Um apego singular: a transferência e suas surpresas1

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Um apego singular: a transferência e suas surpresas1
Um apego singular: a transferência e suas surpresas1
Maria Inês Lamy2
“Freud serviu a Eros para se servir dele.” (J. Lacan)
No princípio era o amor – é assim que Jacques Lacan circunscreve o ponto de
origem da psicanálise. O apego de Anna O. a Breuer emergiu como um amor
apaixonado, surpreendendo aos dois. E ali onde Breuer recuou, Freud seguiu adiante,
tentando delinear a singularidade do apego na análise. Diz Jacques-Alain Miller que “a
transferência, longe de ser efeito do inconsciente, tem muito mais lugar de causa. É pela
transferência que tornamos presente, mobilizamos e lemos o inconsciente”.3 Sabemos
que A interpretação dos sonhos, obra inaugural da psicanálise, teve como ponto de
sustentação a relação transferencial com Fliess, que movia Freud a explorar, em seus
sonhos, o desconhecido e o estranho.
O que é então a transferência?
Segundo Freud, quem é feliz não fantasia. A diferença entre o esperado e o
encontrado produz o sujeito e o trabalho psíquico. Na ânsia de aplacar a defasagem
estrutural, o sujeito procura, por um lado, caminhos e relações, o que faz com que a
capacidade de transferir seja um fato de estrutura, fruto da perda do objeto de satisfação.
Por outro lado, a transferência também é satisfação, apego, já que, a partir da perda
estrutural, o sujeito produz uma resposta e constitui um objeto mais-de-gozar que causa
atração e repulsa e que orienta suas buscas e tropeços.
E qual o lugar do analista? De que lugar ele responde ao apego?
Freud dizia que devemos receber cada caso como se fosse o primeiro. J.-A. Miller
frisa o “eu não sei” como a marca da psicanálise.4 O “eu não sei” do lado do analista
apontaria para o não saber também do lado do sujeito. Cava-se um buraco que indicará,
em última instância, o impossível de saber. É essa posição do analista que faz com que
o sujeito trabalhe, associe, no afã de construir algum saber sobre o que lhe aflige. Miller
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Texto lido na Abertura das XX Jornadas Clínicas da EBP-RJ e ICP-RJ, setembro 2010.
Coordenadora da Comissão Científica das XX Jornadas Clínicas da EBP-RJ e ICP-Rj.
3
MILLER, J.-A. “O inconsciente real”. Em: Curso de Orientação Lacaniana, p. 5.
4
MILLER, J.-A. “Coisas de Fineza”. Curso de Orientação Lacaniana, aula XI, de 11 de março de 2010.
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lembra que, segundo Lacan, analista e analisando estão, nesse sentido, do mesmo lado,
ambos diante do que não se sabe. Constitui-se assim um apego singular que convoca ao
trabalho. Dessa produção não se obtém resposta imediata ou aplacamento rápido do
mal-estar. Mas a presença do analista fará com que o apego ao analista se transforme em
apego à análise e, ainda, em apego ao inconsciente, satisfação na fala irrefletida, sem
fins utilitários, em pura perda.
Mas algo insiste, fazendo o sujeito resistir ao trabalho associativo. Freud, em
1905, dá como uma das razões de seu abandono da hipnose o fato de esta não permitir
“reconhecer a resistência com a qual o paciente se apega à sua doença”.5 O apego à
“doença”, que faz o mal neurótico brotar qual erva daninha,6 se reproduzirá na situação
analítica. J.–A. Miller sublinha que, além do “eu não sei”, visa-se ao “isso” ao qual o
sujeito está apegado. E como o apego transferencial pode fazer frente ao apego ao
“isso”? Percebendo que era impossível enfrentar um inimigo in absentia ou in effigie,
Freud propõe que, naquele mesmo ponto em que incide como obstáculo que interrompe
as associações e impulsiona o sujeito a repetir, a transferência pode se tornar o motor do
tratamento.
Lacan vai mais adiante e sublinha que a transferência não é repetição, que a
repetição nunca é do mesmo. Coloca ênfase no manejo da transferência pelo analista, na
posição da qual ele opera, que o faz escutar e recolher, da aparente repetição, a surpresa.
O apego ao objeto sofre assim remanejamentos ao longo da análise. E, nos momentos
de surpresa, o objeto se revela separador.
Remeto agora a um caso, no qual o apego e a surpresa aparecem de forma nítida.
Trata-se do episódio relatado por Freud no belo texto “Distúrbio de memória na
Acrópole”.7 Aos oitenta anos, em uma carta a seu amigo Romain Rolland (que fazia
setenta anos), Freud relembra um fato ocorrido trinta e dois anos antes (quando ele tinha
quarenta e oito anos).
Estando de férias em Trieste e decididos a irem à Ilha de Corfu, Freud e seu irmão
visitam um amigo, que os entusiasma a mudarem de planos, dizendo-lhes que o guichê
5
FREUD, S. “On psychotherapy” (1905[1904]). Em: The Standard Edition. Londres: Hogarth Press,
1975, vol. VII. p. 261.
6
LACAN, J. “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1998, p. 630.
7
FREUD, S. “A disturbance of memory on the acropolis” (1936). Em: The Standard Edition. Op. cit, vol
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onde comprarão suas passagens também vende bilhetes para Atenas. Ao saírem da casa
do amigo, Freud e o irmão, conversando, só encontram impedimentos na possibilidade
de desvio do projeto inicial. Ficam, no entanto, depressivos durante toda a manhã. À
tarde, quando o guichê abre, eles imediatamente, sem hesitar, se dirigem ao vendedor e
pedem duas passagens para Atenas. O desânimo, índice da culpa por estarem cedendo
do desejo, é assim ultrapassado pelo ato, causando surpresa.
Chegando finalmente à Acrópole, local que sempre o havia atraído, e que tanto
conhecia de imagens de livros de infância, Freud é acometido de um sentimento de
desrealização. Vem à sua cabeça: “Quer dizer que existe mesmo tudo isso, exatamente
como aprendi na escola.” A divisão neurótica volta a se manifestar, impedindo que ele
usufrua da experiência. Aos oitenta anos, as associações de Freud remetem ao pai,
comerciante de poucos estudos e horizontes limitados, que nunca havia viajado para
longe. E ele conclui que lhe era difícil ultrapassar o pai. O conflito edípico e o apego à
neurose fizeram com que ele tentasse apagar o real da experiência, remetendo-a ao
imaginário já conhecido. Freud ficou então impedido de retirar prazer da contingência,
do real, anulando assim a surpresa.
Aos oitenta anos, não podendo mais viajar, Freud ainda tenta entender sua
vacilação do passado. Parece querer transmitir, no endereçamento ao amigo um pouco
mais jovem, que não é preciso sustentar o pai, ou temer ultrapassá-lo, já que o apego ao
pai como garantia é uma ilusão neurótica.
Mais de trinta anos depois, se dando conta talvez de seu recuo diante da
contingência e da surpresa, vemos Freud ainda assombrado pelo enigma, causado pelo
que lhe escapa e, enfim, trabalhando a partir do não saber.
Ao longo destes dois dias, veremos então como o “eu não sei” (o não saber) se
presentifica, seja na análise de neuróticos ou psicóticos seja na vida cotidiana,
ocasionando o apego singular da transferência e causando efeitos de surpresa.
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