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MÔNICA PEREIRA DOS SANTOS O DIREITO DA FILIAÇÃO : Os efeitos jurídicos decorrentes da aplicação da reprodução assistida heteróloga na vigência do casamento e após a morte do cônjuge varão Trabalho apresentado ao curso de graduação em Direito da Universidade Católica de Brasília, como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Orientadora: Prof.ª Especialista Viviane da Silva Bernardes Rodrigues. Brasília 2007 Trabalho de autoria de Mônica Pereira dos Santos, intitulado “O direito da filiação: os efeitos jurídicos decorrentes da aplicação da reprodução assistida heteróloga na vigência do casamento e após a morte do cônjuge varão”, requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, defendida e aprovada, em 06/11/2007, pela banca examinadora constituída por: Viviane da Silva Bernardes Rodrigues Profª. Orientadora – Presidente da Banca João Paulo Neves Primeiro Examinador Joel Arruda de Souza Segundo Examinador Brasília 2007 “Não ver fatos que estão diante dos olhos é manter a imagem invisibilidade da Justiça situações irresponsabilidades: é cega. Condenar existentes olvidar é que à produzir a Ética condiciona todo o Direito e, principalmente, o Direito de Família.” Mauro Nicolau Júnior RESUMO SANTOS, Mônica. O direito da filiação: Os efeitos da reprodução assistida heteróloga na vigência do casamento e após a morte do cônjuge varão. 2007. 92 f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) - Faculdade de Direito, Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2007. As técnicas de reprodução assistida consistem no auxílio médico empregado para garantir a fecundação de gametas (esperma e ovo não fertilizado), incluindo a sua manipulação in vitro, ou seja, fora do corpo humano. Essas técnicas são desenvolvidas há décadas, mas somente alcançaram maior notoriedade no século XXI. E, ao mesmo tempo, despertaram grandes polêmicas. Aplicáveis tanto na modalidade homóloga quanto heteróloga, tais procedimentos permitem que a fecundação utilize material genético do casal interessado em ter filhos, material genético de uma das partes do casal combinada ao material de doadores ou ainda a fecundação utilizando material genético totalmente doado. Dividindo opiniões acerca da sua aplicação, essas técnicas reprodutivas seguem viabilizando a concepção de filhos por casais inférteis, o nascimento de prole de pais que já morreram e até mesmo a gestação nos úteros de mulheres que não são as mães da criança gerada (maternidade sub-rogada). A despeito de sua nobreza principiológica, não há como negar que a reprodução assistida acabou tomando proporções muito maiores que a mera procriação e é em virtude dos seus diversos efeitos patrimoniais e pessoais que merece ser estudada com maior cautela. Carecedoras de produção legal mais ampla, as técnicas de reprodução assistida são questionadas principalmente em relação aos valores bioéticos que vêm sendo construídos a partir dos avanços tecnológicos alcançados e dos próprios valores defendidos no Direito de Família pátrio. Já incorporadas à estrutura social moderna essas técnicas ainda necessitam de regulamentação de forma a garantir estabilidade jurídica ao ordenamento no qual estão inseridas. Palavras-chave: Direito de Família. Bioética. Filiação. Reprodução assistida. Heteróloga. Post mortem. Efeitos. ABSTRACT SANTOS, Mônica. The rights of filiation: the effects of the assisted heterologue reproduction during the marriage and after the death of the male partner. 2007. 92 p. Monograph (Graduation) - Law School, Universidade Católica de Brasília, Taguatinga, 2007. The assisted reproduction technique consists in a medical support used to guarantee the fecundation of gametes (sperm and unfertilized ova), including its in-vitro manipulation, it is, the fecundation outside the human body. These techniques are being developed for decades, though they have reached great notoriety only in the XXI century. And, at the same time, they awoke huge polemic. Applied in the homologue and heterologue modalities, these insemination procedures allow the fecundation using the genetical material of the couple interested in having children, the genetical material of one in the couple combined to the genetical material of a donor or even the fecundation using a completely donated material. Dividing opinions due to their application, these reproduction techniques keep realizing the conception of children by infertile couples, the birth of children whose parents have already died and even the pregnancy in wombs of women who are not the mothers of the children concepted (subrogation motherhood). Despite its noble principles, there is no way to deny that the assisted reproduction has taken bigger proportions than the simple procriation and it is due to its multiple personal and patrimonial effects that it must be analyzed with greater care. In need of legal production, the techniques of human reproduction are questioned specially in attention to the bioethical values that have been developed from the technological advance and to the values defended by the Brazilian Family Law. Already incorporated to the modern social structure, these techniques need their regulation as a way of guaranteeing the legal stability to the ordenament in which they are inserted. Key-words: Family Law. Bioethics. Filiation. Assisted human reproduction. Heterologue. Post death. Effects. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................................7 1. A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO JURÍDICO FAMILIAR.......................................9 1.1. Família: modelos clássicos e modernos.........................................................................9 1.2. A definição do Estado de família.................................................................................11 1.3. Parentesco ....................................................................................................................12 1.4. Filiação.........................................................................................................................15 1.4.1. A constituição da filiação: filhos naturais, adotivos e biogeneticamente concebidos .........................................................................................................15 1.4.2. O princípio da Igualdade da filiação ................................................................16 1.4.3. A presunção da filiação na legislação brasileira................................................17 1.4.4. A determinação da filiação: a verdade jurídica, a verdade afetiva, a verdade biológica e a verdade real ..............................................................................19 1.4.5. Os efeitos pessoais e patrimoniais da filiação ...................................................20 1.4.5.1. Os efeitos pessoais ...............................................................................21 1.4.5.2. Os efeitos patrimoniais.........................................................................22 1.4.5.2.1. Os alimentos ........................................................................22 1.4.5.2.2. A vocação hereditária..........................................................23 2. A EVOLUÇÃO CIENTÍFICA E AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA .........................................................................................26 2.1. O direito à reprodução e as polêmicas acerca da reprodução assistida ....................26 2.2. As técnicas de reprodução assistida..........................................................................28 2.3. Os requisitos objetivos, subjetivos e formais à reprodução assistida .......................32 2.4. O material genético excedente: dispensabilidade, conservação ou doação? ...........38 3. A FILIAÇÃO DERIVADA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA ...........................................................................................................41 3.1. A possibilidade da reprodução assistida no casamento e na união estável.................41 3.2. A reprodução assistida post-mortem do cônjuge ou companheiro ..............................44 3.2.1. A revogação do consentimento prestado ...........................................................46 3.2.2. A possibilidade da constituição do vínculo da filiação .....................................47 4. OS EFEITOS PESSOAIS E PATRIMONIAIS DA FILIAÇÃO CONCEBIDA POR REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA NA VIGÊNCIA DO CASAMENTO E APÓS A MORTE DO CÔNJUGE ....................50 4.1. Os efeitos em relação ao casal ..................................................................................50 4.1.1. A constituição dos vínculos paterno-materno-filiais......................................51 4.2. Os efeitos em relação aos filhos gerados..................................................................53 4.2.1. O direito ao reconhecimento paterno .............................................................53 4.2.2. O conhecimento da identidade genética e a proteção ao sigilo......................54 4.2.3. O direito aos alimentos e à sucessão hereditária............................................56 4.3. Os efeitos em relação ao doador...............................................................................58 CONCLUSÃO........................................................................................................................60 7 INTRODUÇÃO A infertilidade desde os tempos mais remotos é uma condição que assombra diversas famílias, inviabilizando um dos desejos mais simples: a paternidade. A medicina desenvolveu-se de forma a buscar na evolução científica uma forma de possibilitar cura para a infertilidade ou, ao menos, potencializar a fecundidade. As técnicas de reprodução assistida apresentaram-se à sociedade como uma forma de famílias inférteis poderem ter filhos, utilizando o seu próprio material genético ou o material genético de doadores, permitindo inclusive que a fertilização pudesse ocorrer fora do corpo humano. Fato é que muitos casais acabaram por encontrar nessas técnicas de reprodução medicamente assistidas um meio de serem pais, mas sem se submeterem a longos e burocráticos processos de adoção. Hoje mundialmente consagradas, as técnicas reprodutivas começam a concentrar os holofotes dos debates doutrinários de ordem ética e jurídica, em face da grande polêmica que advém de sua aplicação. No Brasil não ocorre processo inverso, principalmente após essas técnicas terem sido abruptamente introduzidas no ordenamento jurídico pátrio por meio da edição do Código Civil em 2002. Isso porque se percebeu que da aplicação dessas técnicas pode decorrer um sem número de conseqüências de ordem jurídica, ética e emocional para todos que nelas estão envolvidos. Pais, filhos gerados, doadores, médicos, sobre todos pode ser observado, seja diretamente ou indiretamente, o peso da responsabilidade pelo procedimento. De qualquer sorte, a evolução científica é algo que não pode ser negado ou simplesmente proibido, pois vários são os filhos gerados a partir desses procedimentos, sendo que este número tende a aumentar. Justamente por ser polêmico e haver pequeno avanço legislativo no que lhe diz respeito é que o tema merece a devida atenção científica. O objetivo aqui não é esgotar o estudo do tema buscando soluções para os problemas que dele emanam, mas sim verificar quais são os efeitos jurídicos incidentes sobre a filiação proveniente das técnicas reprodutivas biomédicas aplicadas na vigência do casamento e após a morte do cônjuge varão. Nesse intuito, o presente estudo divide-se em quatro capítulos. O primeiro é dedicado ao estudo dos temas basilares do Direito de Família, sendo visitados seus principais conceitos, de forma a se compreender a formação do vínculo jurídico familiar e a constituição da filiação no ordenamento brasileiro. O segundo capítulo apresenta as técnicas de reprodução assistida hoje existentes e o posicionamento legal no Brasil a seu respeito, sendo ainda abordadas algumas questões polêmicas concernentes à sua aplicação. 8 No terceiro capítulo cuida-se da filiação oriunda das técnicas de reprodução assistida heteróloga realizadas na vigência do casamento e após a morte do cônjuge varão, sendo o quarto e último capítulo dedicado ao estudo dos efeitos jurídicos de ordem pessoal e patrimonial advindos das técnicas reprodutivas aplicadas nestas duas modalidades. Para alcançar os objetivos traçados, este estudo foi realizado utilizando o método de análise compilativa doutrinária, sendo dada atenção especial à legislação pátria e às convenções internacionais de direitos humanos e bioética. 9 1. A CONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO JURÍDICO FAMILIAR 1.1. Família: modelos clássicos e modernos Atualmente, o verbete “família” aparece no Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa1 significando “pessoas aparentadas que vivem, em geral, na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos”, ou “comunidade constituída por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos dessa união” e ainda como “grupo formado por indivíduos que são ou se consideram consangüíneos uns dos outros, ou por descendentes dum tronco ancestral comum e estranhos admitidos por adoção”. Mas a concepção de família nem sempre foi esta. A palavra família deriva do termo latino “famulus”, utilizado na Roma Antiga para designar os “escravos domésticos”, um grupo social que surgira à época. Em Roma, segundo Arnoldo Wald2, a família era constituída pelo conjunto de pessoas que estavam sob o pater potestas, ou seja, sob o poder do ascendente comum mais antigo. Observe-se que a autoridade familiar não tinha de se concentrar necessariamente nas mãos do pai, mas sim do parente mais velho, podendo ser um tio ou o próprio avô. Fazia parte da família tanto a esposa, quanto os filhos, quanto as esposas dos filhos, seus descendentes e os escravos, estando todos sob a autoridade do pater. O que importava na constituição da família não eram os laços sanguíneos compartilhados (cognação), mas a sujeição ao poder do pater que não era extinta mesmo após o casamento. A família era então uma instituição religiosa, política, econômica e jurisdicional, estando sempre o poder decisório nas mãos do pater. 3 Entretanto, esclarece Mônica Aguiar4, o fortalecimento do Estado Romano foi aos poucos minando o poder patriarcal, já que não se poderia conceber que os poderes jurídico e econômico estivessem concentrados nas mãos de outro ente que não o próprio Estado. Ainda, a própria Igreja contribuiu para a descentralização do poder do pater com a disseminação do Cristianismo, sendo o culto familiar por ele substituído. A família, então, passou a enfrentar uma série de transformações acompanhando a evolução social. Uma dessas transformações, segundo Silvio Venosa5, ocorreu com o advento da Revolução Industrial, tendo a atividade agrícola familiar perdido status para o trabalho nas fábricas. Como os salários percebidos pelos homens não eram suficientes para a subsistência de todos os membros da família, passou a ser necessário que também a mulher abandonasse o trabalho no lar para lançar-se à atividade laboral. 1 FAMÍLIA. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 289. Verbete. 2 WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. - 14ª Ed. - São Paulo: Saraiva, 2002, p. 10. 3 FAMÍLIA. In: ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. 13 ed. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2006. p. 398-399. Verbete. 4 AGUIAR, Mônica. Direito à Filiação e Bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 04. 5 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. Vol. VI. São Paulo: Atlas, 2006, p. 06. 10 Venosa também chama atenção para as conquistas das mulheres a partir do século XX como um dos fatores determinantes para as sensíveis alterações da estrutura familiar. Isso porque, a partir do momento em que a mulher lançou-se ao mercado de trabalho e começou a dispor de valores sociais até então atribuídos tão somente aos homens, várias atividades que eram antes responsabilidade da família, especialmente das mulheres, passaram a ser atribuídas a outras instituições como a própria escola ou entidades assistenciais do Estado. Hoje, a sociedade está diante de uma composição familiar bem diferente da família romana. O poder antes centralizado na pessoa do pater hoje é compartilhado entre ambos os pais, sendo, às vezes, exercido com exclusividade por um deles. Além disso, outros parentes tornaram-se responsáveis pela estrutura familiar, já que as mudanças sociais possibilitaram a formação de famílias de diversas espécies. Na doutrina de Rui Ribeiro de Magalhães6 pode ser encontrada a classificação da entidade familiar quanto à sua formação e quanto ao sistema ao qual se subordina. No primeiro caso, a família pode ser classificada como monoparental, quando somente um dos pais é responsável por seus dependentes, ou biparental, quando ambos os pais se responsabilizam por prover seus descendentes. No segundo caso, a família pode ser matriarcal ou patriarcal, dependendo nas mãos de quem esteja concentrado o poder decisório familiar. Mas no que diz respeito às alterações na estrutura familiar, a evolução social não parou por aí. “As uniões sem casamento, apesar de serem muito comuns em muitas civilizações do passado, passam a ser regularmente aceitas pela sociedade e pela legislação.” 7 Assim, Guilherme Calmon da Gama8 observa que é possível ter a formação da família a partir de um vínculo fundado ou não na união matrimonial, podendo a família ser formada a partir do casamento dos ascendentes da prole como também pela sua união estável. Rui Ribeiro de Magalhães9 ainda observa que a família contemporânea é basicamente nuclear, sendo que ela inicia-se com a associação de duas pessoas e cresce à medida que vão surgindo os filhos, estendendo-se sua formação pelos laços colaterais. Ainda é possível observar que nem sempre as famílias têm sua formação originária natural, ou seja, nem sempre a prole existente guarda relação biológica com os pais, o que pode ser encontrado nas famílias nas quais a prole tem formação civil pela adoção, ou nos casos em que a prole guarda relação consangüínea somente com um dos pais, mas a filiação é atribuída a ambos. No caso, o que se tem é a formação socioafetiva da estrutura familiar. Atualmente, no Brasil, a formação familiar independe da constituição de núpcias. A concepção jurídica de família tornou-se bem mais ampla, abarcando composições familiares diversas. Há atualmente na Constituição Federal brasileira, bem como em outros diplomas 6 MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Direito de Família no Novo Código Civil Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 23. 7 VENOSA, 2006, p. 06. 8 GAMA, Guilherme Calmon da. A Nova Filiação - O Biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2003, p. 543. 9 MAGALHÃES, 2003, p. 24. 11 legais, o reconhecimento da legalidade das uniões nas quais inexiste o vínculo matrimonial formal, sendo direitos e deveres atribuídos a esses casais e também à sua prole. Assim, pode se encontrar na sociedade brasileira famílias das mais diversas naturezas, sendo que em muitas delas inexiste a presença dos pais: são as famílias constituídas pelos irmãos tão somente, ou pelos avós e netos. A lei brasileira, na opinião de Demian Diniz da Costa10, parece ter acompanhado a evolução social. No que diz respeito à concepção de família, atribuiu-lhe uma conceituação mais abrangente e despiu-lhe da vestimenta de moralismos e conceitos temporais para, assim, chegar ao seu real significado. 1.2. A definição do Estado de família O status familiae do Direito Romano era de fundamental importância naquela sociedade para que se estabelecessem direitos e obrigações dentro daquela instituição. Na doutrina de Silvio Venosa, o estado de família corresponde à “posição e a qualidade que a pessoa ocupa na entidade família” 11, o vínculo que une uma pessoa da família às demais, podendo ser esses vínculos jurídicos de duas ordens: 1) conjugal e 2) de parentesco. O vínculo conjugal se estabelece pelo casamento ou pela relação extra matrimonial, e o vínculo do parentesco pela descendência. Venosa também ensina que o estado de família constitui característica personalíssima das pessoas naturais, sendo instituído a partir da pessoa em si mesma e da sua relação com as pessoas de sua família, sendo-lhe características: a intransmissibilidade, já que não se pode transmitir de uma pessoa para a outra a relação de parentesco; a irrenunciabilidade, não sendo possível renunciar à relação existente; a imprescritibilidade, já que não existe tempo de duração específico para determinar as relações; a universalidade, compreendendo todas as relações jurídico-familiares; a indivisibilidade, sendo idêntico perante a família e demais membros da sociedade; a correlatividade, ligando os membros da família por laços recíprocos; e a oponibilidade, sendo um estado argüível erga omnes. Para Paulo Lôbo12 existem famílias de espécies diferentes, umas fundadas na união matrimonial, outras na união estável, outras fundadas em uniões homossexuais e outras ainda sem qualquer vínculo de parentesco. Apesar de muitas dessas famílias não serem legalmente reconhecidas, possuem características comuns inerentes de entidades familiares, a saber, a afetividade, a estabilidade e a convivência pública e ostensiva. 10 COSTA, Demian Diniz da. Famílias Monoparentais: Reconhecimento Jurídico. Rio de Janeiro: AIDE, 2002, p. 24. 11 VENOSA, 2006, p. 20. 12 LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 57-58. 12 Apesar de o estado de família, em regra, ser comprovado por escritura pública, seja na forma de certidão de casamento, seja na forma de certidão de nascimento, em alguns desses casos a sua comprovação será feita pela situação fática, dado à informalidade de algumas entidades familiares, comprovando-se a sua existência pela presença dessas características que lhes são inerentes. 1.3. Parentesco De acordo com Pontes de Miranda, parentesco é “a relação que vincula entre si pessoa que descendem umas das outras ou de autor comum (consangüinidade), que aproxima cada um dos cônjuges dos parentes do outro (afinidade), ou que se estabelece, por fictio iuris, entre o adotado e o adotante.”13 Maria Helena Diniz afirma ser o parentesco “a relação vinculatória existente não só entre pessoas que descendem umas das outras ou de um mesmo tronco comum, mas também entre um cônjuge e os parentes do outro e entre adotante e adotado.”14A partir desse conceito pode se chegar à divisão do parentesco em três tipos: o natural, o civil e o por afinidade. O parentesco natural é determinado pelo vínculo sanguíneo da descendência. O parentesco civil, por sua vez, é determinado pelo vínculo civil da adoção. No caso da afinidade, o vínculo se estabelece a partir do casamento de duas pessoas, estando uma ligada, a partir de então, à família da outra. Entretanto, segundo Arnoldo Wald, a “afinidade não é parentesco, consistindo na relação existente entre um dos cônjuges e os parentes do outro. É um vínculo que não tem a mesma intensidade que o parentesco e se estabelece entre o sogro e genro, cunhados etc.” 15 Também Silvio Venosa compartilha de tal visão, deixando claro que a “afinidade distingue-se do conceito de parentesco em sentido estrito.” 16 Ainda em relação à afinidade, Carlos Alberto Bittar chama a atenção para a indissolubilidade de seus vínculos em linha reta, sendo que mesmo após a dissolução do casamento ou da união estável serão mantidos os impedimentos legais para o matrimônio entre aquelas pessoas ligadas por tal relação.17 Necessário observar que mesmo entre marido e mulher não há o vínculo do parentesco, o que Silvio Venosa18 explica, já que a relação existente entre eles é de natureza de vínculo conjugal que nasce no casamento e dissolve-se quando o vínculo termina, seja na morte de um dos cônjuges, no divórcio ou na anulação do casamento. 13 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito de Família. Vol. III. Campinas: Bookseller, 2001, p. 23. DINIZ, 2003 apud NÓBREGA, Airton Rocha. Das Relações de Parentesco: Disposições Gerais. Consulex, Brasília, n. 31, p. 31-34, out. 2004, p. 32. 15 WALD, 2002, p. 36. 16 VENOSA, 2006, p. 220. 17 BITTAR FIlHO, Carlos Alberto. Direito de família e Sucessões. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 56. 18 VENOSA, 2006, p. 222. 14 13 A obra de Paulo Lôbo aborda a relação de parentesco definindo-a como “a relação jurídica estabelecida pela lei ou por decisão judicial entre uma pessoa e as demais que integram o grupo familiar”19, podendo essa relação ser estabelecida pelos laços da consangüinidade ou por fatores socioafetivos. Observe-se que, neste caso, o autor trata do parentesco natural, aquele determinado pelo vínculo sanguíneo, e também do parentesco civil, aquele estabelecido no caso de uma adoção, por exemplo. Quanto à divisão do parentesco em civil e natural, Pontes de Miranda observa não ser cabível. Isto porque a Lei nº. 8.560 de 1992, em seu artigo 10, revogou o dispositivo do artigo 332 do Código Civil, equiparando, assim, o parentesco civil constituído pela adoção ao parentesco natural, não podendo haver quaisquer discriminações. Também Silvio Venosa corrobora com tal posicionamento20 embasando-se no dispositivo constitucional do artigo 227, § 6° para tanto. Chega-se então à idéia de que o parentesco, seja ele constituído a partir de vínculos sanguíneos da descendência direta, seja pelos vínculos civis da adoção, terá sempre os mesmos efeitos, cabendo a divisão somente para efeitos didáticos, conforme se apreende da doutrina de Pontes de Miranda.21 De qualquer sorte, o Código Civil pátrio, em seu artigo 1.59322, estatui o parentesco dividindo-o em natural e civil, sendo que neste estão contidas a afinidade e a adoção. Airton Rocha Nóbrega23 observa que, no caso do parentesco por afinidade, esta ligação somente ocorre entre os ascendentes, descendentes e irmãos do outro cônjuge, não se estendendo aos seus colaterais. Cabe aqui a observação de Paulo Lôbo de que “parentes afins não são iguais ou equiparados aos parentes consangüíneos; são equivalentes mas diferentes”24, sendo as finalidades que determinam seu estabelecimento de ordem diversa, aos consangüíneos concedendo-se direitos, aos afins impedindo que direitos ou vantagens sejam adquiridos. Ainda segundo Airton Rocha Nóbrega, o parentesco por afinidade em linha reta não se extingue pela dissolução do casamento ou da união estável, ao contrário, subsiste, sendo acumulado o parentesco na medida em que novos casamentos e uniões são constituídos. Insta também observar que em relação à linha colateral, o parentesco somente se dissolve com a morte dos companheiros ou cônjuges ou ainda com seu divórcio.25 Importante também entender a divisão do parentesco nas linhas reta e colateral. As linhas determinam a série de pessoas ligadas pelo vínculo do parentesco. Quando há parentesco em linha reta, há ligação de ascendentes e descendentes. A esse respeito, Airton Rocha Nóbrega assevera: 19 LÔBO, 2008, p. 181. VENOSA, 2006, p. 220. 21 MIRANDA, Pontes de . Tratado de Direito de Família. Vol. III. Campinas: Bookseller, 2001, p. 23. 22 “Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.” 23 NÓBREGA, 2004, p. 32. 24 LÔBO, 2008, p. 189. 25 NÓBREGA, 2004, p. 33. 20 14 Oportuno notar que não se estabelece legalmente qualquer limitação relativa ao parentesco na linha reta, o que significa dizer que nesse âmbito os parentes preservam essa condição mesmo que posicionados em graus mais distantes.26 Quando o parentesco ocorre em linha colateral, também chamada de transversal, os parentes estão ligados não por um vínculo sanguíneo direto entre eles, mas pela existência de um ascendente que lhes é comum.27 De qualquer sorte, assim como o pater potestas do Direito Romano, o parentesco estabelece entre os parentes direitos e obrigações jurídicas importantes. Observa-se que o ordenamento jurídico brasileiro regula as relações de parentesco contemplando, nas palavras de Airton Rocha Nóbrega, “um conjunto de dispositivos que enfocam os temas que tanto se acham relacionados abordando e regulando aspectos alusivos a disposições gerais, filiação, reconhecimento dos filhos, adoção e poder familiar”28. É da relação de parentesco que nascem determinados direitos e deveres, além de determinadas atribuições, sendo estas “dotadas de características peculiares que todos os membros vincularão, observadas as condições respectivamente assumidas e desfrutadas por cada um, não se impondo, para isso, venham externar concordância tácita ou expressa”.29 Alguns destes direitos, deveres e atribuições serão abordados nos próximos capítulos da presente pesquisa. Ainda, observa-se que a distância entre as gerações de parentes é importante na legislação pátria. Essa contagem é feita em graus e se presta, segundo Airton Nóbrega, à verificação da proximidade entre os parentes de forma que a distância entre eles produza determinados efeitos, como é o caso da ordem da vocação hereditária. Para proceder nessa contagem é preciso chegar-se primeiro em um ascendente comum aos parentes, para depois fazer a contagem de gerações e determinar o grau de parentesco existente entre duas pessoas. A aferição do grau de parentesco pode ser feita tanto na linha reta como na linha colateral. Na contagem na linha reta não existe grandes dificuldades, contando-se um grau para cada geração de descendentes ou ascendentes. No caso da contagem em linha colateral, é necessário se proceder na contagem a partir de um dos parentes até se chegar a um ascendente comum entre ele e o outro parente cujo grau de parentesco deseja-se verificar, continuado a contagem até que se chegue à sua posição. 26 NÓBREGA, Ibidem, p. 32. WALD, 2002, p. 36. 28 NÓBREGA, 2004, p. 32. 29 NÓBREGA, Ibidem, p. 31. 27 15 1.4.Filiação 1.4.1. A constituição da filiação: filhos naturais, adotivos e biogeneticamente concebidos De acordo com WALD30, a filiação é a conseqüência natural da procriação, sendo os filhos produto desse ato. Entretanto, historicamente observa-se que nem sempre o filho e os pais guardam entre si laços consangüíneos. Silvio Venosa31, por sua vez, demonstra ser a filiação um conceito relacional, sendo uma relação de parentesco estabelecida entre duas pessoas. O autor também afirma a possibilidade de tal estado decorrer de um vínculo biológico ou não, como ocorre em casos de adoção. Relembrando-se o pater potestas romano, é possível ver já naquela sociedade a existência do instituto da adoção. Conforme já mencionado, a autoridade do pater estendia-se às pessoas que aderissem a seu clã, seja pelo casamento com seus descendentes, seja pelo vínculo da servidão ou até mesmo por interesses econômicos ou religiosos. Assim sendo, lembrando-se as palavras de Arnoldo Wald: uma espécie de naturalização política e religiosa, uma modificação de culto permitindo a saída de uma família e o ingresso em outra, a adoção garantiu o desenvolvimento pacífico do mundo antigo, sendo considerada um dos grandes catalisadores do progresso e da civilização.32 A adoção chegou até mesmo a ser utilizada como forma dos imperadores romanos designarem seus sucessores, sendo somente mais tarde o instituto utilizado para que casais estéreis viessem a ter filhos. A legislação brasileira atual estabelece a instituição da filiação seja natural ou civil. A filiação natural obedece ao critério biológico, sendo os pais aqueles que participam da concepção do filho. De outro lado, a filiação civil é aquela estabelecida pela adoção. Assim, segundo Paulo Lôbo: o estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de maternidade, em relação a ele.33 A prova da filiação é feita por meio do Registro Civil ou por Sentença judicial em ações de estado. Igualmente possível é a prova da filiação por testamento e escritura de reconhecimento e emancipação em que os pais reconhecem os filhos.34 Deve, nesse contexto, 30 WALD, 2002, p. 195. VENOSA, 2006, p. 234. 32 WALD, 2002, p. 218. 33 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4752. Acesso em: 24 abr. 2006. 34 WALD, 2002, p. 196. 31 16 ser incluída com efeitos probatórios da filiação a sua aparência. Assim, sendo pública e notória a posse do estado de filho, resta a filiação configurada.35 Uma outra tipologia para a filiação vem sendo utilizada mais contemporaneamente para determinar os filhos biogeneticamente concebidos, ou seja, os filhos concebidos com a utilização de técnicas de assistência à reprodução. Essas técnicas são utilizadas, via de regra, por casais que possuem incompatibilidades genéticas para a reprodução ou que possuem algumas dificuldades para reproduzir naturalmente. Essas técnicas de assistência reprodutiva serão melhor discutidas mais adiante. 1.4.2. O princípio da igualdade da filiação O princípio da igualdade da filiação encontra-se hoje resguardado no rol dos direitos fundamentais contemplados pela Constituição Federal de 1988, (art. 227, § 6°). Um diploma mais contemporâneo ainda, contendo as mesmas previsões, é a Lei nº. 10.406 de 2002, o Novo Código Civil Brasileiro. De acordo com os dois diplomas, não existe mais distinção entre os filhos de origens diferenciadas, cabendo a todos os mesmos direitos na esfera legal. Observe-se a letra da referida lei: Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.36 Esse princípio, nos ensinamentos de Guilherme Calmon da Gama37, busca compatibilizar os mesmos direitos e obrigações entre pais e filhos, sendo irrelevante para tanto a origem da filiação. Assim, existindo entre pais e filhos o vínculo da parentalidade, seja ele decorrente do vínculo civil ou natural, terão os filhos, todos eles, os mesmos direitos legais, sem possibilidade de haver qualquer diferenciação. Essa alteração legislativa é desdobrável em duas vertentes: a) a igualdade das qualificações dos filhos e b) a igualdade dos direitos dos filhos. Segundo Marques e Cachapuz38, a primeira vertente possibilitou a afirmação da igualdade entre os filhos, independentemente de sua origem, proibindo consequentemente quaisquer qualificações discriminatórias, que manifestadamente atentavam contra o princípio da dignidade da pessoa humana tão aclamado na própria Constituição Federal. Paulo Luiz Lôbo, comenta a alteração legislativa em face da necessidade de adequar as determinações ao princípio constitucional constante do artigo 1º da Constituição Federal: 35 BITTAR FILHO, 2002, p. 59. BRASIL. Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/leis/2002/L10406.htm> Acesso em 20 out. 2006. 37 GAMA, 2003., p. 435. 38 MARQUES, Cláudia Lima, CACHAPUZ, Maria Cláudia e VITÓRIA, Ana Paula. Igualdade entre os filhos no direito brasileiro atual - direito pós moderno? Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 764, p. 11-32, 1999. 36 17 O princípio da dignidade humana pode ser concebido como estruturante e conformador dos demais, nas relações familiares. A Constituição, no artigo 1º, o tem como um dos fundamentos da organização social e política do país, e da própria família (artigo 226, § 7º). (...) No estágio atual, o equilíbrio do privado e do público é matrizado exatamente na garantia do pleno desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que integram a comunidade familiar, ainda tão duramente violada na realidade social, máxime com relação às crianças. Concretizar esse princípio é um desafio imenso, ante a cultura secular e resistente. No que respeita à dignidade da pessoa da criança, o artigo 227 da Constituição expressa essa viragem, configurando seu específico bill of rigths, ao estabelecer que é dever da família assegurar-lhe “com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”, além de colocá-la “à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. 39 A segunda vertente garantiu aos filhos o direito de verem exercitados na prática os deveres decorrentes da paternidade, sem que para tanto houvesse uma diferenciação de direitos entre os filhos concebidos na constância do casamento, os filhos reconhecidos, os filhos adulterinos e os filhos adotados. Atualmente a denominação diferenciada não mais perdura, cabendo sua utilização tão somente por questões históricas e didáticas. Por fim, segundo se apreende da doutrina de Guilherme Calmon da Gama, o princípio da igualdade de filiação visa atribuir á família: função que não lhe era reconhecida, a de servir aos seus integrantes, permitindo que eles possam ter os meios necessários - materiais e imateriais - para desenvolver plenamente suas personalidades aptidões e qualidades, com a centralização na pessoa dos filhos menores, diante da acolhida expressa da doutrina da proteção absoluta, prioritária e integral da criança e do adolescente.40 1.4.3. A presunção da filiação na legislação brasileira Outro princípio de fundamental importância para o Direito de família é o da presunção da filiação. De acordo com tal princípio, é presumido como sendo filho de um casal a criança que for concebida no período de sua convivência marital. Tamanha a importância da presunção da filiação que esta não é ilidida sequer pela prova confessa do adultério, conforme o que dispõe o artigo 1.602 do Código Civil. Isso porque, nas palavras de Carlos Alberto Bittar, “não se pode afirmar, com absoluta certeza, que o filho foi gerado por conta do relacionamento extraconjugal.”41 O mesmo diploma legal, em seu artigo 1.597, estabelece haver presunção da filiação na constância do casamento nos seguintes casos de: 1. prole concebida 180 dias após ter se estabelecido a convivência conjugal; 39 LÔBO, Paulo Luiz Netto. A Constitucionalização do Direito Civil. In Mundo Jurídico - Revista de Informação Legislativa, 1999 - mundojuridico.adv.br. 40 GAMA, 2003., p. 420. 41 BITTAR FILHO, 2002, p. 58. 18 2. prole concebida até 300 dias depois da dissolução da união seja por morte, separação judicial, nulidade ou anulação; 3. prole concebida por fecundação artificial mesmo após a morte do marido; 4. filhos havidos a qualquer tempo pela utilização de fecundação artificial homóloga; 5. filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, autorizada pelo marido. Pontes de Miranda, entretanto, assevera que a presunção somente pode ser argüida quando a concepção ocorrer na constância do casamento. “O que se presume é que, certa a maternidade, se tem por pai o marido, salvo se ocorre algum dos casos previstos, na lei, para a impugnação.”42 Silvio Venosa43 também aponta que, atualmente, há flexibilização da presunção da paternidade em certas situações, mostrando na própria lei civil a relativização da presunção, por exemplo, no caso de comprovada esterilidade do cônjuge varão à época da união. Ainda, afirma que a presunção encontra definitiva relativização pelo dispositivo do artigo 1.601 do Código Civil em vigência, que permite a contestação da paternidade dos filhos do casal feita a qualquer tempo pelo pai. Todas essas alterações, afirma Venosa, ocorrem dado ao fato de hoje a verdade jurídica acompanhar a verdade biológica, já que esta é comprovável com margem quase inexistente para erros. Nesse ponto, a crítica à presunção da filiação ainda corrente: Reitere-se que a posição moderna da tecnologia faz cair por terra o sistema de presunções da paternidade na maioria dos casos. O sistema de presunções de paternidade colocado no Código de 1916, e mantido em parte no vigente Código, há muito se mostra anacrônico, não só porque a sociedade evoluiu nesse fenômeno, como também porque a ciência permite atualmente apontar o pai (ou a mãe) com o mais elevado grau de certeza.44 O posicionamento do civilista é de que, apesar de não mais perdurarem diferenciações de direitos entre as filiações, aquelas que forem constituídas fora da união conjugal não gozam da presunção de paternidade e devem ser reconhecidas voluntária ou coercitivamente. Contudo, há aqueles que acreditam que também seria aplicável á união estável a presunção de paternidade. Em relação ao artigo 1.597 do Código Civil, Paulo Lôbo afirma que “ainda que o artigo sob comento refira-se à “constância do casamento” a presunção de filiação, paternidade e maternidade, aplica-se à união estável”. 45 Igualmente, observando-se parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal pátria, inviável entender que persiste posicionamento manifestadamente contrário ao princípio da igualdade entre as filiações, já que os filhos não devem ser punidos pelos atos de seus pais, posicionamento que parece mais razoável. 42 MIRANDA, 2001, p. 47. VENOSA, 2006, p. 234. 44 VENOSA, 2006, p. 236. 45 LÔBO, 2003, apud ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti de Albuquerque. A fecundação Artificial post-mortem e o direito sucessório. Esmape, Teresina, mai. 2002. Disponível em: <http://www.esmape.com.br/downloads/mat_profa_mariarita/prof_maria_rita_7.do> Acesso em 10 set. 2007. 43 19 1.4.4. A determinação da filiação: a verdade jurídica, a verdade afetiva, a verdade biológica e a verdade real Até o final do século XX, a maternidade, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, sempre foi tida como certa. Isso porque, até então, a parentalidade era baseada em critérios biológicos. De acordo com tais critérios, a maternidade seria atribuída àquela mulher que apresentasse as características biológicas de mãe, ou seja, a mãe seria sempre a mulher que após passar pelo período de 40 semanas de gestação desse a luz a uma criança. Entendeu-se, então, pela utilização do binômio gestação - parto, que a maternidade sempre poderia ser definida com muita certeza, daí o brocado latino mater semper certa est. 46 Ocorre que a base biológica, até então utilizada, era acreditada como suficientemente capaz de apontar quem teria vínculos maternos com a prole nascida, ao passo que somente seria necessário discutir a identidade paterna, por nem sempre esta ser evidente. A partir dessa certeza em relação à maternidade, foi construído um juízo antecipado em relação à identidade da mãe, sempre que fossem encontrados na situação fática os critérios biológicos observados, dando-se origem a uma presunção de maternidade. O ordenamento legal absorveu essa presunção fundada no que ordinariamente acontece, a partir da dedução de atos e fatos47 , determinando como mãe civil toda mulher que apresentasse essas mesmas características biológicas (gestação/ parto). Apesar de comumente ser o vínculo biológico levado em conta para a determinação da verdade real da filiação, é possível ver o vínculo da filiação formado a partir de outras verdades. Já nos primórdios da humanidade, observava-se a possibilidade da constituição da filiação de outras formas. Guilherme Calmon da Gama48 ensina que ao lado da filiação natural decorrente da conjunção carnal entre os cônjuges, a filiação civil (adoção) foi concebida na Antiguidade da civilização humana contando com uma “ficção jurídica” para que os laços de maternidade-paternidade-filiação fossem estabelecidos. Assim, a perpetuação das famílias era garantida ainda que não fosse pelos laços da consangüinidade. Observam-se, atualmente, formas de constituição ainda mais diversas criadas pelas técnicas de reprodução assistida. Nesse sentido, a determinação da parentalidade e da filiação pode ser feita de formas variadas, seguindo preceitos diversos. A doutrina de Guilherme Calmon Nogueira da Gama49 elenca diferentes verdades a serem consideradas em se tratando dessa determinação. Segundo o autor, essas verdades podem ser biológicas, jurídicas ou afetivas. 46 AGUIAR, 2005, p. 02. ACQUAVIVA, 2006, p. 673. 48 GAMA, 2003, p.472. 49 GAMA, 2006, passim. 47 20 Na verdade biológica está inserida a consangüinidade, estando firmada a filiação pelo parentesco natural. A verdade jurídica (ou legal) pode ter origem ou não na consangüinidade, sendo efetivamente observado o reconhecimento da filiação a partir de uma ficção jurídica criada pela lei. Existe aí uma presunção do vínculo parentalidade-filiação pela aparência de sua existência. Para a verdade afetiva, é o afeto, o desejo, a vontade de ser pai/mãe a característica determinante da relação. O que se leva em conta na formação do vínculo de filiação pela verdade afetiva é o apego emocional que pais e filhos demonstram apesar de não serem ligados pelos laços sanguíneos. Silvio Venosa lembra que esta “paternidade emocional, denominada socioafetiva pela doutrina, que em muitas oportunidades, como nos demonstra a experiência de tantos casos vividos ou conhecidos por todos nós, sobrepuja a paternidade biológica ou genética.”50 Segundo Paulo Luiz Lôbo51, sempre houve no Direito de Família brasileiro um conflito entre a filiação biológica e a filiação afetiva, sendo que sempre a primeira sobressaiuse à segunda. Entretanto, atualmente, a filiação afetiva vem sendo mais seriamente abordada. No caso dos filhos adotados, não é a verdade biológica que determina a filiação. Pelo contrário, observa-se não haver traço genético comum entre os pais e o filho. A filiação é determinada, neste caso, pela verdade jurídica e pela verdade afetiva. Igual afirmação pode ser feita quando um dos pais aceita como se fosse seu o filho que o outro, cônjuge ou companheiro, gerou com terceiro, pouco se importando com a inexistência de vínculo genético entre eles. Mônica Aguiar aponta que a escolha de apenas uma dessas verdades para determinar o vínculo parental será adstrito a um aspecto parcial da verdade. 52 Assim, não é a verdade real da filiação encontrada. Essa verdade real, Paulo Lôbo ensina, “surge da dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído”53, e não depende essa verdade da existência de herança genética. Ela vai além dessa simplória presunção. Nesse sentido, o doutrinador afirma que: na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa humana é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos. Portanto, não pode haver conflito com outro que ainda não se constituiu.54 1.4.5. Os efeitos pessoais e patrimoniais da filiação A filiação gera para os envolvidos na relação parental efeitos de ordens diversas. Esses efeitos podem ser divididos em duas categorias: os efeitos pessoais e os efeitos patrimoniais. 50 VENOSA, 2006, p. 235. LÔBO, 2004, p. 01 52 AGUIAR, 2005, p. 115 53 LÔBO, 2004, p. 11 54 LÔBO, Ibidem, p. 02 51 21 1.4.5.1. Os efeitos pessoais Na ordem pessoal, podem ser encontrados o estabelecimento de vínculos paternomaterno-filiais, a formação dos impedimentos matrimoniais e o direito ao reconhecimento da filiação por registro civil, com a conseqüente utilização, por parte do filho, do nome dos pais. Ainda há um outro efeito de ordem pessoal gerado: o estabelecimento do poder familiar. Tal expressão surge como um substituto da antiga expressão empregada - o pátrio poder. A expressão “pátrio poder” utilizada pelo Código Civil de 1916, em vigor até o dia dez de janeiro de 2002, fora consolidada legalmente tendo-se como foco um conjunto de relações sociais diferentes das atualmente observadas. No Brasil, até então, as famílias eram, em sua maioria, providas pelo trabalho dos maridos, seus chefes, detentores de todo o poder decisório. Apesar de o matriarcado constituir um instituto bem mais antigo, a sociedade brasileira parece não tê-lo absorvido, ficando as mulheres da família em posições secundárias. O que ocorria nas famílias era observado em outros setores sociais e principalmente no mercado de trabalho, cabendo às mulheres atividades com salários menores. 55 Entretanto, as crises econômicas levaram mais e mais mulheres ao mercado de trabalho, muitas delas, mães solteiras, viúvas, filhas que precisavam ajudar na renda familiar. O poder, antes exercido com exclusividade pelos homens, passou a ser compartilhado com as mulheres. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, seria necessário amoldar a legislação aos novos princípios isonômicos preconizados. Da mesma forma, a lei não poderia dar as costas à realidade social então vivenciada. Ainda assim, catorze anos separaram a promulgação da Constituição e a publicação do Novo Código Civil. A alteração da lei civil proporcionou diversas mudanças, entre elas a alteração da expressão “pátrio poder” para o “poder familiar”, poder atribuído aos pais, ambos, em relação à pessoa dos filhos enquanto estes forem menores, constituindo um conjunto de direitos e deveres a serem observados.56 Assim, no rol de direitos/deveres decorrentes do poder familiar estão: cuidar da educação e da criação dos filhos; tê-los em sua guarda e companhia; conceder ou negar-lhes o direito para casar; nomear-lhes tutor, na forma legal; representá-los ou assistí-los nos atos civis; reclamá-los de quem os detenha ilegalmente; exigir-lhes a prestação de obediência e respeitos. Os deveres/direitos decorrentes do poder familiar estendem-se ao patrimônio dos filhos, cabendo aos pais administrá-los. Eduardo Espínola deixa claro que há limites à administração desses bens, não podendo os pais “alienar, hipotecar ou gravar de ônus reais os 55 56 BITTAR FILHO, 2002, p. 63-67. BITTAR FILHO, Ibidem, p. 56. 22 imóveis dos filhos, nem contrair em nome deles obrigações que ultrapassem os limites da simples administração”, ressalvadas as situações de autorizações judiciais prévias. 57 O autor ainda chama atenção para as causas de suspensão, extinção e perda duração do pátrio poder. Em regra, a suspensão, mediante ação judicial, decorre do exercício irregular do poder familiar, observando-se abusos das prerrogativas por parte dos pais ou dilapidação do patrimônio, pertencente aos filhos, sob sua administração. Igual medida é tomada em caso de condenação dos pais a pena de reclusão por mais de 02 anos, em sentença irrecorrível. Porém, a suspensão do poder familiar não é definitiva, estendendo-se somente pelo tempo determinado pelo magistrado. A extinção do poder familiar decorre de situações diversas, podendo ser elencadas a maioridade dos filhos, sua emancipação ou a morte dos pais. Evidente que, nesse último caso, o poder familiar é mantido em relação àquele sobrevivente. Pode ainda ocorrer dos pais perderem o exercício do poder familiar, sendo que a perda advém de sentença judicial. São causas para a perda do poder familiar os castigos imoderados, a prática de atos atentatórios contra a moral e os bons costumes e o abuso reiterado da autoridade parental. 58 1.4.5.2. Os efeitos patrimoniais decorrentes da filiação Na ordem patrimonial, encontra-se uma gama de conseqüências jurídicas decorrentes do vínculo da filiação, sendo as principais a obrigação de alimentar e o direito à vocação hereditária. 1.4.5.2.1. Os alimentos Primeiramente, é necessário atentar-se para o real significado dos alimentos, pois não correspondem simplesmente à alimentação. Na lição de Sílvio Venosa, os alimentos compreendem também o custeio da moradia, do vestuário, da assistência médica e educacional do alimentando, além de outras necessidades que ele apresentar. 59 A maior parte dos doutrinadores da área de família compartilha do mesmo posicionamento de Venosa.60 A previsão dos alimentos na legislação brasileira pode ser encontrada no artigo 1.695 do atual Código Civil. Segundo este dispositivo, os alimentos são devidos àqueles que não têm bens e nem dispõem de meios bastantes para proverem, por si próprios, a sobrevivência, sendo que estão obrigados a provê-los os parentes que detêm tais condições. O dever de alimentar advém de um binômio - possibilidade / necessidade. Se, por um lado, o alimentado necessita da prestação alimentar, de outro, é necessário que aquele chamado a prestá-la disponha de condições financeiras para arcar com tal ônus. 57 ESPÍNOLA, Eduardo. A Família no Direito Civil Brasileiro. Campinas: Bookseller, 2001, p. 552. BITTAR FILHO, 2002, p. 67. 59 VENOSA, 2006, p. 376. 60 Nesse mesmo sentido podem ser sitados os doutrinadores Arnoldo Wald, Eduardo Espínola, Maria Helena Diniz, Pontes de Miranda. 58 23 Não restam dúvidas de que os alimentos constituem um direito/obrigação recíproco entre os parentes, sejam eles cônjuges, filhos, pais, avós. Contudo, importa-nos sobremaneira a obrigação de alimentos em virtude da filiação. Aqui, os responsáveis diretos pelos alimentos dos filhos são os pais, responsabilidade advinda do poder familiar. Mas também podem os pais requerer alimentos dos próprios filhos, justamente em virtude da reciprocidade desse direito/obrigação. Nas palavras de Rui Ribeiro de Magalhães, “a natureza jurídica da obrigação alimentar é de direito parental e assentada nos laços de solidariedade familiar, de maneira que o elenco dos obrigados a prestar alimentos pressupõe a reciprocidade para requerê-los, a teor do art. 1.696 do Código Civil.” 61 MAGALHÃES ainda chama a atenção para o rol de obrigados e co-obrigados à prestação alimentícia, lembrando que: A obrigação de prestar alimentos pode ser dividida entre os diversos co-obrigados se o parente que estiver em primeiro lugar não puder suportar sozinho o encargo. [...] serão chamados os outros co-obrigados e a obrigação será partilhada na proporção dos recursos de cada um. É o próprio Código Civil que determina quais são os parentes que devem alimentos e que podem igualmente requerê-los. No caso dos filhos, são os pais os devedores. Mas além destes, na sua falta ou impossibilidade, podem ser evocados seus ascendentes, irmãos e parentes de grau imediato para adimplir a prestação, conforme determinam os artigos 1.696, 1.697 e 1.698 da lei civil. Cabe aqui fazer uma observação a respeito dos alimentos. Uma vez decorrente do poder familiar, não há questionamento de que cabem a ambos os pais o dever de alimentar. Destarte, na “constância do casamento, fica óbvia a obrigação mútua de sustentar os filhos. Já no caso de dissolução da sociedade conjugal e a subseqüente dissociação da autoridade paterna, esta obrigação fica igualmente dividida.”62 Rui Ribeiro ainda chama a atenção para a mutabilidade da obrigação alimentícia, podendo chegar-se à sua desobrigação, de acordo com cada situação fática. Isso porque, a obrigação de alimentar se sujeita aos princípios da cláusula rebus sic stantibus. Assim, uma vez sujeita a obrigação alimentícia aos fatores da necessidade/possibilidade, é perfeitamente lógico que da inexistência superveniente de um ou outro fator verifique-se o seu aumento, a sua redução ou até mesmo a sua desobrigação. 63 1.4.5.2.2. A vocação hereditária Nas lições de Silvio Venosa, suceder é “substituir, tomar o lugar de outrem no campo dos fenômenos jurídicos”64. A sucessão, assim, pode ocorrer tanto entre vivos, sendo ocasionada por uma doação ou pela compra e venda de um bem, como em razão da morte 61 MAGALHÃES, 2003, p. 260. COSTA, 2002, p. 82. 63 MAGALHÃES, Rui Ribeiro de. Op cit., p. 261. 64 VENOSA, Silvio de Salvo. Curso de Direito Civil – Sucessões. São Paulo: Atlas, 2005, p. 01. 62 24 (causa mortis) do até então titular do bem. Nesse último caso, o ramo do Direito Civil responsável pelo estudo desse fenômeno é o Direito das Sucessões. O Direito das Sucessões traz em seu seio o princípio do droit de saisine, segundo o qual os bens do de cujus transmitem-se aos seus herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários. Porém, o princípio somente é cumprido quando da morte do legítimo possuidor do patrimônio a ser sucedido. Assim, segundo Carlos Alberto Bittar Filho, “a posse e a transmissão dos bens são transmitidas aos herdeiros no momento da morte do de cujus.”65 A sucessão, nesse sentido, pode ser tanto legítima quanto testamentária. Na primeira, é a lei que determina quais são as pessoas que podem receber o patrimônio de outrem após a sua morte. No segundo caso, é a própria pessoa possuidora do patrimônio que, em vida, determina a disposição de seus bens após a sua morte. O testamento é a oportunidade concedida ao testador para fugir das determinações legais, já que é a própria lei que estabelece a ordem das pessoas chamadas a suceder. Assim, qualquer pessoa poderia ser aquinhoada seguindo os últimos desejos do possuidor originário dos bens. Contudo, inexistindo tal registro, a ordem da vocação hereditária legítima é seguida, sendo, a herança transmitida aos herdeiros legítimos. O mesmo ocorre em relação aos bens que não forem inclusos no testamento ou quando ocorrer declaração de nulidade do testamento ou caso este venha a caducar.66 Ainda que tenha sido concedido ao testador o direito de dispor de seu patrimônio pela via testamentária, necessário observar que somente metade de seu patrimônio pode ser assim disposta, ficando a outra metade resguardada aos herdeiros necessários. Essa metade protegida é a legítima. De acordo com o artigo 1.845 do Código Civil de 2002, os herdeiros necessários são os descendentes, os ascendentes e os cônjuges, mas na ordem da vocação hereditária também estão incluídos os colaterais. Todavia, registre-se que somente os herdeiros necessários têm a proteção da legítima. É ordem da vocação hereditária que determina a ordem na qual os parentes são chamados para herdar. Importa dizer que os primeiros herdeiros são os filhos, e na sua falta é que os demais mencionados na ordem da vocação hereditária irão ser chamados, sendo que os mais próximos excluirão os mais distantes. Evidentemente, não se deixa de considerar as ressalvas para a concorrência dos filhos com os cônjuges nas situações dispostas no artigo 1.829, I, do código civilista, mas cabe ao presente trabalho tão somente o estudo dos efeitos sucessórios decorrentes da filiação. Perceba-se que ao determinar a linha da descendência no artigo 1.835 do Código de 2002, o legislador civil utilizou a expressão ‘filhos e outros descendentes’ para determinar a linha da descendência. Assim, importa dizer que somente os filhos legítimos ou legitimados 65 66 BITTAR FILHO, 2002, p. 109-110. BITTAR FILHO, 2002, p. 110. 25 podem concorrer com os demais descendentes (netos, bisnetos...), sendo primordial o devido reconhecimento filial nas formas estipuladas pela lei. O que não quer dizer, entretanto, que o filho que não foi devidamente reconhecido não tenha qualquer direito ao patrimônio do de cujus. Pelo contrário, terá ele o mesmo direito que todos os outros, sendo, entretanto, necessário o regular reconhecimento via Ação de Investigação de maternidade ou paternidade, de acordo com cada caso concreto. Uma vez reconhecido, o filho participará da legítima junto com os demais. Como não mais existe discriminação na lei brasileira quanto à origem da filiação, conforme o que já foi mencionado anteriormente, necessário lembrar que no momento da partilha todos os filhos terão direitos iguais, percebendo quinhões equivalentes. Nas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “todos os filhos, por serem descendentes, são herdeiros necessários, e têm para si reservada a legítima, nos termos do artigo 1.789 do Código Civil de 2002.”67 Em igual sentido está a doutrina de Silvio Venosa.68 Porém, nada impede que o de cujus tenha deixado disposição testamentária concedendo a este ou aquele filho uma parte maior de seu patrimônio, o que não importa qualquer ilegalidade justamente pela concessão legal que o de cujus tinha para proceder de tal forma. Porém, ressalte-se que a parte legítima será sempre igualmente dividida entre os filhos, seja qual for sua origem, segundo o artigo 1.849 do Código Civil de 2002. Uma das poucas exigências feitas aos herdeiros em geral é a capacidade para 69 herdar. A capacidade requerida não é a mesma capacidade para os demais atos da vida civil. É a própria lei civil que determina as pessoas capazes para suceder (artigos. 1.798 e 1.799 CC/02), sendo igualmente elencadas as pessoas que são relativamente incapazes (art. 1.801 CC/02) bem como as indignas de serem aquinhoadas (art. 1.814 CC/02). Assim, são legitimados para herdar as pessoas nascidas ou concebidas no momento da abertura da sucessão. Carlos Alberto Bittar Filho chama atenção para o fato de o nascituro também ser legitimado para suceder já que “a personalidade civil começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”70 O artigo 1.799 do Código Civil trata daqueles que podem ser aquinhoados via testamento, sendo agraciadas as pessoa jurídicas já formadas ou aquelas a serem estabelecidas sob a forma de fundações. Igualmente, podem suceder os filhos não concebidos de pessoas indicadas no testamento, ficando os bens, após a partilha, confiados a um curador nomeado pelo juiz. Nesse caso, se não nascida a pessoa em até dois anos, a lei civil determina que os bens a ela destinados sejam rateados entre os herdeiros legítimos. 67 GAMA, 2003, p. 623. VENOSA, 2005, p. 113. 69 VENOSA, Ibidem, p. 49 - 59. 70 BITTAR FILHO, 2002, p. 113. 68 26 2. A EVOLUÇÃO CIENTÍFICA E AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA 2.1. O direito à reprodução e as polêmicas acerca da reprodução assistida Para Demian Diniz da Costa, existe um direito de ter filhos no ordenamento jurídico, “um direito fundamental do ser humano, assim como o direito das pessoas casarem com quem elas quiserem e formarem uma família. ”71 Igual posicionamento é manifestado por Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho que afirma ser a reprodução reconhecida “como direito fundamental, embora não absoluto, assim como os demais direitos fundamentais”. 72 Também José Afonso da Silva vê a procriação como um direito. Para o autor, a previsão traga no texto constitucional acerca da liberdade de fazer, de atuar ou de agir, como princípio individual e, em defesa da integridade, que é sempre inspirada pela garantia da dignidade pessoa humana e é nesse rol que o direito à procriação pode ser encontrado. 73 Porém, nem toda a doutrina acorda ser a reprodução humana, de fato, um direito. Mônica Aguiar74 acredita não haver direito de procriar, mas sim a faculdade de todo ser humano fazê-lo. Entender tal faculdade como direito personalíssimo traz à tona problemas de solução inimaginável como, por exemplo, a possibilidade de incapazes acometidos de doenças mentais serem submetidos às técnicas de reprodução assistida para potencializar um “direito” do qual dispõem. Semelhante posicionamento é o de Jorge Biscaia. Segundo ele, o filho, gerado ou por gerar, “deve ser visto como um dom e não um direito absoluto dessa união.”75 Assim, necessária uma “reflexão ética sobre o casal, sobre a maternidade/paternidade e sobre o sentido do filho”76 de forma que as biotécnicas não se prestem à simples realização de caprichos. O autor português José Manuel Borges Soeiro77 opta por entender a procriação também como um direito, porém não ilimitado, sendo sempre balizado no que seria de melhor interesse da criança. Dos estudos de Anison Carolina Paludo resulta o entendimento de que a procriação consiste em um direito, chamando em favor dessa argumentação a Declaração Universal dos 71 COSTA, 2002, p. 49. ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 09. 73 MENDES, Christine Keler de Lima. Mães substitutas e a determinação da maternidade: implicações da reprodução mediamente assistida na fertilização in vitro heteróloga. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 4, nº. 180, 2006. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1310> Acesso em: 17 out. 2007. p. 02-06. 74 AGUIAR, 2005, passim. 75 BISCAIA, Jorge. Problemas éticos da reprodução assistida. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 2. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crmms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 76 BISCAIA, Jorge. Ibidem. 77 SOEIRO, José Manuel Borges. Bioética e Direito – a procriação assistida. 72 27 Direitos do Homem e os direitos á igualdade, dignidade e fundação familiar nela assegurados.78 Nesse mesmo sentido estão a inviolabilidade do direito à vida, do incentivo e da liberdade de expressão à pesquisa e ao desenvolvimento científico, da liberdade de consciência e crença e o livre planejamento familiar, direitos consagrados na Magna Carta de 1988. A Igreja Católica, reconhecida pelo seu tradicionalismo, chega até a aceitar o estímulo da realização de pesquisas que visem diminuir as causas da esterilidade humana, mas quanto às técnicas de reprodução assistida, é taxativa: são moralmente inaceitáveis e gravemente prejudiciais79. Isso porque, apesar de também entender a procriação como um direito, essa instituição acredita que as técnicas de reprodução tolhem o direito que a criança possui de ter pai e mãe conhecidos e, com relação ao casal, traem “o direito exclusivo de se tornar pai e mãe somente um por meio de outro.”80 Assim, mesmo tendo esses casais a digna intenção de formarem sua família, a Igreja não acredita ser justificável o uso de meios moralmente inadmissíveis.81 Nesse sentido, o artigo 2.379 de seu Catecismo mantém o posicionamento de que: A esterilidade física não é um mal absoluto. Os esposos que, depois de terem esgotado os recursos legítimos da medicina, sofrerem de esterilidade unir-se-ão à Cruz do Senhor, fonte de toda fecundidade espiritual. Podem mostrar sua generosidade adotando crianças desamparadas ou prestando relevantes serviços em favor do próximo. Tamanho é o grau da polêmica que cerca a reprodução assistida que SOEIRO transcreve o seguinte posicionamento de Kaufmann: A afirmação de que toda a fecundação extra-conjungal é contrária à ética (posição doutrinal oficial da Igreja Católica) é grotesca já que pelo processo normal são procriadas muitas crianças em circunstâncias muito mais indignas e com muito menos amor.82 Também contrário ao posicionamento da Igreja católica, Demian Diniz da Costa reconhece haver um confronto entre o direito de gerar filhos e o direito de a criança ter uma vida familiar, mas chama atenção ao fato de que, nem sempre, os ambientes familiares previamente construídos são os melhores em se tratando de propiciar à criança as condições 78 “Artigo 3º: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”; “Artigo 7º: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”; “Artigo 12: Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”; “Artigo 16: Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. §1. O casamento não será válido senão como o livre e pleno consentimento dos nubentes. §2. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.” 79 VATICANO. Catecismo da Igreja Católica. Tradução da CNBB. São Paulo: Vozes, 1999. 80 Ibidem. Parágrafo 2.376. 81 Ibidem. Parágrafo 2.399. 82 SERRÃO, Daniel. Estatuto do Embrião. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 2. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crmms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 28 afetivas das quais necessita na infância, assim como nem sempre os casais que podem procriar naturalmente são pais melhores.83 De qualquer sorte, nos dizeres de Mônica Aguiar, “[...] o objetivo primordial da utilização de técnicas de procriação assistida é tentar oferecer aos casais com problemas de fertilidade chances idênticas às que os férteis têm de gerar filhos”. 84 Potencializadoras desse direito procriacional, essas técnicas acabaram igualmente despertando um sem número de conseqüências jurídicas e éticas das mais diversas ordens, conseqüências estas que serão analisadas mais adiante. 2.2. As técnicas de reprodução assistida Historicamente, a filiação é considerada como uma forma de perpetuação da família. Entretanto, muitos eram os casais que, a despeito de suas inúmeras tentativas, jamais conseguiam ter filhos. Popularmente atribuía-se essa impossibilidade a um castigo divino, à impotência masculina, à incompetência feminina em desempenhar suas “obrigações”. Hoje, com o avanço da ciência, revelou-se uma explicação para o problema: a infertilidade. Conforme já mencionado no Capítulo I, a questão da infertilidade era resolvida, em algumas culturas, com a adoção. Outra possibilidade seria a geração dos filhos pelo varão do casal e outra mulher. Nos casos em que a infertilidade era do homem, havia a possibilidade de a mulher gerar o filho do casal com um irmão ou primo de seu cônjuge.85 Com a evolução social e a conseqüente evolução científica, procurou-se desenvolver métodos que permitissem que também esses casais acometidos da esterilidade gerassem filhos próprios. Nesse sentido é que um conjunto de técnicas científicas visando à geração de filhos por casais portadores de problemas para promover a filiação da forma convencional foram sendo desenvolvidas. Assim surgiu a reprodução assistida. No início da década de 70 essas técnicas consistiam em despejar no órgão sexual feminino ou no colo do útero o sêmen do homem quando fosse identificada a ovulação. O sucesso dessas técnicas mal chegava a 4%. Mais tarde, em 1978, essas técnicas ganharam notoriedade após nascer o primeiro bebê gerado in vitro, ou seja, fora do corpo humano. Em 1984, nascia na Austrália a primeira criança gerada a partir de um embrião criopreservado, o bebê Zoe.86 O já conhecido posicionamento da Igreja Católica foi primeiramente manifestado em 1987. Três anos mais tarde é que vários países começaram a estabelecer diretrizes éticas e legais sobre o tema e em 1992 o Conselho Federal de Medicina brasileiro publicou a 83 COSTA, Demian Diniz da. Famílias Monoparentais: Reconhecimento Jurídico. Rio de Janeiro: AIDE, 2002, p. 49. 84 AGUIAR, 2005, p. 57. 85 MAGALHÃES, 2003, p. 02-03. 86 NETO, Marcílio José da Cunha. Considerações Legais Sobre Biodireito: A Reprodução Assistida à Luz do Novo Código Civil. Disponível em: <http://www.estacio.br/graduaçao/direito/publicaçoes/rev_novamer/art_res/cons_codciv.doc>. Acesso em: 08 out. 2007. 29 Resolução número 1.358 instituindo as “Normas Éticas para a Utilização das Técnicas de Reprodução Assistida”. 87 Hoje, as técnicas de reprodução assistida encontram-se absorvidas também pela lei civil, mas com certas impropriedades. Marcílio José da Cunha Neto chama a atenção para a utilização de termos como “concepção artificial” e “fecundação artificial” para designar as técnicas de reprodução assistida. Tal denominação se revela inadequada, já que “a concepção e a fecundação utilizam técnicas naturais com auxílio técnico e nunca de forma artificial”. E segue afirmando o autor que, até então, “a ciência não conseguiu criar nenhum espermatozóide, óvulo ou útero artificial para assim poder designar”.88 Cientificamente, as técnicas de reprodução científica podem ser desenvolvidas seguindo duas modalidades: a inseminação artificial (IA) e a fertilização in vitro (FIV). No primeiro caso, a fertilização ocorre dentro do próprio corpo humano, sendo introduzido no aparelho reprodutor da mulher o esperma. No segundo caso, a fertilização é feita em tubos de ensaio em laboratórios e, após a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, os embriões formados são implantados no útero.89 Em razão do material genético utilizado, essas técnicas de reprodução assistida foram colocadas em dois grupos: técnicas homólogas, que utilizam somente material genético do casal, e técnicas heterólogas, que utilizam material genético de doadores combinados ou não com o material genético do casal interessado em ter filhos. No campo do Direito, segundo Eunice Dias Casagrande, a reprodução na modalidade homóloga é a que menos apresenta contestações no campo jurídico, já que “não altera as estruturas jurídicas existentes, na medida em que a paternidade biológica coincide com a legal.”90 Essas técnicas não abalaram o conceito da presunção de parentalidade, isto porque o material utilizado pertence ao casal e a gestação ocorre no útero da interessada em ser mãe. Assim, a maternidade poderia ser aferida sem qualquer problema pelos mesmos conceitos biológicos da reprodução sexuada comum, sendo a mãe biológica e a mãe civil a mesma pessoa.91 Igualmente, não haveria problemas em se determinar a paternidade, já que no material genético da criança constariam traços do material genético do pai. É justamente quando se adentra o campo das técnicas de reprodução heteróloga que os problemas começam a aparecer. A maior polêmica surge quando se trata do congelamento de sêmen e da possibilidade de utilização desse material sem o consentimento do cônjuge ou companheiro 87 NETO, Ibidem, passim. NETO, op. cit., p. 06. 89 ESPÍNDOLA, José Sebastião. Contribuição jurídica para a legislação sobre fertilização humana assistida. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 2. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crm-ms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 90 CASAGRANDE, Eunice Dias. Aspectos Jurídicos da Inseminação Artificial. Revista Consultor Jurídico. São Paulo, 1999. 30 set.1999. Disponível em < http://conjur.estadao.com.br/static/text/20636,1> Acesso em 18 Jul. 2007. 91 GAMA, 2003, p. 727. 88 30 ou, ainda, após a sua morte.92 Nesses casos, os vínculos de parentalidade-filiação com base no critério biológico começam a ser afastados.93 Necessário se faz lembrar que a inseminação heteróloga pode ser realizada tanto por necessidade do casal, como por conveniência. A primeira repousa nos casos nos quais existe infertilidade no âmbito do casal. A segunda diz respeito principalmente àqueles casos nos quais a mulher deseja ter um filho sem, para tanto, envolver um homem. Demian Diniz da Costa ainda observa que a reprodução assim realizada nada tem de ilegal e deve ser permitida. O autor ainda chama atenção para o fato de que, nesse caso, a constituição da filiação é realizada por apenas a mãe, não constando no registro da criança o nome do pai.94 Entre as técnicas heterólogas de reprodução também pode ser encontrada a maternidade de sub-rogação. Também conhecida como útero de aluguel, mãe de aluguel, mãe substituta, mãe de empréstimo ou barriga de aluguel, esta técnica tem levantado polêmica em todo o mundo. 95 Recentemente, a sociedade brasileira pode acompanhar o desfecho de um caso de maternidade de sub-rogação, um dos poucos de que se tem notícia no País, até então. Uma avó se submeteu à técnica para dar à filha a chance de ser mãe, dando à luz aos próprios netos.96 O ponto principal dessa técnica é a gestação do filho almejado em um útero temporariamente “doado”, cedido para este fim. Nesse caso, a mulher que passará pela gestação e pelo parto pode não possuir qualquer vínculo genético com o filho gerado, sendo apenas uma mãe portadora. Pode ocorrer ainda de, além de ceder o útero para a gestação, a mulher também forneça material genético.97 Esse tipo de técnica permite variadas composições de material genético do embrião, podendo ser formado a partir do material genético: 1) do casal, 2) de um dos componentes do casal com o material genético de um doador, 3) de doadores somente, 4) da doadora do útero com o material genético do homem do casal, ou ainda 5) da doadora do útero combinado ao material genético de um doador. É nesse ínterim que a presunção da parentalidade outrora certa se tornou definitivamente mitigada. No caso de uma gestação sub-rogada, a quem seria atribuída a maternidade afinal, àquela que se submeteu ao processo, a quem doou o material genético ou a quem ofereceu o útero para a gestação? Levando-se em conta somente a verdade biológica até hoje utilizada no ordenamento jurídico pátrio, em algumas situações, seria impossível atribuir a parentalidade ao casal interessado em ter o filho. A complexidade jurídica do tema é tamanha que em alguns países a adoção dessa técnica chegou até mesmo a ser proibida. Dentre as principais questões acerca do tema tem-se 92 CASAGRANDE, 1999, passim. GAMA, 2003, p. 751. 94 COSTA, 2002, p. 48. 95 MENDES, 2006, passim. 96 CARDOSO, Karina. Nascem netos gestados no ventre de mãe-avó. Jornal Cotidiano, Pernambuco, 27 set. Disponível em <http://jc.uol.com.br/2007/09/27/not_150577.php> . 97 AGUIAR, 2005, p. 108. 93 31 a possibilidade da cessão temporária do útero a título oneroso e a complexa determinação da maternidade 98quando a mãe cedente se recusa a entregar o filho à mãe interessada. No Brasil, a maternidade sub-rogada é aceita, mas somente em última ratio99, nos casos em que a “doadora” do útero e a mulher interessada no procedimento são da mesma família. Ainda, não é permitido percepção de qualquer tipo de vantagem para ser uma mãe substituta. Apesar do que dispõe a Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina, parte da doutrina reconhece a técnica como ilegal, seja ela realizada a título oneroso ou gratuito, em atendimento à proibição à comercialização do corpo feita no texto constitucional em seu artigo 5°de e, no segundo caso, em proteção dos vínculos familiares e jurídicos. Ainda assim, na eventualidade da maternidade de substituição se efetivar, ainda que contrariamente ao ordenamento jurídico, para o Direito a mãe da criança será determinada pelo parto e, conseqüentemente, aquela que desejou receber a criança na sua família - ainda que seja fornecedora do óvulo que foi fecundado - não terá qualquer vínculo jurídico com a criança diante do critério do parto. Fica evidente que, para tal decisão, o aspecto utilizado para a determinação da maternidade continua sendo o biológico, firmado no parto. Porém, vários doutrinadores entendem nesse caso ser a verdade biológica insuficiente para determinar o vínculo da filiação. Para Mônica Aguiar, quando o componente genético for integralmente do casal outorgante, mãe será aquela que contribuiu com seu material genético, ficando afastada a maternidade atribuída pelo parto.100 A doutrinadora acredita que o critério primordialmente biológico adotado na fixação do direito parental deva ser superado, de forma a atribuir a paternidade e a maternidade àqueles que se submeteram à técnica.101 O posicionamento de Silvio Venosa, todavia, corrobora para que seja considerada mãe aquela que teve o óvulo fecundado, não se admitindo outra solução, uma vez que o estado de família é irrenunciável e não admite transação.102 Aceitando-se tal posicionamento, se o óvulo pertencer à mãe substituta e o sêmen for o do marido do casal, o direito parental acabará surgindo entre esses dois estranhos. Conforme dito anteriormente, há um conjunto de critérios (ou verdades) a serem analisados para se determinar a existência ou não dos vínculos parentalidade-filiação. Caberia ao legislador determinar tais critérios. Como não há na lei esta determinação, ficará ao critério do julgador fazer a análise da situação fática e optar pelo critério mais viável. Nunca é demais lembrar que uma ou outra verdade não basta para a determinação do vínculo materno-paterno-filial. Assim, Silvio Venosa lembra que nem sempre a opção por uma verdade em detrimento das demais será uma solução ética ou moralmente aceita pelos 98 AGUIAR, 2005, p. 109-111. O posicionamento que manifesta Silvio Venosa é o de que somente seja admitida essa técnica quando não houver outra possibilidade de se promover a gestação. Ela deve ser objeto de solidariedade e afeto, daí advindo a necessidade da mãe sub-rogada e a mãe interessada serem da mesma família. Direito Civil: direito de Família. 100 AGUIAR, op. cit., p. 115. 101 AGUIAR, 2005, p. 98. 102 VENOSA, 2006, p. 295. 99 32 envolvidos e pela sociedade.103 O que deve ser preferencialmente levado em conta é o interesse do concebido, de ser criado em ambiente harmônico pelas pessoas que o desejaram e possibilitaram seu nascimento com o emprego de técnicas de procriação assistida.104 2.3. Os requisitos subjetivos, objetivos e formais à reprodução assistida Quando se fala em reprodução assistida, nenhum juízo é absoluto. É necessário que sempre seja observada a técnica que é aplicada a cada caso concreto. Assim, os requisitos necessários para cada técnica também não são, em regra, uma constante. Em se tratando da reprodução assistida homóloga, os requisitos subjetivos são, quase sempre, subentendidos em razão do tipo de procedimento utilizado. Porém, quando se fala na reprodução assistida na modalidade heteróloga, o mesmo não ocorre. De qualquer sorte, ser ou não o requisito subentendido varia em razão dele mesmo. Um requisito a ser citado é a autorização conjugal para se submeter às técnicas biomédicas de reprodução. Assim fica mais evidente a questão do requisito subentendido. Para Mônica Aguiar, “é razoável o entendimento de que ambos, tanto o homem quanto a mulher, devam consentir na realização da técnica que poderá resultar o nascimento de um filho.”105 Assim, além de aceitar se submeter às técnicas, o casal assume o compromisso de fornecer à criança gerada um lar, sendo igualmente assumidos os deveres que advêm do poder familiar. Em se tratando de combinação de sêmen do marido com o óvulo de doadora, Guilherme Calmon Nogueira da Gama afirma ser a aceitação conjugal da mulher tácita, já que o material genético será implantado no seu corpo. Assim, aceitar a implantação por si só já compreenderia uma manifestação de vontade. Entretanto, quando o material genético da mulher casada for misturado ao sêmen de um doador, ou quando todo o material genético pertencer a doadores, é necessário que haja manifestação expressa de concordância do marido. Nesse ponto, digna é a observação de Silvio Venosa106 ao criticar o legislador por não estabelecer uma forma para que a autorização fosse concedida. A ausência de forma especial para tal ato o deixa no rol das formas livres de manifestação volitiva, não carecedora de qualquer formalidade. A crítica de Silvio Venosa é válida justamente em razão das conseqüências jurídicas da inseminação heteróloga. Isso porque, uma vez casadas as pessoas que se submetem à técnica, a filiação será presumida, ainda que inexista a expressa autorização. É por isso mesmo que quando ocorre uma inseminação artificial na modalidade heteróloga, a autorização do marido é fundamental, vez que “a filiação por esse método obtida é juridicamente sua e a paternidade não poderá ser posteriormente contestada.”107 103 VENOSA, Ibidem, p. 248. AGUIAR, op. cit., p. 168. 105 AGUIAR, 2005, p. 77. 106 VENOSA, 2006, p. 244. 107 MAGALHÃES, 2003, p. 167. 104 33 Citando o doutrinador Luis Paulo Cotrim Guimarães, Nicolau Júnior observa estar “a paternidade presumida quanto ao filho advindo por reprodução assistida, em qualquer momento da relação conjugal, exigindo como requisito único, o consentimento marital.”108 Também este autor chama atenção para a inexistência de forma predeterminada de tal manifestação, podendo inclusive ser feita de forma verbal. Contudo, em se tratando de pessoas unidas sob a égide do companheirismo, há uma situação diferenciada. Neste tipo de união inexiste a presunção de paternidade que é sustentada no casamento. Dessa forma, ainda que houvesse a prévia autorização, a filiação jamais poderia ser presumida. Caberia ao filho pleitear seu reconhecimento. Porém, uma vez tendo sido a filiação constituída durante a união estável, por reprodução assistida heteróloga, tendo havido autorização do companheiro para a realização do procedimento, o pleito filial obteria êxito.109 Quanto à forma da autorização, a doutrina não está pacífica, já que para Demian Diniz da Costa: o consentimento do cônjuge deverá ser expresso através de formulário especial, é obrigatório para a utilização das técnicas de reprodução artificial humana, (...), prevendo, ainda, a revogação do consentimento, que poderá ocorrer até o momento anterior á realização da técnica de reprodução assistida. 110 Talvez essa discordância se deva ao fato de haver na Resolução nº. 1.358 do Conselho Federal de Medicina a previsão de formulário escrito111, mas tal cuidado não é reiterado no texto do Código Civil. Importante saber que essa autorização não deve ser revogada, caso contrário impossível será a aplicação das técnicas de reprodução assistida. A revogação pode advir de uma ruptura do plano parental ou da relação conjugal em si, e ocorrendo “não existe fundamento plausível que justifique o nascimento de criança fruto de projeto parental que se desfez.”112 Porém, uma vez ocorrida a concepção ou iniciada a gestação, mas não há que se falar em revogação de consentimento ou suspensão do projeto parental. O binômio parentalidadefiliação já estará formado. Permitir que depois de concluída a técnica o marido ou 108 NICOLAU JÚNIOR, Mauro. Inseminação artificial, clonagem do ser humano e sexualidade. Os efeitos produzidos na família, do presente e do futuro. O necessário olhar ético ante os direitos fundamentais e os princípios constitucionais. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 884, 4 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7619>. Acesso em: 01 out. 2007. 109 GAMA, 2003, p. 740. 110 COSTA, 2002, p. 46. 111 “I – Princípios Gerais (...) 3 - O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos pacientes inférteis e doadores. Os aspectos médicos envolvendo todas as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, assim como os resultados já obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento informado será em formulário especial, e estará completo com a concordância, por escrito, da paciente ou do casal infértil. 112 GAMA, 2003, p. 777. 34 companheiro simplesmente revogasse o consentimento prestado consistiria numa atitude antijurídica e totalmente injusta.113 Outro requisito subjetivo observado na aplicação das técnicas é a condição de pessoa casada ou em união estável. Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, esta condição é “requisito importante para possibilitar a constituição de vínculo de parentesco civil entre tal pessoa e a criança a nascer.”114 Isso porque, afirma o autor, deve ser sempre observado o melhor interesse da criança, já que se gerada por casados teria ela oportunidades a ser formada em uma família de bases sólidas, seguras e autênticas. Nesses casos, ficaria evidente a existência prévia de um plano parental entre os envolvidos, o que seria igualmente observado nas relações fundadas no companheirismo. É em face da inexistência de um plano parental que Silvio Venosa115 pugna pela negativa de autorização à mulher solteira para se submeter a essas técnicas. Igual negativa, de acordo com o autor, deveria ser dada àquelas mulheres que não mais possuíssem idade cronológica reprodutiva, já que tais situações desencadeariam problemas sociais graves. Nessas situações a criança gerada não teria um fim em si mesma, mas corresponderia a um meio de alcançar determinados interesses pessoais, o que atenta contra os princípios da dignidade humana e do melhor interesse da criança. Todavia, é necessário observar que, analisando o texto da resolução número 1.358 do Conselho Federal de Medicina, inexiste qualquer menção expressa de que a mulher solteira não possa se submeter às técnicas. Nesse ponto, o debate é puramente doutrinário, dizendo respeito ao que se entenderia melhor para a criança a ser gerada. Ainda que existisse manifestação acerca dessa impossibilidade, Christine Keler de Lima entende que essa determinação não seria legal. Até mesmo porque o direito de conceber somente poderia ser limitado ou extraído caso a pessoa interessada não dispusesse de condições psicológicas e nem apresentasse responsabilidade maternal, características necessárias ao resguardo dos direitos da criança a ser concebida.116 Outros requisitos subjetivos, estes de ordem pessoal, também devem ser observados. Conforme o texto da Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, somente mulher capaz acometida de esterilidade é que pode se submeter às técnicas de reprodução assistida. Quando determina que deva ser mulher o indivíduo a se submeter à esse tipo de reprodução, a Resolução do Conselho Federal de Medicina refuta a possibilidade de um homem figurar. Isso porque somente seria possível que homem se submetesse a tais técnicas se empregasse juntamente a maternidade de sub-rogação, e conceber tal possibilidade “viola 113 PALUDO, Anison Carolina. Bioética e Direito: procriação artificial, dilemas ético-jurídicos. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2333>. Acesso em:15 set. 2007. 114 GAMA, 2003, p. 771. 115 VENOSA, 2006, p. 246-247. 116 MENDES, 2006, passim. 35 princípios e valores basilares do ordenamento jurídico, notadamente a dignidade da pessoa da mulher.”117 Primeiramente porque é a própria resolução que determina a existência de parentesco entre a mãe “doadora” e a mãe interessada. Depois, ainda que fosse observado existir tal relação, ficaria claro que a aplicação da técnica implicaria que ambas as mães renunciassem à filiação em favor do homem, implicando um verdadeiro negócio jurídico. Nesse sentido, a doutrina de Mônica Aguiar é taxativa afirmando não ser “cabível a existência de qualquer negócio jurídico que tenha como objetivo a pessoa, haja vista que essa atuação importaria em uma conduta contra a ontológica condição humana.”118 Quanto à capacidade, atenta-se para o alcance da idade civil mínima de 18 anos para a mulher, bem como o exercício pleno das faculdades mentais, sem quaisquer problemas para entender seus atos e manifestar sua vontade. O terceiro requisito pessoal diz respeito à esterilidade, ou seja, à comprovada impossibilidade de gerar sem a assistência ou intervenção médica. No entendimento de José Sebastião Espíndola, existe uma limitação ética e moral na aplicação desses procedimentos, sendo que seu livre acesso poderia traduzir-se em uma subutilização. O maior temor é que o livre acesso faça com que motivos não tão nobres sejam ensejadores desses procedimentos.119 Também Mônica Aguiar se posiciona contra a permissão de mulheres férteis se submeterem a essas técnicas, isso porque, segundo a doutrinadora, não há “razão plausível para que se estenda, a pessoas que não apresentem qualquer limitação à sua capacidade reprodutiva, o auxílio biomédico”.120 Igual importância apresentada pelos requisitos subjetivos é guardada pelos requisitos objetivos. Nesse rol estão inclusos a gratuidade do procedimento, o sigilo e o anonimato, a esterilidade ou o risco de transmissão de doenças e o projeto parental. Guilherme Calmon Nogueira da Gama garante que é a presença desses requisitos que garante a legitimidade das técnicas de reprodução assistida, fazendo com que sejam constituídos os vínculos de parentalidade-filiação delas decorrentes.121 Esses requisitos são observados tanto em razão das partes que se submetem às técnicas biomédicas quanto dos doadores de material genético. É justamente em relação aos doadores que a regra da gratuidade é aplicada. Dentro das regras do ordenamento jurídico brasileiro, os doadores de material genético não devem receber qualquer tipo de pagamento pelo material doado. Isso porque, apesar do direito que cada ser humano tem de dispor do próprio corpo, é contrário ao ordenamento jurídico pátrio a comercialização do corpo humano e suas partes. A doutrina de Guilherme Calmon Nogueira da Gama ensina que existe no direito brasileiro o princípio da dignidade do ser humano, sendo que este princípio abrange o direito 117 GAMA, 2003, p. 788. AGUIAR, 2005, p. 112. 119 ESPÍNDOLA, José Sebastião. Contribuição jurídica para a legislação sobre fertilização humana assistida. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 2. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crm-ms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 120 AGUIAR, op. cit., p. 90. 121 GAMA, 2003, p. 792. 118 36 ao “respeito, à proteção e à promoção de sua integridade física e psíquica”.122 Permitir a tangibilidade do corpo humano é uma ofensa direta a esses direitos. Ademais, o que deve motivar a doação não é a percepção de um lucro, mas o altruísmo do ato em si. Em relação ao sigilo e o anonimato, necessário entender um e outro, já que constituem requisitos de ordens diversas. No título IV da Resolução do CFM acerca do tema, existe previsão expressa desses dois requisitos.123 O sigilo do procedimento advém da mesma natureza do sigilo profissional. Este requisito determina que o procedimento, importando tão somente aos que dele participaram, deve ser mantido em segredo. O principal objetivo vislumbrado, segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama é a preservação da intimidade das pessoas que se submetem ao processo. O foco principal desse resguardo é a própria criança que será gerada, de forma a impedir qualquer designação ou tratamento discriminatório. O anonimato, por sua vez, é sustentado na determinação de que doadores e receptores não devem conhecer um a identidade do outro. Esse requisito faz com que uma aproximação das partes seja inviabilizada, resguardando os envolvidos. Principalmente, esse é um requisito que favorece o doador de material genético, já que assim fica certa, a seu ver, que qualquer obrigação de caráter parental no futuro não será formada, já que nem mesmo os médicos que participam do procedimento conhecem a sua identidade. Para admitir a legitimidade das técnicas de reprodução biomédica é necessário observar a presença da esterilidade de uma ou ambas as partes do casal, ou ainda o risco de transmissão de doenças caso a reprodução se dê naturalmente. A infertilidade já foi matéria tratada dentro dos requisitos pessoais, dessa forma, maior ênfase será dada agora ao risco de transmissão de doenças. A mencionada Resolução do Conselho Federal de Medicina traz a seguinte disposição: “As técnicas de RA também podem ser utilizadas na preservação e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.” 124 Nesse caso, há na estrutura legal espaço para que as técnicas sejam utilizadas para repelir a transmissão de doenças genéticas, zelando-se novamente pelo melhor interesse da criança a nascer. Guilherme Calmon Nogueira da Gama aponta que as doenças das quais trata a Resolução são apenas aquelas relacionadas ao sexo da criança.125 122 GAMA, 2003, p. 794. “2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.”; “3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de gametas e pré-embriões, assim como dos receptores. Em situações especiais, as informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.” 124 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Brasil, São Paulo - SP, 11 nov. 1992. 125 GAMA, op. cit., p. 808. 123 37 Inclusive, segundo o disposto na Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, essa é a única possibilidade de utilização de uma técnica de reprodução assistida para escolher o sexo da criança que irá nascer.126 Por último, mas não de menor importância deve ser verificada a existência de um projeto parental comum entre as pessoas que se submetem às técnicas reprodutivas assistidas. Nesse ponto, novamente surge o debate acerca da possibilidade de uma mulher solteira se submeter às técnicas de reprodução assistida. Conforme restou observado anteriormente, a legislação não faz menção expressão da impossibilidade de solteira realizar um procedimento biomédico dessa espécie, mas, sendo suscitado o princípio do melhor interesse da criança, a doutrina se divide quanto à aceitação da realização do procedimento. Ainda assim, é preciso observar que, casados ou solteiros, médico perceber que aos que desejam se submeter às técnicas fazem a solicitação visando “a atender projetos egoístas, de pura satisfação narcisista, sem qualquer conteúdo relacionado ao bem-estar da futura criança”127, pode ser negar-lhes a autorização para o procedimento. Isso porque o que deve ter-se sempre em mente é que, apesar da filiação constituir-se em um direito de toda pessoa, o direito à dignidade humana lhe sobrepuja. Esta parece uma decisão mais acertada do que a simples inferência da existência ou não de um vínculo conjugal ou de companheirismo para determinar a realização dos procedimentos. Quanto aos requisitos formais, Guilherme Calmon Nogueira da Gama afirma que esses não existem justamente por haver no ordenamento jurídico um vazio a respeito das técnicas de reprodução assistida. Porém, não pode o Poder Público simplesmente dar as costas à situação, até mesmo porque proteger a criança a nascer é seu dever. Utilizando-se os costumes e os princípios gerais de direito, na ausência da lei, o doutrinador estabeleceu quatro requisitos formais fundamentais a serem observados quando da realização das técnicas de produção assistida. São eles: O prévio consentimento informado por escrito; O registro médico dos procedimentos realizados; O registro permanente do material genético utilizado; O registro dos dados genéticos dos doadores. Uma vez observando esses requisitos, a ausência ou incompatibilidade a um deles deve importar o indeferimento da autorização para a realização de uma técnica de reprodução assistida, assim como ocorre em relação aos requisitos para uma adoção. 126 “Artigo 14.º CAPÍTULO V Não é admitida a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida para escolher o sexo da criança a nascer, salvo para evitar graves doenças hereditárias ligadas ao sexo.” 127 GAMA, 2005, p. 811. 38 2.4. O material genético excedente: dispensabilidade, conservação ou doação? O aperfeiçoamento das diversas etapas da fecundação acabou por aumentar o número de embriões saudáveis com potencial impantatório. Geralmente, de seis a oito embriões podem ser conseguidos, porém, somente quatro podem ser implantados.128 É bem verdade que na utilização das técnicas de reprodução assistida in vitro vários embriões são formados, até mesmo para que não se perca tempo caso uma primeira implantação não seja bem sucedida. A despeito dessa prática, a Resolução nº. 1.358 do CFM determina que não mais que quatro pré-embriões sejam transferidos para o útero, o que nem sempre acontece. Todavia, os embriões formados, ainda que não sejam implantados, já existem. O debate que vem sendo travado científica, ética e juridicamente se dá em relação ao que poderia ser feito com esses embriões depois de conclusa com sucesso a técnica aplicada. Três são as possibilidades que têm sido levantadas: a preservação, o descarte e a doação. Vários casais optam por manter esses embriões criopreservados, isto é, congelados, para utilizá-los em futuras gestações, até mesmo porque, na fertilização heteróloga, “quando um filho já foi gerado em um ciclo anterior, há o atrativo extra de dar à luz a uma criança com a mesma herança genética do irmão.”129 Por outro lado, insurge-se a superpopulação de embriões como um novo entrave, gerada pela: [...] ausência de uma previsão legal que estabeleça um prazo para esta nova transferência, somada ao desinteresse de muitos casais em procurar novamente as clínicas (por motivos que vão desde a falta de estrutura emocional - ou dinheiro para atravessar um novo período de tentativas até a separação do casal, passando pelo simples desejo de não ter mais filhos 130. Assim, esses embriões acabam por ficar estocados nos centros de reprodução assistida, esperando que alguma destinação lhe seja dada. Ocorre que o grande número de embriões conservados acaba representando um risco para as próprias clínicas, uma vez que o material pode se perder ou ser extraviado. Nesses casos, não seria difícil imaginar a responsabilização das clínicas pela implantação de embriões trocados ou mesmo pela impossibilitação de um cliente utilizar os gens depositados quando inexistente a possibilidade de uma nova colheita do material genético. Contudo, Daniel Serrão131 afirma que a própria conservação prolongada por si só pode destruir a vida dos embriões. Por isso, para os cientistas, uma das destinações mais nobres 128 LEWICKI, Bruno. O homem construtível: responsabilidade e reprodução assistida. In: Temas de Biodireito e Bioética. Organização de Heloisa Helena Barboza e Vicente de Paulo Barreto. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 99-154. 129 LEWICKI, 2001, passim. 130 Ibidem. p. 116. 131 SERRÃO, Daniel. Estatuto do Embrião. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 2. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crmms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 39 para os embriões excedentes seria a sua utilização em pesquisas.132 Existe nessa possibilidade um grande debate ético e filosófico, implicando se entender, biologicamente, o que vem a ser o termo embrião. Segundo Daniel Serrão133, a fecundação consiste na fusão dos gametas masculino (sêmen) e feminino (óvulo). Dessa fecundação resulta um conjunto de transformações, apresentando-se um zigoto em sua última fase. O zigoto é uma célula única na qual estão unidos os cromossomos provenientes dos dois gametas, mas já a partir dessa fase se pode chamar de “embrião” o material obtido. O que importa dizer é que o embrião humano, desenvolvido in vivo ou in vitro, desde seu estágio inicial (zigoto), já apresenta natureza biológica humana, o que não se altera durante seu desenvolvimento (de feto a velho). Para Daniel Serrão o “zigoto humano é a primeira e mais simples forma de apresentação pública de um corpo humano”134, já é um ser humano. Assim, quanto à possibilidade de destinar os embriões à pesquisa científica, o autor argumenta que seria o mesmo que submeter qualquer pessoa a experiências desumanas e mortais. Se submeter um ser nascido, porque dotado de vida, a essas experiências consiste uma ilegalidade, fazer o mesmo com o embrião também seria. Alessandro Rafael Bertollo de Alexandre afirma serem a dispensabilidade, a conservação ou doação possibilidades juridicamente aceitáveis. Isso porque, lembra o autor, a proteção legal somente ocorre a partir do nascimento ou quando esses embriões já são, de fato, nascituros. Assim, afirma ser certo que: “a maioria deles não resultará numa fecundação com sucesso, e, desta maneira, não podem ser considerados nascituros, justo porque seu nascimento não é um fato futuro e certo, muito pelo contrário, é um fato improvável e incerto. Em termos jurídicos, é um absurdo cogitar que um embrião dotado de duas células (gametas) possa ser algo mais que apenas duas células, se igualando aos nascituros localizados em ventre materno.”135 Porém, para Marcílio José da Cunha Neto, a contrário senso, independe a quantidade de células apresentadas para se entender que já existe ali um ser humano.136 Apesar de optar pela conservação dos embriões, SERRÃO afirma que o embrião acabará perecendo. Assim, acredita que: “[...] usá-lo para pesquisa, da qual possa resultar benefício para outros embriões, para o processo de reprodução assistida ou para a saúde humana em geral é 132 BISCAIA, Jorge. Problemas éticos da reprodução assistida. Revista de Bioética e Ética Médica. Volume 11, número 02. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2003. Disponível em: <http://www.crmms.org.br/revista/bio11v2/RevistaBioetica.pdf>. Acesso em: 09 out. 2007. 133 SERRÃO, op. cit., passim. 134 Ibidem. 135 ALEXANDRE, 2003, p. 04. 136 NETO, Marcílio José da Cunha. Considerações Legais Sobre Biodireito: A Reprodução Assistida à Luz do Novo Código Civil. Disponível em: <http://www.estacio.br/graduaçao/direito/publicaçoes/rev_novamer/art_res/cons_codciv.doc> Acesso em: 08 out. 2007. 40 eticamente aceitável segundo o princípio da proporcionalidade, porque sendo a morte do embrião inevitável, a morte por motivo de pesquisa produz um benefício.”137 Mesmo favorável à utilização dos embriões excedentes em pesquisas científicas, Alberto Silva Franco pugna que a permissão para a utilização dos embriões excedentes deva ser feita com extrema cautela. Isso para evitar que, propositalmente, sejam elaborados mais embriões do que seria necessário e legalmente determinado para as técnicas de reprodução assistida ou que embriões sejam constituídos com a finalidade exclusiva de serem utilizados para essas experiências.138 Alessandro Rafael Bertollo de Alexandre segue afirmando ser possível a utilização dos embriões para pesquisas terapêuticas, já que “se sacrifica um tipo de vida (não em termos jurídicos, mas biológicos) com status jurídico inferior para propiciar benefícios para entes dotados de personalidade jurídica.”139 Alberto Silva Franco, a seu turno, acredita que somente é cabível nova destinação dos excedentes em casos de experimentação terapêutica “quando o resultado que se espera da experiência possa concorrer para o bem do embrião” ou de experimentação humana “quando o resultado puder beneficiar outros embriões, com a obtenção de novos conhecimentos científicos,” mas desde que a morte do embrião seja necessária e inevitável e “a sua degradação em objeto puder ser compensada pela prossecução de importantes objetivos médico-científicos, aos quais ainda falta dar uma definição suficientemente clara.”140 O discurso dos doutrinadores é uníssono para reconhecer que o material depositado nos bancos é propriedade de quem os produziu, cabendo a essas pessoas decidir a respeito de sua destinação. Talvez o destino mais digno a ser dado aos embriões excedentes seja a sua doação para implantação por outro casal. Nesse caso, o casal doador dos embriões respeitaria os mesmos requisitos objetivos de sigilo e anonimato dos doadores de material genético em geral, o que acabaria por despertar uma outra preocupação: uma possível união entre dois irmãos. De qualquer sorte, seja qual for a destinação que se pretenda dar aos embriões excedentes, Daniel Serrão chama atenção para que os casais recebam informação completa sobre os procedimentos desde antes de serem submetidos à técnicas de reprodução assistida, de forma a eles mesmos exercerem o direito de determinar o destino do material genético não utilizado. 137 SERRÃO, 2003, p. 112. FRANCO, Alberto Silva. Genética Humana e Direito. 26 jul. 2003. Disponível em <http://www.drashirleydecampos.com.br/noticias/4387> Acesso em 10 set. 2007. 139 ALEXANDRE, op. cit., p. 04. 140 FRANCO, 2003, p. 03. 138 41 3. A FILIAÇÃO DERIVADA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA Como o Direito tende a acompanhar as evoluções sociais, as diferentes filiações geradas pelas técnicas de reprodução assistida foram inseridas no Código Civil de 2002. No entanto, deve-se atentar para a necessidade de leis específicas nesse sentido. Silvio Venosa141 roga por um rigor legal maior, de forma a evitar que a sociedade venha a ser surpreendida por problemas éticos e jurídicos de difícil solução. Nicolau Júnior142 chama também atenção para o fato do legislador ter introduzido uma possibilidade de filiação tão inovadora sem, entretanto, ter realizado uma regulamentação de forma mais específica. Questões como a realização da reprodução em útero de mulher que não seja a esposa, um possível reconhecimento do filho pelo doador de sêmen, a destinação dos embriões excedentes, e a qualidade de herdeiros atribuída aos filhos gerados após a morte do pai são apenas algumas das situações que, afirma o doutrinador, serão geradas com o passar do tempo. Hoje mesmo, pouco mais de cinco anos após a entrada do Código Civil de 2002 em vigor, já podem ser observadas inúmeras questões dignas de debate no que concerne a reprodução assistida. Na doutrina de Silvio Venosa143 algumas considerações podem ser encontradas em relação às técnicas em si mesmas. Isso porque, segundo o doutrinador, apesar da filiação derivada de técnicas biomédicas ter sido incluída na lei civil, não se pode dizer que essas técnicas estejam regularizadas ou autorizadas. Tudo o que se tem em matéria legal a respeito das técnicas de reprodução é a Resolução número 1.359 do Conselho Federal de Medicina, que não tem caráter cogente, dado à sua natureza legal.144 Também é discutível, quanto à autorização conjugal para a realização das técnicas, a forma do consentimento prestado pelo cônjuge, já que a Resolução nº. 1.358 do CFM determina sua forma escrita, mas o Código Civil de 2002 não reitera tal posicionamento.145 A produção doutrinária acerca do tema é o que se tem para entender o procedimento e determinar, juntamente com a escassa produção legal, a sua legitimidade. Nesse capítulo, traz-se à baila duas polêmicas modalidades de reprodução sob intervenção médica: a heteróloga na constância do casamento e a homóloga após a morte do cônjuge. 3.1. A possibilidade da reprodução assistida no casamento e na união estável Conforme o que foi estudado no Capítulo II, para a realização da reprodução assistida heteróloga pode-se tanto utilizar a combinação dos gametas de um dos componentes do casal 141 VENOSA, 2005, p. 245. NICOLAU JÚNIOR, 2005, passim. 143 VENOSA, 2006. 144 MENDES, 2006, p. 12-15. 145 VENOSA, 2006, p. 244. 142 42 com os gametas de um doador, como pode ocorrer a utilização de material genético somente de doadores. Entretanto, é necessário entender que a aplicação dessa técnica somente é feita quando se comprova a completa impossibilidade de o casal gerar filhos utilizando o seu próprio material genético. O Código Civil de 2002 inovou ao trazer em seu texto a constituição da filiação formada mediante a utilização das técnicas de reprodução assistida, inclusive a heteróloga. Mas a presença técnica no texto legal está longe de silenciar todos os problemas que podem ser gerados com a sua utilização. Os três últimos incisos do artigo 1.597 do Código Civil vigente determinam ser presumida na constância do casamento a filiação que advém das técnicas de reprodução assistida. O disposto no inciso V146 merece atenção. Perceba-se que, pelo determinado na lei, haverá aí uma presunção de paternidade em relação ao marido. Isso porque, no momento em que forneceu sua anuência para a realização da fertilização heteróloga, o marido assumiu como sua a filiação procedente deste método e não poderá impugnar a paternidade assumida.147 Nesse ponto, Mônica Aguiar chama a atenção para a possibilidade de uma mulher se submeter às técnicas biomédicas, mas acabar engravidando por ter mantido relação carnal com terceiro. Aí está visível uma grande insegurança jurídica traga pelo procedimento, já que, a priori, não poderia o marido/companheiro contestar a paternidade da criança, por óbvio que a filiação biológica não lhe pertenceria, uma vez que o casal havia se submetido à reprodução heteróloga.148 Então, seria possível que o cônjuge procedesse numa investigação de paternidade? Existindo essa possibilidade, como seria comprovada a origem diversa da filiação? A resposta para essas indagações não parece ser fácil. Nesse sentido, Paulo Lôbo afirma que “se o marido autorizou a inseminação artificial heteróloga não poderá negar a paternidade, em razão da origem genética, nem poderá ser admitida investigação de paternidade.” Contudo, a presunção da paternidade não é mais um valor absoluto e foi justamente o avanço tecnológico que possibilitou sua relativização. Assim, ainda que o cônjuge concorde com a utilização do procedimento de fertilização heteróloga, não parece correto afirmar que não poderá investigar se aquele filho é realmente seu. Até mesmo porque o artigo 1.601 do Código de 2002 prevê para o marido o direito imprescritível de contestar a paternidade dos filhos.149 Quanto à forma de investigar a paternidade, evidentemente não seria utilizado o seu material genético, mas aquele material depositado na clínica, os embriões excedentes. Inexistindo o embrião, seja porque foi doado ou destruído, restaria uma última possibilidade 146 “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) V - havidos por fecundação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.” 147 VENOSA, 2006, passim. 148 AGUIAR, 2005, p. 68. 149 VENOSA, op. cit., p. 234. 43 de verificar a filiação utilizando os bancos de registro que, de acordo com a Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina, devem ser mantidos pelas clínicas de reprodução.150 Parece, assim, ficar mais evidente a importância da existência dos requisitos subjetivos, objetivos e formais já comentados no capítulo anterior. Um outro questionamento é feito a respeito de às pessoas que vivem em união estável poderem se submeter às técnicas biomédicas heterólogas. Conforme a previsão da Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, também esse grupo está apto a realizar os procedimentos de reprodução assistida em qualquer de suas modalidades.151 Porém, para Silvio Venosa a presunção da filiação, no caso da reprodução assistida realizada por pessoas que convivam em união estável, inexiste.152 Também ALDROVANDI e FRANÇA afirmam que e a filiação decorrente de união estável realmente não pode ter a paternidade presumida. Por outro lado, entendem que, no caso de uma reprodução assistida ter sido utilizada para a concepção da criança gerada, tendo havido expresso consentimento do companheiro para a realização do procedimento, fica gerado o reconhecimento incontestável da paternidade. O mesmo entendimento somente não poderia ser sustentado se ocorresse a realização do procedimento sem a autorização do companheiro.153 Paulo Lôbo entende que a presunção de paternidade de filhos gerados por reprodução assistida também deve ser aplicada à união estável.154 Para o autor a presunção do estado de filiação ocorre tanto quando os pais são casados quanto quando vivem em união estável.155 Também Guilherme Calmon Nogueira da Gama entende que as mesmas disposições aplicadas ao casamento são utilizadas em relação à união estável, posto que “a família não-fundada no casamento também é digna da proteção do Estado e, no âmbito das relações externas tendo como base o companheirismo, tal proteção deve ser prestada, em igualdade de condições á família fundada no casamento.” 156 Da mesma forma se coloca a doutrina de José Roberto Moreira Filho. Para o autor, não importa diferença estarem as partes casadas ou em união estável, se as partes externaram seu consentimento e se submeteram ao procedimento, “não resta dúvida de que, seja homóloga ou heteróloga, a filiação pertencerá ao casal que a consentiu; e se presumirá 150 “As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo controle de doenças infecto-contagiosas, coleta, manuseio, conservação, distribuição e transferência de material biológico humano para a usuária de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos mínimos: (...) 2 - um registro permanente (obtido através de informações observadas ou relatadas por fonte competente) das gestações, nascimentos e malformações de fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de gametas e pré-embriões.” 151 “2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado.” 152 VENOSA, 2006,. p. 253. 153 ALDROVANDI, Andrea; FRANÇA, Danielle Galvão de. A reprodução assistida e as relações de parentesco. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3127>. Acesso em: 24 out. 2007. 154 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, passim. 155 LÔBO, Paulo Luiz. A paternidade socioafetiva e a verdade real. Revista CEJ, Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006. 156 GAMA, 2003, p. 773. 44 legítima”.157 Assim, pode ser observada a possibilidade da realização de técnicas biomédicas de reprodução tanto na constância do casamento quanto da união estável, sendo a partir de seu emprego geradas conseqüências nos dois institutos. 3.2. A reprodução assistida post-mortem do cônjuge ou companheiro Outra novidade trazida pelo Código Civil de 2002 foi o inciso III do artigo 1.597158. O doutrinador Mauro Nicolau Júnior afirma que, de acordo com o disposto nesse inciso, uma inseminação artificial poderá ser realizada a qualquer momento, até mesmo após a morte do marido ou companheiro.159 Para José Carlos Teixeira Giorgis a inseminação artificial póstuma é um procedimento controvertido em vários países do mundo e, apesar do reconhecimento legal, não parece ter tido melhor sorte no Brasil. 160 A despeito de ter havido a inserção da presunção da paternidade para os casos de reprodução assistida post-mortem, não há legalmente a regulamentação para a realização do procedimento. Assim, ainda que haja previsão legal e interpretação doutrinária favorável para a sua realização, a inseminação artificial post-mortem do cônjuge varão ou do companheiro ainda vaga dentro de um território insólito, vez que inexiste no direito civil a segurança adequada para a sua realização.161 Por isso, para Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho, “a fecundação artificial post mortem é temática aberta no nosso direito e, assim, apta as mais diversas interpretações”162. Inúmeros são os questionamentos levantados quanto à aplicação dessa modalidade de fertilização biomédica, entre eles destacando-se o bem estar da criança assim gerada, a inexistência de um projeto parental, os efeitos sucessórios que a utilização da técnica acarretaria e a revogação do consentimento ocasionada pela morte de uma das partes. Essas questões parecem não ter sido elucidadas pela lei civil. Evidente que não se afirma que após a morte do cônjuge ou companheiro uma mulher fique impossibilitada de constituir filiação. O que se discute é a possibilidade jurídica de que a filiação assim gerada também seja presumida como do cônjuge ou do companheiro morto. Um dos primeiros entendimentos que devem ser firmados é que não existe uma reprodução assistida heteróloga após a morte do cônjuge. O que pode ocorrer é a utilização do 157 MOREIRA FILHO, José Roberto. O direito civil em face das novas técnicas de reprodução assistida. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 55, mar. 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2747>. Acesso em: 12 out. 2007. 158 “Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: (...) III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido.” 159 NICOLAU JÚNIOR, 2005, passim. 160 GIORGIS, José Carlos Teixeira. A inseminação póstuma. IBDFAM. 13 de out. de 2005. Disponível em <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=209>. Acesso 10 de jun. 2007. 161 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões. IBDFAM. 23 de abr. de 2007. Disponível em <http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=310>. Acesso 10 de jun. 2007. 162 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 05. 45 material genético que originariamente pertencia a um doador. Esse material, após a sua doação, passa a pertencer ao casal interessado na técnica, por isso não há mais que se falar em uma reprodução heteróloga. 163 Ainda, não se poderia vislumbrar a possibilidade de uma reprodução heteróloga após a morte do cônjuge/companheiro e considerar que é seu o filho gerado. Isto porque seria impossível colher a anuência do de cujus para que a esposa/companheira participasse do procedimento e este requisito é essencial para o emprego de uma técnica de reprodução assistida heteróloga. A essencialidade deste requisito se encontra justamente nos efeitos que decorrem da aceitação da filiação biomedicamente concebida, quais sejam aqueles decorrentes do reconhecimento irretratável da filiação concebida.164 Não se quer dizer com isso que a reprodução heteróloga estaria inviabilizada para a parte sobrevivente, pelo contrário. A mulher pode se submeter a uma técnica de reprodução biomédica, mas a criança gerada não guardará vínculos de qualquer natureza com o seu parceiro morto. Dessa forma, para ser realizada após a morte, formando vínculos filiais entre o de cujus e a criança a nascer, a reprodução assistida deveria ser obrigatoriamente autorizada pela outra parte, cônjuge ou companheiro, da mesma forma que ocorre a sua autorização na vigência do casamento ou da união estável. Cabe, entretanto, saber se a morte teria ou não o condão de revogar esse consentimento previamente outorgado, uma questão a ser debatida mais adiante. Outro ponto a entender diz respeito ao melhor interesse da criança. Nas palavras de Paulo Lôbo, esse princípio significa que os interesses da criança devem ser colocados em primeiro plano sempre na elaboração e aplicação de seus direitos.165 Segundo este princípio, o que deve ser levado em conta no direito não é o desejo dos pais, mas o que de fato corresponderia ao melhor interesse dos filhos, ao seu bem estar. Isto porque, apesar de ser responsabilidade de todos zelarem pela dignidade da criança, cabe à família em primeiro lugar ser a guardiã dos seus direitos fundamentais.166 Para José Carlos Teixeira Giorgis, a realização de uma concepção após a morte de do pai submete a criança assim gerada a uma estrutura familiar monoparental inadequada, “ou seja, o filho já nasce órfão de pai, o que afetará seu pleno desenvolvimento, pois paternidade e maternidade constituem valores sociais eminentes.” 167 Em contrário senso, Demian Diniz da Costa afirma que “a família monoparental não é um desrespeito a esse direito fundamental da criança, basta que o genitor forneça afeto e condições 163 Ibidem, p. 05-07. HIRONAKA, 2007, passim. 165 LÔBO, 2008, 53. 166 MENDES, 2006, passim. 167 GIORGIS, 2005, p. 02. 164 46 para que a criança se desenvolva em um ambiente digno.” 168 Assim, não haveria porque acreditar-se que uma criança que nascesse sem o pai tem seu desenvolvimento prejudicado. Apesar de a técnica não se ater ao melhor interesse da criança, já que esta é reduzida “ao papel subalterno de continuador simbólico de uma vida conjugal prematuramente desfeita” 169, José Carlos Teixeira Giorgis acredita ser possível a sua aplicação, já que o Código Civil previu a possibilidade de a mulher conceber mesmo após a morte de seu marido/cônjuge utilizando seu material genético crioconservado. ALDROVANDI e FRANÇA. Também entendem haver no Novo Código Civil proteção à realização da técnica de reprodução assistida post mortem. Entretanto, acreditam que seria de melhor alvitre proibir a sua realização visto que “a reprodução assistida deve ser utilizada com o objetivo de realização de um projeto parental, e, principalmente, deve resguardar os interesses da criança, o que não ocorre quando da utilização da inseminação post mortem, onde o interesse que prepondera é o da viúva e de seus familiares, que movidos pelo sofrimento da perda, procuram em tal técnica um meio de "ressuscitar" o de cujus”.170 A doutrina de Eduardo de Oliveira Leite também não é favorável à aplicação da técnica biomédica após a morte da outra parte interessada, e afirma ser ela injustificável, justamente porque o casal não mais existe e o plano parental foi desfeito. Uma reprodução ocorrida de tal forma acarretaria, ao ver do doutrinador, perturbações psicológicas graves, tanto para a mãe quanto para a criança.171 3.2.1. A revogação do consentimento prestado Tanto após a morte como na reprodução na vigência do casamento ou de uma união estável, o consentimento mútuo das partes para a realização dos procedimentos biomédicos é necessário. Esse consentimento consiste em um requisito fundamental para a aplicação das técnicas biomédicas porque a partir de sua anuência é que decorre o reconhecimento irrevogável da filiação concebida por essas técnicas. Ainda assim, a anuência para a realização dos procedimentos biomédicos não tem caráter irrevogável. No caso da realização de um procedimento biomédico na constância do casamento ou da união estável, o consentimento já prestado pode ser revogado por qualquer das partes no casal, mas evidente é que esta revogação não pode ser feita após a efetiva aplicação dos procedimentos. Apesar de ser necessário para o emprego de todas as técnicas de reprodução assistida, é na técnica post-mortem que o consentimento gera maior polêmica. Isso porque, para alguns doutrinadores, o consentimento anteriormente manifestado pelo varão ficaria definitivamente revogado com sua morte. Mas nem toda a doutrina sustenta esse argumento. 168 COSTA, 2002, p. 49 GIORGIS, 2005, p. 02. 170 ALDROVANDI; FRANÇA, 2002, p. 05. 171 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 05. 169 47 A respeito do consentimento para a realização da reprodução assistida post mortem duas correntes doutrinárias são observadas: uma restritiva e outra protetiva.172 Para a corrente restritiva, “mesmo que haja o consentimento prévio à criopreservação do sêmen e óvulo, na inseminação artificial post mortem, a morte funciona como causa revogadora da permissão ao emprego da técnica médica”.173 Esse entendimento é compartilhado por Mônica Aguiar. Para a doutrinadora, “a morte funciona como causa revogadora da permissão ao emprego da técnica médica” 174. Ainda que houvesse um projeto parental comum entre o de cujus e a parte sobrevivente, a morte inviabiliza esse projeto. Assim, caso a mulher utilizasse o material genético criopreservado, seria “possível reconhecer apenas a filiação a matre, afastada, de plano, a presunção prevista no inciso referido, por se tratar de norma inconstitucional, uma vez que violadora do comando expresso do art. 5º, I da Constituição Federal”.175 A corrente protetiva, por sua vez, entende que o consentimento prestado em vida deve ser protegido para além da morte, de forma a viabilizar o direito da criança à existência e o direito à reprodução da parte que depositou o material genético, já que “ao depositar seu liquido seminal em um Banco de Sêmen o indivíduo tinha a intenção de utilizá-lo para reproduzir” 176. O vínculo de filiação entre a criança gerada e o pai falecido formar-se-ia automaticamente se a esposa/companheira desse continuidade aos procedimentos de inseminação. Necessário fazer uma última observação acerca da viabilidade da revogação do consentimento pela morte. Conforme dispõe o artigo 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina177, na intervenção médica, deve-se respeitar a vontade previamente manifestada quando a parte interessada não tem condições de manifestar sua vontade novamente. Levando-se em conta tal dispositivo, não pareceria tão absurdo entender que a morte do depositário do material genético não revogaria a sua intenção de dar continuidade a um projeto parental previamente estabelecido com o seu cônjuge ou companheiro, ainda que após a sua morte. 3.2.2. A possibilidade da constituição do vínculo da filiação A constituição do vinculo da filiação pode ser observado seja na utilização das técnicas homólogas seja na utilização das técnicas heterólogas de reprodução humana. Em relação à mulher que se submeta a essas técnicas de fertilização, sempre haverá a formação do 172 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 08-10. Ibidem, p. 12. 174 AGUIAR, 2005, p. 118. 175 Ibidem, p. 119. 176 PALUDO, 2001, p. 10. 177 “Artigo 9.º A vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta.” 173 48 vínculo da filiação no nascimento da criança gerada, desde que seja a mãe geradora a real interessada na filiação.178 Conforme já foi previamente estudado, havendo a utilização de uma técnica homóloga, o material genético utilizado é oriundo de ambos os membros do casal. Assim, a determinação do vínculo da filiação ocorre levando-se em conta o critério biológico, tanto em relação ao pai quanto à mãe. Contudo, quando é empregada uma técnica heteróloga, o material genético pode pertencer a apenas um dos membros do casal ou a nenhum deles. Ainda assim, em relação à mulher, a verdade biológica da filiação fala mais alto, já que o parto será novamente o critério determinante da formação do vínculo materno-filial.179 Já em relação ao homem, se não for seu o material genético utilizado, deverá haver um prévio consentimento para que sua parceira se submeta a esse tipo de técnica, sendo que somente assim é que o vínculo da paternidade-filiação será formado. A paternidade não será baseada em um vínculo biológico, mas sim socioafetivo.180 Necessário observar que a constituição do vínculo da filiação ocorre com a presença de um requisito formal necessário: a anuência marital. Como já foi dito anteriormente, se o homem retira seu próprio material genético e o deposita numa clínica de inseminação juntamente com sua esposa, fica evidente seu interesse em procriar e é tácita a autorização para que aquele material depositado seja utilizado com esta finalidade. Porém, em se tratando da modalidade heteróloga de fertilização, a anuência marital deve ser expressa. Uma vez tendo ocorrido essa manifestação volitiva, não cabe mais ao marido/companheiro contestar a paternidade do filho gerado. Entretanto, quando a fertilização ocorre após a morte do cônjuge ou companheiro, a formação do vínculo da filiação é controversa. Para uma parte da doutrina, o filho gerado após a morte do cônjuge não será filho deste, mas tão somente da esposa ou companheira que se submeteu à técnica biomédica.181 Por outro lado, uma outra parte da doutrina acredita na formação do vínculo paterno-filial, justamente porque ao depositar o material genético o marido/companheiro autorizou a utilização do material depositado.182 A Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina prevê que os casais devem determinar, no ato do depósito do material, o que deverá ser feito com ele em casos de morte, divórcio ou arrependimento. Uma terceira via doutrinária acredita ser essa determinação que irá possibilitar ou não a utilização do material genético após a morte da outra parte.183 Levando-se em conta tão somente a verdade biológica, se fosse submetida a um teste de DNA evidente que a criança teria a paternidade reconhecida, mesmo após a morte do pai, 178 AGUIAR, 2005, p. 114. AGUIAR, 2005, passim. 180 VENOSA, 2006, p. 242. 181 AGUIAR, op. cit., p. 119. 182 PALUDO, 2001, 12-15. 183 HIRONAKA, 2007, passim. 179 49 se uma técnica homóloga fosse aplicada, ao passo que a paternidade seria afastada se o material depositado pelo casal não fosse originariamente seu, mas o material excedente de uma técnica heteróloga aplicada. Resta saber se seria esta a melhor decisão, tendo em vista o melhor interesse da criança e a legislação vigente. Fato é que a legislação pátria reconheceu a possibilidade de a mulher utilizar o material embrionário existente para fertilização mesmo após a morte do cônjuge/companheiro, denotando daí uma presunção da paternidade. Conforme observa Paulo Lôbo, essa presunção, apesar de expressamente na lei civil se referir ao casamento, pode ser aplicável a qualquer entidade familiar.184 184 LÔBO, 2008, p. 202. 50 4. OS EFEITOS PESSOAIS E PATRIMONIAIS DA FILIAÇÃO CONCEBIDA POR REPRODUÇÃO ASSISTIDA HETERÓLOGA NA VIGÊNCIA DO CASAMENTO OU DA UNIÃO ESTÁVEL E APÓS A MORTE DO CÔNJUGE OU DO COMPANHEIRO 4.1. Os efeitos em relação ao casal Desde que as técnicas de reprodução assistida in vitro começaram a ser aplicadas, foram constituídas inúmeras situações jurídicas entre pais, filhos e doadores, apresentando efeitos tanto de caráter pessoal quanto patrimonial. Quando se fala em efeitos da reprodução assistida, não se pode esquecer que a falta de uma legislação mais específica sobre o tema acaba permitindo que pessoas casadas, unidas sob a égide da união estável ou ainda solteiras se submetam ao emprego dessas técnicas. Ainda, com a nova edição do Código Civil em 2002, foi permitido que, até mesmo após a morte do varão do casal, a esposa ou companheira se submeta a essas técnicas para poder gerar um filho utilizando material genético que fora previamente depositado. Não há como negar que dessas situações surgem efeitos variados, ainda que as técnicas empregadas sejam as mesmas. O que, de fato, importa para o presente estudo não é a análise de todos os efeitos da reprodução assistida em todas as suas modalidades, mas seus efeitos em situações mais específicas, quais sejam na vigência do casamento e da união estável e após a morte do cônjuge ou do companheiro varão. Conforme fora dito anteriormente, quando uma técnica reprodutiva homóloga é utilizada, o que se tem é a combinação do material genético dos próprios interessados. Nesse caso, não há debate profundo, já que a filiação assim gerada, levando em conta o próprio critério biológico, pertence a ambos integrantes do casal. No caso de uma técnica reprodutiva heteróloga ser utilizada, o que se terá é a combinação do material genético de apenas um ou, às vezes, nenhum dos membros do casal. Esta técnica não permite que somente o critério biológico seja utilizado para determinar a verdade acerca da filiação gerada. O binômio paternidade-filiação daí proveniente depende de outras verdades além da verdade biológica. Por isso mesmo é que, para ser aplicada, esta técnica depende dos requisitos objetivos, subjetivos e formais exigidos. O atendimento aos requisitos é útil para que se possa compreender a extensão dos efeitos da técnica empregada, lembrando-se que cada técnica possibilita uma situação jurídica peculiar. Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho185 verifica que, quanto aos efeitos decorrentes da reprodução post mortem, três correntes dividem a opinião doutrinária. A primeira, denominada excludente, entende que os filhos gerados após a morte do genitor não têm qualquer direito, seja de natureza pessoal ou patrimonial. Até mesmo porque a “procriação resultante de um desejo 185 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, passim. 51 unilateral foge à bilateralidade que caracteriza o autêntico projeto parental e, pois, não pode provocar efeitos em relação a quem não se manifestou.” 186 A segunda corrente, denominada relativamente excludente, tende a reconhecer direitos mitigados à criança gerada, inclusive efeitos de caráter patrimonial. Nesse caso, pelo critério biológico, a filiação é atribuída ao de cujus, decorrendo daí um reconhecimento legal. Entretanto, os filhos assim gerados não são herdeiros legítimos do “pai”.187 A terceira via, a inclusiva, reconhece plenos direitos à filiação gerada por inseminação artificial post mortem, sem possibilidade alguma de que qualquer diferenciação seja feita por conta da origem da filiação, até mesmo porque o parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição Federal Brasileira veda não só que denominações discriminatórias sejam usadas mas também que tratamentos discriminatórios sejam dispensados aos filhos tendo como fundamento a sua origem.188 4.1.1. A constituição dos vínculos paterno-materno-filiais É necessário sempre se ter em mente que a reprodução assistida traz como um de seus principais efeitos pessoais a constituição da filiação e da parentalidade, seja qual for a modalidade empregada. A constituição desses vínculos paterno-materno-filiais faz com que nasçam direitos e deveres entre os pais e o filho gerado. Não é difícil observar a constituição desses vínculos em se tratando de uma técnica de reprodução heteróloga aplicada na vigência do casamento ou da união estável, desde que tenham sido atendidos todos os requisitos necessários à sua validação. Isso porque “a procriação assistida heteróloga atribui a condição de filho (jurídico) à pessoa concebida com material fecundante de outra pessoa que não de seu pai (e/ou sua mãe), com iguais direitos e deveres comparativamente aos outros filhos.” 189 Contudo, na modalidade post-mortem, há divisão de entendimentos. Segundo Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka190, para observar a formação dos vínculos materno-paterno-filiais advindos da reprodução assistida post-mortem, é necessário observar a existência dos requisitos pessoais, materiais e formais comuns ao ato. Assim, uma vez atendidos os requisitos necessários ao emprego da técnica, estaria constituído o vínculo da filiação. Nicolau Júnior observa que em relação a este tipo de técnica, empregada após a morte do cônjuge ou companheiro, apesar da controvérsia doutrinária que é observada, uma vez tendo sido elencada a possibilidade da sua realização na lei civil, não restam dúvidas de que “o legislador quis garantir a possibilidade da mulher usar o material crio-conservado após a morte do marido, devendo a paternidade ser atribuída ao finado esposo.” 191 Uma vez realizada a técnica, ainda que após a morte do outro interessado, a filiação constituída será atribuída tanto ao de cujus quanto á 186 AGUIAR, 2005, p. 119. ALBUQUERQUE FILHO, op. cit, p. 21-25 188 Ibidem, loc. cit. 189 GAMA, 2003, p. 919 190 HIRONAKA, 2007, p. 07. 191 GIORGIS, 2005, p. 02. 187 52 parte sobrevivente. Assim sendo, pouco importaria se a filiação já estaria concebida antes da morte ou se fora concebida após a morte de um dos membros do casal. Os filhos gerados, em respeito ao artigo 226, §6º da Constituição Federal brasileira, não podem sofrer quaisquer discriminações. Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho bem argumenta que não é o fato de ter ocorrido a morte de um dos genitores que vai “afastar aprioristicamente o direito do nascido, mediante inseminação artificial póstuma, de ter consignado em sua certidão originária o nome dos pais, embora eventualmente um já esteja falecido” 192. Para o doutrinador, apoiar o posicionamento do não reconhecimento seria o mesmo que dizer que, mesmo sem o emprego de uma técnica biomédica, tendo ocorrido a morte do pai antes da notícia da gravidez da esposa ou companheira, ficaria afastado o plano parental e a criança nascida não poderia ser reconhecida após a sua morte. Entretanto, uma outra parte da doutrina argumenta que tendo a concepção ocorrido após a morte do cônjuge ou do companheiro, não poderia ser observada a formação desses vínculos. Deste posicionamento compartilha Mônica Aguiar. A doutrinadora afirma que “a morte opera como revogação do consentimento prestado e, portanto, o concebido será filho apenas do cônjuge sobrevivente.” 193 Assim, conclui que o reconhecimento da filiação será feito apenas a matre. A doutrinadora posiciona-se pelo afastamento da presunção de paternidade elencada no inciso III do artigo 1.597 do Código Civil por ser norma que afronta a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres e, assim, é dispositivo inconstitucional. Levando-se em conta o princípio do melhor interesse da criança, esta não parece ser uma solução razoável. Quanto à inconstitucionalidade do inciso III do artigo 1.597 do Código Civil, esta não parece existir, posto que não traz diferenças de direitos entre homens e mulheres mas sim potencializa o direito de reconhecimento do filho gerado a partir da reprodução assistida post mortem. Os direitos do filho gerado se amparam no que Ingo Sarlet chama de “qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”. Para o autor essa ‘qualidade’ implica um complexo de direitos e deveres fundamentais “que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante de desumano, como venham a lhe garantir as condições mínimas para uma vida saudável” 194. Esta qualidade é o princípio da dignidade humana. Fato é que não se pode entender inexistir interesse em ser pai pelo simples advento da morte. Muitas vezes, sabendo da morte que se aproxima, as pessoas desejam ter filhos para completar suas famílias, para realizar o sonho de terem filhos ou para deixar àqueles que sobreviverão uma lembrança sua. Esses desejos não são objeto de estudo do Direito e talvez seja esta a razão pela qual seja tão difícil para alguns entender que um filho havido após a morte pode ser o fruto de um projeto parental interrompido, mas não abandonado. 192 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 08. AGUIAR, 2005, p. 118 et seq. 194 2001 apud GAMA, 2003, p. 135. 193 53 4.2. Os efeitos em relação aos filhos gerados Sem sombra de dúvidas, na realização das técnicas de reprodução assistida heterólogas em vida ou post-mortem do cônjuge ou do companheiro varão, os filhos gerados são a parte mais afetada. Isto porque os efeitos dessas técnicas se colocarão de forma mais firme sempre em relação aos direitos dos filhos, sejam direitos pessoais ou patrimoniais. Necessário se ter em mente que a Constituição Federal de 1988 preconiza a proteção aos filhos a despeito das ações de seus pais. Assim, não é possível penalizar os filhos pelas decisões infortunas de seus genitores, ainda mesmo quando as técnicas de reprodução assistida são empregadas. 4.2.1. O direito ao reconhecimento paterno Quando os gens do pai e da mãe, partes do casal, são herdados pelo filho, decorrente da fertilização natural ou medicamente conduzida, não há possibilidade, num primeiro plano, de ser afastada uma ligação biológica e jurídica existente entre eles. Os vínculos paterno-materno-filiais geram para os pais deveres e direitos em relação ao filho e para este, direitos e obrigações em relação aos pais, decorrentes do parentesco existente entre eles. Quando há aplicação da técnica heteróloga, na constância do casamento ou da união estável, o casal pode até não estar ligado ao filho gerado por vínculos biológicos, mas é certa a ligação por vínculos jurídicos. Importa relembrar que a aplicação de uma técnica heteróloga na vigência do casamento depende da prévia anuência de ambos os cônjuges. Essa anuência é fundamental para que seja a filiação, a partir dessa manifestação, resultado de um projeto parental existente entre as duas partes e, assim, responsabilidade também de ambas. Isso porque, uma vez empregada uma técnica de reprodução com o resultado almejado, a criança gerada, após o nascimento, será beneficiária de um conjunto de direitos decorrentes do seu estado de filho. Um deles, o reconhecimento, que gera para o filho o direito de utilizar o nome dos pais.195 Em relação à maternidade, geralmente o reconhecimento é de imediato determinado, justamente pelo vínculo biológico da gestação e do parto. É em relação à paternidade que a maior dificuldade pode ser observada, principalmente se o filho é resultado da aplicação de uma técnica reprodutiva heteróloga. Fato é que, nessa modalidade, o vínculo biológico entre pai e filho pode não existir, sendo a criança concebida a partir do material genético de um doador. Mas resta entre os dois o vínculo jurídico formado pelo consentimento que o pai manifestou para a aplicação da técnica. Guilherme Calmon Nogueira da Gama chama atenção para o fato de não ser o consentimento, por si só, o reconhecimento da filiação. A vontade prévia à concepção é 195 OLIVEIRA, 1999 apud VENOSA, 2006, p. 277. 54 fundamental para que a paternidade seja estabelecida, mas é a vontade posterior que comprova a paternidade.196 De qualquer sorte, se o reconhecimento não for feito voluntariamente pelo pai, mediante o registro de nascimento, ele pode ser pleiteado em procedimento judicial de investigação de paternidade.197 Nesse caso, não será observado necessariamente o vínculo biológico para a determinação da paternidade.198 Evidente que, existindo o vínculo biológico, mais fácil é a comprovação da paternidade utilizando exames de DNA. Contudo, se o vínculo biológico não existir, a paternidade pode ser determinada a partir da comprovação da existência de um plano parental à época do emprego da técnica reprodutiva e da própria autorização do marido ou do companheiro para a utilização da técnica de reprodução. Quando a técnica reprodutiva é aplicada após a morte do cônjuge ou companheiro, conforme se observou no capítulo III, parte da doutrina acredita não ser possível o reconhecimento, já que não se pode dizer que o consentimento foi mantido para além morte.199 Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, de fato, não se pode concluir pela presunção da paternidade tão somente porque houve o depósito do material em clínica para conservação. É necessário que se observe que havia a intenção de que o material fosse utilizado mesmo após a sua morte.200 Está nesse mesmo sentido o Enunciado número 106, elaborado durante a I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários, que sugere que seja presumida a paternidade do marido falecido quando houver autorização escrita para que a mulher utilize seu material genético após a sua morte. Se houver essa autorização, verifica-se a constituição dos vínculos paterno-filiais e consequentemente forma-se o direito do filho a ser reconhecido mesmo após a morte de seu pai. 4.2.2. O direito ao conhecimento da identidade genética e a proteção ao sigilo A Resolução nº. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina preza pela proteção da identidade daquele que doa o material genético a ser utilizado nas fertilizações heterólogas e pela proteção ao sigilo a respeito do próprio procedimento. Contudo, essas duas disposições esbarram em um direito fundamental personalíssimo que qualquer pessoa possui, o de saber sua identidade pessoal de forma a ser conhecida por quem realmente é, direito que guarda estreita relação com o princípio da dignidade humana. Assim, a criança gerada pelas técnicas de reprodução assistida tem o direito de saber a verdade material acerca de sua origem.201 Assim, se de um lado existe o direito do doador não ser identificado, de outro há o direito da criança conhecer sua origem genética. 196 GAMA, 2003, p. 847. MAGALHÃES, 2003, p. 172-181. 198 VENOSA, 2006, p. 275. 199 AGUIAR, 2005, passim. 200 HIRONAKA, 2007, p. 06-07 201 AGUIAR, 2005, p. 72. 197 55 Guilherme Calmon Nogueira da Gama202 lembra que o sigilo e o anonimato foram criados com o principal objetivo de proteger a criança. Nesse ínterim, os demais envolvidos ocupam posição inferior. Daí a impossibilidade da relativizar do direito à identidade genética que possui a criança. O embate jurídico entre esses dois direitos tem espaço reservado mais adiante. Ainda assim, prudente observar de pronto que o direito à identidade genética é exercido não por simples curiosidade, mas de forma a garantir à pessoa sua sobrevivência. Para Mônica Aguiar203, nem o sigilo do emprego da técnica nem a proteção oferecida ao doador podem ser obstáculos ao pleno exercício dessa faculdade que possui um indivíduo, já que é seu direito inegável indagar a respeito de sua origem genética. O mesmo entendimento é sustentado por Paulo Lôbo, in verbis: Toda pessoa tem direito fundamental, na espécie direito da personalidade, de vindicar sua origem biológica para que, identificando seus ascendentes genéticos, possa adotar medidas preventivas para preservação da saúde e, a fortiori, da vida. Esse direito é individual, personalíssimo, não dependendo de ser inserido em relação de família para ser tutelado ou protegido. Uma coisa é vindicar a origem genética, outra a investigação da paternidade. 204 Fernanda Balan esclarece que o conhecimento da origem genética não implica no estabelecimento de vínculos entre o doador e o filho gerado, sendo os principais efeitos desse conhecimento o “psicológico do conhecimento da origem genética, a preservação da saúde das pessoas geradas pela técnica de reprodução assistida frente doenças genéticas e, os impedimentos matrimoniais.” 205 Bruno Lewicki acredita que o anonimato do doador, hoje, representa um dos maiores problemas na reprodução assistida da modalidade heteróloga.206 A resolução do Conselho de Medicina protege a identidade do doador e das partes participantes dos procedimentos de fertilização, mas ouvida o direito dos filhos gerados terem ciência da realização desses procedimentos, submetendo-os à inverdade da filiação. A inverdade a respeito de sua origem acaba possibilitando que impedimentos matrimoniais possam ser gerados. Uma vez desconhecidos os doadores e as pessoas geradas, nada impediria que futuras relações incestuosas viessem a ocorrer, juntando os “pais” biológicos, doadores do material genético, a seus “filhos” ou estes a seus irmãos biológicos.207 202 GAMA, 2003, p. 803. Ibidem, p. 69. 204 LÔBO, 2004, p. 14. 205 BALAN, Fernanda. A reprodução assistida heteróloga e o direito da pessoa gerada ao conhecimento de sua origem genética. 30 mar. 2006. Disponível em <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/25/44/2544/> Acesso em 01 out. 2007, p. 08. 206 LEWICKI, 2001, p. 121. 207 CUNHA NETO, Marcílio José da. Considerações Legais Sobre Biodireito: A Reprodução Assistida à Luz do Novo Código Civil. Disponível em: <http://www.estacio.br/graduaçao/direito/publicaçoes/rev_novamer/art_res/cons_codciv.doc> Acesso em: 08 out. 2007. 203 56 Nesse sentido Maria Helena Diniz também oferta seu posicionamento segundo o qual “[...] no porvir, poder-se-á ter uma legião de seres humanos feridos na sua constituição psíquica e orgânica, e, além disso, o anonimato do doador traz em seu bojo a possibilidade de incesto e de degeneração da espécie humana.”208 A única forma de evitar essas situações é o conhecimento da verdade acerca da origem genética de cada pessoa. Fernanda de Fraga Balan defende que o anonimato seja respeitado, mas não de forma absoluta, posto que “não poderá sobrepor-se aos riscos concretos de doenças hereditárias, que poderiam ser prevenidas ou até mesmo tratadas com a quebra do anonimato.” 209 Nesse sentido, o direito à vida deve prevalecer sobre os direitos à intimidade e à privacidade que amparam o doador. Uma forma de viabilizar os direitos do doador e da criança seria a intervenção estatal para o controle dos procedimentos procriacionais. Esse controle não ocorreria no sentido de proibir a aplicação da reprodução assistida heteróloga, mas sim de manter uma base de dados a respeito dos doadores e das crianças geradas a partir de seu material genético, de forma a alertá-los previamente, no caso de um relacionamento interpessoal, a respeito do patrimônio genético compartilhado. Evidentemente estaria-se diante de uma mini-estrutura do que Eric Arthur Blair210 chamou Big Brother. Resta saber se os envolvidos estariam dispostos a submeterem-se a ela. De qualquer forma, algumas medidas visando esse fim foram previstas na Resolução 1.358 do Conselho Federal de Medicina, mas cabe ao ordenamento jurídico concretizar outras no mesmo sentido. 4.2.3. O direito aos alimentos e à sucessão hereditária Não há como se negar que uma vez constituída a filiação, os pais estão vinculados ao filho pelo poder familiar que passam a exercer. Constituído por um grupo de direitos e um outro grupo de obrigações, os pais passam a ser responsáveis pelos filhos gerados enquanto estes forem menores. No rol de responsabilidades parentais de “assistir, criar e educar os filhos menores”211 está inserida a obrigação alimentar. Em se tratando da filiação constituída na vigência da entidade familiar, não há debate quanto à geração de direitos alimentares. Entretanto, quando as técnicas de reprodução são aplicadas após a morte do cônjuge, há que se observar a formação do vínculo parental para que esses direitos sejam exigíveis. Mas não há como se negar que uma vez implementado o plano parental pelo casal, “as relações pessoais e patrimoniais que se estabelecem entre pais e filhos, independentemente da origem e do tipo de vínculo (ou sua ausência), são absolutamente iguais.”212 É nesse sentido a afirmação de José Roberto Moreira Filho de que “não há dúvidas de que o filho de uma pessoa, nascido por meio de qualquer das técnicas de reprodução assistida, terá os 208 DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos. Consulex, Brasília, n. 30, p. 24-29, set. 2004. BALAN, 2006, p. 08. 210 Sob o pseudônimo de George Orwell o autor escreveu a obra “1984”, na qual está inserida a idéia de uma estrutura estatal dominante e onipresente – o Big Brother. 211 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 229. 212 GAMA, 2003, p. 930. 209 57 mesmos direitos e deveres dos demais filhos de tal pessoa.”213 Como os alimentos constituem direito reclamado pelos filhos naturais, também o é aos filhos biogeneticamente concebidos. Em relação aos efeitos hereditários na sucessão, o posicionamento doutrinário comunica-se justamente com os entendimentos a respeito da constituição dos vínculos paterno-filiais em decorrência de uma reprodução assistida na vigência do casamento ou da união estável e postmortem do cônjuge ou do companheiro. No primeiro caso, em sendo a técnica de reprodução assistida heteróloga empregada na vigência da união estável ou do casamento, pela presunção da filiação ou por sua aceitação via consentimento para a aplicação das técnicas, os filhos concorrem à herança deixada pelo de cujus nos mesmos moldes dos filhos naturalmente concebidos, vez que inexiste discriminação dos filhos quanto a seus direitos tendo como fundamento a origem da filiação.214 No caso da técnica reprodutiva ser empregada após a morte do cônjuge ou companheiro, Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho elenca três entendimentos doutrinários acerca da possibilidade de direito à sucessão: 1) a inexistência de qualquer direito, 2) a existência de direito parcial por disposição testamentária; 3) a existência de direito à participação na herança nos moldes dos demais filhos.215 No primeiro grupo estão inclusos justamente os que não entendem haver a constituição dos vínculos paterno-filiais quando a filiação é gerada após a morte do cônjuge ou do companheiro e os que entendem ocorrer a formação do vínculo, mas tão somente ele. Guilherme Calmon Nogueira da Gama levanta que o vínculo somente é formado se o pai deixou permissão para que a mãe realizasse a inseminação após a sua morte, mas “sem qualquer efeito patrimonial relativamente ao espólio ou aos herdeiros do de cujus”.216 Silmara Juny de Abreu Chinelato217 está inserida no posicionamento defendido por aqueles que entendem haver somente a possibilidade da sucessão testamentária para as pessoas geradas a partir do material genético de pessoa morta quando a técnica aplicada é heteróloga. Assim, para parte da doutrina fica evidente que para a filiação concebida biomedicamente post-mortem, ainda que seja atribuída ao marido, os direitos sucessórios não vingarão. Em defesa do último grupo, Anison Carolina Paludo sustenta que uma vez estabelecido vínculo de filiação, o direito à herança não pode ser negado. A autora defende que os casos de inseminação artificial post-mortem devem receber o mesmo tratamento dispensado à prole eventual descoberta após a partilha, devendo o pleito de seus direitos ser feito via ação de petição de herança.218 Os que se opõem a esse grupo defendem que somente o nascituro tem seus interesses resguardados pela lei civil, pois já está concebido. O embrião ainda não implantado não dispõe de capacidade para tanto pois não é ‘nascituro’ e, assim, não pode suceder . 213 MOREIRA FILHO, José Roberto, 2002, p. 13. VENOSA, 2005, p. 112. 215 ALBUQUERQUE FILHO, 2002, passim. 216 GAMA, 2003, p. 937-938. 217 2001 apud HIRONAKA, 2007. 218 PALUDO, 2001, passim. 214 58 Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka chama a atenção para a nova abordagem que a doutrina tem concedido ao conceito de ‘nascituro’, ampliando-o “para além dos limites da concepção in vivo (no ventre feminino), compreendendo também a concepção in vitro (ou crioconservação).” 219 Destarte, o conceito de ‘nascituro’ compreende o ser concebido embora ainda não nascido, mas sem que faça qualquer diferença o locus da concepção. Assim, o embrião, mesmo que ainda não implantado no útero materno, já está concebido, sendo, de acordo com os dispositivos do artigo 1.798 do Código Civil, igualmente herdeiro do cônjuge falecido. Também Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho pugna pela participação irrestrita dos filhos concebidos após a morte do pai na herança. Para o autor, esse procedimento não oferece qualquer prejuízo ao direito sucessório, posto que a sua segurança é sempre relativa.220 Fato é que a partilha pode ser revista a qualquer tempo quando surja herdeiro desconhecido, vez que a ação de petição de herança é dotada de caráter imprescritível. Assim, não é bastante a alegação do fim da partilha para obstar o direito sucessório de filho concebido post mortem do de cujus. Claro é que a inexistência de prazo para a utilização do material crioconservado gera desconforto à ordem jurídica. Cabe ao legislador determinar um prazo para a utilização desse material. Também, pelo princípio da igualdade entre os filhos, não seria possível aplicar disposições diversas aos filhos gerados por reprodução assistida post mortem, o que seria uma afronta ao disposto na Constituição Federal em vigor. 4.3. Os efeitos em relação ao doador O doador aqui considerado é a pessoa que fornece gametas (sêmen ou óvulos) para a reprodução assistida heteróloga. A aplicação desse material em uma técnica reprodutiva, contudo, depende da ciência e da autorização do doador. Entretanto, de acordo com Mônica Aguiar, não se pode dizer que, pelo fato de estar ciente da utilização do seu material genético em uma técnica reprodutiva, está o doador ligado a esse ato de forma a constituir vínculos paternos ou maternos com a filiação gerada.221 Fato é que, apesar de ceder seu material genético, o doador não tem qualquer interesse em ser pai ou mãe, sendo inexigível qualquer responsabilidade decorrente da simples doação de material genético. Para José Roberto Moreira Filho não pode ser atribuído ao doador qualquer vínculo de filiação, não lhe sendo acarretadas “quaisquer obrigações ou direitos relativos à criança, uma vez que, ao doar seu sêmen ele abdica voluntariamente de sua paternidade, da mesma forma que o faz quem entrega uma criança para adoção ou quem perde o poder - familiar.” 222 Ocorre que a vontade que o doador expressa está totalmente dissociada de um projeto parental. Ao ceder seu material ele se torna meio para o projeto parental do casal interessado, mas 219 HIRONAKA, 2007, p. 06. ALBUQUERQUE FILHO, 2002, p. 05-07. 221 AGUIAR, 2005, p. 31. 222 MOREIRA FILHO, 2002 apud ALDROVANDI; FRANÇA, 2002. 220 59 não pode ser, em hipótese alguma, considerado parte desse projeto, justamente por faltar-lhe interesse nesse sentido. É dessa forma que o requisito do anonimato, exigível tanto para os doadores quanto para o casal interessado, se coloca de forma essencial para ilidir qualquer reivindicação de direito pessoal ou patrimonial, seja da criança gerada, de seus pais ou do próprio doador.223 Assim também é colocada a doutrina de Guilherme Calmon Nogueira da Gama.224 Nesse sentido, Mônica Aguiar afirma: A manutenção do anonimato tem sua importância elevada quando se trata da inseminação artificial realizada com gametas de pessoa estranha ao casal. Especialmente, no que se refere aos efeitos decorrentes da possibilidade de que o genitor civil, marido ou companheiro, arrependa-se, após o nascimento da criança, do consentimento emitido quando da realização da técnica destinada a inseminar sua esposa ou companheira com sêmen de terceiro. 225 Segundo Fernanda de Fraga Balan, tanto o sigilo a respeito do procedimento quanto o anonimato das partes são justificáveis inclusive observando-se o melhor interesse da criança gerada, de forma a facilitar a sua integração na família e evitar que tratamento discriminatório seja a ela dispensado.226 Porém, a autora chama atenção ao fato de que o anonimato não pode ser absoluto. Isso porque há riscos que decorrem do recebimento do material genético de pessoas estranhas, principalmente no que diz respeito às doenças hereditárias. Assim, essa hipótese relativisaria o anonimato e o sigilo, sendo concedida à pessoa nascida informações necessárias à manutenção de sua saúde. Conforme dito em tópico anterior, não se pode conceber que o direito ao sigilo e ao anonimato se coloque acima de direitos mais importantes, como o princípio da dignidade humana e o direito à vida. Para a autora, é “inconcebível que o anonimato do doador prevaleça em detrimento da manutenção da saúde, ou até mesmo, da vida da pessoa concebida com o material genético de terceiros”. 227 A seu turno, José Sebastião Espíndola atenta que, possivelmente, “a identificação do doador ou doadora acarretará o afastamento de futuros doadores, em razão das conseqüências que a identificação da paternidade traz ao mundo Jurídico” 228, sendo apenas a ressalva legal capaz de afastar a constituição de direitos e deveres decorrentes de um possível vínculo parental. 223 GAMA, 2003, p. 801. Ibidem, p. 799. 225 AGUIAR, 2005, p. 99. 226 BALAN, 2006, p. 05-10. 227 Ibidem, p. 228 ESPÍNDOLA, 2003, p. 102. 224 60 CONCLUSÃO Várias são as questões que podem ser levantadas a favor e contra a aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida anteriormente discutidas. A própria doutrina ainda encontrase dividida acerca da realização desses procedimentos e a produção legislativa é pouquíssimo avançada, sendo que o único suspiro legal está presente nas normas inseridas no Código Civil vigente e, ainda assim, são fonte de grandes controvérsias. Fato é que não se pode ou deve obstar a realização de procedimentos biomédicos aos que deles necessitam nem devem ser estabelecidas condições esdrúxulas para a sua aplicação, vez que constitui-se direito de cada um a repodução e a Carta Magna de 1988 protegeu o livre planejamento familiar. Contudo, de forma alguma deve-se conceber a aplicação desregrada de procedimentos biomédicos, com o único intuito de satisfação pessoal apartada de qualquer vontade de realmente tornar-se pai e mãe. Necessário ter-se em mente que o ser humano a ser gerado também é detentor de direitos desde sua concepção, não se podendo olvidar que também esses direitos devem ser preservados. A vulnerabilidade dos filhos gerados é incontestável. Por todo o pesquisado, conclui-se que o emprego das técnicas de reprodução assistida é possível, seja na modalidade homóloga ou heteróloga, na vigência da entidade familiar ou mesmo após a morte do varão do casal. Porém, necessário é que sejam observados os requisitos necessários à sua aplicação e que outras providências sejam tomadas, principalmente no que se cuida às técnicas heterólogas. É indispensável que a aplicação segura dessas técnicas conte com uma estrutura adequada de controle de seu emprego, de modo que doadores, interessados e, principalmente, as crianças geradas sejam protegidos dos danos futuros, seja pela excusa em constituirem-se seus direitos, seja pela demanda, de uns em relação aos outros, pela constituição de direitos inexistentes pela situação fática que se apresentar ou ainda pela incidência de incestos biológicos ou uniões entre pais doadores e filhos concebidos a partir de seu material genético. Inegável dizer que, atualmente, o Brasil não dispõe de estrutura tão complexa e organizada. Ainda que disponível a estrutura adequada, necessário que sempre seja observado e protegido o melhor interesse da criança concebida, dado à sua vulnerabilidade jurídica, biológica e afetiva. Assim, esse estudo posiciona-se favorável à aplicação das técnicas e ao reconhecimento dos direitos pessoais e patrimoniais da filiação delas decorrente, já que não há que se penalizar os filhos pelos atos de seus pais. Sempre necessário, para tanto, que a intenção e a autorização prévia das partes, juntamente com os demais requisitos subjetivos, objetivos e formais também componham a situação fática, já que são esses os elementos, no atual posicionamento jurídico e doutrinário, capazes de determinar a validade e a viabilidade dos procedimentos aplicados. De qualquer sorte, não se pode negar ser necessária e urgente a devida regulamentação legal das técnicas reprodutivas, de forma que restem pacificados os debates que circundam o tema. 61 REFERÊNCIAS ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro Acquaviva. - 13ª Ed. - São Paulo: Jurídica Brasileira, 2006. AGUIAR, Mônica. Direito à Filiação e Bioética. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 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