a estrutura do eu em freud e o modelo biológico da identidade
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a estrutura do eu em freud e o modelo biológico da identidade
1 A ESTRUTURA DO EU EM FREUD E O MODELO BIOLÓGICO DA IDENTIDADE Alexandre Simões Barbosa* *Neuroftalmologista. Doutarado em Medicina (Oftalmologia), Pesquisador da UFMG. Membro do Núcleo de Ética e Bioética da UFMG. E-mail: <[email protected]> *Neuro-ophthalmologist. Doctorate in Medicine (Ophthalmology), Researcher of UFMG. Member of Center of Ethics and Bioethics of UFMG. E-mail: <[email protected]> RESUMO: Desenvolvimentos recentes da biologia oferecem elementos para uma reflexão sobre a estrutura do eu em Freud, com ênfase na estabilidade da estrutura do eu frente às contingências da história do sujeito, assim como suas inscrições e seus trilhamentos. Palavras-chave: Sujeito; Estrutura; Biologia; Imunologia; Rede idiotípica. THE STRUCTURE OF THE I IN FREUD AND THE BIOLOGICAL MODEL OF IDENTITY. ABSTRACT: Recent developments in biology offer elements for reflection regarding the structure of the concept of “I” in Freud, with emphasis on the structural stability of the “I” facing the contingencies of the subject’s individual story, as well as its inscriptions and its tracings. Keywords: Subject; Structure; Biology; Immunology; Idiotypic network. Em Análise terminável e interminável ([1937] 1996), um de seus textos mais tardios, Freud retoma a questão crucial da estrutura do eu, fundamentada na investigação das razões do insucesso terapêutico na psicanálise. Freud examina os efeitos “patogênicos” das exigências instintuais e dos eventos traumáticos sobre o eu e afirma que um dos objetivos do trabalho analítico é o amansamento (Bändigung) do instinto. O eu é retomado na sua perspectiva histórica, na qual os efeitos de um evento são determinados em função da estrutura do eu no momento em que o evento ocorre. Freud investiga o insucesso terapêutico tanto no decorrer do trabalho de análise quanto após o seu fim e questiona o efeito definitivo da análise na profilaxia de novos sintomas diante de novos eventos traumáticos na história do sujeito. Freud se utiliza do termo “imunidade” para descrever essa profilaxia. Sua aposta é radical: para que o trabalho de análise seja eficaz, a intervenção deve ser feita sobre a estrutura do eu. 2 Freud foi testemunha do desenvolvimento inicial da imunologia, que ocorreu no momento em que o discurso médico se torna científico. Essa mudança discursiva foi fortemente determinada pelos primeiros resultados da pesquisa imunológica. Isso porque pela primeira vez uma intervenção médica, a vacina, produzia um efeito sobre a história natural da doença. O modelo que se estabeleceu com base nos estudos de Pasteur se restringia à presença de linhagens celulares voltadas para o meio externo, em vigilância contra as ameaças do meio, enquanto não eram previstos contatos ou interações dessas células entre si ou com outros elementos internos. Nesse contexto, a existência do sistema imunológico era justificada por haver um limite além do qual o que se apresenta é estranho, e cujo contato exigiria uma resposta de defesa. Entretanto, apesar da eficácia inicial das primeiras vacinas, esse modelo não era consistente com duas das principais condições clínicas no campo da imunologia: a imunodeficiência e autoimunidade, respectivamente, a falência de resposta imunológica e a resposta imunológica contra estruturas do próprio corpo. Mais ainda, o modelo não previa um evento biológico fundamental: a chamada tolerância oral, definida pela ausência de resposta ao material potencialmente imunogênico presente no alimento. A partir da cavidade oral, esse material não induz respostas progressivamente mais intensas em função da repetição do contato, como ocorre por outras vias. Ao contrário, ocorre supressão da resposta a esses materiais e estabilização da atividade imunológica. A cavidade oral e o trato gastrointestinal constituem um espaço de exterioridade, e o contato que se estabelece nessa interface produz uma inscrição imunológica distinta da que ocorre nas demais vias. A tolerância oral é uma situação privilegiada na investigação da interface com a exterioridade e sustenta, no registro da topologia, a toricidade do sujeito biológico. Mais do que exterioridade, a pesquisa biológica sugere que o material externo participa de nossa extimidade. A demonstração mais significativa de uma extimidade estrutural partiu do campo da genética. Estudos de sequenciamento do genoma realizados nos últimos 20 anos demonstraram a presença de material genético de origem biológica distinta, decorrente de interações passadas e transmitidas no processo de ontogênese, como parte integrante do DNA humano. A atividade desse material genético e sua interação com a estrutura geral do genoma é essencial para o estabelecimento e a regulação de muitos processos fisiológicos, particularmente aqueles relacionados à atividade imunológica. O material genético incorporado na estrutura do sujeito torna mais complexa a noção da interface, por serem essas inscrições feitas em diferentes estratos da identidade biológica do 3 sujeito. Pode-se aqui considerar, mais uma vez no registro da topologia, o reviramento de toros acoplados. A partir dos anos 1950, novos estudos permitiram a revisão do modelo imunológico que tinha se constituído até então. Em seu estudo The natural-selection theory of antibody formation (1955) Jerne demonstrou que as imunoglobulinas, antes consideradas moléculas de defesa produzidas exclusivamente em resposta ao contato com o material externo, precedem esse contato, o que sugere uma função estrutural. Essa demonstração colocou em evidência uma autodeterminação estrutural na síntese de imunoglobulinas e constituiu a base para a maior contribuição de Jerne na compreensão da identidade biológica, apresentada em seu estudo Towards a network theory of the immune system (1974). Nesse estudo, o sistema imunológico é concebido como uma rede constituída de imunoglobulinas e outros elementos celulares, que interagem sobre si formando um sistema. Essa autorreatividade, antes considerada um evento restrito a condições autoimunes, foi apresentada por Jerne como um pressuposto para a regulação da rede, que assim mantém sua estabilidade. A rede apresenta uma arquitetura complexa, formada por subsistemas e elementos de conexão que têm sido recentemente descritos e modelados. Alças de regulação na superfície desses subsistemas determinam tanto os limites de sua extensão quanto a sua participação na conectividade geral da rede. A estabilidade da rede é dinâmica, e se verifica quando determinado evento provoca uma ruptura localizada na rede, que é prontamente reconstruída. Na situação fisiológica, o sistema é intensamente autorreferenciado e capaz de se autoproduzir continuamente, com preservação de sua estrutura. Nesse processo, a forma de se autorreconstruir essa topologia constitui a “assinatura” biológica do sujeito. Se ocorre expansão de determinado subsistema, este se dissocia da rede porque seus elementos se tornam menos acessíveis à regulação. Essa expansão passa a ser determinada pela dinâmica de seus elementos internos, com perda da estabilidade da rede. Condições imunológicas graves produzem uma clivagem da estrutura, uma Spaltung. O processo de reconhecimento de um material externo, a princípio estranho ao sujeito, envolve o processo sequencial de sua “apresentação” ao sistema imune. Para isso, o material é fragmentado e reorganizado por linhagens celulares específicas, que selecionam alguns fragmentos a ser expostos a outras linhagens celulares para que ocorra a síntese de imunoglobulinas. Esses fragmentos não são produzidos aleatoriamente, e sim selecionados pela estrutura do sujeito. Esse processo se assemelha à edição de um texto, em que os fragmentos apresentados ao sistema imune perdem sua semelhança com os materiais originais. Uma das formas de seleção desses fragmentos é a correspondência com as 4 chamadas imagens internas, que se localizam materialmente nas regiões de ligação das imunoglobulinas. Essas imagens internas já existiam antes do contato; dessa forma, o que é externo é modificado para corresponder a essa imagem. Portanto, é a partir da emergência de determinadas configurações de imagens internas na história de cada sujeito que será feita a seleção do que será reconhecido. Esse processo demonstra um paradoxo: o material externo, estranho ao sujeito, é reconhecido por semelhança. Com esse reconhecimento, são estabelecidos novas inscrições e novos trilhamentos. Uma ocorrência semelhante é demonstrada no campo da neurofisiologia, por meio de estudos do mecanismo de memória. Segundo Ansermet (2001) as inscrições produzidas por um evento e os trilhamentos que se estabelecem a partir dessas inscrições produzem um afastamento irremediável do evento que os tinha produzido. As contribuições desses campos distintos demonstram que a estrutura dos trilhamentos se relaciona com a própria estrutura do sistema. Isso porque o trilhamento parte do evento e conduz à estrutura. A propósito dos mecanismos de defesa, Freud afirma em Análise terminável e interminável ([1937] 1996, p. 254) que eles se apresentam em número restrito em cada sujeito, “se fixam em seu eu” e “se tornam modalidades regulares de reação [...], repetidas durante a vida, sempre que ocorre uma situação semelhante à original”. Não é toda a experiência, e sim alguns elementos dessa experiência que são reconhecidos pelo sujeito. A ampliação dessas estruturas defensivas faz com que o eu continue a se defender de perigos que não mais existem na realidade e passe a buscar na realidade as situações que possam servir como “substituto aproximado do perigo original”, de modo a poder justificar suas “modalidades habituais de reação”. Essas estruturas defensivas assim amplificadas contribuem para o enfraquecimento do eu, na medida em que menos energia fica disponível para suas atividades. Nas palavras de Freud, essas resistências ficam “isoladas no eu”, o que faz com que o instinto se torne inacessível dentro de sua estrutura e, então, busca seguir seu caminho independente para a satisfação. Freud afirma que, por efeito da análise, o eu remodela a estrutura das suas repressões, montando e desmontando seus elementos, e se organizando de forma mais consistente, e que “o grau de firmeza” dessas repressões permite que elas não cedam a um aumento da força instintual. Entretanto, resíduos de organizações anteriores ainda se mantêm na “configuração final”, e são pouco acessíveis ao trabalho da análise. “O controle do eu sobre o instinto é melhorado, mas permanece imperfeito, porque a transformação no eu [...] é incompleta” (FREUD, [1937] 1996, p. 243). Além disso, se o instinto é demasiadamente 5 intenso, ele pode fazer uma ruptura dessas estruturas, mesmo quando o eu se encontra amparado e fortalecido pelo trabalho analítico. Em Análise terminável e interminável, Freud ([1937] 1996) atualiza a questão da estrutura do eu, introduzindo elementos que foram posteriormente estabelecidos com o desenvolvimento da pesquisa biológica. Para Freud, a intervenção no trabalho de análise deve ser feita sobre a estrutura do eu, porque ela define suas próprias inscrições e trilhamentos, portanto se autodetermina. Nesse contexto, os acontecimentos na história do sujeito modificam continuamente a estrutura do eu, mantendo sua estabilidade. Não há correspondência entre os eventos e seus efeitos. Exatamente nesse espaço se encontra cada sujeito, com suas inscrições e trilhamentos, e é aí que deve estar concentrada nossa investigação. REFERÊNCIAS ANSERMET, F. A chacun son cerveau. Plasticité neuronale et inconscient. Paris: Odile Jacob, 2011. p. 201214. BEHN, U. Idiotypic networks: toward a renaissance? Immunological Reviews, 2007. 216; 142-152. FREUD, S. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. 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