INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o

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INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o
INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA: o reconhecimento da origem
genética à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
MIRIA SOARES ENEIAS1
PRISCILLA ALVES SILVA2
RESUMO: Este trabalho tem o intuito de apresentar um estudo sobre o direito à
investigação da origem genética dos filhos oriundos da técnica de reprodução
assistida heteróloga, frente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Será
abordado o direito do filho, se ele, mesmo já possuindo um estado de filiação
socioafetivo, ainda assim poderá ter direito ao reconhecimento de sua identidade
genética, ainda que implique na quebra do anonimato do doador do sêmen. Serão
apresentadas razões que mostram porquê o filho tem direito de saber sua identidade
genética, mesmo que não haja a vontade de se reconhecer a paternidade ou
estabelecer qualquer tipo de vínculo familiar.
PALAVRAS CHAVES: Princípio da Dignidade da Pessoa Humana; Inseminação
Artificial Heteróloga; Identidade Genética; Investigação de Paternidade.
INTRODUÇÃO
Com a evolução da ciência e com o surgimento de diversas técnicas permitiuse que os casais que não podem ter filhos tenham a possibilidade de tê-los.
Contudo, o direito não acompanhou a ciência, deixando de criar normas para legislar
sobre tais assuntos. Ficando muitas vezes o legislador sem saber o que fazer para
resolver determinadas questões que envolvam, por exemplo, direitos como a
investigação de paternidade frente ao direito do doador de sêmen, na reprodução
assistida heteróloga.
1
Mestre em Direito das Relações econômicas empresarias pela Universidade de Franca – UNIFRAN.
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Uberlândia. Professora da disciplina
Direito Processual Civil na Universidade Presidente Antônio Carlos, campus Araguari-MG. Advogada.
2
Bacharela em Direito pela Faculdade Regional de Araguari, do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos.
2
No Brasil, ainda não há lei para regulamentar a prática da reprodução
humana assistida, o que pode afetar a seriedade de alguns centros que se dedicam
a esta tarefa, já que a Resolução nº 1.957/2010, editada pelo Conselho Federal de
Medicina com o objetivo de regular eticamente a matéria, além de não possuir força
legal, não prevê a aplicação de sanções penais no caso de prática ilícita3.
A filiação é um direito previsto a todos, sendo assim a investigação de
paternidade é o caminho adotado por aqueles que ainda não tem a sua filiação
firmada. Mas, quando se trata de casos como o de reprodução assistida heteróloga,
onde temos, além da intervenção médica, material genético de outrem, fora da
relação familiar, a investigação de paternidade se torna meio ineficaz para tal fim,
tendo em vista que o doador do gameta tem sua identidade protegida, com base na
resolução do CFM nº 1.957/2010. Mas frente a este caso questiona-se: não teria a
criança, fruto da reprodução assistida heteróloga, com base no princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana e do direito de filiação, direito ao
reconhecimento de sua origem genética?
Sabemos que apesar do Conselho Federal de Medicina trazer tal resolução,
este tema ainda não está legislado, não havendo, portanto, uma norma que
determine qual o procedimento correto em situações como esta, onde de um lado
temos o direito do reconhecimento da origem genética e do outro o direito do doador
ao anonimato, um direito, que não podemos esquecer, lhe foi garantido no momento
da doação do sêmen.
Vários doutrinados tratam do assunto e por ser um tema ainda muito
divergente, utilizam dos Direitos Fundamentais para justificarem as posições
adotadas. Há aqueles que defendem sua posição com base no princípio da
inviolabilidade do corpo humano, quando há a recusa do doador em se submeter ao
exame de DNA. Outros já fazem menção ao princípio da dignidade da pessoa
humana, quando se trata do reconhecimento da origem genética, mesmo que não
haja intenção de estabelecer laços familiares com o doador.
3
VIEIRA, Tereza Rodrigues. AMATO, Eliana Zamarian. Adoção, Bioética e o Direito de conhecer a
própria origem. Revista Jurídica Consulex – Ano XIV – nº 322 – 15 de junho/2010.
3
Este trabalho vem tratar destes assuntos, levando em consideração o
princípio da dignidade da pessoa humana com relação ao direito do reconhecimento
da origem genética versos o direito do doador ao anonimato, além de apresentar um
capítulo sobre a reprodução assistida, explanando brevemente sobre a reprodução
assistida homóloga e aprofundando mais no assunto mestre do trabalho, que é a
reprodução assistida heteróloga.
CAPÍTULO I – INVESTIGAÇÃO DA ORIGEM GENÉTICA E O PRINCÍPIO DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
1 – PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Diante da omissão da lei quanto a investigação de paternidade, nos casos de
inseminação artificial heteróloga há uma necessidade de se verificar a importância e
definição do princípio da dignidade da pessoa humana.
O mesmo é defino por Alexandre de Moraes como:
Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da
própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das
demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo
estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos
direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos4.
Já, segundo João Carlos Gonçalves Loureiro “a dignidade da pessoa humana
significa um valor intrínseco que cada ser humano detém, bem como uma obrigação
geral de respeito da pessoa”5.
A Constituição Federal da República do Brasil, logo em seu artigo 1º, já faz
menção ao princípio da dignidade da pessoa humana, notando-se assim o seu papel
fundamental nas relações sociais e de direito. Tal princípio encontra-se explícito em
outros artigos da nossa Carta Magna, tais como: art. 226, §7º, que trata da
4
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas AS, 2004, p. 52.
LOUREIRO, João Carlos Gonçalves. O Direito à identidade genética do ser humano. Editora
Coimbra, 1999, p. 281.
5
4
paternidade responsável; e art. 227, que se refere aos direitos da criança, do
adolescente e do jovem, sendo que dentre eles temos o direito à dignidade.
Com a evolução histórica, permitiu-se que as pessoas criassem uma
consciência moral da sociedade no sentido de proteger os valores considerados
essenciais para elas, sendo que entre esses valores temos a dignidade como
principal, fazendo com que protejam o corpo humano para que não seja
comercializado como se fosse um objeto.
Por isso, afirma-se que a reprodução assistida tem afinidade com os direitos
fundamentais pelo fato de envolver a vida e a saúde das pessoas, porque as
intervenções da ciência na reprodução humana trazem consigo numerosos
problemas que repercutem na própria concepção de ser humano e na proteção de
sua dignidade, além de envolverem direitos personalíssimos como a identidade e a
proteção do corpo humano6.
O princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação do
Estado, de modo que o poder público não pode praticar atos que a violem e deve ter
meta a promoção de uma vida digna para todas as pessoas. Por outro lado, impõe
também limites nas relações entre os particulares, coibindo comportamentos interrelacionais que violem a dignidade7. Desta forma, assevera-se que o princípio da
dignidade da pessoa humana excede os limites éticos e morais, passando a ser uma
norma jurídica que orienta os direitos no homem.
No Brasil, a CF/88 fundamentou a dignidade da pessoa humana como base
da nossa República e os direitos que surgem dela e da sua afirmação e proteção
foram adotados como fundamentais.
O princípio da dignidade da pessoa humana, por seu enorme valor, impõe aos
médicos e pesquisadores que respeitem sempre o ser humano diante das técnicas
de reprodução assistida, vez que tal procedimento mexe com a vida mais íntima de
todo e qualquer ser envolvido nesta situação. Diante disto afirma-se que não se
6
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Reprodução Humana Assistida e Anonimato de Doadores de
Gametas: o direito brasileiro frente às novas formas de parentalidade. In: Ensaios de Bioética e
Direito. Tereza Rodrigues Vieira (org). Brasília: Consulex, 2009, p. 30.
7
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 37.
5
pode tratar a pessoa como meio para lucrar financeiramente, uma vez que o
procedimento da reprodução assistida vai além da experiência laboratorial, sendo
este um meio de se alcançar o sonho daqueles que não podem ter filhos da forma
convencional, já que sendo o embrião um projeto de vida ou uma futura pessoa, ele
tem sua dignidade e de qualquer modo merece respeito.
Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama:
A dignidade humana é valor próprio e extrapatrimonial da pessoa,
especialmente no contexto do convívio na comunidade, como sujeito
moral, sendo assim não há dúvida que todos os interesses têm como
centro a pessoa humana, a qual é foco principal de qualquer política
pública ou pensamento, sendo necessário harmonizar a dignidade da
pessoa humana ao progresso científico e tecnológico, porquanto este
deve tender sempre a aprimorar e melhorar as condições e a
8
qualidade de vida das pessoas humanas, e não o inverso .
Por ser o princípio da dignidade da pessoa humana essencial para o
biodireito, este precisa ser harmonizado com os demais princípios garantidores da
proteção da pessoa humana, para que, não apenas na atual geração, mas também
nas
futuras,
possam
aprimorar
o
desenvolvimento
da
pessoa
humana,
independentemente de sua origem ser pela reprodução assistida.
A dignidade da pessoa humana não deve ser respeitada apenas quando a
ordem jurídica assim determinar, sendo assim, mesmo que não exista previsão
expressa sempre deverá ser assegurada a dignidade da pessoa humana, por ser ela
de valor essencial e fundamental para a ordem social.
2 – DIREITO FUNDAMENTAL AO RECONHECIMENTO DA ORIGEM GENÉTICA
A inseminação artificial heteróloga, aquela onde se utiliza material genético de
um terceiro, estranho a relação familiar, traz a discussão a respeito da criança
gerada através deste procedimento conhecer a sua origem genética.
8
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 131.
6
O direito à busca pela identidade genética destes não está de forma expressa
na Constituição Federal, apesar dele ser um direito fundamental, já que o direito à
origem genética insere-se no grupo dos direitos da personalidade, além de ser
fundamentado na dignidade do ser humano.
Segundo Silvio Rodrigues, “os direitos da personalidade são inatos, de forma
que não se pode conceber um indivíduo que não tenha direito à vida, à liberdade
física e intelectual, ao seu nome, ao seu corpo, à imagem e àquilo que ele crê ser
sua honra”9.
O direito à identidade pessoal do ser humano, segundo Ana Claudia Brandão
apud Jubert Olga Krell, “compreende tudo aquilo que identifica cada pessoa como
indivíduo singular, seja a sua história genética (dados biologicamente genéticos),
seja sua história pessoal (dados sociais, identidade civil de ascendentes e
descendentes)”10.
Segundo Ana Claudia Brandão, o reconhecimento da origem genética,
Consiste em saber sua origem, sua ancestralidade, suas raízes, de
entender seus traços (aptidões, doenças, raça, etnia) socioculturais,
conhecer a bagagem genético-cultural básica. Conhecer sua
ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por
suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há
como negar o direito a conhecer a verdade biológica, pela
importância enquanto direito de personalidade11.
Portanto, a identificação desta é um direito de cada ser humano, uma vez que
conhecer sua origem genética se faz necessário para uma construção sociocultural
do indivíduo.
Mesmo que o direito ao reconhecimento da origem genética não seja um
direito previsto de forma taxativa, ele trata de um direito da personalidade, não se
pode, portanto, negar ao indivíduo, gerado pela reprodução assistida heteróloga, o
direito de investigar e ter acesso a sua origem.
9
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 61. In. Reprodução humana
assistida e suas conseqüências nas relações de família (p. 126)
10
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 132
11
Ibid, p. 133.
7
Uma parte da doutrina defende que somente aqueles direitos que estejam
tipificados na legislação merecem proteção, o que significa que todo e qualquer
direito que não esteja mencionado de forma expressa estará desprotegido. Porém,
há outra parte que defende que os direitos da personalidade, mesmo que não
mencionados, por sua enorme importância não podem ser reduzidos apenas
àqueles expressos, uma vez que é difícil haver uma previsão que acoberte todo e
qualquer direito necessário à personalidade do homem. Dessa forma, embora nossa
Constituição não tenha dispositivo específico destinado a origem genética, tal direito
é reconhecido através do princípio da dignidade da pessoa humana, que trata-se de
uma base geral de tutela dos indivíduos. Tudo isso tem como base o art. 5°, §2° da
CF/88, que menciona o princípio da dignidade da pessoa humana como
fundamental, prevendo a não exclusão de outros direitos e garantias, mesmo não
expressos, que decorram dos princípios adotados por nossa Carta Magna. Sendo
assim, os diferentes direitos devem ser tutelados, ainda que não previstos de forma
expressa.
O conhecimento da origem genética se faz necessário tendo em vista a
indispensável necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus
parentes biológicos, para prevenir problemas de saúde genéticos e para os casos de
doenças
em
que
somente
são
solucionáveis
através
de
compatibilidade
consanguínea, além de evitar os enlaces matrimoniais, tal como, o casamento ou
uniões entre ascendentes e descendentes ou entre irmãos.
Segundo ensinamentos de Ana Claudia Brandão:
Na maioria das vezes, pretende-se ter acesso à origem genética por
questões psicológicas, pela necessidade de se conhecer. Em certos
casos concretos, o fato de não se saber de onde veio, do ponto de
vista biológico, pode comprometer a integração psíquica da
pessoa12.
Reconhecer a origem genética é de fundamental importância para a pessoa,
tanto dos pontos de vista psicológico, sociológico, médico, como o jurídico.
Reconhecendo o direito à origem genética faz-se prevalecer a dignidade da pessoa
humana.
12
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 134
8
Apesar da maioria da doutrina brasileira reconhecer o direito de saber a
origem genética, ao indivíduo gerado por inseminação artificial heteróloga, ainda há
certa confusão quanto aos efeitos que este reconhecimento irá gerar para a filiação.
Muitos são os posicionamentos a favor do reconhecimento da origem
genética, sendo que em sua maioria são embasados no princípio da dignidade da
pessoa humana, como se vê na opinião de Gabriela de Borges Henriques:
Ainda que não conste de modo expresso o direito a investigação da
origem biológica em casos de reprodução assistida, em especial a
inseminação artificial heteróloga, com fulcro no princípio fundamental
da dignidade da pessoa humana é concebível a investigação da
origem genética no direito brasileiro, numa extensão do que seria o
direito à identidade genética, ainda que já se tenha o estado de
filiação estabelecido13.
Negar ao indivíduo o direito de conhecer a sua origem genética seria
extremamente lesivo ao princípio da dignidade da pessoa humana e a própria
pessoa, uma vez que faz-se necessário a todo e qualquer ser humano saber a sua
origem, mesmo que ele já tenha um estado de filiação determinado, o direito à
identidade genética deve ser respeitado e permitida a sua busca.
Os motivos para a busca da origem genética podem ser vários, dependendo
de cada indivíduo, uma vez que a identidade genética é sinônimo de individualidade
genética. Sendo assim, ainda que se questione o quanto influenciará na vida do
indivíduo tomar conhecimento de sua origem genética, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, ao prever em seu art. 27 a possibilidade do adotado conhecer os
dados de seus pais biológicos, possibilitou o direito à pesquisa da identidade
genética também dos filhos provenientes de inseminação artificial heteróloga,
fazendo-se analogia e com embasamento no princípio da dignidade da pessoa
humana. Vale lembrar, que este conhecimento da origem genética não mudará o
estado de filiação civil da criança, sendo este apenas um meio de se distinguir suas
origens.
13
HENRIQUES, Gabriela de Borges. Inseminação artificial heteróloga e o direito fundamental ao
conhecimento da origem genética. Disponível em: <www.advogadobr.com/comentarios-aoCPC/monografia_03122008.PDF>. Acesso em: 25 ago. 2011.
9
Com base no art. 2° do Código Civil, todo homem é capaz de direitos e
obrigações. Sendo assim, a partir do nascimento com vida da pessoa, esta passa a
ter todos os direitos por lei reconhecidos, sendo que aqueles que são implícitos mas
são essenciais para a realização da pessoa, são direitos da personalidade.
Vários projetos de Lei foram criados com o intuito de regulamentar a
reprodução assistida e em todos eles é resguardado o direito da criança em
conhecer sua origem genética, quando há vontade neste sentido. Contudo, nenhum
projeto de Lei previu qual ação seria utilizada para se buscar este conhecimento,
apenas o projeto nº 120/03 trouxe a ação cabível para estas questões, que é a ação
de investigação de paternidade, sendo que o posicionamento da doutrina é
majoritário também neste sentido. Porém, essa ação não deverá ter efeitos próprios
da investigação de paternidade, eis que já se encontra estabelecida a paternidade e
não existem motivos para descaracterizá-la, a ação deverá ter efeitos limitados ao
conhecimento da origem genética14.
3 – DIREITO FUNDAMENTAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR
Segundo Paulo Lôbo, a convivência familiar se define como sendo:
A relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que
compõem o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou
não, no ambiente comum. É o ninho no qual as pessoas se sentem
recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as
crianças15.
Portanto, o afeto entre pais e filhos, não originam da relação biológica, mas
sim da convivência familiar estabelecida entre eles.
Tanto o art. 227 da Constituição Federal, como o art. 4º do Estatuto da
Criança e do Adolescente, fazem menção ao direito à convivência familiar saudável
que a criança, o adolescente e o jovem possuem, sendo este um direito
fundamental.
14
CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamento assistida heteróloga: distinção entre
filiação e origem genética. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/10171/reproducaomedicamente-assistida-heterologa/4>. Acesso em 07 nov. 2011.
15
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.52.
10
Deve-se observar que a obrigação imposta nos artigos acima mencionados,
se refere a um dever da família e não apenas dos pais. Com isso observamos que
atualmente admitem-se diversas formas de entidades familiares, como, por exemplo,
a monoparental, formada apenas por mãe e filho. Dessa forma, as obrigações
disciplinadas também são conferidas aos membros de todos os modelos de família.
A obrigação de proteger o direito à convivência familiar, estabelecido por
princípios e regras impostos, no que diz respeito, principalmente, a criança e ao
adolescente, é dirigido a todos os membros da família, além de ao Estado e à
sociedade como um todo. Sendo assim, o direito a convivência familiar ultrapassa o
exercício do poder familiar.
Nos dizeres de Danielle Diniz:
A convivência familiar assegurada é aquela espontânea, baseada no
afeto, salutar para os seus componentes, principalmente para as
crianças. Ao colocar a convivência familiar como dever da família,
não desejou o legislador impor uma relação que não existe. Não se
pode aqui olvidar que a família hodierna é aquela construída a partir
da afetividade, sendo a convivência familiar fundamental para a
formação da criança16.
O direito à convivência familiar não se esgota na chamada família nuclear,
composta apenas pelos pais e filhos. O Poder Judiciário, em caso de conflito, deve
levar em conta a abrangência da família considerada em cada comunidade, de
acordo com seus valores e costumes17. Portanto, mesmo que os pais estejam
separados, o filho menor tem direito à convivência familiar, com ambos, apenas com
exceção quando o direito da criança assim não o quiser.
É um grande erro relacionar o dever de convivência familiar com a pura
relação familiar, uma vez que assume deveres parentais todos aqueles que exercem
o papel de pai ou mãe, seja essa relação de origem biológica ou afetiva. Vale
ressaltar que na origem genética se enquadram, também, todas aquelas decorridas
de inseminação artificial heteróloga.
16
DINIZ, Danielle Alheiros. A impossibilidade de responsabilização civil dos pais por abandono
afetivo. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12987/a-impossibilidade-de-responsabi
lizacao-civil-dos-pais-por-abandono-afetivo>. Acesso em: 6 set. 2011.
17
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.53.
11
A convivência familiar, protegida pela Constituição Federal, é aquela originada
em uma relação de afetividade, pois se assim não fosse a forçosa convivência
familiar poderia fazer mal a criança, já que a mesma não estaria vivendo em um
ambiente de amor. Sendo que, este direito defende o melhor interesse da criança, já
que um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece ter sobre ele
qualquer direito.
CAPÍTULO II – FILIAÇÃO E A INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
1 – FILIAÇÃO
Filiação vem do latim “filiatio” e significa liame entre um indivíduo e seu pai ou
sua mãe, com caráter de dependência, de parentesco. Sendo que, no mundo
jurídico, filiação abrange mais do que a simples relação entre pais e/ou mães
biológicos, uma vez que aqueles filhos não biológicos também se enquadram na
caracterização de filiação.
Pois, segundo Paulo Lôbo, “filiação é a relação de parentesco que se
estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou
vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de
inseminação artificial heteróloga”18.
Até pouco tempo, era reconhecida para o Direito Brasileiro apenas a filiação
oriunda do casamento, a chamada filiação legítima e apenas estes filhos eram
protegidos. Presumia-se que os filhos havidos na constância do casamento eram do
marido da mãe, desprezando, desta forma uma possível verdade diversa. Esta
presunção tinha o intuito de admitir que a procriação ocorre-se apenas no
casamento, tanto que aqueles filhos havidos fora deste não eram considerados
merecedores de proteção, eram os chamados filhos ilegítimos19.
18
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.195.
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 95.
19
12
Contudo no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, não se admite
discriminações ou adjetivações com relação a filiação, sendo a mesma biológica ou
não biológica, mas sempre de conceito único, não havendo diferença entre os filhos
independentemente de sua origem (art. 227, §6º). A nossa Carta Magna apresentou
o princípio da igualdade entre os filhos, proibindo qualquer discriminação aos filhos,
qualquer que seja sua origem, confirmando, desta forma, o princípio da proteção
integral da criança e do direito à convivência familiar.
Tal preceito se observa de forma clara também no art. 1.596 do Código Civil,
in verbis, onde determina que: “os filhos, havidos ou não da relação de casamento,
ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer
designações discriminatórias relativas à filiação”. Apesar do artigo não mencionar a
reprodução assistida heteróloga, por analogia, aplica-se a mesma, uma vez que a
mesma é mencionada no art. 1.597, V do CC.
Sendo assim, o direito de todos os filhos deverá ser reconhecido, sem que
haja qualquer discriminação contra aqueles que são frutos dos relacionamentos
extramatrimoniais.
Em suma, filiação é a relação de parentesco que se estabelece entre duas
pessoas, onde uma é considerada filha e a outra pai ou mãe. “O estado de filiação é
a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, atribuída a alguém,
compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados”20.
Segundo José Roberto:
Ser pai ou mãe, atualmente, não é apenas ser a pessoa que gera ou
a que tem vínculo com a criança. É, antes disso, a pessoa que cria,
quem ampara, que dá amor, carinho, educação, dignidade, ou seja, a
pessoa que realmente exerce as funções de pai ou de mãe em
atendimento ao melhor interesse da criança21.
A filiação é classificada, apenas didaticamente, como matrimonial e
extramatrimonial, uma vez que a Constituição Federal de 1988, como já
20
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao Estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção
necessária. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4752/direito-ao-estado-de-filiacao-edireito-a-origem-genetica>. Acesso em: 06 set 2011.
21
FILHO, José Roberto Moreira. Direito à identidade genética. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/
revista/texto/2744/direito-a-identidade-genetica>. Acesso em: 06 set. 2011.
13
mencionado, não permite que se faça distinção entre os filhos havidos ou não no
casamento. Tais classificações serão abordadas nos tópicos seguintes.
A contestação da filiação é uma ação privativa do pai, sendo que terceiros
não podem contestá-la (art. 1.601, CC)
A atual família brasileira, segundo Ana Claudia Brandão:
Passa a priorizar os laços afetivos. A troca de afeto, de cuidado e a
solidariedade entre os membros como meio de se realizarem como
pessoa humana adquire mais relevância do que o tipo de entidade
familiar no qual tal realização se concretizará. Portanto, seja qual for
a espécie de entidade familiar, o indivíduo é o centro em torno do
qual gravitam todos os direitos, a fim de que a pessoa se realize
sentimentalmente no grupo familiar em que está inserida22.
Daí a afirmação de que a paternidade/maternidade passou a ter um
significado mais relevante do que de fato a verdade biológica, esta está sendo
construída com base no amor, no afeto, no carinho, pouco importando a origem da
filiação, mas apenas o livre desejo de ser pai ou mãe. Neste sentido, Ana Claudia
Brandão apud Rolf Madaleno explica que, “a paternidade real não é a biológica, mas
sim a cultural, fruto dos vínculos e das relações de sentimento que vão sendo
cultivados durante a convivência com a criança”23.
O fato de o caráter socioafetivo prevalecer sob a filiação biológica recebe o
nome de desbiologização e João Baptista Villela foi um dos primeiros juristas no país
a tratar deste tema, em um artigo de 1979, “defendendo que são verdadeiramente
mães ou pais aqueles que melhor defendem os interesses da criança”24.
Uma forma de demonstrar que o biologismo não é mais importante na filiação
se faz com a presunção de paternidade do marido que autoriza a inseminação
artificial heteróloga em sua mulher, baseada apenas na verdade afetiva25.
O reconhecimento da filiação socioafetiva não importa no desprezo da filiação
biológica. Não há qualquer hierarquia entre elas, eis que apenas no caso concreto
22
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 96.
23
Ibid, p. 96.
24
Ibid, p. 96.
25
Ibid, p. 98.
14
será possível determinar o critério a ser utilizado, o biológico ou o socioafetivo, para
se estabelecer a filiação que melhor concretize os interesses da criança, buscando
sempre como finalidade a dignidade da pessoa humana.
Com tudo, conclui-se que é o afeto a base de uma entidade familiar e não
apenas os laços biológicos, apesar de ser, na maioria das vezes, o fator decorrente.
1.1 – Filiação Matrimonial
Segunda Maria Helena Diniz, “a filiação matrimonial é a concebida na
constância do matrimônio, seja ele válido, nulo ou anulável, ou, em certos casos,
antes da celebração do casamento, porém nascida durante a sua vigência, por
reconhecimento dos pais”26.
Com referência a concepção na constância do casamento, se a criança for
concebida antes e vier a nascer após a celebração do casamento, também será
considerada como uma filiação matrimonial, desde que esteja dentro do prazo
estabelecido pelo art. 1597, incisos I e II do Código Civil, vez que este já estabelece
quando começa e quando termina a presunção.
A inseminação heteróloga é definida como uma filiação matrimonial, vez que
o Código Civil estabelece em seu artigo 1597, inciso V, que presumem-se nascidos
na constância do casamento filhos havidos da inseminação heteróloga, quando há a
anuência do marido.
Além destas presunções já mencionadas, também está presente no art. 1597
do Código Civil, que presumem-se concebidos na constância do casamento, os
filhos havidos de inseminação homóloga, mesmo que o marido já tenha vindo a óbito
(inciso III) e aqueles havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga (inciso IV).
26
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 457.
15
A filiação matrimonial se estabelece, basicamente, pelo parto da criança,
onde há a incidência da presunção legal da paternidade conferida ao marido da
parturiente. Sempre levando-se em conta as possibilidades previstas no art. 1597,
do CC.
Segundo os arts. 1.600 e 1.602 do CC, não basta o adultério e nem apenas a
confissão da mulher sobre a paternidade da criança para que o marido venha a
negar esta. É necessário que se produza provas, como o exame de DNA, por
exemplo. Esta confissão, a que se referem tais artigos, servirá apenas como um
elemento na ação negatória de paternidade, não sendo suficiente para o não
reconhecimento do filho como seu.
A contestação da paternidade não prescreve, como mostra o art. 1.601 do
Código Civil, in verbis: “art. 1.601 – Cabe ao marido o direito de contestar a
paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível”.
A ação negatória da paternidade terá como réu o filho, que sendo menor será
assistido por sua mãe, devendo o Ministério Público ser oficiado do mesmo. A
sentença referente a este processo será averbada na certidão de nascimento do
filho.
Da mesma forma, a ação de prova de filiação, que compete ao filho, não
prescreve, vez que esta pode ser impetrada enquanto viver, passando a ação aos
herdeiros se este morrer menor ou incapaz (art. 1.606, CC).
Lembrando que a certidão de nascimento registrada no Cartório de Registro
Civil faz prova de filiação (art. 1.603, CC), sendo que a mesma só poderá ser
alterada se ficar provado erro ou falsidade do registro (art. 1.604, CC).
1.2 – Filiação Não-Matrimonial
A filiação não-matrimonial ou extramatrimonial, também é estabelecida pelo
parto em regra quanto à linha materna, mas depende do reconhecimento
espontâneo ou judicial do pai.
16
Esta é definida por Maria Helena Diniz, como aquela “decorrente de relações
extramatrimoniais, sendo que os filhos durante elas gerados classificam-se
didaticamente em: naturais e espúrios”27.
As classificadas como naturais, são aquelas que derivam de pais que não
havia impedimento matrimonial no momento da concepção.
Já a classificação a que se dá o nome de espúrios, se origina de pais entre os
quais havia impedido matrimonial no momento da concepção. Esta classificação
ainda se subdivide em: adulterinos e incestuosos. O primeiro se refere aos filhos
nascidos de um casal com impedimento no momento da concepção por um deles
possuir matrimônio no momento da concepção. O segundo, porém, diz respeito a
criança gerada por um casal com impedimento matrimonial por possuírem
parentesco natural, civil ou afim.
Os filhos descendentes de casal separado não são classificados como
adulterinos, mas sim como naturais, uma vez que não possuem mais impedimento
matrimonial, apesar de também não possuírem casamento ou união estável entre si.
É a partir do reconhecimento da filiação que se estabelece o parentesco entre
pai e mãe e seu filho, havido fora do matrimônio.
Se o filho já tinha uma filiação reconhecida anteriormente, esta precisa ser
anulada por erro ou falsidade, para que o novo reconhecimento de filiação seja
estabelecido e válido.
O reconhecimento da filiação pode ser a partir da livre manifestação da
vontade dos pais ou de um deles, neste caso estará ocorrendo a manifestação
voluntária. Outra hipótese é o reconhecimento derivado da ação de investigação de
paternidade, onde o filho demanda a ação, a sentença desta ação irá declarar que o
autor é filho do investigado, neste caso estará ocorrendo o reconhecimento forçado
ou judicial. Em ambos os casos, o reconhecimento da filiação produzirá os mesmos
efeitos jurídicos (art. 1.616, CC).
27
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 478.
17
Assim como determina os arts. 1.609 e 1.610, ambos do Código Civil, o
reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento não pode ser revogado.
Qualquer pessoa pode contestar a ação de investigação de paternidade,
desde que tenha motivos justos para isto (art. 1615, CC).
O filho havido de relacionamento extramatrimonial e que tenha a filiação
reconhecida, só poderá residir no lar conjugal se o cônjuge do pai ou mãe assim
autorizar (art. 1.611, CC).
2 – O DIREITO QUANTO À INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Todo ser que nasce é filho de alguém e, como tal, sujeito de direitos que
deverão, necessariamente, ser imputados a um pai.
Maria Helena Diniz define a ação de investigação de paternidade da seguinte
forma:
A investigação de paternidade processa-se mediante ação ordinária
promovida pelo filho ou seu representante legal, se incapaz, contra o
genitor ou seus herdeiros ou legatários, podendo ser cumulada com a de
petição de herança, com a de alimentos, que passarão a ser devidos a
partir da citação e com a de retificação ou anulação de registro civil28.
O antigo Código Civil fazia previsão de quando poderia ocorrer a investigação
de paternidade (art. 263, CC de 1916), porém o novo Código Civil não faz tais
exigências. Sendo que, sempre que houver a dúvida quanto à filiação, o interessado
deve ingressar em juízo para investigar sua paternidade biológica, vez que possui o
direito de saber sua identidade genética.
A ação de investigação de paternidade se faz diferente da ação de
investigação da origem genética, apesar de se usar o termo paternidade quando se
refere a investigação da origem genética.
28
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. v.5. 24.ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 494.
18
Investigar a origem genética, nada mais é do que buscar pelo seu genitor,
biológico. O objetivo de conhecer a origem genética é assegurar o direito de
personalidade, enquanto conhecer a paternidade é um estado de filiação.
Na investigação de paternidade, julgado procedente o pedido, já estará o pai
obrigado a direitos e obrigações decorrente deste estado de filiação, até com a
consequente alteração do registro civil. Já na investigação da origem genética, não
se tem tais efeitos, pois aqui apenas se declara a origem biológica a alguém, não
tendo o fim de gerar obrigações pessoais, como a alteração do registro civil, e
obrigações patrimoniais, como o direito a alimentos e herança. Na ação de
investigação da origem genética apenas declara a ascendência com estes efeitos,
estando tal fato totalmente alheio a uma relação de família.
No entendimento de Maria Berenice Dias, a ação de investigação da origem
genética, nada mais é do que uma ação de investigação de paternidade, com
conteúdo meramente declaratório, sem efeitos jurídicos29.
Conforme posicionamento de Ana Claudia Brandão:
Uma vez estabelecida a filiação socioafetiva com os pais não
biológicos, não mais caberia investigar a paternidade ou a
maternidade, para a produção dos efeitos típicos da relação de
filiação, tais como: nome, alimentos, direitos sucessórios etc. em
relação ao doador do sêmen, mas, apenas, na esfera do direito da
personalidade30.
A filiação não deve ser confundida com o reconhecimento da origem genética,
uma vez que a certeza deste não é suficiente para fundamentar a filiação, pois com
as mudanças da atualidade formaram-se outros valores que passaram a dominar as
relações de família. Portanto, a função de pai não se confunde com a de ascendente
biológico.
A ação que declara a origem genética, não tem o poder de produzir vínculo
parental entre o indivíduo que já tem uma família socioafetiva e a pessoa que está
29
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p. 363.
30
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 139.
19
sendo investigada. Mesmo porque, não podemos esquecer, que nos casos de
inseminação artificial heteróloga, quando há doação do sêmen, a mãe é biológica.
Hoje não se reconhece a filiação apenas em face do vínculo biológico, sendo
que, pelas atuais modificações no cenário do direito, a filiação socioafetiva
prepondera sobre o biologismo.
Após a Constituição Federal de 1988 e a essencial criação do Código Civil de
2001 ficou definido que o descendente tem direito de investigar sua paternidade sem
restrição alguma, uma vez que o princípio da igualdade entre os filhos alicerça isto,
não podendo tratar os filhos de forma diferente, apenas por serem oriundos de
relações extramatrimoniais.
3 – O DIREITO DO DOADOR AO ANONIMATO
As clínicas de reprodução assistida buscam ocultar a identificação dos
doadores de sêmen que serão utilizados em inseminação heteróloga e, com isso,
visam impossibilitar à investigação de paternidade e a reivindicação de alimentos e
de herança.
Os fundamentos para a proteção do anonimato dos doadores estão em
considerar que a existência de um projeto parental para o embrião formado com os
gametas de um doador, insere a criança em uma família. A proteção ao interesse
superior da criança estaria assegurada na medida em que ela fará parte de uma
família tanto de modelo biparental ou monoparental, o que, para tanto, não
necessitaria conhecer o seu doador.
Verifica-se que há poucos doadores de sêmen, isso significa que com uma
possível quebra da identidade civil do doador a quantidade de doadores diminuiria
ainda mais, levando a uma possível crise nas clínicas de reprodução humana.
No direito francês foi adotada uma postura restritiva no que se refere ao
fornecimento de dados para se reconhecer a identidade do doador do sêmen. Não
se permite fornecer nenhuma informação que possa levar a identificação do doador,
20
o mesmo serve para o caso do doador querer conhecer o filho, o que também não é
permitido pelo ordenamento francês. Tal legislação apenas admiti que se faça o
levantamento da identificação para fins terapêuticos, mas as informações ficarão
restritas aos médicos do doador e do receptor. O fornecimento da identificação, no
Direito Francês, caracteriza crime punido pelo Código Penal, com pena de prisão de
dois anos e multa, como nos ensina Guilherme Calmon31.
Ao contrario do direito francês, o direito sueco prevê direito à obtenção de
informação sobre o doador do sêmen, ou seja, assim que o filho tiver maturidade
suficiente poderá requerer informações sobre seu doador, sem, contudo, que tal
conhecimento gere qualquer vínculo parental. Nas palavras de Guilherme Calmon,
“a lei sueca reconhece, desse modo, o direito da pessoa à sua historicidade
biológica”32.
Cada doutrinador apresenta uma visão quanto ao anonimato do doador de
sêmen, sendo que cada um possui um fundamento para posição adotada. Há
aqueles que são contrários à revelação da identidade, mas favoráveis ao
conhecimento da história pessoal e condições de nascimento da criança, estes
defendem o acesso aos dados não identificadores. Para tanto, seria necessário uma
lei que regulamentasse as condições e a quais informações teria o filho direito ao
acesso. Outros, também contrários à revelação da identidade, defendem que o
anonimato do doador se faz necessário para permitir que a criança se integre
totalmente a sua família. Assim, os princípios do sigilo do procedimento e do
anonimato do doador têm como finalidades essenciais a proteção e a acesso dos
melhores interesses da criança ou do adolescente, impedindo qualquer tratamento
detestável no sentido da discriminação e estigma à pessoa fruto de procriação
assistida heteróloga33.
Ainda há outros que fundamentam no sentido de que diante de alguns fatos
que poderiam vir a ocorre, a identidade do doador do sêmen, assim como a do filho
e a dos pais, deveriam ser mantidas anônimas, para manterem a proteção destes.
31
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 902.
32
Ibid, p. 902.
33
Ibid, p. 903.
21
Como exemplo34, no caso do doador do sêmen descobrir que a criança ficou órfã e
se tornou herdeira de uma grande fortuna, sendo que o doador poderia se aproveitar
desta situação e requerer a adoção desta criança alegando ser seu filho legítimo, eis
que doou o sêmen, mas com o verdadeiro intuito de aproveitar-se da situação
financeira.
Até aqueles doutrinadores que consideram que o anonimato deve ser em
caráter absoluto, alegam que este fato deve ceder a interesses maiores, como nos
casos de risco concreto de doenças hereditárias ou genéticas que podem ser
prevenidas ou mais bem tratadas quando se tem conhecimento da origem genética.
Portanto, não há como permitir que o anonimato do doador prevaleça perante um
risco de lesão à vida da pessoa que foi gerada com material genético de um doador.
Mesmo que o anonimato seja fundamentado com base no direito á intimidade e
privacidade do doador, tal direito não pode se sobrepor ao princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana com fundamento, neste caso, no direito à vida.
Diante destas afirmações, até as próprias leis da França, que são rígidas
quanto ao sigilo da identidade do doador e da criança, abrem exceções para casos
de indicações terapêudicas, como já mencionado anteriormente, demonstrando,
desta forma, a clara prevalência do direito à vida e saúde em detrimento com o
direito à privacidade e intimidade do doador.
Segundo Maria Helena Diniz, “o anonimato do doador do material fertilizante
traz em si a perda da identidade genética do donatário, a possibilidade de incesto e
de degeneração da espécie humana”35.
4 – A RECUSA DO INVESTIGADO EM SUBMETER-SE AO EXAME DE DNA
Muitas vezes quando se busca reconhecer a paternidade o filho encontra
obstáculos, como o fato do suposto pai recusar-se a realizar o exame de DNA, uma
34
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 900.
35
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6.ed. revista, aumentada e atualizada. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 546.
22
vez que este é meio de prova mais eficaz para comprovar tal fato. Este geralmente
fundamenta tal atitude com embasamento no direito à intimidade, à honra, à vida
privada e à inviolabilidade do próprio corpo.
O fato do pai não ser obrigado a realizar o exame de DNA traz um grande
conflito entre direitos fundamentais, o direito à identidade genética e à investigação
de paternidade da criança versus o direito à privacidade e à intangibilidade corporal
do suposto pai.
Esta é uma questão bastante delicada, principalmente quando as partes
fazem uso de princípios e prerrogativas para embasar suas vontades. Aqui cabe
pesar qual direito deverá prevalecer, se o da criança em busca pela sua origem
biológica, ou do investigado na manutenção de sua identidade.
Portanto, entende-se que reconhecer a origem é um direito superior se
comparado ao do suposto pai em negar-se ao exame de DNA, eis que aquele não
pode ser frustrado em detrimento deste.
Contudo, deve-se analisar os direitos do suposto filho em confronto com os do
réu, uma vez que os direitos daquele devem ser considerados superiores ao deste,
eis que o direito ao reconhecimento da origem biológica é um direito fundamental,
levando-se em consideração a dignidade da pessoa humana.
Segundo Maria Helena Diniz, “o suposto pai pode negar-se a fazer o teste,
por ser um atentado à sua privacidade, imagem científica e intangibilidade corporal.
Com sua recusa imotivada, o juiz basear-se-á em presunção juris tantum de
paternidade”36. Isto se confirma com o descrito na Súmula 301 do Superior Tribunal
de Justiça, a saber: “em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se
ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade”, ou seja, admite-se
a possibilidade de prova em contrário, a partir dos fatos narrados pelo autor em face
36
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 507.
23
de instrução, não cabendo a prova ao filho que solicitou o exame, mas ao pai que se
recusou em fazer37.
O Código Civil determina que a recusa do investigado em submeter-se ao
exame de DNA não deverá ser aproveitado em seu favor (art. 231), eis que isso
tornaria a recusa como uma facilidade ao réu quando o mesmo não tem interesse no
reconhecimento da filiação.
Com relação ao art. 232, também do Código Civil, o mesmo seria aplicado na
demanda da ação de investigação de paternidade, nos casos em que o juiz entender
que a recusa do investigado em não se submeter a exame com a finalidade de se
buscar a paternidade, estaria ele se recusando por acreditar que possa ser o pai ou
por ter fortes indícios de que seja.
Contudo, fazer presunção da paternidade a partir da negação do réu em
realizar o exame de DNA é uma violação aos princípios constitucionais, uma vez que
ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo.
O réu se recusando a submeter-se ao exame de DNA, sob a alegação do
direito à liberdade e de sua integridade física, ele não pode ser constrangido a fazêlo sem sua vontade.
O suposto pai não pode ser obrigado a realizar o exame, porém de acordo
com o art. 130 do CPC, o juiz tem legitimidade para determinar a realização de
qualquer prova que entender necessária à elucidação da verdade. Contudo, deve-se
observar o princípio do contraditório para não ferir qualquer direito do suposto pai.
CAPÍTULO III – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA
1 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA
37
BEZERRA, Larissa Cavalcante. Ação de Investigação de paternidade e o direito personalíssimo da
criança em confronto com o direito do suposto pai. Disponível em: <http://www.jurisway.org.br/v2/
dhall.asp?id_dh=2534>. Acesso em: 17 out. 2011.
24
Desde os primórdios que os cientistas buscam técnicas para realização de
fecundação fora do ato sexual. Com a evolução da ciência e a dedicação deles tal
feito se tornou possível, sendo que em 1799 um médico inglês realizou e teve
sucesso pela primeira vez na história com a fecundação da reprodução assistida em
seres humanos. Já em 1884, com uma evolução maior, um médico, também inglês,
realizou pela primeira vez a inseminação artificial heteróloga. Porém, só em 1940
que surgiram os chamados “bancos de sêmen” nos Estados Unidos.
Tais técnicas versavam basicamente na intervenção da medicina no processo
de criação natural, possibilitando que pessoas estéreis ou inférteis pudessem
realizar o sonho de ser pai ou mãe.
Nos anos 70, os estudos acerca da fertilização in vitro foi intensificado, os
pesquisados passaram a analisar a formação de óvulos e espermatozóides fora do
corpo humano, para que posteriormente pudessem ser implantados no corpo da
mulher. No Brasil, o primeiro bebê de proveta foi Ana Paula Caldeira, que ocorreu
em 07 de outubro de 1984, cerca de 6 anos após o nascimento do primeiro caso que
ocorreu no mundo, a inglesa Louise Brown.
Até o momento a reprodução assistida no Brasil está sendo gerenciada sob o
plano prático por meio de critérios definidos pelos próprios médicos. Como
orientação para essa prática foi adotada uma resolução formulada recentemente
pelo Conselho Federal de Medicina, a Resolução de nº 1.957 de dezembro de 2010,
que veio revogando a Resolução nº 1.358/92.
Atualmente, as principais técnicas de reprodução empregadas no mundo são
as de inseminação artificial, que pode ser homóloga, heteróloga ou post mortem; a
fecundação in vitro e as “mães de substituição”, também chamadas de “barriga de
aluguel” ou de “mãe sub-rogada”.
As técnicas de reprodução humana assistida surgem como forma de
concretizar o desejo de ter filhos para aqueles que sofrem com a esterilidade38. Se
faz oportuno uma distinção entre esterilidade e infertilidade, eis que estes termos
38
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 41.
25
são usados de forma aleatória como se não houve uma distinção entre eles. A
Infertilidade é caracterizada como um problema temporário, ou seja, que possui
condições de ser tratado e revertido. Já a esterilidade é um termo usado para
determinar a incapacidade permanente e irreversível de ter filhos.
2 – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA
Em breves palavras, definimos a inseminação artificial como sendo uma
técnica que importa na substituição da relação sexual, onde ocorre a fecundação
artificial dos gametas feminino e masculino, dando origem a um ser humano. Na
inseminação artificial a inoculação do sêmen na mulher ocorre de forma interna, ao
contrário da fertilização in vitro, que se concretiza pela retirada do óvulo da mulher
para fecundar com sêmen de seu marido ou outro homem, para após a fecundação
ser introduzido no seu útero ou no de outra mulher, este último conhecido como
gestação de substituição, chamada também de “barriga de aluguel” ou “útero sobrogado”.
A inseminação artificial homóloga ocorre quando os espermatozóides
introduzidos na mulher, no seu período fértil, pertence ao seu marido ou
companheiro39. Esta pode ocorrer durante a vida do marido ou companheiro ou após
sua morte.
Esta técnica de reprodução não gera muitos problemas jurídicos, tendo em
vista que o material genético usado será do marido e da esposa, ambos coniventes
com a realização da técnica. O próprio Código Civil prevê a filiação para os casos de
inseminação homóloga, como no art. 1.597, em seus incisos III e IV40.
39
Ibid, p. 44.
Art. 1.597 – Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: III – havidos por
fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a qualquer tempo,
quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga.
40
26
Segundo Paulo Lôbo, “o uso do sêmen do marido somente é permitido se for
de sua vontade e enquanto estiver vivo, por ser exclusivo titular de partes
destacadas de seu corpo”41.
Contudo, há a possibilidade da fecundação ocorrer após a morte do marido,
mas para tanto deve o marido ter deixado anuência expressa para isto ocorrer, não
podendo, portanto, a mulher fazer uso do material genético, uma vez que este não é
caracterizado como objeto de herança. Admiti-se a utilização do sêmen após a
morte sem o consentimento apenas nos casos de doador anônimo, eis que este não
implica atribuição de paternidade.
Há no artigo 1.597, inciso II presunção da paternidade se o filho tiver nascido
até trezentos dias após a morte do marido, sendo assim, ocorrendo a fecundação,
mesmo após a morte, presumir-se-á a filiação em razão do marido falecido. Desta
forma, entende-se que não há necessidade de autorização do marido, pois no
entendimento deste inciso acima mencionado, a cláusula “mesmo que falecido o
marido”, deve ser interpretado para fins do estabelecimento da paternidade,
observando apenas o prazo de 300 dias42.
Paulo Lôbo faz menção ao enunciado da I Jornada de Direito Civil, do
Conselho de Justiça Federal, 2002, no que diz respeito ao inc. III do art. 1597, CC, a
saber:
Interpreta-se o inciso III do art. 1.597 do Código Civil para que seja
presumida a paternidade do marido falecido, que seja obrigatório que
a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução
assistida com o material genético do falecido, esteja ainda na
condição de viúva, devendo haver ainda autorização escrita do
43
marido para que se utilize seu material genético após a morte .
O fato do marido ter deixado o sêmen não presumi que estes possam ser
utilizado após sua morte. “O princípio da autonomia da vontade condiciona a
utilização do material genético ao consentimento expresso a esse fim”.44 Por não se
41
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.200.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p.334.
43
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.201.
44
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p.334.
42
27
tratar de objeto de herança, a viúva não pode requerer a clínica que lhe entregue
todo material genético do marido falecido, sem que este tenha deixado de forma
expressa autorização para utilização do mesmo. Não havendo esta autorização, o
sêmen deve ser destruído.
No que tange aos direitos sucessórios, os filhos concebidos por inseminação
artificial homóloga terá direito à sucessão, desde que tenham sido nascidos ou
concebidos no momento da abertura da sucessão. O maior problema com referência
a sucessão é no caso dos embriões congelados que são implantados no corpo da
mulher após a morte do marido, neste caso há uma divergência entre os
doutrinados, aqueles que entendem que o filho não terá direito à sucessão
embasam na regra estabelecida no art. 1.798 do CC, os outros que são favoráveis à
sucessão defendem que ao mencionar na lei “pessoas já concebidas”, não requer
que tenha sido implantado no corpo da mulher. Com relação aos embriões
excedentários, entendem que não tem qualquer possibilidade de ter direito à
sucessão, por não estar nem implantado não havendo nem possibilidade de
considerá-lo como nascituro antes da transferência para o útero materno.
Contudo, segundo Maria Berenice Dias,
Ainda que não tenha sido concebido ao tempo da morte do genitor,
terá direito sucessório na hipótese de ter o proprietário do sêmen
expressamente manifestado seu consentimento para que a
fertilização possa ocorrer depois de sua morte, [...] contando que
nasça até dois anos após a abertura da sucessão45.
3 – INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA
A inseminação artificial heteróloga ocorre quando o material genético
introduzido na mulher não pertence ao seu marido ou companheiro, mas sim a um
doador, cujo anonimato em regra é preservado e o material genético encontrado em
um banco de sêmen de clínicas especializadas neste tipo de procedimento.
Esta técnica de reprodução assistida é buscada pelos casais quando um dos
dois é infértil, ocorrendo na maioria das vezes com relação a infertilidade do marido
45
Ibid, p.335.
28
ou
companheiro.
Mas
também,
apesar
de
pouco
mencionado
entre
os
doutrinadores, outra hipótese que faz os casais buscarem pela reprodução assistida
heteróloga é quando um ou outro possui uma doença genética que pode ser
transmitida para a criança. Ou seja, não é apenas a infertilidade o motivo para a
realização da inseminação em estudo.
Para ocorrer a inseminação artificial heteróloga o marido ou companheiro
deve consentir com tal procedimento, não necessitando este consentimento ser
escrito, bastando ser prévio, para que assim o filho nascido seja considero seu com
base no art. 1.597, inciso V.
Este procedimento ainda pode ocorrer de forma bisseminal, que se dá quando
o material genético masculino utilizado pertence a duas pessoas diversas, ao marido
ou companheiro e ao doador anônimo. Isto se dá devido ao sêmen do marido ou
companheiro ser insuficiente, sendo que são misturados ao do doador para realizar
a introdução na mulher46.
Maria Helena Diniz se mostra desfavorável a técnica de inseminação artificial
heteróloga ao mencionar que esta deveria ser coibida, para se evitar possíveis
riscos de origem física e psíquica para a descendência, além da incerteza sobre a
sua identidade47.
A reprodução heteróloga é proibida na Itália, além de ser considerada pela
Igreja Católica como prejudicial à criança que concebida desta maneira e uma forma
de infidelidade.
Segundo Maria Berenice Dias, a paternidade na fecundação heteróloga gera
presunção juris et de jure, pois não há possibilidade de ser impugnada, já que a
manifestação do cônjuge corresponde a uma adoção antenatal do filho, sem
possibilidade de retratação no desejo de ser pai48. Se pudesse ser impugnada,
46
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 44.
47
DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 6.ed. revista, aumentada e atualizada. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 546.
48
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009, p.335.
29
estaríamos diante de uma paternidade incerta, eis que o doador do sêmen tem sua
identidade protegida.
De acordo com opiniões de doutrinadores, o consentimento do pai não admite
retratação após a implantação do óvulo no ventre da mãe, eis que já se encontra em
andamento a gestação. O que poderia ocorrer é o questionamento quanto a filiação
ser oriunda de reprodução assistida, nos casos em que o marido desconfiar de
infidelidade conjugal.
Há que se fazer uma interpretação extensiva com relação a certos aspectos
da adoção que serão aplicados na reprodução assistida heteróloga, como por
exemplo, no que diz respeito a atribuição da condição de filho desligando-o de
qualquer vínculo com os parentes consangüíneos, exceto quanto aos impedimentos
matrimoniais e também no que diz com o estabelecimento dos vínculos de
parentesco49.
Mesmo havendo proibição para se identificar o doador do sêmen, devemos
levar em consideração a possibilidade do filho requerer tal reconhecimento, com a
finalidade de identificar sua origem genética, mesmo que tal feito não implique em
efeitos registrais. Com isso, deve-se analisar a real necessidade de se identificar tal
origem, eis que o reconhecimento da identidade genética trata-se de direito da
personalidade protegido pela dignidade da pessoa humana.
A inseminação heteróloga, que pode ocorrer com homens e mulheres, ocorre
mais frequentemente com mulheres, ou seja, no caso em que seu marido ou
companheiro não tem condições de fornecer sêmen para ser utilizado nas técnicas
conceptivas50. Nesta inseminação heteróloga a questão polêmica é com relação ao
vínculo da criança com o pai, eis que esses não possuem nenhum vínculo biológico,
contudo com relação a mãe não possui dúvidas, já que neste caso há presença do
vínculo biológico.
Por não haver vínculo paterno, deverá ser verificado se houve consentimento
do marido ou companheiro para a realização da inseminação heteróloga. Uma vez
49
Ibid, p.336.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O biodireito e as relações parentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 735.
50
30
que o vínculo não será estabelecido pelo biologismo, mas sim pela afetividade, há
plena necessidade de ter este consentimento. Contudo, Guilherme Calmon entende
que havendo o nascimento da criança na constância do casamento, mesmo sem
autorização do marido, estará havendo presunção de paternidade, no entanto, esta
presunção é relativa, eis que poderá ser afastada se o marido provar que não houve
vontade manifesta de consentir com a mulher para realização da inseminação51.
Contudo, se o há consentimento do marido a presunção passa a ser absoluta.
O fornecimento de sêmen, óvulo e embrião para a prática de inseminação
heteróloga, em hipótese alguma poderá ser feito mediante efetivação de pagamento.
Em alguns Estados norte-americanos, por valores culturais e morais no local, há a
permissão de remuneração para os doadores de gametas.
Segundo Guilherme Calmon:
Para a realização da inseminação heteróloga é indispensável que o
casal preencha o requisito que se encontra previsto no art. 226, §7º
da CF/88, ou seja, possua e desenvolva seu projeto parental que
permita aferir a legitimidade do interesse de ambos os cônjuges ou
companheiros em ter acesso à técnica de reprodução assistida
heteróloga. [...] não se pode admitir a procriação assistida heteróloga
em favor do casal que não tenha por exemplo condições de oferecer
ambiente familiar adequado52.
3.1 – Estado de Filiação derivado da inseminação artificial heteróloga
Conforme já informado neste trabalho, com o avanço da medicina e a
evolução das técnicas de reprodução assistida passou a ser possível a concepção
sem que haja relação sexual. Contudo, tais inovações trouxeram várias
consequências para o Direito de Família, principalmente no que tange a filiação e a
paternidade.
O Código Civil faz menção em seu art. 1.597, V, sobre a inseminação artificial
heteróloga, porém tal menção é ineficaz para legislar a respeito destas técnicas e de
suas consequências para o Direito.
51
52
Ibid, p. 737.
Ibid, p. 810.
31
Com isso, afirma-se que o estado de filiação na inseminação artificial
heteróloga é uma questão complexa, vez que envolve duas possíveis paternidades.
Sendo que uma é a paternidade biológica, aquela decorrente do homem que cedeu
o sêmen e a outra é a paternidade legal, aquela do homem que assentiu com a
inseminação de sua mulher.
Contudo, se há a possibilidade da manifestação livre e consciente da vontade
do marido, esta prevalece sobre o caráter biológico, o qual, se fosse questionado,
levaria a analise de outra paternidade.
A resolução nº 1.957/2010 do Conselho Federal de Medicina estabelece que
a autorização do marido deve ser expressa e escrita, contudo o Código Civil nada
estabeleceu sobre o assunto. Por sua vez, a doutrina majoritária entende que deve
ser expressa e escrita, para que possa evitar qualquer tipo de impugnação da
paternidade que vier a ocorrer posteriormente. Porém, há uma parte minoritária da
doutrina que afirma não ser necessário anuência escrita, uma vez que a lei não
exige esta forma, podendo, portanto, ser apenas verbal.
Diante desta questão, o Conselho de Justiça Federal, por iniciativa do
Superior Tribunal de Justiça, elaborou um enunciado tratando do assunto. A saber:
Enunciado nº 104 do Conselho de Justiça Federal: no âmbito das
técnicas de reprodução assistida envolvendo o emprego de material
fecundante de terceiros, o pressuposto fático da relação sexual é
substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco da situação
jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando presunção
absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido da mãe
da criança concebida, dependendo da manifestação expressa (ou
implícita) de vontade no curso do casamento53.
Portanto, frente a este enunciado, verificamos que aceita-se a manifestação
implícita da vontade no curso do casamento.
Os filhos que têm origem na inseminação artificial heteróloga, desde que haja
prévia autorização do marido, presumem-se serem filhos havidos na constância do
casamento, de acordo com o art. 1.597, V do Código Civil.
53
GONÇALVES, Fernando David de Melo. A paternidade decorrente de Inseminação Artificial
Heteróloga, segundo o Código Civil de 2002. Disponível em: <http://www.revistaautor.com/index.php?
option=com_content&task=view&id=435&Itemid=63> Acesso em: 23 set. 2011.
32
Se a esposa se submete a uma inseminação deste tipo sem a prévia
autorização do marido, poderíamos estar diante de uma causa para separação
judicial por injúria grave, pois a paternidade forçada atinge a integridade moral e a
honra do marido54.
O art. 1597, V, do Código Civil estabelece a presunção de nascimento no
casamento dos filhos nascidos da reprodução humana assistida com recurso de
doador, desde que o marido tenha autorizado previamente sua esposa a realizar tal
técnica para engravidar, caso contrário, teria ele direito de contestar a paternidade
que lhe fosse imputada.
Este artigo faz prova da inovação no campo da filiação, mostrando mais uma
vez que a filiação biológica não mais prevalece sobre a não-biológica, eis que com a
autorização do marido para que sua mulher utilize sêmen de terceiro este coloca em
primeiro lugar a vontade da família em ter um filho, independentemente do vínculo
biológico que haverá com outra pessoa.
A manifestação de vontade se faz necessária, uma vez que o marido e a
mulher estão associados na vontade de ter filhos, portanto a escolha não pode ser
de apenas um, exceto nos casos de família monoparental.
Ana Claudia Brandão apud Silmara Juny Chinelato afirma que:
A presunção de paternidade, nos casos de inseminação heteróloga,
é absoluta, em face do sigilo do doador, que poderia importar em
negação ao filho do direito de filiação. Trata-se, portanto, de
55
presunção juris et de jure .
O marido não pode impugnar a paternidade, eis que não pode se voltar contra
ato próprio, pois o venire contra factum proprium é repelido por nosso ordenamento
jurídico56.
Neste sentido, Maria Helena Diniz afirma que:
54
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 462.
55
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 106.
56
Ibid, p. 106.
33
A impugnação da paternidade conduzirá o filho a uma paternidade
incerta, devido ao segredo profissional médico e ao anonimato do
doador do sêmen inoculado na mulher. Ao se impugnar a fecundação
heteróloga consentida, estar-se-á agindo deslealmente, uma vez que
houve deliberação comum dos consortes, decidindo que o filho
deveria nascer. Esta foi a razão do art. 1.597, inc. V, que procurou
fazer com que o princípio de segurança nas relações jurídicas
prevalecesse diante do compromisso vinculante entre cônjuges de
assumir paternidade maternidade, mesmo com componente genético
estranho, dando-se prevalência ao elemento institucional e não
biológico57.
A presunção de paternidade citada no art. 1.597, inc. V, serve apenas para os
casos em que há casamento e união estável, não cabendo, portanto, nos casos de
compromissos eventuais ou quando o casal se encontre em situação de separação
de fato, sendo que neste último caso deve-se observar os prazos estabelecidos nos
incisos I e II do mesmo artigo.
Segundo Ana Claudia Brandão apud Zeno Veloso “a inseminação artificial
consentida pelo marido deve conferir o estado de filho matrimonial. A paternidade,
no caso, não tem base biológica, mas possui um fundamento moral, prestigiando-se
a relação socioafetiva”58.
Ana Cláudia Brandão:
Na reprodução humana assistida, o desejo de ter um filho e assumir
todas as consequências da paternidade e da maternidade é muito
mais forte do que qualquer traço genético que une os pais ao filho,
assim como ocorre na adoção, assumindo a afetividade papel de
destaque”59.
A impugnação da paternidade não é muito aceita pelos doutrinados quando o
marido consentiu de forma livre e expressa. Esta impugnação pode ser considerada
como uma deslealdade do marido ou companheiro para com sua esposa ou
companheira e seu filho, eis que estes decidiram em conjunto com o nascimento
desta criança.
57
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. Vol.5. 24.ed. reformulada.
São Paulo: Saraiva, 2009, p. 462.
58
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 108.
59
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 109.
34
Repita-se: no caso da mulher realizar a inseminação artificial heteróloga sem
o consentimento do marido. Nestes casos, a maioria dos doutrinadores entendem
que se trata de injúria grave, uma vez que ofende a honra, o respeito e a dignidade
do cônjuge, não podendo se falar em adultério por não ter havido relação sexual.
Sendo isto motivo para ocorrer o divórcio do casal.
Neste mesmo sentido, em se tratando de impugnação da paternidade, a
mesma não pode ser questionada se for de presunção absoluta, ou seja, se
manifestou sua vontade não poderá se negar a paternidade e as consequências
dela decorrentes. Contudo, se o marido foi levado ao erro, Ana Claudia Brandão
apud Belmiro Pedro Welter entende que “pode haver impugnação da paternidade
pelo marido ou convivente levado a erro, ao registrar o filho, desde que ainda não
tenha se estabelecido o estado de filho afetivo, ou a chamada posse de estado de
filiação”60, o mesmo se aplica nos casos em que o cônjuge não deu autorização.
Não havendo autorização, ocorrendo a impugnação da paternidade, devemos
verificar como ficará a filiação da criança. Há, neste caso, um problema referente a
quem seria determinada a filiação, seria ao marido da mãe, que mesmo não
autorizando a inseminação estabeleceu laços socioafetivos com o filho, ou caberia a
filiação ao doador do sêmen, que tem sua identidade resguardada pela Resolução nº
1.957 do CFM? Neste caso, a situação que deverá prevalecer é do filho, eis que
este tem a garantia de uma convivência familiar, devendo o anonimato do doador ou
a impugnação da paternidade com laços socioafetivos ser analisada em um patamar
inferior ao da criança.
O estado de filiação derivado da inseminação artificial heteróloga recebe o
nome de filiação socioafetiva, onde a crença da condição de filho fundada em laços
de afeto prevalece sobre o real estado de filiação biológico, eis que a afeição tem
valor jurídico.
Conforme faz presunção o art. 1.593 do Código Civil, o parentesco pode se
dar de forma natural ou civil, sendo que a natural é relativa da consanguinidade e a
60
Ibid, p. 110.
35
civil do estado de afetividade, assim, falar em filiação civil é o mesmo que falar em
filiação socioafetiva.
3.2 – Direito de filiação em relação à inseminação artificial heteróloga do
gameta do Pai
Diante das diversas problemáticas encontradas a partir da utilização da
inseminação artificial heteróloga, uma das mais polêmicas é com relação ao direito
da criança provinda desta prática requerer que o doador do sêmen seja reconhecido
como seu pai, mudando a constância do registro civil e gerando todos os direitos
inerentes da paternidade.
Observamos que tal direito é incontestável, uma vez que o homem ao doar o
sêmen o faz com o intuito de ajudar uma família, que ele nem conhece, a realizar o
sonho de ter um filho. A partir daí, o mesmo não quer nenhum vínculo com esta
família, nem com a criança que é seu filho biológico.
Como já mostrado nos capítulos anteriores, a criança poderia sim requerer
que se faça conhecer a sua origem genética, mas este reconhecimento em nada
tem a ver com a relação de filiação, eis que este reconhecimento tem o intuito único
de saber sua origem, sua ancestralidade, apenas para ter conhecimento e não para
criar vínculos entre doador e filho.
Neste sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2000, reconheceu o
direito do filho adotivo, maior de idade, de ter acesso às informações e identidades
dos genitores, mas com a ressalva de que a adoção permaneceria e que estaria
proibida qualquer demanda contra os genitores. Com esta decisão e aplicando a
analogia ao caso da inseminação heteróloga, constata-se que poderia o filho,
atingindo maioridade, reivindicar em juízo o acesso às informações que dizem
respeito ao doador, inclusive sua identidade, mas não estabelecer vínculos paternos
com o doador. Até o presente momento, não se tem noticia de nenhuma ação que
tenha sido impetrada com esse intuito no Brasil.
36
No Brasil as informações sobre os doadores ficam em poder das clínicas
responsáveis pela inseminação, sendo que há um critério que defina como estas
informações são preservadas, uma vez que, não há uma legislação que regularize
tal questão.
No caso da criança ter acesso a identidade do doador e estes quiserem
estabelecer a filiação, muitos doutrinadores entendem que não poderia ser revogada
a filiação socioafetiva antes estabelecida, além de haver uma impossibilidade
jurídica de ter-se mais de um “pai registral”. Mesma situação para os casos de
família monoparental, onde a mãe não poderá atribuir paternidade ao doador do
sêmen pelo fato de não haver um “pai” a criança. Entende-se que a criança poderá
apenas investigar sua ancestralidade. Daí as críticas à utilização de técnicas de
reprodução assistida por mães solteiras, por estar sendo negado ao filho o direito à
convivência familiar dupla61.
O pai biológico não tem ação contra o pai não-biológico, marido da mãe, para
impugnar sua paternidade. O pai biológico somente pode impugnar a paternidade se
houver ruptura da paternidade-filiação. Contudo, se apesar da ruptura os laços de
paternidade afetiva forem mais fortes e for melhor para a criança manter a filiação
com esse, nenhuma pessoa e nem mesmo o Estado poderá impugnar a filiação
biológica.
Muitas divergências são encontradas com relação a inseminação artificial
heteróloga, muitos são os problemas decorrentes desta prática de reprodução
assistida e, sem dúvida, a maioria dos problemas são estabelecidos pela falta de
uma legislação que regulamente todas as possíveis problemáticas que venham a
surgir desta prática.
Já foram criados vários projetos de leis para regulamentar as práticas de
reprodução humana assistida, tais como o Projeto de Lei nº 3.638/97, criando pelo
Deputado Luiz Moreira, o Projeto de Lei nº 90 de 1999, feito pelo Senador Lúcio
Alcântara, o Projeto de Lei nº 1.184/03, apresentado pelo Senador José Sarney, o
Projeto de Lei nº 120/03, escrito pelo Deputado Roberto Pessoa e, posteriormente, o
61
FERRAZ, Ana Claudia Brandão de Barros Correia. Reprodução humana assistida e suas
consequências nas relações de família. 1. ed., 2. reimpr. Curitiba: Juruá: 2011, p. 111.
37
Projeto de Lei nº 4.685/04, do Deputado José Carlos Araújo. O Projeto de Lei nº
1.184/03, de autoria do Senador José Sarney, é apenas uma reprodução do
substitutivo de 2001 do Projeto de Lei nº 90/99 do Senador Lúcio Alcântara62.
Outro problema encontrado com relação ao direito de paternidade do filho
com o doador do sêmen se insere no contexto dos direitos sucessórios, afinal se a
criança tiver direito de estabelecer um vínculo paterno também terá direito de
requerer os direitos sucessórios após a morte do doador. É claro e majoritário que
não é possível haver tal direito, eis que o doador, que já praticou a doação no intuito
de ser a mesma anônima, além de não ter intenção de ter vínculo paterno com a
criança não é sujeito de deveres para com essa criança.
Muitos doutrinadores, que são contra o reconhecimento da filiação tanto
quanto do reconhecimento da origem genética, entendem que o anonimato
estabelecido para a doação e o recebimento do sêmen, serve para evitar que tanto o
doador quanto a criança procurem estabelecer relações com vistas a obtenção de
qualquer vantagem, até mesmo econômicas.
O entendimento doutrinário é amplamente majoritário no sentido de que não
se deve aplicar ao reconhecimento da origem genética os efeitos da paternidade, eis
que o doador não tem deveres com relação a criança nascida a partir do seu sêmen
doado. O único efeito que deve ser aplicado são aqueles inerentes aos
impedimentos matrimoniais.
Uma vez que a doutrina entende que o vínculo de filiação não deve existir
entre doador e criança gerada a partir do seu material genético, também conclui-se
que a criança não terá, em hipótese alguma, direito sucessório. Mesmo que haja o
reconhecimento da origem genética, esta em nada modificará as relações jurídicas,
inclusive no que tange a direitos patrimoniais, eis que não há parentesco entre o
doador do sêmen e a criança, também não tendo que se falar em obrigação
alimentar entre eles.
62
CÂNDIDO, Nathalie Carvalho. Reprodução medicamente assistida heteróloga: distinção entre
filiação e origem genética. Disponível em: < http://jus.com.br/revista/texto/10171/reproducaomedicamente-assistida-heterologa/4>. Acesso em 08 nov. 2011.
38
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nota-se que muitas são as problemáticas decorrentes das técnicas de
reprodução humana assistida, devendo ser criadas leis que regulamentem tais
práticas para facilitar a solução de conflitos entre os indivíduos que praticam este
tipo de reprodução e posteriormente venham a ter problemas com ela.
Tendo como ponto norteador o princípio da dignidade da pessoa humana
onde se busca uma solução para o conflito entre doador do sêmen e indivíduo
gerado a partir deste material genético, tal princípio se mostra eficaz para
embasamento de todas as conclusões obtidas com este trabalho.
Partimos da premissa de que o princípio da dignidade da pessoa humana é
uma égide do direito ao reconhecimento da origem genética, eis que este direito
deve ser estabelecido e garantido a todo e qualquer cidadão que queira saber sua
ancestralidade.
A Constituição Federal garantiu a todos os indivíduos direitos fundamentais
que devem sempre ser respeitados, porém quando há conflitos entre garantias
constitucionais fundamentais, deve-se observar qual prevalecerá, eis que em cada
caso concreto será estabelecido um patamar que demonstre ser um ou outro direito
mais relevante e, portanto merecedor da garantia.
No caso em tela, nota-se que o princípio da dignidade da pessoa humana se
sobrepõe ao direito ao anonimato, no que se refere ao reconhecimento da origem
genética, eis que o doador do sêmen apesar de ter feito a doação com a expectativa
de ter seus dados pessoais mantidos em sigilo, não terá seu direito sustentado
quando houver confronto entre este e o direito ao reconhecimento da origem
genética. Contudo, o doador não será obrigado a submeter-se a exame de DNA,
com base no princípio da inviolabilidade do corpo humano, porém tal recusa, assim
como nas investigações de paternidade, gerará presunção juris tantum de
paternidade.
A ação de investigação de paternidade, usada para se buscar a origem
genética, não gera os mesmos efeitos de uma ação de investigação de paternidade
39
comum, onde de busca o reconhecimento da filiação, eis que filiação e origem
genética são coisas bem distintas. Portanto, o reconhecimento da origem genética
em nada trará vínculo parental entre doador e receptor, uma vez que apesar de
serem biologicamente pai e filho, não possuem convivência e afetividade, eis que
esta foi formada pelo pai que criou a criança. Sendo assim, este reconhecimento em
nada gerara para o judiciário, já que nunca tiveram qualquer vínculo de parentesco e
afetividade, eis que a filiação socioafetiva é levada muito em consideração para se
determinar a guarda e os direitos de uma criança nos dias hoje em nosso mundo
jurídico.
O anonimato dos doadores é protegido pela Resolução do Conselho Federal
de Medicina nº 1.957/10 e tem o intuito de buscar ocultar a identificação dos
doadores de sêmen para impossibilitar uma possível investigação de paternidade,
bem como reivindicação de alimentos e herança, além de querer assegurar que a
criança se desenvolva em seu lar familiar sem a pretensão de querer se vincular a
outra família, que possua apenas vínculos biológicos e não afetivos. Contudo, a meu
ver, o anonimato deve ser mantido até que o indivíduo, resultado da prática de
inseminação artificial, venha a requerer dados sobre sua origem genética. Vindo a
requerer, o mesmo deverá ter seu direito resguardado, eis que conhecer a origem
biológica trata-se de direito fundamental de todo ser humano.
Fez-se necessário demonstrar uma distinção entre estado de filiação e direito
de filiação, decorrentes da inseminação artificial heteróloga. Pelo estado de filiação
entende-se aquele estabelecido no art. 1.597, inc. V do Código Civil, onde o marido
ou companheiro da mãe que pratica a inseminação confere o seu consentimento
para a prática de tal ato, tornando pai da criança gerada desde a sua gestação. O
direito de filiação é aquele decorrente da busca pela origem genética e pelo
requerimento de se formar um ato de filiação com o doador do sêmen, resultando na
prática de alteração do registro civil, direito a alimentos e até mesmo a herança.
Contudo, observou-se que a filiação prevista no art. 1.597, V do CC estará em
perfeitas condições se houve consentimento, mesmo que não seja por escrito, do
marido ou companheiro. Porém, no que se refere a uma possível filiação com o
doador do sêmen, esta é totalmente descartada pela doutrina brasileira, eis que o
doador não pode ser sujeito de direitos e deveres para com uma criança que não
40
teve convivência e que apenas ajudou na procriação da mesma, para uma família
que não possuía condições de ter um filho sem ajuda de terceiros. Não há norma
determinando que não possa haver direito de filiação da criança com o doador do
sêmen, contudo fazendo-se analogia ao estabelecido pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente sobre adoção, onde a criança adotado terá direito de conhecer sua
ancestralidade, mas não terá direito a filiação, bem como a herança ou alimentos em
face dos pais biológicos, chega-se a conclusão que a criança oriunda da
inseminação artificial heteróloga também não terá.
Diante de tudo exposto, conclui-se que todo e qualquer indivíduo tem direito
de conhecer sua origem genética, para saber sua ascendência, bem como conhecer
suas raízes e buscar evitar problemas de doenças hereditárias e genéticas, além de
impedir que ocorra incesto. Contudo, este indivíduo não terá direito a requerer
alimentos, bem como a herança, além de não poder exigir que se reconheça a
filiação em face do pai biológico e, com isso, ocorra a alteração do registro civil, eis
que a filiação estabelecida com o pai afetivo não pode ser descartada, e mesmo em
casos de família monoparental, o indivíduo não poderá requerer o reconhecimento
da filiação em face do doador apenas por não lhe ser reconhecido alguém como pai.
HETEROLOGOUS ARTIFICIAL INSEMINATION: the recognition of genetic origin in
the light of the human dignity principle.
ABSTRACT: This paper has the purpose of presenting a study about the right to
investigatethe genetic origin of the children from the heterologous assisted
reproduction technique, against the principle of human dignity. Will be approached
the right of a child, if he, even having a membership status socio affective, even so
he can the right to acknowledge his genetic identity, even if it involvesbreaking the
anonymity of the donor of the semen. Reasons that show why the child has the right
to know his genetic identity will be given, even though there is no will of recognizing
the paternity or establish any kind of family ties.
Key words: Principle of Human Dignity; Heterologous Artificial Insemination; Genetic
Identity; Paternity Investigation.
41
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ANEXO A – RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA Nº
1957/2010
Resolução do CFM nº 1957/2010
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
RESOLUÇÃO CFM nº 1.957/2010
(Publicada no D.O.U. de 06 de janeiro de 2011, Seção I, p.79)
A Resolução CFM nº 1.358/92, após 18 anos de vigência, recebeu modificações
relativas à reprodução assistida, o que gerou a presente resolução, que a substitui in
totum.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei
nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, alterada pela Lei nº 11.000, de 15 de
dezembro de 2004, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958,
e
43
CONSIDERANDO a importância da infertilidade humana como um problema de
saúde, com implicações médicas e psicológicas, e a legitimidade do anseio de
superá-la;
CONSIDERANDO que o avanço do conhecimento científico permite solucionar
vários dos casos de reprodução humana;
CONSIDERANDO que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a
procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos
tradicionais;
CONSIDERANDO a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os
princípios da ética médica;
CONSIDERANDO, finalmente, o decidido na sessão plenária do Conselho Federal
de Medicina realizada em 15 de dezembro de 2010,
RESOLVE
Art. 1º - Adotar as NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS TÉCNICAS DE
REPRODUÇÃO ASSISTIDA, anexas à presente resolução, como dispositivo
deontológico a ser seguido pelos médicos.
Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se a
Resolução CFM nº 1.358/92, publicada no DOU, seção I, de 19 de novembro de
1992, página 16053.
Brasília-DF, 15 de dezembro de 2010
ROBERTO LUIZ D’AVILA
HENRIQUE BATISTA E SILVA
Presidente
ANEXO ÚNICO DA RESOLUÇÃO CFM nº 1.957/10
NORMAS ÉTICAS PARA A UTILIZAÇÃO DAS
TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA
Secretário-geral
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I - PRINCÍPIOS GERAIS
1 - As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução
dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando
outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas.
2 - As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade efetiva
de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para a paciente ou o possível
descendente.
3 - O consentimento informado será obrigatório a todos os pacientes submetidos às
técnicas de reprodução assistida, inclusive aos doadores. Os aspectos médicos
envolvendo as circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão
detalhadamente expostos, assim como os resultados obtidos naquela unidade de
tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de
caráter biológico, jurídico, ético e econômico. O documento de consentimento
informado será expresso em formulário especial e estará completo com a
concordância, por escrito, das pessoas submetidas às técnicas de reprodução
assistida.
4 - As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo
(sexagem) ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando
se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.
5 - É proibida a fecundação de oócitos humanos com qualquer outra finalidade que
não a procriação humana.
6 - O número máximo de oócitos e embriões a serem transferidos para a receptora
não pode ser superior a quatro. Em relação ao número de embriões a serem
transferidos, são feitas as seguintes determinações: a) mulheres com até 35 anos:
até dois embriões); b) mulheres entre 36 e 39 anos: até três embriões; c) mulheres
com 40 anos ou mais: até quatro embriões.
7 - Em caso de gravidez múltipla, decorrente do uso de técnicas de RA, é proibida a
utilização de procedimentos que visem à redução embrionária.
II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA
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1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja
indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das
técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente
esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente.
III - REFERENTE ÀS CLÍNICAS, CENTROS OU SERVIÇOS QUE APLICAM
TÉCNICAS DE RA
As clínicas, centros ou serviços que aplicam técnicas de RA são responsáveis pelo
controle
de
doenças
infectocontagiosas,
coleta,
manuseio,
conservação,
distribuição, transferência e descarte de material biológico humano para a paciente
de técnicas de RA, devendo apresentar como requisitos mínimos:
1 - um diretor técnico responsável por todos os procedimentos médicos e
laboratoriais executados, que será, obrigatoriamente, um médico registrado no
Conselho Regional de Medicina de sua jurisdição.
2 - um registro permanente (obtido por meio de informações observadas ou
relatadas por fonte competente) das gestações, nascimentos e malformações de
fetos ou recém-nascidos, provenientes das diferentes técnicas de RA aplicadas na
unidade em apreço, bem como dos procedimentos laboratoriais na manipulação de
gametas e embriões.
3 - um registro permanente das provas diagnósticas a que é submetido o material
biológico humano que será transferido aos pacientes das técnicas de RA, com a
finalidade precípua de evitar a transmissão de doenças.
IV - DOAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1 - A doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial.
2 - Os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.
3 - Obrigatoriamente será mantido o sigilo sobre a identidade dos doadores de
gametas e embriões, bem como dos receptores. Em situações especiais, as
informações sobre doadores, por motivação médica, podem ser fornecidas
exclusivamente para médicos, resguardando-se a identidade civil do doador.
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4 - As clínicas, centros ou serviços que empregam a doação devem manter, de
forma permanente, um registro de dados clínicos de caráter geral, características
fenotípicas e uma amostra de material celular dos doadores.
5 - Na região de localização da unidade, o registro dos nascimentos evitará que
um(a) doador(a) venha a produzir mais do que uma gestação de criança de sexo
diferente numa área de um milhão de habitantes.
6 - A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível
deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a
máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.
7 - Não será permitido ao médico responsável pelas clínicas, unidades ou serviços,
nem aos integrantes da equipe multidisciplinar que nelas trabalham participar como
doador nos programas de RA.
V - CRIOPRESERVAÇÃO DE GAMETAS OU EMBRIÕES
1 - As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, óvulos e
embriões.
2 - Do número total de embriões produzidos em laboratório, os excedentes, viáveis,
serão criopreservados.
3 - No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar
sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões
criopreservados em caso de divórcio, doenças graves ou falecimento de um deles
ou de ambos, e quando desejam doá-los.
VI - DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE EMBRIÕES
As técnicas de RA também podem ser utilizadas na preservação e tratamento de
doenças genéticas ou hereditárias, quando perfeitamente indicadas e com
suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica
1 - Toda intervenção sobre embriões "in vitro", com fins diagnósticos, não poderá ter
outra finalidade que não a de avaliar sua viabilidade ou detectar doenças
hereditárias, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.
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2 - Toda intervenção com fins terapêuticos sobre embriões "in vitro" não terá outra
finalidade que não a de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com
garantias reais de sucesso, sendo obrigatório o consentimento informado do casal.
3 - O tempo máximo de desenvolvimento de embriões "in vitro" será de 14 dias.
VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO
ÚTERO)
As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA
para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que
exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora
genética.
1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora
genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à
autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.
VIII – REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM
Não constitui ilícito ético a reprodução assistida post mortem desde que haja
autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico
criopreservado, de acordo com a legislação vigente.
ANEXO B – PROJETO DE LEI Nº 90, DE 1999
PROJETO DE LEI Nº 90, DE 1999
Autor: Senador Lúcio Alcântara
Dispõe sobre Reprodução Assistida
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
SEÇÃO I
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DOS PRINCÍPIOS GERAIS
Artigo 1º Constituem técnicas de Reprodução Assistida (RA) aquelas que importam
na implantação artificial de gametas ou embriões humanos no aparelho reprodutor
de mulheres receptoras com a finalidade de facilitar a procriação.
§ 1º Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação de:
I - embriões humanos aos produtos da união in vitro de gametas humanos, qualquer
que seja a idade de seu desenvolvimento;
II - usuários às mulheres ou aos casais que tenham solicitado o emprego de RA com
o objetivo de procriar;
III - criança ao indivíduo nascido em decorrência do emprego de RA;
IV - gestação ou maternidade de substituição ao caso em que uma doadora
temporária de útero tenha autorizado sua inseminação artificial ou a introdução, em
seu aparelho reprodutor, de embriões fertilizados in vitro, com o objetivo de gerar
uma criança para os usuários.
Artigo 2º A utilização da RA só será permitida, na forma autorizada pelo Poder
Público e conforme o disposto nesta Lei, para auxiliar na resolução dos casos de
infertilidade e para a prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias,
e desde que:
I - tenha sido devidamente constatada a existência de infertilidade irreversível ou,
caso se trate de infertilidade inexplicada, tenha sido obedecido prazo mínimo de
espera, na forma estabelecida em regulamento;
II - os demais tratamentos possíveis tenham sido ineficazes ou ineficientes para
solucionar a situação de infertilidade;
III - a infertilidade não decorra da passagem da idade reprodutiva;
IV - a receptora da técnica seja uma mulher capaz, nos termos da lei, que tenha
solicitado ou autorizado o tratamento de maneira livre e consciente, em documento
de consentimento informado a ser elaborado conforme o disposto no artigo 3º;
V - exista probabilidade efetiva de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde
para a mulher receptora ou a criança;
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VI - no caso de prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, haja
indicação precisa com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica.
SEÇÃO II
DO CONSENTIMENTO INFORMADO
Artigo 3º - O consentimento informado será obrigatório e extensivo aos cônjuges e
companheiros em união estável, em documento redigido em formulário especial, no
qual os usuários manifestem, pela aposição de suas assinaturas, terem dado seu
consentimento para a realização das técnicas de RA e terem sido esclarecidos sobre
o seguinte:
I - os aspectos técnicos e as implicações médicas das diferentes fases das técnicas
de RA disponíveis, bem como os custos envolvidos em cada uma delas;
II - os dados estatísticos sobre a efetividade das técnicas de RA nas diferentes
situações, incluídos aqueles específicos do estabelecimento e do profissional
envolvido, comparados com os números relativos aos casos em que não se recorreu
à RA;
III - a possibilidade e probabilidade de incidência de acidentes, danos ou efeitos
indesejados para as mulheres e para as crianças;
IV - as implicações jurídicas da utilização da RA, inclusive quanto à paternidade da
criança;
V - todas as informações concernentes à licença de atuação dos profissionais e
estabelecimentos envolvidos;
VI - demais informações definidas em regulamento.
§ 1º O consentimento mencionado neste artigo, a ser efetivado conforme as normas
regulamentadoras
que irão
especificar
as informações mínimas a serem
transmitidas, será extensivo aos doadores e seus cônjuges ou companheiros em
união estável.
§ 2º No caso do parágrafo anterior, as informações mencionadas devem incluir todas
as implicações decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a
identificação do doador vir a ser conhecida pela criança e, em alguns casos, de o
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doador vir a ser obrigado a reconhecer a filiação dessa criança, em virtude do
disposto no artigo 12.
§ 3º O consentimento deverá refletir a livre manifestação da vontade dos envolvidos,
vedada qualquer coação física ou psíquica, e o documento originado deverá
explicitar:
I - a técnica e os procedimentos autorizados pelos usuários;
II - o destino a ser dado, no caso de divórcio ou separação do casal, aos embriões
excedentes que vierem a ser preservados na forma do §4º do artigo 9º;
III - as circunstâncias em que os doadores autorizam ou desautorizam a utilização
de seus gametas e embriões.
§ 4º No caso de utilização da RA para a prevenção e tratamento de doenças
genéticas ou hereditárias, o documento deve conter a indicação precisa da doença e
as garantias de diagnóstico e terapêutica, além de mostrar claramente o
consentimento dos receptores para as intervenções a serem efetivadas sobre os
gametas ou embriões.
§ 5º O consentimento só será válido para atos lícitos e não exonerará os envolvidos
em práticas culposas ou dolosas que infrinjam os limites estabelecidos nesta Lei e
em seus regulamentos.
SEÇÃO III
DOS ESTABELECIMENTOS E PROFISSIONAIS
Artigo 4º - Cabe a clínicas, centros, serviços e demais estabelecimentos que aplicam
a RA a responsabilidade sobre:
I - o recebimento de doações, a coleta, o manuseio, o controle de doenças infectocontagiosas, a conservação, a distribuição e a transferência do material biológico
humano utilizado na RA, vedando-se a transferência a fresco de material doado;
II - o registro de todas as informações relativas aos doadores desse material e aos
casos em que foi utilizada a RA, pelo prazo de vinte e cinco anos após o emprego
das técnicas em cada caso;
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III - a obtenção do consentimento informado dos usuários de RA, doadores e
respectivos cônjuges ou companheiros em união estável, na forma definida no artigo
anterior.
Parágrafo único. As normas para o cumprimento do disposto neste artigo serão
definidas em regulamento.
Artigo 5º - Para obter sua licença de funcionamento, clínicas, centros, serviços e
demais estabelecimentos que aplicam RA devem cumprir os seguintes requisitos
mínimos:
I - funcionar sob a direção de um profissional médico, devidamente licenciado para
realizar a RA, que se responsabilizará por todos os procedimentos médicos e
laboratoriais executados;
II - dispor de recursos humanos, técnicos e materiais condizentes com as
necessidades científicas para realizar a RA;
III - dispor de registro permanente de todos os casos em que tenha sido empregada
a RA, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de vinte e cinco anos;
IV - dispor de registro permanente dos doadores e das provas diagnósticas
realizadas no material biológico a ser utilizado na RA com a finalidade de evitar a
transmissão de doenças e manter esse registro pelo prazo de vinte e cinco anos
após o emprego do material.
§ 1º A licença mencionada no caput, obrigatória para todos os estabelecimentos e
profissionais médicos que pratiquem a RA, será válida por dois anos e renovável ao
término de cada período, podendo ser revogada em virtude do descumprimento de
qualquer disposição desta Lei ou de seus regulamentos.
§ 2º O profissional mencionado no inciso I não poderá estar respondendo, na Justiça
ou no órgão de regulamentação profissional da categoria, a processos éticos, civis
ou penais relacionados ao emprego de RA.
§ 3º O registro citado no inciso III deverá conter, em prontuários, elaborados
inclusive para a criança, e em formulários específicos, a identificação dos usuários e
doadores, as técnicas utilizadas, os procedimentos laboratoriais de manipulação de
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gametas e embriões, a ocorrência ou não de gravidez, o desenvolvimento das
gestações, os nascimentos, as mal-formações de fetos ou recém-nascidos e outros
dados definidos em regulamento.
§ 4º Em relação aos doadores, o registro citado no inciso IV deverá conter, em
prontuários individuais, a identidade civil, os dados clínicos de caráter geral, uma
foto acompanhada das características fenotípicas e uma amostra de material celular.
§ 5º As normas para o cumprimento deste artigo serão definidas em regulamento.
SEÇÃO IV
DAS DOAÇÕES
Artigo 6º - Será permitida a doação de gametas e embriões, sob a responsabilidade
dos estabelecimentos que praticam a RA, vedada a remuneração dos doadores e a
cobrança por esse material, a qualquer título.
§ 1º Os estabelecimentos que praticam a RA estarão obrigados a zelar pelo sigilo da
doação, impedindo que doadores e usuários venham a conhecer reciprocamente
suas identidades, e pelo sigilo absoluto das informações sobre a criança nascida a
partir de material doado.
§ 2º Apenas a criança terá acesso, diretamente ou por meio de um representante
legal, a todas as informações sobre o processo que a gerou, inclusive à identidade
civil do doador, nos casos autorizados nesta Lei, obrigando-se o estabelecimento
responsável pelo emprego da RA a fornecer as informações solicitadas.
§ 3º Quando razões médicas indicarem ser de interesse da criança obter
informações genéticas necessárias para sua vida ou sua saúde, as informações
relativas ao doador deverão ser fornecidas exclusivamente para o médico solicitante.
§ 4º No caso autorizado no parágrafo anterior, resguardar-se-á a identidade civil do
doador, mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores informações
sobre sua saúde.
§ 5º A escolha dos doadores será responsabilidade do estabelecimento que pratica
a RA e deverá garantir, tanto quanto possível, semelhança fenotípica e
compatibilidade imunológica entre doador e receptor.
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§ 6º Com base no registro de gestações, o estabelecimento que pratica a RA deverá
evitar que um mesmo doador venha a produzir mais de duas gestações de sexos
diferentes numa área de um milhão de habitantes.
§ 7º Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários e membros de equipe do
estabelecimento que pratica a RA ou seus parentes até quarto grau.
Artigo 7º - Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não
remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista
um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na usuária e desde
que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora
temporária do útero.
Parágrafo único. A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou
comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou
barriga de aluguel.
SEÇÃO V
DOS GAMETAS E EMBRIÕES
Artigo 8º Na execução de técnica de RA, poderão ser transferidos no máximo quatro
embriões a cada ciclo reprodutivo da mulher receptora.
Artigo 9º Os estabelecimentos que praticam a RA ficam autorizados a preservar
gametas
e
embriões
humanos,
doados
ou
depositados
apenas
para
armazenamento, pelos métodos permitidos em regulamento.
§ 1º Não se aplicam aos embriões originados in vitro, antes de sua introdução no
aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos assegurados ao nascituro na
forma da lei.
§ 2º O tempo máximo de preservação de gametas e embriões será definido em
regulamento.
§ 3º O número total de embriões produzidos em laboratório durante a fecundação in
vitro será comunicado aos usuários para que se decida quantos embriões serão
transferidos a fresco, devendo o restante ser preservado, salvo disposição em
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contrário dos próprios usuários, que poderão optar pelo descarte, a doação para
terceiros ou a doação para pesquisa.
§ 4º Os gametas e embriões depositados apenas para armazenamento só poderão
ser entregues ao indivíduo ou casal depositante, sendo que, neste último caso,
conjuntamente aos dois membros do casal que autorizou seu armazenamento.
§ 5º É obrigatório o descarte de gametas e embriões:
I - doados há mais de dois anos;
II - sempre que for solicitado pelos doadores;
III - sempre que estiver determinado no documento de consentimento informado;
IV - nos casos conhecidos de falecimento de doadores ou depositantes;
V - no caso de falecimento de pelo menos uma das pessoas que originaram
embriões preservados.
Artigo 10º - Ressalvados os casos de material doado para pesquisa, a intervenção
sobre gametas ou embriões in vitro só será permitida com a finalidade de avaliar sua
viabilidade ou detectar doenças hereditárias, no caso de ser feita com fins
diagnósticos, ou de tratar uma doença ou impedir sua transmissão, no caso de ser
feita com fins terapêuticos.
§ 1º A pré-seleção sexual de gametas ou embriões só poderá ocorrer nos casos em
que os usuários recorram à RA em virtude de apresentarem hereditariedade para
gerar crianças portadoras de doenças ligadas ao sexo.
§ 2º As intervenções autorizadas no caput e no parágrafo anterior só poderão
ocorrer se houver garantias reais de sucesso.
§ 3º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em
regulamento.
SEÇÃO VI
DA FILIAÇÃO DA CRIANÇA
Artigo 11º - A criança terá assegurados todos os direitos garantidos aos filhos na
forma da lei.
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Parágrafo único. Ressalvados os casos especificados nos §§ 2º e 3º do art. 12, os
pais da criança serão os usuários.
Artigo 12º - A criança nascida a partir de gameta ou embrião doado ou por meio de
gestação de substituição terá assegurado, se assim o desejar, o direito de conhecer
a identidade do doador ou da mãe substituta, no momento em que completar sua
maioridade jurídica ou, a qualquer tempo, no caso de falecimento de ambos os pais.
§ 1º A prerrogativa garantida no caput poderá ser exercida, desde o nascimento, em
nome de criança que não possua em seu registro civil o reconhecimento de filiação
relativa a pessoa do mesmo sexo do doador ou da mãe substituta, situação em que
ficará resguardado à criança, ao doador e à mãe substituta o direito de obter esse
reconhecimento na forma da lei.
§ 2º No caso em que tenha sido utilizado gameta proveniente de indivíduo falecido
antes da fecundação, a criança não terá reconhecida a filiação relativa ao falecido.
§ 3º No caso de disputa judicial sobre a filiação da criança, será atribuída a
maternidade à mulher que deu à luz a criança, exceto quando esta tiver recorrido à
RA por ter ultrapassado a idade reprodutiva, caso em que a maternidade será
outorgada à doadora do óvulo.
§ 4º Ressalvado o disposto nos §§ 1º e 3º, não se aplica ao doador qualquer direito
assegurado aos pais na forma da lei.
SEÇÃO VII
DOS CRIMES
Artigo 13º - É crime:
I - praticar a RA sem estar previamente licenciado para a atividade;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
II - praticar RA sem obter o consentimento informado dos receptores e dos doadores
na forma determinada nesta Lei, bem como fazê-lo em desacordo com os termos
constantes do documento de consentimento assinado por eles;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
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III - envolver-se na prática de útero ou barriga de aluguel, na condição de usuário,
intermediário, receptor ou executor da técnica;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
IV - fornecer gametas ou embriões depositados apenas para armazenamento a
qualquer pessoa que não seja o próprio depositante, bem como empregar esses
gametas e embriões sem a autorização deste;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
V - intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das
permitidas nesta Lei;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
VI - deixar de manter as informações exigidas nesta Lei, na forma especificada, ou
recusar-se a fornecê-las nas situações previstas;
Pena: detenção, de seis meses a dois anos, e multa.
VII - utilizar gametas ou embriões de doadores ou depositantes sabidamente
falecidos;
Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa.
VIII - implantar mais de quatro embriões na mulher receptora;
Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa.
IX - realizar a pré-seleção sexual de gametas ou embriões, ressalvado o disposto
nesta Lei;
Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa.
X - conservar gametas ou embriões doados por período superior a dois anos ou
utilizar esses gametas e embriões;
Pena: detenção, de dois a seis meses, ou multa.
§ 1º No caso de gametas ou embriões depositados por casal, incide no crime
definido no inciso IV a pessoa que os fornecer a um dos membros do casal
isoladamente.
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§ 2º A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste artigo acarretará a
perda da licença do estabelecimento de reprodução assistida e do profissional
responsável, sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis.
SEÇÃO VIII
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Artigo 14º - O Poder Público editará os regulamentos necessários à efetividade da
Lei, inclusive as normas especificadoras dos requisitos para a execução de cada
técnica de RA, concederá a licença aos estabelecimentos e profissionais que
praticam a RA e fiscalizará a atuação de ambos.
Artigo 15º - Esta Lei entrará em vigor cento e oitenta dias após sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Reprodução Assistida (RA) é a tecnologia que importa na implantação
artificial de espermatozóides ou embriões humanos no aparelho reprodutor de
mulheres receptoras com a finalidade de facilitar a procriação.
Basicamente, as técnicas de RA pertencem a duas modalidades: aquelas em
que se introduz no aparelho reprodutor da mulher o esperma, genericamente
denominadas inseminação artificial (IA), e a fertilização in vitro (FIV), na qual o óvulo
e o esperma são juntados em um tubo de proveta e posteriormente se introduzem
alguns embriões no aparelho reprodutor da futura mãe.
A inseminação artificial subdivide-se em inseminação intrauterina (IIU), em
que o esperma é colocado no útero, transferência intrafalopiana de gametas (IFTG),
em que os espermatozóides são introduzidos nas trompas de falópio, e inseminação
intraperitoneal (IIP).
Na implementação dessas técnicas, pode-se utilizar sêmen e/ou óvulo
homólogo (pertecente ao marido ou à própria mulher, respectivamente) ou
heterólogo (doado por terceiros). Conforme a origem dos espermatozóides, portanto,
a IA pode ser classificada em inseminação artificial intra-conjugal (IAC) e
inseminação artificial com doador de esperma (IAD).
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Há também o caso da gestação ou maternidade de substituição, em que uma
mulher é contratada para dar à luz uma criança para outra mulher e que pode
ocorrer tanto por IA, caso em que o óvulo pertence à mulher contratada (que,
conseqüentemente, se torna a mãe genética e gestacional do bebê), quanto por FIV,
com óvulo e/ou sêmen do casal contratante ou de terceiros. Se o acordo envolver
retribuição financeira, o caso é conhecido por "útero de aluguel" ou "barriga de
aluguel". Senão, trata-se de uma "doação temporária de útero".
Diante de todas essas possibilidades, a grande questão surgida a partir do
desenvolvimento da RA diz respeito exatamente a suas conseqüências para o
estado de filiação da criança.
Verificam-se os malefícios da RA, de forma bastante clara, em situações tais
como o caso apresentado em artigo de revista, no qual uma menina de dois anos
veio a ser declarada "criança sem pais" por um juiz do Tribunal Superior de Justiça
da Califórnia.
Segundo o artigo, a garota, "fruto de um processo de fertilização artificial,
obtido a partir de espermatozóides e óvulos de doadores anônimos", foi "gestada por
uma mãe de aluguel", contratada por um casal no qual o homem apresentava baixa
contagem de espermatozóides e a mulher, por sofrer de endometriose, não
conseguia liberar os óvulos para fecundação e nem podia levar a termo uma
gestação. O texto informa que, um mês antes do nascimento da criança, o homem
decidiu separar-se da mulher e, para "livrar-se dos encargos com a pensão
alimentícia", "disse que nunca quis ter um filho dessa maneira e passou a repudiar
qualquer responsabilidade paterna". "A Justiça, em princípio, aceitou o argumento".
A mulher que desejou a criança foi autorizada a adotá-la, mas quer "obrigar o exmarido a cumprir o contrato assinado por ocasião da concepção artificial".
O resultado disso é um ser humano que, "como não tem nenhum vínculo
genético com o casal, nem com a mãe de aluguel", e descende de pais biológicos
anônimos, "existe numa espécie de vácuo". Sobre o caso, médico brasileiro ouvido
pela revista declarou que o casal deveria ter recorrido a uma adoção, em vez de se
utilizar desse arranjo "antinatural" firmado em contrato, uma vez que nenhum dos
dois envolvidos transmitiria seus genes ao bebê, nem a mulher poderia vivenciar a
gestação.
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Tudo bem que a situação acima descrita corresponda a um caso de utilização
da RA com final infeliz. Porém, mesmo em casos com final feliz, a conseqüência
normal do emprego dessa tecnologia é o surgimento de situações anômalas que, até
então, ou não poderiam ocorrer, ou, quando ocorriam, eram consideradas infortúnios
para os envolvidos. Referimo-nos aqui às situações de "criança sem pai" (em alguns
casos mais raros, "criança sem mãe), "criança com duas mães" e "criança com dois
pais".
O emprego da RA pode originar uma "criança sem pai" em dois casos:
quando o pai genético, do qual foi retirado esperma, morre antes da concepção ou
quando uma criança nasce na ausência legal de um pai, como, por exemplo, o filho
gerado como "produção independente" de uma mulher solteira fecundada com
esperma doado (mais raramente, tem-se observado a situação de "criança sem
mãe", quando dois homens contratam uma mulher para gerar uma criança que será
cuidada apenas por eles dois).
Em relação ao primeiro caso, situação similar pode acontecer por "meios
naturais"
quando
um
homem
morre
deixando
grávida
sua
esposa.
Um
acontecimento como esse - considerado, via de regra, uma tragédia para a criança
que nascerá postumamente - origina uma situação nunca desejada por qualquer
pessoa.
Já o segundo caso, até há pouco tempo considerado bastante desagradável
para a criança (o filho "bastardo" de mãe solteira que nascia rejeitado pelo pai),
deixou, em certos círculos da sociedade urbana ocidental, de representar um
acontecimento perturbador e passou até a ser desejado por algumas mulheres que
consideram o nascimento de uma criança um evento a ser reservado só para a mãe.
A "criança com duas mães" - verificada na gestação de substituição - possui
uma mãe genética (que doou seu óvulo para a obtenção do embrião in vitro) e uma
mãe gestacional (que recebeu o embrião em seu útero e deu à luz a criança). É
nessa modalidade que mais se evidencia a artificialidade das técnicas, pois tal
situação nunca ocorre por meios naturais.
A última situação refere-se à "criança com dois pais", que nasce quando um
homem infértil - pai legal - autoriza a inseminação artificial de sua mulher com
esperma de um doador - pai genético - , caso freqüente no universo de utilização da
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RA. Nesses casos, os interesses da criança relativos à filiação permanecem
parcialmente preservados, uma vez que ela tem como pais um casal legalmente
constituído.
Considerando a possibilidade de utilização da RA, chega-se então à seguinte
questão: é correta a criação deliberada dessas situações? A resposta a essa
pergunta só poderia ser afirmativa se viesse embasada na hipótese de que para
uma criança, ou para as crianças em geral, é melhor não ter um dos genitores ou ter
mais de um genitor do mesmo sexo, do que ter só um pai e uma mãe da forma como
ocorre naturalmente. É muito difícil tentar avaliar a correção dessa hipótese com
base em fatos objetivos ou experiências que não sejam somente individuais, ou com
base em postulados científicos (apesar de já haver evidências consistentes,
baseadas em pesquisas disponíveis, que contrariam a hipótese de que é melhor ter
somente mãe, por exemplo).
Porém, ainda que faltem esses postulados científicos ou constatações que
possam ser estendidas para toda uma sociedade, é possível proceder a uma análise
dos riscos a que se submetem as crianças nascidas com o emprego de RA.
Isso requer seja adotado o pressuposto de que nada do que o homem vem
considerando como progresso até hoje permanecerá obrigatoriamente aceitável no
futuro, sem uma avaliação concomitante sobre os riscos aos quais esse progresso
expõe a humanidade e sem o aperfeiçoamento dos instrumentos científicos e
tecnológicos idealizados para compensar totalmente esses danos.
Assim sendo, da mesma forma como ocorre com um levantamento de
impacto ambiental, se a avaliação relativa ao emprego da RA trouxer à luz a
possibilidade de sérios riscos para a criança - mesmo que esses riscos possam estar
acompanhados de possíveis vantagens - então deve-se recusar autorização ou
idealizar mecanismos para desencorajar o recurso à RA. Acreditamos ser preciso
fazer pelas crianças do futuro o que hoje já se faz a respeito de qualquer inovação
que se deseje implementar no ambiente: se existem sérios riscos, então as
mudanças não serão feitas, mesmo que algumas pessoas as creiam vantajosas.
Quem quer que se proponha a uma análise como essa, constata facilmente
que a técnica de maternidade dividida e o modelo do genitor de um único sexo
61
acarretam riscos sérios o bastante para invalidar essas modalidades perante uma
análise de impacto ambiental.
É, portanto, um ser humano como todas essas crianças, "sem genitor" ou
"com dois genitores" do mesmo sexo, o balizador das escolhas que precisaram ser
feitas no âmbito do projeto, definidas com o objetivo de tentar implementar a
proteção
que
a
criança
requer
em
cada
situação
específica.
Quanto aos instrumentos existentes para impedir ou desencorajar as pessoas a
recorrerem às práticas passíveis de trazer grandes riscos para a criança,
observamos preliminarmente que nenhum instrumento poderia impedir totalmente
essas práticas. Na cultura ocidental de hoje prevalece a assertiva da onipotência dos
desejos individuais. Entre esses desejos está o de ter um filho a qualquer custo e em
qualquer condição que o sujeito determine, sem que outra pessoa possa interferir. É
um desejo muito forte e tende a prevalecer sobre a lei e sobre o respeito à criança
que irá nascer.
Outra observação constatou que ameaças de natureza penal terão utilidade
restrita aos casos específicos em que os envolvidos venham a buscar na Justiça a
solução para seus conflitos. Essas ameaças dificilmente serão vistas com bons
olhos pela sociedade e provavelmente não irão ter o alcance necessário para
desencorajar o recurso às técnicas, uma vez que, como a RA oferece a
oportunidade para que usuários e médicos realizem seus desejos recíprocos de
procriar e permitir a procriação, o quadro provável é o estabelecimento de um pacto
de silêncio entre eles. Recomenda-se, portanto, definir também outros mecanismos
de dissuasão, sobretudo aqueles que vinculem efeitos de natureza civil, no âmbito
do Direito de Família, aos atos do cidadão. A idéia é produzir efeitos judiciais
diferentes daqueles que o sujeito estaria disposto a sofrer em decorrência de seu
comportamento.
Assim, foram propostos os seguintes dispositivos para restringir e
desencorajar, especificamente, cada uma das situações claramente indesejáveis
para a criança.
Em relação aos casos que envolvam o desejo de utilizar material biológico em geral esperma - de pessoas mortas para gerar uma criança, há que se distinguir
entre duas situações:
62
- a do homem que torna disponível seu esperma para permitir a uma mulher
(normalmente sua esposa) ter um filho seu mesmo após sua morte;
- a do doador anônimo que deposita seu esperma em um banco de sêmen e depois
morre.
No que se refere à segunda situação, determinou-se ao banco de sêmen que
não utilize gametas de um doador sabidamente morto. Porém, esse dispositivo não
é suficiente para garantir que o gameta a ser utilizado não seja o de uma pessoa
falecida, já que é impossível para o estabelecimento manter registro do que ocorre
com cada pessoa após a doação. Assim, estabeleceu-se também uma outra
coerção: proibir a conservação de esperma por tempo maior do que dois anos.
Já para evitar a primeira situação, o projeto proíbe o banco de gametas de
entregar o material depositado a qualquer pessoa que não seja o próprio
depositante. A regra decisiva, porém, é aquela que exclui a atribuição de
paternidade ao morto. É verdade que essa regra incrementa ainda mais o dano à
criança, uma vez que ela, além de nascer "sem pai", não poderá reclamar
descendência daquele que é seu pai biológico. Porém somente uma dissuasão
assim tão forte pode ser capaz de evitar o emprego dessa prática prejudicial aos
interesses das crianças do futuro.
Além disso, mesmo que se outorgasse, exclusivamente à criança e à partir de
uma idade mínima, o direito de obter o reconhecimento de sua filiação’, ainda assim
teriam de persistir excluídas tanto as conseqüências relativas aos bens - herança,
por exemplo - quanto à formalização de laços com os demais parentes do falecido.
De fato, essa é a interpretação de Álvaro Villaça Azevedo, jurista brasileiro, que
entende ficar o eventual nascituro excluído da herança, tanto por não poder competir
com os herdeiros de seu pai morto previamente a sua concepção, quanto por não
ser possível falar em retroação de efeitos, uma vez que eles não podem existir antes
da concepção.
Em relação à utilização de gameta de um doador anônimo para possibilitar o
nascimento de uma criança legalmente sem pai - ou, mais raramente, sem mãe - , o
projeto propõe um meio efetivo de dissuasão: possibilitar à criança que vier a nascer
que exerça o direito de exigir do doador o reconhecimento de paternidade, direito
esse que também deve ser estendido ao doador que queira reclamar a paternidade
63
da criança. Apesar da evidente dificuldade inerente a qualquer tentativa de rastrear e
encontrar os doadores, a mera possibilidade de isso vir a acontecer pode servir para
desencorajar as pessoas a recorrerem à prática.
Para se restringir a ocorrência de "dupla maternidade", em primeiro lugar
determinou-se que a utilização da RA só será permitida como tratamento para os
casos de infertilidade e para prevenção e tratamento de doenças genéticas ou
hereditárias, quando haja indicação precisa e com suficientes garantias de
diagnóstico e terapêutica. Com esse dispositivo, busca-se evitar a gravidez
artificialmente produzida em mulheres que ultrapassaram a idade reprodutiva ou o
recurso à prática do "útero de aluguel" por mulheres que não desejam, por qualquer
motivo, viver a experiência da gravidez e do parto.
A única exceção permitida de gestação de substituição ou doação temporária
do útero aplica-se aos casos em que exista um problema médico que impeça ou
contra-indique a gestação na doadora genética e desde que haja parentesco até o
segundo grau entre ela e a doadora temporária do útero (essa gestação não pode
ter qualquer fim comercial ou lucrativo).
Como a Constituição Federal proíbe o comércio de órgãos, tornou-se
obrigatório vedar o "útero de aluguel" (assim como o comércio de gametas e
embriões), ainda que se saiba, como dito anteriormente, que o dispositivo será
certamente desobedecido.
Porém, apesar de haver uma quase unanimidade mundial no sentido de
proibir o "útero ou barriga de aluguel", é preciso não se iludir de que ela possa ser
totalmente abolida. Isso é especialmente verdadeiro para o Brasil, onde a precária
situação sócio-econômica da maior parcela da população certamente propicia a
existência de mulheres dispostas a se oferecer para gerar filhos de outras mulheres
em troca de remuneração.
Em decorrência disso, foi necessário também estabelecer claramente quem
deve ficar com a criança em caso disputa. A legislação francesa optou por atribuir a
maternidade à mãe gestacional, enquanto a jurisprudência americana vem
consolidando a solução oposta. Este projeto, seguindo a linha francesa, determina
que a mãe será aquela que deu à luz a criança, exceto no caso de mulheres que
ultrapassaram a idade reprodutiva.
64
Dessa forma, ao mesmo tempo em que se determinou um mecanismo para
desencorajar mulheres, tanto as de meia-idade quanto aquelas que não sofram de
infertilidade, de recorrerem à RA pela vaidade de ter um filho fora da idade
reprodutiva ou de não se submeter aos efeitos indesejados de uma gravidez,
estabeleceu-se também a proteção para uma outra categoria: a mãe substituta.
Consideramos mais justo proteger as mulheres que se dispuserem a alugar seu
útero por dinheiro em detrimento das que se dispuserem a pagar por ele,
independentemente das sanções legais a que os dois grupos sejam submetidos por
desobedecerem à lei.
Pois bem, além de tentar desencorajar a utilização da RA para gerar
situações potencialmente danosas para a criança, o projeto cuidou também de tentar
resguardar seu direito à filiação.
Para resolver os questionamentos de filiação originados de situações em que
se utilizou a RA, alguns países optaram por determinar, em lei ou nas decisões
proferidas em juízo, a preponderância da paternidade artificial sobre a genética ou
biológica, o que, além de solucionar a situação, constituiu uma maneira de fomentar
a utilização e disseminação da RA.
Esse caminho, entretanto, gerou situação paradoxal, uma vez que se utilizam
dois pesos e duas medidas para as diferentes situações. No caso, por exemplo, de
casais que recorram à RA com a utilização de esperma de doador anônimo, atribuise a paternidade da criança ao homem do casal, ignorando-se o papel dos genes do
pai verdadeiro. Já no caso de "aluguel de útero" em que o óvulo provenha da mulher
contratante, atribui-se-lhe a maternidade da criança, priorizando o papel de seus
genes sobre a função exercida pela mulher geratriz.
Além dessa observação, faz-se necessária, neste ponto, uma breve menção
sobre os direitos da personalidade humana, especialmente o direito de filiação.
Sobre o assunto, reportamo-nos a Álvaro Villaça Azevedo:
O estado de filiação, como direito da personalidade, está vinculado à própria
natureza do homem, que, descendendo, ex iure sanquinis, existe, nesse estado,
desde sua concepção até sua morte, como um fato natural, independentemente de
lei, que há de respeitá-lo, por inserir-se no âmbito do Direito Natural.
65
Ora, o respeito à situação natural da paternidade, da maternidade e da
filiação é inerente ao Direito Natural, devendo preservar-se, como a própria
natureza, prevalecendo sobre situações artificiais, humani iuris.
Reafirme-se, portanto, que, quando se cuida de direitos da personalidade,
como o estado da pessoa, mormente o de filiação, a indispensabilidade dos
princípios de Direito Natural.
Dessa forma, o direito à filiação, que inclui o conhecimento da filiação
genética e biológica e se confunde com o direito à identidade, deveria ser respeitado
independentemente de estar disposto em lei, a qual não deveria nunca torná-lo
dispensável ou obstruir seu exercício.
Cabe enfatizar aqui - ainda que não seja necessário esse direito estar previsto
em lei para que seja protegido - o disposto nos artigos sete e oito da Convenção das
Nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, de 20 de novembro de 1989:
Artigo 7º
1. A criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito desde
o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do
possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles.
2. Os Estados Partes zelarão pela aplicação desses direitos de acordo com sua
legislação nacional e com as obrigações que tenham assumido em virtude dos
instrumentos internacionais pertinentes, sobretudo se, de outro modo, a criança se
tornaria (sic) apátrida.
Artigo 8º
1. Os Estados Partes se comprometem a respeitar o direito da criança de preservar
sua identidade, inclusive a nacionalidade, o nome e as relações familiares, de
acordo com a lei, sem interferências ilícitas.
2. Quando uma criança se vir privada ilegalmente de algum ou de todos os
elementos que configuram sua identidade, os Estados Partes deverão prestar
assistência e proteção adequadas com vistas a restabelecer rapidamente sua
identidade.
66
Assim sendo, todas as nações deveriam salvaguardar à criança gerada o
direito de ter uma filiação definida. Por esse motivo, e para evitar casos como o da
criança considerada "sem pais" narrado anteriormente, o projeto dispõe que a
criança nascida em decorrência do emprego de RA terá assegurados todos os
direitos garantidos aos filhos na forma da lei e determina que os pais, salvo nos
casos especificados, serão os usuários que tenham solicitado o emprego das
técnicas para gerar a criança.
Do mesmo modo, as nações deveriam resguardar o direito da criança de
conhecer sua filiação genética ou biológica. Por isso, estabelecemos, neste projeto o
direito de a criança conhecer a identidade de seus pais genéticos no momento em
que atinja a maioridade jurídica (esse direito também é garantido na Suécia), ou a
qualquer tempo, diante do falecimento de seus pais. Observe-se que o estabelecido
acima se estende a qualquer caso em que tenha ocorrido RA com o emprego de
gameta heterólogo, indiscriminadamente.
No caso de criança legalmente sem pai - ou, mais raramente, sem mãe - , o
projeto possibilita-lhe, além de conhecer a identidade do doador, exercer o direito de
exigir do doador o reconhecimento de paternidade, direito esse que também é
estendido ao doador que queira reclamar a paternidade da criança. Apesar da
evidente dificuldade inerente a qualquer tentativa de rastrear e encontrar os
doadores, a mera possibilidade de isso vir a acontecer pode servir para desencorajar
as pessoas a contribuírem para originar esse tipo de situação que não atende aos
interesses da criança.
Há que se ressaltar que, pela lei brasileira atual, em casos assim tanto a
criança - no papel de filho - , quanto o doador, - no de pai - , já têm o direito de "pedir
alimentos", consoante o Código Civil, em virtude de serem parentes consangüíneos.
Assinale-se também que esse dispositivo se coaduna com o princípio da
"paternidade responsável" erigido pela Constituição Federal de 1998 e corroborado
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que determinam que "os filhos, havidos
ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".
Espera-se, assim, que o projeto tenha o efeito de desencorajar a doação
inconseqüente e o emprego irresponsável de gametas humanos e, portanto, a
67
proliferação de casos que atentem contra o direito de filiação da criança e seu senso
de identidade.
O terceiro grupo para o qual se buscou instituir proteção legal é o dos
usuários das técnicas, que inclui todos os casais e mulheres que adquirem os
serviços e produtos - gametas e embriões - dos estabelecimentos e profissionais de
reprodução assistida. Essa proteção é requerida para se equilibrar essa relação
comercial que apresenta, em uma ponta, indivíduos dispostos a tudo para realizar
seu desejo de procriação, e, na outra, profissionais detentores unilaterais do
conhecimento médico e remunerados substancialmente por seus serviços. A
desigualdade dessa relação é agravada não só pelo envolvimento emocional dos
candidatos a pais, que podem por isso mesmo ser facilmente engendrados em
acertos indesejados, mas também pela pressão econômica exercida pela indústria
de tecnologia médico-farmacêutica, sempre pronta a patrocinar e incentivar as
atividades de seu interesse.
Em relação aos usuários das técnicas, o principal objetivo do projeto foi zelar
para que suas ações sejam tomadas de forma consciente, minimizando suas
possibilidades de serem engendrados em situações das quais possam vir a se
arrepender. Isso porque, além das conseqüências físicas para as mulheres e das
conseqüências jurídicas relacionadas à paternidade da criança - que o projeto busca
tornar vigentes - , existe ainda a questão da baixa efetividade das técnicas, contra
seu alto custo em termos financeiros, psicológicos e biológicos.
Os dados sobre a efetividade dos tratamentos apresentam taxas de sucesso
de 20 a 35%, quatro a sete vezes maior do que a taxa de 5% obtida no início dos
anos 80, mas ainda assim muito baixas, sobretudo ao se considerar o sofrimento
físico e psicológico por que passam os usuários das técnicas. Na FIV, a mulher é
submetida, em média, a quatro tentativas (uma por mês) até a gravidez. Se esta
nunca sobrevém e o casal não está adequadamente preparado, assiste-se a um
quadro de profunda depressão.
Assinale-se que a escolha dos principais objetos de proteção da lei da forma
acima explicitada orientou a redação dos demais dispositivos do projeto. Isso porque
a qualidade da lei que busque regular a RA depende não só das distintas opções
que se adotem diante das alternativas que se apresentam, mas também da
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coerência dessas opções (se o corpo de um projeto de lei apresentar escolhas feitas
sem a menor coerência entre si, limitando de um lado aquilo que permite de outro,
na prática, a lei originada não regulamentará nada).
Algumas das matérias abrangidas no projeto são bastante polêmicas, como a
destinação a ser dada aos embriões excedentes. As diferentes possibilidades doação para terceiros, doação para pesquisas, preservação ou descarte - esbarram
nas divergentes opiniões sobre o status existencial do embrião, opiniões que se
baseiam em critérios éticos, religiosos ou filosóficos de cada pessoa. Alguns autores
consideram que os embriões já são gente ou seres humanos em desenvolvimento, o
que inviabilizaria o descarte, a doação para pesquisa e mesmo a criopreservação.
Porém, conforme estatui magistrado membro da Associação Internacional de
Magistrados para Assuntos de Menores, Turim, Itália, em artigo, já citado, que
analisa as conseqüências da reprodução artificial sobre os direitos das crianças, as
questões levantadas em relação à RA costumam ser abordadas de vários pontos de
vista éticos ou religiosos. Isso, em sua opinião, não parece ser suficiente, pois ele
considera que o papel do legislador não é fazer lei com base naquilo que alguns
considerem estar de acordo com a vontade de Deus, nem no que a maioria dos
cidadãos considerem estar de acordo com seus próprios princípios éticos. Quando
as leis são feitas, elas devem também, e talvez principalmente, refletir o que parece
ser útil para a totalidade de uma certa sociedade humana ou mesmo para toda a
humanidade.
Seguindo a linha até aqui adotada de escolher as opções menos danosas
para as crianças do futuro, consideramos que o descarte dos embriões excedentes
implica menores riscos do que a doação para terceiros ou para pesquisas. Além
disso, como o projeto já propõe um tempo máximo de preservação permitido, não há
outra alternativa senão o descarte - a não ser que se pretenda proibir a criação de
embriões excedentes ou obrigar o emprego desses embriões na inseminação de
terceiros ou em pesquisas, alternativas de difícil regulamentação e fiscalização.
Outrossim, se proibíssemos a criação de embriões excedentes, estaríamos
prejudicando os usuários, uma vez que se limitariam suas oportunidades de se
submeterem novamente à técnica de RA, no caso de insucesso na primeira
tentativa.
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Não se pode esquecer, no entanto, que o Código Civil Brasileiro resguarda,
desde o momento da concepção, os direitos do nascituro. Por essa razão, o projeto
determina também que não se aplicam aos embriões fertilizados in vitro, antes de
sua introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos garantidos ao
nascituro na forma da lei.
Chamamos mais uma vez a atenção para o fato de que, ao escolher a linha
mestra de proteger a criança, este projeto fortalece o princípio da paternidade
responsável erigido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Não podemos nos esquecer, entretanto, que a tarefa de regulamentar a RA
corresponde, de certa forma, a plagiar o Criador no momento em que Ele concedeu
ao ser humano a capacidade de reproduzir-se espontânea e naturalmente. Assim,
diante de tal responsabilidade, conclamamos nossos Pares a aperfeiçoar este
projeto, com o intuito de buscarmos contribuir decisivamente para a qualidade de
vida das crianças do futuro.
Senador LÚCIO ALCANTARA
ANEXO C – PROJETO DE LEI N° 1.184 DE 2003
PROJETO DE LEI Nº 1184, DE 2003
Dispõe sobre a Reprodução Assistida.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
CAPÍTULO I
Dos Princípios Gerais
Artigo 1° - Esta Lei regulamenta o uso das técnicas de Reprodução Assistida (RA)
para a implantação artificial de gametas ou embriões humanos, fertilizados in vitro,
no organismo de mulheres receptoras.
Parágrafo Único. Para os efeitos desta Lei, atribui-se a denominação de:
70
I – embriões humanos: ao resultado da união in vitro de gametas, previamente à sua
implantação no organismo receptor, qualquer que seja o estágio de seu
desenvolvimento;
II – beneficiários: às mulheres ou aos casais que tenham solicitado o emprego da
Reprodução Assistida;
III – consentimento livre e esclarecido: ao ato pelo qual os beneficiários são
esclarecidos sobre a Reprodução Assistida e manifestam, em documento,
consentimento para a sua realização, conforme disposto no Capítulo II desta Lei.
Artigo 2° - A utilização das técnicas de Reprodução Assistida será permitida, na
forma autorizada nesta Lei e em seus regulamentos, nos casos em que se verifique
infertilidade e para a prevenção de doenças genéticas ligadas ao sexo, e desde que:
I – exista indicação médica para o emprego da Reprodução Assistida, consideradas
as demais possibilidades terapêuticas disponíveis, segundo o disposto em
regulamento;
II – a receptora da técnica seja uma mulher civilmente capaz, nos termos da lei, que
tenha solicitado o tratamento de maneira livre, consciente e informada, em
documento de consentimento livre e esclarecido, a ser elaborado conforme o
disposto no Capítulo II desta Lei;
III - a receptora da técnica seja apta, física e psicologicamente, após avaliação que
leve em conta sua idade e outros critérios estabelecidos em regulamento;
IV – o doador seja considerado apto física e mentalmente, por meio de exames
clínicos e complementares que se façam necessários.
Parágrafo único Caso não se diagnostique causa definida para a situação de
infertilidade, observar-se-á, antes da utilização da Reprodução Assistida, prazo
mínimo de espera, que será estabelecido em regulamento e levará em conta a idade
da mulher receptora.
Artigo 3° - É proibida a gestação de substituição.
CAPÍTULO II
Do Consentimento Livre e Esclarecido
71
Artigo 4° - O consentimento livre e esclarecido será obrigatório para ambos os
beneficiários, nos casos em que a beneficiária seja uma mulher casada ou em união
estável, vedada a manifestação da vontade por procurador, e será formalizado em
instrumento particular, que conterá necessariamente os seguintes esclarecimentos:
I – a indicação médica para o emprego de Reprodução Assistida, no caso
específico, com manifestação expressa dos beneficiários da falta de interesse na
adoção de criança ou adolescente;
II – os aspectos técnicos, as implicações médicas das diferentes fases das
modalidades de Reprodução Assistida disponíveis e os custos envolvidos em cada
uma delas;
III – os dados estatísticos referentes à efetividade dos resultados obtidos no serviço
de saúde onde se realizará o procedimento de Reprodução Assistida;
IV – os resultados estatísticos e probabilísticos acerca da incidência e prevalência
dos efeitos indesejados nas técnicas de Reprodução Assistida, em geral e no
serviço de saúde onde esta será realizada;
V – as implicações jurídicas da utilização de Reprodução Assistida;
VI – os procedimentos autorizados pelos beneficiários, inclusive o número de
embriões a serem produzidos, observado o limite disposto no art. 13 desta Lei;
VII – as condições em que o doador ou depositante autoriza a utilização de seus
gametas, inclusive postumamente;
VIII – demais requisitos estabelecidos em regulamento.
§ 1º O consentimento mencionado neste artigo será também exigido do doador e de
seu cônjuge ou da pessoa com quem viva em união estável e será firmado conforme
as normas regulamentadoras, as quais especificarão as informações mínimas que
lhes serão transmitidas.
§ 2º No caso do § 1º, as informações mencionadas devem incluir todas as
implicações decorrentes do ato de doar, inclusive a possibilidade de a identificação
do doador vir a ser conhecida.
CAPÍTULO IIII
72
Dos Serviços de Saúde e Profissionais
Artigo 5° - Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida são
responsáveis:
I – pela elaboração, em cada caso, de laudo com a indicação da necessidade e
oportunidade para o emprego da técnica de Reprodução Assistida;
II – pelo recebimento de doações e pelas fases de coleta, manuseio, controle de
doenças infecto-contagiosas, conservação, distribuição e transferência do material
biológico humano utilizado na Reprodução Assistida, vedando-se a transferência de
sêmen doado a fresco;
III – pelo registro de todas as informações relativas aos doadores e aos casos em
que foi utilizada a Reprodução Assistida, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos;
IV – pela obtenção do consentimento livre e esclarecido dos beneficiários de
Reprodução Assistida, doadores e respectivos cônjuges ou companheiros em união
estável, na forma definida no Capítulo II desta Lei;
V – pelos procedimentos médicos e laboratoriais executados;
VI – pela obtenção do Certificado de Qualidade em Biossegurança junto ao órgão
competente;
VII – pela obtenção de licença de funcionamento a ser expedida pelo órgão
competente da administração, definido em regulamento.
Parágrafo único. As responsabilidades estabelecidas neste artigo não excluem
outras, de caráter complementar, a serem estabelecidas em regulamento.
Artigo 6° - Para obter a licença de funcionamento, os serviços de saúde que
realizam Reprodução Assistida devem cumprir os seguintes requisitos mínimos:
I – funcionar sob a direção de um profissional médico, devidamente capacitado para
realizar
a
Reprodução
Assistida,
que
se
responsabilizará
por
todos
os
procedimentos médicos e laboratoriais executados;
II – dispor de equipes multiprofissionais, recursos técnicos e materiais compatíveis
com o nível de complexidade exigido pelo processo de Reprodução Assistida;
III – dispor de registro de todos os casos em que tenha sido empregada a
Reprodução Assistida, ocorra ou não gravidez, pelo prazo de 50 (cinqüenta) anos;
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IV – dispor de registro dos doadores e das provas diagnósticas realizadas, pelo
prazo de 50 (cinqüenta) anos após o emprego do material biológico;
V – encaminhar relatório semestral de suas atividades ao órgão competente definido
em regulamento.
§ 1º A licença mencionada no caput deste artigo será válida por até 3 (três) anos,
renovável ao término de cada período, desde que obtido ou mantido o Certificado de
Qualidade em Biossegurança, podendo ser revogada em virtude do descumprimento
de qualquer disposição desta Lei ou de seu regulamento.
§ 2º O registro citado no inciso III deste artigo deverá conter a identificação dos
beneficiários e doadores, as técnicas utilizadas, a pré-seleção sexual, quando
imprescindível, na forma do art. 15 desta Lei, a ocorrência ou não de gravidez, o
desenvolvimento das gestações, os nascimentos, as malformações de fetos ou
recém-nascidos e outros dados definidos em regulamento.
§ 3º Em relação aos doadores, o registro citado no inciso IV deste artigo deverá
conter a identidade civil, os dados clínicos de caráter geral, foto acompanhada das
características fenotípicas e uma amostra de material celular.
§ 4º As informações de que trata este artigo são consideradas sigilosas, salvo nos
casos especificados nesta Lei.
§ 5º No caso de encerramento das atividades, os serviços de saúde transferirão os
registros para o órgão competente do Poder Público, determinado no regulamento.
CAPÍTULO IV
Das Doações
Artigo 7° - Será permitida a doação de gametas, sob a responsabilidade dos
serviços de saúde que praticam a Reprodução Assistida, vedadas a remuneração e
a cobrança por esse material, a qualquer título.
§ 1º Não será permitida a doação quando houver risco de dano para a saúde do
doador, levando-se em consideração suas condições físicas e mentais.
§ 2º O doador de gameta é obrigado a declarar:
I – não haver doado gameta anteriormente;
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II – as doenças de que tem conhecimento ser portador, inclusive os antecedentes
familiares, no que diz respeito a doenças genético-hereditárias e outras.
§ 3º Poderá ser estabelecida idade limite para os doadores, com base em critérios
que busquem garantir a qualidade dos gametas doados, quando da regulamentação
desta Lei.
§ 4º Os gametas doados e não-utilizados serão mantidos congelados até que se dê
o êxito da gestação, após o quê proceder-se-á ao descarte dos mesmos, de forma a
garantir que o doador beneficiará apenas uma única receptora.
Artigo 8° - Os serviços de saúde que praticam a Reprodução Assistida estarão
obrigados a zelar pelo sigilo da doação, impedindo que doadores e beneficiários
venham a conhecer reciprocamente suas identidades, e pelo sigilo absoluto das
informações sobre a pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida.
Artigo 9° - O sigilo estabelecido no art. 8º poderá ser quebrado nos casos
autorizados nesta Lei, obrigando-se o serviço de saúde responsável pelo emprego
da Reprodução Assistida a fornecer as informações solicitadas, mantido o segredo
profissional e, quando possível, o anonimato.
§ 1º A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida terá acesso, a
qualquer tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde que
manifeste sua vontade, livre, consciente e esclarecida, a todas as informações sobre
o processo que o gerou, inclusive à identidade civil do doador, obrigando-se o
serviço de saúde responsável a fornecer as informações solicitadas, mantidos os
segredos profissional e de justiça.
§ 2º Quando razões médicas ou jurídicas indicarem ser necessário, para a vida ou a
saúde da pessoa gerada por processo de Reprodução Assistida, ou para oposição
de impedimento do casamento, obter informações genéticas relativas ao doador,
essas deverão ser fornecidas ao médico solicitante, que guardará o devido segredo
profissional, ou ao oficial do registro civil ou a quem presidir a celebração do
casamento, que notificará os nubentes e procederá na forma da legislação civil.
§ 3º No caso de motivação médica, autorizado no § 2º, resguardar-se-á a identidade
civil do doador mesmo que o médico venha a entrevistá-lo para obter maiores
informações sobre sua saúde.
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Artigo 10 - A escolha dos doadores será de responsabilidade do serviço de saúde
que pratica a Reprodução Assistida e deverá assegurar a compatibilidade
imunológica entre doador e receptor.
Artigo 11 - Não poderão ser doadores os dirigentes, funcionários e membros de
equipes, ou seus parentes até o quarto grau, de serviço de saúde no qual se realize
a Reprodução Assistida.
Parágrafo único. As pessoas absolutamente incapazes não poderão ser doadoras
de gametas.
Artigo 12 - O Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais fica obrigado
a comunicar ao órgão competente previsto no art. 5º, incisos VI e VII, até o dia 10 de
cada mês, o registro dos óbitos ocorridos no mês imediatamente anterior, devendo
da relação constar a filiação, a data e o local de nascimento da pessoa falecida.
§ 1º No caso de não haver sido registrado nenhum óbito, deverá o Titular do Cartório
de Registro Civil de Pessoas Naturais comunicar esse fato ao referido órgão no
prazo estipulado no caput deste artigo.
§ 2º A falta de comunicação na época própria, bem como o envio de informações
inexatas, sujeitará o Titular de Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais a multa
variável de R$ 636,17 (seiscentos e trinta e seis reais e dezessete centavos) a R$
63.617,35 (sessenta e três mil, seiscentos e dezessete reais e trinta e cinco
centavos), na forma do regulamento.
§ 3º A comunicação deverá ser feita por meio de formulários para cadastramento de
óbito, conforme modelo aprovado em regulamento.
§ 4º Deverão constar, além dos dados referentes à identificação do Cartório de
Registro Civil de Pessoas Naturais, pelo menos uma das seguintes informações
relativas à pessoa falecida:
I – número de inscrição do PIS/Pasep;
II – número de inscrição do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS, se
contribuinte individual, ou número de benefício previdenciário - NB, se a pessoa
falecida for titular de qualquer benefício pago pelo INSS;
III – número do CPF;
76
IV – número de registro de Carteira de Identidade e respectivo órgão emissor;
V – número do título de eleitor;
VI – número do registro de nascimento ou casamento, com informação do livro, da
folha e do termo;
VII – número e série da Carteira de Trabalho.
CAPÍTULO V
Dos Gametas e Embriões
Artigo 13 - Na execução da técnica de Reprodução Assistida, poderão ser
produzidos e transferidos até 2 (dois) embriões, respeitada a vontade da mulher
receptora, a cada ciclo reprodutivo.
§ 1º Serão obrigatoriamente transferidos a fresco todos os embriões obtidos,
obedecido ao critério definido no caput deste artigo.
§ 2º Os embriões originados in vitro, anteriormente à sua implantação no organismo
da receptora, não são dotados de personalidade civil.
§ 3º Os beneficiários são juridicamente responsáveis pela tutela do embrião e seu
ulterior desenvolvimento no organismo receptor.
§ 4º São facultadas a pesquisa e experimentação com embriões transferidos e
espontaneamente
abortados,
desde
que
haja
autorização
expressa
dos
beneficiários.
§ 5º O tempo máximo de desenvolvimento de embriões in vitro será definido em
regulamento.
Artigo 14 - Os serviços de saúde são autorizados a preservar gametas humanos,
doados ou depositados apenas para armazenamento, pelos métodos e prazos
definidos em regulamento.
§ 1º Os gametas depositados apenas para armazenamento serão entregues
somente à pessoa depositante, não podendo ser destruídos sem sua autorização.
§ 2º É obrigatório o descarte de gametas:
I – quando solicitado pelo depositante;
77
II – quando houver previsão no documento de consentimento livre e esclarecido;
III – nos casos de falecimento do depositante, salvo se houver manifestação de sua
vontade, expressa em documento de consentimento livre e esclarecido ou em
testamento, permitindo a utilização póstuma de seus gametas.
Artigo 15 - A pré-seleção sexual será permitida nas situações clínicas que
apresentarem risco genético de doenças relacionadas ao sexo, conforme se
dispuser em regulamento.
CAPÍTULO VI
Da Filiação da Criança
Artigo 16 - Será atribuída aos beneficiários a condição de paternidade plena da
criança nascida mediante o emprego de técnica de Reprodução Assistida.
§ 1º - A morte dos
beneficiários
não
restabelece o poder parental dos pais
biológicos.
§ 2º - A pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida e o doador terão
acesso aos registros do serviço de saúde, a qualquer tempo, para obter informações
para transplante de órgãos ou tecidos, garantido o segredo profissional e, sempre
que possível, o anonimato.
§ 3º - O acesso mencionado no § 2º estender-se-á até os parentes de 2º grau do
doador e da pessoa nascida por processo de Reprodução Assistida.
Artigo 17 - O doador e seus parentes biológicos não terão qualquer espécie de
direito ou vínculo, quanto à paternidade ou maternidade, em relação à pessoa
nascida a partir do emprego das técnicas de Reprodução Assistida, salvo os
impedimentos matrimoniais elencados na legislação civil.
Artigo 18 - Os serviços de saúde que realizam a Reprodução Assistida sujeitam-se,
sem prejuízo das competências de órgão da administração definido em regulamento,
à fiscalização do Ministério Público, com o objetivo de resguardar a saúde e a
integridade física das pessoas envolvidas, aplicando-se, no que couber, as
disposições da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente).
78
CAPÍTULO VII
Das Infrações e Penalidades
Artigo 19 - Constituem crimes:
I – praticar a Reprodução Assistida sem estar habilitado para a atividade:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
II – praticar a Reprodução Assistida sem obter o consentimento livre e esclarecido
dos beneficiários e dos doadores na forma determinada nesta Lei ou em desacordo
com os termos constantes do documento de consentimento por eles assinado:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa;
III – participar do procedimento de gestação de substituição, na condição de
beneficiário, intermediário ou executor da técnica:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IV – fornecer gametas depositados apenas para armazenamento a qualquer pessoa
que não o próprio depositante, ou empregar esses gametas sem sua prévia
autorização:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
V – deixar de manter as informações exigidas na forma especificada, não as
fornecer nas situações previstas ou divulgá-las a outrem nos casos não autorizados,
consoante as determinações desta Lei:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
VI – utilizar gametas de doadores ou depositantes sabidamente falecidos, salvo na
hipótese em que tenha sido autorizada, em documento de consentimento livre e
esclarecido, ou em testamento, a utilização póstuma de seus gametas:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
VII – implantar mais de 2 (dois) embriões na mulher receptora:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
79
VIII – realizar a pré-seleção sexual de gametas ou embriões, ressalvado o disposto
nesta Lei:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IX – produzir embriões além da quantidade permitida:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
X – armazenar ou ceder embriões, ressalvados os casos em que a implantação seja
contra-indicada:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XI – deixar o médico de implantar na mulher receptora os embriões produzidos,
exceto no caso de contra-indicação médica:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XII – descartar embrião antes da implantação no organismo receptor:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
XIII – utilizar gameta:
a) doado por dirigente, funcionário ou membro de equipe do serviço de saúde em
que se realize a Reprodução Assistida, ou seus parentes até o quarto grau;
b) de pessoa incapaz;
c) de que tem ciência ser de um mesmo doador, para mais de um beneficiário;
d) sem que tenham sido os beneficiários ou doadores submetidos ao controle de
doenças infecto-contagiosas e a outros exames complementares:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.
Parágrafo único. Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, o juiz considerará a
natureza e a gravidade do delito e a periculosidade do agente.
Artigo 20 - Constituem crimes:
I – intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das
permitidas nesta Lei:
Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa;
80
II – utilizar o médico do próprio gameta para realizar a Reprodução Assistida, exceto
na qualidade de beneficiário:
Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa;
III – omitir o doador dados ou fornecimento de informação falsa ou incorreta sobre
qualquer aspecto relacionado ao ato de doar:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa;
IV – praticar o médico redução embrionária, com consentimento, após a implantação
no organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a
mulher:
Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos;
V – praticar o médico redução embrionária, sem consentimento, após a implantação
no organismo da receptora, salvo nos casos em que houver risco de vida para a
mulher:
Pena – reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Parágrafo único. As penas cominadas nos incisos IV e V deste artigo são
aumentadas de 1/3 (um terço), se, em conseqüência do procedimento redutor, a
receptora sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, pela mesma
causa, lhe sobrevém a morte.
Artigo 21 - A prática de qualquer uma das condutas arroladas neste Capítulo
acarretará a perda da licença do estabelecimento de Reprodução Assistida, sem
prejuízo das demais sanções legais cabíveis.
CAPÍTULO VIII
Das Disposições Finais
Artigo 22 - Os embriões conservados até a data de entrada em vigor desta Lei
poderão ser doados exclusivamente para fins reprodutivos, com o consentimento
prévio dos primeiros beneficiários, respeitados os dispositivos do Capítulo IV.
Parágrafo único. Presume-se autorizada a doação se, no prazo de 60 (sessenta)
dias, os primeiros beneficiários não se manifestarem em contrário.
81
Artigo 23 - O Poder Público promoverá campanhas de incentivo à utilização, por
pessoas inférteis ou não, dos embriões preservados e armazenados até a data de
publicação desta Lei, preferencialmente ao seu descarte.
Artigo 24 - O Poder Público organizará um cadastro nacional de informações sobre a
prática da Reprodução Assistida em todo o território, com a finalidade de organizar
estatísticas e tornar disponíveis os dados sobre o quantitativo dos procedimentos
realizados, a incidência e prevalência dos efeitos indesejados e demais
complicações, os serviços de saúde e os profissionais que a realizam e demais
informações consideradas apropriadas, segundo se dispuser em regulamento.
Artigo 25 - A Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995, passa a vigorar acrescida do
seguinte art. 8º-A:
“Art. 8º-A. São vedados, na atividade com humanos, os experimentos de clonagem
radical através de qualquer técnica de genetecnologia.”
Artigo 26 - O art. 13 da Lei nº 8.974, de 1995, passa a vigorar acrescido do seguinte
inciso IV, renumerando-se os demais:
“Art. 13... IV – realizar experimentos de clonagem humana radical através de
qualquer técnica de genetecnologia;...” (NR)
Artigo 27 - Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias a partir da data de sua
publicação.
Senador José Sarney
Presidente do Senado Federal
ANEXO D – PROJETO DE LEI N° 120 DE 2003
PROJETO DE LEI Nº 120, DE 2003
Autor: Deputado Roberto Pessoa
Dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de
reprodução assistida.
82
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Artigo 1° - Esta Lei trata da investigação de paternidade de pessoas nascidas de
técnicas de reprodução assistida.
Artigo 2° - A Lei 8560, de 29 de dezembro de 1992 passa a vigorar com o acréscimo
do seguinte Art. 6º A:
“Art. 6º A - A pessoa nascida de técnicas de reprodução assistida tem o direito de
saber a identidade de seu pai ou mãe biológicos, a ser fornecido na ação de
investigação de paternidade ou maternidade pelo profissional médico que assistiu a
reprodução ou, se for o caso, de quem detenha seus arquivos.
Parágrafo único A maternidade ou paternidade biológica resultante de doação de
gametas não gera direitos sucessórios.”
Artigo 3° - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICATIVA
As técnicas de fertilização assistida se sofisticam a cada dia, e tal matéria não tem
sido objeto de preocupação do legislador pátrio. Embora as discussões sobre o tema
já estejam bem avançadas na área médica, sempre sob a óptica da bioética, os
juristas ainda não se debruçaram realmente sobre um tema que, potencialmente,
poderá gerar inúmeros conflitos no futuro.
Teria o nascido da doação de gametas alguma relação civil com sua família
biológica? Poderia usar o nome de seus genitores biológicos? Teria direito à
herança? E nesse caso, como ficaria sua relação com a família da mãe que o
carregou no útero e o criou? Poderia a pessoa nascida dessas técnicas ter
duplicidade de direito ao nome de cada família? Teria que optar? Em que ocasião?
Haveria algum direito civil do ovo congelado em laboratório, como se nascituro
fosse?
Todas essas questões e muitas outras permanecem sem resposta. Este
Projeto não visa solucionar todas essas questões, mas se debruça sobre um tema
83
que é essencial para a solução de todas as outras: a garantia de que a pessoa
nascida de técnicas de fertilização assistida tem direito de conhecer seus pais
biológicos. Tal tema não pode estar acobertado pelo direito à privacidade, uma vez
que gera outra pessoa, e não há como se optar por quem tem mais direitos: se o
filho gerado ou o pai biológico.
Por ser uma proposição que, acreditamos, seja um marco na tentativa de
legislar sobre tão importante matéria, pedimos aos Nobres Pares a aprovação deste
Projeto.
Sala das Sessões, em 2003
Deputado Roberto Pessoa
ANEXO E – PROJETO DE LEI N° 4.686 DE 2004
PROJETO DE LEI Nº 4686, DE 2004
Autor: Deputado José Carlos Araújo
Introduz art. 1.597-A à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código
Civil, assegurando o direito ao conhecimento da origem genética do ser gerado a
partir de reprodução assistida, disciplina a sucessão e o vínculo parental, nas
condições que menciona.
O CONGRESSO NACIONAL decreta:
Artigo 1º - Esta lei acrescenta artigo 1597-A ao Capítulo II, do Subtítulo II, do Livro
IV, do Código Civil, de forma a assegurar o direito ao conhecimento da origem
genética ao ser humano gerado por técnicas de reprodução assistida (RA) e define o
direito sucessório e o vínculo parental, nas condições que menciona.
Artigo 2º - A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, passa a vigorar acrescida do
seguinte art. 1597-A:
“Art. 1597- A. As instituições de saúde, detentoras de licença de funcionamento
concedidas na forma da lei, que realizarem Reprodução Assistida, e os profissionais
responsáveis pela execução dos procedimentos médicos e laboratoriais pertinentes,
84
estarão obrigadas a manter em arquivo sigiloso, e zelar pela sua manutenção, todas
as informações relativas ao processo, às identidades do doador e da pessoa nascida
por processo de inseminação artificial heteróloga, de que trata o inciso V, do artigo
anterior.
§ 1º. À pessoa nascida pelo processo a que alude este artigo é assegurado o
acesso, a qualquer tempo, diretamente ou por meio de representante legal, e desde
que manifeste sua vontade, livre e consciente, a todas as informações sobre o
processo que a gerou, inclusive a identidade civil do doador e mãe biológica,
obrigando-se o serviço de saúde responsável a fornecer as informações solicitadas,
mantidos os segredos profissionais e de justiça.
§ 2º A maternidade ou paternidade biológica resultante de processo de reprodução
assistida heteróloga não gera direitos sucessórios.
§ 3º O conhecimento da verdade biológica impõe a aplicação dos artigos 1521,
1596, 1626, 1628 (segunda parte) deste Código.”
Artigo 3º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICAÇÃO
Os progressos da engenharia genética revolucionaram o Direito de Família,
sobretudo no que concerne às questões da paternidade e maternidade. Diante desta
realidade, demonstra-se de forma contundente que não se pode ignorar o avanço da
pesquisa científica a possibilitar as várias formas de reprodução humana. As
profundas mudanças sociais que estas técnicas produzem geram efeitos pessoais,
jurídicos, morais, éticos e psicológicos no indivíduo e nas relações familiares.
Nesse sentido, o conhecimento da verdade biológica a respeito da origem do
indivíduo gerado nestas condições mostra-se imprescindível, já que com o avanço
inconteste da Engenharia Genética é possível saber com segurança a identidade
genética do ser humano. Entendemos, deste modo, que não deve ser negada a
revelação da origem genética aos indivíduos concebidos pelas técnicas de
reprodução humana.
85
Busca-se, com tal direito, a compreensão das características físicas,
psíquicas e comportamentais, até então desconhecidas, permitindo ao ser
concebido nessas condições conviver com o imenso amor que os fez filhos afetivos
e definitivos de quem desejou o seu nascimento, superando suas próprias
limitações, preconceitos e resistência do grupo social.. Entendemos que a
possibilidade de o ser conviver com a verdade decorrente do conhecimento de sua
origem genética representa uma forma de proteção muito mais digna do que uma
existência fundada na mentira ou negação da verdade, suscetível de produzir lesão
ao indivíduo.
A Constituição Federal estabelece que constitui objetivo fundamental da
República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, ( artigo
3º, inciso IV) e também, no seu artigo 5º, inciso XLI, assegura que a lei punirá
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais. Assim,
em consonância com este princípio tais informações genéticas devem ser
transmitidas ao ser concebido quando este tiver maturidade suficiente para entender
tal situação, e também quando tiver condições para suportar psicologicamente a
realidade ou quando isto se fizer necessário para preservação de sua saúde e
integridade física. Esse direito, também, pode ser conveniente se o filho vier a sofrer
alguma enfermidade vinculada a herança genética, ou então, queira prevenir tais
doenças.
É importante também esclarecer que o conhecimento da identidade biológica,
embora de suma importância, não poderá estabelecer nenhum vínculo parental
entre o ser concebido e a pessoa do doador. Tal possibilidade poderá ainda
contribuir para a aplicação do artigo 1521, inciso I, II, III, IV e V do Código Civil, que
dispõem sobre os impedimentos matrimoniais
Da mesma forma, também não poderá, nestas condições, haver casamento
entre o doador de gametas e filhos de seu próprio matrimônio ou em virtude de
doações, a fim resguardar a eugenia das raças e da coletividade
A procriação assistida heteróloga confere aos pais civis a autoridade parental
do filho. E como titulares deste direito, os pais terão os deveres de assistir material e
86
moralmente os filhos menores na criação e educação, conforme artigos 1630 e
seguintes do Código Civil, eo 229 da Constituição Federal.
Além disso, os indivíduos concebidos por técnica de reprodução assistida
heteróloga não poderão ter direito a alimentos em relação aos seus pais biológicos
mesmo sabendo quem são, pois para o direito pátrio seus pais civis são quem
possuem o pátrio poder e o vínculo paterno- filial. Ou seja, entre pais e filhos não
deverá haver nenhum vínculo, nem paternal, nem patrimonial, bem como direito
sucessório entre a pessoa concebida por técnica medicamente assistida heteróloga
e o doador de gametas. O conhecimento da origem genética não modifica em nada
as relações jurídico-familiares que tal indivíduo possui com seus pais e sua família
afetiva.
Enfim, negando-se a origem genética, nega-se a dignidade ao filho concebido
por técnica medicamente assistida, confrontando assim a nossa Carta Magna, já que
o respeito à pessoa humana é fundamento do Estado Democrático de Direito,
instaurado como princípio constitucional no artigo 1º, inciso III da Constituição
Federal.
Em suma, a pessoa tem o direito de saber quem são seus pais biológicos,
mesmo que não venha a ter nenhuma relação paterno-filial com os mesmos.
É com esse objetivo que submeto à consideração dessa Casa o presente
Projeto de Lei, esperando assim estar contribuindo para o aperfeiçoamento do
ordenamento jurídico brasileiro.
Sala das Sessões, em 15 de dezembro de 2004.
Deputado José Carlos Araújo
Deputado Federal

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