Aspectos finito e infinito da análise

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Aspectos finito e infinito da análise
Aspectos finito e infinito da análise: sobre a finalidade da psicanálise1
Maria Edna de Melo Silva2
Resumo
O presente trabalho propõe uma reflexão relacionada aos aspectos finitos e infinitos de uma análise. Aponta para uma perspectiva
sobre a finalidade de a psicanálise não estar voltada diretamente para a cura total de seus sintomas, inibições e angústias, mas
contribuir no sentido de ajudar o paciente a melhor lidar com suas dificuldades e garantir as melhores condições possíveis para
as funções do ego, dando a possibilidade de o sujeito relançar o seu desejo e com isso apropriar-se de outra maneira de sua
história, ou seja, uma outra história se escreveria pela subjetividade, segundo novas coordenadas interpretativas.
“O tempo passa antes que o analista reconheça o que faz,
e o que sabe não progride senão no só-depois do seu ato.”
Nasio, 1989
Em nossa atualidade, a questão do final da análise
ainda é bastante polêmica. Esse fato nos faz questionar o
que leva um psicanalista a dar por encerrado seu trabalho
terapêutico. Que critérios guiaria o analista nessa decisão?
Existe realmente uma cura total? O que fala Freud sobre
essa questão?
Na busca dessas respostas é que recorremos ao
texto “Análise terminável e interminável” (Freud, 1937), numa
tentativa de esclarecer tais questões, que ainda em nossa
atualidade são discutidas, fazendo com que nos debrucemos
sobre a intricada relação de uma construção que, a partir
de Freud e depois de outros contemporâneos como Lacan,
Winnicot etc., é objeto de questionamento permanente em
nossa prática psicanalítica cotidiana.
Para tanto, tomaremos como base teórica o texto
de 1937, no qual Freud trata da análise terminável e
interminável, questionando o aspecto final da análise, sua
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preocupação quanto à extensão temporal das análises,
apontando ainda uma dúvida quanto à eficácia do processo
psicanalítico, ao tempo que apresenta os fatores que
considera decisivos para o sucesso ou não do tratamento.
Enfatiza, também, que a preocupação dos analistas
deveria estar voltada para o estudo das dificuldades,
limitações e obstáculos que ocorrem durante o processo, e
não com o seu fim.
Logo no início do seu texto, Freud (1937, p.231)
afirma: “a experiência nos ensina que a terapia psicanalítica
– a liberação de alguém de seus sintomas, inibições e
anormalidades de caráter neuróticos – é um assunto que
consome tempo”. Assim, sua preocupação se dirige ao tempo
de uma análise.
Daí a tentativa de Otto Rank (1924), no livro o
“Trauma do Nascimento”. Ele supõe a neurose como uma
“fixação primeva” da criança para com sua mãe – que
Trabalho apresentado na I Jornada Interna dos grupos de estudo do GPAL em setembro/2007.
Psicóloga clínica pelo CESMAC/AL, Pedagoga, com Pós-Graduação em Orientação Escolar.
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poderia persistir como um “recalque primevo” – e propõe
que a neurose terminaria ao se lidar com esse trauma
primevo por meio de uma análise subseqüente. Contudo,
Freud nos alerta para o fato de que o argumento de Rank
há de ser considerado dentro da perspectiva pós-guerra,
objetivando ajustar o ritmo da terapia analítica à pressa da
vida americana.
Apesar de fazer uma crítica ao trabalho de Rank
(1924), Freud (1937) concorda com a possibilidade de
encurtar a duração da análise, afirmando que seria mesmo
desejável. Realiza algumas experiências nesse sentido, porém
constata que a técnica analítica, por lidar com a subjetividade
do sujeito, não pode precisar quanto tempo cronológico
o paciente levará para revelar os primeiros sinais de que
alguma elaboração interna está sendo realizada.
Foi o que mais tarde Lacan (Lacan, apud Quinet, 1988)
veio a ressaltar sobre o tempo lógico do sujeito, com o qual
não se poderiam estabelecer suas premissas sobre bases de
um tempo marcado cronologicamente. Este é um tempo que
não pode ser demarcado a priori, já que assim não estaríamos
considerando as particularidades de cada paciente.
Em r elação ao tempo de análise, alguns
contemporâneos de Freud perceberam a necessidade de
estabelecer indicadores da subjetividade que pudessem
conduzir o analista para dar alta ao paciente. Segundo
David E. Zimerman (2004), desde Freud existe uma velha
polêmica: a análise é terminável ou é sempre interminável?
Muitos pensam que deve ser terminável do ponto de vista
formalístico, porém nunca é totalmente terminável caso se
leve em conta que a cura analítica é bem diferente da cura,
ou alta, em clínica médica.
Se levarmos em conta o prefixo latino in no sentido
de uma interiorização e não de uma negativa, que é o seu
outro significado habitual, podemos dizer que uma análise
se torna terminável quando ela fica interminável, ou seja,
um tratamento analítico termina formalmente quando o
analisando, à mercê de uma introjeção (in) da função
psicanalítica do seu analista, está equipado para prosseguir
sua eterna função auto-analítica, e, dessa forma, continuar
efetuando renovadas mudanças psíquicas(Zimerman,2004).
Então poderemos nos perguntar: que cura é esta,
da qual fala a psicanálise? Freud questiona em seu texto
de 1937 se realmente se consegue uma cura permanente
ou mesmo impedir que os sintomas voltem a acontecer,
demonstrando assim um pessimismo quanto à eficácia do
processo psicanalítico, explicitando a necessidade de os
analistas estarem mais voltados para um maior conhecimento
dos obstáculos, dificuldades e limitações que ocorrem no
percurso de uma análise.
Um dos obstáculos e dificuldades está relacionado
ao uso dos mecanismos de defesa constituídos para evitar
as primeiras situações de perigo, angústia e desprazer
experimentadas pelo ego. Estes servem de propósito para
manter afastado os perigos, porém eles próprios podem
transformar-se em perigo, constituindo assim um forte
obstáculo ao processo terapêutico, pois reaparecem no
tratamento como resistência ao próprio restabelecimento.
Quanto aos limites da interpretação, podemos dizer
que Freud se deparou com esses limites diante de casos
e situações em que a técnica clássica não funcionou, e aí
devemos retornar aos anos de 1920. A partir de 1924,
segundo Chertok & Stengers (1999), Freud passou a se
ocupar de pacientes ideais (candidatos em formação),
deixando os pacientes reais por conta de seus seguidores,
dentre eles Ferenczi, que tentou se livrar dos limites da
interpretação adotando modificações técnicas capazes de
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trazer uma maior eficácia aos resultados terapêuticos.
Voltando à questão do término da análise, é
impor tante a existência de critérios que indiquem a
adequação do término formal da análise. Segundo Zimerman,
2004, estes são muitos e variáveis, dependentes de uma
série de fatores multideterminados. A obtenção final do
resultado analítico nunca se dará total e plenamente ao nível
da perfeição absoluta; isso justifica alguns indicadores que
conduzam à adequação e que possibilitem ao analista uma
avaliação das diversas áreas do psiquismo.
Quanto aos indicadores, podemos citar: modificações
da qualidade das relações objetais; menor uso dos
mecanismos defensivos primitivos; renúncia às ilusões
de natureza simbiótico-narcisista; capacidade de fazer
desidentificações (patogênicas) e, a par tir daí, fazer
neo-identificações; reintegração às partes que estavam
explicitadas e projetadas; capacidade de suportar frustrações;
capacidade de consideração pelas outras pessoas, bem como
de fazer reparações; diminuição das expectativas do ego
ideal e ideal do ego; abrandamento do superego; libertação
das áreas autônomas do ego; utilização plena da linguagem
verbal; aquisição do sentimento de identidade, autenticidade
e autonomia; reconhecer-se diferente e separado de outras
pessoas; aquisição da função psicanalítica da personalidade
(Zimerman, 2004).
Esses indicadores enfatizam o que Freud afirma em
seu texto (1937) que a intenção da psicanálise é fortalecer
o ego, ampliar seu campo de percepção e aumentar sua
organização, de maneira que possa apropriar-se de novas
partes de seu id.
Atingido esse seu objetivo, Freud (1937) esclarece
que considera final de análise quando ocorre a supressão
dos sintomas e ansiedades do paciente: a conscientização
do material recalcado suficiente para evitar a repetição
de um processo patológico, uma mudança a tal ponto no
psiquismo do paciente que tornaria impossível esperar
novos efeitos do tratamento. Porém Freud considera
ser esse um objetivo ideal, pois percebeu ser ambicioso
demais tal objetivo, julgando ser impossível por meio da
análise chegar-se a um nível de normalidade absoluta.
Daí entender a natureza aparentemente interminável
do tratamento, sendo este algo determinado por lei e
dependente da transferência.
Este fato não é claramente colocado por Freud
(1937) neste texto, porém ele aponta seus indícios,
especialmente quando faz referência ao paciente descrito em
“História de uma neurose infantil” (Freud, 1918), cujo caso
clínico é conhecido como o homem dos lobos:
Suas resistências definharam e, nesses últimos meses
de tratamento, foi capaz de reproduzir todas as lembranças
e descobrir todas as conexões que pareciam necessárias
para compreender sua neurose primitiva e dominar a atual.
Quando me deixou a meados de 1914 [...] acreditei que sua
cura fora radical e permanente (1937, p. 232).
A respeito da discussão entre transferência e término
do tratamento analítico, um outro alvo de Freud é a análise de
Sandor Ferenczi. Sem fazer referência explicita à identidade
do paciente, ele comenta que, nesse caso, após a supressão
dos sintomas e o encerramento da análise, o médico fora
surpreendido pelas críticas do paciente. Essas acusavam
Freud de não ter fornecido ao paciente uma análise completa,
a qual deveria ter levado em conta o fato de que o sentimento
transferencial nunca pode ser exclusivamente positivo, o que
levou Freud a se defender, explicando que não é prudente o
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analista levantar as transferências negativas quando estas
não se manifestam.
Além deste fato da transferência, Freud (1937)
também menciona no decorrer de seu texto os fatores
que reconhece como decisivos para o sucesso ou não do
tratamento analítico. São eles: a influência dos traumas, a
força constitucional das pulsões e as alterações do ego.
Os dois últimos são considerados prejudiciais à eficácia
do tratamento analítico, podendo até tornar a análise
interminável, por demonstrarem os limites interpretáveis. Um
dos fatores mais poderosos diz respeito à pulsão de morte;
esta é a responsável por grande parte das resistências e,
sobretudo, a causa suprema de conflitos na mente.
Em relação às forças das pulsões, Freud (1937)
questiona se mediante o processo terapêutico o paciente
pode livrar-se de um conflito da pulsão ou se apenas ocorre
um amansamento desta, pois considera impossível livrar-se
de modo permanente e definitivo de um conflito pulsional,
e que qualquer solução de um conflito pulsional só será
viabilizada por uma força específica entre a pulsão e o ego.
Freud apresenta, então, uma dica de tratamento, que
seria analisar o movimento pulsional do sujeito em torno de
um objeto, um dos meios de averiguação da possibilidade do
término do tratamento e da desmontagem da pulsão, ou seja,
o desvelamento do objeto com o qual o sujeito está implicado.
Sabemos que, em se tratando de alguma forma
de neurose, são dois os destinos da pulsão: recalque ou
sublimação. De qualquer modo, se considerarmos a neurose
vinculada à estrutura do sujeito, este jamais se tornará normal.
Um outro aspecto importante, segundo Freud, referese à questão homem/mulher e ao final de análise. Ora, se o
homem e mulher são assimétricos, presume-se que o final
da análise para ambos é diferente, já que as respectivas
posições e modos de lidar com a falta no campo do outro
também são diferentes.
No caso da mulher, a inveja do pênis; no caso do
homem, um temor à passividade, à feminilidade. Freud
também adverte a respeito da impossibilidade de, através
da análise, o paciente conseguir chegar a um nível de
normalidade psíquica absoluta, conseguindo solucionar
todos os recalques e preencher todas as lacunas de suas
lembranças.
É claro que o sujeito nunca deixará de ter uma
questão, mas esta não é a questão do término da análise.
O sujeito não deixa de ser um neurótico, estruturalmente,
mas passará de uma posição alienada para uma posição
analisante.
Como disse Freud, (1937), nosso objetivo não é
dissipar todas as peculiaridades do caráter humano em
benefício de uma normalidade, e tampouco exigir que uma
pessoa que foi completamente analisada não sinta paixões
ou desenvolva conflitos internos.
O êxito de uma análise não depende só do analisando,
mas de o analista ter aprendido o suficiente dos seus
sofrimentos, erros e equívocos. Para alcançar o êxito
do processo é necessário levar em conta a perspectiva
do tratamento analítico, as dificuldades relacionadas às
resistências, a natureza do ego e a individualidade do
analista.
Ante todo o exposto, o presente trabalho reforça que
a finalidade de uma análise é garantir as melhores condições
possíveis para que as funções do ego se for taleçam,
desenvolvendo suas tarefas de acordo com suas reais
possibilidades. É certo que a análise não tem por objetivo
perseguir a cura, uma vez que seu final nunca se dará total
e plenamente ao nível da perfeição absoluta.
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Maria Edna de Melo Silva
Referências
Chertor & Stengers (1999). La blessure narcissique. Paris:
Le Plessis Robinson.
Didier – Weill, Alain. (1993). Fim de uma análise, finalidade
da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Freud, Sigmund. (1937). Análise terminável e interminável.
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas
de Sigmund Freud, v. 23. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Lourenço, Lara Cristina (2005). Transferência e complexo
de Édipo, na obra de Freud: Notas sobre o destino da
transferência. Psicologia: reflexão e crítica,18(1) pp.143-149.
Nasio, Juan-David (1989). Lições sobre os sete conceitos
cruciais em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Quinet, A. (1988). As 4 + 1 Condições da Análise. 6ª ed. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar.
Rank, O. (1982). Lê traumatisme de la naissance. Paris. Payot.
Zimerman, David E. (2004). Manual de técnica psicanalítica:
uma revisão. Porto Alegre: Artmed.
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