Pulsão de morte em humanês

Transcrição

Pulsão de morte em humanês
Pulsão de morte em humanês
Lucas Nápoli
Se você não é daqueles que, como eu, apreciam uma boa masturbação intelectual
lendo as proezas faladas e escritas pelos srs. Freud e Lacan, mas quer apenas saber o que
diabos significa esse negócio de “pulsão de morte”, pois bem: seja feita tua vontade.
Pra quem não sabe, a grande preocupação de Freud quando fazia psicanálise não
era a cura de seus pacientes. Como bom cientista que era, Freud estava mais interessado
no que os neuróticos poderiam ensinar-lhe sobre o psiquismo. Em suma, Freud queria
saber de que forma funcionava a cabeça das pessoas.
Durante os primeiros 20 e poucos anos de seu trabalho, nesse esforço para
descobrir a lógica da psique, Freud elaborou uma hipótese muito poderosa: a de que a lei
que regia os processos mentais era a busca de prazer e a evitação do desprazer.
Como ele chegou a essa idéia? Pela análise de um fenômeno bastante curioso que se
tornou a base da teoria psicanlítica: o recalque. Freud observou que no discurso de seus
pacientes haviam lacunas referentes a pontos específicos de suas histórias de vida. No
decorrer das análises, era possível perceber que tais lacunas eram provocadas pelo fato de
o paciente ter excluído de seu campo de consciência certas lembranças. Por quê? Porque
tais lembranças lhes traziam desprazer. Eis, portanto, a observação-chave que fez com que
Freud sustentasse até 1920 a idéia de que o psiquismo era regulado pelo princípio de
prazer.
Por volta do ano 1920, alguns fenômenos fizeram com que Freud modificasse seu
pensamento. Em primeiro lugar, a técnica psicanalítica tal como vinha sendo praticada não
vinha mostrando mais os sucessos dos tempos áureos de Anna O. Os pacientes não
melhoravam e por mais que o erro fosse técnico, era impossível não notar que os
pacientes pareciam se satisfazer com o próprio sofrimento. Parecia que eles,
inconscientemente, queriam se manter doentes.
Em segundo lugar, a Primeira Guerra Mundial, que Freud assistiu de perto. De
1914 a 1918, o mundo experimentara uma quantidade de destruição e violência jamais
vistas na história.
Diante desses dois fatos: a resistência dos pacientes à cura e a agressividade
humana elevada à milésima potência, seria ainda possível dizer que a finalidade do
aparelho psíquico é apenas a busca de prazer?
Continuando: Freud então se vê às voltas com fenômenos que parecem contradizer
sua teoria geral de que o homem age visando o prazer. O pai da Psicanálise resolve então
publicar em 1920 um livrinho chamado “Além do Princípio do Prazer”, um dos raros escritos
de Freud de difícil leitura.
Desde o início do livro Freud faz questão de dizer que as conclusões que se
encontram no texto não devem ser levadas tão a sério por se tratarem basicamente de
especulações. No entanto, por mais que a tradicional modéstia freudiana deva ser levada
em conta, não se pode deixar de ver no texto que Freud está às voltas com uma descoberta
revolucionária para o entendimento do homem.
A idéia-chave de “Além do Princípio do Prazer” é a de que o ser humano possui
uma tendência que, diferentemente da pulsão sexual, não o leva a buscar o prazer, mas a
buscar uma satisfação que ultrapassa os limites do prazer. Pensem bem, meus amigos:
para que exista prazer é preciso haver antes um desconforto, um desprazer. O prazer da
saciedade e do orgasmo só podem advir após um período prévio de privação de alimento e
de sexo. Ou seja, o prazer é meramente o retorno a um estado de equilíbrio que foi perdido
quando a gente começou a sentir fome ou tesão.
Mas o que Freud percebe é que nós, macacos inteligentes, não nos satisfazemos
com o equilíbrio, com o prazer: a gente quer mais. E por a gente querer mais, acabamos
nos estrepando. Freud prova isso com três exemplos interessantes, mas apresentarei um
melhor em seguida.
Os de Freud se resumem ao fenômeno quase demoníaco chamado repetição: são
os casos de pessoas que sempre entram em relações amorosas que lhes fazem mal, mas
que inexplicavelmente não conseguem mudar: inconscientemente parecem procurar o
próprio mal. Outro exemplo são os ex-combatentes de guerra que em seus sonhos, em vez
de satisfazerem seus desejos, reviam as cenas de guerra. E o último exemplo é a visão do
vovô Freud de seu neto brincando com um carretel. A criança repetia incansavelmente uma
brincadeira que consistia em jogar o carretel para debaixo da cama e depois puxá-lo
novamente com a linha. Freud nota nessa brincadeira que seu neto substitui
simbolicamente a mãe pelo carretel. Assim, era como se com o desaparecimento do objeto
ele quisesse representar as saídas da mãe e com o reaparecimento seu retorno. Mas,
vejamos: a não-presença constante da mãe é um evento sofrido para a criança,
concordam? Por que então ela se divertia fazendo uma brincadeira que reproduzia tal
situação?
Vimos que os fenômenos que Freud utiliza para ilustrar o novo princípio do
funcionamento mental que havia descoberto foram da ordem da repetição. Estou certo de
que você, leitor, já deve ter se feito a pergunta: “Por que por mais que eu não queira
fazer tal coisa, eu continuo fazendo?” Nas próprias Escrituras encontramos São Paulo se
lamentando por fazer o mal que não quer.
Pois é, meus amigos, Freud resolve chamar essa compulsão a repetir o mesmo erro
de Pulsão de Morte. Por que “de Morte”? Porque, ao contrário das pulsões sexuais que
nos fazem construir ligações afetivas e gerar outras vidas e das pulsões de autopreservação
(como a fome, p. ex.) que nos fazem preservar nossa própria vida, a Pulsão de Morte
parece querer levar-nos para o buraco!
Mas ainda permanece a pergunta: por que tal impulso existe em nós? A única
forma com que Freud consegue dar solução a esse problema é recorrendo a uma hipótese
velhinha, elaborada por um dos primeiros psicólogos, um sujeito chamado Gustav Fechner.
Esse dizia que nosso aparelho psíquico era como uma máquina de descarregar tensão (A
ansiedade vem justamente quando não conseguimos descrregar a tensão acumulada). O
problema é que se a tensão for totalmente descarregada, a gente morre! Logo, ao
realizarmos completamente a tendência de nosso aparelho psíquico, o resultado é a…
morte.
Vejamos, então, a conclusão de Freud: se nosso aparelho psíquico tende a
descarregar toda a tensão que acumulamos no dia-a-dia, quando eu tenho necessidade de
repetir as mesmas coisas, é porque eu ainda não consegui descarregar. A repetição é uma
forma de tentar descarregar toda a tensão. Querem ver um exemplo terrível de como isso é
verdade?
A drogadição. A melhor imagem para a pulsão de morte é a chamada
“Cracolândia”, a região de São Paulo onde convivem à luz do dia traficantes e consumidores
de crack. O viciado deixa de pensar em trabalho, estudo, namorada, para passar o dia a
fumar seu cachimbo. O que esse cara busca? Paz. Sim, ele não quer prazer sexual, ele
não quer o prazer de comer um sanduíche, ele quer uma sensação maior. Ele quer uma
satisfação que não o faça mais ter fome, ter sede, ter tesão. E ele quase consegue: por uns
poucos minutos a droga lhe dá essa ilusão. Mas o efeito em pouco tempo passa.
E aí é necessário repetir, e repetir, e repetir…

Documentos relacionados