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Sarah Kofman Traduttore, traditore ou: trata-se de uma letra* Nenhuma tradução é inocente Não centrarei minha exposição nos problemas de tradução que o texto de Freud apresenta. Não sou uma tradutora de Freud, mesmo se – porque durante muito tempo faltavam traduções ou eram muito deficientes –, por ocasião de minhas diversas obras *> Tradução de Olívia Niemeyer e Élida Ferreira. sobre Freud, fui induzida a traduzir ou retraduzir seus textos. Percebi então, com espanto, a que ponto as poucas traduções existentes eram infiéis, traindo o texto original, tornando-o ilegível ou sujeito a inúmeras interpretações malsucedidas. A palavra traição não é forte demais, já que, mui- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 For Sarah Koffmann, the word “betrayal” is not too strong when referring to the translation of Freudian texts. She brings up a few particularly significant errors to prove that translators are condemned to being traitors, as expressed in the wellknown Latin expression traduttore, traditore. On the one hand, although Freud insists on the necessary betrayal in the act of translation, on the other he acts as if the “original text” existed in the unconscious, and that the translation should therefore restore the latent content. Key words >Key words: “traduttore, traditore”, mistranslation, Freud, fidelity artigos > p. 27-34 Para Sarah Kofman, a palavra “traição” não é forte demais quando se trata da tradução de textos freudianos. A autora destaca alguns erros particularmente significativos que comprovam que todo tradutor está fatalmente condenado a ser um traidor, como ilustra a expressão Traduttore traditore. Por outro lado, embora Freud insista na necessária infidelidade do ato tradutório, em outras ocasiões ele age como se o “texto originário” preexistisse no inconsciente, devendo a tradução, portanto, visar a restituição integral de um conteúdo latente. >Palavras-chave : “Traduttore, traditore”, erro de tradução, Freud, fidelidade >27 pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 artigos tas vezes, os “erros” de tradução realmente relevavam da censura, frases inteiras dos textos achavam-se “suprimidas”. Darei alguns exemplos escolhidos em antigas traduções, as que eu utilizava, já que apenas recentemente se levou a cabo uma retradução do texto de Freud, sobre a qual, aliás, teremos muito a comentar. Primeiro exemplo: Em “Mot d’Esprit et ses rapports avec l’inconscient”,1 texto de 1905, traduzido por Marie Bonaparte e o Dr. R. Nathan, é citada a expressão latina Amantes amentes, que uma nota declara ter sido tirada de Brill. Nota incompreensível, já que o texto de Brill, ao qual Freud alude, é posterior ao de Freud. Os tradutores negligenciaram em precisar que essa nota foi acrescentada em 1912, por ocasião de uma nova edição. 2 Podemos apreciar o sabor desse “esquecimento” ao sabermos que tal exemplo se inscreve em suplemento ao Traduttore, traditore que pertence, tecnicamente, ao mesmo tipo de chiste, por simples modificação. Poderíamos, no mesmo texto, sublinhar alguns erros análogos: Freud anuncia que vai dar três exemplos3 para ilustrar tais ou tais técnicas. Para nossa grande surpresa, lemos cinco deles: os dois que estão a mais foram >28 acrescentados, por Freud, durante edições ulteriores, em notas, mas foram integrados ao corpo do texto pelos tradutores – sem a menor advertência ao leitor. Sempre no mesmo texto, indicarei outro tipo de erro que não releva mais de uma simples negligência ou de liberdade, mas mais propriamente de uma “falta”, o que não deixa de ser grave. Em todo lugar em que Freud fala de povo ( Volk ) judeu4 – quando ele sublinha, por exemplo (p. 166-7), sua particular aptidão para criar chistes –, a tradução substitui povo por raça, “falta” que não poderia ser inocente nem inocentada numa tradução que data de 1930, apesar de ter sido revista, como está dito, pelo professor Freud. No início da tradução de “Moïse et le monothéisme” [Moisés e o monoteísmo], por Anne Berman, que data dos anos 1940, encontramos uma “falta” do mesmo estilo e que releva claramente da censura. O texto começa por: “Déposséder un peuple de l’homme qu’il célèbre comme le plus grand de ses fils est une tache sans agrément et qu’on n’accomplit pas d’un coeur léger”.5 O texto alemão acrescenta: “sobretudo quando pertencemos, nós mesmos, a esse povo”, pedaço de frase que “desaparece” na 1> “O chiste e suas relações com o inconsciente”. E.S.B. Tradução de Margarida Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. v. VIII. (N. da T.) 2> Na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Freud , vol.VIII, p. 41, em relação à citação da expressão amantes amentes (os amantes são loucos) do texto de Brill (1911), posterior ao de Freud, há a seguinte nota: “[Nota de rodapé acrescentada em 1912]: Brill [1911] cita um chiste de modificação quase análogo: Amantes amentes (os amantes são loucos)”. (N. da T.) 3> Quando no texto se anuncia que vão ser dados três exemplos, na Edição Standard Brasileira ( ESB), v. VIII, p. 39, insere-se a seguinte nota: “[Este número, por todos os direitos deveria ter sido corrigido para ‘quatro’ em 1912; não obstante ficou inalterado.]”. (N. da T.) 4> Na ESB faz-se referência a: “os judeus”, “anedotas de judeus”, “chistes de judeus” etc. (N. da T.) 5> Despossuir um povo do homem que é celebrado como o maior de seus filhos é uma tarefa sem atrativo e que não se cumpre com o coração leve. O texto da ESB. (v. XXIII: p. 19) é: “Privar um povo do homem de quem se orgulha como o maior de seus filhos não é algo a ser alegre ou descuidadamente empreendido [...]”. (N. da T.) tradução para sublinhar que esses casos particularmente significativos não eram jamais “inocentes”, da mesma forma que não o é – entre as inúmeras “deficiências” – a seleção que proponho, sintomática dos meus próprios centros de interesse relacionados com minha identidade judia e feminina, o que faz com que eu considere essas “faltas” chocantes ou, até mesmo, escandalosas. Outra pessoa e numa outra época as teria, provavelmente, colocado menos em evidência. Freud foi o primeiro a demonstrar, de maneira sistemática, notadamente em “Psicopatologia da vida cotidiana”, que nenhum “erro”, nenhum “lapso”, nenhum “esquecimento”, nenhuma “censura” eram fruto do acaso, mas remetiam a conflitos entre forças psíquicas de natureza diversa “traduzindo-se” em formações de compromissos e outro tanto de sintomas. É bem por isso que não estranhava que existisse, por assim dizer, uma fatalidade em todo tradutor, a fatalidade da traição; é o que sublinha em “O chiste...” a propósito da expressão Traduttore, traditore, que considera particularmente boa, pois “a similitude das duas palavras, que frisa a identidade, exprime de maneira surpreendente a fatalidade que faz do tradutor o traidor de seu autor”.8 Enquanto a técnica da modificação leve – trata-se de 6> Na edição brasileira o trecho não foi omitido: “... e, muito menos por alguém que, ele próprio, é um deles” (p. 19). (N. da T.) 7> Na ESB. temos: “Existe apenas uma libido, que tanto serve às funções sexuais masculinas, como às femininas. À libido como tal não podemos atribuir nenhum sexo”, e ainda continua, “Se, consoante a convencional equação ‘atividade e masculinidade’, nos inclinamos a qualificá-la como masculina, devemos não esquecer que ela também engloba tendências com uma finalidade passiva” (v. XXII, p. 161). (N. da T.) 8> Na ESB, v. VIII, p. 41: “A similaridade das duas palavras, que quase remonta à identidade, representa da maneira mais impressionante a necessidade que força o tradutor a cometer crimes contra o original”. Ligada a esse trecho há, na edição brasileira, a seguinte nota: “[Nota de rodapé acrescentada em artigos Fatalidade da traição pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 tradução6 de maneira ainda mais lamentável por ter sido esse texto escrito em 19371938 e por ter sido Freud acusado, pois transformava Moisés em egípcio, de ter renegado – num momento muito mal-escolhido – sua identidade judia (lido atentamente e em alemão, esse texto me parece antes ser uma resposta direta ao anti-semitismo hitleriano e à “argumentação” de Mein Kampf). Por fim, último exemplo tirado da “Nouvelle Conférence sur la féminité” [Nova conferência sobre a feminilidade], traduzida igualmente por Anne Berman, em 1936. Texto particularmente maltraduzido e responsável por numerosas interpretações malsucedidas concernentes às relações de Freud com a feminilidade, e do qual as “feministas” se apropriaram para lançá-lo às gemônias. Por exemplo, elas censuram Freud por ter afirmado que a libido é, por essência, masculina. Ora, o texto alemão, com todas as letras, declara: “Wir können ihr (à libido) selbst kein Geschlecht geben”: “não podemos lhe atribuir nenhum gênero”, e esta afirmação vem depois desta aqui: “Não existe senão uma libido, a qual se encontra a serviço da função sexual tanto masculina como feminina”. Depois, o texto alemão, mais uma vez não traduzido em francês, acrescenta que é por pura convenção – já que o uso aproxima a virilidade da atividade – que ele qualificará a libido de “viril”.7 Relevei alguns desses “erros” ou “faltas” de >29 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 >30 uma letra – faz explodir o escândalo moral e lógico da união ilegítima entre dois termos que tudo deveria separar (se considerarmos que o ideal na tradução, assim como no casamento, é a fidelidade), ao afirmar a fatalidade da traição, Freud sugere que, apesar das regras morais e lógicas e mesmo apesar da vontade de obedecê-las, intervêm em toda tradução (como em todo casamento) forças ainda mais fortes, as das pulsões e seus conflitos, às quais ninguém escapa, ainda mais que relevam de processos inconscientes. O que, evidentemente, não quer dizer que todo “erro” de tradução tenha essa origem “psíquica”, nem que a fatalidade da traição possa ser reduzida a isso. Freud o sabia muito bem, já que demonstra precisamente a impossibilidade de traduzir, por exemplo, um chiste de uma língua para outra, a criação de uma palavra exigindo o que Freud denomina (calcando essa expressão sobre “complacência somática”, forjada a propósito dos sintomas somáticos de origem histérica) a complacência lingüística, própria de uma determinada língua; nesse caso, a única tradução possível consiste em forjar um jogo de palavras equivalente, do mesmo tipo técnico, na língua tradutora, levando em conta sua singularidade “complacente” que a faz se prestar, ou não, à formação de tal ou tal expressão. Acentuando, pelas duas razões invocadas (psíquica e lingüística), a fatalidade da traição, Freud coloca em questão, portanto, o postulado segundo o qual bem traduzir seria restituir em uma outra língua, num outro sistema formal de signos, o sentido, o conteúdo do texto original. Nessa perspectiva, a “tarefa do tradutor” seria de “entregar por inteiro” o sentido, de reembolsar integralmente a dívida devida à língua originária, sem resto. Postula-se que o sentido, o conteúdo ou o original preexiste à tradução, que ele constitui um núcleo essencial e indestrutível, transportável indiferentemente para tal ou tal sistema formal de signos, separável, por direito, do sentido, já que simples envelope ou vestimenta9 que poderíamos sempre trocar sem modificar em nada o essencial. Traduzir consistiria, antes de tudo, em comunicar um sentido imutável preexistente. Ora, se por um lado Freud continua a usar, em “Os chistes...” [Le mot d’esprit], as mesmas metáforas10 (as da língua como vestimenta ou envelope), por outro, o trabalho que ele opera sobre o chiste ensina-lhe que, de maneira tão evidente quanto para um texto poético, o conteúdo de um chiste não poderia ser separado de sua “forma”, de maneira que, ao querer traduzi-lo para outro sistema de signos, preservando o mesmo conteúdo, perderia todo seu sabor, quer dizer, não seria, em nada, espirituoso. Querer traduzir “restituindo” somente o sentido, como se diz, retomando a expressão usada por Horácio a propósito da tradução de um poema em prosa, é entregar somente membra disjecta e não o corpus inteiro. Em vez de contribuir para a sobrevivência do original – que é a verdadeira tarefa do tradutor, segundo Benjamin – é condená-lo ao despedaçamento, ao desmembramento e à morte. 1912]: Brill (1911) cita um chiste de modificação quase análogo: Amantes amentes (os amantes são loucos)”. (N. da T.) 9> Na exposição de Pierre Macherey podemos, por exemplo, encontrar uma citação de ChallemelLacour, na qual a tradução de Barni de Kant é apresentada como uma “nova roupagem”. 10> Cf. Kofman, S. (1986) Pourquoi rit-on? Freud et le mot d’esprit. Editora Galilée. língües nos permitiu decifrar” (p. 101, P.U.F.). Em “Les sens oppossés dans les mots primitifs” [A significação antitética das palavras primitivas – v. XI], ele lembra que, segundo o lingüista Abel, a língua egípcia, “esta relíquia única de um mundo primitivo”, é a língua arcaica por excelência, na qual podemos encontrar, como em sonho, “um certo número de palavras possuindo dois sentidos, dos quais um é exatamente o contrário do outro”. É precisamente por isso que ela pode servir, por sua vez, de modelo de compreensão ao sonho e a todos os fenômenos regidos pelas leis dos processos inconscientes. Da mesma maneira que os pais da Igreja reescrevem a história se servindo dos restos do passado egípcio a partir dos restos fantasmáticos indeléveis que retornam nos sonhos, nos lapsos, etc., Freud reconstrói a história do desenvolvimento individual (o Egito ainda aí representa o estádio o mais arcaico do desenvolvimento, o estádio narcísico no nível individual, o estádio animista no nível coletivo). Traduzir os “hieróglifos” psíquicos não é tentar reproduzir fielmente um texto original; é, a partir de restos, de resumos elípticos, de “traduções” ou de substitutos originários, esforçar-se em (re)constituir um original que nunca é dado em outro lugar senão em seus destroços, em seus membra disjecta. Todas essas “traduções” ou substitutos originários são como outro tanto de dialetos11 de uma língua única fundamental12 na qual se deslocam os processos primários, universais: língua primitiva, arcaica, desaparecida, cujos restos se acham disseminados em diferentes domínios (patológicos ou 11> Cf. L’intérêt de la psychanalyse (Ransay). 12> Para essa expressão, conferir a Introdução à psicanálise na qual Freud, sem nomeá-lo, faz alusão a Schreber que tinha imaginado a existência de uma tal linguagem fundamental. Para apoiar sua tese, cita o lingüista Sperber que teria conhecido a significação sexual originária da língua. artigos Mas se Freud sobretudo insiste especialmente sobre a necessária ausência de fidelidade ao “texto original” é porque (de certa forma e mesmo se isso não é declarado abertamente por ele), em outras áreas, além das que concernem à tradução propriamente dita, ele “desconstrói” a idéia de um texto original preexistente à tradução. A tradução é originária e é ela que permite não tanto a “sobrevida” do texto originário, mas sua “vida”: pois ele não existe em nenhum lugar a não ser em suas traduções e é assim que, a partir de suas lacunas, é possível (re)construí-lo hipoteticamente. Com efeito, todas as traduções psíquicas ou culturais (e não somente as que, como o chiste ou os lapsos, relevam da linguagem, propriamente falando) são tratadas por Freud como textos mais ou menos enigmáticos, obscuros, estrangeiros, porque mais ou menos mutilados e truncados, mesmo quando parecem absolutamente claros e evidentes, sem nada dissimular. Esses textos, ditos manifestos, são de fato verdadeiros hieróglifos que Freud propõe traduzir, como um novo Champollion, para lhes restituir – ou dar, aí está toda a questão – um sentido que não possuem mais, ou nunca possuíram como tal, e que ele denomina o texto latente que traduziria o texto manifesto, deformando-o. Assim, A interpretação dos sonhos compara a escritura do sonho aos hieróglifos, e em Estudos sobre a histeria , a propósito do caso Katharina, Freud escreve: “Freqüentemente comparamos a sintomatologia histérica aos hieróglifos, que a descoberta de certos escritos bi- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 A tradução é originária >31 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 >32 normais, privados ou públicos) fazendo eco uns aos outros. Apesar de sua diversidade, esses membra disjecta são reconhecíveis como destroços de uma mesma ânfora (para retomar a imagem de Benjamin), de um mesmo corpus. Nenhum desses fragmentos, nenhuma dessas versões dialetais representa o original como uma cópia, mas como as peças de um quebra-cabeça que se completam harmonicamente, os fragmentos permitem (re)constituir o corpus inteiro da ânfora desde sempre partida ou da língua desde sempre perdida; eles permitem tentar “repará-la”. Essa reparação é pensada, podemos acrescentar, como o pagamento de uma dívida a uma língua fundamental, ou, ainda, materna, já que a tradução que Freud empreende dos hieróglifos psíquicos é, para ele, o equivalente a uma descida em direção ao que denomina (retomando de Breuer uma imagem que ele herdou de Goethe) les portes des mères, da qual somente ele, como novo Champollion, detinha as chaves. Mães “recalcadas” nas profundezas infernais do inconsciente que retornam somente na multiplicidade das línguas babélicas, quebradas e desmembradas. É por isso que “traduzir”, tal como o entende Freud, releva da lógica paradoxal do fetichismo: trata-se de restituir intacto o corpus (da língua) desde sempre quebrado, restituir toda inteira a ânfora ou o caldeirão, desde sempre muito bem furado. As três línguas das mulheres A originalidade de Freud – a partir da sua concepção do psiquismo como texto a ser decifrado – é de ter introduzido um novo conceito da “tradução”, que leva em conta o ponto de vista tópico (teoria dos lugares psíquicos, com três níveis: o inconsciente, o pré-consciente, o consciente) e o ponto de vista dinâmico (o do conflito entre as forças e as instâncias psíquicas). Uma língua sempre fala em profundezas diversas e é esse grau de profundeza que é necessário saber se apropriar para traduzir corretamente um texto enigmático e estranho, mesmo quando – na primeira escuta – parece não exigir nenhuma tradução. Isso se encontra melhor ilustrado por uma história relatada duas vezes em “Os chistes...” [Mot d’esprit], a da baronesa austríaca e judia que em trabalho de parto se queixa, sucessivamente, em três línguas. Enquanto ela está deitada em seu leito de dor, seu marido joga cartas com o médico. A baronesa começa lançando seus apelos e gemidos em francês: “Ah!, mon Dieu, que je souffre”. Depois, um pouco mais tarde, em alemão: “Mein Gott, mein Gott, was für Schmerzen!”. Por duas vezes o marido afasta suas cartas e se levanta, febril; o médico, por sua vez, permanece calmo e impassível até que, enfim, ela faz ressoar em iídiche um grito inarticulado: “Oï waih, oï waih!” Somente então o médico afasta as cartas, seguro que o “bom” momento chegara.13 No primeiro estádio, ape- 13> Na ESB. este exemplo aparece da seguinte forma: “O médico a cujos cuidados se confiou a Baronesa em sua gravidez, anunciou que ainda não chegara o momento de dar à luz e sugeriu ao Barão que enquanto esperassem jogassem cartas no cômodo vizinho. Após um momento, um grito de dor feriu os ouvidos dos dois homens: ‘Ah, mon Dieu, que je souffre!’ Seu marido levantou-se de um salto, mas o médico fez-lhe sinal que se assentasse: “Não é nada. Vamos continuar com o jogo!’ Pouco depois novos brados da mulher grávida: ’Mein Gott, Mein Gott, que dores terríveis!’ – ‘Não vai entrar, professor?’, perguntou o Barão. ‘Não, não, ainda não é a hora.’ Finalmente chegou da porta próxima um inconfun- dível grito de ‘Ai, ai, ai!’. O doutor largou as cartas e exclamou: ‘ Agora, é a hora’.” V. VIII, p. 83. (N. da T.) 14> Na ESB., v. VIII, p. 188, lê-se: “Já encontramos alguns exemplos do efeito cômico do desmascaramento nos chistes – por exemplo, na história da aristocrática dama que exclamava ‘Ah! Mon Dieu!’ no início de seus trabalhos de parto, mas a quem o médico só atendeu quando gritou ‘Ai, ai, ai!’ ”[p. 183]. O texto remete à página 183, onde é discutido o efeito cômico do chiste; todavia a história do parto da baronesa encontra-se mesmo à página 83, como se vê na nota anterior. (N. da T.) artigos diano não visa mais a humanidade em geral, mas determinada mulher distinta, gritando sem se conter no momento das dores do parto. O alvo, desta vez, é de rebaixar uma mulher, entre todas, respeitável, uma futura mãe cuja anedota se compraz em exibir as fraquezas, em fazê-la cair de seu pedestal sublime, mostrando-a vítima das funções corporais as mais animais, as mais primitivas. Qualquer que seja a leitura – e a hesitação epistemológica freudiana entre as duas classificações não é, evidentemente, negligenciável –, o essencial para nosso propósito é que Freud coloca em foco a necessidade, sob pena de ser abusivo, de traduzir numa linguagem rigorosa uma língua que se exprime espontaneamente de maneira obscura e enganosa, quer dizer, a necessidade de se ter em conta, na escuta, a diferença tópica. É isso que, na história, o marido não soube fazer – o amante da língua – já que, ao oposto do médico, está pronto a se levantar ao menor apelo daquela que o seduziu. Querendo ir depressa demais ao socorro da esposa sofredora, as três línguas exprimem, para ele, a mesma coisa, a dor, sem que sua orelha, mal-exercitada e insuficientemente distanciada, possa discernir os diferentes níveis de profundidade. Bem escutar ou saber traduzir é ser capaz de distanciar-se em relação à língua espontânea. Não é mais fazer o papel do jovem esposo enamorado, mas o papel laborioso e paciente do médico (do psicanalista), do repara- pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 sar das dores, a baronesa continua a falar como um ser humano hiper-refinado, utilizando o francês, uma língua mundana, signo da sua grande cultura. No segundo estádio, quando as dores se tornam mais intensas, o apelo substitui os gemidos e ela faz uso do alemão, língua costumeira para ela, antes de, no último estádio, abandonar-se à linguagem a mais arcaica, a do grito inarticulado emitido em iídiche, revelando para o especialista que a baronesa tinha chegado aos últimos extremos, já que, desta vez, ela abriu mão de todas as suas resistências, suas linguagens de fachada (consciente e pré-consciente) que dissimulam, por trás de uma cultura refinada, alguma coisa de muito mais primitiva (inconsciente). Segundo a interpretação dessa anedota, que é tratada sucessivamente como um excelente chiste e depois como uma simples expressão cômica, Freud declara, primeiramente, que o que a baronesa encobre é a natureza primitiva da humanidade em geral que, apesar dos entraves da educação, ressurgiria por ocasião de uma dor forte. Tal seria a lição que dá a entender o chiste (p. 118), “traduzido” por Freud, que se apóia nas modalidades sucessivas das queixas de uma mulher da alta sociedade que dá à luz. O grito final surgiria do mais “profundo” da natureza humana, quer dizer, do inconsciente, onde teria sido recalcado pelas exigências de autocontrole preconizadas pela civilização (o consciente). Quando a história é interpretada como cômica,14 o desmascaramento freu- >33 dor de línguas envelhecidas que perderam, há muito tempo, a frescura e a juventude. A língua espontânea deve ser traduzida, pois ela não é confiável, tendo perdido, há muito, desde sempre, sua originalidade e sua integridade. Dela não existem senão traduções que se dissimulam como tais e exigem, portanto, por sua vez, serem traduzidas. É o que Freud não declara abertamente; se ele deixa transparecer, no que faz, que existem somente traduções ou substitutos originários de um texto original – que é somente uma (re)construção hipotética, a “tradução” dessas traduções –, quanto ao que ele diz, Freud age como se o “texto originário” ou o conteúdo latente – que ele constrói metodicamente pela sua “tradução” – preexistisse tal e qual no inconsciente, a tradução devendo então visar a restituir integralmente o texto latente. Por exemplo, a propósito do sorriso da Gioconda, Freud declara que [da Vinci] representa, pela pintura, o sorriso de sua mãe. Que ele restitui: “Se o sorriso da Gioconda avivava em seu espírito a lembrança de sua mãe, compreendemos facilmente que ele teria sido levado a glorificar a maternidade e a repetir em sua mãe o sorriso que tinha encontrado na dama nobre”.15 Mas no que faz Freud, leva a supor que o “sorriso da mãe” não existiria em nenhum outro lugar senão no da Gioconda, que era dele o substituto ou a tradução originária. E podemos encontrar outras “versões” artísticas como a do sorriso das estátuas gregas arcaicas (por isso, nas suas traduções, Freud substitui o método genético pelo método estrutural comparativo).16 Terminarei por um outro sorriso, ressaltando unicamente que as traduções que Freud oferece dessas traduções originárias permanecem as de um homem hipercivilizado. Dessa forma, querendo fazer com que sua histérica Dora 17 tenha consciência de que seu discurso recalca tudo o que concerne à sexualidade, ele declara em francês que se trata de denominar “un chat un chat”, apresentando, de maneira paradoxal, como paradigma da expressão direta, uma expressão disfarçada, indireta e, para ele, em língua estrangeira. A “tradução” não é, portanto, o retorno tal e qual da língua fundamental. Como somos seres civilizados, ela sempre permanecerá,, ela própria, um tanto histérica ou hieroglífica. pulsional > revista de psicanálise > ano XV, n. 158, jun/2002 artigos Artigo recebido em março/2002 Aprovado para publicação em abril/2002 >34 15> “Un souvenir d’enfance de Leonardo da Vinci ”. Na versão brasileira, “Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua infância”, v. XI, p. 102: “... se é verdade que o sorriso de Gioconda lhe despertava recordações de sua mãe, fácil será compreender como isso levou a criar a glorificação da maternidade, e a restituir à sua mãe o sorriso que encontrava na nobre dama”. (N. da T.)] 16> Cf. Kofman , Enfance de l’art ( Payot, 1970 – Galilée, 1985) 17> Cf. “Le cas Dora”, in Cinq psychanalyses (P.U.F.) [“O caso Dora”, em Cinco lições de psicanálise ]
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