Em Defesa do Gueto

Transcrição

Em Defesa do Gueto
Edward MacRae
Em guetos, mas bem visíveis
Tem chamado a atenção nas arcas centrais da cidade c nos pontos boémios
paulistanos uma certa explosão de comportamento homossexual. A qualquer
hora, à noite especialmente, podem-se
ver pessoas do mesmo sexo, geralmente
homens, andando abraçados, às Vezes de
mãos dadas, às vezes se beijando como
forma de saudação, beijos esses não raro
dados na boca.
Este comportamento, anteriormente
inconcebível em público, está começando a ter respaldo em várias esferas da
sociedade. ] verdade que vem ocorrendo de modo mais marcante no mundo
ABRIL
do comdreìo ee dos serviços, onde o mercado homossexual desponta como um
novo filio a prometer bons lucros. Não
é novidade a exploração comercial do
homossexual. flá várias décadas já existiam bares c boates com uma Ireqüência
marcadamente homossexual. Eram situados especialmente na área central, ern
torno da avenida Ipiranga em São Paulo,
na Cinelândia e na Lapa do Rio. Também não são de agora, no Rio especialmente, bailes carnavalescos como odo
Cine São José ou da gafieira Elite, onde
homossexuais, normalmente masculinos,
podem ter um espaço para se travestir,
dançar e até " tirar uns amassos".
Durante a década de 60, foram aber-
DE
1983
53
Ousando falar
sobre o até
então
impublicável
tas em São Paulo algumas boates declaradamente destinadas a uma clientela
homossexual de classe média, que procurava locais de encontro onde houvesse
maior segurança contra ataques policiais
ou de bandidos. De lá para cá, cresceu
o número de casas noturnas. Mas foi
nos últimos anos, especialmente depois
da abertura política, que surgiu uma enxurrada de estabelecimentos diretamente
voltados para o mercado gay - bares,
boates, discotecas, saunas. Hoje existem
em São Paulo e no Rio algumas saunas
gay que não deixam nada a dever às
suas congêneres de Nova York ou São
Francisco. Dotadas de todas as comodidades costumeiras nas melhores casas de
banho, elas contam também com salas
de repouso individuais ou grupais, projetadas para permitir o máximo de conforto aos fregueses que queiram ter relações sexuais , seja em casais ou em grupo.
Saunas onde havia "caçação" e ocorriam atos sexuais já existiam há tempos.
Mas nesses lugares o sexo era uma coisa
apressada e furtiva: geralmente havia alguma forma de repressão exercida pela
casa , com maior ou menor rigor. A novidade nos estabelecimentos que agora
estão surgindo está no fato de serem
concebidos e claramente dirigidos a uma
freguesia homossexual e encorajarem a
atividade sexual; por exemplo, com a
exibição de video-tapes pornô-homossexuais na sala de repouso coletivo. Também nas discotecas gay, onde há algum
tempo já se permitia que casais do mesmo sexo dançassem juntos, beijos eram
proibidos; aos poucos foi ocorrendo uma
liberalização e agora é comum ver pares homossexuais, especialmente homens,
trocando beijos cinematográficos.
Embora não se possa falar em uma
revolução na forma como é desempenhado o papel do homossexual nas grandes metrópoles brasileiras, mudanças há.
Se elas tomaram ímpeto maior a partir
da "abertura", suas raízes começaram a
se formar na confluência das décadas de
50 e 60, quando surgiram os primeiros
shows de travestis, e quando certas casas
noturnas como o João Sebastião Bar, em
São Paulo, começaram a ser conhecidas
como lugares "exóticos", "cheios de artistas". Cantores como Caubi Peixoto e
Araci de Almeida, embora às vezes mantivessem uma fachada heterossexual,
eram conhecidos como sendo homossexuais. "Caubi" chegou a virar um termo
usado como insulto.
Talvez tenha sido no começo da dé54
NOVOS
cada de 70, com a volta da Europa de
Caetano Veloso e a nova ênfase que os
antigos tropicalistas passaram a dar à
androginia, que o comportamento homossexual começou a sair dos recintos
fechados para se tornar público. Surgiram depois os Dzi Croquetes e o conjunto Secos e Molhados, com o cantor
Ney Matogrosso, borrando as linhas demarcatórias entre os sexos. Somem-se a
isso notícias vindas da Europa e dos Estados Unidos falando sobre a "revolução
gay" que estaria acontecendo nesses lugares. Em fevereiro de 1976, começou
a sair na Última Hora de São Paulo uma
coluna editada por Celso Curi, a "Coluna
do Meio", com informações, fofocas e
piadas sobre o mundo gay, além de um
"correio elegante". Isto mais tarde seria
motivo de um processo contra o jornalista, acusado de "ofender a moral e os
bons costumes". Quando Celso Curi finalmente ganhou a causa, já fora demitido do jornal.
O grande marco mesmo foi o aparecimento do jornal Lampião, cujo número
experimental circulou pela primeira vez
em abril de 1978. Durou três anos, com
tiragens mensais de 12 a 15 000 exemplares. Embora não fosse a primeira publicação a se dirigir diretamente ao público homossexual, foi a primeira tentativa bem sucedida de fazer um jornal
com reflexões sobre o estilo de vida homossexual que fossem além da superfície
sem, contudo, cair numa sisudez atípica
do público a que se dirigia. Originalmente se propunha ser mais do que um jornal gay, tentando levantar discussões
também sobre a condição dos negros,
dos índios e das mulheres, e sobre ecologia. Mas, voltado desde o início predominantemente para os interesses dos
homossexuais masculinos, passou a se
dirigir cada vez mais a este grupo. Pouco
antes de deixar de circular, em meados
de 1981, publicava pacotes de reportagens sobre um mesmo tema como travestis, michês, masturbação, hotéis de
"pegação" etc. Ousando falar sobre o
até então impublicável, como a série de
artigos onde a masturbação era altamente elogiada como fonte de prazer, o jornal ajudou a ampliar as fronteiras da
discussão na imprensa.
Existiam críticas a ele, é claro. Uma
das mais constantes era que o jornal propagava demasiadamente a imagem da
"bicha folclórica", cujos principais interesses seriam sexo, plumas e paetês. Demasiadamente voltado ao homossexual
ESTUDOS
N.'
1
que freqüenta o gueto, o Lampião estaria esquecendo a enorme parcela que prefere um modo de vida mais discreto,
sério, menos visível. Apesar das críticas,
o Lampião, mais que qualquer outro órgão da imprensa, abriu e sustentou a
discussão sobre o homossexualismo e
teve importância ao difundir a idéia de
militância política homossexual.
Hoje existem várias revistas voltadas
para o mercado gay, de qualidade bastante inferior ao Lampião e de conteúdo
basicamente pornográfico. Visando principalmente ao lucro, trazem artigos bastante superficiais, muito embora seu conteúdo anti-repressivo acabe questionando
vários tabus e proporcionando informações sobre o corpo humano e sobre temas médicos ligados à sexualidade.
Talvez o símbolo máximo da exploração do mercado homossexual seja o baile
"Gala Gay" da terça-feira de carnaval,
promovido por Guilherme Araújo no
Canecão do Rio de janeiro, que tem contado com milhares de participantes não
obstante o alto custo do ingresso. Não
só o homossexual virou mercado, como
também virou mercadoria. De diversos
modos sua imagem é vendida ao grande
público. Um exemplo? A edição especial
da revista Fatos e Fotos-Gente, de março de 1982, totalmente dedicada a fotos
de travestis e com ampla cobertura do
baile "Gala Gay".
No mundo musical alguns artistas, ao
invés de esconderem suas preferências
sexuais, como faziam antigamente seus
colegas homossexuais, agora constroem
seus espetáculos em torno de sua sexualidade. Ãngela RoRo, por exemplo, passa grande parte de seus shows falando
de seus amores lésbicos, tema de boa
parte de suas composições. Ney Matogrosso consegue efeitos extraordinários
com sua voz em falsete, e seus melhores
achados cênicos são construídos em torno de uma ambigüidade sexual realçada
por maquilagem, roupas e dança. Caetano Veloso, embora não se declare homossexual, também deve ser lembrado
aqui: no princípio da década de 70 já
aparecia em cena maquilado e usando
roupas femininas.
Na televisão o assunto começa a ser
abordado em novelas, filmes, conselhos
de moda e quadros humorísticos. No
teatro, desde há algum tempo a programação de São Paulo e Rio contava regularmente com várias peças abordando o
assunto de uma forma ou outra. O que
está mudando não é apenas a quantidade
ABRIL
de espetáculos em cartaz ao mesmo tempo a tratar do assunto (recentemente havia cinco no Rio e três em São Paulo),
como também a forma de encenação,
que inclui cenas de nudez, beijos na boca
e até coito anal simulado.
Um dos aspectos mais interessantes
desta aparição do homossexualismo em
público é a vertente que o trata como
postura política. Neste caso, o Lampião
teve um papel pioneiro, no qual foi quase simultaneamente acompanhado po,
um grupo de homens em São Paulo,
dando origem mais tarde ao Grupo Somos/SP. Hoje em dia há grupos em várias cidades do Brasil. Como todos são
autônomos, é bastante difícil caracterizar
seus traços gerais, mas pode-se dizer que,
grosso modo, elegeram o machismo e a
sociedade patriarcal como alvo de seus
ataques. Estes grupos geralmente têm
como preocupação provocar mudanças
na atitude repressora da sociedade, mas
a atuação em que - a meu ver - acabam sendo mais bem sucedidos consiste
em reuniões de reflexão em que são debatidos temas trazidos pelo relato das
histórias de vida de seus integrantes.
A atuação externa destes grupos tem
um efeito propagandístico especialmente
importante. Dada a propensão da mídia
a explorar o filão homossexual, suas manifestações recebem cobertura e são bastante discutidas. Haja vista a passeata de
protesto organizada contra a "Operação
Rondão" do delegado Richetti da Seccional Centro de São Paulo. Na virada
de 1979 a 1980, as áreas que formam o
gueto homossexual de São Paulo passaram a gozar de uma liberdade sem precedentes. Nestes lugares, o beijo entre
homens, o segurar de mãos, o exibicionismo dos travestis tornaram-se rotineiros, chegando a um ponto intolerável
para certos setores da sociedade. O Estado de São Paulo publicou uma série
de artigos extremamente violentos, atacando os travestis. Pouco depois, começava a "Operação Rondão". Durante semanas as áreas mais freqüentadas pelos
homossexuais paulistanos foram sistematicamente atacadas pela policia, conseguindo afastar das ruas quase toda manifestação de comportamento homossexual. Alegando estar à procura de bandidos foragidos, a policia prendia toda
pessoa que estivesse sem carteira de trabalho assinada. Além de ser uma forma
de ação muito ineficiente (em um fim
de semana, por exemplo, foram presas
mais de quinhentas pessoas das quais
DE
O homossexualismo
como postura
política
1983
55
EM DEFESA DO GUETO
Levantam-se um
pouco os véus
de mistério e
maldição
nem dez eram procuradas), a operação
foi muito violenta; atemorizou não apenas os homossexuais, mas também outros freqüentadores noturnos do centro
da cidade - prostitutas, negros, estudantes, artistas, desempregados, etc. Em
protesto contra tais arbitrariedades, grupos homossexuais aliados às feministas
e ao Movimento Negro Unificado organizaram uma passeata que contou com
quase mil participantes. Aliás, grupos homossexuais também têm participado de
passeatas e atos públicos organizados
pelas feministas e pelos negros. Alguns
entendem que o movimento mais próximo a eles é o feminista. Especialmente
depois que as lésbicas começaram a se
colocar como lésbicas feministas e a conquistar espaço entre as organizações de
mulheres, os homossexuais passaram a
ter interesse crescente por este movimento e a participar de suas atividades.
Também em nível político-partidário a
questão está sendo debatida e, este ano,
alguns candidatos a vereador e a deputado, tanto no PMDB quanto no PT,
incluíram em suas plataformas reivindicações dos grupos homosexuais. A principal delas é a exigência da abolição do
código 302.0 do INPS, que rotula o
homossexualismo como "desvio sexual".
Com todos esses fatores em operação,
hoje se divulga muito mais informação
sobre homossexualismo do que alguns
anos atrás. Vão se levantando um pouco
os véus de mistério e maldição que envolviam o assunto. A própria palavra
gay, originalmente restrita aos meios homossexuais dos países de língua inglesa,
é agora conhecida de todos e usada como
expressão muito menos carregada negativamente; sem as conotações de seriedade o termo "homossexual", tem se
prestado otimamente à comercialização:
a origem anglo-saxônica empresta-lhe um
glamour de coisa de país desenvolvido.
Auto-imagem positiva
Aos poucos, cresce o número de pessoas que assumem a identidade homossexual, dando coragem a outros de fazer
o mesmo. O aumento do número de
homossexuais visíveis tem levado a população como um todo a dar mais atenção ao fenômeno e tem promovido a
idéia de que podem existir diversas orientações sexuais, todas válidas. Apesar
de os grupos homossexuais dizerem não
desejá-la, parece haver uma tendência à
integração na sociedade. Afinal, talvez a
56
NOVOS
sociedade não tenha de sofrer mudanças
muito radicais para permitir alguma acomodação, alguma convivência.
Concomitantemente às mudanças que
ocorrem no nível social mais amplo, está
se alterando a forma como os homossexuais se vêem e se relacionam entre si.
Em primeiro lugar, a diminuição da carga de sentimento de culpa que pesa sobre esses indivíduos. Com o declínio da
importância da religião cristã como fator
normativo da sociedade urbanizada e de
consumo conspícuo, há uma tendência a
deixar de ver o prazer sexual como intrinsecamente pecaminoso. Novos conceitos entram no lugar do antigo pecado: anormalidade, doença, desvio, etc.
Embora carregados negativamente, possuem a vantagem de se reportar ao mundo racional, passíveis portanto de questionamento através da razão. É muito
mais fácil, por exemplo, argumentar que
a "natureza" é um conceito relativo e
que portanto a "antinaturalidade" do
homossexualismo também o é, do que ir
contra preceitos bíblicos baseados numa
suposta revelação divina.
Embora continue a vigorar uma série
de fatores inconscientes, acessíveis só
através de análises profundas, é inegável
que discussões entre amigos e a força
do exemplo ajudam imensamente as pessoas a se sentirem menos culpadas em
relação à sua conduta sexual. Não é à
toa que uma das atividades mais bemsucedidas dos grupos homossexuais seja
a formação de grupos de reflexão e troca de experiências. De maneira mais informal, o mesmo processo se repete nos
bares, discotecas e outros estabelecimentos que compõem o chamado gueto homossexual.
A importância do gueto
Os sentimentos de culpa e pecado que
oprimem o homossexual são constantemente repostos por fatores sociais que
o levam a se ocultar, a ter medo do
ridículo, da prisão, do desemprego, do
ostracismo por parte de amigos e familiares. O gueto é um lugar onde tais
pressões são momentaneamente afastadas e, portanto, onde o homossexual tem
mais condições de se assumir e de testar
uma nova identidade social. Uma vez
construída a nova identidade, ele adquire coragem para assumi-la em âmbitos
menos restritos e, em muitos casos, pode
vir a ser conhecido como homossexual
ESTUDOS
N .' 1
em todos os meios que freqüenta. Por
isso é da maior importância a existência
do gueto. Mais cedo ou mais tarde, acaba afetando outras áreas da sociedade.
Como parte do esforço por fazer com
que tanto a sociedade como um todo
quanto os indivíduos homossexuais reávaliem a imagem do homossexual, alguns
dos grupos têm promovido uma revalorização das palavras "lésbica" e "bicha".
Promove-se o uso dessas palavras no linguajar corriqueiro. Entre os envolvidos
nos grupos é praxe o uso desses termos
referindo-se a si próprios. Procura-se esvaziá-los de sua carga pejorativa. Diz-se
que, uma vez que os homossexuais consigam assumir certos rótulos sem sentimento de culpa ou inferioridade, se terá
roubado uma das grandes armas dos seus
perseguidores.
Além de exibirem maior dose de autoconfiança em suas relações com a sociedade como um todo, os homossexuais
também estão mudando as formas de se
relacionar entre si. Tradicionalmente, em
se tratando de papéis sexuais, a sociedade divide os indivíduos em dois: o homem e a mulher, o ativo e o passivo.
Essa divisão em dois tipos é extremamente arraigada na cultura e não surpreende que se encontre reproduzida nas
relações homossexuais, os homens classificando-se como "bofe" e "bicha" e as
mulheres como "fanchona" e "lady". Em
ambos os casos, os primeiros seriam
"ativos" e os segundos "passivos", reproduzindo-se relações de dominação vigentes entre homens e mulheres. Mas,
assim como entre homem e mulher estão
ocorrendo mudanças notáveis, também
entre casais homossexuais está se dando
uma diluição da dicotomia ativo/passivo,
a par de maior democratização do relacionamento. Isto parece ocorrer principalmente entre moradores de cidades
grandes, de níveis sócio-econômico e educacional mais elevados. Desloca-se a ênfase dos detalhes do ato sexual (quem
penetra quem) para o relacionamento
visto de maneira mais abrangente, isto
é, importa com quem você se relaciona,
se com pessoas do seu próprio sexo ou
não. Estas pessoas, que se definem não
mais como ativas ou passivas, mas sim
como heterossexuais ou homossexuais,
questionam a validade de papéis preestabelecidos e muitas vezes sentem-se extremamente constrangidas se forçadas a
exercê-los.'
Este questionamento das normas tradicionais não raro se estende a outros
ABRIL
conceitos tomados de empréstimo do
casamento heterossexual: a fidelidade, por exemplo. Neste caso, considerando a exigência de fidelidade do parceiro uma idéia baseada na necessidade
de transmissão da propriedade e de criação dos filhos, alguns, especialmente homens, começam a questionar sua aplicabilidade aos homossexuais. Alimenta ainda mais esta dúvida a propensão à promiscuidade, amplamente constatada entre os homossexuais masculinos: muitos
se recusam a assumir qualquer compromisso mais estável, temendo ter sua liberdade tolhida.
Começam a se alastrar os "casos abertos", em que os parceiros estabelecem
uma espécie de acordo que permite relações com terceiros sem ameaça ao "caso".
Em parte pela falta de qualquer parâmetro preexistente, estes "casos" às vezes se tornam complicados, mas entre
aqueles que se julgam "progressistas"
(como os engajados no Movimento Homossexual) "casos fechados" são às vezes considerados castradores, irrealistas,
geradores de hipocrisia e, ofensa final,
"machistas".
Entre as lésbicas, provavelmente por
causa da educação diferenciada que exalta a promiscuidade masculina enquanto
reprime toda manifestação de sexualidade feminina, os "casos" tendem a ser
mais "fechados". Mas também entre elas
a predominância das divisões de papéis
tradicionais leva, às vezes, a situações
caricaturais em que a "fanchona" adota
o comportamento promíscuo, socialmente reservado ao homem, e exige fidelidade absoluta de "sua mulher".
Na época da mobilização contra o delegado Richetti, solicitou-se o auxílio de
deputados da oposição, bem como de representantes dos setores ditos democráticos (sindicatos, OAB, Comissão de
Justiça e Paz, etc.). Embora mostrassem
uma certa receptividade, estas entidades
e estes políticos, receosos talvez de se
"sujar" perante seu público enfocaram
somente a questão dos direitos humanos,
evitando ao máximo até mesmo a menção da palavra "homossexual". Durante
a passeata de protesto nenhum deles
compareceu. A única pessoa de renome
a estar presente foi o pintor e escritor
Darci Penteado, que há tempos se identifica com a causa homossexual.
Também na esquerda há posições
abertamente anti-homossexuais. Quando
em 1980 organizou-se um ato público
contra os atentados terroristas da direi-
DE
Democratização
do relacionamento,
diluição da
dicotomia ativo/
passivo
1 FRY, Peter. Para Inglês
Ver, Zahar Editores, Rio de
Janeiro, 1982.
1983
57
EM DEFESA DO GUETO
Os homens são
muito mais
visíveis, seu
gueto é bem
maior
ta, militantes de um determinado grupo
saíram pelas ruas convocando o povo a
um protesto contra os "maricas fascistas". Esse tipo de posicionamento ocorre
de vez em quando no jornal Hora do
Povo. No seu número de 6 de fevereiro
de 1981, um artigo atacava as "autonomistas" do movimento feminista: grã-finas desorientadas, lideradas por lésbicas! Acima do artigo, uma charge assinada por Maringoni em que apareciam,
entre outras mulheres, duas lésbicas,
uma tendo um ataque histérico ao ver
mulheres do povo, enquanto a outra,
caricaturalmente "machona", tenta levála para casa.
Persiste ainda em várias áreas a dicotomia bofe/bicha, ativo/passivo. Nos
meios de comunicação de massa ainda se
continua a propagar a visão que associa
o homossexual ao passivo; com raras exceções, o "desmunhecar" é essencial para
qualquer representação desse tipo de
personalidade. Por outro lado, mesmo
entre homossexuais, as chamadas "bichas
pintosas" - os homens muito efeminados - sofrem muita discriminação por
parte daqueles que internalizaram os
preconceitos da sociedade, extravasando-os sobre os indivíduos que vêem
como mais escandalosos e cuja companhia pode ser comprometedora.
Essa divisão entre "bicha" e "bofe"
leva também a um acirramento da misoginia latente em muitos homossexuais
masculinos. Isso porque a "bicha" às vezes se considera em competição direta
com as mulheres (pejorativamente chamadas de "rachadas") e em inferioridade
de condições.
Como parte da constelação de atitudes
em torno da dicotomia "bicha/bofe", há
a tendência a compartimentalizar as emoções, separando a atividade sexual do
mundo afetivo. Na relação "bicha/bofe"
isso é bastante comum e parece ter sua
razão de ser, uma vez que o "bofe" teria
sua virilidade questionada se mantivesse
qualquer relacionamento mais profundo
ou duradouro com uma "bicha". Conseqüentemente, ambos logo aprendem a
não investir seus sentimentos nessas relações. Esse processo também é encontradiço entre homossexuais que já romperam com a divisão dos papéis sexuais.
A proliferação de saunas gay onde as relações sexuais ocorrem entre parceiros
que só se vêem na penumbra ou entre
nuvens de vapor, às vezes sem mesmo
dizerem seus nomes, vem reforçar esta
separação sexo/afeto.
58
NOVOS
Homens e mulheres
Olhando o mundo homossexual de
hoje, percebe-se a diferença existente entre a situação dos homossexuais masculinos e a das lésbicas. Os homens são
muito mais visíveis e o seu gueto é bem
maior, contando com numerosos bares,
discotecas e saunas, enquanto as mulheres têm muito menos opções como pontos de encontro. Por um lado, a maior
repressão sofrida pelas mulheres em geral leva as lésbicas (tanto quanto as heterossexuais) a saírem menos sozinhas, a
serem mais tímidas,quanto a manifestações abertas de sua sexualidade; são mais
"enrustidas", menos visíveis. Outro fator é puramente econômico: as mulheres
ganham menos que os homens e, claro,
constituem um mercado consumidor menos atraente. Não obstante, há sinais de
mudanças. Começam a surgir mais bares
e discotecas freqüentados predominantemente por mulheres, notadamente no
centro de São Paulo.
Talvez pelo fato de a subcultura lésbica ainda ser pouco desenvolvida, entre
elas persiste com maior força a divisão
de papéis ativo/passivo. A maior durabilidade dos seus casos de amor seria,
segundo alguns, resultado desta apropriação mais completa do modelo heterossexual que enfatiza o caráter permanente
do casamento. Entre homossexuais masculinos, os papéis mais igualitários levariam talvez os dois parceiros a se acharem com o direito de procurar satisfação
sexual onde quiserem; existem menos
regras de conduta e portanto maior instabilidade. Um fator que pesa nesta diferença é sem dúvida a já mencionada
educação diferenciada, que enfatiza muito mais a natureza promíscua do homem
que a da mulher.
Mas entre as mulheres a concepção
tradicional dos papéis também está sendo questionada. Especialmente pelas que
se ligaram de alguma forma aos movimentos feministas e homossexual. Embora estas lésbicas "conscientizadas" tendam a não freqüentar o gueto e a ser
incompreendidas por, suas freqüentadoras, é provável que tenham uma influência indireta, se por nenhuma outra razão, ao menos por causa da cobertura
que ocasionalmente recebem dos meios
de comunicação. Não se deve esquecer
também que em certas ocasiões elas têm
procurado desenvolver um trabalho mais
intensivo junto a essas mulheres - como
a série de bingos que elas organizaram
ESTUDOS
N.*
1
aos domingos numa discoteca de lésbicas
em São Paulo.
Ao relacionarmos a persistência da divisão de papéis sexuais entre mulheres
ao menor desenvolvimento do gueto e,
portanto, da subcultura lésbica, vemos a
importância que pode ter este espaço,
como local de refúgio e como foco gerador de novos padrões de atitudes. A partir daí, vê-se o quanto é séria a ameaça
a esta região por parte das forças policiais. Embora seja improvável o fechamento completo de todos os estabelecimentos gay, dada a suscetibilidade das
autoridades policiais ao suborno , ele excluiria os mais pobres, impossibilitados
de pagar os altos preços das discotecas,
saunas e bares. Não é de surpreender
que a primeira passeata política, abertamente homossexual, visasse a defender
justamente este espaço livre.
Entre os homossexuais também há
quem despreze o "gueto". Alguns até
defendem a posição de que ali não é o
local adequado para suas atividades políticas, preferindo a militância em outras
organizações como sindicatos e partidos.
Outros, porém, acham que se deve valorizar aquele espaço, para eles um importante foco de resistência, tentando expandi-lo por toda a cidade e procurando
uma diluição natural de suas fronteiras.
Embora idealmente o homossexual não
devesse ser encarado como uma coisa à
parte, dizem eles, do modo como as coisas estão é necessário que se fale ao máximo para afirmar perante a sociedade
a igual validade desta orientação sexual.
O ex-militante francês do movimento
homossexual FHAR, Guy Hocquenghem,
em seu livro A Contestação Homossexual, levanta o problema: talvez o que
esteja ocorrendo no momento seja simplesmente um remapeamento do que
pode ser considerado comportamento licito e ilícito. As ligações homossexuais
seriam agora mais aceitas , mas teriam
que se submeter a novas regulamentações. Estas excluiriam relações inter-raciais , interclasses e entre pessoas de idades muito díspares. Se formos examinar
a situação nas grandes metrópoles brasileiras , veremos que aqui o aparecimento
de espaços comerciais onde o comportamento homossexual é permitido tende,
de fato, a segregar as pessoas em termos
econômicos e, portanto, raciais . As leis
que proíbem a entrada de menores nestes recintos também servem para manter
uma divisão entre idades. Mas não devemos simplificar demais a questão. É
ABRIL
necessário lembrar que especialmente entre os homossexuais masculinos a atração sexual é vista como sendo principalmente física: dois homens de distinta
posição social podem cruzar olhares na
rua, parar para conversar e em poucos
minutos estar juntos na cama. A aventura e o gosto pelo desconhecido continuam a ser prezadíssimos condimentos
de uma "transa".
Isto nos leva a uma questão até o
momento pouco discutida mas que me
tem ocorrido com freqüência, especialmente em momentos de desentendimento entre militantes feministas e homossexuais ( especialmente masculinos). Embora estes dois movimentos pareçam partir de premissas parecidas, questionando
as atitudes machistas encontradas na sociedade, existe entre setores destes movimentos uma diferença básica. As feministas se propõem a mudanças radicais,
não só da sociedade como um todo, mas
também de si mesmas. A partir de uma
crítica da educação diferenciada e do
efeito que isso tem sobre todas as mulheres, elas, em alguns grupos mais que
em outros, pretendem lutar contra as
suas tendências a se conformar aos padrões psicológicos definidos como femininos: personalidades maleáveis e submissas , dependentes e pouco assertivas.
Ao mesmo tempo, estão muito atentas
para não deixar outras mulheres assumirem as posições dominadoras antes
ocupadas por homens. Estas preocupações levam a uma posição de amplo
questionamento de si próprias e até de
sentimentos que poderiam parecer naturais , como ciúme e possessividade. Os
homens homossexuais, por outro lado,
partem da premissa de que sempre foram
reprimidos em seus desejos. Ao se organizarem, sentem que um dos seus atos
políticos mais importantes está em extravasá-los o mais abertamente possível.
Desta forma, até o desempenho de papéis sexuais dos mais estereotipados do
tipo "bicha/bofe" são legitimados, e
qualquer questionamento pode passar a
ser encarado como moralismo. Além do
exemplo citado dos papéis sexuais, desentendimentos entre militantes dos dois
movimentos existem em potencial em
muitas questões. Entre elas a questão
da prosmicuidade e da pornografia que,
por dissociarem o contato sexual de um
contato mais profundo e afetivo, são vistas por muitas feministas como desumanas e machistas.
O gueto: foco
gerador de
novos padrões
de atitudes
No interior do
gueto,
reproduzem-se
as segregações
por critérios
econômicos
Intrinsecamente relacionada à questão
DE
1983
59
EM DEFESA DO GUETO
2 WEEKS. Coming Out Homossexual Politics in Britain, from the Nineteenth
Century to lhe Present, Quartel Books , London, 1977.
da reprodução dos papéis sexuais, está
a do travesti e a do transexual. Estes
indivíduos em alguns casos chegam a se
submeter a dolorosas e caras operações
para adquirir características externas do
sexo oposto. Pelas feministas e por muitos integrantes do movimento homossexual, são tidos como meros reprodutores
da vigente organização dos papéis sexuais. Alguns, contudo, vêem no fato
de um homem conseguir passar por mulher uma subversão da ideologia que defende a "naturalidade" das diferenças
entre os sexos. Seria o que os anglosaxões chamam de genderfucking.
A maioria dos homossexuais parece
nutrir profundo desprezo e antipatia pelos travestis; estes simplesmente alimentariam os preconceitos dos heterossexuais
que acreditam que todo homem homossexual deseja, no fundo, virar mulher.
Mesmo a chamada "bicha pintosa" já
começa a sofrer essa discriminação. A
resposta que os travestis dão às críticas: eles é que são os verdadeiros homossexuais assumidos; eles é que sempre
formaram a vanguarda, abrindo novos
espaços e enfrentando as repressões mais
violentas. Como dizem: "Para ser travesti é preciso ser muito macho".
Segundo Weeks,Z embora o papel do
homossexual tivesse começado a aparecer antes, sua cristalização na Inglaterra
só se deu no século XIX, justamente
quando ocorria uma reestruturação da família e das relações sexuais em virtude
do triunfo do capitalismo industrial e
da urbanização. Este foi um período marcado pela exclusão das mulheres do mercado de trabalho, da criação de uma
massa operária que dependia do sistema
familiar para se reproduzir e se manter.
Os papéis sociais representados pelos
dois sexos tornaram-se mais claramente
definidos e o homossexualismo (especialmente o masculino) tornou-se uma ameaça a este sistema. Por isso foi preciso
contê-lo e a criação de um papel homossexual estigmatizado serve para manter
a massa da sociedade dentro dos padrões.
Isso ocorre de duas formas:
a) fornece um limite preciso entre o
comportamento permissível e o não
permissível.
b) leva a uma segregação daqueles que
são rotulados de "desviantes" dos
outros membros da sociedade e dessa
forma contém e limita os seus padrões comportamentais.
60
NOVOS
É interessante notar que hoje, quando
se começa a falar sobre a desintegração
da família, também começam a surgir os
movimentos de contestação gay. Tentativamente poderíamos dizer que atualmente, nos grandes centros metropolitanos, muitas das funções tradicionais da
família como reprodutora da força de
trabalho estão mudando de importância.
Nestas cidades, agora , é comum a mulher trabalhar fora de casa e os dois sexos terem uma educação cada vez mais
semelhante. As tradicionais tarefas domésticas outrora reservadas às mulheres
estão se tornando mais leves graças aos
auxílios que a tecnologia fornece. A tarefa de educação das crianças está mais
socializada. No seio da famíliá ocorrem
mudanças radicais como resultado da
perda do monopólio do poder econômico
por parte do pai.
Por outro lado, a moderna sociedade
de massas , presidida por grandes burocracias estatais e privadas, torna-se cada
vez mais impessoal. Ora, apesar de todos
os seus defeitos, é a família que tem fornecido ao indivíduo um lastro de permanência e uma base para seus valores.
Pois bem. E se isto não mais interessar
tanto ao sistema econômico de hoje que,
nas grandes cidades como São Paulo e
Rio, enfatiza cada vez mais a importância de um pseudo-individualimo consumista? Dentro deste contexto pode-se
entender melhor por que de repente, nos
centros mais desenvolvidos do mundo,
começa-se a cogitar do aborto livre, os
meios de comunicação de massa veiculam idéias de liberação feminina e o
divórcio torna-se cada vez mais rotineiro. É relevante notar que vem crescendo
também o número de bares, salões de
dança, saunas , etc. onde os heterossexuais
podem compartilhar do sexo impessoal.
Não é de estranhar que o homossexualismo de repente parece tornar-se
mais aceito . Afinal, em vez de uma ameaça ao sistema , pode até conter certos
traços a ser imitados. Claro que isto não
passa de uma possível tendência, contra
a qual persistem fortes barreiras sociais,
estruturais e atitudinais.
Edward Mac Rae é formado em Psicologia Social pela
Universidade de Sussex e co-autor , com Peter Fry, de
O que é homossexualismo, São Paulo, Brasiliense, 1982.
Novos Estudos Cebrap, São Paulo,
v. 2, 1, p . 53-60 , abr. 83
ESTUDOS
N.'
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