Educação infantil na América Latina
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Educação infantil na América Latina
Educação infantil na América Latina: novos discursos, antigos dilemas EIXO 1 - Políticas públicas para a Infância Rosânia Campos1 Roselane Fátima Campos2 Rute Silva3 Resumo: Neste trabalho o objetivo é analisarmos os discursos, presentes em documentos produzidos por Organismos Internacionais e governos locais, que orientam, sobretudo, as políticas educativas para as crianças menores de três anos. Concentramos nossas análises na concepção de equidade social e de pobreza, conceitos centrais nas orientações provenientes de ambas as instâncias citadas para a formulação das políticas locais. Para tanto adotamos o referencial de análise de política desenvolvido por Stephen Ball (2011) denominado “Ciclo de Políticas”. Nossas análises indicam uma repolitização da pobreza, que passa a ser compreendida como uma questão cultural, a qual tem repercussões graves para a educação infantil. Em consequência, o desenvolvimento atual da educação infantil na região, no que diz respeito a sua universalização, se vê ameaçado pelo recrudescimento de perspectivas conservadoras e excludentes, repondo em cena, a trágica tradição histórica da modernização conservadora do país O presente trabalho é um recorte de uma pesquisa sobre políticas e programas de educação infantil, especificamente a educação de 0 a 3 anos, na América Latina 4 a qual focaliza três países: Bolívia, Venezuela e Equador, além do Brasil, que passaram por processos de mudanças sociais na última década. Nosso objetivo, neste texto, é analisarmos os discursos, presentes em documentos produzidos por Organismos Internacionais e governos locais, que orientam, sobretudo, as políticas educativas para as crianças menores de três anos. Neste sentido concentramos nossas análises na concepção de equidade social e de pobreza, conceitos centrais nas orientações provenientes de ambas as instâncias citadas para a formulação das políticas locais. Para tanto adotamos o referencial de análise de política desenvolvido por Stephen Ball (2011) denominado “Ciclo de Políticas”. Ainda que o citado referencial tenha se mostrado profícuo nas análises, entendemos que possui limites na formulação, em particular, no que tange ao papel dos Estados Nacionais e suas participações nos processos 1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade da Região de Joinville – UNIVILLE. Professora do Departamento de Psicologia. E-mail: [email protected]. 2 Professora do Programa do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. 3 Professora do Núcelo de Desenvolvimento Infantil – NDI da Universidade Federal de Santa Catarina. Email: [email protected]. 4 O objetivo desta pesquisa é verificar se, as mudanças nas quais os citados países foram protagonistas tiveram impactos de modo positivo na educação infantil, especialmente no que diz respeito à democratização do acesso e a permanência com qualidade. 1 de regulação da política educacional. Especialmente por considerarmos que na América Latina configuram-se novas relações entre os países periféricos e centrais com impactos na constituição e modos de operar dos estados nacionais, nossas análises se fundamental também em autores que tratam do conceito de regulação no campo educacional, além de nos auxiliar nas discussões referentes às relações sociais na totalidade que as constituem. A justificativa para concentrarmos nossas análises nos documentos, de modo especial, nos conceitos supracitados decorre do nosso entendimento que, estes documentos constituem o denominado “Contexto da influência”, o qual se caracteriza pelo momento do confronto. É neste contexto em que distintos grupos disputam concepções e influências, procurando cada qual, imprimir sua direção ou hegemonia. É aqui que os discursos e concepções adquirem legitimidade, estabelecem parâmetros, recebem apoio ou são rechaçados (MAINARDES, 2007). É nesse contexto que podemos compreender também as influências exercidas pelos discursos de organismos transnacionais sobre as políticas locais (MAINARDES, 2007). A partir destas delimitações organizamos o presente trabalho em três seções: no primeiro momento discutiremos a re-politização da concepção de pobreza, que passa a ser tratada nos documentos e discursos oficiais como uma “questão cultural”. Na sequencia nossas discussões convergem para as análises do que implica equidade social neste contexto e finalizamos com algumas considerações de como a centralidade da infância, no século XX, constitui-se por um duplo jogo. Finalizamos com algumas considerações. O Século das Crianças Segundo a reformista sueca Ellen Key, o século XX, seria o “século das crianças”. No entanto, ao final do mesmo, a situação atual da infância nos faz questionar para quais crianças o Século XX foi realmente momento de garantia do reconhecimento e efetivação de seus direitos como cidadãs. Apesar da criança ser, a partir deste século, compreendida como objeto de intervenção e investimentos privilegiado em nome de um projeto de futuro, muitas crianças estão fora desse futuro, tendo em vista que seu presente é de pobreza extrema e exclusão social. Esse cenário levou, na última década do século mencionado, o desencadeamento de várias reuniões e desenvolvimento de diversas ações e programas, baseadas nas evidências das condições impróprias de vida de grande parte das crianças na atualidade. Estes relativos consensos produzidos, sobretudo, por organismos internacionais via projetos, financiamentos e intervenção na ação dos governos nacionais e/ou de organizações não-governamentais, concentram-se especialmente na definição de metas 2 e ações emergenciais e paliativas. No entanto, o grande número e o volume de instâncias e projetos envolvidos na “solução” dos problemas da infância concentram-se em estratégias que visam à sobrevivência básica das crianças, sem intervir nos aspectos estruturais determinantes desse quadro da infância mundial associados à pobreza, ficando muito longe de alcançar a realização de seus direitos (CAMPOS, 2008). Após um drástico período de reformas estruturais, a América Latina, em 2008, apresenta índices mais preocupantes, como o fato de que cerca de 12,5% da população viver em situação de indigência, isto é, viver sem ter suas necessidades de alimentação básica atendida (UNICEF/CEPAL, 2010). Neste contingente as crianças são as maiores vítimas. Neste contexto, e num visível desencanto e descrédito em relação às políticas implementadas na década de 1990, observamos na América Latina, a acessão de governos de setores sociais configurando um clima político diferente, de reação aos ditames do pensamento neoliberal e, de conformação de um governo mais próximo às questões sociais. No entanto, em paralelo a este processo, observamos um novo discurso nos documentos produzidos pelos organismos internacionais, de modo que a infância acaba sendo configurada como a “nova questão social”, sendo priorizado o investimento na infância como uma estratégia para romper o “circulo vicioso da pobreza”. Combater a pobreza passa a ser “a tarefa” de vários países e de várias ações supranacionais 5. Entretanto, o que as análises evidenciam é que, esta defesa da infância não é balizada no reconhecimento da criança como cidadã, e a educação como direito subjetivo, de modo específico a educação das crianças menores de três anos. Se analisarmos este segmento educativo na região observamos que o crescimento deste atendimento foi pífio, conforme podemos visualizar na tabela 1: 5 Um exemplo destas ações foi o plano desenvolvido pela OEI que resulto em metas para educação latinoamericana e foi sistematizado no documento: Metas Educativas 2021: la educación que queremos para la generación de los bicentenários. 3 Tabela 1: Taxas de matrícula por idade País 3 anos 4 anos 5 anos Argentina 34,1% 70,0 100,0 Bolívia 0,2 20,4 66,3 Brasil 24,3 43,5 62,4 Chile 22,2 80,5 87,3 Colômbia 22,4 44,9 80,2 Costa Rica Cuba 98,1 100,00 100,0 Equador 6,2 17,5 82,1 El Salvador Guatemala 2,9 13,5 35,4 Honduras 4,7 24,8 53,8 México 33,0 92,0 100,0 Nicarágua 34,2 55,2 83,2 Panamá 6,0 41,1 82,2 Paraguai 3,9 21,4 72,1 Peru 54,0 75,6 87,9 Rep. Dominicana 14,6 26,7 66,5 Uruguai 63,0 88,0 95,0 Venezuela 46,0 72,4 87,1 Fonte: Unesco (2010); Unesco/IIPE/OEI (2009). *5 anos 95,8% 60,8% 82,7 --86,7 --56,6 35,4 47,1 93,9 61,0 78,6 60,9 88,1 74,2 96,1 -- Estes dados evidenciam a focalização no atendimento formal das crianças em idade mais próxima da escolarização não superando assim, a histórica dicotomia existente na educação infantil. Esta tensão ganha novos contornos quando observarmos a novas legislações que ampliam a obrigatoriedade a partir dos quatro anos. Entre todos os países da América Latina, apenas três (Chile, Guatemala e Nicarágua) não apresentam a educação infantil como etapa obrigatória. Quatro países: Argentina, Colômbia, Paraguai e República Dominicana a obrigatoriedade se inicia aos cinco anos; outros quatros países: Bolívia, Brasil, El Salvador e Panamá a obrigatoriedade é definida a partir dos quatro anos; nos países: Equador, México, Nicarágua, Peru e Uruguai a obrigatoriedade se inicia aos três anos. Consta Rica e Venezuela definem como obrigatória toda a educação infantil. Ao analisarmos a organização interna destes diferentes sistemas educativos, observamos que há uma divisão estratégica no atendimento. De acordo com Campos (2011a) observamos um papel mais forte do Estado no provimento das matrículas nas idades mais próxima da etapa escolar. No entanto, o atendimento de crianças menores de três anos, tem uma formação compósita, dependendo majoritariamente de convênios ou “parcerias” entre a esfera pública e a privada, notadamente com as chamadas organizações sociais. Podemos encontrar, então, uma variedade de “arranjos institucionais” – convênios ou associações entre Estado, organizações sociais (de diversos tipos, das empresariais às religiosas), entre ministérios 4 ou órgãos governamentais (saúde, educação, nutrição, saneamento, assistência social) e organizações multilaterais, etc. (CAMPOS, 2011a p.11). Interessante observar que, os mesmo organismos, UNICEF (2010), UNESCO/OEI(2009), OEI (2010) que apresentam a crescente priorização dos governantes da região à educação das crianças entre 4 e 5 anos e, o deslocamento do atendimento das crianças menores de 4 anos para a esfera “não formal”, paradoxalmente são os mesmos que fomentam e induzem por suas orientações e programas, a segmentação entre “primeira infância” e “educação inicial”, circunscrevendo a primeira ao âmbito do “não formal” e a segunda a esfera do “formal” ou institucionalizado. Programas ou ações “não-formais”, cujo como foco é a família e/ou a criança ficam sob responsabilidade comunitária, ao passo que os “formais”, visando à educabilidade das crianças maiores, com vistas a garantir as bases para um futuro percurso escolar exitoso, ficam sob a responsabilidade de espaços institucionalizados inscritos, predominantemente, na esfera da educação pública (CAMPOS, 2010a). E, é neste contexto que observamos uma re-politização da concepção de pobreza que passa a ser tratada como uma “questão cultural” obscurecendo as determinações sociais que a produzem não como diferença ou incapacidade individual, mas como resultado de desigualdade social. O debate é deslocado da arena política e, portanto, das orientações éticas intrínsecas ao âmbito da justiça social, para a esfera da normatividade técnica. De acordo com Telles (1993), a pobreza é percebida como o efeito indesejado de uma história sem autores e responsabilidades. Um resíduo que escapou à potência civilizadora da modernização e que ainda tem que ser capturada e transformada pelo progresso. Seguindo esta perspectiva o Banco Mundial (1990, p.27) definiu pobreza como “incapacidade de atingir um padrão de vida mínimo”, sendo que o padrão de vida mínimo é avaliado pelo consumo, e a incapacidade remete a duas questões: oportunidades econômicas e prestação de serviços sociais. Assim, os governos devem dirigir suas ações nestes dois campos de modo focal (UGÁ, 2004). Nessa concepção, o investimento em capital humano é um dos meios mais importantes para reduzir a pobreza. Ainda de acordo com Ugá (2004): a ideia presente seria, portanto, que, ao educar-se mais, o individuo torna-se mais apto a competir com os outros por um emprego melhor no mercado e, consequentemente, a obter uma renda maior. 5 É nesta lógica que a educação ganha sua centralidade, com ênfase na educação de primeira infância, chave para expansão das capacidades humanas das pessoas pobres. Neste sentido, em 2008, a CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) e a oficina Regional do UNICEF para América Latina e Caribe (UNICEF – TACRO), juntamente com a Universidade de Bristol da Londo School of Economics desenvolveram um trabalho para medir a pobreza infantil nos países em desenvolvimento, de modo a “adaptar a metodologia de medição da pobreza infantil de caráter multidimensional da realidade dos países latino-americanos e caribenhos, e combinando com a medição da pobreza pelos indicadores tradicionalmente realizados pela CEPAL” (CEPAL/UNICEF, 2010 p.13 – Tradução livre). Este estudo indicou que cerca de 45% da população menor de 18 anos vive em situação de pobreza, o que implica em quase 81 milhões de meninos, meninas e adolescentes que sofrem privações em decorrência de não terem algum de seus direitos sendo atendido (CEPAL/UNICEF, 2010). É a partir deste cenário que os organismos internacionais 6 indicam que, quanto mais cedo à criança é educada, maiores serão suas oportunidades de desenvolvimento psicofísico – social, em outras palavras, fundamental investir na expansão das capacidades humanas das pessoas pobres. Ainda que o conceito de capacidade humana seja mais abrangente que o de capital humano, ele também não pressupõe, nem tão pouco defende, a existência de um Estado que garanta os direitos sociais. Pelo contrário, a defesa é de um Estado caridoso, que deverá atuar apenas nos segmentos mais pobres (UGÁ, 2004). Deste modo a presença do Estado somente seria necessária em um primeiro momento, “no sentido de aumentar as capacidades dos pobres, para, em um segundo momento, quando estes indivíduos já estiverem capacitados, o Estado já se tornaria desnecessário” (UGÁ, 2004, P. 60). Dito de outro modo, a pobreza decorre da incapacidade dos indivíduos, que não conseguem garantir nem seus empregos, nem sua subsistência. Em decorrência desta “construção sociológica da pobreza”, a pobreza é entendida como um fracasso individual daquele que não consegue ser competitivo (UGÁ, 2004). As repercussões desta concepção são verificáveis, sobretudo, sob ponto de vista epistemológico nas políticas e programas voltados para as crianças menores de três anos, organizados a 6 Dentre os documentos analisados destacamos: Cepal/Unicef (2010, 2010(a), 2010 (b));BID (2011), UNESCO/IIPE/OEI (2009). 6 partir da concepção de educação integral, fundamentada nos conhecimentos da neurociência e da psicologia cognitiva (CAMPOS, 2011). No Brasil, também podemos observar em nível governamental, ações fundamentadas nesta perspectiva, como nas proposições formuladas pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da Republica (SAE) 7 para a educação da primeira infância. Conjuntamente com estas discussões e ações, cresce a defesa de urgência em promover a equidade social, considerada como base para a promoção de políticas sociais seletivas e focalizadas e, logo, mais eficientes do ponto de vista da gestão social. Equidade Social: tratar diferentemente os desiguais A partir do discurso de tratar diferente os desiguais e da pobreza como incapacidade individual é neutralizada a “dimensão ética da justiça e da igualdade em nome dos critérios de eficácia e racionalidade técnica da economia, passa pela imposição de uma ordem pública subtraída das esferas políticas de representação, negociação e interlocução” (TELLES, 2006, p. 186). Como resultado são eclipsados os problemas das iniquidades e privilégios que se inscrevem no próprio modo que as relações sociais são ordenadas. Ainda de acordo com Telles (2006) parece que todo o problema da igualdade se esgota na garantia de que se garanta o acesso mínimo às necessidades vitais de sobrevivência. Seguindo esta argumentação, a definição de igualdade e justiça social são resignificadas, não sendo mais constituidoras do cidadão, mas sim da figura do pobre. Em outras palavras o conceito de cidadania social é esvaziado, e o Estado deve voltar sua atenção fazendo-lhes caridades diversas, oportunizando assim condições mínimas de sobrevivência. A educação passa da esfera do direito, para a esfera de um serviço, de modo que é imperativo que o Estado garanta um “bom começo” para as crianças, não todas, mas aquelas em situação vulnerável. Neste contexto a educação infantil, em especial a destinada às crianças menores de três anos, não é concebida como um serviço social e educacional de interesse público, muito menos é compreendida em suas possibilidades democráticas, isto é, “não é entendida como a necessidade de fazer as crianças do povo entrarem nas formas 7 Em outubro de 2011, a SAE promoveu o seminário Cidadão do futuro: políticas para o desenvolvimento da primeira infância.Para maiores discussões referente a este seminário indicamos Campos, 2011. 7 simbólicas, no universo dos saberes socialmente construídos e das grandes obras-primas da humanidade” (LAVAL, 2003, p. 308). Entendemos que é fundamental, para educação infantil, recolocar este debate no campo da política, de modo que o Estado, como sujeito político, tenha seu papel reafirmado como responsável e mediador para que a relação entre direitos e justiça social se estabeleça. Neste sentido, fundamental compreender os direitos sociais não apenas como normas jurídicas, mas também como expressão e, ao mesmo tempo, constituidores dos modos pelos quais as relações sociais se estruturam (TELLES, 2006). De modo similar, importante compreender a igualdade como condição política, como medida comum de equivalência, ou seja, como reconhecimento dos indivíduos como diferentes e ao mesmo tempo como idênticos; sendo na singularidade de cada um que podemos nos reconhecer semelhantes. Conceituar esses conceitos no campo da política é fundamental também, para superar as atuais concepções difundidas e que justificam a promoção de políticas sociais seletivas e/ou focalizadas. Importante ainda compreender que o conceito de desigualdade supõe uma distância que impossibilita a definição de uma medida comum; medida que oportunizaria, no interior dos antagonismos e tensões, estabelecer uma regra de equivalência entre as diferenças. Fundamental lembra que, esta medida comum de equivalência é o que sustenta a ideia de que, a despeito de todas as diferenças e antagonismos, há direitos que são universais, extensivos a todos independente de sua condição política ou social (TELLES, 2006). As “desigualdades sociais não podem ser entendidas exclusivamente na perspectiva do direito de receber determinados bens e serviços” (FITOUSSI; ROSANVALLON apud CAMPOS, 2003, p.191). Lembrando que as ações focais não têm o poder, e não se propõe a alterar as relações sociais estabelecidas. Pelo contrário, ações focais reforçam antigas relações de clientelismo, conformando os beneficiados em sujeitos de gratidão, e substituem o acesso universal – direitos sociais, bens públicos – por acesso seletivo, o qual possibilita tanto determinar quem irá receber, quanto quem irá ser o provedor dos benefícios (CAMPOS, 2008). Em uma área historicamentei marcada pela seletividade e segregação, uma vez que, a defesa do direito universal das crianças à educação é acompanhado pela discussão da “necessidade de atender, se não todos, pelo menos aqueles que precisam mais”, mister retomar o debate político do direito das crianças. Na América Latina, observamos inúmeras iniciativas internacionais guiadas pela lógica da focalização, bem 8 como, podemos acompanhar discussões que procuram defender um projeto de educação infantil pública e gratuita perpassado pela necessidade de restringir esse direito às crianças mais pobres, tendo em vista a disponibilização de recursos do Estado. Nesse sentido, entendemos que a centralidade da infância no século atual é marcada por um duplo jogo: por um lado a visibilidade das crianças e de suas misérias e, por outro, a invisibilidade das condições econômico-sociais que as produzem. Centralidade da Infância: a infantilização da pobreza Nossas análises, em relação aos discursos orientadores da política educativa para educação infantil na América Latina, indicam muitas similitudes e divergências nos encaminhamentos regionais, em cenários marcados por contradições, entre avanços no sentido do reconhecimento do direito, mas nem sempre na sua efetivação, em especial quando se refere aos direitos das crianças menores de três anos. Nesse contexto, em especial, nos países com governos de corte mais democráticos, observamos ampliação nos índices de atendimento, no entanto, conforme já demonstrado anteriormente, essa ampliação foi focalizada nas idades finais da educação infantil; observamos também modificações nos modos de operar dos organismos multilaterais na região. Isto é, as antigas formulações e análises reducionistas das crianças e suas infâncias foram substituídas por recomendações ancoradas em interpretações economicistas sobre os benefícios da educação infantil. Este aspecto acaba por conferir centralidade na infância e no reconhecimento da criança, no campo legal, como tendo direito à educação. Entretanto, a efetivação desse direito se dá por duas vias: para as crianças menores a indicação e incentivo é para o envolvimento das famílias, da comunidade, isto é, ampliação deste atendimento via educação não formal; para as crianças com idade mais próxima da escolarização a indicação e o movimento é de tornar este segmento educativo obrigatório, medida esta justificada, com já discutimos, pela imbricação de diferentes ordens discursivas: de justiça social, de garantia de direitos, de combate a pobreza, de sucesso escolar, entre outros. Essas orientações difundem-se largamente nos acordos e protocolos firmados entre governantes e organismos multilaterais, sendo legitimadas e reproduzidas também pelas chamadas “comunidade epistêmica” dando um sentido de unanimidade as ações empreendidas. Observamos ainda a existência de programas e ações marcados pela precariedade, em especial, para as crianças de menos idade e dos segmentos mais 9 pobres da população. Interessante observar que, apesar de todas as discussões, análises, indicações a ideia de uma “política pobre para os pobres” não foi superada, antes, foi “customizada” de modo que as justificadas para os programas dirigidos as crianças menores são fundamentados em modernos artefatos tecnológicos que possibilitam, por exemplo, a exploração do cérebro humano em suas muitas potencialidades. Conforme discutimos anteriormente, sob a égide da ciência, a pobreza foi individualizada e marcada como decorrente das incapacidades dos indivíduos. Em decorrência a solução se encontra, sobretudo na educação, que quanto mais cedo ocorrer a educação mais eficiente será. Há uma atomização da sociedade, na qual os indivíduos precisam sobreviver por sua conta própria no mercado (UGÁ, 2004), e nesse contexto se começa a falar em “infantilização da pobreza”. Posto que, as crianças não são apenas em grande número, mas também são aquelas que, na maioria das vezes, possuem menor capacidade de prover sua subsistência, sendo também mais vulneráveis as diversas formas de violência e de opressão social. Esta constatação certamente é inquestionável, no entanto de acordo com Campos (2011c), torna-se, no entanto, objeto de forte apelo humanista, capaz de mobilizar a solidariedade de diferentes atores sociais, engajando em campanhas humanitárias, notadamente, aqueles cuja visibilidade social é capaz de arrastar, em programas televisivos ou correntes de solidariedade, grandes segmentos da população. A criança e sua educação adquirem sentido de urgência e um caráter estratégico, defende-se que a educação, como já pontuamos, bem organizada e iniciada precocemente, pode mitigar as marcas que a privação e seus efeitos, as vezes duradouros, podem produzir sobre os desempenhos escolares e laborais futuros. Entretanto, no meio de todas essas indicações, justificativas não se evidencia que, essa lógica de política acaba por excluir alguns para poder incluir outros. Considerações finais As análises até aqui realizadas indicam a necessidade de se discutir o direito à educação das crianças na perspectiva de direito social, e como tal, pressupõe um pacto social realizado pela sociedade como um todo, a partir do que se define que o Estado deve garantir uma proteção social, a todos os cidadãos (UGÁ, 2004). O desenvolvimento atual da educação infantil na região, no que diz respeito a sua universalização, se vê ameaçado pelo recrudescimento de perspectivas conservadoras e 10 excludentes, repondo em cena, a trágica tradição histórica da modernização conservadora do país (CAMPOS, 2011c). Consideramos ainda que, a universalização do direito, quando subjugada a lógica da focalização produz um efeito perverso, pois acaba por incluir excluindo, ou seja, pela disjunção entre quantidade e qualidade (expansão sem qualidade), como também “encolhimento” do direito de outros, no caso das crianças de 0 a 3 anos. Entre outras palavras, a adoção deste tipo de estratégia acaba por inaugurar novas formas de segmentação e de focalização de políticas, que “longe de distribuir com “equidade” as “oportunidades educacionais”, criam novas formas de discriminação e de subalternização” (CAMPOS, 2011a). Assim, fundamental considerar que a pobreza não é simplesmente resultado de circunstâncias que afetam determinados indivíduos desprovidos de recursos que o qualifiquem para o mercado de trabalho. Segundo Telles (1993), não é possível qualificar a pobreza apenas como uma condição de carência, passível de ser medida por indicadores sociais. Antes, a pobreza necessita ser compreendida como uma condição de privação de direitos, que define formas de existência e modos de sociabilidade. Num país marcado, historicamente, pela distribuição desigual dos benefícios sociais, no qual, por longo período os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto de negociações de cada categoria com o governo (CARVALHO, 2010); o tratamento das desigualdades sociais como diferenças individuais é no mínimo perigoso. Referencias Bibliográficas BALL, Stephen J. 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