita dificuldade, mantendo o sentido de uma grande perda. Eis que me encontro num dos meus antigos terraços, onde vivi momentos muito belos, grandes descobertas e sofrimentos. E então, no sonho alguém me aparece e me pergunta. Por que você voltou a esta casa? Respondo entre dormir e acordar: Porque em vez de rua quem passa na frente dos meus terraços são os rios Guamá e Amazonas. E de fato, eu sentia o movimento dos rios junto àquelas paredes, experimentava fragmentos de outras vivências. Novos afetos e velhas memórias em processo. 2. Tantas Memórias Memória, a Memória, as Memórias têm sido grandes e prestigiosos temas, em nosso tempo, na virada de milênios e de novas eras, de tantas conquistas e de muitas perdas. Dão conta do registro, do entendimento daquilo que se busca processar, desvelar, mas têm sido também rótulos que abrigam qualquer coisa, panacéia, e canteiro de equívocos. Afinal, sob o rótulo de memória cabe tanta coisa... Há nas pessoas todo um desejo de guardar e recuperar o que se extravia na vertigem. Mas a memória disso ou daquilo só pode ser exercida em plenitude relativa ou em suas incompletudes, recriações e até impedimentos. Assim há também memória como sustentação de “identidades”, rede de conhecimentos que se projetam ao passado e ao futuro concomitantemente, em movimento pendular. Por sua vez a Memória, fenômeno material e corpóreo, psíquico e ainda fenômeno de cultura, enquanto categoria, é um modo especial de presentificar a vida em muitos atos e formas específicas do lembrar, que pode vir do re-cordar, ao re-lembrar ou evocar e daí por diante, lembrar esquecendo ou simplesmente esquecer. Quanto à memória biológica, e ela não pode deixar de ser aqui trazida, se desenvolve num terreno em que tudo é o jogo dinâmico entre seleção, codificação, transferência. E então tudo será memória e seu par complementar-o esquecimento. Penso, aliás que a vida é uma luta pela memória, contando sempre com os vários tipos de esquecimento, o restaurador, o devastador, ou simplesmente o olvido e o silêncio que antecipam a morte. Podemos falar de modos de ser da memória, das suas falhas e de seus excessos, lembrando que a memória prodigiosa num indivíduo era um fato comprometedor, por exemplo, perante a Igreja e seus Inquisidores, como nos aponta tão bem Paul Zumthor no seu livro fundamental A Letra e a Voz. Era atribuído a este fato todo um poder diabólico. Não seria difícil de imaginar-se o embaraço e os perigos para as heterodoxias de um tal Jerusa Pires Ferreira - USP/ PUC Asas da Palavra 15 arquivo vivo, por um lado denunciador por outro transmissor. Até hoje, em linguagem policial, fala-se de queima de arquivos, quando se elimina alguém cuja memória detém fatos e seria capaz de trazê-los à tona. Para a tradição oral a memória é espaço, lugar, e a própria matéria construtiva de tudo o que se cria. Ela é o encontro da tradição com o presente e com aquilo que se projeta ao futuro. E aí há a memória acionada em presença, interativa e fundamental, no estabelecimento da pactuação que torna possível o reconhecimento de um repertório e do ato criador. As memórias contadas (anamneses), imaginadas, comparecem desde sempre na literatura e na poesia (afinal nunca é demais repetir que a memória é a mãe de todas as musas) são muitas vezes a própria literatura e a poesia. Identificando-se fortemente com o processo criador e suas matérias primas, Miguel Torga, escritor português, chama de Dias da Criação alguns dos livros de memórias que escreveu, à maneira do Gênesis bíblico. Augusto Roa Bastos um dos maiores escritores de nosso continente, em seu livro Eu o Supremo, atribui à memória, inclusive à memória viva na palavra oral, a capacidade de poder reverter a tirania da letra e dos déspotas que a transformaram em lei. A literatura apóia na grande memória pessoal/coletiva discursos que trazem ,em interação, o reavivar ou o esquecer,em processos contínuos . Assim não podemos também deixar de lado velocidades e ritmos, os labirintos, a memória das formas e a dos gêneros, a memória fantasmática. Há ainda a comentar a força de toda uma memória subterrânea, daquela que se desenrola como algum tipo de resistência ao que foi recalcado e perseguido e que recrudesce com uma vitalidade sem par. Estas reflexões fazem parte do conjunto em que se fundamentaram os ensaios e estudos contidos em meu recente livro Armadilhas da Memória(São Paulo, Ed. Ateliê). 3. Da memória para os romances de Milton Hatoum Falar das Águas é também remeter a um dos mais sensíveis e impressionantes escritores brasileiros do momento, o amazonense Milton Hatoum (aliás apaixonado por Belém). Em seus dois livros Relatos de um certo Oriente e Dois Irmãos (São Paulo, Cia das Letras) nesta semiosfera das águas, ele organiza narrativas, tramas ficcionais e textos de e sobre a memória, de modo bem diferente, embora partindo de lastro comum. O primeiro (e não será novidade dizê-lo) como a estrutura de um tecido, tapete, rede. No segundo, como o limo das águas, a proximidade dos abismos. Até a capa é de um verde abissal, como um peral onde a tragédia se constrói. Ambos nos convidam a um olhar e a um tempo de vivências e de imaginação na Amazônia. Alguns eixos nos permitem a aproximação desta memória tão assentada nas águas desta cultura mestiça (em suas palavras, a beira do rio e a cultura do mediterrâneo). E em termos de memória exercida como matéria e memória (Henri Bérgson) e memória-narração, anamnese (Proust). Temos neste livro a “Madeleine cabocla”, em que “O aroma dos figos era a ponta de um novelo de histórias narradas por minha mãe”. E eu passo a destacar: 1. O da migração, deslocação difícil, o da descoberta, multiplicação de seqüências em que as águas são o centro de tudo. 16 Asas da Palavra MEMÓRIA DAS ÁGUAS Dan Bem Amos no prefácio de De Deuses e mitos de Greimas nos fala do século XX como o século da experiência dos exílios e das migrações no mundo, e da ativação da memória. Destaco nos romances de MH, a polissemia de tantas evocações, tantas construções da memória. Assim no primeiro capítulo de Relatos de um Certo oriente, ao terminá-lo, nos transmite o narrador/autor uma espécie de síntese da grande aventura da memória, quando nos aponta que a busca da memória é a chave da vida. Além disso, os sentidos, fábulas e vozes formam o corpo destas viagens da memória. A mistura de lugares e espaços de crenças: ele nos fala do nome de deus evocado em outro idioma, possível reunião entre a religião de Emilie (cristã) e a do seu marido (muçulmano) e assim também a dos que vieram de culturas indígenas e que trabalham na casa. Em certo momento ele nos fala de “da neve ao mormaço, da montanha à planície, do Mediterrâneo ao Amazonas”. E também nos evoca as mesquitas árabes a partir das torres de Manaus, a beira do rio e as águas do mediterrâneo. 2. O outro eixo é o da infância. O da infância (que fala, ao contrário do significado etmilogico , aquele que não fala) , o da experiência e reconstrução dos espaços, da cultura e dos ritos familiares. A experiência de poder falar, de transformar o tempo em descoberta e encantamento, como nos diz Giorgio Agamben, em (Enfance et histoire, Paris, Payot). MH nos traz a possibilidade de um tempo sempre recuperável mas não de forma linear, tempo de experiência e afetos. Assim ativam-se os sentidos, sonhos e contemplações que criam as coisas. Assim se recria a memória cultural da casa (como um cosmo) ou da cidade com seus múltiplos personagens, familiares, agregados e estranhos visitantes. A continuação deste trabalho deve ser publicada em breve, tanto na Revista Asas da Palavra como numa coletânea a ser anunciada. Asas da Palavra 17 IMAGENS POÉTICAS DE 1 ÁGUAS AMAZÔNICAS Josebel Akel Fares (UEPA Universidade do Estado do Pará e Unama-Universidade da Amazônia) Esse rio é minha casa./A varanda é igarapé. Morena cheiro de mato./Marajó tem mururé Pescador que colhe a rede/o seu peixe vai pescar. (Mestre Diquinho2). O território amazônico situa-se ao norte da América do Sul e compõe-se de mais de 50 % do território brasileiro, da Venezuela, da Colômbia, da República da Guiana, da Bolívia, do Peru, do Equador, do Suriname e da Guiana Francesa, estes quatro últimos na sua totalidade territorial. Os países amazônicos guardam marcas de um passado e de um presente que, ao mesmo tempo, os assemelham e os diferenciam. A situação econômica e política, o processo de colonização, a religiosidade, as línguas são alguns desses fatores de proximidade e distanciamento entre eles. A Amazônia Brasileira é formada pelos Estados do Pará, Amazonas, Acre, Amapá, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso, parte do Maranhão e Goiás, explicam os livros de geografia. As áreas verdes, a grande bacia hidrográfica, as altas temperaturas e o clima úmido transformam a natureza amazônica em um paraíso de biodiversidade. A maior região brasileira em extensão territorial é, contudo, a menos habitada. Grande parte da população localiza-se na área urbana das cidades e nas capitais, o que agrava a situação de despovoamento. A grandeza amazônica é definida pela fisiografia. Os mapas desenham o espaço com grandes áreas de floresta, com a rede fluvial e, na seca, com as ranhuras do solo. Neste estudo, apresento algumas poéticas influenciadas pelo espaço amazônico, centradas em imagens da água. Este texto, com algumas alterações, é parte de minha pesquisa de doutorado, que resultou na tese “Cartografias Marajoaras: cultura, oralidade, comunicação”, defendida na PUC/SP, em 2003, orientada pela profa dra. Jerusa Pires Ferreira. 2 Meu nome é Raimundo Miranda e sou conhecido como mestre Diquinho. Sou natural de Soure, sou marajoara da gema, graças a Deus e estou aqui à sua disposição. Eu sou pescador, artesão, pinto um pouco, confecciono, um pouco, com argila, talha também, faço também comédia de boi-bumbá, já fui campeão aqui em Soure. Sou, sou campeão de samba enredo também.[...] De todas essas coisas, o que eu gosto mais de fazer é fazer letra e cantar, eu gosto muito. Eu acordo, às vezes, cantando. Música pra mim é assim, eu acordo, às vezes, cantando. Acordo com a melodia e a música na cabeça. Ninguém me ensinou, graças a Deus, é um dom que vem de Deus.[...] Hoje estou no Cruzeirinho fazendo música de carimbó com muito orgulho, graças a Deus”. Os versos fazem parte da letra Viva a Cidade de Soure, gravada em CD pelo Grupo de Tradições Marajoara Cruzeirinho (2000). 1 18 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS A água metaforiza a erotização primordial: a água da concepção, onde nada o sêmen que origina a vida; a água maternal do ventre, onde o homem mergulha pela primeira vez, e a água láctea, o alimento primeiro - elementos propiciadores das sensações de segurança e proteção, que estabelecem uma relação do mundo interior com o mundo exterior. Na pia batismal, a água permite ao homem a purificação das culpas e dos pecados de um estágio anterior - como as águas do dilúvio - e simboliza a admissão no mundo místico, o renascimento. O corpo humano compõe-se de alto percentual de água, por isso, às vezes, como as marés, o homem é tão susceptível aos movimentos lunares. A água é a origem de todas as coisas, assegura Tales, o primeiro filósofo. As águas podem originar-se de fontes celestes ou terrestres. As águas da chuva fertilizam e fecundam a terra, no entanto também podem ser responsáveis pelas enchentes, inundações. As águas brotadas ou acumuladas podem significar os perigos dos oceanos, dos rios, dos lagos. A imensidão das águas é uma marca característica da natureza brasileira, destacada já na carta de Pero Vaz de Caminha, escrita no século XVI. Ao comentar sobre as belezas naturais da terra encontrada, o escrevente constrói o espaço com um léxico relativo às águas. Praia, rio de água doce, ribeira, lagoa, ilhéus referem-se à possibilidade de prosperidade. “Águas são muitas: infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. A carta, de certa forma, profetiza. Todavia, tanto a ausência, quanto a abundância do líquido trazem problemas, inviabilizam ou dificultam a vida. As Regiões Norte e Nordeste, especialmente, padecem com esta instabilidade, evidenciando-se os contrapontos entre secos e molhados. No oceano Atântico, os inúmeros rios, igarapé3, lagos, furos4 e paranás, e as chuvas formam a torrente aquática amazônica. A navegação pelos rios da Amazônia ensina, umas vezes, um olhar para o inalcançável, outras vezes, um tatear os verdes e os barrancos marginais. A águas soberanas induzem a uma visão difusa com cores que se alternam e se misturam ainda cruas. O Amazonas, cheio de ilhas de todas as formas e dimensões, oferece no seu curso várias larguras, abunda em ygarapés e paranamerys5, que não são mais do que a maior ou menor porção de água do rio compreendida entre duas ilhas ou duas séries de ilhotas. Ora as margens distanciam-se grandemente uma da outra, formando uma vasta extensão d’água, uma baía ou poço, ora se apertam em furos e ygarapés, que, já direitos, já tortuosos, apresentam uma infinidade de pontas, de estirões, e de pequenas enseadas. É assim que em uma viagem que dure algumas horas acontece que algumas vezes se acha o navegante em pleno rio, aparecendo-lhe somente ao longe a fita azul escura dos horizontes, e outras anda a poucas braças das margens, e as árvores da beirada cruzam-se sobre a cabeça, formando uma como abóbada de verdura. (SOUZA, 1990, p.41). Igarapé, garapé, guarapé, [ iara’pe < i’ara ‘canoa’ + pe ‘caminho’ ~ caminho da gente]. Pequeno rio que corre entre duas ilhas ou entre uma ilha e a terra firme; canal natural que liga dois trechos mais ou menos mais ou menos próximos de um mesmo rio. [Cunha, 1999:151]. Comumente, costuma-se chamar a espécie de riachos correntes, normalmente estreitos e não muito profundos, com um caminho protegido pela mata, o que impede a penetração do sol e ocasiona, em certas partes, águas gélidas. 4 Furo: pequeno canal de um rio, quando este, tendo uma ilha, fica dividido em dois braços, um dos quais estreito ao qual dão este nome (Miranda, 1968:40). 5 Paraná: braço de um rio caudaloso separado da artéria principal por uma ou por diversas ilhas. Paraná-mirim (Parana-miry) braço estreito de um grande rio. Etim. tupi Paraná rio (Miranda, 1968:64). 3 Asas da Palavra 19 Jo sebel A kel F ares A vida depende da água, concebida como sobrevivência, como meio de navegação, e como demarcadora de tempo. Nas cidades ribeirinhas, as amarras racionais da urbanidade perdem-se em função de uma outra lógica, que considera o tempo das marés, da cor das nuvens, do soprar dos ventos, do esquentar ou o esfriar do sol, além das marcas do relógio industrial e da parabólica. Raimundo Morais (1936, p.257) defendem que o relógio da Amazônia é a água, porque a água não marca somente as horas, as semanas, os meses e os anos, mas a escassez e a fartura, a alegria e a tristeza. É na corrente dos rios e na superfície dos lagos, que se decidem nossos problemas. De maneira que o homem, em vez de consultar a marcha dos astros na decifração dos enigmas, consulta à altura das águas. Rios, praias, lagos e igarapés são espelhos permanentes da paisagem, onde narcisos disputam com as belezas naturais. Os territórios, então, estreitam-se ou alargam-se espacialmente, e as águas aprisionadas pelas terras desenham nas esferas líquidas traçados de diferentes formas. A rede hidrográfica pincela o mapa, com cores ora ocres, ora claras, das águas dos rios amazônicos. No capítulo Águas brancas, pretas e verdes, do Anfiteatro Amazônico, Moraes (1936) elucida sobre as cores das águas da bacia amazônicas: Um fenômeno curioso, e que provoca surpresa na bacia amazônica, é a cor diferente das águas em vários rios. Existem ao chamados de água branca, de água preta e de água verde. [...] os rios de água branca [...] Os principais desta série, sem contar com o próprio Amazonas, são o Madeira, o Purus, o Juruá e o Javari. [...] Os mais importantes da série dos de água preta se encontram nas abas do norte do Amazonas, tendo à frente o Negro, o Nhamundá e o Trombetas. Com a denominação de rios de águas verdes acham-se do lado sul os três maiores: Tapajós, Xingu e Tocantins, (p.230/1) prossegue o autor a observação coletiva se resume nisto: os rios que mais trabalham a planície são os de água branca, não somente porque aí estejam suspendendo, mas porque lhe rejuvenescem o quadro botânico (p.238) e para concluir Resumindo: a argila mineral faz a água branca; a terra vegetal, húmica, faz a água preta; e plâncton, marinho ou fluvial, faz a água verde (p.240). Metáforas da água. A intimidade e a dependência do amazônico com a água, conforme se anuncia, provocam fortes experiências estéticas, escritores se ocupam em representar a aquosidade da paisagem. Se autores, como Caminha, referem-se à água como elemento de prosperidade e redenção, outros são arautos da dimensão trágica. Euclides da Cunha metaforiza a água como “ruína”. Edson Carneiro trata o amazônico como “escravo do rio”. Tiago de Mello fala na Amazônia como a “pátria das águas”. Giovanni Gallo aponta a “ditadura das águas” no Marajó. Ruy Barata recria Raul Bopp6 e Este rio é a nossa rua / Ai o capim pirixi/ Rema Rema deste lado/ Quero ficar espichado/ sobre o capim pirixi / Eu vou convidar a noite/ para ficar por aqui (Estrofe final do canto XII, do poema Cobra Norato de Raul Bopp). 6 20 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS afirma o “rio como rua”. Dalcídio Jurandir constrói grande parte de sua obra através de metáforas das águas. Portanto, ratifica-se: a compreensão do espaço amazônico iluminase com o farol das águas. Estas sinalizam o modo de vida do homem, indicam o comportamento na estação. A ruína amazônica. Euclides da Cunha (1999), em À Margem da História, no capítulo Terra Sem História (Amazônia), apresenta a imagem mais forte da ruína amazônica, divulgada no Brasil do início do século XX. É um texto provocador para o amazônida, uma vez que a construção da metáfora da ruína deve-se às águas do rio Amazonas, que além de provocar a idéia hiperbólica de espaço indomável, trabalha dia a dia para solapar o território, e não deixa solidificar a história, daí o autor considerá-lo o menos brasileiro dos rios, um tema incrível e atual. Na geografia das terras moldadas pelo rio Amazonas, o que “se destaca é a função destruidora, exclusiva. O enorme caudal está destruindo a terra” (p.5). As terras flutuantes, desgarradas, puxadas pelo rio, se tornam migrantes e independentes do homem, procuram espaço. À idéia de pátria sem terra, contrapõe-se a de terra sem pátria. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zona tão remota de outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem incógnita de um território em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, um desgastamento ininterrupto, as largas superfícies que atravessa (p.7). A imagem da monotonia, que consta em textos anteriores e posteriores ao de Cunha, é construída pela presença única da linha horizontal dos rios, que predomina sobre a vertical. É, sem dúvida, o maior quadro da terra; porém chatamente rebatido num plano horizontal que mal alevantam de uma banda, à feição de restos de uma enorme moldura que se quebrou [...]. E como lhe falta a linha vertical, preexcelente na movimentação da paisagem em poucas horas o observador cede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem-fins daqueles horizontes vazios e indefinidos como os dos mares.(p.1/2). As impressões de viagem de Euclides da Cunha levam em conta monografias dos viajantes estrangeiros na Amazônia. Nelas, o autor admite, que o espaço é capaz de fazer tombar teorias preconcebidas e tornar admissível a leitura mítica da Amazônia, pois, reafirmo, não é possível analisar este território, descartando as explicações sobrenaturais. “Parece que ali a impotência dos problemas implica o discurso vagaroso das análises: as induções avantajam-se demasiado os lances da fantasia. As verdades desfecham em hipérboles” (p.4). A análise da fisiografia amazônica considera a formação ou deformação de ilhas no percurso fluvial. Sobre o Marajó, Cunha reflete sobre a destruição do território e a ilusão espacial, se assegura de Martius e Bates na defesa de seu argumento. Asas da Palavra 21 Jo sebel A kel F ares Mas toda essa massa de terras diluídas não se regenera. O maior dos rios não tem delta7 Foz caracterizada pela presença de ilhas de aluvião*, geralmente de configuração triangular, assentadas à embocadura de um rio e que forma canais até o mar. . A ilha do Marajó, constituída por uma flora seletiva, de vegetais afeitos ao meio maremático e ao inconsistente da vasa, é uma miragem de território. Se a despissem, ficaria só as superfícies rasada dos ‘mondongos’8empantanados, apagando-se no nivelamento das águas; ou, salteadamente, algumas pontas de fraguedos de arenito endurecido, esparsas, a esmo, na amplidão de uma baía. A luz das deduções rigorosas de Walter Bates, comprovando as conjecturas anteriores de Martius, o que ali está sob o disfarce das matas, é uma ruína; restos desmantelados do continente, que outrora se estirava, unido das costas de Belém às de Macapá – e que se tem de restaurar, hipoteticamente, em passado longínquo, para explicar-se a identidade das faunas terrestres, hoje separados pelo rio, do norte do Brasil e das Guianas [...] E os resíduos das ilhas demolidas – entre as quais a de Caviana, que lhe foi antiga barragem e se bipartiu no decorrer de nossa vida histórica - vão cada vez mais delineando-se e desaparecendo, no permanente assalto daquelas correntezas poderosas (p.5/6). O rio inconstante provoca a destruição, insiste o autor. As terras caídas prenunciam a ruína, as margens se abatem pelo furor das enchentes e o rio desordenado, revolto, vacilante, destrói, constrói, reconstrói e desgasta, apaga, em horas, o que se erigiu em decênios. Os escravos do rio. Edison Carneiro (1946) discute que a ocupação do solo amazônico, no início do século passado, a partir do verso de Raul Bopp, “esse rio é nossa rua”. Para ele, o habitante não ultrapassa as terras banhadas pelo grande rio e pelos inúmeros afluentes e confluentes, devido à facilidade de locomoção na árvore hidrográfica e impenetrabilidade da floresta. Todavia, esses povoados construídos nas margens são precários e os territórios ocupados correm riscos constantes de transmutação, devido a alguns fatores naturais como: ser levado pelas águas, sofrer danos com a erosão e com as alagações periódicas. Aspectos abordados por Euclides da Cunha de forma mais trágica. Nos arraiais, nas vilas e nas cidades ribeirinhas a canoa, aportada na frente das casas, representa um ícone de sobrevivência. O rio alimenta, transporta, enriquece, protege o homem: toda a população ribeirinha vive do e no rio, submissa e dócil aos seus caprichos, é “escrava do rio”: São povoações longitudinais, que acompanham o rio, espelhando-se nele, em vez de penetrar a terra firme e criar condições de vida autônoma, sem tanta dependência do meio físico. Estas povoações não fixam o homem, dispersam-no. São estações – no máximo estações terminais - onde o amazônida amarra a sua canoa ao fim da labuta diária. Os vizinhos estão rio abaixo ou rio acima, ou sobre as águas do rio, e é sobre a superfície líquida que se dão os encontros, que se efetuam os negócios, que se transmitem as notícias (p.9). Foz caracterizada pela presença de ilhas de aluvião*, geralmente de configuração triangular, assentadas à embocadura de um rio e que forma canais até o mar. *aluvião 1 depósito de cascalho, areia e argila, que se forma junto às margens ou à foz dos rios, provenientes do trabalho de erosão das enchentes ou enxurradas. 2. Inundação, cheia, enxurrada, enchente, alúvio. (Aurélio Século XXI. Eletrônico). 8 Extenso balcedo entremeado de aningais*, de solo afofado e atolento de vegetação pujante e cerrada, difícil de romper-se, coberto durante o inverno por quatro a oito palmos d´água e que só seca e endurece nas últimas semanas do verão. § Enormes aningais, crescendo sobre perigosos tereterês, em compridos e largos cordões, de solo excessivamente atolentos, coberto por espessa camada de raízes aéreas das aningueiras e de folhagem seca das mesmas(Miranda, 1968, p.57). * Aninga: planta herbácea, abundante nas margens pantanosas dos lagos, rios e depressões de várzeas, é muito comum às ilhas flutuantes da Amazônia. As flores e os frutos servem para isca na pescaria, e, segundo o povo, é medicinal (Assis, 1992, p.16). 7 22 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS Ditadura das águas. Giovanni Gallo9 (1980), igualmente, frisa a regência das águas fluviais: Quem manda aqui não é presidente da república, não é governador, não é prefeito. Aqui domina uma ditadura absoluta e incontestável, não baseada na Constituição ou nas Forças Armadas. É um dado de fato, quem manda é a água. É a água quem dá o sustento e cria as dificuldades, consola e leva ao desespero, condiciona a saúde, o trabalho, a vida da gente: sem levantar a voz, sem violência, mas implacável e total. [...] As estações do ano, aqui tem um nome exclusivo: água, lama e seca (p.61). Gallo, em entrevista (2000), indica, que, apesar da ditadura, o homem encontra formas de resistência à imposição da natureza, ou melhor, de convivência com as estações - de cheias, de lama e de seca - inventa meios de fazer as travessias, cria uma arquitetura apropriada ao espaço, como as casas caneludas ou as marombas10. O trágico imposto pela natureza é, muitas vezes, aliviado pela força criativa do homem. O pesquisador ainda investe na diferença entre os dois marajós e indica esta diversidade nas águas grandes, aborda também questões da estação da pesca. É a água quem domina, quem regula a nossa vida. Eu falo do Marajó nosso. Você sabe que tem dois marajós, completamente, diferentes. Marajó oriental é a área dos campos do Marajó, que são alagadiços; de Muaná para cima, é a área de mato, floresta, tem uma vida completamente diferente e não tem nada a ver com o nosso. Aqui, a vida do campo tem uma expressão diferente. Bem, nesta área aqui, a água tudo condiciona, porque você tem uma estrada, a estrada é ótima no verão, no inverno não presta mais. Uma casa, a casa que você faz, até quando a água não existe condiciona, aquela fotografia da capa do meu livro, vê aquela casa caneluda, que sentido tem? Tá no seco, mas ela te lembra, quem manda aqui é a água: ‘dentro em pouco, eu vou chegar e vou condicionar vocês’. Assim, a vida, a pesca é ligada com a água. Agora, aqui, vamos para a destruição total, porque não tem mais controle de pesca, não tem mais a estação de pesca, abertura de pesca. Naquele tempo, vinha o governador. Eu me lembro, vinha o dia da abertura oficial da pesca. Agora não, eles pescam no tempo da piracema, vão praticamente destruindo tudo. Então, é uma vida social também, que é determinada pelas águas, água alta, água baixa, se pesca ou não se pesca. A vida da fazenda, a fazenda é estruturada na base da água, não é a fazenda que está na estrada, ou o campo, que deve ter uma parte baixa, que tenha mais possibilidade de ter uma reserva de água durante o verão, a parte alta para agasalhar o gado quando a água é fresca. Uma coisa que o outro não tem. Nós já temos uma estrutura de fazenda em função da água que vai e que vem, e, depois, a pesca que vão num certo período e no outro. É isso, é assim tudo condicionado pela água. Giovanni Gallo (1927-2003), ex-padre italiano, morou mais de trinta anos no Marajó e dedicou sua vida na pesquisa das formas de vida desta região, onde criou O Museu do Marajó - uma das mais importantes instituições de pesquisa sobre a cultura amazônico-marajoara. 10 Maromba. Bras. AM Jirau onde se põe o gado por ocasião das cheias (Aurélio. Século XXI. Eletrônico). Em algumas cidades amazônicas, às vezes, corresponde a uma espécie de assoalho móvel, que sobe, conforme a altura das águas. Este processo, no caso, acontece não somente no local onde se coloca o gado, mas também nas moradias dos habitantes do lugar no período de cheia. 9 Asas da Palavra 23 Jo sebel A kel F ares A pátria das águas. Tiago de Mello (2002) ratifica o condicionamento humano às águas, porém denuncia a ação predatória do homem em relação à natureza, apresenta, através do poético, dados da devastação, da história amazônica, de entes protetores. O poeta enumera as fontes de onde vêm a matéria dessa pátria das águas: Da altura extrema da cordilheira, onde as neves são eternas, a água se desprende e traça um risco trêmulo, na pele antiga da pedra: o Amazonas acaba de nascer. A cada instante ele nasce. Descende devagar, sinuosa luz, para crescer no chão. Varando verdes, inventa o seu caminho e se acrescenta. Águas subterrâneas afloram para abraçar-se com a água que desceu dos Andes. Do bojo das nuvens alvíssimas, tangidas pelo vento, desce a água celeste. Reunidas, elas avançam multiplicadas em infinitos caminhos, banhando a imensa planície cortada pela linha do equador. [...] Aqui está a maior reserva mundial de água doce, ramificada em milhares de caminhos de água, mágico labirinto que de si mesmo se recria incessante, atravessando milhões de quilômetros quadrados de território verde (p.15). Na mistura das águas de diferentes origens, Mello destaca o tema da chuva, uma vez que o teto amazônico é um dos lugares onde mais chove no mundo. O índice pluviométrico anual é de 3.000mm. Os homens respeitam as águas celestes, as forças dos temporais derrubam árvores, as arrasta para correnteza, e põem em perigo as embarcações. O tempo de chuva na região é o de sempre: em alguns momentos chove mais incisivamente, em outros estia, e as cores pluviais variam entre nuances pretas, brancas, lilases, arroxeadas. Ela chega ninguém sabe é quando. Chega no meio da noite, o corpo se encolhe na rede com a friagem dela o sono se embala na cantiga que ela inventa com as palmas das inajazeiras. É quando a gente vai atravessando o rio, a escuridão rasgada de relâmpago de uma margem à outra, iluminando a face enfurecida das águas [...]. A chuva roxa é terrível, porque – na claridão do pleno meio-dia ou na luz suave do começo da manhãzinha – todas as nuvens alvíssimas que passeiam vagarosas e solenes pelo campo da luz são de repente atraídas por um grande e rosado funil, que se abre bem na cabeceira do rio. Todas (eu estou dizendo todas) as nuvens que, luminosas demais, cobrem o silêncio da floresta e vão avançando, de começo vagarosas, depois céleres, se vão desmanchando pelo caminho ao encontro de um misterioso chamado. Em brevíssimos instantes, a extensa e delicada nuvem lilás começa a estender-se, esgarçada e suave: e dela começa a cair uma água fininha, mas que dói como lâminas afiadas, quando bate no teu rosto, te fustiga as pálpebras e atravessa, como espinhos, a tua roupa. Por sorte, ela é dessas que não demoram, é chuva de verão (p.48/49). A poética das águas de Mello, como as demais, indica que o homem segue as ordens do rio. Os ciclos econômicos são definidos pelas enchentes e pelas vazantes. O da vazante é de fartura das plantações, das colheitas, das pescarias, e o tempo da enchente, ao contrário, das calamidades e das misérias: o peixe se esconde, as plantações são destruídas. E acrescenta: o gado tem que ser levado para as alturas da terra firme ou então é reunido às pressas na maromba, exíguo curral erguido sobre os esteios acima das águas, as sucurijus enormes espreitando; o soalho das casas fica submerso, as cobras se aproximam no faro de animais domésticos e de crianças também. O homem fica a mercê do rio. Mas não desanima: espera pela vazante e alteia o soalho, e aproveita depois a terra enriquecida pela enchente (p.27). 24 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS A ficção atinge a dimensão mítica. As fábulas de Eneida [de Moraes] e de Raimundo Morais e de Rita Abdon constroem cosmogonias do Marajó e da pororoca, além de traduzirem a condição inescapável das águas. Em Soure11, conta-se a história do Toco, que incide na questão da destruição, da catástrofe nas águas marajoaras. Ele é um habitante do Paracauari, rio que passa enfrente a cidade de Soure. Dizem que o Toco veio do Maranhão, encantou-se pela beleza da ilha e, por inveja, impôs a morte por afogamento de seus habitantes. Um jogo de espelhos conduz à morte, explica a origem. Na literatura, há um repertório considerável de personagens em que a relação especular ocasiona a morte. Dorian Gray não resistiu ao constatar a perda da sua beleza. Narciso, na versão mais conhecida, ao contrário, encontra a morte ao apaixonar-se por si mesmo. No caso do Toco, a comparação não acontece com um retrato, nem com sua própria imagem, ele encanta-se pela a beleza do outro. Espelhar-se nas águas e não se ver tão belo quanto o outro, provoca inveja. E o Marajó é castigado. Beleza e morte, uma dupla contraditória. Registro uma versão contada por Rita Abdon12, que constatou o mítico na própria pele, com a morte de um familiar. A história do toco é uma lenda muito espantosa, porque a gente já teve oportunidade de ver, e pra gente que acredita, e tem muitos que não acreditam, mas passam a acreditar, como eu que não acreditava, mas tive a oportunidade já de vê. Numa viagem, que vinha de Belém para Soure, vinha pelo Camará, quando todo mundo se espantou do toco. Então, toco é um pau, um pedaço de pau que ele vem em pé dentro d’água, sempre ele anda contra a maré. Ele sempre aparece nas águas grandes, em março, é mais freqüente vê ele, mas, de vez em quando, aparece nas outras águas grande, porque as águas maiores, que nos temos, são as águas de março. Então, contam os antigos, que toda vez que o toco passa, sempre morre uma pessoa. Ele caminha em direção da parte da ali, do Garrote até ali, no fim das fazendas. Garrote é pra lá, pra lá, no início. Então, ele caminha aqui, ele entra no rio Paracauari e vai embora. Diz que ele visita todas estas fazendas, aí ele fica pra lá. Depois, ele retorna, às vezes, passa dois meses, ou um mês, ele retorna. Quando ele retorna, torna desaparecer outra pessoa. Aí, o pessoal se esquece do toco, quando é depois, ele torna a aparecer, assim vai. [...] Perdi um irmão com 17 anos, e ele ia até servir, já ia pro alistamento militar, quando a minha mãe, muito preocupada, disse que não ia deixar ele ir, porque todo ano mês de julho, quando esse toco passava morria uma pessoa. Ele ia embora dia dois de julho. Quando foi dia primeiro, meus irmãos chegaram assustados, dizendo que tinham visto o toco lá na ponte. A mamãe disse:’agora vocês vão parar de tomar banho’. Aí, quando foi no outro dia, duas horas da tarde, meu irmão foi tirar umas varas, já pra banda do Mata Fome, que eles chamam aqui em Soures. Ele não conseguiu atravessar um igarapé que tinha, e ele morreu afogado. A minha mãe disse: “É, agora, eu passei a acreditar na lenda do toco, porque ele morreu”. Quando foi no final das férias, ele tornou a passar. Aí, morreu dois rapazes afogados lá na ponte, no mesmo ano, nesse ano. É a cidade mais conhecida do Marajó, devido a infra-estrutura turística e as fazendas de gado, o município está situado na região do Arari. 12 Rita Maria dos Santos Abdon é responsável pela cantina do campus de Soure, no noturno e de dia vende lanche nas repartições públicas da cidade, tem 43 anos. 11 Asas da Palavra 25 Jo sebel A kel F ares Meu irmão tem 24 anos de morto, e nesse ano que o toco passou, tanto ele morreu quando ele passou, quanto quando ele voltou. E não custou muito a passar, porque, às vezes, ele fica por estas fazendas, passa uns três meses, aí torna a passar. Quando ele passa aqui pra fazenda, quando ele desce ali o Paracauari, ele não retorna logo não, às vezes, passa dois meses, às vezes não, ele retorna logo. E ele só anda contra a maré. É um toco de madeira, a gente tem a impressão que é um pau cortado. Um pedaço de pau, de um metro, cortado, só que é um toco assim, bem volumoso ele, bem grosso. Agora, ele não vai caído na água, ele vai todo tempo em pé, engraçado, interessante. Eu já tive oportunidade de ver, eu nunca tinha visto, agora, quando vinha do Camará, que eu tive. Todo mundo grita: ‘olha o toco, olha o toco’. Aquele medo assim que dá na gente de olhar, né? Mas, a curiosidade é maior. Olhe, eu não sei como chegou aqui no Marajó, mas o pessoal fala que isso é um encanto, assim como tem a cobra grande também, dizem que é um encanto, mas eu nunca tive oportunidade de conversar com gente mais antigo que eu, pra mim saber. Nunca fui a fundo nisso, mas todas essas coisas que aparecem assim, diz que são encantados, né? Os ruídos dos jacumãs13. A cosmologia do Marajó conta do amor não correspondido de Nonhon (a ilha do Marajó) por Surnizuno (o rio Amazonas). Uma luta passional entre personagens míticas origina o Marajó e as “madrugadas sangrentas”. Lembro de Tungurana, pai de Surnizuno, exigindo de Nunó – a lua - que derramava somente leite na boca de Paqueima – a madrugada – que fizesse também auroras sangrentas. Surnizuno, filho de Tungurana, depois se chamou Solimões, Maranhão e finalmente Amazonas. Isto tudo acontecia naquele tempo, quando deuses, rios, florestas e pássaros falavam, sentiam e agiam, eram gente. Surnizuno despertou o amor de Nonhon, a virgem que guardava em si os tesoiros da terra e ela, um dia, cheia de amor, beijou-o na boca. O beijo de Nonhon não interessava Surnizuno porque ele não a amava; a carícia enfureceu-o, a ousadia irritou-o e assim, de sua tremenda cólera, surgiu a pororoca. Como castigo pela audácia que tivera, Capú transformou o corpo de Nonhon numa ilha: a do Marajó. (Não se beija impunemente o Amazonas). Sobre o corpo de Nonhon feito ilha, Paqueima teve ordem de realizar os desejos de Tunguragua: enfeitá-la com madrugadas sangrentas (Eneida, 1954, p.16/17). A pororoca14 não se acaba. Criada pela fúria do Amazonas, a pororoca associa-se às dimensões catastróficas do rio e as origens ao Marajó. A narrativa de Moraes (1937) nomeia as mais diferentes fenômenos relacionados à água e pesquisa as influências da lua nas marés. Antigamente a água era serena, quieta, mansa. As canoas à vela e a remo navegavam sem o menor perigo. A Mãe d’Água morava com a filha mais velha, a Baía do Marajó, casada com o boto Tucuxy. Uma noite, na ocasião da janta, ouviram-se gritos no terreiro; os cães latiram, as galinhas cococorocaram. O que é, o que não é? Tinham furtado Jacy, a canoa de estimação da família. Depois de haverem remexido céus e terra sem encontrar a veleira, a Mãe d’Água convocou todos os filhos: Repiquete15, Correnteza, Estoque16, Rebojo17, Remanso18, Vazante, Enchente, Maré19 Morta, Maré Viva. Tratava-se de meterem a pique a embarcação desaparecida. Lavrada a sentença, passaram-se anos sem que a Jacy fosse encontrada. Ninguém a via. Por certo se Referência a crônica Ouçam os ruídos dos jacumãs, de Eneida (1954). Jacumã: remo indígena em forma de pá (Assis, 1992:98). Governo de uma canoa com um remo de uma mão numa das extremidades. Ir no jacumã: pilotar, dirigir uma canoa com um remo de mão. Etim. tupi (Miranda, 1968: 44). 14 Pororoca: s. f. Regionalismo: Brasil. 1. Rubrica: geografia. Grande onda de alguns metros de altura que ocorre, em certas épocas, em rios muito volumosos, especialmente o Amazonas, perto da sua foz, e que destrói tudo que encontra à sua passagem, causando grande estrondo e formando atrás de si ondas menores; mupororoca. banzeiro.(HOUAISS Eletrônico). Hoje, o fenômeno é esperado, em alguns municípios paraenses, não só pelos habitantes do lugar, mas por surfistas do mundo inteiro. 13 26 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS achava escondida em lugar, onde não chegavam aquelas forças dinâmicas da Natureza. Chamaram-se então todas as figuras domésticas, além das já convocadas para um grande conselho. Reunida a tribo, na qual surgiram parentes longínquos, como Lagos, Lagoas, Igapós20, Igarapés21 Igarapé: caminho de canoa, segundo a tradução precisa do tupi para o português. Riacho amazônico, ribeiro, curso em miniatura que tem, como os grandes, todas as características fluviais. Principia sendo central, oriundo de hinterlândia, por mais insignificante que seja o seu curso; tem cabeceira, declive, voltas, afluentes gitos [pequenos] e foz. Não entra e sai no mesmo rio como os paranás. [...] Assim como na dos lagos, nenhuma canoa lhe pernoita na boca, onde se encontram batendo, fungando, mergulhando, nadando, jacarés, botos, sucurijus, puraqués, piraíbas que aí devoram os peixes miúdos erradios. De noite, a foz dum igarapé é um verdadeiro inferno, um lugar pavoroso das nossas lendas, tais os ruídos dantescos que se ouvem. (MORAES, 1931, p. 28). , “Sacados”22, Rios, Barras23, Baías, Sangradouros24, Enseadas, Angras25, Radas26, Golfos27, Fozes, Canais, Estreitos, Panamás, Córregos, Poções28, Peraus29, foi discutido o caso, ficando provado ser necessário ser necessário criar um elemento mais poderoso além dos que já existiam e que fosse, algumas vezes no ano, procurar a canoa furtada. O marido da Baía do Marajó lembrou-se de fazerem a pororoca, umas três ou quatro vagas fortes, que entrassem por tudo quanto era buraco do litoral, que houvesse nas redondezas e fossem quebrando, derrubando, escangalhando, naufragando, espatifando, tudo encontrado ao largo e pelas beiradas, até destruir Jacy e o ladrão que a levara. Ficou então incumbida a caçula da Mãe d’Água, a Maré de Lua, rapariga travessa, namoradeira, dançadeira, brigadeira. E de repente, nas syzygias de equinócio, do novi e plenilúnios, meia dúzia de vagalhões tremendos, empurrados pela formosa cunhatã, surgiram em certos lugares, invadindo rios, repartindo ilhas, derrubando barrancos, afundando barcos, ameaçando gaiolas e afugentando paquetes. Era a pororoca. Mas, sempre que a Maré de Lua vai visitar a família, na época das quadraturas, quando ela, a caçula, está de folga, a conversa é desanimadora. Ninguém sabe da Jacy. “Pois, então, continue arrasando tudo”, diz a fungar o danado do boto Tucuxy. É por isso que a pororoca não se acaba. (p.179/181). A obra de Dalcídio Jurandir30, escritor marajoara, é uma espécie de cartografia da cultura marajoara, daí porque é um dos que melhor referencia as águas e as terras amazônicas. Uma infinidade de imagens traz diferentes semânticas, que constroem cenários de Repiquete: sinal de enchente, acima do estuário amazônico, onde não predomina mais a força da maré atlântica. Primeiras manifestações anuais das cheias. Enxurrada. Lençóis turvos, de linfa. Água nova que invade a água transparente, quieta, manchando de placas barrentas a toalha liquida. (MORAES, 1931, p.116). 16 Estoque d’água: ponta de corrente que vara o caudal em sentido obliquo. É determinado pelo remanso, que, depois de refluir à massa fluvial, volta a fazer parte dela. Penetra então bruscamente na toalha, gerando uma confusão de diretrizes. Quando o prático não é bastante hábil para evitar o estoque d’água, o gaiola [tipo de embarcação amazônica] desgoverna com o choque recebido à proa e muitas vezes enfia-se na margem contraria, vara uma praia ou sobe num cabeço de pedra. É um fenômeno hidrográfico dos rios velozes. (MORAES, 1931, p.173/4). 17 Rebojo: Funil d’água que a corrente abre sobre cabeços de pedra, troncos de árvore fincados no álveo, ou nos encontros de caudais na confluência dos rios. (MORAES, 1931, p. 114). 18 Remanso: água dos rios que corre, na beirada, em sentido contrário do caudal em virtude de pontas de terra, fins de praias, enseadas, onde o ângulo morto provoca uma espécie de refluxo fluvial. (MORAES, 1931, p. 116). 19 Maré: elevação e abaixamento periódico das águas do mar. Mas até onde chega esse fenômeno, pelo Amazonas adentro? É isso que o autor deseja informar aqui, visto como sobre o assunto reina o maior desacordo, a maior confusão, mesmo entre escritores notáveis e até entre sábios. Uns marcam Santarém, como seu ponto terminal; outros vão até Óbidos. A verdade, observada por quem escreve estas linhas, é que a maré sobe até Parintins, no mês de outubro, quando o Amazonas, quase parado, perde toda a sua força. Ela não tem fluxo, aí quando enche, isto é, não corre para cima – tufa apenas. De bordo, amarrado o navio ao porto, vê-se no barranco uma estreita faixa molhada de dois dedos, quando a maré vazou. De Parintins para baixo observa-se a maré no caldeirão, que é um furo transversal ligando o Paraná do Bom Jardim ao Amazonas, fluindo e refluindo, queremos dizer, correndo p’ra dentro e p’ra fora sob a ação da lua. Ora, o Caldeirão é um furo que fica à margem esquerda do Amazonas, 42 milhas a jusante de Parintins e 56 a montante de Óbidos. Se a maré se faz sentir nele, embora no tempo seco, no mês de outubro, fluindo e refluindo, é porque ela remonta muito acima. Nestas condições, que fique como padrão: Parintins é o derradeiro ponto em que se observa a maré Amazonas adentro, ou sejam, 618 milhas acima de Belém, navegando pelos paranás. (MORAES, 1931, p. 59). 20 Igapó: floresta alagada. Charco onde vegeta a mata aquática. Lagos de água escura e transparente, recobertos de selva. Em geral não se vê um raio de sol no igapó. Tudo por cima é galho e folhagem. A abobada é verde. Os grandes troncos de árvores mergulham na linfa cristalina, porém negra. Os peixes do igapó são especiais. É o jejú, o tucunaré, o puraqué, a piranha, o tamuatá, o acari, o tambaqui. Dos quelônios, o que mais gosta do igapó é o matamatá. (MORAES, 1931, p. 27/8). 21 Igarapé: caminho de canoa, segundo a tradução precisa do tupi para o português. Riacho amazônico, ribeiro, curso em miniatura que tem, como os grandes, todas as características fluviais. Principia sendo central, oriundo de hinterlândia, por mais insignificante que seja o seu curso; tem cabeceira, declive, voltas, afluentes gitos [pequenos] e foz. Não entra e sai no mesmo rio como os paranás. [...] Assim como na dos lagos, nenhuma canoa lhe pernoita na boca, onde se encontram batendo, fungando, mergulhando, nadando, jacarés, botos, sucurijus, puraqués, piraíbas que aí devoram os peixes miúdos erradios. De noite, a foz 15 Asas da Palavra 27 Jo sebel A kel F ares dum igarapé é um verdadeiro inferno, um lugar pavoroso das nossas lendas, tais os ruídos dantescos que se ouvem. (MORAES, 1931, p. 28). 22 Sacado: corte que a corrente faz para abreviar o curso do rio. Seccionamento de uma península fluvial pelo istmo. O caudal, depois de passar num ponto, dá uma, duas, três voltas e vem passar, em sentido contrário, renteando a mesma margem. Quando sucede fazer-se enseada nos dois lados do istmo, a água corrói, fura a terra, abandona o caminho velho, que fica morto como um lago, e abre passagem nova. Em geral os rios de mais sacados são os de água preta, de menor velocidade. O Pauhiny, afluente do Purus, parece conter o maior número, segundo observação direta do autor. (MORAES, 1931, p. 123). 23 Barra: s.f. 1 GEO MAR entrada de um porto, entre duas porções avançadas de terra firme 2 p.ext. GEO entrada de baía 3. GEO B banco ou coroa de areia ou de outros sedimentos que os rios trazem e depositam nas suas bocas 4 GEO MAR B local em que um rio deságua no mar ou em lago; desembocadura, foz (HOUAISS Eletrônico). 24 Sangradouro: s.m. 2 canal, sulco pelo qual se desvia parte da água de um rio, de uma fonte ou na barragem de um açude ou de uma represa, pelo qual escoa a água excessivamente acumulada; sangrador 4 B vala ou conduto para dar saída a líquidos, dejetos etc.; sarjeta, escoadouro, bueiro 6 PI boqueirão, garganta entre serras, que se inunda por ocasião das enchentes 7 B S. canal natural que liga dois rios, dois lagos, ou um rio a um lago £ sin/var sangradoiro, sangrador (subst.); ver tb. sinonímia de rego (HOUAISS Eletrônico). 25 Angra: s.f. pequena baía ou enseada, ger. com ampla abertura e junto a costas elevadas £ gram dim.: angreta £ etim lat.tar. ancrae,árum ou angrae,árum ‘intervalo ou espaço entre duas árvores’, com especialização de sentido; ver sinonímia de baía (HOUAISS Eletrônico). 26 Rada: s.f. enseada ou porto, abrigado por terras ger. elevadas £ etim fr. rade (1474) ‘parte do mar que penetra na terra e proporciona aos barcos ancoradouros abrigados de vento e ondas’; ‘bacia natural ou artificial de vastas dimensões com uma saída para o mar, onde os navios ancoram’ £ sin/var ver sinonímia de baía e porto (HOUAISS Eletrônico). 27 Golfo: baía, despenhadeiro. 28 Poção: Lugar nas Ilhas de Dentro (Furos de Breves) onde desembocam vários canais. Claros redondos na labirinto fluvial. Poção dos Macacos. Poção da Olaria. (MORAES, 1931, p. 98). 29 Perau:1 RS declive que dá para um rio ou arroio 2 B lugar íngreme, escarpado; precipício £ ETIM tupi pe’rau ‘parte mais funda do mar ou de rio.Sinonímia de despenhadeiro, ravina e vertente (HOUAISS eletrônico) salvação ou de perdição do mundo da seca, das enchentes e dos atolados - que não serão estudados aqui, devido a natureza deste texto. O autor também registra outra explicação mítica para o fenômeno da pororoca: É três pretinhos que vêm pulando na espuma da maresia, brincando, fazendo pirueta tanto que, quando a ribanceira tem pedra, eles atravessam mergulhando. Mudam de beira e vão aparecer mais adiante na cambalhota. Diz-que os pretinhos na volta vêm por terra. Por isto é que a pororoca não volta. {...}Um movimento de assombro e de pânico assaltou o menino na montaria sem direção. A onda mergulhou com os três pretinhos invisíveis, para estourar adiante, subindo, com o ímpeto e a velocidade de uma cobra boiúna em fuga (1994, p.340/1) A recente publicação de José Arthur Bogéa (2003), Bandolim do Diabo (Dalcídio Jurandir: fragmentos), seleciona por tema metáforas recorrentes na obra de Jurandir e as apresenta através de excertos dos dez livros do Ciclo do Extremo – Norte e de um do Extremo Sul. Em Haver d’ água, o pesquisador recorta: “Antônio se agitando no chão principiou a falar alto, repetindo pedaços de estória, nomes de bichos, rios, tempo de marés, gritando ei vem, a pororoca, ei vem o haver d’água” (Belém do Grão Pará, 1960, p.252). Paulo Nunes (2002), em Aquanarrativas: uma leitura de Chove nos campos de Cachoeira de Dalcídio Jurandir, estuda as imagens das águas recorrentes na obra do escritor, Nas águas grandiosas, rios e lagos convivem com a mesma força. Assim, o narrador não dá A obra do escritor compõe-se de dez livros do Ciclo do Extremo – Norte - Chove nos campos de Cachoeira (Rio de Janeiro: Vecchi,1941), Marajó (Rio de Janeiro: José Olympio, 1947), Três casas e um rio (São Paulo: Martins, 1958), Belém do Grão Pará (São Paulo: Martins, 1960), Passagem dos Inocentes (São Paulo: Martins, 1963), Primeira manhã (São Paulo: Martins, 1968), Ponte do Galo (São Paulo: Martins, 1971), Chão dos Lobos (Rio de Janeiro: Record, 1976), Os Habitantes (Rio de Janeiro: Arte Nova, 1976), Ribanceira (Rio de Janeiro: Record, 1978) - e um do Extremo Sul - Linha do Parque (Rio de Janeiro: Vitória, 1959). 30 28 Asas da Palavra IMAGENS POÉTICAS DE ÁGUAS AMAZÔNICAS importância maior a este ou aquele fenômeno. Temos então o Arari, o Maguari, a Baía do Marajó, todos reunidos no mesmo manto poderoso das águas. Se compararmos com o culto marial católico, todos os lagos e rios são recorrências de uma mesma água: Mãe de todos, a ‘Santa Maria da aquonarrativa31’. Não interessa se é Perpétuo Socorro, Nazaré, Lourdes ou Fátima: todas são várias e una mãe de Deus. (Paulo Nunes, 1999 – via e-mail) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMINHA, Pero Vaz. A carta. Lisboa: Comissão Nacional Para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000. BOGÉA, José Arthur. Bandolim do Diabo. Belém: Pakatatu, 2003. CARNEIRO, Edison. A conquista da Amazônia. Coleção Mauá. Ministério da Viação e Obras Públicas, 1956. CUNHA, Euclides. À margem da história. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ENEIDA [de Morais] Ouçam os ruídos dos Jacumãs. in Cão da Madrugada. São Paulo: José Olympio, 1954. GALLO, Giovanni. Marajó, a ditadura da água. Belém: Secult, 1980. JURANDIR, Dalcídio. Três Casas e Um Rio. 3ªed. Belém: Cejup, 1994. _____. Chove nos campos de Cachoeira. Edição crítica. Rosa Assis. Belém: Unama, 1998. / 3ª. Ed. Cejup, 1991 MORAIS, Raimundo. Anfitreatro Amazônico. São Paulo: Melhoramentos, [193-?] . _____.País das Pedras, Verdes. 2ª. ed . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1931. ____. Aluvião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. NUNES, Paulo. Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de Cachoeira de Dalcídio Jurandir. In FARES, Josse; NUNES, Paulo. Pedras de Encantaria. Belém: Unama, 2001. MELO, Tiago de. Amazonas, pátria das águas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. SOUZA, Márcio. Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero, 1994. Expressão cunhada pelo escritor Paulo Nunes (2001), como referência à obra do escritor Dalcídio Jurandir, no estudo Aquonarrativa: uma leitura de Chove nos campos de Cachoeira. 31 Asas da Palavra 29 AMAZÔNIA, VERBO TRANSITIVO E AQUONARRATIVAS Paulo Nunes 1 UNAMA - Universidade da Amazônia Enquanto muda a roupa, Belarmina olha a chuva pela janela: pampeiro daqueles que lhe põe na alma umas alegrias de pássaro. Doce a chuva em suas lágrimas, seu límpido pranto barulhento; um choro assim em bagas, de todo o mundo, lavando e alagando o coração da pessoa. (Ildefonso Guimarães, In: “Linha do Horizonte”). Apenas a título de provocação, auto-provocação, reporto-me, para iniciar esta minha fala, a Walter Benjamin, que, ao estudar a crise do romance a partir de Berlin Alexanderplatz, de Döblin, afirma que “no sentido da poesia épica, a existência é um mar. Não há nada mais épico que o mar” (Benjamin:1994: 54). Não pretendo, menos por leviandade e mais por falta de tempo, aprofundar essa questão da crise do romance. Afinal não é o meu objetivo aqui neste encontro. Retomemos então o teórico alemão, para, nos vieses da metáfora, afirmar que “podemos relacionar-nos com o mar de diferentes formas (...) deitar na praia, ouvir as ondas, ou colher os moluscos arremessados na areia. É o que faz o poeta épico. Mas podemos também percorrer o mar. Com muitos objetivos, e sem objetivo nenhum” (idem-ibidem). Mas por que insisto nestas afirmativas de Benjamin, se não vim a este seminário, como já disse, para falar de poesia épica ou de crise do romance? Talvez eu o faça pela beleza da metáfora benjaminiana. O mar é massa líquida encharcada de sal, elemento químico essencial para nossa vida. Mas é preciso enfatizar que minha fala deve deter-se em “Amazônia, verbo transitivo, aquonarrativas”. Ademais, se nos pusermos a pensar que o mar não é predominante nessas nossas paragens assoladas pelas águas doces. Recorro a uma licença poética engendrada pelo navegador espanhol Vicente Yañes Pizón, que quando aqui pisou, em 1500, denominou o Amazonas de “mar-doce”. Acerca ainda do título de minha fala devo justificar o termo “transitivo” nele presente. Explico-me, à margem de toda frustração que pode acometer os gramáticos de plantão. A transitividade, que é, grosso modo, necessidade de complemento, está tão somente na nossa feição de leitores. Os leitores somos, portanto, o complementaridade de todo esse texto-região que leremos, a partir de então, como um vasto e complexo livro. 1 Professor da Universidade da Amazônia, Belém-Pa; doutorando em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-MG. 30 Asas da Palavra AMAZÔNIA , VERBO TRANSITIVO E AQUONARRATIVAS * Achuva derrubou as pontes.A chuva transbordou os rios. A chuva molhou os transeuntes(...) A chuva enfureceu as marés. A chuva e seu cheiro de terra. A chuva com sua cabeleira.(...) A chuva enxugou a sede. A chuva anoiteceu de tarde. A chuva e seu brilho prateado(...) A chuva caiu. A chuva derramou-se. A chuva murmurou meu nome... Arnaldo Antunes Sabem vocês que tenho, nos últimos tempos, me ocupado mais detidamente da obra de Dalcídio Jurandir. Foi dela que eu gapuiei a expressão “aquonarrativa” (aquOnarrativa e não aquAnarrativa, como pediria a gramática; a sugestão de adaptação lexical, licença poética, adveio de Günter Pressler, a quem eu publicamente registro o feito, e agradeço). Bem, mas falávamos de aquonarrativa para caracterizar a fartura líquida que salpica, ops!, espirra das páginas da literatura do “Extremo Norte”. Esta idéia me veio quando confrontei dois mestres da segunda geração do Modernismo brasileiro: Graciliano Ramos e Dalcídio Jurandir. O primeiro, escritor da aridez, de estilo lacônico e de “palmo medido”, é autor da sedenarrativa, ilustrada exemplarmente em Vidas Secas, de 1938. Dalcídio, igualmente genial, coloca-se do lado oposto ao romancista alagoano. Ele é autor da aquonarrativa, escrita, léxico e semântica que realçam a fartura aquática que faz da Amazônia uma “pátria de águas”. O exemplo de que lancei mão, a fim de confirmar minha hipótese, naquele 1997, sabem vocês, foi o primeiro livro da saga do “Extremo Norte”, Chove nos campos de Cachoeira. Alguns textos meus já foram publicados a respeito desse assunto. Passaram-se os anos e o que pude perceber é que alguns autores que se manifestam através da expressão amazônica, influenciados talvez pelas suas liquidoamplovivências, são aquáticos por natureza. Não quero com isso instituir, como direi, um “determinismo mesológico amazônico”, ressuscitando fantasmas que não cabem mais na literatura dos dias atuais. Desejo apenas mostrar que tanto mais é universal o autor que, pintando sua aldeia, fala um idioma transnacional. Não foi André Gide quem disse que “uma literatura será tanto mais universal quanto mais nacional for”? Pois bem, adapto o “nacional” para o nosso contexto. Entretanto faço questão de descartar a regionalice que reina pelos quatro cantos da região. Chamo de regionalice o uso indiscriminado, vulgarizado e vulgarizante, do regional, que insiste em rimar palavras-chave do repertório local. Isto feito, parto para uma rápida leitura de três autores – apenas três devido à insuficiência de tempo/espaço –, que apresentam esta tendência, que eu denomino de aquonarrativista. O primeiro escritor de que me preocupo nasceu em Alenquer, Baixo Amazonas paraense. Trata-se de Benedicto Monteiro. Autor do fabuloso romance contextual sobre o “verdevagomundo”, Benedicto, através de seu romance Terceira Margem, faz-se adequado para exemplificar minha argumentação. Com a licença do professor José Guilherme Castro, doutor no assunto, reporto-me ao desfecho do romance supracitado, em que Miguel dos Santos Prazeres, o cabra da peste, após adentrar a vastidão de rios e florestas se vê diante de uma “paisagem marginal”: Asas da Palavra 31 Paulo Nunes Eu sabia que o lago era um rio e que muito longe, por mais longe que estivesse, estavam as duas margens. Já tinha viajado muitos rios e andado muitas noites, sempre essas duas margens. De longe paresque elas me vigiavam (...) Depois que vi que a água, a noite e o céu estavam por todos os lados, compreendi que as duas margens, nessas horas, deviam de estar pra muito além dos horizontes... Todos os verdes e todas as cores se resumiram naquela praia. E não tinha princípio nem fim: era uma distância. Era paresque também uma margem... mas uma outra margem (Monteiro: 1991:188-9). Perceba-se o quanto aqui o rio toma uma dimensão portentosa. Miguel dos Santos Prazeres, indomável, arisco, após fugir de todos, aqui se incluindo os órgãos de repressão da ditadura de 64, chega numa encruzilhada, “uma distância”, para utilizar as palavras do personagem-narrador. Ele, embora possa ser classificado como um herói das selvas amazônicas, se vê atônito, impotente, diante da vastidão do meio, inclusive devido à indefinição da massa d’água, que, personificada, surge diante de si: “o lago era um rio”, “as duas margens [do rio] paresque me vigiavam”. O excerto é significativo para enfatizar que nas paragens amazônicas – o verdevagomundo benedictiano – o humano dilui-se diante do poder da natureza. No entanto, talvez o mais intrigante no excerto selecionado seja a força metafórica do discurso voltado para a problemática da alteridade. Explico. Valendo-se do rio como metáfora, vislumbro um devaneio. Diante do mundo intolerante em que se vive e levando-se em conta o excerto do romance, não há como aceitar – nós que cremos na ética, na tolerância e no respeito –, que um rio tenha apenas duas margens. Na Amazônia, terra de confluências de raças e culturas, defendemos que o rio, redimensionando a metáfora, ganhe uma “terceira margem”. E a “terceira margem”, estratégia devaneante, a entendemos como o espaço em que os contrários convivem, fazendo subsistir uma mistura flexível e democrática, onde os opostos manifestam-se, escutam-se, mas também aceitam o outro, que é diverso de si. Estaríamos, assim, diante do limiar, daquilo que Silviano Santiago chama de o entrelugar do discurso. Essa “outra margem” poderia configurar também uma busca incessante de algo lacunar. E é nesta última acepção que enfatizo – transitividade à vista – a Terceira Margem, cunhada por Benedicto Monteiro. Miguel dos Santos Prazeres, após atravessar igarapés, os rios Tapajós e Amazonas, “plantando gente”, esgueira-se pela floresta-labirinto, e chega à “terceira margem”. A partir daí, não se sabe, de fato, o que Miguel terá pela frente: ele descortinará outra paisagem? Experimentará uma outra fase em seu percurso de herói? Ou, quem sabe, se defrontará com a morte, a grande passagem? No trecho a que me refiro, observaremos ainda a recorrência de significantes que convergem à liquidez da paisagem: lago, rio, rios, água, praia, seleção lexical que é essencial no jogo verbal que se institui para dar vazão à aquonarratividade presente neste primoroso romance de um dos mais expressivos autores da literatura brasileira de expressão amazônica, que é Benedicto Wilfredo Monteiro. 32 Asas da Palavra AMAZÔNIA , VERBO TRANSITIVO E AQUONARRATIVAS * Outro escritor que transita pela aquonarratividade, autor que me foi apresentado por José Arthur Bogéa, é Ildefonso Guimarães. Ildefonso que, recentemente, foi trilhar “os caminhos do vento”. Ele, vale o registro, que foi lembrando por Afrânio Coutinho, em A Literatura no Brasil, como o autor de contos que “retratam a vida urbana de Belém e a do interior do Pará, penetrando-lhe o sentido humano e social”. Meses antes de sua viagem derradeira, Ildefonso disse-me: “Paulo, se você quiser debruçar-se sobre um conto que retrata a Amazônia, a Amazônia lá da minha Óbidos, você deve ler ‘O rio’. É um texto que dá notícias do que ocorre com a nossa gente”. Segui as orientações do mestre da ficção e mergulhei em “O rio”, narrativa da seleta Contos recontados, publicada em Belém na década de 90. Adentrar “O rio”, sem dúvida, configurou um mergulho intenso, como se deseja de um texto densamente encharcado pela liquidez amazônica. O referido conto é, no dizer do narrador, coisa de “encante, de malassombro”. Penso que “O rio” poderia ser incluído numa antologia de contos de mistério e assombrações da literatura universal. De regional restam o cenário e algum repertório selecionado pelo contista, repertório que percorre as falas do narrador e o discurso direto das personagens. Salvo engano, nada naquele ambiente soturno do conto teria um tom de mau agouro não fosse presença marcante do rio, que se manifesta imperativamente através das grandes cheias amazônicas. As personagens que habitam aquela tapera esquecida no meio da imensidão escura – Desidério e o “morto” – são vítimas da vilania das águas grandes: “O oco do mundo lá fora escuro, escuro: água e noite se misturando. Aquela cheia num despropósito como nunca teve [Desidério] nos seus dezesseis anos de vivente...!” (Guimarães: s/d, p70). A trama muito bem urdida coloca de um lado Desidério; de outro, o rio, antagonista fatal. Descrições, trama, tensão, artifícios que induzem gradativamente o leitor para um ápice, quase à moda de Wladmir Propp, em seu Morfologia do conto popular. Digo quase porque o desfecho tende a surpreender o leitor. Aquele que ler, verá. Toda a liquidez que atravessa o referido conto me faz lembrar um comentário sobre Ildefonso Guimarães feito pelo crítico literário Jorge Medauer. Jorge, sobre a ficção do autor de Senda Bruta, afirma: “sua narrativa tem o vigor da verdade e a fluência de certos rios que correm como se estivessem parados”. O rio em sua monotonia aterradora. Percebe-se assim que o crítico destaca a verossimilhança da ficção de Ildefonso. E o verossímil, sabemos, nós que aqui habitamos, intui sobre a importância das águas amazônicas. E por isso talvez se possa falar numa “narrativa-rio” – referindo-se ao fabulário ficcional de Ildefonso – narrativa que flui no fluxo/refluxo das marés. Isso, salvo engano, ratifica o valor de uma obra que, expressando-se através do cenário regional, tende, grande parte das vezes, ao psicológico, pois está atravessada de flash-backs e monólogos. Lançando mão, mais uma vez, da reflexão que fiz acerca da obra de Dalcídio Jurandir, pode-se dizer que diante dos textos de Ildefonso Guimarães identificamos também a chamada aquonarrativa quando necessário, o emprego de períodos largos, força narrativa advinda dos guardados da memória, palavra que se vê, grande parte das vezes – Asas da Palavra 33 Paulo Nunes sobretudo nos textos em que o cenário é interiorano –, molhada, encharcada, líquida. É ler para crer. * Finalmente, reporto-me a esse que é o maior romancista modernista/moderno da Amazônia, Dalcídio Jurandir Ramos Pereira. Sua vasta e consistente obra amazônica, composta de dez volumes, dá-nos conta de um disciplinado intelectual que, embora sendo reconhecido pela crítica literária enquanto estava vivo, se vê hoje à margem das listas dos grandes romancistas nacionais. Gauchismos à parte, Dalcídio, nos últimos 20 e poucos anos, transformou-se num escritor marginal. E neste significante estão contidas todas as possibilidades polissêmicas possíveis que a palavra encerra. Ademais quando leio a ficção do “Extremo Norte”, recordo-me do conceito de roman-fleuve, o romance-rio, de que nos fala Massuad Moisés. Explica-nos o professor paulista acerca do “roman-fleuve”, em seu Dicionário de termos literários: “Romance ou novela que flui como um rio. Designa obras ficcionais que se organizam em ciclo contínuos, à semelhança de um estuário fluvial, caracterizados pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem (...) Cultivaram-no Tolstoi (Guerra e paz, 1862-1869), Thomas Mann (Buddenbrooks, 1901), Proust (Em Busca do Tempo Perdido, 1913-1927) ...” (Moisés: 1999: 460). Talvez nenhuma terminologia literária se adeque tão bem à saga de Alfredo nos nove romances que integram o “Ciclo do Extremo Norte” (exceção é feita a Marajó, que no dizer do mestre Vicente Salles, “é um livro solteiro” porque desloca Alfredo da trama, substituindo-o por Missunga). Conforme disse no início desta intervenção, a sistematização da aquonarrativa enquanto tessitura literária norteia minhas reflexões e constitui talvez a única contribuição inovadora efetiva que fiz à leitura da obra de Dalcídio Jurandir. A aquonarrativa, e agora temo tornar-me repetitivo, demanda de um sotaque literário que fez o autor de Belém do Grão Pará recodificar, literariamente, o modo de ser anfíbio do homem amazônico. Na Amazônia, todos sabemos, respiramos água. Estamos cercados de rios, igarapés, oceano. As estações dividem-se entre maior e menor índice pluviométrico. No inverno amazônico, a umidade relativa do ar chega, por vezes, a noventa por cento. Sobre a preponderância do elemento aquático na Amazônia, vale citar o mestre Eidorfe Moreira – no dizer de Lúcio Flávio Pinto, o “filósofo da nossa geografia” –, que na década de cinqüenta construiu um denso e significativo painel de estudos sobre a região amazônica: “Em nenhuma outra região o rio assume tanta importância fisiográfica e humana como na Amazônia, onde tudo parece viver e definir-se em função das águas: a terra, o homem, a história. Aqui, mais do que em qualquer outra parte, será acertado dizer que o rio condiciona e dirige a vida” (Moreira: 1989: 63). 34 Asas da Palavra AMAZÔNIA , VERBO TRANSITIVO E AQUONARRATIVAS O que hoje parece soar repetitivo aos nossos ouvidos, na época em que foi publicado, a despeito da timidez de seu autor, teve razoável receptividade, ademais se levarmos em conta o contexto no qual Eidorfe Moreira escreveu. A visão prospectiva do cientista social nos faz aceder com mais segurança ao ideário da supremacia do rio sobre a vida amazônica. E mais adiante segue o professor: “Como um poderoso ímã líquido, [o rio] submete à sua gravitação todos os aspectos importantes da vida regional (...) É o rio, com efeito que comanda e ritmiza a vida regional. É ele que com sua poderosa e contínua ação erosiva, modela e anima a fisiografia da região; que com suas enchentes e inundações periódicas fertiliza grande parte das terras e da floresta...” (idem-ibidem). Percebemos que a ficção de Dalcídio Jurandir está, de algum modo, moldada nas idéias de Eidorfe Moreira. Não quero com isso deixar transparecer que o escritor marajoara pauta sua ficção exclusivamente no trabalho ensaístico do professor paraibano que adotou o Pará como morada. Não há até hoje, a menos que o revele o acervo do escritor que está no Instituto Dalcídio Jurandir/Fundação Ruy Barbosa, indícios de que o autor de Belém do Grão Pará leu Eidorfe Moreira. De qualquer maneira, há um profícuo diálogo entre os estudos de um e a ficção do outro. * Pois bem, ao lermos Dalcídio Jurandir, fica-nos evidente o predomínio do elemento aquático sobre o terreal. Embora as estações marajoaras dividam-se entre a estiagem e as águas grandes, a seca é muito pouco referida pelo romancista. Vale inquirir: por que isso se dá? É investigação que demanda tempo e pede imediata ação investigativa dos dalcidianos de plantão. * Como eu dizia, na obra do “Extremo Norte” predomina o aquático, fascina-me na escrita dalcidiana o fato de se perceber o estilo encharcado, em que o narrador manipula, conforme suas necessidades, a construção de parágrafos longos, algumas vezes demarcados por uma pontuação que não obedece rigorosamente aos moldes da gramática normativa. Esse recurso de pontuação mais livre, parece-me, prevalece tanto na liberdade do narrador quanto na fala das personagens, quando estas monologam ou expressamse em discurso direto. Na arquitetura romanesca de Dalcídio Jurandir, (no Pará o nosso escritor estaria tornando-se “pop”?) chama-nos atenção, em especial, a pontuação. Ela, aparentemente precária, induz-nos a uma ritmada leitura que nos deixa à mercê da baixamar e da preamar, do fluxo/refluxo das marés amazônicas. A aquonarrativa, enquanto estilo literário, sustenta-se ainda pela poetização do discurso, associada ao uso equilibrado das linguagens culta, popular e literária. Talvez, esta explicação se dê de modo mais interessante se lembrarmos aquilo que, em oposição ao estilo dalcidiano, chamei de sedenarrativa: o estilo enxuto, lacônico, econômico, de parágrafos curtos e pontuação rigorosamente gramatical que marca a literatura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, outro autor paradigmático do romance de 30 da Literatura Brasileira2. Em Pedras de Encantaria, faço a distinção entre aquonarrativa e sedenarrativa, estilos que correspondem, respectivamente a Dalcídio Jurandir e a Graciliano Ramos. Utilizei para tal um trecho de Chove nos campos e outro de “O soldado amarelo”, Vidas Secas, de Ramos. 2 Paulo Nunes * Asas da Palavra 35 Finalmente, meus amigos, retomo a idéia inicial de Walter Benjamin para recriá-la e dizer que, no sentido da ficção brasileira de expressão amazônica, nossa existência é um rio-mar. E toda a liquidez que percebi nestes três ficcionistas amazônidas podem multiplicar-se por inúmeros outros poetas e prosadores nascidos nas várias unidades federativas da região, ou os que adotaram a Amazônia como assunto de suas obras. No mais, leitor-navegante, aqui aporto, ancoro meu barco, o que pode significar um rápido repouso (ah! a sesta numa rede no calor escaldante de depois do almoço...). Depois é ligar o motor e seguir viagem, leituras... Afinal, como diz o poeta Ruy Barata, “Rio abaixo, rio acima/ minha sina cana é...” Minha cachaça, nesses anos em que, por força do prazer-ofício, fiquei mais íntimo dos autores da região, é a Amazônia. Portanto, entre ressacas e prazeres, eu vou. Por que não? REFERÊNCIAS 1998. ASSIS, Rosa. Edição crítica de Chove nos campos de Cachoeira. Belém: EdUnama, BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. 3 ed. Trad.: José Carlos Barbosa e Hemerson A. Batista. São Paulo: Brasiliense, 1994. BOGÉA, José Arthur. ABC de Ildefonso Guimarães. Belém: EDUFPA, 1993. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. GUIMARÃES, Ildefonso. Contos recontados: seleta. Belém: Cejup, 1999. FARES, Josse & NUNES, Paulo. Pedras de encantaria. Belém: EdUnama, 2001. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 14 ed., São Paulo: Cultrix, 1999. MONTEIRO, Benedicto. Terceira Margem. 2 ed., Belém: Cejup, 1999. MOREIRA, Eidorfe. Obras reunidas, vol. 1. Belém: Conselho Estadual de Cultura/ Cejup, 1989. NUNES, Paulo. “Contribuições para conceituação e caracterização da literatura amazônica” [ensaios, material didático de aula, Unama, Belém, inédito]. NUNES, Paulo. “Ildefonso Guimarães: notas introdutórias” [ensaios, material didático de aula, Unama, Belém, inédito]. RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 58 ed., Rio de Janeiro: Record, 1992. 36 Asas da Palavra Asas da Palavra 37 MILTON HATOUM: PALAVRAS MÁGICAS, CULTURAS HÍBRIDAS Josse Fares 1 UNAMA-Universidade da Amazônia No município de Santarém (Pa.), as águas dos rios Tocantins e Amazonas não se misturam. Esse fenômeno da natureza destoa do processo de hibridação, termo cunhado por Néstor García Canclini (2000) para designar a formação das identidades latino-americanas. Numa primeira definição, diz o crítico antilhano: “entiendo por hibridación procesos socioculturales en los que estructuras o prácticas discretas, que existían en forma separada, se combinan para generar nuevas estructuras, objetos y prácticas” (Canclini, 2000, p.620). Essa combinação de que fala Canclini presentifica-se nos romances Relato de um certo Oriente (RO, 1989) e Dois irmãos (DI, 2000), do escritor amazonense Milton Hatoum, a começar pela construção das narrativas, nas quais percebe-se que “uma forma qualquer de oralidade precede a escritura ou então é intencionalmente preparada por ela” (Zumthor, 1993, p.109). Nas duas obras, há uma espécie de “narrador-mor”, que constrói seu relato a partir do que ouviu. Nessa construção, o oral antecede a escrita. Eis o que diz sobre isso a narradora não nomeada de RO: “Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre todas as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, os incidentes e tudo que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz que se debatia entre as hesitações e os murmúrios do passado” (Hatoum,p.166). Assim, a narradora de RO opera o traslado da voz para a letra, do oral para o escrito. No segundo romance de Milton Hatoum, DI, a escrita de Nael, o narrador, dá corpo às vozes de Domingas, sua mãe, e de Halim, seu avô: . “Foi Domingas que me contou a história da cicatriz ...” (p.25); . “Minha narrativa depende dela, Domingas” (p.25); . “Isso Domingas me contou” (p.29); . “Ele [Halim] me fazia revelações (...) como retalhos de um . tecido. Ouvi esses retalhos, e o tecido era vistoso...” (p. 52) A essas narrativas tecidas pelo verbo, somam-se outras, construídas pela imagem: as fotografias. Hakim, filho da matriarca Emilie, ao partir para o sul, Professora da Universidade da Amazônia, Belém-Pa; é doutoranda, em Literaturas de Língua Portuguesa na PUCMG, onde prepara tese sobre Milton Hatoum, sob a orientação da prof.ª Dr.ª Ivete Walty. A autora deste ensaio agradece à FIDESA, sem a qual seria impossível fazer esses e outros estudos. 1 38 Asas da Palavra MILTON HATOUM: PAL AVRAS MÁGICAS, CULTURAS HÍBRIDAS recebe notícias da família através das fotos que lhes eram enviadas por sua mãe durante vinte e cinco anos: “Soube da notícia da morte de meu pai ao receber uma fotografia em que ela [a mãe] estava sentada na cadeira de balanço (...) onde meu pai costumava sentar-se ao lado dela (...). No dedo da mão esquerda vi dois anéis de ouro, e os olhos negros brilhavam por trás do véu de tule que escondia a metade do rosto (Hatoum, RO, p.104). Após a morte do pai, Hakim recebe duas fotos da mãe num mesmo envelope. Numa delas, ele vê o rosto de Emilie sem rugas, envolto numa em uma mantilha de fios prateados (p.104). A outra, tão diferente daquela, enquadrava a mãe “no centro do pátio cercado por um jardim de Delícias (...) sentada na mesma cadeira de vime ladeada por uma cadeira idêntica em cujo espaldar me recostei para sentir a fragrância do almíscar, contemplava aquela imagem como quem contempla um álbum da vida (Hatoum, RO, p.105). Essa imagem faz o filho achegar-se à intimidade da casa e também perceber que o rosto sombrio de Emilie enuncia “uma morte que já se iniciara”(idem-ibidem). Narrativas processadas através da linguagem icônica também estão presentes nos retratos feitos por Dorner, o fotógrafo alemão que, dentre outras imagens apreendidas por sua Hasselblad, está a de Emir, o irmão de Emilie, “um pouco antes de sua caminhada solitária que terminaria nos cais do porto e no fundo do rio (...) A foto contara o que Dorner não pôde dizer”(Hatoum, RO, p.60). Percebe-se, dessa forma, uma dupla valência na tessitura do narrado: há imagens que constróem narrativas e palavras que constróem imagens. “Quando alguém pensa, o pensamento se acompanha necessariamente de uma imagem (...) Não é possível pensar sem imagem” (Aristóteles apud Menezes, 1995, p.137). II Galib, um migrante libanês, ao instalar-se em Manaus, torna-se proprietário do restaurante Biblos. Nesse espaço, delineiam-se duas formas de hibridação. Uma delas diz respeito aos freqüentadores do restaurante que, “desde a inauguração fora um ponto de encontro de imigrantes libaneses, sírios e judeus marroquinos [que] falavam o português misturado com árabe, francês e espanhol” (Hatoum, DI, p.48-9). Percebe-se assim que “dispersão dos povos transforma-se em tempo de reunião. Reuniões de exilados, emigrados e refugiados, reuniões à margem da cultura ‘estrangeira’, reuniões nas fronteiras, reuniões nos guetos ou cafés de centros urbanos” (Bhabha, 1996, p. 12). A outra forma de hibridação que se evidencia no restaurante de Galib diz respeito à culinária. No Biblos, servia-se, por exemplo, tucunaré ou matrinxã ao molho de gergelim. O cardápio incluía ainda, dentre outras iguarias, postas de peixe, beringela recheada, macaxeira frita, além do arak, bebida típica dos árabes. O Biblos era, portanto, um ponto de cruzamento de culturas. Através dos exemplos citados e de muitos outros que atravessam os dois romances, observamos o estilhaçamento do uno em prol da pluralidade. Nesse sentido, vale lembrar Lezama Lima, que define, poeticamente, a América como “uma flor que forma Asas da Palavra 39 Josse Fares outra flor quando nela pousa uma libélula”. Ao levarmos em conta esta metáfora, transportaremos os significantes “flor” e “libélula” para os significados de América Latina (flor) e hibridação da cultura (libélula). III Tanto a narradora não nomeada quanto Nael, ao operarem o traslado do oral para o escrito, já estão distanciados dos fatos que lhes foram contados. A memória será, portanto, a condutora do dos dois relatos. Platão no diálogo entre Sócrates e Theeteto, refere-se a um “bloco de cera” que seria “uma símile de nosso aparelho mental” (Menezes, 1995, p.32). Nele, bloco de cera, segundo Sócrates, o que foi impresso “nós lembramos e sabemos durante o tempo que a imagem permanece na cera, enquanto que o que se apagou nós esquecemos e não sabemos” (Platão apud Menezes p.132). Compreende-se assim que a memória é lacunar. É a própria narradora de RO quem confirma este fato: “...ao final de cada passagem, da cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medíocres, dados e datas em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação (Hatoum, RO, p.165). Não teria a narradora preenchido as lacunas da memória com elementos da imaginação? Freud, diz-nos Adélia Menezes, “vai mostrar que a memória não é confiável e que uma ‘lembrança’ pode ser ficção (Menezes, p.148). Observemos o que o narrador de DI tem a nos dizer sobre este mecanismo: “Talvez por esquecimento, ele [Halim] omitiu algumas cenas esquisitas, mas a memória inventa quando quer ser fiel ao passado” (Hatoum, DI, p.90). As hesitações e esquecimentos das personagens ocorrem porque a memória é seletiva, “é um cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (Bosi, 1994, p.46). Halim, em meio às longas conversas com o neto, chega a confessar: “Me dá uma raiva comentar certos episódios. E, para um velho como eu, o melhor é recordar outras coisas, tudo que me deu prazer. É melhor assim: lembrar o que me faz viver mais um pouco (Hatoum, DI, p.244-5). Nael, por sua vez, precisou dar tempo ao tempo para poder transformar em texto escrito os fatos dolorosos da vida, como a morte de Domingas, sua mãe: “Naquele tempo, tentei em vão escrever (...) mas as palavras permanecem soterradas, petrificadas em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou (...) Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras...” (Hatoum, DI, p.244-50). Ou ainda noutro excerto: “Há um momento em que o homem maduro deixa de ser membro ativo da sociedade, deixa de ser propulsor da vida de seu grupo: neste momento de velhice social, resta-lhe, no entanto, uma 40 Asas da Palavra MILTON HATOUM: PAL AVRAS MÁGICAS, CULTURAS HÍBRIDAS função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, da instituição, da sociedade” (Bosi, p.63). Nesse contexto, situa-se Halim que, envelhecido, lega ao neto a memória da família, que se transforma no eixo principal de sua narrativa. Dessa forma, os narradores dos dois romances de Milton Hatoum são também receptores dessa memória legada, sobretudo, pelos mais velhos que, por terem vivido mais, têm “a obrigação de lembrar, e lembrar bem” (idem-ibidem). Ainda que Walter Benjamin tenha atentado para o fato de que “à época da guerra, a experiência tenha entrado em extinção” (Benjamin, 1994, p.197), percebe-se que tanto em RO quanto em DI, a experiência mantém-se viva nas vozes do marido de Emilie, de Hindié Conceição (RO), de Halim (DI). Este último, por exemplo, vivifica em diversos momentos de seus contares, as experiências de seu próprio passado. O avô de Nael conta suas histórias ao neto “trançando uns fios de tucum com os dedos” (Hatoum, DI, p. 148). Halim é, pois, duplamente tecelão. Tece fios de tucuns e de palavras, o que o aproxima dos narradores da experiência benjaminiano, muito embora ele possua um único ouvinte, seu neto. IV Ainda que os teóricos, sobretudo os dos século XVIII e XIX, tenham enfatizado a territorialidade como um dos pontos definidores do conceito de nação, ela, a territorialidade, não garante o pertencimento de uma pessoa a uma nação. Yakub, personagem de DI, tanto no Líbano, para onde foi exilado à sua revelia, quanto em Manaus, onde nasceu, sente-se desterritorializado, uma sensação de orfandade o abate. O não-pertencimento de Yakub ao Líbano evidencia-se em algumas passagens do romance. Numa delas, quando Talib, um amigo de Halim, pergunta-lhe: “Não sentes saudades do Líbano?” (p. 118), ouve como reposta: “Que Líbano?” (idem). O Líbano não era, portanto, seu lugar. Noutra, “ao criticar o comércio anacrônico do pai” (p. 116), diz: “Assim vocês não vão muito longe” (idem). O pronome vocês, no caso, é excludente. Yakub seria, pois, um “sem-lugar”. O espaço da casa é comumente compreendido na dimensão de proteção e aconchego. No entanto, esse espaço uterino não parece ter reconhecido Yakub quando de seu retorno do exílio, ele sente-se um estranho no ninho. Essa sensação experimentada pelo filho de Halim nos faz lembrar de Bentinho, personagem de D. Casmurro, de Machado de Assis. Já adulta, a personagem machadiana volta à casa da infância, mas a casa, diz o narrador, “não me reconheceu”. Ao que parece, esse reconhecimento ocorre porque tanto Bentinho quanto Yakub já não eram mais os mesmos. Edward Said, no contexto de suas memórias pessoais, diz quando de seu retorno ao Líbano: “Minha sensação predominante era a de estar fora do lugar (Said, 2003, p. 19). Assim também se sentiu Yakub quando de seu retorno ao lar. O exílio encarregou-se de imprimir-lhe na alma um sentimento de mágoa que o transformou num deslocado, num ser esgarçado, talvez, a se perguntar: Quem sou eu? Essa indagação, que nos remete a Édipo, constitui-se a grande angústia que atordoa Nael e a narradora de RO, que atordoa o Homem. É através da palavra que as personagens narradoras empreendem a busca de suas próprias identidades. O poder do verbo lhes permite a travessia do Caos para o Cosmos. Asas da Palavra 41 A ÁGUA, O FEMININO E AS PROJEÇÕES EM ALFREDO, DE DALCÍDIO JURANDIR. Marlí Tereza Fur tado (UFPA) Em Extremo Norte (1939/1978), ciclo romanesco de Dalcídio Jurandir, chama-nos a atenção o extenso número de mulheres presentes nos dez romances. A exatidão desse número não nos levará ao que mais nos interessa: refletir sobre a elaboração do universo feminino na obra dalcidiana, o qual se tinge de cores variadas, na maioria das vezes em tons carregados do trágico, em outras, do patético e do grotesco. Trágico é o destino (=vida) de Felícia, a patética prostituta de Chove nos campos de Cachoeira (1941), cuja morte é retratada em Três casas e um rio (1958), sob o olhar de Alfredo. Marcadas pelo trágico estão três mulheres fundamentais em Marajó (1947): Orminda, Guíta e Alaíde. Lembremos que, nessa obra sui generis do ciclo, as mulheres estão encurraladas nas cercas do latifúndio dos Coutinhos e as três citadas centralizam a violência que ali decorre contra a mulher, mas lembremos que elas são protagonistas em meio a muitas personagens secundárias cujos dramas não são de menor importância. Pensemos em Nhá Felismina, mãe de Orminda, rota e encardida, ao mesmo tempo que desolada diante do destino dos filhos (os homens ladrões, as mulheres prostitutas); também pensemos em Rita, a quase vendida em criança e que, se naquela época escapou das mãos de um canoeiro que a venderia em Belém para o trabalho escravo infantil, na adolescência não se livrou dos braços torpes da posse de Manuel Raimundo, capataz dos Coutinhos. Como dissemos, Marajó é obra sui generis em Extremo Norte e embora a partir dela possamos analisar a condição da mulher retratada por Dalcídio Jurandir na extensão do ciclo,1 objetivamos neste trabalho recortar alguns momentos, em outras obras do ciclo, em que a água é retratada com força simbólica, ligada ao feminino, mas projetandose em Alfredo. Por isso, convém ressaltar a presença de Alfredo nos outros nove romances de Dalcídio Jurandir, assim como enfatizar que, concomitante ao crescimento e amadurecimento desse protagonista, em suas constantes idas e vindas de Cachoeira do Arari para Belém e vice versa, seja via caroço de tucumã (objeto mágico de Trabalhei dessa forma em minha tese de doutorado Universo derruído e corrosão do herói em Dalcídio Jurandir, Unicamp, 2002, no capítulo II, pp. 198/229. 1 42 Asas da Palavra A ÁGUA, O FEMININO E AS PROJEÇÕES EM ALFREDO, DE DALCÍDIO JURANDIR. Alfredo que também estabelece seu contato com o resto do mundo), seja no plano real da narrativa, há o constante entrecruzar das tantas personagens que habitam Extremo Norte. Com exceção, pois, do que aparece em Marajó, muitos dos demais dramas sempre se entrecruzam de certa forma com os de Alfredo e o olhar dele direciona o olhar do leitor para a leitura da realidade que representam. Grande número de mulheres perpassa o destino de Alfredo e para não criar longo trecho enumerando as personagens e seus dramas, parto de um momento retratado em Primeira Manhã (1967), sexto romance do ciclo, quando Alfredo já é um ginasiano e, em flanerie por Belém, empreende uma busca de si mesmo em que aparecem algumas mulheres: Irene, Andreza, Luciana e D. Amélia. Sintomaticamente, essas mulheres são associadas à água, representação, em muitos mitos da criação do mundo, da fonte de toda forma de vida, assim como um elemento de dissolução e de afogamento. Focalizado errando pelas ruas de Belém, o narrador diz: “Alfredo assobiou: águas, águas, Irene, as demais. Lembrou aquele rio morrendo – volta, volta, mãe do rio, me deixa uma espuma, quem sabe um búzio; o expiro de um afogado; Luciana e a ilha andando, qual das duas viajando mais? “Pra te dizer, não sei”. Igual a mãe nas ilhas. Quem foi? Quem? Quem?” (P.M. p. 229). No excerto temos explicitados os nomes de Irene e de Luciana, há referência à mãe, D. Amélia e a expressão “as demais” resume o grande rol de mulheres em quem ele pensa.. Retiraremos desse rol Andreza, a grande amiga de Alfredo que atua em Três casas e um rio e depois aparecerá sempre pela memória do amigo que, conforme já dissemos, empreende uma busca fantasmagórica dessas mulheres. Irene tem a força de um mito inatingível e Alfredo explicita isso associando-a às figuras do livro de Mitologia que folheava no início de Três casas e um rio. Fora inatingível a Eutanásio, como Musa, mas este redimensiona o significado de Irene naquele universo em que seus destinos se imbricaram, ao vê-la no final da vida como o “princípio do mundo”. Observe-se: “Desejou passar a mão naquele ventre que crescia vagaroso como a enchente, com a chuva que estava caindo sobre os campos. Desejaria beijá-lo. Estava vendo ali a Criação, a Gênesis, a Vida. (...) Irene era o princípio do mundo . As grandes chuvas lhe traziam o filho. Seus peitos cresciam, se enchiam de leite como os das vacas. Ela era tão magnificamente animal, que em seu rosto calmo, em seu ventre, em suas mãos só havia inocência, a inocência de todo o mistério criador. Só ela era a vida! Só ela era a vida!” (C.C.C. pp.285/286). Marlí Tereza Furtado Asas da Palavra 43 Note-se que ela simbolicamente concentra a força da criação, extravasando a possibilidade apenas da criação poética, a grande impossibilidade de Eutanázio. Ela ultrapassaria o local ao representar um mito cosmogônico e talvez resida aí novamente o desconforto de Eutanázio ao entender que não atinara para o fato durante sua perseguição a ela em seu torpe final de vida. Cabe a Alfredo que a amara calado, na iniciação ao amor que emprendia, fechar essa representação simbólica de Irene, não só associando-a às figuras mitológicas, como também relembrando que, altaneira e calada, deixara Cachoeira com o filho. Tomara um barco e partira reservando aos cachoeirenses o mistério de seus passos. Luciana, que representaria concretude no momento em que Alfredo é focalizado a pensar nessas mulheres, pois ela é filha do coronel Braulino Boaventura, em cujo palacete Alfredo se hospeda para cursar o ginásio, se aproxima de uma abstração, já que , expulsa de casa, erraria pela cidade e Alfredo, mesmo sem conhecê-la, busca-a na esperança de aproximá-la novamente da família. Ao associá-la à ilha andando, Alfredo revela o que está imanente em sua psiquê. Se buscarmos o significado da ilha, constataremos ‘ que ela é o símbolo por excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do centro espiritual primordial” (Chevalier, Gheerbrant, 2000, p. 501). E mais: assinala-se que a análise moderna pôs especialmente em relevo um dos traços essenciais da ilha, o refúgio. A ilha seria o refúgio, onde a consciência e a verdade se uniriam para escapar aos assédios do inconsciente. Ora, Alfredo busca por Luciana, a intangível, durante o enredo de três obras: Primeira manhã, Ponte do Galo, Os habitantes, ao mesmo tempo em que elabora reflexões sobre o universo do trabalho e suas derivações, como a escolha de profissão, a validade da relação dinheiro/trabalho. Durante esse período, vai aos poucos perdendo o ginásio, distanciando-se da dor que lhe arrebata o alcoolismo de D. Amélia e procurando caminho para a sensação de deslocamento tanto no palacete dos Boaventura, como no Ginásio, ou em Belém. Dada a notícia da possível morte de Luciana, Alfredo toma uma decisão importante: deixa o palacete onde morava de favor e aluga uma casa na José Pio, 86, no Chão dos Lobos, título do próximo romance da série, quando trabalhará como professor junto a D. Nivalda. Luciana morta fez desaparecer a ilha que ela representava e Alfredo amadurece para duas decisões importantes: minorar a sensação de deslocamento, não morando 44 Asas da Palavra A ÁGUA, O FEMININO E AS PROJEÇÕES EM ALFREDO, DE DALCÍDIO JURANDIR. mais de favor com uma família rica, e decidir-se pelo trabalho e por autonomia para manter-se. Andreza merece nossa atenção porque nesse processo de busca de Alfredo ela representa a força de uma infância, de uma iniciação, que se foi, irrecuperável. Entretanto, na atuação que tem em Três casas e um rio faz também parte da denúncia social empreendida por Dalcídio Jurandir. Ela pertence aos Bolachas, acossados e perseguidos pelos Menezes, donos do ‘reino de Marinatambalo’, até perderem tudo, inclusive o direito de serem enterrados na própria terra. Daí a menina ter legado um drama com ressonância de tragédia grega: o direito de recuperar os ossos do último parente assassinado. A despeito disso, Andreza aparece a Alfredo em um momento em que, doente, dos olhos, vive uma cegueira. Depois, aparece para ele caminhando pela vala e o que lhe marca a expressão são “os olhos de areia gulosa”. Note-se pois a carga de simbologia associada à personagem. Esse momento de cegueira do menino dialoga com muitos textos da literatura ocidental que associam à falta de visão externa, maior expansão dos sentidos e maior possibilidade de se viver internamente. A cegueira de Alfredo é índice do processo de elaboração interna que começa a atravessar, e funciona também como prolepse do que vivenciará no decorrer do romance. E se Andreza lhe aparece caminhando pela vala que concentraria águas paradas, não só nos remete à simbologia do feminino tão bem apontados por Bachelard (1989), como a toda a significação que terá para a personagem de Alfredo no processo de individuação que viverá. Ele terá que aprender a aceitá-la, com toda sua força, sua autonomia e independência, para poder prosseguir. Não à toa, passará pelo reino de Marinatambalo, um espaço carregado de simbologia na obra, matará a mãe que o incomoda (D. Amélia negra e alcoólatra), colocará a mãe interdita (Lucíola) em seu devido lugar, para aceitar de vez a mãe negra e alcoólatra D. Amélia, passando a aceitar-se mestiço e encarando o alcoolismo da mãe como doença que deve ser tratada. E Andreza vivencia com ele dois episódios ligados à sua puerilidade, mas carregados de significação. Ambos se jogam na pororoca em busca dos três pretinhos que acreditam nela habitar. Junto a outros meninos, os dois tentam impedir a lagoa de secar para que a princesa que em seu fundo mora, nela sobreviva. Importa salientar que além da simbologia da tentativa de salvar a princesa, que estaria ligada aos sentimentos absconsos do inconsciente, e também aos sentimentos puros que os dois, ainda crianças, tentam preservar, Andreza durante esse período se veste com um vestido emendado, de três cores, sendo vista por Lucíola semelhando uma cobra coral. A despeito desse olhar despeitado de Lucíola, ela sente a perda de controle sobre Alfredo, Andreza enlameada e vestida de tal forma aflora uma carga simbólica ligada ao Marlí Tereza Furtado Asas da Palavra 45 sensual e ao erótico. Lembremos que, em outro momento, Alfredo aceita um beijo seu e Andreza, se não representa o primeiro amor de Alfredo, marcou a iniciação amorosa do menino com esse beijo. A quarta mulher citada por nós e referida no excerto por Alfredo, D. Amélia, como mãe real da personagem congrega a força das origens tanto num sentido amplo, quanto no particular do rapaz. Ela trabalhara nas ilhas e de lá trouxera um filho no ventre cujo pai nunca revelou a ninguém. Esse filho, concebido nas ilhas, foi-lhe tirado pelas águas, afogado. Vingança da natureza contra a altivez de Amélia? A obra não sustenta tal suposição, mas nos revela um dado importante: Alfredo, bem menor, caíra em um poço e de lá fora salvo pela mãe. Veja-se: “A calma de sua mãe, lavando e curando, talvez viesse daquele instante do poço onde Alfredo caiu. D. Amélia lavava umas camisas, e Alfredo que brincava, tentando fazer figurinhas de barro, junto à tina de roupa, escorregou para dentro do poço. Acontecera isso em Araquiçaua. D. Amélia não deu um grito. Saltou, e foi buscar Alfredo no fundo do poço que era raso. Salvara o filho, e daí em diante parecia mais seu, saindo não somente da sua carne como do seu ressentimento, que ela sempre guardava consigo mesma a respeito do outro filho que morrera afogado. Salvou o filho silenciosamente, podia-se dizer até que o salvou como se já soubesse que havia de cair no poço e certa de que o salvaria. Alfredo voltara de novo para os seus braços como se fosse o outro também que voltava.” (C.C.C. pp. 14/15) Perceba-se o embate entre D. Amélia, que, como mãe, congrega a força das origens, com as águas e delas retira-lhes seu segundo filho salvando-o da morte. Esse dado pode nos levar à interpretação de D. Amélia como ligada à força da terra, também ligada ao feminino, mas simbolizando a “função maternal, fonte do ser e protetora contra qualquer força de destruição”. (Chevalier, Gheerbrant, 2000, pp 879/879). Essa interpretação de D. Amélia, personagem que merece ser analisada em uma dissertação maior, ficará para outro momento, dada a exigüidade de nosso texto, mas dela provém o que ainda teremos a falar de Alfredo. Ao ser retratado como alguém que foi salvo das águas de um poço pela mãe, ele assume representação simbólica maior. O que significa o poço para a simbologia? Segundo ela, “o poço se reveste de um caráter sagrado em todas as tradições. Ele realiza uma espécie de síntese de três ordens cósmicas: céu, terra, infernos; de três elementos: a água, a terra e o ar. Ele é símbolo de segredo; simboliza o conhecimento; representa também o homem que atingiu conhecimento’ (Chevalier, Gheerbrant, 2000, pp. 726/727). 46 Asas da Palavra A ÁGUA, O FEMININO E AS PROJEÇÕES EM ALFREDO, DE DALCÍDIO JURANDIR. Ora, não estará aí a chave de leitura de Extremo Norte, dada por Dalcídio Jurandir? O mergulho de Alfredo no poço seria uma espécie de batismo para o conhecimento. Alfredo não saiu dele inocente, mas pronto para o processo de conhecimento e de reconhecimento pelo qual passará. Não estaria aí o embrião que explicará o plano de denúncia da obra, muito bem urdido pelo autor, pois ao acompanhar o crescimento de Alfredo, seu amadurecimento para a vida adulta, sua aceitação como mestiço, mas sobretudo seu entrelugar, dividido entre o mundo da erudição e o mundo popular, entre optar por uma profissão “intelectual” e uma braçal, e ao final, “perdido”, a buscar caminhos, perambulando como um herói melancólico, não aceitamos seu olhar sobre o mundo, não nos sensibilizamos para o retrato que Dalcídio faz da aristocracia de pé no chão? REFERÊNCIAS 2000. BACHELARD, G. A água e os sonhos .São Paulo: Martins Fontes, 1989. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2001. CHEVALIER, J. GHEEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. São Paulo: José Olympio, JURANDIR, D. Chove nos campos de Cachoeira. Rio: Ed. Vecchi, 1941. JURANDIR. Marajó. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília:INL, 1978. JURANDIR. Três casas e um rio. Belém: ed. Cejup, 1994. JURANDIR. Primeira manhã. São Paulo: Martins, 1967. JURANDIR. Ponte do galo. São Paulo: Martins, 1971. JURANDIR. Os habitantes. Rio: Artenova, 1976. JURANDIR. Chão dos Lobos. Rio: Record, 1976. Asas da Palavra 47 RIO-MAR: IMAGENS DE SOURE EM MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR. Er nani Chaves Departamento de Filosofia/UFPA. “O verdadeiro amor é como a aparição de um fantasma: todos falam dele, mas poucos o viram”. (La Rochefoucauld) I Confesso que minha curiosidade maior em ler Marajó, de Dalcídio Jurandir, sempre foi a de saber se Soure, minha cidade natal, apareceria no livro. E em caso afirmativo, “como” ela, a minha cidade, apareceria, “como” ela estaria representada. Sabemos que Dalcídio reescreveu Chove nos Campos de Cachoeira no final dos anos 1930, quando morava em Salvaterra, então uma vila pertencente ao Município de Soure, época em que o escritor exercia a função de Inspetor de Ensino. No exercício de suas funções, ele atravessou muitas vezes o rio Paracauari, para “inspecionar” as escolas que ficavam na outra margem, na cidade de Soure, a sede do município do mesmo nome. Então, era de se esperar, de algum modo, que Soure fosse aparecer no livro. Minha curiosidade foi plenamente satisfeita. Embora a ação central do livro e que o ocupa em quase toda a sua totalidade, se passe em Ponta de Pedras, a cidade natal de Dalcídio, Soure aparece no livro em dois capítulos, os de números 42 e 50, já no final do romance, que tem 53 capítulos no seu conjunto. Entretanto, a presença de Soure não se dá por acaso: pois é nesta mesma temporada em que morou em Salvaterra e reescreveu o Chove, que Dalcídio escreveu Marajó, que na sua primeira versão recebeu o nome de Marinatambalo. Por outro lado, o fato de Soure aparecer já quase no final do livro também a coloca numa posição bastante especial no interior da narrativa, na medida em que nos dois capítulos em que minha cidade se torna o cenário de Dalcídio, podemos acompanhar dois momentos decisivos na história de “Missunga”. Meu objetivo então aqui, é mostrar como esses dois momentos articulam estados psicológicos de “Missunga” com a representação da cidade, em especial, com representações da cidade ora marcadas pela sua proximidade com o mar, ora com o rio. Em outras palavras: podemos ler e reencontrar em Marajó, duas faces de Soure, aquela que se volta para o mar, para o Oceano Atlântico, 48 Asas da Palavra RIO-MAR: IMAGENS DE SOURE EM MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR. com suas belas praias, do Araruna ao Cajuúna, passando evidentemente pelo Pesqueiro, e que compõem o cenário do capítulo 42 e aquela banhada pelo rio Paracauari, o rio que separa Soure e Salvaterra, cenário do capítulo 50. De um lado o rio, de outro lado, o mar. E em que medida essas duas águas, a do mar e a do rio, com suas cores, densidades e gostos diferentes, pois ocasionalmente, em determinada época, as águas das praias, devido ao contato oceânico, ficam até mesmo um pouco salgadas, dialogam com o estado psicológico de “Missunga”? Eis a pergunta que me fiz e para a qual tentarei oferecer aqui uma resposta, mesmo que provisória. II A decisão de “Missunga” de, no capítulo 41, alugar uma “curicaca”, uma “pequena embarcação a vela”, como esclarece o narrador, e partir em direção à baía de Marajó, tem uma motivação muito forte: um sentimento de culpa muito grande pela morte de Guíta. Guíta, a companheira dos “jogos infantis” de “Missunga”, criada com ele na casa grande de Paricatuba, representa no romance, o pólo oposto de Alaíde, a mulher com quem Missunga divide uma cabana chamada com alguma ironia de “Felicidade” e com quem ele faz a viagem que o capítulo 42 descreve. Enquanto Alaíde é associada às forças do desejo e do mal, pois afinal de contas ela é considerada a “perdição” de Missunga e a responsável direta pelo fato de ele não ter assumido, desde cedo, seu lugar ao lado do pai na condução dos negócios e também na política, Guita aparece ligada às figuras angelicais, pois afinal de contas é ela que, em todos os Natais, está ocupada com o presépio e com a pastorinha. Seduzida por Missunga, como se dizia antigamente, Guita, grávida, morre quando uma tempestade derruba uma árvore sobre ela. Ainda no capítulo 41 rio e mar, este na forma de baía, já são mencionados de maneira antagônica e ao mesmo tempo complementar: “O rio, uma cobra de prata, se desenrolava na sombra e ia urrar na baía” (p. 282); “A vela debateu-se, a noite ondulou, o mato desapareceu e um primitivo mar surgia (...)” (Idem); “O mar engrossava, lodo, limo, sementes, pedaços de ilhas desmanchadas, vômito das cobras grandes que rabeiam nos poços fundos” (p. 283). E em meio a esta passagem, do rio ao mar, de uma certa tranqüilidade e serenidade em direção ao “primitivo”, ao profundo, ao abissal, é que Alaíde, não suportando mais o silêncio de Missunga, pergunta a ele: “Que remorso você anda curtindo, ein?” (p. 284). A referência ao “remorso”, pois Alaíde sabe que Missunga sofre por Guita, que ele se sente culpado pela sua morte, está expressa, metaforicamente, nesta passagem, que referi a pouco, do rio ao mar, de uma certa leveza e serenidade, para algo mais profundo e tormentoso. III É assim, que atormentado pelo remorso, Missunga vai em direção às praias da costa oceânica de Soure, sem parar, como o narrador diz, na “boca do Paracauari”, ou seja, sem parar nem em Soure, nem em Salvaterra, mesmo que esta lhe acenasse, com Asas da Palavra 49 Ernani Chaves seus coqueiros, pois “não havia coisa alguma ainda que abafasse a voz de Guita, apagasse o olhar (...)” (p. 286). No Araruna, a primeira parada dessa estação de sofrimento e dor, “onde a areia engolia as palhoças e os coqueiros”, “os búzios das canoas chamavam o vento e para Missunga chamavam também a voz de Guita” (Idem). No Cajuúna, a segunda parada, ao contrário, não é em Guita que ele pensa, mas em “Felicidade”, a cabana onde vivia com Alaíde, em Ponta de Pedras. No Pesqueiro, terceira parada, Missunga decide retornar: “E no Pesqueiro, quando a maré enchia, as vagas luzes do povoado se apagavam e as canoas no igarapé ficavam mortas na sombra, subiu o pano da curicaca” (p. 287). Missunga quis voltar, como se, lentamente, iniciasse a elaboração do seu luto - penso aqui, evidentemente, no texto de Freud, “Luto e Melancolia” (1919) - como se ele quisesse, aos poucos, dar as costas à morte, representada aqui na figura dessas canoas, “mortas na sombra”. A maré alta coincidindo com a chegada da noite, lhe impulsiona para a partida, em vez de mantê-lo preso ali, como um morto em meio às canoas “mortas na sombra”. Como se a lembrança de “Felicidade”, que lhe ocorre no Cajuúna, tivesse posto em movimento este processo de elaboração, dando início ao que Freud chamou, no texto que mencionei acima, de “trabalho de luto”. Entretanto, as coisas não são tão simples assim: Alaíde, pela primeira vez, deseja ficar, ali, no Araruna, como se o retorno de Missunga significasse, para ela, a presença, a sombra da outra, da morta. Alaíde, atormentada pela dúvida, pelo ciúme, não deixa de acusar Missunga de fazer dela uma fuga das lembranças de Guita. Assim, a primeira imagem de Soure, não é a da cidade que o inspetor Dalcídio conhecia bem, mas as das praias, onde Soure faz fronteira com o infinito do oceano. Aqui, o mar - na sua profundeza abissal - é mais o observador, meio distanciado, da luta de Missunga consigo mesmo e com seus remorsos. Araruna, Cajuúna e Pesqueiro, assim nesta ordem, parecem as “estações” do seu auto-calvário, da sua auto-flagelação. Com isso, não quero comparar Missunga com a figura de Cristo, mas remeter ao fato, de que processos de culpabilização também contém fortes elementos sado-masoquistas. Estes elementos é que podem inviabilizar o luto e conduzir o sujeito a precipitar-se na melancolia. Eis o risco que ronda freqüentemente a figura de Missunga desde a morte de Guíta: o de não poder completar seu luto e ser arrastado pelo mar revolto da melancolia. IV Oito capítulos depois, isto é, no capítulo 50, Soure reaparece na narrativa. Desta vez, já não estamos mais na companhia de Missunga, mas sim na de Manuel Coutinho Filho, herdeiro e sucessor do pai nos negócios e na política. Manuel Coutinho Filho, de passagem para Belém, para depois embarcar para o Rio de Janeiro, está agora em Soure, na cidade e não mais nas praias: “Abriu a janela. Não era a madrugada, era o luar. Soure dormia embalada pelo vento, pela voz da baía, num leito de mangueiras” (p. 327). Imagem inicialmente idílica, mas que é imediatamente desfeita pela lembrança de Guita: “Haveria muito tempo para se libertar da morte de Guita” (Idem). A morte de Guita significará assim, o seu e mais recente e poderoso fantasma, talvez o mais pesado, o mais difícil de 50 Asas da Palavra RIO-MAR: IMAGENS DE SOURE EM MARAJÓ, DE DALCÍDIO JURANDIR. suportar e, por conseguinte, de se libertar. Missunga, aliás Manuel Coutinho Filho, continua o seu tormentoso “trabalho de luto”. Guíta continua assim representando uma idéia de inocência, da pureza de um amor de fortes tonalidades românticas, que ele, Manuel Coutinho Filho, ex-Missunga, foi incapaz de reconhecer na sua grandeza e acolher na sua plenitude. “Por que tantos mortos no seu caminho?” pergunta-se Missunga. A partir desse momento, posso acompanhar a personagem por um caminho que me foi e me é profundamente familiar: aquele que da Terceira Rua de Soure segue em linha reta até o bairro de São Pedro, bairro dos pescadores, margeado bem de perto pelo rio Paracauari, que forma, aqui e acolá, pequenas enseadas, “boas pra banho”, como dizíamos: “Andava pela terceira rua de Soure. As mangueiras lhe ofereciam uma paz de orvalho e resina, [que] se derramava dos frutos verdes e das folhas. Em ordem na rua, pesadas de sossego e mangas. Com que maternidade, com que força de criação a terra as sustentava e as deixava ao luar, na rua da pequena cidade marajoara”. Missunga, nessa “flânerie” noturna, com profundos traços melancólicos, é atormentado freqüentemente pelo passado próximo e distante. Soure, envolta na imagem da “maternidade”, lhe relembra o aborto de Alaíde e Guita, grávida e morta. A cidade materna em contraposição às maternidades frustradas das duas mulheres de sua vida, acenando, radicalmente, para a sua própria paternidade frustrada. Não por acaso, a lembrança da mãe também retorna: “Voltou-se para o fundo de mangueiras em que Soure se deitava. Teve de repente, como um calafrio, a lembrança de sua mãe. Tentou reconstituir a cena da sua morte, mas perdeu os traços essenciais daquela face, daquela voz, daquela expressão de sono, fadiga e desgosto que seus olhos deixaram” (p. 328). A lembrança da mãe - objeto do desejo e, como tal, definitivamente perdido acentua em Missunga, o sofrimento doloroso que Guita e Alaíde, os objetos do seu amor, isto é, os substitutos do objeto do desejo, acabam por lhe provocar. Daí a presença cada vez mais insidiosa da morte, da própria morte: “As mangueiras continuavam serenas como se quisessem sepultá-lo com as suas folhas tão inumeráveis como a terra que cobria Guíta, como as estrelas desfeitas ou sepultadas no céu, berço e cemitério de estrelas” (p. 328). Soure se torna então, o cenário onde Missunga alucina a própria morte: “Todos os fantasmas rodeavam-no, penduravam-se na rede. O sono precipitou-se, rio vertigioso e vermelho onde boiava como um cadáver. Evidentemente estava morto, saía-lhe o sangue pelos cabelos, espumando. Estou morto, dizia. Por que os mortos não me reconhecem? Por que entre eles não vê Alaíde, não distingue a mãe e Guíta carregando um enorme tronco no ombro” (Idem). A cidade às margens do rio torna-se assim o palco onde os mortos de Missunga ressurgem e que nem as imagens do oratório da casa do parente, em Soure, onde ele Ernani Chaves Asas da Palavra 51 dorme, são capazes de apaziguar. Estes santos lhe lembram outros santos, os de sua mãe que, “por serem dela, santos verdadeiramente” (p. 329), mas que depois de sua morte, como que perderam sua santidade, “ficaram vazios e desamparados”, tornaramse apenas “despojos de uma fé que não se podia arrancar daquela carne triste de mãe, daqueles nervos, enfim, parados” (Idem). A religião não consola Missunga e nem é capaz de despojá-lo de seus fantasmas. A sua identidade mais recente, como Manuel Coutinho Filho, é continuamente recoberta pelos fantasmas que lhe lembram suas outras raízes, sua outra identidade, uma outra “realeza” evocada pelo significado africano de seu apelido Missunga: não a realeza de Manuel Coutinho Filho, que se estabelece em meio à expansão capitalista na Amazônia, mas a do garoto ainda integrado às águas e à floresta, que reina entre os animais e as garotas bonitas, que rondavam a casa de Paricatuba. A Soure das margens do rio, esta Soure-mãe com suas ainda enormes mangueiras, não pode, tanto quanto Guíta e Alaíde também não o poderiam, apaziguar a dor de Missunga. Manuel Coutinho Filho parte de Soure em direção ao Rio de Janeiro, levando junto seus fantasmas. “Soure desaparece” quando o barco a motor entra aos poucos na baía de Marajó, diz o narrador. O capítulo 50 se encerra e com ele, não é apenas Soure que desaparece, mas também Missunga, que não voltará mais a aparecer nos capítulos restantes do livro, assim como desaparecerá da própria obra de Dalcídio. REFERÊNCIAS Freud, Sigmund. “Trauer und Melancholie” in Metapsichologische Schriften, Frankfurt: Fischer, 1992. Jurandir, Dalcídio. Marajó. 3ª. ed., Belém: CEJUP, 1992. 52 Asas da Palavra Asas da Palavra 53 OUTRA FACE DA LUA, OUTRA FACE DO SOL: OLHARES SURUÍ Ivânia Neves Cor rêa UNAMA - Universidade da Amazônia O mito que vou analisar neste artigo, Kwarahy, Sahy, Sahy-Tatawai e o fogo Suruí, foi narrado por Arihêra Suruí, quando realizava meu trabalho de campo entre o grupo. Recorro à história recente do povo Suruí como principal argumento interpretativo. Também procuro mostrar um pouco da visão que os Suruí têm sobre narrativas míticas. Entre os Suruí Era noite, mas o céu estava coberto de nuvens. Não pudemos ver nem a Lua nem as estrelas e os Suruí se ressentiam muito disso. Com a convivência entre eles, aprendi que não gostavam de contar histórias que envolvessem as estrelas, durante o dia. Ficavam incomodados de não poder mostrá-las, por isso as narrativas deveriam ser contadas preferencialmente à noite. Arihêra é uma dessas guerreiras da floresta. Quando me contou as primeiras histórias, logo percebi sua importância para o grupo. Na frente dela, os outros índios, quando falavam das estrelas, sempre buscavam a confirmação do seu olhar. Diante dos desenhos das estrelas, depois de identificarem os nomes, levavam o papel até ela. Orgulhosa, de postura esguia, como que tem consciência de seu papel, foi a primeira a se deixar filmar, por mim, narrando os mitos. Não fugia da câmera e aos poucos criou um clima que motivou outros índios a também querem ser filmados. Arihêra é a matriarca de uma das mais importantes famílias Suruí. É mulher de um ex-cacique, Umassú, com quem têm quatro filhas e um filho. Entre os Suruí há poucos índios longevos. Os dois estão prestes a completar 60 anos, por isso fazem parte do seleto e pequeno grupo de índios que conhece a tradição. Quando se pergunta aos Suruí quem seriam as pessoas ideais para contar suas histórias, os nomes de Arihêra e Umassú são sempre citados. 54 Asas da Palavra OUTRA FACE DA LUA, OUTRA FACE DO SOL: OLHARES SURUÍ Kwarahy, Sahy, Sahy-Tatawai e o fogo Suruí Há muito tempo, no meio da floresta, na época em que nós, Suruí ainda éramos brabos, vivia um indiozinho malinador. Por mais que seus pais o alertassem sobre os perigos da vida, ele teimava em não acreditar na sabedoria de nosso povo. Naquela época, o mundo era mais frio e mais escuro, ainda não existiam Kwarahy, Sahy, Sahy-Tatawai e o vento. Os índios Suruí brabos também eram conhecedores de muitos segredos do Universo. O indiozinho era muito curioso e vivia perguntando sobre tudo. Um dia, ele viu uma cabaça fechada e quis saber o que havia lá dentro. Os mais antigos lhe disseram que o índio que mexesse naquela cabaça sagrada seria duramente castigado. Parece que essas palavras aumentaram ainda mais o desejo do jovem índio. Alguns dias se passaram e ele não tirava da cabeça o desejo de abrir a cabaça. Até que um dia... Todos estavam ocupados e o pequeno índio ficou sozinho diante da cabaça. Nervoso, o indiozinho malinador sentiu um frio na barriga. Suas mãos suavam... “Será duramente castigado...” De uma vez só ele abriu a cabaça. De dentro saíram o fogo e o vento com tanta violência, que mataram o indiozinho. O vento se soltou e se espalhou pelo Universo. Já o fogo... Bem, o fogo também se espalhou no céu. Durante o dia, transformou-se em Kwarahy e ajudou a melhorar nossas roças. À noite, ele se transformou em Sahy, só que nós dormíamos nesse período e Sahy ficava muito sozinho. Então, o fogo resolveu dar-lhe um filho e criou Sahy-Tatawai. Ele não fica o tempo todo do lado do pai, mas podemos vê-los juntos no início da noite e no final da madrugada, brilhando no céu. Sobre a narrativa Esta narrativa explica a origem do Kwarahy/Sol, da Sahy/Lua e do planeta SahyTatawai /Vênus. O fogo, elemento da natureza, é o criador. Mais adiante, a origem da Lua vai ser interpretada também como uma justificação social. As ações narrativas acontecem em um tempo mítico, indeterminado: “no tempo em nós éramos brabos”. Explicação, origem, justificação, tempo mítico. No final do século XIX, Vladmir Propp (1970) construiu um método, revolucionário na época, que tinha por objetivo analisar o conto maravilhoso. Fundamentado na função das personagens, ele simplificou as diferenças entre os textos narrativos a variações de 32 funções. Naturalmente, como ele próprio alertava, algumas narrativas fugiriam um pouco do esquema. Na narrativa Suruí, embora não encontremos exatamente a estrutura proposta por ele, é possível identificar algumas dessas funções: a) Na situação inicial, fala-se sobre a família do indiozinho malinador e as circunstâncias em que ele vivia. II- Impõe-se uma proibição ao herói: ele não podia mexer na cabaça sagrada. III- A proibição é transgredida: o indiozinho mexe na cabaça. IX- É divulgada a notícia do dano ou da carência. Faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora, ou deixam-no ir: o indiozinho morre. Ivânia Neves Corrêa Asas da Palavra 55 XXIX- O herói recebe nova aparência: o indiozinho se transforma num herói mítico, ele libertou o fogo sagrado. Lévi-Strauss(1993), quando estabeleceu seu método de análise dos mitos e criou o conceito de mitemas, além de seguir as orientações da lingüística estruturalista, também considerou este esquema analítico de Propp. E não sem razão isso aconteceu, afinal, normalmente é a partir da identificação das funções dos elementos míticos que se iniciam as análises. Na narrativa, o poder de criação é conferido ao fogo que estava no interior de uma cabaça sagrada. Ele foi trazido ao mundo dos homens através da mediação de um mortal, um herói que transgride ao libertá-lo e acaba sendo duramente castigado. Entre a narrativa Suruí e o mito de criação do Universo dos Desâna, índios que vivem no Estado do Amazonas, podemos estabelecer um paralelo sintagmático. Segundo Reichel-Dolmatoff (1974): “De acordo com o mito e a tradição, o criador do Universo foi o Sol, chamado pagé abé/Sol Pai”. No mito Suruí, o poder de criação é conferido ao fogo. Para os Desâna, o Sol é quem detém este poder. Para os Suruí, o Sol e as estrelas são o próprio fogo. Tata significa fogo. Embora os dois mitos apresentem a presença do fogo e do Sol em sentidos inversos, o fogo cria o Sol e o Sol cria o Universo, a ação imperativa de criação está na mesma estrutura, na mesma armação. O fogo, como elemento criador ou destruidor pode ser encontrado com bastante recorrência na estrutura dos mitos. A narrativa bíblica sobre a Torre de Babel, por exemplo, em que o fogo aparece como elemento destruidor, é um clássico da mitologia cristã. Em oposição ao fogo, também aparece com muita freqüência um outro elemento da natureza, a água. Lévi-Strauss(1991) faz uma correlação entre esses dois elementos e as estações climáticas das baixas latitudes. Ele procura mostrar como vários grupos indígenas associam esses elementos às constelações que marcam as duas estações climáticas. Um outro elemento da natureza que aparece no mito Suruí é o vento. A libertação dele explica o movimento dos astros celestes. Existe uma narrativa Suruí específica que trata sobre este elemento, mas não consegui registrá-la. Embora o mito narre a criação do Sol, da Lua e de Vênus, para minha surpresa, não apareceu nenhuma referência ao incesto. Entre os grupos Tupi, no Brasil, é bastante recorrente o incesto aparecer para explicar o nascimento da Lua. No mito Tembé, Zahy é expulso da Terra em função de ter cometido uma relação incestuosa com sua tia e no céu se transforma na Lua (Corrêa, 1999). Há outras variações dessa mesma narrativa que falam de incesto entre irmãos, entre mãe e filho (Mindlin,1999). Encontrar esse tipo de armação cuja estrutura se paute no incesto não é uma prerrogativa das narrativas brasileiras, nem tampouco está relacionada só à origem da Lua. Basta lembrar o mito grego de Édipo. O incesto é um tema clássico na análise mítica. Militinski (1987), analisando a saga de Handingus, mostra como a condenação do incesto é fundamental para estabelecer a ordem social. A primeira relação amorosa do herói bárbaro é de caráter incestuoso, já que passa a viver com sua irmã que também fora sua mãe de leite. Por isso, sofre incansáveis perseguições e só consegue organizar sua vida pessoal e seu reino, depois que ela morre. 56 Asas da Palavra OUTRA FACE DA LUA, OUTRA FACE DO SOL: OLHARES SURUÍ No mito de origem dos Suruí, Mutum, o primeiro akumaé/homem e Wiratinga, a primeira kusó/mulher, foram os únicos sobreviventes do dilúvio e deram origem ao povo Suruí. As palavras de Arihêra, logo depois de narrar este outro mito, despertaram-me a atenção sobre o que poderia significar o incesto para os Suruí e de como eles liam as narrativas míticas de outras culturas. Ela me disse o seguinte: “E ficou só um akumaé e uma kusó”. Sem que eu fizesse qualquer comentário, foi logo afirmando: “E daí se os irmãos se casaram, na história de vocês como é a Eva?” Segundo Roque de Barros Laraia (1979), no final dos anos 1960, os índios Suruí chegaram a apenas 23 índios e sua extinção era dada com certa. Em fevereiro de 2003, de acordo com os dados do Posto de Saúde da área Indígena Sororó, somavam 269 índios. É bem provável que os artifícios de se valeram para reorganizar sua sociedade tenham passado pela justificação implícita nas palavras de Arihêra. A crítica de Arihêra em relação ao mito cristão remete ao posicionamento de Marshal Sahlins, depois de ser criticado por mostrar que os havaianos materializaram a figura de um deus nativo na figura de um marinheiro inglês no século XVIII, o Capitão Cook (Sahlins, 1999). Segundo o seu principal crítico, seria inadmissível os havaianos endeusarem um inglês. Ele estaria, portanto, sendo etnocêntrico e, o pior, estaria subestimando a racionalidade dos havaianos. Em resposta, Sahlins(2001) argumenta, fundamentado na teoria de Lévi-Strauss sobre o pensamento humano, que o pensamento mítico não obedece a uma lógica cartesiana e que não existe nem uma hierarquia, nem um sentido de evolução entre o pensamento mítico e o pensamento científico. Para colocar um ponto final na questão, fala sobre a concepção bíblica de Jesus Cristo, a fim de mostrar que o caráter fantástico de que se revestem as narrativas míticas não é uma prerrogativa das sociedades ditas primitivas. Não havia, portanto, razão para se fazer juízo de valor em relação aos havaianos por terem endeusado o Capitão Cook, já que muitas nações européias acreditavam que Jesus Cristo nascera sem ser filho de um pai biológico. Em relação à narrativa Suruí, é provável que tenha passado por um processo de atualização, depois da depopulação vivida pelo grupo. Eles chamam o sol de Kwarahy e sua relação com o fogo é bem explícita, embora na estrutura etimológica da palavra não apareça o sufixo tata. Na constituição lexical da palavra estrela, aparece o fogo: sahy-tata. Os Suruí, assim como os Tembé, não fazem diferença entre planetas e estrelas, portanto Vênus, figura no céu com uma estrela e recebe a denominação de Sahy-Tatawai. Agora, Lua é só Sahy e os Suruí reconhecem que se trata de um astro mais frio. Se o mito de criação da Lua realmente trazia sua armação fundamentada no incesto e houve uma transformação, como é de se supor, provavelmente isso aconteceu em função de uma justificação social. De qualquer forma, ainda aparece na narrativa uma relação de parentesco entre Lua e Vênus. No mito Tembé de criação de Vênus, Zahy-Imiricó, como o planeta é conhecido entre eles, passa a ser a mulher de Zahy, para acabar com a solidão da Lua. Ivânia Neves Corrêa Asas da Palavra 57 Analisando o eixo sintagmático: Sahy (lua) ——— solidão ——— Sahy-Tatawai Zahy (lua) ——— solidão ——— Zahy-Imirikó pode-se perceber que são equivalentes. Então, como explicar que o primeiro eixo do mito Tembé Zahy ——— incesto não apareça entre os Suruí? Lévi-Strauss afirma que os grupos indígenas brasileiros normalmente fazem diferença entre o fogo criador e o fogo que se usa para cozinhar. Entre os Suruí, porém, não pude perceber essa diferenciação. Inclusive eles me apontaram as chamas de um fogão à lenha para me explicar o que era uma estrela. Betty Mindlin (2001) faz uma análise da importância que o fogo apresenta para os grupos indígenas brasileiros. Traça um paralelo com o mito grego de Prometeu, que foi duramente castigado por dar aos humanos o fogo divino. Mostra como o fogo representa a vida e recorrentemente aparece vinculado ao sagrado. Citando uma série de mitos em que as pessoas ou animais que roubaram o fogo divino foram castigados. Ela mostra um outro eixo paradigmático: Fogo —— roubo —— castigo. Tanto no mito de Prometeu, como nos indígenas, o ladrão do fogo, que de alguma forma sempre vai conceder a vida, acaba sofrendo algum tipo de punição. Na narrativa Suruí, o herói, o indiozinho malinador, por ter libertado o fogo, paga com sua própria vida. Depois que Arihêra acabou de contar este mito, Api, um outro narrador Suruí importante, pacientemente me explicou que sem o Sol, a vida seria muito difícil. Eles não teriam como plantar. Dentro da Área Indígena Sororó existem algumas pequenas roças individuais e uma bem grande, coletiva. Tanto as pequenas quanto à coletiva iniciam com o processo de queimada. O fogo, quer seja através do Sol, nas queimadas, ou na cozinha, é compreendido pelos Suruí como um elemento fertilizador. Ele cria e mantém a vida. Entre a voz, a letra e Mihó Suruí Quando realizei meu trabalho de campo entre os Suruí, tive a oportunidade de coordenar um projeto educativo. Uma das atividades didáticas era uma oficina de histórias Suruí. No primeiro momento, os índios mais velhos contavam as narrativas, normalmente em Aikewára. Depois, junto com Tymi Kong Suruí, a professora de Aikewára que trabalhava no projeto, os alunos faziam a tradução para a língua portuguesa. Em sala de aula, os maiores desenhavam e escreviam as histórias. Os meninos e as meninas não conheciam as histórias e ficaram muito interessados. Participavam ativamente da oficina. No momento em que eles recontavam, um se antecipava ao outro e até disputavam para ver quem sabia mais detalhes. Mihó Suruí, um índio já 58 Asas da Palavra OUTRA FACE DA LUA, OUTRA FACE DO SOL: OLHARES SURUÍ velhinho, com mais de sessenta anos, era o mais empolgado narrador. Todos os alunos o respeitavam muito. Ele que deu um novo rumo para a oficina. Mihó não se limitava a apenas contar as narrativas. Suas histórias vinham acompanhadas de música e de dança. Desde a primeira história narrada por Mihó, os meninos e as meninas passaram a dançar junto com ele. Na terceira semana do projeto, além de dançar, também já haviam aprendido as músicas e cantavam juntos. Os índios Suruí somavam, em fevereiro de 2003, segundo dados da enfermaria da aldeia, 269 índios. 73 alunos participavam do projeto. Quando eles começavam a cantar e dançar, seus familiares, em algumas oportunidades também vinham participar da dança e as aulas da oficina ganhavam um novo significado. Houve ocasião em que havia mais de 200 índios participando da oficina. Assistia às narrativas se corporificando em minha frente. Música, dança, teatro. Ficava claro, para mim, que o texto oral, representava só uma parte do ritual. Embora meu interesse não estivesse voltado para o caráter performático das narrativas, não pude deixar de registrar como ele é importante dentro da cultura Suruí. O projeto também me ofereceu a oportunidade de estar algumas noites com eles. E, nestas oportunidades havia visibilidade no céu. Naturalmente eles me mostravam o Caminho da Anta, identificando suas constelações. Esses momentos, que aconteceram naturalmente, contribuíram para que eu compreendesse um pouco mais da cosmovisão Suruí. Ás vezes eu estava andando à noite pela aldeia para resolver problemas relacionados ao projeto e lá um dos índios mais velhos me mostrava alguma coisa no céu. O céu noturno, olhado de dentro da aldeia, devido aos baixos níveis de poluição sonora, parece estar mais perto da Terra. Para olhos acostumados aos céus urbanos, a quantidade e o brilho das estrelas causa estranhamento. Na primeira vez que pude ver o céu da aldeia, fiquei um tanto impressionada, mas depois, devido à intimidade com que os índios mais velhos tratavam as estrelas, experimentei uma breve sensação de também estar no Caminho da Anta. REFERÊNCIAS 1970 BAULDUS, Herbert. Tapirapé: tribo Tupi no Brasil Central. São Paulo: Nacional /EdUSP, CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. São Paulo/Brasília, UNESP, 1998. _____. O Índio e o Mundo dos Brancos. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília. / São Paulo: Pioneira, 1981 CASTRO, Viveiros de . Araweté, os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986 CORRÊA, Ivânia et al. O Céu dos Índios Tembé. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1999. 1ªed. Ivânia Neves Corrêa Asas da Palavra 59 DUMÉZIL, Georges. Do mito ao romance. São Paulo: Matins Fontes, 1992. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. _____. O Saber Local. Petrópolis : Vozes, 1998. GONÇALVES, GUSDORF, George. Mito e Metafísica. São Paulo: Convívio, 1979 LARAIA, Roque de Barros; DAMATTA, Roberto . Índios e castanheiros : a empresa extrativista e os índios no Médio Tocantins. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1979. (Estudos Brasileiros, 35) 2ªed. _____. Tupi: índios do Brasil atual. São Paulo: FFLCH/USP, 1986 (1972) LÉVI-STRAUSS. Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993 LÉVI-STRAUSS. Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993 LÉVI-STRAUSS. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976 (1962) LÉVI-STRAUSS. Mitológicas: O Cru e o Cozido. São Paulo: Brasiliense, 1991(1971) MASTOP-LIMA, Luíza de Nazaré. O tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e identidade étnica. Dissertação de mestrado. Belém-Pará, 2002 MINDLIN, Betty. Moqueca de Maridos. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Ventos, 1997. MINDLIN . Terra Grávida. Rio de Janeiro: Record, Rosa dos Ventos, 1999. MINDLIN . O jogo e as chamas dos mitos. Estudos Avançados 44. São Paulo: USP, 2202 MIELIETINSKI E.M. A poética do mito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. PROPP, Vladimir – Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro : Forense-Universitária: 1970 (1884) RIBEIRO, Berta G. et KENHÍRI, Tolamãn. 1987. Chuvas e Constelações: Calendário Econômico dos Índios Desâna. Ciência Hoje 6 (36): 26-35. Rio de Janeiro: SBPC. SAHLINS. Marshall. Como Pensam os Nativos. São Paulo: EdUSP, 2001 SAHLINS . Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorje Zahar, 1999 REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo. Amazonian Cosmo: the Sexual and Relligius Symbolism of the Tukano Indians. Chicago: The University of Chicago,1974 RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Brasil / Sudeste do Pará –Tocantins. São Paulo: CEDI,1985 VIEIRA, Fernando, Identificação do Céu. Rio de Janeiro: Imprensa da Cidade do Rio de Janeiro, 1996. 60 Asas da Palavra Asas da Palavra 61 CULTURA POPULAR E CULTURA ESPE(TA)CULAR José Guilher me dos Santos Fer nandes 1 Universidade Federal do Pará É boi dos cabeçudos, cabeçudos de Odivelas Correndo pela rua, oi pula pela Traz o fogueiro, traz o fogueiro (Lá vem o faceiro, lá vem o faceiro) Tinga mamãe tintinga Tinga mamãe tinga2. As manifestações da cultura popular têm sido fonte de permanente inspiração e experimentação da chamada cultura “artística”3, de certo modo, mas também têm sido objetos para a consecução dos intentos da indústria cultural4, dessa feita meramente como produto. Há como que uma espécie de espelhamento, por parte das culturas do “alto”, a partir das manifestações dos subalternos, que lembra o que Jacques Lacan identificou como a “fase do espelho”: Segundo J. Lacan, fase da constituição do ser humano que se situa entre os seis e os dezoito meses; a criança, ainda num estado de impotência e de incoordenação motora, antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio da sua unidade corporal. Esta unificação imaginária opera-se por identificação com a imagem do semelhante como forma total; ilustra-se e atualiza-se pela experiência concreta em que a criança percebe a sua própria imagem num espelho5. Doutor em Literatura e Cultura. Professor da Universidade Federal do Pará – UFPA. Belém/Pa. Out/04. Fragmento da música Odivelas beat, do compositor Toni Soares, lançada no CD da Primeira Bienal Internacional de Música de Belém, realizada no período de 14 a 30/06/2000, pela Prefeitura Municipal de Belém. 3 Considero cultura artística o mesmo que Alfredo BOSI intitula cultura criadora individualizada, isto é, “a cultura criadora individualizada de escritores, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, cineastas, enfim, intelectuais que não vivem dentro da Universidade, e que, agrupados ou não, formariam, para quem olha de fora, um sistema cultural alto, independentemente dos motivos ideológicos particulares que animam este ou aquele escritor, este ou aquele artista”(In: Dialética da colonização. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.p.309). Ao lado da cultura erudita, da cultura popular e da cultura de massas, esse sistema cultural dos artistas comporia um sistema mais amplo, a cultura brasileira, segundo o autor. A cultura criadora ou artística teria a marca da autoria, por isso individualizadora, e estaria ou não afeta a uma instituição: “A literatura, ou a música, ou a pintura, ou o teatro estão e não estão dentro das instituições sociais, na medida em que vivem, ao mesmo tempo, tempos diversos e não raro conflitantes, como o tempo corporal da sensibilidade e da imaginação e o tempo social da divisão do trabalho”(Idem, p.343). 4 Mesmo não sendo indiferente referir-se à cultura de massas e indústria cultural, vou considerar que haja sinonímia. Em ambos os casos, o que marca é o consumo de uma cultura em larga escala, independente de qual público alvo em uma sociedade o consuma, uma vez que tal cultura é produzida em série, como em uma linha de montagem industrial (daí se questionar se cabe falar em cultura de massas ou em indústria cultural, nesse caso). O termo foi cunhado pelos teóricos da Escola de Frankfurt, referindo-se o termo “indústria à padronização e à pseudoindividualização, ou diferenciação marginal, dos artefatos culturais (por exemplo, filmes de westerns para a televisão ou música de cinema) e à racionalização das técnicas de promoção e de distribuição (...). Adorno tentou mostrar como os produtos desta ‘indústria’ simplesmente reproduzem e reforçam a estrutura do mundo de que as pessoas procuram se evadir, na medida em que fortalecem a convicção de que os fatores negativos da vida são devidos a causas naturais ou ao acaso, promovendo assim um senso de fatalismo, de dependência e de obrigação”(In: BOTTOMORE, Tom (Editor). Dicionário de pensamento marxista. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1988. p.130) 5 LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise. Trad. Pedro Tamen. São Paulo: Martins Fontes,1992. p.176. 1 2 62 Asas da Palavra CULTURA POPULAR E CULTURA ESPE(TA)CULAR Resguardadas as proporções e especificidades, há uma certa similaridade entre a teoria psicanalítica lacaniana e o que ocorre na relação entre a cultura popular, de um lado, e a cultura artística e a indústria cultural de outro. Isto quer dizer que, quando os componentes da cultura popular são matrizes para outras formas de manifestação da cultura, tenho observado que esses elementos concorrem para novas manifestações, prioritariamente de duas naturezas: uma propriamente especular e outra com o caráter acentuadamente espetacular. Por mais que haja uma distinção de função e finalidade, o processo que gera a cultura especular e a cultura espetacular, a partir do popular, é semelhante, senão com a mesma gênese, que se bifurca apenas no tocante à sua circulação e troca. Ou seja, nos dois casos ocorre um princípio de unificação imaginária que busca identificações entre a imagem, ou elementos, da cultura popular e as novas formas nascentes, levando a crer que exista uma extensão irrestrita entre elas, tal qual a criança, em Lacan, busca a unidade corporal. Mas esquece-se que a nova “imagem”, as novas formas, não são o “mesmo” anterior e sim um “outro”, acrescido ou reduzido, isto é, no deslocamento de uma realidade à outra, na saída de sua condição primeira de atrelamento às classes subalternas, a “nova” manifestação da cultura pode até ser uma referência à cultura popular, mas por certo, tal qual a imagem no espelho é invertida, se constitui em outra forma. Daí decorre o segundo ponto a considerar nesse processo de identificação. Por estarem descoladas da forma primeira (a cultura popular), essas novas formas, constituídas a partir da experiência das classes subalternas, não mais se constituirão em experiência única dos subalternos, pois seu uso e finalidade poderão ser diversos aos que regeram a origem no meio popular. Situação e condição muito parecida com a que percebeu BENJAMIN no ensaio “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”, acerca do sentimento do intérprete cinematográfico com relação à sua própria imagem captada pela câmera: Este sentimento se assemelha, desde logo, ao que todo homem experimenta quando se olha no espelho. Mas, agora, sua imagem no espelho dele se separa e pode ser transportada (...). Diante do aparelho registrador, ele sabe que, em última instância, é com o público que se liga. Este mercado, no qual ele não vende apenas sua força de trabalho, mas sua pele e seus cabelos, seu coração e seus rins, no momento em que o ator lhe presta um trabalho determinado não mais pode imaginálo, do mesmo modo como sucede com um objeto qualquer produzido numa fábrica6. Quer dizer que a cultura popular e seus intérpretes são como o ator que, desde então, observa sua imagem não mais a ele ligada umbilicalmente e sim unicamente como o produto que, em alguns casos, não faz a mínima alusão à sua origem, como “um objeto qualquer produzido em uma fábrica”. Mas não serei tão fatídico: há casos e casos. Como já me referi, o procedimento copista e criador, de certo modo, da cultura artística e da indústria cultural, se se assemelha por estes aspectos, se distancia quanto ao uso e finalidade do novo produto. No tocante à indústria cultural, ou cultura para as massas, o que ocorre é a criação de um produto com a finalidade da espetacularização, mediante 6 In: COSTA LIMA, Luiz (Org.). Teoria da cultura de massa. São Paulo : Paz e Terra, 2000. p. 238-239. José Guilherme dos Santos Fernandes Asas da Palavra 63 seu uso massivo, construindo-se uma imagem artificial por parte dos fabricantes culturais, que lembra o que BENJAMIN, no aludido ensaio, chama de “culto da estrela” ao lembrar o intérprete cinematográfico: À medida que restringe o papel da aura, o cinema constrói artificialmente, fora do estúdio, a “personalidade” do ator: o culto da “estrela”, que favorece o capitalismo dos produtores cinematográficos, protege essa magia da personalidade, que há muito já está reduzida ao encanto podre de seu valor mercantil7. Portanto, a espetacularização, por seu turno, leva unicamente à construção de uma mercadoria fetichizada, desprendida de suas condições de produção e de seu contexto de origem, como se fosse dádiva “divina” (daí a magia da personalidade) e fenomênica, longe da história social e cultural de seu acontecimento, nos moldes do folclore turístico, do new age ou do flash back da world music, dos festivais diversos e inimagináveis, enfim, dos produtos enlatados a serem consumidos em larga escala e que por isso são fabricados em número crescente e pasteurizados para racionalizar e poupar esforços desse tipo de indústria, com o fim último de alienação. Quanto à cultura artística, seu uso e finalidade é um tanto quanto diferente; principalmente em seu viés mais clássico, a arte pressupõe uma recepção menos coletiva , não tão massiva, com finalidade contemplativa e sentimental por parte do homem, sentimento esse só alcançado por um público restrito que pode fruí-la por ser conhecedor de sua linguagem específica, referendada pela autoridade e competência de quem determina o que seja ou não arte: o crítico, o historiador da arte, os produtores culturais dessa manifestação cultural específica. Além do mais, existem locais e meios específicos em que a arte pode ser apresentada: cinemas, museus, teatros, livrarias especializadas, salas de concerto musical,etc. Virtualmente, a cultura popular continua presente nas novas formas da cultura artística, seja em um ritmo, em um traço ou forma plástica, na fotografia de uma paisagem ou pessoa que remete ao meio popular, em um enredo de filme baseado na cultura dos subalternos; só que ocorre agora que sua produção ou recepção está invertida, como em um espelho, mediada por um contexto diferenciado: em uma palavra, houve a elitização em seu acesso. É justamente quanto ao acesso que é necessário nos centrarmos para entender as convergências ideológicas entre indústria cultural/cultura de massas e cultura artística e a relação destas com a cultura popular, em especial quanto à recepção. Vale a pena retornar a BENJAMIN: Como facilmente se percebe, no fim das contas, aqui se reencontra a velha lamentação: as massas buscam diversão, mas a arte exige recolhimento. É um lugar comum (...). Para traduzir a oposição entre diversão e recolhimento poder-se-ia dizer o seguinte: quem se recolhe diante de uma obra de arte é envolvido por ela, penetra nela tal como o pintor chinês que, segundo a lenda, perdeu-se na paisagem que acabava de pintar; no caso da diversão, ao contrário, é a obra de arte que penetra na massa8. 7 8 BENJAMIN, idem, p.239. Idem, p. 250-251. 64 Asas da Palavra CULTURA POPULAR E CULTURA ESPE(TA)CULAR O maniqueísmo instalado por essa dicotomia faz com que não possamos perceber que recolhimento/concentração e diversão podem ser atitudes complementares senão duas faces da mesma moeda, tanto em uma ótica mais atual da arte — o cinema, segundo BENJAMIN, responde por essa atualidade — , que nos leva a reconceituá-la, quanto na atitude dos usuários da cultura popular: neste caso, é o meu ponto de vista, uma vez que o teórico alemão não trata da cultura popular no sentido que esta possui nas chamadas culturas das populações tradicionais e periféricas. Quero dizer que o “homem que se diverte” é capaz de adquirir hábitos e fruir; como nos diz BENJAMIN; por isso, a arquitetura tem uma longa história por seu modo de ação não ser a mera contemplação mas também a utilidade: “Há duas maneiras de fruir um edifício: pode-se utilizá-lo e pode-se contemplá-lo. Em palavras mais precisas, a fruição pode ser tátil ou visual”9. Portanto, arquitetura e cinema, ao conjugarem sensações visuais e táteis, concentração e diversão, apontam para um público diferenciado daquele especialista do capitalismo, mas que não deixou de se especializar, porque a mobilização de diferentes modos de percepção, na arquitetura e no cinema, levaram-no a adquirir novas formas de recepção. Tratando especificamente do cinema, nos diz BENJAMIN: “O público das salas escuras é indubitavelmente um examinador, mas um examinador que se distrai”10. Em meu entender, a cultura popular,como o cinema e a arquitetura para BENJAMIN, realiza a conciliação entre concentração e diversão. Quem força o separatismo é a alienação da indústria cultural e o elitismo da cultura artística, bem como a burocratização do Estado; do mesmo modo, dividem a festa do trabalho, tempo comunitário do tempo industrial, trabalho manual do trabalho intelectual. Em suma, separam-se classes hegemônicas e classes subalternas, utilizando-se, para tanto, de instrumentos e modos que não aparentam a coerção e o uso da força. Para uma dominação mais efetiva há a necessidade de se estabelecer a hegemonia, isto é, realizar a criação e a manutenção de estilos e concepções de mundo de ampla aceitação (bom senso), que naturalizam a dominação como a mais justa e a melhor saída para a harmonização da sociedade como um todo. Esta percepção dicotomizada da realidade é um dos meios de manter a hegemonia, impedindo que reviravoltas na História venham a acontecer pela transformação na percepção do público. Ao imputar a contemplação à arte e a diversão às massas, se estabeleceu um valor canônico para cada uma delas, segundo BENJAMIN: valor de culto, relativo à “auratização” (isto é, a originalidade, o aqui e agora da tradição artística) da obra de arte, e o valor de exposição, relativo, no extremo, à massificação da obra de arte pela indústria cultural (neste caso, quando a arte sai de sua condição ritualística, de uso, e alcança a condição de valor de troca, como realidade capaz de ser exposta). Esse separatismo possibilita uma melhor e mais ampla dominação, que cria a ilusão de uma necessária e irremediável presença do poder estatal na sociedade, enquanto “tutor” da cultura. Ao indagar ao Bau sobre quais as dificuldades para se sobreviver em São Caetano, mesmo a despeito de uma cultura “rica” e singular, respondeu-me: 9 Idem, p. 251. Idem, p.252. A meu ver, tanto no espectador do cinema quanto no realizador da cultura popular, há um sentido comunista de encarar o mundo, conforme MARX e ENGELS já haviam se referido: “na sociedade comunista, onde cada um não tem uma esfera de atividade exclusiva, mas pode aperfeiçoar-se no ramo que lhe apraz, a sociedade regula a produção geral, dando-me assim a possibilidade de hoje fazer tal coisa, amanhã outra, caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo meu desejo, sem jamais tornar-se caçador, pescador, pastor ou crítico” (In: Ideologia alemã.11.ed. São Paulo : Hucitec, 1999. p.47). 10 José Guilherme dos Santos Fernandes Asas da Palavra 65 Então eu acho que a cultura nossa, a nossa cultura, ela é ... um pouco PRECÁRIA em termos de organização. Quer dizer, a gente depende muito da Prefeitura, eu digo assim, nós dependemos muito da Prefeitura, quer dizer, o pessoal pensa assim: só vou fazer isso aqui! Se a prefeitura não me ajudar eu não faço mais. A maioria do povo de São Caetano, por exemplo, tu faz um passeio, tu quer que a Prefeitura te dê ônibus, entendeu. Se tu faz uma outra coisa, tu vai, o prefeito tem que te dar também. Então eu acho que isso, do meu ponto de vista, eu acho que se tu quiser uma coisa, eu não tenho que depender só da Prefeitura, eu tenho que fazer. (...) Então, por isso, eu acho que nossa cultura ela se transforma precária na seguinte maneira, porque a gente depende dos outros. E para o Bau, não só existe a dependência dos de fora do segmento subalterno, como a Prefeitura. Os de fora também são os de outro lugar, os que levam a possibilidade de mudança e de organização desse segmento, como foi o caso ocorrido no Festival do Caranguejo de 2001, quando a Prefeitura dispôs barracas de venda de comidas e bebidas prioritariamente para comerciantes de Belém, supostamente para oferecer mais qualidade: (...) vem de fora querendo só dinheiro de São Caetano, não fica em São Caetano, que não fica aqui em São Caetano. Como aconteceu, né, há pouco tempo a menina dali veio, pegou uma barraca, fez, ganhou dinheiro; no outro dia pegou uma Kombi e foi embora de São Caetano. Quer dizer, levou, não deixou nada, até porque o pessoal que veio, vieram trabalhar com ela, vieram de fora, nenhum de São Caetano. Uma das razões da dominação, não propriamente da cultura popular, mas das classes subalternas — por extensão, implica no uso indiscriminado dessa cultura —, está na alienação promovida pelas classes hegemônicas, seja com a pretensa finalidade de organizar o que os subalternos “não são capazes”, daí os festivais sem fim, seja subtraindo aquilo de próprio do popular, sem mais aludir à fonte primeira. Conversando com o compositor e cantor Toni Soares11, pude entender que essa expropriação do trabalho e da produção tem suas nuanças não só na assumida indústria cultural, no sentido da criação de um produto, mas também na cultura artística, supostamente mais sensível às diferenças culturais e sociais. Comentando sua carreira e sua passagem pelo grupo musical “Arraial do Pavulagem” (do qual, segundo ele, “não saiu, foi demitido”), grupo afamado em Belém por realizar uma música ligada às raízes da cultura popular, disse-me Toni: Então, eu tenho essa preocupação. E no Arraial do Pavulagem eu não sinto que, que ... eu vejo, assim, sempre o Arraial do Pavulagem só o pessoal que tá à frente. Eles trazem elementos da cultura popular pra dentro do trabalho. No meu caso não, eu faço assim: eu quero trazer o pessoal pra fazer o trabalho comigo, que eu acho que é mais original você tá trabalhando com eles. Antonio Fernando Soares Pereira, 42 anos, além de músico e compositor, é coordenador de produção da Rádio Cultura do Pará, sendo também graduado em Educação Artística. A entrevista foi em 26/12/2003, durante o lançamento do CD duplo Belém dos bumbás, resultado de pesquisa de 7 anos, realizada por ele com o apoio da Rádio, a partir de identificação e registro de 20 grupos de bois-bumbás de Belém pela produção do programa musical “Baque Solto”, em que Toni está a frente. 11 66 Asas da Palavra CULTURA POPULAR E CULTURA ESPE(TA)CULAR Sem querer relevar o sentido de originalidade, uma vez que em cultura popular essa questão é menor e talvez sem importância, o certo é que ao trazer amos e músicos de Boi para gravar em estúdio, ou mesmo se apresentar com ele, Toni abre a possibilidade de mercado e trabalho para aqueles que historicamente estão à margem da sociedade, que tão-somente vêem sua cultura usada sem que haja um retorno para eles: O que é que a gente faz? Seu Saturnino só aparecia no mês de junho pra mostrar o Boizinho dele. E eu trazendo ele pra cá — a Cultura tem um programa , o “Baque Solto”, que é todos os sábados. Então, o “Baque Solto” oportunizou pra todos esses grupos de ficarem compondo o ano todo, Guilherme. Esse pessoal só se reunia em maio, pra se apresentar em junho. Com o surgimento do programa, Seu Saturnino tá compondo sempre em cima, compondo direto: — “Seu Toni, eu fiz uma toada aqui.” — “Traga, vumbora ver como é que é.” E a gente já tá misturando com violão, misturando com banjo, tá tocando com o pessoal. O que se pode observar é que qualquer separatismo, de um lado, e generalização, por outro, no estudo e compreensão da cultura popular, é perigoso, a partir do momento que a hibridação e a mistura são componentes inerentes ao popular. Querer ver a cultura popular somente através de seus elementos formais é separá-la de seu maior bem, que é o homem. De outro modo, generalizando-a como um grande pastiche, em que não há diferenças e sim uma tabula rasa, decreta-se a morte da possibilidade de mistura, da criação. E é este o momento em que se pode ter a pretensão de, ao menos, compreender o outro. Toni dizia-me sobre aquilo que pôde aprender em sete anos de convivência com amos de Boi, seja em estúdio durante gravações de seu programa, seja no palco quando decidiu criar um show musical em que eles também se apresentam, “Toni Soares e os Tambores do Livramento”: Guilherme, é como eu tô te dizendo: cada dia que passa, que a gente convive com eles, a gente vai aprendendo mais. Eu aprendo muito. Eu hoje, por exemplo, eu fiz questão de quase nem meter a cara por aqui porque eu acho é que eles é que tem que aparecer (por ocasião do lançamento do CD “Belém dos Bumbas”). Eu acho que a obrigação é chamar todo mundo. E todo dia eu aprendo alguma coisa. Tem dia que eu apanho, né, apanho muito também, porque às vezes eu não sei lidar mesmo com esse tipo de aprendizado. É, entender um senhor desse (aponta para Seu Saturnino Pantoja, amo de Boi que estava presente na entrevista), com a idade que ele tem , é como se tivesse ... hoje eu conheço meu pai, mas eu tô conhecendo Seu Saturnino de uns quatro anos pra cá, né. Seu João Bernardo a mesma coisa, tem a idade do meu pai ele. Então é um homem que eu tô conhecendo há pouco tempo, então todo dia a gente vai convivendo e aprendendo. E eu aprendo muito, rapaz, porque eles ensinam cada coisa pra gente. Primeira coisa que eu aprendi com eles foi a ter PACIÊNCIA. Então é um exercício de paciência ... porque é aquela coisa, a gente já tá no mundo globalizado de tudo, com pressa, né. E com eles não pode ser nada assim. Não pode ser nada assim, tem que ser José Guilherme dos Santos Fernandes Asas da Palavra 67 com calma. Então eu comecei, apanhei, verifiquei e agora tem que ser com calma. Então toda vez que a gente vai fazer um show eu tenho o maior cuidado com eles, de transporte ... o horário deles tem que ser: —”Olha, tem que tá meia hora antes do show.” Aí eles num chegaram, eles moram muito longe. Eu brinco com Seu João Bernardo que ele mora perto de Bragança (cidade distante 200 km de Belém). Sabe, então tem toda essa preocupação de transporte com eles, carregar os tambores, esse negócio ... então, a gente vai apanhando, mas como eu tô te dizendo a gente vai aprendendo. Somente com a reciprocidade da relação entre a cultura hegemônica e a subalterna é que podemos ter a dimensão mais precisa do que as separa. Toni Soares, mesmo com toda a preocupação com os amos de Bois, é taxativo ao dizer que eles “moram muito longe”. Longe de quê? E a distância não vai além do espaço e nos situa entre dois mundos, o centro e a periferia? E a distância não estabelece duas temporalidades, a industrial e a comunitária? Parece haver sempre no discurso de Toni a marcação de EU e ELES, como se ainda não houvesse a mistura de que ele tanto se refere, mistura que vá além da construção musical, rítmica: talvez seja impossível de ocorrer, uma vez que a composição desses mundos é historicamente diferente. No entanto, Toni nos aponta a saída para que esse mundos não entrem em conflito, não se tornem intolerantes: a “paciência”; que é fruto da capacidade de entender o outro. Eis mais uma razão para a aproximação, indiscriminada, dessas realidades, talvez como o caminho para compreendermos a cultura popular, para que esta cultura se faça realmente popular. Porque a condição de risco que esses homens, que fazem a cultura popular, vivem é constante, principalmente por morarem na periferia das cidades e “habitarem” a periferia social, o que pode determinar o seu desaparecimento físico e, conseqüentemente, a extinção, não diria nem a transformação (que seria louvável), de manifestações populares. Toni lembrou, em vista disso, de uma preocupação mais social de seu trabalho, do trabalho realizado com os amos de Boi: É claro que existe a preocupação social com eles também. Porque realmente esse pessoal vive em uma situação meio, sempre de risco. Há pouco tempo o filho de Seu João Bernardo foi atacado de “gangue” (grupos de adolescentes delinqüentes que aterrorizam a periferia de Belém) lá ... lá no Sideral. Então sempre vivem em constante situação de risco. Então, isso aí é a oportunidade de trazer esse pessoal pra trabalhar. A gente tá abrindo frente pra isso daí. E daqui pra frente eu não sei: a gente pode abrir cada vez mais. É importante relevar que a cultura artística pode contribuir para uma releitura das culturas brasileiras, quando não assume uma postura elitista, partindo para a “mistura” criadora. Para tanto, só há uma relação válida e fecunda entre o artista culto e a vida popular: a relação amorosa. Sem um enraizamento profundo, sem uma empatia sincera e prolongada, o escritor, homem de cultu- ra universitária, e pertencente a uma linguagem redutora dominante, se enredará nas malhas do preconceito, ou mitizará irracionalmente tudo o que lhe pareça popular, ou ainda projetará 68 Asas da Palavra CULTURA POPULAR E CULTURA ESPE(TA)CULAR pesadamente as suas próprias angústias e inibições na cultura do outro, ou, enfim, interpre- tará de modo fatalmente etnocêntrico e colonizador os modos de viver do primitivo, do rústico, suburbano12. Sem isso, o máximo que o artista conseguirá é recolher fragmentos de uma cultura para utilizar em seu trabalho, numa relação no máximo fraternal, ou melhor, paternal, achando que é quem vai organizar e planejar o “desvario” do popular em sua obra de arte, talvez única e aurática, o que, evidentemente, caracteriza um saque, nem ao menos um escambo, entre arte e cultura popular. Neste caso, o artista não estará muito longe da indústria cultural por realizar uma expropriação, alienando “quanto pode da sensibilidade e da imaginação popular para compensá-la com um lazer mínimo, entrecortado de imagens e slogans de propaganda”13. De outro modo, é através das diásporas que se fazem presentes no povo, de sua diversidade — e isso caracteriza um “povo”, que a alienação e a elitização penetram e saqueiam. Anilson fez-me refletir sobre essa questão ao dizer que Nem todos, nem todos aqui gostam da brincadeira do Boi aqui em São Caetano. Porque tem muita gente que fala assim:—”Olha, o Boi brinca em uma casa é a mesma música.” Tem muita gente que fala assim pra mim: —”Olha, não vejo nada de estranho, de bom no Boi, porque, porque chega numa casa ALI toca a mesma música, chega na outra a mesma música, mesma brincadeira.” Então tem muita gente que é contra isso: —”Égua, o Boi já vai sair?”, começa a comentar. — “O Boi vai sair?” — “Vai!” Tem muita gente aqui ... a juventude aqui não é muito pra isso aqui. Pouca gente que gosta de brincar no Boi. Eu sou um, eu gosto, eu adoro brincar no Boi. Já me chamaram até de carrapato (RISOS). Não que eu queira que o povo seja uma unidade de vontades invioláveis, que o Tinga seja aceito por todos os odivelenses. A questão principal é que a “riqueza” do povo não faz parte de políticas públicas relativas à cultura como deveria acontecer, de fato, em uma sociedade que se quer democrática, não apenas na Constituição ou nas Leis Orgânicas dos municípios. Enquanto isso não ocorre, o povo serve de massa, verdadeiramente no sentido de ser amorfo e tangido para a melhor direção do consumo gratuito, quando não entram em conflito velado, como no caso do Lúcio14 em relação ao Seu Zé do Lode: (...) tá na mão do Zé do Lode. Mas não foi criado só pelo pai dele. Foi criado por vários pescadores. O finado papai, o finado Tito Pereira ... já morreram quase tudinho ... e BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo : Cia das Letras, 1992. p. 331. Idem,p. 330. 14 Lúcio Alves das Chagas (59 anos) é artesão e pescador aposentado. Filho de um dos prováveis fundadores do Tinga, Murilo Chagas, Lúcio aprendeu desde cedo, com a mãe, a confeccionar as máscaras dos pierrores e suas vestimentas, fazendo, atualmente, miniaturas das personagens que se apresentam no Boi de Máscaras para vender aos turistas. Mora a rua São Benedito, n°16, em São Caetano de Odivelas. Concedeu a entrevista em 06/12/2001. 12 13 José Guilherme dos Santos Fernandes Asas da Palavra 69 todos eles, cada ano passava pra mão dum e agora já não passa mais, só fica ele, não pode permanecer só com um. Agora ele ainda está, ele morrendo eu não sei como é que vai ... vai permanecer esse Tinga. No entanto, Lúcio fica reticente ao ser indagado se assumiria o Tinga: Não, é porque ... é bom e não é. É uma responsabilidade grande. Então a gente tem que tá preparado pra tudo ... preparado mesmo, pra tudo. Penso que a direção para uma aproximação entre teoria e prática, no estudo da cultura popular, para uma práxis de fato e não apenas discursiva, que atenue esses conflitos internos aos segmentos populares, seja a escola: A principal ação do projeto educador, tal como se revela admiravelmente na teoria e na prática de Paulo Freire, é levar o homem iletrado não à letra em si (letra morta ou letal), mas à consciência de si, do outro, da natureza. Essa consciência é o verdadeiro vestibular das Ciências do Homem, das Ciências da Natureza, das Artes e das Letras. Sem ela, o letrado cairá no mundo do receituário e da manipulação15. Creio que essa consciência pode começar pelo povo se reconhecer diverso, retomando o sentido comunitário de sua vida. 15 Idem, p. 341. 70 Asas da Palavra Asas da Palavra 71 A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS Lúcia Tupiassú 1 Bolsista da pesquisa. UNAMA Com a intenção de definir a existência ou não de uma Identidade da Literatura Paraense, propõe-se aqui uma análise de alguns elementos que fazem parte do corpus desta Literatura: onde se escreve, quem escreve, sobre o que escreve e com quais supostos interesses se escreve. Para tal, são analisadas obras de missionários do século XVII e XVIII, com os objetivos de destacar as características marcantes de seus discursos e de buscar entender o porquê dessa forma de expressão. Há uma pretensão de se poder inferir quem seja o habitante local a partir destas visões. Ou seja, deseja-se descobrir como os autóctones são retratados na literatura dos missionários. O principal autor do século XVII a ser estudado é o Pe. Antônio Vieira, com alguns de seus sermões. Sua obra é comparada com a visão de outro padre também do século XVII – o Pe. Yves D’Evreux –, com base em um relato de viagem. O Pe. João Daniel, também missionário jesuíta, é o representante do século XVIII a ser estudado. Dessa forma é possível ter um panorama de como o índio é visto nos dois séculos em questão, quando marcas de paraensidade são compreendidas como estigma de desqualificação do indígena. Aluna do Curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda e bolsista do Projeto Discurso Poético Paraense - UNAMA 1 72 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS 1 - O começo de tudo... Literatura Paraense ou Literatura Amazônica? Esse é um dos questionamentos possíveis de se fazer ao se tratar de Literatura no âmbito regional, amazônico, paraense... Essas, e muitas outras perguntas, fazem parte de um enorme rol de dúvidas que encontramos pendentes ao falar nesse assunto. Então, o que fazer? Tomar como certas e definitivas as opiniões de pessoas experientes no assunto? Satisfazer-se com a incerteza das opiniões divergentes? Deixar sem respostas as polêmicas questões? Não! O mais sensato e coerente a se fazer seria pesquisar o assunto e buscar respostas fundamentadas, não descartando, é claro, nenhuma possibilidade, nenhuma opinião, de quem quer que seja, nem formando conclusões precipitadas a partir de uma ou outra informação obtida. Dessa forma, tem-se a proposta de estudar a identidade do discurso poético paraense, ou a identidade da Literatura Paraense, e, para isso, é necessário voltar aos primórdios da produção literária na região para se poder entender como se deu a “evolução” desta Literatura, desde sua origem até os dias atuais. Portanto, faz-se necessário retornar ao período colonial, que foi quando tudo começou. A descoberta do “novo mundo” trouxe muitas mudanças ao cenário mundial. A existência de terras tão ricas materialmente e com habitantes tão diferentes do que se tinha até então era algo surpreendente para os europeus. Esse “novo mundo” representava o ganho de mais terras, de mais almas a serem convertidas ao cristianismo, de um maior poder político, enfim. Com a vinda de colonizadores para a região amazônica, vieram, também, missionários, viajantes, além dos demais imigrantes, que iniciaram o processo de ocupação do norte do território brasileiro. Todas essas pessoas entraram em contato com o então habitante local – o índio. E esse contato se deu de diferentes formas, de acordo com os interesses diversos. Por exemplo, os colonizadores, com intuitos meramente materiais (extrair riquezas naturais) acabavam por apenas explorar a mão-de-obra indígena; os viajantes, em sua maioria, viam os índios como seres excepcionais e surpreendiam-se com a sua diversidade cultural (além, é claro, de espantar-se com a riqueza da região); já os missionários os julgavam como almas que precisavam ser salvas, impondo, por isso, a eles, uma cultura nova e diferente – a européia, ocidental – anulando, assim, a cultura nativa. Estes são alguns exemplos de quão complexo é estudar a situação do amazônida, quando da chegada do estrangeiro na região. E, certamente, tudo isso interfere na forma como se escreve na e sobre a região. E, ainda, tudo isso exerce influência sobre a cultura das gerações posteriores, que formam a cultura amazônica. Daí a necessidade de se atentar para a forma como se dá esse início de colonização, que é a base do que se tem hoje. Lúcia Tupiassú Asas da Palavra 73 2- Os autores estudados Passemos, então, a quem produz a literatura da época. No período em questão, quem escrevia, eram os missionários e os viajantes2. Cada um deles – com interesses bem diferentes entre si – tinha sua visão diferenciada sobre o local, a região, os habitantes e cultura destes. No caso dos missionários, sem dúvida o maior expoente que se pode tomar como base para estudo é o Pe. Antônio Vieira, jesuíta que veio para o Brasil possivelmente em 1613/14, onde viveu por mais de 50 anos, dos quais aproximadamente oito foram no Pará e Maranhão. O Pe. Antônio Vieira é reconhecido por sua retórica impecável, por ser um profundo conhecedor da língua portuguesa, por sempre ter sabido utilizar a língua de forma impressionantemente persuasiva... e bela. Os muitos sermões escritos por ele, os “papéis” – como são denominados alguns outros escritos – e demais documentos são a demonstração da magnitude de sua forma de expressar-se. Além disso, é muito marcante a visão que o Pe. Vieira tem sobre o índio e a cultura indígena, daí ele ser figura importantíssima para o estudo da produção literária local. Pode-se afirmar que o Pe. Antônio Vieira foi um dos mais importantes precursores da literatura de temática paraense, se lidas e analisadas as cartas nas quais faz primorosas descrições de cenas amazônicas. Para se ter uma análise mais completa dessa produção, faz-se necessário contrapor, comparar diferentes visões sobre um mesmo assunto. Por isso, outro padre que também esteve catequizando índios durante o século XVII na região amazônica foi selecionado e estudado: o Pe. Yves D’Evreux, missionário francês, capuchinho, que passou dois anos viajando pelo Norte do Brasil em meados do século XVII. O Pe. D’Evreux, por meio de sua obra, demonstra ter um olhar bem diferente daquele que o Pe. Vieira imprime sobre os autóctones amazônicos. Analisando os escritos do século XVIII, um dos maiores expoentes que surge é o Pe. João Daniel, missionário também jesuíta, nascido em 1737, em Portugal. O Pe. Daniel, que esteve no Brasil por 16 anos (de 1741, quando chegou ao estado do Maranhão, até 1757), foi um estudante muito aplicado. O Pe. Daniel escreveu dois volumes do que chamou de “Tesouro Descoberto no Rio Amazonas”3, que, desde o título, possibilita aos leitores perceber a grande admiração do autor pelas riquezas amazônicas, estando incluídas nessas “riquezas”, desde a suntuosidade da floresta até a diversidade cultural de seus “surpreendentes” habitantes. Vale lembrar que aqui se está fazendo referência apenas à escrita considerada padrão na cultura ocidental. Se ampliado o conceito de escrita, seria necessário considerar a forma de escrita utilizada pelos índios que tinham, sim, sua forma específica de linguagem escrita – simbólica e icônica (como, por exemplo, as pinturas corporais, os desenhos de imagens, figuras, objetos ou animais diversos em pedras ou rochas, etc.) 3 DANIEL, Padre João. Tesouro Descoberto no Rio Amazonas. Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976 2 74 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS 3- As diferentes visões no século XVII Para se ter uma noção inicial de como era visto (e, conseqüentemente, tratado) o habitante local, pode-se partir dessas duas estrofes de um poema de Humberto de Campos, que ilustra muito bem a relação índio x colonizador, quando da chegada do segundo na região: “Rezas pecando. Com pavor das gentes, Se de contas na mão passas o dia, Matas tupinambás inocentes. Para a conquista vinhas dar a imagem: Vinhas clamar contra a selvageria, Quando tu, português, eras selvagem!” 4 Nestes versos, Humberto consegue traduzir com extrema lucidez a forma como era caracterizado o índio (como “selvagem”, com toda a pejoratividade semântica que traz o termo) e a forma como ele era tratado (eram escravizados, inferiorizados e mesmo mortos impiedosamente). Partindo para comparação das óticas especificas dos missionários, há necessidade de se deixar bem evidente a diversidade de ordens religiosas que para cá vieram durante o período colonial, como está representado no mapa: A partir deste mapa da região amazônica no período colonial, que documenta as divisões do espaço entre as missões, percebe-se como era grande o número de ordens católicas e como elas tinham seu espaço bem delimitado entre si. Com isso, podemos Trecho de CALDEIRA CASTELO BRANCO, de Humberto de Campos. Extraído de MARANHÃO, Haroldo. Pará, Capital: Belém – Memórias & Pessoas & Coisas & Loisas da Cidade. Belém: Supercores, 2000, p. 33. 4 Asas da Palavra 75 Lúcia Tupiassú imaginar quantas divergências havia entre elas, ao menos quanto à forma de atuação, a forma de tratamento dos índios etc. Esse talvez seja um dos motivos pelos quais há diferenças na maneira como os dois padres escolhidos enxergam os índios, suas crenças, hábitos, cultura. Passando às visões de cada autor, podemos ilustrar a do Pe. Antônio Vieira com o seguinte trecho: “Eram nações bárbaras e incultas, eram nações feras e indômitas; eram nações cruéis e carniceiras, eram nações sem humanidade, sem razão, e muitas delas sem lei, que por meio da fé e do batismo se haviam de fazer cristãs. E para apascentar e amansar semelhante gado; para doutrinar e cultivar semelhantes gentes, é necessário muito cabedal de amor de Deus; é necessário amar a Deus” 5 Desde as palavras utilizadas por Vieira em sua obra, os adjetivos com que caracteriza os habitantes, pode-se perceber a pejoratividade com que estes são descritos. Para Vieira, a cultura indígena não era cultura e seus hábitos, por serem incomuns para os europeus, eram considerados abomináveis. Os nativos são considerados como seres desalmados, verdadeiros castigos para quem os tivesse que doutrinar, tamanha seria a dificuldade em fazê-lo. Além disso, são comparados a animais irracionais (gado). Não se deve imaginar, porém, que o Pe. Vieira, por ter esta visão de certa forma preconceituosa sobre os índios seja um definitivo “vilão”. Na verdade ele era um ambíguo agente da colonização; um dos maiores defensores dos nativos, que muito verberou em benefício destes, segundo o que julgava ser-lhes o ideal. Vieira refletia, representava, apenas, uma ótica construída socialmente por toda a cultura colonizadora, predominante, que ia de encontro à cultura amazônica. Já a ótica do Pe. Yves D’Evreux pode ser percebida a partir do seguinte trecho, em que o autor descreve com muito boa impressão o empenho dos índios em aprender, em conhecer coisas novas: “São mui curiosos os selvagens de saber novidades, e, para satisfazer tal desejo, os caminhos e a distância das terras, por maiores que sejam, lhes parecem curtos (...); prestam-vos toda a sua atenção, escutando o que disserdes durante o tempo que vos parecer, sem enfado e em silêncio, a respeito de Deus ou de qualquer assunto (...)” 6 Em vários momentos de sua obra, o autor deixa transparecer uma grande admiração por aqueles seres diferentes, sim, mas para o europeu necessariamente inferiores. 5 6 Trecho do Sermão do Espírito Santo, do Pe. Antônio Vieira, pregado na cidade de São Luís do Maranhão. Trecho de D ’EVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil – feita nos anos de 1613 a 1614. São Paulo: Siciliano, 2002, p.120. 76 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS Não que D’Evreux chegasse a equivaler índios e portugueses, menos inda, inferiorizar estes em relação àqueles, mas percebe-se que o índio não é visto, pelo capuchinho, como um ser definitivamente subumano, quase irracional, indolente ou preguiçoso. Mas sim como pessoas com uma cultura muito forte, seres muito dedicados, sensíveis e inteligentes. 3.1 A confirmação das metáforas Outra forma de se confirmar e comparar as percepções dos dois autores do século XVII é por intermédio das metáforas utilizadas por eles em suas obras. Ambos – e principalmente o Pe. Vieira – utilizam muito este recurso. Uma das metáforas mais marcantes da obra do Pe. Vieira é quando ele compara a região amazônica (com suas muitas tribos, cada uma com seu dialeto específico e diferente dos demais) com a Torre de Babel, onde havia 72 línguas diferentes. O autor destaca que, no caso bíblico, a existência das muitas línguas era um castigo de Deus aos homens, que não eram bons. Analogamente, a existência de muito, mas muito mais de 72 línguas na Amazônia seria também um castigo, só que em pior grau, podendo-se concluir que nessa havia ainda mais barbaridade que na Torre de Babel. Outro exemplo é quando, em um de seus sermões, Vieira fala do castigo de São Tomé, contando que, após ter passado muitos anos pregando em uma aldeia de índios, São Tomé teria ido embora e, anos depois, ao retornar ao local, pôde perceber que nada havia ficado impressionado nos nativos daquilo que ele tinha ensinado, nem um vestígio sequer, apesar de, até nas pedras, supostamente na Gávea (Rio de Janeiro), terem ficado as marcas das pegadas do santo. Ou seja, com isso, o Pe. Vieira insinua que é mais difícil ensinar os índios que deixar marcas em uma pedra. Os índios são comparados a meros serem inanimados, como as pedras, o que é verificado no trecho “Nas pedras acharamse rastos do pregador, na gente não se achou rasto da pregação” 7. Enquanto isso, na obra de D’Evreux, os índios são comparados a aldeões franceses, no momento em que o autor relata sua admiração pelos índios, por sua capacidade de aprender/apreender, por sua imensa dedicação e aplicação, afirmando achar que esses nativos seriam mais fáceis de ensinar, de catequizar, de civilizar, que alguns aldeões da França, por estes franceses estarem impregnados de barbaridade e serem avessos à civilização. “Tenho para mim que são mais fáceis de serem civilizados do que os aldeões de França, por ter a novidade não sei que influência sobre o espírito, a fim de excitá-lo a aprender o que ele vê de novo e lhe agrada.” 8 7 8 Trecho do Sermão do Espírito Santo, do Pe. Antônio Vieira, pregado na cidade de São Luís do Maranhão. Trecho de D ’EVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil – feita nos anos de 1613 a 1614 . São Paulo: Siciliano, 2002, p.116. Asas da Palavra 77 Lúcia Tupiassú 4- A visão no século XVIII Passando para o século XVIII, com o Pe. João Daniel, pode-se perceber que o missionário demonstra ter uma visão sobre os índios que poderia ser classificada como intermediária entre os demais missionários estudados, se analisada quanto à forma pejorativa ou não de referir-se aos indígenas. Um trecho que ilustra essa visão: “Os habitadores e naturaes índios do grande Amazonas são gente também disposta, e proporcionada, como as mais da Europa, menos nas cores, em que muito se distinguem. Nem pareça supérflua esta advertência, de que são gente: porque não obstante a sua boa disposição, e fisionomia, houve europeos, que chegaram a proferir que os índios não eram verdadeiros homens, mas só um arremedo de gente, e ua semilhança de racionaes; ou ua espécie de monstros, e na realidade geração de macacos com visos de natureza humana.”9 Com essas palavras, o Pe. Daniel demonstra não concordar com muitos de seus conterrâneos ao falar sobre os nativos do “novo mundo”, chegando a haver, mais uma vez, comparação entre estes habitantes com os europeus, ou “as mais da Europa”, como se refere o Pe. Daniel aos “nobres” europeus. Isso, sem esquecer que, em muitos trechos de seus registros, manifesta em pensamento de autêntico colonizador (discriminador e inferiorizador) acerca dos povos “selvagens” do Brasil. 5- Até os dias de hoje... Apesar de ter havido mais de uma forma de “enxergar” os índios quando estrangeiros vieram para a Amazônia, o que se pode perceber é que houve uma predominância de uma das visões sobre as demais. Certamente, a que preponderou foi a mais pejorativa. Isso não se deve, sem dúvida, ao merecimento dos nativos, ou seja, amazônicos, vistos como inferiores por não serem como o europeu desejava, ou seja, europeus também e “civilizados”. Isso é devido ao fato de essa ter sido a postura assumida por esses estrangeiros que vieram para cá; e ao fato de essa ser a visão mais condizente com a idéia que era estabelecida pelos europeus, ao redor do mundo, de que a cultura européia era superior às demais e que todos os povos deveriam submeter-se a ela. No caso específico que se está analisando, ou seja, no âmbito comparativo entre os dois autores em questão, o que se tem é uma disputa um tanto desigual. No século XVII: de um lado, um padre (Vieira) que passou muitos anos em um mesmo local, teve contato com um número impressionante de índios e tribos e que é reconhecido mundial- 9 Trecho de DANIEL, Padre João. Tesouro Descoberto no Rio Amazonas. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976. Vol.1. 78 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS mente por sua grandiosa sabedoria e surpreendente aptidão com as palavras, com um discurso, portanto, poderosíssimo. De outro, um padre (D’Evreux) que passou poucos anos na região, que teve contato apenas com um número restrito de tribos indígenas e que – apesar de não se conseguir contestar, de forma alguma, o poder se seu discurso parenético – não se tornou figura de destaque na literatura universal. Isso talvez tenha tido alguma interferência no processo de fixação das idéias desses missionários na posteridade. E em relação ao século XVIII, tem-se um padre (Daniel) com significativo destaque, que não chegou, no entanto a interferir de forma representativa na maneira como eram vistos e tratados os autóctones amazônicos. Independentemente, porém, de se saber os reais motivos que levaram a essa predominância de apenas uma visão, o que percebemos hoje é uma certa deturpação de valores quando se fala em cultura amazônica, paraense, indígena. Por julgarem, ainda, infelizmente, uma característica negativa, muitos paraenses ou amazônidas hoje ainda relutam em admitir ou em reconhecer a ascendência predominantemente indígena na cultura amazônica, apesar da notoriedade com a qual essa herança se afigura.10 Outra conseqüência desse processo discriminatório que se estabeleceu desde o período colonial até os dias atuais é a ênfase no exotismo que é marcado em quase tudo o que é proveniente da cultura amazônica e indígena: ocorre com freqüência uma visão preconceituosa segundo a qual só se deve falar em Amazônia, para ser Amazônia, vinculando-a às tribos e aos nomes indígenas, aos mistérios de sua sabedoria, aos hábitos vistos como excêntricos, à riqueza de biodiversidades, etc. 6- Exótico x Não-exótico Nesse contexto, é pertinente destacar uma diferenciação entre o “exótico” e o “não-exótico”, que muitas vezes são confundidos ou mal interpretados. Segundo o Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, de Celso Pedro Luft, “exótico” significa 1. Estrangeiro; de fora. 2. Esquisito; extravagante. Dessa forma, ao se analisar a cultura regional (amazônica ou paraense), os fatores ou características que destoam desse contexto é que devem ser considerados exóticos, e não os próprios elementos constituintes dessa cultura. Na prática, o que acontece é o contrário, pois as características locais são “avaliadas” ou definidas a partir de comparações feitas por quem vem de fora e para quem tudo – ou quase tudo – em nossa cultura regional é estranho, esquisito, extravagante. Em conseqüência disso, há uma espécie de padrão (que pode ser comumente estabelecido de forma talvez inconsciente) nas obras na/sobre a região, de forma que É inegável que nossos hábitos alimentícios, crenças, valores, aspectos físicos etc. estejam completamente impregnados da cultura indígena. As feições características da maioria dos paraenses, a maior parte dos pratos típicos da região, entre outras coisas, são a prova disso. 10 Asas da Palavra 79 Lúcia Tupiassú sempre que se fala sobre algo peculiar à Amazônia ou à cultura amazônica, fala-se de forma a exaltar os aspectos exóticos (em relação ao não-amazônida), como se apenas dessa maneira houvesse validade falar em tais peculiaridades. Isso não é um grande equívoco? Um bom exemplo de que não necessariamente se tem que destacar exotismos ao se falar do que é amazônico/paraense é o poema “Ver-O-Peso”, do escritor paraense Max Martins, transcrito a seguir: Ver- O -Peso A canoa traz o homem a canoa traz o peixe a canoa tem um nome no mercado deixa o peixe no mercado encontra a fome a balança pesa o peixe a balança pesa o homem a balança pesa a fome a balança vende o homem vende o peixe vende a fome vende e come a fome vem de longe nas canoas ver o peso come o peixe o peixe come vende o nome vende o peso - o homem? - peso de ferro - homem de barro 80 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS pese o peixe pese o homem o peixe é preso o homem está preso presa da fome ver o peixe ver o homem vera morte vero peso. Nesse poema, o autor fala de um dos pontos turísticos mais conhecidos da cidade de Belém: o Ver-O-Peso. No entanto, a ênfase dada a questões universais – como a fome, a relação do homem enquanto ser humano com o trabalho e as questões sociais, entre outras coisas – demonstra a preocupação do autor em não apenas falar sobre um ponto turístico, mas, mais que isso, refletir sobre questões humanas universais partindo de um símbolo regional. 7- Uma grande árvore E, nesse contexto, onde se “encaixa” a Literatura? Em tudo! Não se pode esquecer de que tudo o que é considerado Literatura, tudo o que se diz no campo da Literatura, todos os atributos requeridos à Literatura etc. têm íntima relação com as condições sociais, culturais, temporais e espaciais de onde a literatura esteja sendo produzida. Como foi dito anteriormente, para se entender a elaboração literária amazônica, mais especificamente, paraense, é salutar que haja uma compreensão de todo o processo envolvido, desde sua origem, até seu gradativo desenvolvimento. Dessa forma, a Literatura pode ser vista como uma grande árvore: em suas fortes raízes se tem a origem de tudo – onde se encaixam os séculos iniciais deste processo (XVII e início do XVIII) –; em seguida, um tronco dá continuidade ao todo – fins do século XVIII e século XIX –; e, em uma frondosa copa, pode-se encontrar muito bons frutos – o século XX, com seus tantos nomes marcantes na história da Literatura regional, tais como Bruno de Menezes, Dalcídio Jurandir, Haroldo Maranhão, Maria Lúcia Medeiros, Max Martins, Ruy Barata, entre muitos outros. Como em uma árvore, na Literatura, cada umas das “partes” que compõem o “todo” está interligada com as demais e seria impossível tentar isolar apenas uma delas. E, destaque-se, esses ricos “frutos” são a prova de que se pode, sim, fazer literatura de qualidade dispensando a visão exótica sobre a cultura, sobre a região amazônicas; deixando de lado, enfim, a visão preconceituosa das coisas. Asas da Palavra 81 Lúcia Tupiassú 8- Mensagem final Retornando-se, pois, à questão indígena, uma ressalva: é lamentável que uma cultura tão rica e tão preciosa como a indígena continue sendo aniquilada de uma forma tão insensata e talvez irreversível. O trecho abaixo do Pe. José de Anchieta, por exemplo, certamente seria compreendido por muito poucos, caso não acompanhasse a tradução. São perdas tão valiosas, que muitos nem sequer têm real noção de seu alcance. “Xe anho Co taba pupe aico çerecoaramo uitecobo xereco rupi imoingobe. Eu somente nesta aldeia estou como seu guardião fazendo com que ela obedeça ao meu querer.” 11 Felizmente, algo tem sido feito para combater esse extermínio. Muitas entidades têm se voltado em favor da defesa dos índios, de seus direitos e da preservação de sua cultura – a base da cultura amazônica – tomando medidas enérgicas para isso. Muito, porém, ainda há para ser feito, assim como muito já se perdeu sem chances de se recuperar... Bons exemplos dessa maior preocupação com a cultura indígena que vêm sendo demonstrados recentemente são algumas letras de músicas nas quais os compositores se preocupam em falar de aspectos da cultura indígena, ou em usar palavras de idiomas indígenas. A seguir, a letra de uma composição de Nilson Chaves e Saint Clair du Baixo, em que quase todas as palavras utilizadas são de idiomas indígenas, algumas, inclusive, são bastante conhecidas pela população, que, muitas vezes, nem sabe da origem de muitos dos vocábulos usados em seu dia-a-dia. Amocariu (Nilson Chaves e Saint Clair du Baixo) Tecai tutera Amocariu Itororó, pirajá Perebebuí, Trecho de Auto da Festa de São Lourenço, do Pe. José de Anchieta. Extraído de DONATO, Hernani. Os Índios do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 2000 11 82 Asas da Palavra A ALMA DA GENTE DAS BRENHAS: O VERBO DOS MISSIONÁRIOS Cajuru, Cametá, E Marajó Foi o curumim Para adormecê Na samaúma Mãe da floresta Plumas ao vento Itaguari Tecai tutera Amocariu *** Tecai tutera amocariu – Adeus prá sempre vou partir, na Língua tupi Itororó, Pirajá, Perebebui, Cajurú, Cametá, Marajó e Itaguari – nomes de tribos indígenas REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 2 ed. Bertrand Brasil, 1998 CÂNDIDO, Antônio. A Literatura e a Formação do Homem. Ciência e Cultura, São Paulo, 24 (9), setembro 1972 CHIAPPINI, Ligia. Do Beco ao Belo: dez teses sobre o regionalismo na literatura. Lua Nova, São Paulo, n. 1, sd. DANIEL, Padre João. Tesouro Descoberto no Rio Amazonas. Volumes 1 e 2. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1976 D’EVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil: feita nos anos de 1613 – 1614. Tradução César Augusto Marques. São Paulo: Siciliano, 2002 DONATO, Hernani. Os Índios do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 2000 LIMA, Deborah Magalhães. A construção Histórica do Termo Caboclo: sobre estruturas e representações sociais no meio rural amazônico. Belém: Novos Cadernos NAEA, v. 2, n. 2, 1999 LUFT, Celso Pedro. Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Scipione Autores Editores, sd. Lúcia Tupiassú Asas da Palavra 83 MARANHÃO, Haroldo. Pará, Capital: Belém – Memórias & Pessoas & Coisas & Loisas da Cidade. Belém: Fumbel, 2000 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 127-142 ORTIZ, Renato. Um outro território. Ensaios sobre a mundialização. São Paulo: Olho d’água, s.d., p. 57-89 SANTOS, Beatriz Catão Cruz. O Pináculo do Temp(l)o. O Sermão do Padre Antônio Vieira e o Maranhão do Século XVII. VIEIRA, Antônio. Sermão da Epifania VIEIRA, Antônio. Sermão do Espírito Santo 84 Asas da Palavra Asas da Palavra 85 IDENTIDADES, FRONTEIRAS E RELAÇÕES DE PODER NA AMAZÔNIA COLONIAL PARAENSE Marcus Vinnicius Leite 1 UNAMA - Universidade da Amazônia O encontro dos europeus com novas terras, promovidos pelas expedições que buscavam novas rotas para o Oriente, chamado de Índias, foi um fato divisor da maneira de ver o desconhecido. A Europa passava por grandes transformações impulsionadas pelo comércio marítimo e pela renovação das idéias promovidas pelo Renascimento, seja no campo artístico, seja no desenvolvimento científico. Os interesses econômicos já se apresentavam como a diretriz da conduta dos homens, ainda que o poder da igreja católica se mantivesse, mesmo que enfraquecido pela Reforma Protestante. A partir de meados da segunda metade do século XV, a Europa começou a receber informações sobre estas novas terras, suas gentes e sua fauna e flora, através dos relatos sobre as primeiras viagens. Esses relatos enfatizavam uma visão edênica sobre as novas terras. Porém, sua gente era tida como despida de valores materiais, dada à prática de canibalismo e por não professar a religião (católica). Isso levou os europeus a nomeála como “selvagem”. A imagem que se “inventou” sobre este Novo Mundo oscilava entre um paraíso na terra e um local de grandes perigos. Os primeiros Estados-Nações, como Espanha, Portugal e França, principiaram as conquistas dessas novas terras em busca de riquezas, principalmente metais nobres, para desenvolver suas políticas mercantilistas. O Novo Mundo passou a incitar disputas por seu controle territorial, um território ainda totalmente desconhecido e inexplorado, sem nenhum mapeamento. O objetivo desse trabalho é abrir um debate sobre o processo de construção das identidades constituintes da região Amazônica, a partir da sua formação colonial. Ele é uma versão preliminar de um estudo que está no seu início, que tem como meta contribuir com reflexão sobre o processo de “invenção” do que se pode nomear paraensidade, que tem como locus a unidade territorial designado Estado 1 Professor Mestre da Universidade da Amazônia – UNAMA. Belém/Pa. Out/04. 86 Asas da Palavra IDENTIDADES, FRONTEIRAS E RELAÇÕES DE PODER NA AMAZÔNIA COLONIAL PARAENSE do Pará. O nosso foco é examinar as primeiras produções discursivas provocadas por esse imenso território que se espraia pelo rio denominadas rio das Amazonas. Esse espaço organizado como produto histórico de ações de controle empregadas pelo Estado Português, seja através das missões religiosas sobretudo no século XVII, seja através de sua gestão estatal lusitana na forma de Diretórios indígenas (na segunda metade do século XVIII). Nossas fontes de estudo são crônicas coloniais, as quais podem ser: as baseadas no maravilhoso suscitado pela cultura grego-romana (veja o caso da lenda das amazonas) e em descrições realistas. Esta divisão tem como pressuposto a apreensão do modo de olhar a realidade socioambiental a partir da figuração dos europeus que efetivam seu confronto entre uma visão do Velho com o Novo Mundo. A Coroa Portuguesa promoveu a colonização da América utilizando-se preponderantemente das “empresas missionárias”. Esta, para docilizar os gentios ao Evangelho, necessitou dominar suas “línguas” ou, como fez, produzir uma “língua geral” que, segundo Padre Vieira no Sermão da Epifania de 1662, permitisse falar os mudos e ouvir os surdos. Tal estratégia de poder foi resultado da produção de conhecimento sobre os costumes dos nativos que permitiu o uso daquele instrumento. O trabalho de catequização gerou uma miríade de percepções dos nativos. Com as feitas, inicialmente, pelo Frei Gaspar de Carvajal, em 1542, à margem do Amazonas: [Os índios] saíram do meio das árvores, pela margem do rio, muitos flecheiros, falando alto como que irritados, fazendo movimentos com o corpo e significar que nos tinham em pouco (apreço); e pensamos que deviam estar bêbados, porque essas gentes mui a miúde se entregam ao vinho e a beberagens, no que se acostumam e o têm por elegância; e assim, como bêbados exaltados, esperavam repartidos em grupos ao longos da margem, como leões sem temor dos arcabuzes [arma de fogo] e bestas2. Mais de setenta anos depois, a mesma imagem se mantém sobre os indígenas, nas palavras de outro religioso, da ordem dos capuchinhos, Ives D’Evreux: Gostam tanto de vinho, a ponto de ser considerada a embriaguez por eles, e até mesmo pelas mulheres, como uma grande honra. São impudicos extraordinariamente, [...] inventores de notícias falsas, mentirosos, levianos e inconstantes, vícios mui comuns a todos os incrédulos, e, por último, são extremamente preguiçosos [...]3. Essas imagens dos indígenas são recorrentes na história da Amazônia e perpetuam-se até hoje. Nos oitocentos, o crítico José Veríssimo, numa de suas obras, relata Apud PORRO, Antônio. As crônicas do Rio Amazonas. Notas etno-históricas sobre as antigas populações indígenas da Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1993, p.58. 3 D’EVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil. Feita nos anos de 1613 a 1614. Trad. César Augusto Marques. São Paulo: Siciliano, 2002, p.124. 2 Asas da Palavra 87 Marcus Vinnicius Leite uma viagem que fez de Belém a Óbidos, na qual apresenta uma imagem muito “dura” dos povoados à margem do Amazonas, os quais, diz, são formados por “miseráveis choupanas” habitadas pelos “degenerados” filhos de Tupã. E, neles, não se encontra “nem uma indústria nem um trabalho, nem um esforço para sair de semelhante condição!”4. Fica claro que a posição de Veríssimo ao registrar a preocupação com a falta de uma ética do trabalho, ocasionada pelo que o crítico indica como submissão daqueles homens à força da natureza. Recentemente, um ex-governador do Estado do Pará afirmou, numa palestra: “Algumas pessoas, lá fora, podem pensar que aqui só existem índios. É verdade que aqui temos os nossos índios, mas essas pessoas devem saber que nós não temos o nariz atravessado”5. A analogia entre essas visões depreciativas marcadas na história da Amazônia é um claro preconceito, promove uma associação entre a população do Pará e uma visão, ainda do período colonial, que diz que população é idiota, tola e preguiçosa, na medida em que seus ancestrais, os índios, os são. Como se sabe, empresa colonial na América não foi uniforme. E isto influenciou o processo de construção das identidades. Vejamos. A descida do rio Amazonas, na expedição de Pedro Teixeira em 1641, o padre espanhol Cristóbal de Acuña constata a prática opressiva dos portugueses em relação à nação indígena dos Tapajós: [Os portugueses] suspeitando que esta nação tinha muitos escravos a seu serviço, trataram, com extremo rigor, de mover-lhe uma cruel guerra, tratando-a como rebelde [...], o sargento [Bento Marciel], juntando o maior número de homens que pôde, numa lancha com peças de artilharia, e em outras embarcações menores, caiu sobre os índios de surpresa, oferecendo-lhes dura guerra, quando eles queriam boa paz6. A maneira de promover a expansão colonizadora do Novo Mundo distingue os dois países ibéricos. Enquanto espanhóis “querem fazer do país ocupado um prolongamento orgânico do seu”, os portugueses se propõem “menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão”7. Uma outra herança que foi trazida pelos ibéricos foi a hierarquia social: “A clivagem se impunha pela etnia (de cima para baixo — português, mestiço, índio), pela categoria funcional (colono, funcionário da Coroa, agregado, peão e escravo), e pela condição Veríssimo, José. Do Pará a Óbidos. In: ______. Estudos Amazônicos. Belém : UFPA, 1970, p. 218 ALMIR manda recado à Vale: ‘O Pará não é colônia’. O Liberal, Belém, Painel, p.1, 18/02/2004. 6 ACUÑA, Cristóbal. Novo descobrimento do grande rio das amazonas. Tradução Helena Ferreira. Rio de Janeiro: AGIR 1994, p.158 7 HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Cia das Letras 1995, p.98 e 95 respectivamente. 4 5 88 Asas da Palavra IDENTIDADES, FRONTEIRAS E RELAÇÕES DE PODER NA AMAZÔNIA COLONIAL PARAENSE econômica (número de índios escravos que cada colono possuía)”8. Isto é constatado no final do século XVII pelo Padre Bettendorff: Era a cidade do Pará ainda em o anno de 1660 cousa mui limitada, [...] não é isso por lhe faltar meios com que possa ser um dos mais ricos impérios do mundo, mas é por falta de bom governo e industriados moradores, os quaes todos querem viver à lei da nobreza e serem servidos em o Pará9. O trabalho na terra, a agricultura, para os portugueses, no Brasil colonial era um aviltamento. A colonização do Novo Mundo foi um processo histórico de “encontro” de culturas, no qual grupos socioculturais diferenciados se puseram em contato, gerando conflitos. As fronteiras demarcadoras deste contato foram erguidas a partir de um processo de “reconhecimento”, o qual temos, como mais visível, a percepção que o europeu possuía sobre o homem do Novo Mundo. Neste contexto, devemos entender o conceito de “fronteira” pela interação de movimentos, resistências e confrontos de forças (relações de poder). No bojo disso, instaura-se o processo de conhecimento do Outro. É neste processo que surge a questão da identidade, a qual poderíamos conceituar, na mesma diapasão de L. Drummond, como “um conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade entre si e os outros, que fornece uma base para ação e a interpretação do outro”10. O europeu, ao travar relação com uma outra cultura que não lhe era idêntica buscou impingir nomeações negativas, como uma forma de frisar a dita superioridade de sua cultura. Um bom exemplo, são as ilustrações de canibalismo indígenas de Hans Staden feitas no século XVI. A crença de “absorção física” das qualidades dos inimigos tem a função de ritual de “assimilação” dos valores de que as vítimas de antropofagia são portadoras. Os europeus, ao marcar fortemente o ato de comer carne humana como um ato bárbaro, fazem-no para se distinguir e pôr-se em um patamar superior no “processo civilizatório” em relação aos indígenas. Contudo, esquecem que cometem, na sua terra, atitudes que podem ser consideradas selvagens, como, por exemplo, uma execução por atenazamento, no século XVIII: [Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757] Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto [...] Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo11. MACHADO, Lia O. Mitos e Realidades da Amazônia Brasileira no contexto geopolítico internacional 1540-1912. Barcelona, 1989 2v. Tese (Departamento de Geografia Humana/Universitat de Barcelona), v.1, p.35 9 BETTENDORFF, João Felipe. Crônica dos padres da companhia de Jesus no estado do Maranhão. Belém: SECULT, 1990, p.23-24. 10 apud POUTIGNAT, Philippe; STREEFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth.Tradução Elcio Fernandes. São Paulo: EDUNESP, 1998, p.110. 11 apud FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p.12. 8 Asas da Palavra 89 Marcus Vinnicius Leite Poucos europeus tiveram a capacidade de relativizar, ainda no século XVI, a cultura deste Outro que não era idêntica a sua, mas era tão membro da espécie humana quanto eles. Entre estes pouco podemos citar Michel de Montaigne, que em 1580 escreveu assim: Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos [...], a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado12. As diferenças postas pela “nova” espécie humana encontrada no Novo Mundo foram vistas como um problema na empreitada colonizadora e catequizadora. Analisemos esta questão a partir dos sermões do período do pródigo pregador que foi Padre Antônio Viera, que esteve, por quase nove anos, no Estado do Maranhão e Grão-Pará no século XVII. Ele identificou dois problemas: a inconstância da “alma” dos indígenas e a falta de uma estrutura de poder nas suas comunidades, que eram fontes de dificuldade na apreensão e manutenção dos preceitos religiosos no processo de conversão. Vejamos. No Sermão do Espírito Santo (1657), o Padre Antônio Vieira enuncia a famosa metáfora contrastiva entre a estátua de mármore e a estátua de murta (planta florífera). Ele demonstra aos futuros evangelizadores a dificuldade de converter os gentios, na medida em que há povos que são feitos de mármore, difíceis de lapidar na nova fé; contudo, quando a aceitam ou se consolida uma forma, esta fica para quase toda a eternidade. Há outras nações que absorvem tudo que lhes ensinam, mas logo perdem a nova forma constituída plasticidade, necessitando sempre serem assistidas; estas são feitas de murta, algo leve, fácil de moldar e perder e perde-se. Já no Sermão da Epifania (1662), Padre Vieira afirma que a dificuldade de fazer o indígena aprender o evangelho decorre do fato de o “bárbaro boçal e rude, o tapuia cerrado e bruto, como não faz[er] inteiro entendimento, não imprim[ir] nem ret[er] na memória [grifo meu]”13. A propalada falta de constância dos indígenas detectada por Vieira é associada à ausência da capacidade da memória. Esta é a qualidade por excelência, da História, do lembrar do passado e da continuidade dos eventos, o que permite que as sensações e conhecimentos adquiridos possam ser interagidos e retidos na formação do entendimento que gerará novas associações intelectuais. Os indígenas, desviando-se desse modelo cognitivo então em desenvolvimento na Europa moderna, estariam imersos num processo de percepção temporal diferente, o qual valorizaria o instante. Neles atuaria a capacidade eletiva do esquecimento, isto é, ao mesmo tempo que há interesse por tudo, há o seu rápido descurar. Ele seria o guardião da porta da “alma”, controlaria o que entra e se 12 13 Montaigne, Michel. Ensaios. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Nova Cultural,1987, 2v., v.1, p.103. VIEIRA, (Padre) Antônio. Sermões Completos. Porto: Lello & Irmão editores, 1959, v.1, p.27. 90 Asas da Palavra IDENTIDADES, FRONTEIRAS E RELAÇÕES DE PODER NA AMAZÔNIA COLONIAL PARAENSE preserva. Seria, também, o motor da felicidade, à medida que é no átimo do instante que a felicidade se põe. “Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem medo, nunca saberá o que é felicidade”14. Portanto, a inconstância da alma indígena é só uma outra maneira de exercer um modo de viver que foge dos padrões históricos dos europeus, centrado em um contínuo “foi”, que nunca se acaba. Enfim, a aparente volubilidade suposta pelos missionários a quando da catequização é resultado de uma outra aparelhagem mental, na qual o esquecimento ativo do indígena retém o que lhe e interessante dentro do seu campo cultural, demonstrando que as fronteiras de sua identidade são mais móbiles. Vieira detecta outro problema no ensino das escrituras aos nativos, na sua conversão: “A língua geral de toda aquela costa carece de três letras: F, L, R: De F, porque não tem fé, de L, porque não tem lei, de R, porque não tem rei [...]”15. Isto ocorre porque os gentios não conhecem cetro e nem coroa, um poder de um soberano. Isto é, a sua organização social não possuía uma estrutura de sujeição, como afirmou Eduardo V. de Castro: “A verdadeira crença supõe a submissão regular à regra, esta supõe o exercício da coerção por um soberano. Porque não tinham rei, acreditavam nos padres; porque não tinham, desacreditavam”16. O fato de não terem soberanos levou os religiosos a montar outras estratégias de sujeição. Uma delas foi instaurar cerimônia ritualista de alianças entre os indígenas e a Coroa. Para romper com a resistência, a missão colonial e sua inconstância a fé armavam rituais que consolidavam a “memória da vontade”, isto é, “um conceito de vontade ligado à lavra que se empenha, à promessa deliberadamente mantida”17. Isto é bem exemplificado num depoimento do padre Bettendorff, que em 1658, diz que para promover a consolidação da conversão de uma nação indígena era necessário dar-se o juramento de fidelidade ao El Rei. Este deveria ser feito “com toda a solemnidade e ceremonias exteriores (que vale muito com gente que se governa pelos sentidos [grifo meu])”18. Contudo, um principal (cacique) — chamado de Piye: disse que não queria prometter aquillo [...] continuou dizendo, que as perguntas e as praticas que o Padre lhes fazia que as fizesse aos Portuguezes e não a elles, por que elles sempre foram fieis a NIETZSHCE, F. Segunda Consideração Intempestiva. Da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução de Marcos Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p.9. 15 VIEIRA, Op. Cit., v.1, p.28 16 Castro, Eduardo Viveiros de. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia. São Paulo, v.35, p.21-74, 1992, p.38. 17 FERRAZ, . Cristina Franco. Nove Variações Sobre Temas Nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará 2002, p. 67. 18 BETTENDORFF, João. Op. Cit. , p.140. 14 Asas da Palavra 91 Marcus Vinnicius Leite El-Rei e o reconheceram por seu Senhor desde o principio desta conquista, que sempre foram amigos e servidores dos Portuguezes, e que se esta amizade e obediência se quebrou e interrompeu fôra por parte dos Portuguezes e não pela sua19. A construção de relações de poder na sociedade indígena passava pela mise-enscène de um ritual de deveres e obrigações, no qual o elemento plástico ou visual era de extrema importância para a concretização da sujeição. Soma-se a isso, a questão da figura do religioso, que segundo Moreira Neto20 assumia a natureza xamânica aos olhos dos índios; portanto, era reconhecido como avalista de sua dedicação àquele “ser” tão poderoso e distante, El Rei de Portugal. Esse mesmo poder “sobrenatural” dos religiosos reconhecido pelos nativos, tornavam-os em condição de empreender seus projetos de coerção econômica da força de trabalho na obtenção dos produtos e serviços necessários no desenvolvimento das missões amazônicas. Esta forma eficaz de organização do trabalho indígena ruiu, quando a Coroa Portuguesa pôs fim aos aldeiamento e instituiu o Diretório — mesmo que este manteve vários elementos do outro regime, porém sem o carisma dos religiosos. Enfim, para concluir, a compreensão da existência de uma maneira de ser associada a um território específico, como é o caso do Estado do Pará, requer a apreensão do desenvolvimento dos processos resultantes dos conflitos culturais, como também dos efeitos das relações de poder, no qual os sujeitos partícipes executam ou executaram a formação deste território; para tanto, é necessário interpretar as representações de como as fronteiras culturais destes sujeitos se articulam no confronto das percepções e dos quadros mentais que os guiam. É neste marco histórico-conceitual que pretendemos seguir “navegando” na interpretação do curso da constituição daquilo que chamamos de paraensidade. 19 20 Idem, p.141 Moreira Neto, Carlos de A. Índios da Amazônia. De maioria a minoria (1750-1850). Petrópolis, 1988, p.25. 92 Asas da Palavra Asas da Palavra 93 MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 Luiz Tadeu da Costa 1 UNAMA - Universidade da Amazônia A descolonização que se registrou mais tarde foi política mas não cultural; pode dizer-se por conseguinte que o mundo dos museus, enquanto instituição e enquanto método de conser- vação e de comunicação do patrimônio cultural da humanidade, é um fenômeno europeu que se difundiu porque a Europa produziu a cultura dominante e os museus são uma das instituições derivadas dessa cultura. (Entrevista Varine-Bohan, 1979:9-21)2 É nessa perspectiva que procuro elucidar algumas marcas da influência européia tão presentes nos Museus paraenses, das suas formas arquitetônicas que revelam a floresta amazônica à civilização, aos seus acervos iconográficos que nitidamente demonstram nas suas composições visuais e suportes técnicos; a relação de Belém com os movimentos científicos-culturais difundidos no século XIX na Europa. Pensando em subsidiar os estudos museológicos na (re)constituição da trajetória dessas obras nos Museu de Arte de Belém-MABE e Museu Paraense Emílio Goeldi-MPEG, que se torna útil a análise iconográfica, na medida em que a disciplina aplicada, Museologia, necessita decodificar o maior número de informações possíveis contidas nos objetos, para poder salvaguardá-los – documentar e conservar, e, posteriormente, contribuir na relação comunicacional dos objetos com os observadores num cenário musealizado, a fim de devolver à sociedade o seu Patrimônio. As representações visuais aqui selecionadas coadunam da definição de Panofsky, para quem...”A iconografia é, portanto a descrição e classificação das imagens(...); é um estudo limitado e, como que ancilar, que nos informa quando e onde temas específicos foram visualizados por quais motivos específicos”(1955:53). Representa-se, a seguir, o corpus a ser analisado, telas do Museu de Arte de Belém - MABE , que constituem-se em algumas das obras fundantes do Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP, Especialista em Museologia pelo MAE-USP, Professor da UNAMA e IESAM, Técnicos em Assuntos Culturais do MABE/FUMBEL 2 VARINE-BOHAN, H. Os museus e o mundo – Biblioteca Salvat de grandes temas: São Paulo, 1979. 1 94 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 acervo do Museu. Assim como, fotografias do acervo do MPEG que constituem-se no testemunho da passagem de pesquisadores europeus por Belém e de algumas pesquisas realizadas sobre as populações amazônicas: Últimos Dias de Carlos Gomes, Domênico de Angelis e Giovanni Capranesi. Óleo/tela, 1899; Avenida São Jerônimo, Antônio Diogo da Silva Parreiras, Óleo s/ tela, 1905; Calçada do Largo da Pólvora. Antônio Diogo da Silva Parreiras. Óleo s/ tela, 1905; Entrada do Bosque Municipal, Antônio Diogo da Silva Parreiras. Óleo s/ tela, 1905; Recanto de Jardim I. Benedicto Calixto. Óleo/tela, 1906; Fundação da Cidade de Belém, Theodoro José da Silva Braga. Óleo s/ tela, 1908. São Brás – Estação de Trens, Ernest Lohse, 1901; Retratos de tratadores e pesquisadores cuidando dos animais na área do Parque Zoobotânico, s/ data; Retrato “Jaula dos Macacos” com a Drª Maria Emília Snethlage, s/ data; Retrato de casal de índios vestidos com as roupas da época s/ data; retrato de índio criança, s/data; Retrato da Drª Maria Snethlage com amigas, s/data; retrato de visitantes do Museu Goeldi, s/ data; Retratos de índios caiopó com roupa de época sobre pinturas corporais, s/ data; Retratos de índios, alguns em posições sugerindo estudos de antropologia física, destacando perfis, crânios e verificação das medidas de altura, 1898. Baseado nos Relatórios Municipais da “Era Lemos” (1897-1911), essa análise iconográfica, convida para um diálogo entre esses dois corpus imagéticos, que, apesar de adversos em suportes técnicos, formas de aquisição e finalidades, constituem-se em documentos reveladores sobre a instauração utópica de modernidade em Belém, a partir do final do século XIX, assim como indicadores de uma posteridade vivida hoje no final do século XX. Inicia-se essa análise, considerando a emblemática tela “Últimos Dias de Carlos Gomes” (Figura 1), como portal de entrada da belle époque de Belém, relacionando-a com outras imagens que testemunham esse período, na perspectiva de desvelar esse pedaço da Amazônia à civilização. No afã pela modernidade, Antonio Lemos encomenda um espetáculo pictórico entendendo espetáculo como espaço da utopia, onde se constrói a Idade do Ouro. Após a morte do famoso maestro campineiro em Belém do Pará, em 16 de setembro de 1896, os dois artistas plásticos italianos, Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi, começam a construção da imagem a partir de fotos enviadas de Belém a Itália pelos contratantes do referido trabalho, levando três anos para concluírem a obra, em 17 de setembro de 1899. Luiz Tadeu da Costa Asas da Palavra 95 A 17 de setembro de 1899, inaugurei no salão de honra da Intendência uma grande téla allegorica, representando os ultimos dias de Carlos Gomes, fallecido n’esta capital a 16 de setembro de 1896. É um formosissimo trabalho artistico dos pintores Domenico De Angelis e Giovanni Capranesi os quais receberam por elle innumeros elogios da crítica européia ... . (Lemos,1897–1902: 204)3 Para compor a cena, apenas homens e, especialmente, aqueles que compactuavam com a ideologia política dominante da elite socioeconômica de Belém, confirmando a mentalidade histórica desse período. Nesse sentido, essa tela de exuberante dimensão (2,24X4,84m), representa alguns grupos sociais como os políticos (no centro-direito, ao fundo, ao lado do maestro), os militares (à direita), a figura eclesiástica (primeiro plano à direita), os sociáveis da época – jornalistas, médicos, professores (à esquerda), e os artistas, os próprios autores da tela (no fundo à esquerda). Todos muito bem caracterizados pelas suas roupas e insígnias, reflexo da construção de um simulacro de cidade moderna na Amazônia segundo os moldes europeus. Após o término desse período utópico em Belém, em 1912 com a queda da borracha, a tela vira o documento, a matéria que emerge para o plano do visível as marcas de uma retórica mimética deixada pelos artistas no espaço pictórico. A estrutura formal da imagem, cuidadosamente elaborada através de cores, linhas, pontos e formas, forja, num ambiente idealizado, uma realidade não acontecida, o que poderia de certa forma caracterizar o conteúdo da tela como abstrato, porém, de estilo acadêmico, a pintura retrata pessoas reais, num cenário recheado de elementos do ecletismo arquitetônico vigente à época, e facilmente encontrado em Belém. O verdadeiro estado em que se encontrava Carlos Gomes nos seus últimos momentos, sozinho num quarto simples deitado em uma rede, foi registrado por meio de fotografias, e noticiado em jornais da época. Entretanto, o que forra a memória do belenense é a montagem de uma morte espetacular, retratada numa tela que não recebe assinatura dos autores, mas suas presenças. LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém . Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, v.1. 1897-1902. p. 204. 3 96 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 Pela infidelidade à cena da morte, a tela dignifica o falecimento do maestro campineiro, que mesmo depois de anos morando na Itália e sendo monarquista, recebe exéquias de herói em terras brasileiras, em plena República. Ressalto, que os retratos do fotógrafo Felipe Augusto Fidanza originaram a feitura não só da referida tela, como também de mais quatro que os pintores italianos realizaram sob encomenda de Antonio Lemos. Das cinco telas, apenas duas ficaram em Belém, a já citada no Paço Municipal e uma outra na Escola de Música do Pará, as demais ficaram em exposição em uma casa comercial na Rua do Ouvidor, nº 83 -Rio de Janeiro, e nunca mais foram vistas.4 Num artigo assinado por Antonio Marques de Carvalho, do jornal “A Província do Pará”, de 17 de setembro de 1899, há um comentário descritivo detalhando cada personagem integrante da tela alegórica, assim como os objetos cenográficos encontrados na obra. Saliento, que o autor desse artigo, funcionário do jornal “A Província do Pará” , encontra-se no centro da tela, à direita do Intendente Antonio Lemos, que também era redatorchefe desse jornal. Demonstrando a participação da imprensa local, não só “A Província do Pará”, na criação do mito romântico Carlos Gomes no imaginário do belenense. Percebe-se ainda, os redirecionamentos sociais da elite urbana à uma dependência aos centros hegemônicos do capitalismo industrial. E, sem dúvida, o consumo por tudo que vinha da Europa, especialmente as modas francesas, seduzindo e alterando o comportamento da sociedade de Belém, evidenciado nos álbuns de fotografias, jornais, revistas, cartões-postais e materiais publicitários que circulavam na cidade durante sua belle époque da borracha. Outro dado importante desse período, presente na tela dos “últimos dias”, era a mentalidade do movimento Romântico, que através da obra literária “O Guarany” de José de Alencar, inspirou duas releituras em formas distintas de expressão artística – Música e Pintura. Certamente, “Il Guarany”, é uma das óperas mais conhecidas de Carlos Gomes, tendo sido inclusive encenada em Belém, no Teatro da Paz, nos anos de 1880 e 1882 . Portanto, merece destaque na obra “Últimos Dias de Carlos Gomes”, a presença da tela “Salvação de Cecy por Pery”, também de De Angelis, que se encontra em ManausAM, fazendo alusão ao momento em que Pery, “o bom selvagem”, salva Cecy nos braços do incêndio na floresta. Vista ao fundo, ao lado direito superior, traça uma interessante linha diagonal com a partitura, em primeiro plano sobre o piano, ao lado esquerdo, ...”Sobre a estante do instrumento, abre-se a partitura do Guarany na ária em que Pery declara apaixonado a Cecy: Sento una forza indomita!”.(Lemos, 1897-1902:404)5 Atualmente, a tela alegórica sobre a morte do maestro, se encontrar na sala Domenico De Angelis do MABE, criando uma coincidência histórica muito interessante, pois essa ...”A nota, publicada no ‘Diário do Gram-Pará”, de 26 de outubro de 1896, ainda dizia que as telas seguiriam para a Itália. Nunca mais foram vistas”.(Leal, 1998:39) 4 Asas da Palavra 97 Luiz Tadeu da Costa mesma sala foi o Gabinete do Intendente Antonio Lemos e o local que a tela decorou, enquanto o Intendente procurava prédio para abrigar as obras que adquiria a sua sonhada Pinacoteca. Sendo assim, a tela permaneceu nessa sala até o momento em que precisou ser desmontada em 1989, quando o Palácio Antonio Lemos, com ameaça de desabamento, foi interditado para reformas urgentes. A partir do momento em que foi desenrolada para restauração em junho de 1993, a inaugural tela do acervo do MABE, tem ficado em exposição na Sala Domenico De Angelis, desde 12 de janeiro de 1994, ocasião em que o Palácio Antonio Lemos, reabriu suas portas, possibilitando abrigar um Museu em condições técnicas favoráveis. Mas, voltando aos primórdios da constituição do acervo da Pinacoteca hoje MABE. Encontramos nos Relatórios da Intendência de 1905 e 1907, respectivamente, nos capítulos Monumentos Públicos e Obras D’Arte, e Instrucção Artística, indicações do Intendente Antonio Lemos sobre sua intenção de criar uma escola de pintura que ficasse anexa à Pinacoteca. Essa junção possibilitaria o fomento ao ensino e à produção das artes-plásticas em Belém, colaborando, assim, na constituição da Galeria de quadros da Pinacoteca: Pelas razões indicadas no capitulo – Ensino Municipal, ainda não me foi possivel crear a eschola de pintura, cuja influencia será extraordinária na cultura artistica de nossa mocidade, tão apta, em geral para todas as manifestações intellectuaes.(Lemos, 1905:199) Pelo art. 4 d’esse Regulamento, o citado ensino será dado em uma eschola de pintura, que se denominará – Instituto Pedro Américo – e constituirá o início de uma futura eschola de Bellas Artes, que deverá ser inaugurada logo que ao Município seja possivel manter as disciplinas necessárias e constituir um edificio apropriado. a) O curso do instituto comprehenderá: Noções de physica, chimica, historia natural, applicadas; b) Esthetica; c) Desenho; d) Pintura. Annexa ao Instituto Pedro Américo será iniciada uma pequena secção de quadros de obra d’arte, destinada a constituir mais tarde a Galeria Paraense. (Lemos, 1905:267)6 LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém . Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1897-1902. v.1. pp. 403–409. 6 LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém . Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém. Belém:v.3. 1905. 5 98 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 É possivel, segundo espero, que dentro em alguns mezes seja creada a Eschola de Pintura, em projecto. No capitulo Instrucção Publica, adeante inserto, vão outros esclarecimentos a tal respeito. (Lemos, 1907:163) 7 Dificuldade de toda a ordem, sobrelevando a impossibilidade, até aqui, da obtenção de um predio, apropriado, pelo local e pela disposição de compartimentos, para a instalação e o funcionamento do Instituto Pedro Américo, com margem bastante para o pretendido desdobramento d’esse Instituto em uma Eschola de Bellas-Artes; - essas dificuldades, repito, não permitiram ainda, até a presente data, a realização da idéia.(Lemos, 1907:216) 8 Numa perspectiva de referendar as ações públicas de caráter artístico-cultural, percebe-se uma preocupação de contratar os serviços de artistas conhecidos, nacional ou internacionalmente, uma constante nos administradores públicos da Belém da borracha, seja na esfera estadual – em 1895, o Governador Lauro Sodré9 contratou Carlos Gomes para organizar o Conservatório de Música do Pará; seja na esfera Municipal – Antonio Lemos, como citei no capítulo anterior, convidou muitos artistas de passagem pela cidade para deixar seus registros. Sendo assim, a constituição do acervo da Pinacoteca de Belém é preponderantemente composta de pinturas Acadêmicas. Embora no paralelo, a fotografia esteja marcando sua presença no espetáculo da modernidade, considerada pelo Museu Paraense, dentre outras coisas, um importante instrumento técnico de apoio à pesquisa científica. Deve-se lembrar ainda, que o Brasil só teve acesso, efetivamente aos movimentos de vanguarda das artes-plásticas, como o Impressionismo, o Expressionismo, o Cubismo e outros, a partir da segunda década do século XX. Enquanto isso a pintura Acadêmica confere status às coleções dos museus de arte brasileiros. Nesse período, de belle époque da borracha, quantificaram-se os símbolos indústriais e comerciais, legitimando o progresso e transformando Belém num grande centro urbano. Antonio Lemos contratou vários pintores para registrar essa nova paisagem da floresta, dentre os quais destaca-se Antonio Parreiras e suas pinturas essencialmente acadêmicas, construindo suas telas como se fossem retratos pintados. Revelando a fisionomia de uma cidade moderna, cujo patrimônio edificado, implantado na cidade desde sua colonização, vai adaptando-se ao patrimônio natural. LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém . Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém. v.5.1907. 8 Ibdem 9 ...”O positivista Lauro Sodré, ..., retirou Carlos Gomes do mundo de graves dificuldades que enfrentava na Itália, onde sobressaíam doenças e dívidas, cores dramáticas de um quadro em que tudo negava a imagem soberana do mito gomesiano de quarto de século passado.”(Coelho, 1995:31) 7 Asas da Palavra 99 Luiz Tadeu da Costa Visitou-nos durante o anno o pintor brazileiro Antonio Parreiras, um dos mais reputados artistas nacionaes, realizando uma exposição dos proprios trabalhos, à qual a sociedade paraense rendeu o merecido preito de sua admiração. Como resultado de minha visita a’quella exhibição, encommendei ao festejado pintor, para adornarem o salão do Conselho Municipal, differentes télas, já hoje devidamente installadas. Constituindo uma documentação authentica de diversos pontos da Belém actual, esses quadros reproduzem, com a fidelidade impecável que caracteriza as obras do distincto paizagista, a entrada do Bosque do Marco da Legua, a clareira do Congresso dos Intendentes, no Bosque, a choupana de Atalá, abragendo grande parte d’aquelle logradoiro; a Cathedral e parte da praça Dom Frei Caetano Brandão, o parque de Baptista Campos(duas), a praça Republica, comprehendendo o monumento e a fachada do Theatro da Paz; o porto de Belém(duas) e uma das avenidas da praça Republica.(Lemos, 1906:198)10 Nas telas “Avenida São Jerônimo”(Figura 2) e “Calçada do Largo da Pólvora”(Figura 3), percebe-se claramente os elementos citadinos como, as ruas largas, os trilhos do bonde, a iluminação pública, os postes de ferro, as calçadas largas para passeio dos transeuntes, as roupas desses e as praças arborizadas. Tudo isso adaptando-se à floresta. Pois é imperativa a presença da arborização nas telas. Essa característica do território amazônico fica evidente na tela “Entrada do Bosque Municipal”(figura 4). No entanto, outras paisagens de Belém, outra imagem da cidade, através de outro suporte técnico, contrapõe-se às telas encomendadas por Antonio Lemos, revelando nem sempre o momento mais bonito do espetáculo da belle époque de Belém. Podemos perceber isso na fotografia, “São Braz – Estação de Trens”, de Ernest Lohse, desenhista litógrafo e responsável pelo Laboratório de Fotografia do Museu Paraense Goeldi. Na foto(Figura 5), de 15 de agosto de 1901, observa-se uma cidade até certo ponto rural, não fosse o trem, Ano: 1905, Óleo s/ tela 82,0 x 100 cm Ano: 1905, Óleo s/ tela, 64,4 x 54,0 cm LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém . Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1906. 10 100 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 a caixa d’água em estrutura de ferro, as roupas das pessoas e postes da rede elétrica. A rua, um caminho de terra aberto num vasto gramado, em nada lembra as largas avenidas com calçada s, pintadas por Parreiras. Embora, seja a mesma cidade apresentando aspectos diferentes da sua configuração Data: 1905, Óleo s/ tela, 50,5 x 90,5 cm urbana. As fotografias do MPEG, revelam o olhar especular do pesquisador estrangeiro sobre a cidade construída na floresta. Dessa forma, a memória iconográfica de Belém durante sua belle époque compõem-se desses pedaços de narrativas visuais. As pinturas acadêmicas encomendadas por Lemos, representam a beleza do espetáculo utópico, confirmando a Idade do Ouro, enquanto as fotografias do acervo do MPEG, indicam à posteridade, o ritmo dos avanços tecnológicos instaurados nesse período, que os vindouros anos terão que administrar. A pintura já conhecia há muito a pose. As pinturas de cavalete e no atelier precisavam de imobilidade humana diante dos pincéis do artista, para a realização da imagem. A fotografia, incorpora a pose associada aos trejeitos, aos gestos, aos novos movimentos da sociedade, denunciando o não silêncio das pessoas nessa belle époque. É como se estivesse reclamando da exclusão social(Figuras 6, 7, e 8). O aca- Data: 1901, Coleção Fotográfica – Arquivo/DOC so fotográfico, instaura uma inquietação no – Museu Paraense Emílio Goeldi olhar do observador, diferentemente da posição contemplativa diante das pinturas acadêmicas. “Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pusional”.(Benjamin, 1993:94). Assim, as pinturas diferenciam-se bastante das fotografias, que aos poucos se infiltram no cotidiano das pessoas, criando nelas o hábito de colecionar álbuns, cartõespostais, enfim estabelecendo uma outra relação física com a imagem. Esse fato pode ser presenciado nas fotos 6, 7 e 8, onde os personagens são alheios àquela cidade - pesquisadores europeus e índios na cidade vestidos literalmente de branco. Isso aponta uma correspondência, para que o olhar do outro possa ver de perto, detalhadamente, o processo de transmutação ocorrido na pessoa fotografada. Esse “efeito mágico”, característica da fotografia, transforma esses personagens em outros pesquisadores, outros índios, desconstruindo no observador sua idéia primeira sobre essas pessoas. Luiz Tadeu da Costa Asas da Palavra 101 Figura 6 Figura 7 Coleção Fotográfica Arquivo/DOC–MPEG Essa “arte mágica”, chegou a Belém em 07 de setembro de 1867, com o italiano Felipe Augusto Fidanza que na ocasião acompanhava a comitiva oficial do Imperador D. Pedro II. Fidanza, um fotógrafo amador à essa altura, não retornou com a comitiva de D. Pedro, estabelecendo a matriz da arte da fotografia em Belém do Pará. Dessa forma, Fidanza transformou-se num dos mais importantes fotógrafos da cidade, sendo chamado para cobrir os mais diversos acontecimentos sociais. Como já mencionei, são dele as fotografias de Carlos Gomes na ocasião de seu falecimento. Nessa perspectiva de desvelar os contrapontos apresentados na constituição de uma imagem, por meio desses dois suportes técnicos e documentais – pintura e fotografia. Demonstro, a seguir, o cotidiano de pessoas de diferentes classes sociais convivendo numa mesma Belém da borracha. Suscitando uma conversa interessante entre a tela do paulista Benedicto Calixto, “Recanto de Jardim I”(Figura 9), de 1906, e a seqüência de fotografias: “Jardim Zoológico”(Figuras 10 e 11) e “Jaula dos Macacos”(Figura 12). 102 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 Data:1906, Óleo s/tela, 49,5 x 73,5 cm A cena da tela representa uma senhora, provavelmente da elite burguesa, ocupando-se em administrar sua casa, prática comum às mulheres dessa época. É curioso notar que tanto a senhora como o jardineiro estão de costas, o que nos indica a atenção de ambos aos seus serviços. Porém, não se percebe um gesto de interação entre os personagens. Pela posição estática deles, supõem-se uma relação de trabalho subalterno exercida pelo jardineiro. A quebra dessa imobilidade está nos instrumentos de trabalho do jardineiro, que distribuídos pelo espaço pictórico possibilitam um certo movimento ótico do observador, suscitando a imaginação de outras cenas. Em contrapartida, na seqüência das fotografias, verifica-se uma outra relação de trabalho, de certa forma mais cooperativa, cujo o papel principal quem desempenha é uma mulher, um dado muito importante à época. Coadjuvando essas cenas, vemos outros funcionários do Museu envolvidos nos seus afazeres com um macaco. Essas fotos reproduzem de um plano mais amplo a um mais fechado, um macaco sendo tratado na área de passeio do Parque Zoobotânico do Museu Goeldi. Nota-se portanto, a presença da pose para a realização da foto, especialmente na figura 9, mas ao mesmo tempo, revelam-se nitidamente os movimentos individuais de Luiz Tadeu da Costa Asas da Palavra 103 Coleção Fotográfica – Arquivo/DOC - MPEG cada personagem presente nas três fotografias. Logo, constata-se a visível diferença entre pose e trejeito. Assim, como, atesta-se ser uma variável totalmente histórica, a diferença entre técnica e magia. Demonstra-se a seguir, essa diferença por meio das imagens: a tela comemorativa sobre a “Fundação da Cidade de Belém” (Figura 13), pintada por Theodoro Braga, de 1908; e em índios Caiapó (Figuras 14 e 15) em visita para estudo no Museu Goeldi. 104 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 Coleção Fotográfica – Arquivo/DOC - MPEG Data: 1908, Óleo s/ tela, 2,26 X 5,0 m Na pintura sobre a “fundação de Belém”, encontra-se a mesma retórica usada na obra “Últimos Dias de Carlos Gomes”. O desejo do Intendente em ter no acervo da Pinacoteca uma tela que retratasse o tema da fundação da cidade, foi reiterado várias vezes em seus relatórios: De há muito, era idéia minha dotar a galeria do Município com uma grande téla histórica, reproduzindo, tanto quanto possivel, a scena da fundação da cidade de Belém,, dos episódios primordiaes da nossa entrada para a civilização. E, convencido da utilidade de, que vos não escapará, de levar por deante a realização d’esse pensamento, encomendei ao pintor paraense dr. Theodoro Braga, moço de promissor talento, laureado pela Academia de Bellas- Artes, o quadro de que me ocupo e d’elle recebi, mezes depois, um esboço, que muito me agradou e a quantos o viram. Para dar-vos rapida idéia do trabalho do jovem e talentoso artista transcrevo as seguintes palavras d’A Provincia do Pará: Hontem, pela manhã, Theodoro Braga mostrou ao nosso.... (Lemos, 1907:161-162)11 LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Archivo Municipal da Intendência. Belém, v.5. 1907: 162-163. 11 Asas da Palavra 105 Luiz Tadeu da Costa A 13 de março, publiquei a Lei nº 474, approvando o acto pelo qual encommendára ao pintor paraense Theodoro Braga a factura de uma téla denominada Fundação da Cidade de Belém. (Lemos, 1908:102)12 O próprio Theodoro Braga em seu livro, A arte no Pará – 1888/1918 retrospecto histórico dos últimos 30 anos, faz uma breve citação sobre o momento em que a tela foi apresentada à sociedade de Belém: A 17 de dezembro de 1908, Theodoro Braga inaugura a sua 4ª exposição, apresentando ao público a sua grande téla: A Fundação da Cidade de Belém do Pará e mais 81 quadros(...). Encerrando a 27 do mesmo mez, sua exposição no salão do Theatro da Paz, a téla histórica foi transferida para a sala do Conselho Municipal de Belém, onde se acha.(Braga, 1933:155)13. Percebe-se na tela, uma alusão aos personagens constitutivos desse fato histórico, estrategicamente posicionados, no centro a figura do missionário religioso e do colonizador português, ordenando o que se deve fazer à sua comitiva; à esquerda, os nativos trabalhando na construção de uma igreja e de um forte; e à direita os índios estereotipados, separados por um pequeno rio, observando esse processo civilizatório. Enquanto na tela os índios são colocados à parte do processo histórico, nas fotos do Museu Goeldi, os temos como figuras centrais de uma série de pesquisas de antropologia física, iniciadas no final do século dezenove, revelando uma intenção de investigá-los, para compreendê-los e incluí-los como parte integrante dos processos sociais ocorridos na Amazônia. Uma das etapas da pesquisa era o estudo dos perfis, crânio e verificação das medidas dessa população, sendo a fotografia um suporte técnico muito útil nesse momento, ajudando os pesquisadores na hora de sistematizar e inventariar as populações indígenas existentes na região. Analisando essas imagens, o ilusionismo, característico da fotografia, chama atenção do observador para as roupas que cobrem os corpos pintados dos homens. Essas pinturas são inscrições culturais, um código social, uma primeira indumentária que os identifica como Caiapó. A figura dessa população no cotidiano citadino do belemense contemporâneo, é uma referência simbólica do passado. LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Archivo Municipal da Intendência. Belém, v.6. 1908: 102. 13 BRAGA, Theodoro. A arte no Pará – 1888/1918 retrospecto histórico dos últimos 30 anos. Sup. Rev. Inst. Hist. Geográfico do Pará, Belém, v. VIII. 1933. 12 106 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 Data: 1898, Coleção Fotográfica – Arquivo/DOC - MPEG Coleção Fotográfica – Arquivo/DOC - MPEG Luiz Tadeu da Costa Asas da Palavra 107 Do ponto de vista da técnica, diferenciando-se da magia, temos, ironicamente, a tela da “Fundação da Cidade de Belém”, fechando o ciclo de exuberantes telas adquiridas por Lemos, para o acervo da Pinacoteca. Pois, se aproxima o fim da belle époque de Belém, iniciado em 1912 com a queda da borracha. Esse processo escatalógico, trouxe o caos, os dias difíceis na economia de um lugar, que outrora fora idealizado como um paraíso equatorial. Essa narrativa visual, prenunciava o progresso, representado pela construção e fundação de uma cidade na selva amazônica. Da mesma forma, que com o final da belle époque em Belém, começava um período de recuperação, de reorganização, e de reinterpretação do legado dessa belle époque à posteridade. REFERÊNCIAS Relatórios da Intendência e Boletins do Museu Paraense LEMOS, Antonio José de. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém. v.1.1897-1902. LEMOS. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1904. LEMOS. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1905. LEMOS. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1906. LEMOS. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1907. LEMOS. Relatório apresentado ao Conselho Municipal de Belém. Belém: Archivo da Intendência Municipal de Belém, 1908. GOELDI, Emílio August. Relatório apresentado ao Exmº. Gov. Dr. José Paes de Carvalho.Belém:Museu Paraense, 1897(1º/01/1897 a 1º/01/1898) LIVROS AFFONSO, João. Três Séculos de Modas. Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1976. BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad.: Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva. 3ª edição. 1997. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. 3 volumes. 3ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. 108 Asas da Palavra MEMÓRIA E ICONOGRAFIA DE BELÉM: 1896 A 1908 BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BRAGA, Theodoro. A arte no Pará – 1888/1918 retrospecto histórico dos últimos 30 anos. Belém: Sup. Rev. Inst. Hist. Geográfico do Pará. v. VIII. 1933. BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museologia para professores: os caminhos da educação pelo patrimônio. São Paulo: CEETEPS-CETEC, 1998. __________, Maria Cristina Oliveira. Museologia: algumas idéias para a sua organização disciplinar. Lisboa: ISMAG/ULHT, 1996. 38p (Cadernos de Sociomuseologia nº 9). CUNHA, Oswaldo Rodrigues da. Talento e atitude: estudos biográficos do Museu Paraense Emílio Goeldi, I. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1989. CECIM, Vicente; FIGUEIREDO, Aline [et alli...]. As Artes Visuais na Amazônia: Reflexões sobre uma Visualidade Regional. Rio de Janeiro: FUNARTE; Belém: SEMEC, 1985. COELHO, Geraldo Mártires. O Brilho da Supernova: a morte bela de Carlos Gomes. Belém: UFPA, 1995. FERREIRA, Jerusa Pires. Heterônimos e Cultura das bordas. Revista da USP, São Paulo, nº 4, p.169-174,1990. FONSECA, Rubem. O selvagem da ópera. São Paulo: Copanhia das Letras, 1994 FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Trad.: Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1989. GOMBRICH, E. H. . História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1972 KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê editorial, 1999. LEAL, Cláudio de La Rocque. Retrato paraense. Belém: Fundação Romulo Maiorana, 1998. LÉVI-STRAUSS, Claude. O Olhar Distanciado. Tradução: Carmen de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 19..... MONTEIRO, John Manuel (Coordenação). Guia de fontes para a história indígena e do indigenismo em arquivos brasileiros: acervos das capitais. São Paulo: Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo / FAPESP, 1984. (Série Instrumentos de Pesquisa). OSBORNE, H. Estética e Teoria da Arte. São Paulo: Cultrix, 1980. PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3ª edição. São Paulo: Perspectiva. 1991. TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo(1839-1889). Rio de Janeiro: Rocco, 1995. VARINE- BOHAN, Hugues de. In Os museus e o mundo. São Paulo: Biblioteca Salvat, 1979. 9-21p e 70-81p. (Biblioteca Salvat de grandes temas) ZUMTHOR, Paul. Tradição e Esquecimento. Tradução: Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Hucitec, 1997. 2004: 2 x Bruno Asas da Palavra 109 José Ar thur Bogéa Oitenta anos da publicação do livro de poemas Bailado Lunar [1924], cinqüenta do romance Candunga [1954] e Santa Maria de Belém do Gram-Pará festeja Bruno de Menezes [1893-1963], duplamente, neste Ano da Graça de 2004. A poesia representa, na trajetória literária do autor, obra da mocidade, enquanto a ficção vem na maturidade. Antes do Bailado (passo a abreviar), publica Crucifixo [1920] e Candunga é precedido da novela Maria Dagmar [1950]. O livro Crucifixo é o ecce homo de BM, tal como, vário, se apresenta: “Todo Poeta é o Homem-Deus – incompreendido”; “a Tristeza é minha irmã”. Mesmo sob o signo do cisne, “embora eu seja um cisne entoando o último cântico!”; “olhos assim [...]/são dois cisnes morrendo” – não se aproxima do Simbolismo. É um mui digno representante do Ultra-romantismo e isto, também, apesar da epígrafe parnasiana de Bilac, tirada de Inania Verba. Já há, sim, certa inovação vocabular – “incalmas”, “crepusculando” – que seria marca de Batuque [1931] que agride expressões como “lírios seráficos”, “calix de travos” – mais novecentos impossível: “passionais paixões”. A novela Maria Dagmar é a versão paroara de femme fatale, curiosamente escrita como se tudo se passasse num palco de vaudeville, mas com o travo amargo do castigo para a protagonista, única entre os personagens a ser identificada pelo nome. Todos os outros são apontados por laços de parentesco ou profissão. Para Íris Zavala a mulher finde-siécle [XIX] recebe em contrapartida esse enorme símbolo fálico no coração da capital francesa: a torre Eiffel – e Belém não é, no período da borracha, a Paris Tropical? Maria Dagmar, assim como Crucifixo, têm em comum “Certa mulher. Um sonhador. Paixões” que, como numa litania, responde “Minha fé! – esse amor, certa mulher”. Os poemas de Bailado Lunar são um reflexo desse período da Literatura Brasileira, que vai do Romantismo à Semana de Arte Moderna de 1922. Um amálgama de Parnasianismo, Simbolismo, Impressionismo e algo de titubeante no âmbito do Pré-modernismo. Mas, o Autor já imprime a marca pessoal que explode com Batuque, a Lua Negra de BM. No poema título que abre o livro já se concentram características de todas estas escolas. Romantismo – evocação de lugares distantes e paisagens de mistério: “Entre cortinas da Bretanha e céus nevoentos” Parnasianismo – a descrição de formas: “E que corpo de taça! E que olhos de missanga”. Simbolismo – aliterações: 110 Asas da Palavra 2004: 2 x Bruno “na histeria coreográfica do Ritmo...” Impressionismo – sensações interiores: “Para as bandas do mar o luar se esfaz em sombra...” O Pré-modernismo – retrato da atualidade: “Há um ‘solo’ de oboé num ‘jazz-band’ yankee...” BM ainda não é Modernista, como ainda não o é em Poesia [1931], livro lançado no mesmo ano em que “Toiá Verequête!” recita Batuque através de Mãe Ambrosina, ao som do “rumpi”. Símbolos art-nouveau pontuam o ritmo de Lua Sonâmbula Nenufar: “a Lua oferta à Noite os nenúfares / dos seus jardins feitos de aromas brancos... Arabesco: “coberta de arabescos e recamos”. O lírio, curiosamente, aparece sempre no sentido metafórico “A Lua, arqueada e fina, é a haste de um grande lírio / que baloiça” “Num chafariz [...] / um lírio de água se esfolhava, cristalino”. “o lírio líquido em desfolhos”. e entre todos os símbolos se destaca o cisne e seu reflexo “Num lago verde os cisnes se espelhavam”. Zavala, em Rubén Dario: Bajo el signo Del Cisne (como a citação anterior, faço de memória) lembra que, desde a Grécia Clássica, é pintada com a cabeça voltada para a direita do espectador, mas no fin-de-siécle [XIX] inverte a posição e passa a representar a grande interrogação de um novo século [XX]. BM divide Bailado Lunar em três partes. Na primeira o poema título, cujo verso inicial: “A lua é a bailarina imemorial dos ares”, está sempre citado em trabalhos sobre o livro. A seguir Ba-ta-clan e, por fim, Do Romance de Pierrot, dividido, por sua vez, em três partes – o Autor resgata, assim, as figuras de Pierrô, Arlequim e Colombina que surgem no teatro renascentista e reaparecem depois de um longo eclipse, no século dezenove. O livro se encerra com o poema A mulher esperada... que além de ser um soneto, destaca o emprego que BM faz das reticências e a constante de sua temática do amor: “A mulher que se espera é um bem perdido...” A reticência no título é como se este fosse parte do primeiro verso e, quando repetido no verso final remete de volta ao título, a partir da cesura: “é um bem perdido...// A mulher esperada...” – recurso que aparece em outros poemas. O soneto é cultuado por BM desde O Operário, escrito aos vinte anos e publicado no periódico Martelo, 1913. Persiste, ao lado do verso livre, nos primeiros livros. Destacase em Poesia: Noturnos, Evangelho, Os Sonetos de Werther, além de em Lua Sonâmbula [1953] e no volume Onze Sonetos [1960], Prêmio Cidade São Jorge de Ilhéus, da José Arthur Bogéa Asas da Palavra 111 Academia de Letras daquela cidade baiana, com Manuel Bandeira, Álvaro Moreira e Antonio Olinto no júri. A mulher na poesia de BM é a representação da femme fatale em suas raízes gregas – a esfinge: “Loura e magra. / Um tanto / de felina, outro tanto / de ofídica”, que se fixa como imagem persistente para o Poeta: “Loura e magra, ela passava...” – como se lê no poema Visão aérea..., no Bailado, a que se soma “unhas em garras... tenebrosas” do poema seguinte, Silhueta viva. Quando me debrucei sobre a prosa de BM constatei que a novela Maria Dagmar é lunar, enquanto o romance Candunga é solar. Lunar é toda poesia do Autor de Batuque. Mesmo em Crucifixo, que é a “noche oscura” de BM, há “luares” apenas sugeridos no poema Na Praia do Cruzeiro e no último dos Onze Sonetos surge “a luz imprecisa da lua” – mas sempre presente em todos os livros: Lua / lua, lua cheia, luar / luares, lunar, lunarmente, luarescido [não dicionarizado], luarescente [idem], enluarada, plenilúnio. A lua se repete no título de Lua Sonâmbula e é misteriosa, branca, silente, etérea, sensitiva, romântica ou traduz-se como “camélia argêntea”. A magia dos versos de BM transforma os leitores em “cisnes que nos luares vogam”.