Título: "A repartição justa e equitativa dos benefícios

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Título: "A repartição justa e equitativa dos benefícios
Título: "A repartição justa e equitativa dos benefícios
para a apropriação dos conhecimentos dos indígenas e
a efetividade do direito à conservação da diversidade
cultural"
ILS - OÑATI – 2007
Abstract:
A convenção sobre diversidade biológica afirma que a apropriação dos conhecimentos indígenas sobre o recurso
genético deve ser acompanhada por uma repartição justa e equitativa de benefícios para os povos que os
detenham. Os benefícios repartidos além de serem justos e equitativos podem ser monetários ou não
monetários. A pergunta sobre qual seria o sentido de justo e qual o sentido de eqüitativo em um contexto que
aparentemente se faz contratual, mas, que de fato, está muito distante dos pressupostos da teoria convencional
dos contratos necessita ser respondida. Uma distribuição de benefícios em moeda pode permitir que os cidadãos,
antes afastados do mercado, possam usufruir das oportunidades oferecidas pelo mercado, porém tanto em seus
aspectos positivos como negativos. O artigo explora os conceitos jurídicos da expressão "benefício justo e
equitativo". São trazidos elementos para construção de relações interculturais equilibradas com instrumentos
aptos a afastar o processo colonizador imanente na história das culturas que vêm agora se relacionar via
mercado.
La Maldición de Malinche*
Del mar los vieron llegar
Mis hermanos emplumados eran los hombres barbados
que la profecía esperaba;
se oyó la voz del monarca
de que el Dios había llegado
y les abrimos la puerta
por temor a lo ignorado.
....
Se nos quedó el maleficio
De brindar al extranjero
Nuestra fe, nuestra cultura,
Nuestro pan, nuestro dinero;
Hoy le seguimos cambiando
Oro por cuentas de vidro y damos nuestra riqueza
Por sus espejos con brillo.
Hoy en pleno siglo veinte
nos siguen llegando rubios
y les abrimos la casa
y los llamamos amigos.
Pero sillega cansado
Un indio de andar la sierra
Lo humillamos y lo vemos
Como extraño por su tierra.
....
Oh! Maldición de Malinche
Enfermedad del presente
?cuándo dejarás mi tierra?
Dcuándo harás libre a mi gente?
1
Gabino Palomares
(*Malinche era la amante Azteca del conquistador español Hermán Cortés)
1 Justiça e Eqüidade a partir dos fatos.
Em 1992, a Convenção sobre Diversidade Biológica foi assinada por mais de 180 países,
durante a reunião da ONU no Rio de Janeiro, sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e
promulgada pelo Decreto No 2.519, de 16 de Março de 1998, tornando-se norma de
direito interno brasileiro.
O espírito da CDB é perfeitamente sintetizado no documento “How the Convention on
Biological Diversity promotes nature and human well-being,” publicado pelo secretariado
da Convenção em 2000”1 .
Precisamente:
“In the 21st century, we will stand or fall on our ability to collectively eradicate poverty,
guarantee human rights and ensure an environmentally sustainable future. Freedom from
want, freedom from fear and sustaining our future are all part of the same equation. The
world community has recognised this. (…). The legal and policy
instruments are, by and large, in place. What is needed now is to ensure that they are
implemented. The Convention on Biological Diversity is one of these instruments. The
Convention came into force at the end of 1993 and has now been ratified by the
overwhelming majority of countries, for whom it is now a legally binding commitment to
conserve biological diversity, to sustainable use its components and to share equitably the
benefits arising from the use of genetic resources.
A CDB é o primeiro documento internacional vinculante que, reconhecendo o papel de
culturas para a conservação e uso sustentável da biodiversidade, prevê que estas outras
culturas recebam benefícios do uso que venha fazer a cultura dominante, ou seja, a que se
organiza nas Nações Unidas e redige esta Convenção.
Dois enunciados da CDB preveêm a obrigação de repartição justa e eqüitativa de
benefícios oriundos do conhecimento e/ou das ações sustentáveis das populações
indígenas e demais comunidades que vivem em modo de vida tradicional.
Art. 8 (j) Subject to its national legislation, respect, preserve and maintain knowledge,
innovations and practices of indigenous and local communities embodying traditional
lifestyles relevant for the conservation and sustainable use of biological diversity and
promote their wider application with the approval and involvement of the holders of such
knowledge, innovations and practices and encourage the equitable sharing of the benefits
arising from the utilization of such knowledge, innovations and practices.
Art. 15 7. Each Contracting Party shall take legislative, administrative or policy
measures, as appropriate, and in accordance with Articles 16 and 19 and, where
necessary, through the financial mechanism established by Articles 20 and 21 with the
1
http://www.cbd.int/doc/publications/cbd-sustain-en.pdf
2
aim of sharing in a fair and equitable way the results of research and development and the
benefits arising from the commercial and other utilization of genetic resources with the
Contracting Party providing such resources. Such sharing shall be upon mutually agreed
terms.
É indiscutível a conquista política que representa o reconhecimento dos povos de
diferentes culturas e do merecimento aos benefícios que são obtidos pela apropriação dos
bens e saberes que aquelas outras culturas desenvolveram, apesar de tudo e de todos.
Aqui está o ponto de partida e a primeira interrogação. Quem são estes sujeitos,
reconhecidos merecedores de benefícios pelo uso sustentável que fazem do meio
ambiente e pela obtenção de um conhecimento tão próprio e distinto do conhecimento da
moderna sociedade tecnológica e quimico-farmacêutica?
De fato, tudo começou a exatamente 500 anos antes da Convenção sobre Diversidade
Biológica, 1492. A entrada no Novo, Desconhecido Mundo, na verdade, o outro mundo,
que inicia a dualidade entre cultura dominante e demais povos, é por demais traumática e
suas marcas ainda se fazem alarmantes, indisfarçáveis, mesmo com a boa-fé de uma
convenção internacional. Os povos que não foram exterminados se submeteram.
Nas Américas, os índios ignoravam que outros povos pudessem existir.
Apavoraram-se com aquelas criaturas “de aspecto humano, montadas em
monstros desconhecidos”, e não souberam, muito bem, que comportamento
adotar diante desses invasores – indo da aliança e da confraternização até a
hostilidade. Porém, qualquer que tenha sido o comportamento, em todas as
experiências tentadas venceu a impressão do pavor”2.
Moctezuma recebe os espanhóis como se fossem os deuses que eram aguardados:
“Senhor estais em vossa casaa”, diz a Cortés.
-- Ataualpa aguardava Pizarro “como um amigo e irmão,... nenhum mal vai lhe
acontecer”.
Pizarro ocultou e dividiu suas tropas. Chegando Ataualpa, com pompa, com seus chefes
importantes, e sua tropa, entoando canções e ocupando o espaço vazio na praça da
Cajamarca. 20 mil incas se imobilizaram diante de 160 espanhois doentes e esfarrapados.
Pizarro entregou a Bíblia a Ataualpa que, buscando entender o que era aquilo, o deixa
cair. A este ato herético respondeu Pizarro ordenando o massacre, os espanhois cairam
em cima dos índios destroçando uma multidão perplexa e sem armas3.
Foi à vitória da incompreensão e da traição, no contato de dois mundos antagônicos.
Descrito por: (Eduardo Galeano, 113)
“Não olhem minha baixeza de ser e rudeza de dizer, suplica, e sim à vontade
com que a dizê-lo sou movido”. Frei Bartolomé de las Casas escreve ao
Conselho das índias (1531, São Domingos). “melhor teria sido para os índios ir
ao inferno com sua infidelidade, seu pouco a pouco e a sós, que ser salvos
pelos cristãos. Já chgam aos céus os alaridos de tanto sangue humano
2
3
Marc Ferro, 218
Cf. J. Diamond. Armas, germes e aço – os destinos das sociedades humanas. Pp.72-73.
3
derramado: os queimados vivos, assados em grelhas, jogados a cachorros
bravos...”
“Um questionário formulado entre 1582 e 1586, e que é o documento de base das
Relaciones Geograficas de Indias, comprova, por suas respostas, que os índios têm
perfeita consciência do drama demográfico que estão vivendo. ..E,além disso, outrora
não imperava o alcoolismo... Pois o pulque no México e a chicha nos Andes só eram
consumidos durante as festas religiosas. Agora, os espanhois dão o exemplo, e as velhas
proibições caem, em especial a da cultura da coca,” “que se desenvolveu tão logo
surgiram os espanhóis”. (Marc Ferro, 221)
“Gente de la tierra”, se llaman los Mapuches a sí mismos. Mpau: tierra y che:gente.
Para incorporar a Patagônia à Argentina, houve uma grande campanha de extermínio que
se concluiu em 1879. Los soldados no solo exterminaron a los indígenas en lucha abierta
sino también por medio del envenenamiento de sus aguadas y lagos o lagunas. ...Las
familias fueron dispersadas como por un terremoto. Por esa razón se hundieron sus
costumbres”4.
Ser indígena era ser mau e os mapuches sobreviventes trataram de esquecer de onde
vieram e sua própria língua.
Durante muitos anos, os mapuches não somente foram subjulgados pelo entorno, mas
também por eles mesmos. Ninguém queria ser indígena, era como, o mais baixo
reconhecimento que poderia ter alguém no país5.
En 1977, cuando se publicó su libro “In Patagonia”, muchos de los sobrevivientes de las
masacres de un siglo antes todavía seguían pefiriendo pasar inadvertidos en la meseta
patagonica, o en otros casos ni podían saber, que eran indígenas. Ninguna Historia ni
Lengua les recordaba su origen, ya que los más ancianos, que posiblemente todavía
recordaban algo, trataban muchas veces de mantener en secreto sus comprometedores,
por no decir peligrosos conocimientos. Consideraban que, para que no les fuese tan mal a
sus hijos, como les fue a sus padres era necesario ocultar su origen Mapuche6.
Os Mapuche, em Argentina, durante toda primeira metade do século XX foram tendo
legalmente suas terras expropriadas, sua cultura desrespeitada, sua identidade aniquilada.
Hoje, ainda suas terras são usadas para exploração de minérios e os benefícios passam ao
largo, nas palavras de um Mapuche:
“normalmente la tecnología va contra los que viven aquí. Si por ejemplo se construye una
usina hidráulica, para llevar corriente elétrica a las grande ciudades, ? poruqe no puede
llevar algún beneficio a la población local? ... Hay comunidades indígenas, que se están
muriendo por envenenamiento y derrames petroleros”. Falta citação
•
Os Yanomami são povos que se encontram em territórios do Brasil e Venezuela,
durante as décadas de 1960 e 1970 tiveram seu sangue coletado por pesquisadores
norte-americanos e brasileiros sem que elucidassem seus objetivos aos doadores e
obtivessem seu consentimento informado. O sangue é mantido até hoje em
4
Lidegaard, p. 23
Lidegaard, p. 26
6
Lidegaard, p. 11
5
4
instituições norte-americanas e brasileiras, após ter sido reprocessado na década
de 1990, permitindo a extração de material genético para novas pesquisas. Davi
Kopenawa, então com 11 anos de idade, presenciou tudo. “Lá (nos Estados
Unidos) está o sangue de minha avó, a mãe de meu pai, por isso eu me entristeço.
Lá está também o sangue de meu avô, até o sangue de meu pai, o que nos deixa
entristecidos”, declarou Dário, filho de Davi Kopenawa, professor e tesoureiro da
Hutukara Associação Yanomami. “Nós não podemos mais chorar pelos que
morreram. Queremos devolver seu sangue a terra, aos locais onde eles se
originaram e nasceram, e não deixá-lo trancado em locais gelados. Nós, os mais
jovens, não teremos o pensamento tranqüilo enquanto o sangue não retornar”. “Os
mais velhos não entendiam os que eles (pesquisadores) faziam lá, eles não
compreendiam suas intenções, por isso mostraram seu sangue. Eles foram
enganados pela fala dos brancos, que diziam: ‘sim, ao tomarmos seu sangue vocês
viverão com muita saúde, não voltarão a morrer doentes, não voltarão a sofrer
com epidemias, viverão saudáveis por muito tempo, vocês e suas crianças’, foi o
que disseram para enganar os mais velhos”.
(http://www.proyanomami.org.br/boletimMail/yanoBoletim/html/Boletim_76.htm
)
A história se reproduz também com outras comunidades além dos primeiros habitantes da
América. A eles se juntaram negros escravos, e brancos marginalizados.
Estes ‘outros’ passam a ser genericamente chamados de caboclos ou sertanejos, o mesmo
que dizer, o não eu, o não civilizado, que se distinguem pela origem marginal em relação
à classe dominante e à cultura branca, européia, mercantil hegemônica.
O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, só o fez em 1888. Todavia, desde 1831,
havia proibido o tráfego internacional de escravos (negros). Mas os negros continuavam a
entrar no Brasil através do tráfico e as autoridades fechavam os olhos àquilo, porque não
tinham como classificar este outro – o negro – em duas espécies, o escravizado e o livre.
Sistematicamente africanos livres eram retomados como escravos, sem que tivessem a
quem recorrer.7
Embora o tráfego estava proibido, fazia-se o comércio interprovincial de escravos tão ou
mais cruel que o cruzeiro do Atlântico. O discurso do deputado Wanderley de 1º de
setembro de 1854, o demonstra:
“É um horror, senhores, ver crianças arrancadas das mães, maridos separados das
mulheres, os pais dos filhos! Ide à rua Direita, esse novo Valongo, e ficareis indignados
e compungidos com o espetáculo de tantas misérias! E isto se passa na Corte do
Império!... eu mesmo, que não propendo muito para o sentimentalismo, confesso que
me irrito, que me horrorizo, quando considero em todas as consequências deste tráfico
tão bárbaro, tão inumano, e direi ainda mais bárbaro, mais inumano do que era o tráfico
8
da costa da África” .
A escravidão persistiu no Brasil, contrariando leis e autoridades – de certa maneira ‘esta
desobediência civil’ se mantém nas fazendas que aprisionam em dívidas seus
7
8
Cf. Nabuco, pp. 228-229
J.Nabuco, p. 231
5
trabalhadores e fazem uso de trabalho infantil. A explicação de Joaquim Nabuco é uma
capitulação do direito diante da força de uma tradição de opressão e dominação do outro:
“A escravidão não podia viver na mesma sociedade com o espírito de liberdade, e só
assim se explica o ter ela durado tanto tempo, incólume, quando juridicamente a sua
condenação estava escrita em tantos trechos de lei e o menor ardil bastaria para destruíla.” (J. Nabuco, p. 235)
Traz com seriedade e honestidade o submundo da formação social brasileira, agressiva ao
espírito liberal, onde senhor e escravo formam uma simbiose que, mesmo depois das
alterações legais e de fato, permanecem na força de um imaginário mútuo de servidão :
“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.
Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi à primeira
forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ele povoou-o,
como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus
encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem
amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia
seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte.
Quanto a mim, absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma
carícia muda toda a minha infância; aspirei-a na dedicação de velhos servidores que me
reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre mim e
eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna e
reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. (...). Nessa escravidão
da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno
de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do
senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação
do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar
nela.”9
Com o ciclo da borracha outra forma de ‘escravidão’ volta a se instalar na região. A
incorporação de braços para a extração da borracha, não escolhe a cor, mas vai buscar
nos homens livres escravizados pela necessidade, que trocam sua liberdade pelo trabalho
que os acorrenta permanentemente, em uma servidão vinculada pela matemática sempre
negativa da subtração do salário pela dívida por víveres fornecida pelo patrão.
Nas palavras de Euclides da Cunha: “nas paragens exuberantes das héveas e castiloas, o
aguarda a mais criminosa organização do trabalho que ainda engendrou o mais
desaçaimado egoísmo”... Contra isto ele pede “urgência de medidas que salvem a
sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem;
uma justiça austera que cerceie os desmandos; uma forma qualquer de homestead que o
consorcie definitivamente à terra”. (apud, M. Souza, p. 182)
A origem das diversas comunidades genericamente denominadas “populações
tradicionais”, sobretudo na região amazônica brasileira tem um único tronco:
marginalização.
9
Joaquim Nabuco, Minha Formação, www.dominiopublico.gov.br, p. 49
6
Sua composição é de escravos fugidos ou simplesmente abandonados e libertos pela
depressão da atividade econômica10; migrantes trabalhadores urbanos que vão buscar na
agricultura de subsistência e no comércio das ‘drogas’ da amazônia meio de vida, espólio
humano do final do ciclo da borracha.
Estes homens que povoaram a floresta, pelos mais diversos motivos, tendo uma matula
de origens, culturas e necessidade de adaptação a um novo ambiente. A floresta já estava
povoada, e entre a luta pela ocupação e afirmação cultural, surge o que na linguagem
unificadora, ignorante e desqualificadora do outro, chamamos de caboclo – o não eu.
Em convivência com os índios, construindo condições de adaptação de sua existência aos
novos meios, inicia-se a formação de uma nova identidade, surgida apenas pela
interetnicidade fixada por laços de guerra, família, solidariedade, indispensável para esta
gente sem Estado, sem emprego, sem capital (tríade já desenvolvida desde a primeira
percepção do hugenote Jean de Lery que definiu os primeiros habitantes da frança
antártica como sans loi, sans foi, sans roi).
O outro na América, o não europeu, é o objeto de exploração e degradação cultural,
mesmo nos dias de hoje. É a marca das impressões causadas com os embates culturais
registra-se e são poderosos alimentos na dinâmica de transformação da cultura. Com todo
este histórico é cruel e hipócrita colocar como critério identificador de povos indígenas
por seus ‘costumes nativos’. Foram expropriados de seu território, destruída sua
organização social e sua língua, elementos essenciais da identidade. Não bastando, foram
desprovidos de sua própria vida, pelas lutas, doenças voluntariamente espargidas, pelo
esgotamento no trabalho, ou pelo prazer perverso do exercício do poder na mutilação
física do outro, esporte, das classes dominantes, que ainda hoje mostra seus velhos
dentes.
Em conclusão, discutir distribuição justa e eqüitativa para camadas da população que até
ontem eram reconhecidas como marginalizadas pela impossibilidade de serem
incorporadas no sistema educacional, de saúde, condições mínimas para que se fizessem
parte da produção assalariada, requer visitar o quarto escuro da injustiça e iniquidade
sobre as quais cresceram e tremeram estas populações em tempo não mais longo que o de
uma geração.
Essa herança deve ser compreendida como pressuposto para as bases que definirão o que
significa justo e qual o sentido de equitativo. E ao final deste artigo pretende-se
responder se: justiça e equidade nos dizeres da CDB são preceitos capazes e suficientes
para restaurar o que foi injusto e iníquo?
2. Contrato e reciprocidade nas culturas
r10 Apesar do Brasil ser o ultimo país a abolir a escravidão (1888), em 1835, a revolução Cabana no Pará
decretou a abolição da escravidão, e no dia 24 de maio de 1884, Manaus liberta seus escravos, seguido por
outros municípios, desaparecendo neste ano a escravidão em todo território amazonense. (CF. M. Souza.
Breve História da Amazônia, pp. 136-138)
7
A Convenção sobre Diversidade Biológica estabelece que a repartição de benefícios
tenha base contratual, em que figura de um lado a comunidade detentora de um
determinado conhecimento e/ou que realize o uso sustentável de uma floresta,
conservando a biodiversidade.
O regime de direito contratual e o sistema de prestações econômicas têm modos distintos
de se apresentar nas diferentes culturas, nos explica Mauss. Regimes de troca existem em
todas as sociedades, mesmo que não tome os aspectos de intercâmbio com que nos
habituamos em nossas transações de consumo. As sociedades trocam valores sempre,
porém este intercâmbio não precisa ter a forma de relação entre sujeitos individualizados,
proprietários que relacionam objetos a equivalentes monetários, em sinalagma de
interesses.
Mesmo no interior da ideologia capitalista, o contrato pode apresentar-se sem
necessariamente estar movido pelo interesse de enriquecimento individual, ou pela
ambição desmedida, que exaure o mundo e o outro para satisfazer-se. O ideólogo do
capitalismo, Adam Smith em sua Teoria dos Sentimentos Morais, esclarece que “a
retribuição ou recompensa pode estar fundada em uma obrigação legal ou em um
sentimento moral de gratidão simpático à atitude alheia (cf. A. Smith, p. 89). Seja por um
ou outro fundamento, a aparência da relação é a mesma: intercâmbio entre sujeitos. Nem
todo intercâmbio numa sociedade deve estar fundada no interesse de aumento de
proveito, porque se assim o fosse excluisvamente, não haveria como se manter uma
sociedade da luta de todos contra todos. Em sua obra moral, Smith consciente coloca-se
contra a persistência do sentimento de ambição e alerta: “Quando a ambição toma
inteiramente pose do peito, não admitirá nem rival nem sucessora’’. (A. Smith, 69)
É possível, pois pensar em um contrato que não seja o de intercâmbio de mercadorias
para satisfação da ambição de lucro, porém este sentimento necessita de franca e
constante resistência. Além do mais, não se pode ter a ingenuidade de pensar que esta
outra forma de intercâmbio esteja prevista na lei. O Direito Civil regula o intercâmbio de
propriedades, dentro do mundo das ambições, sendo a força externa do Leviatã para frear
o excesso de ambição entre sujeitos proprietários privados. O contrato referido e único
possível numa relação intercultural que busca a integração do outro e remissão das ações
de opressão do passado deve ter bases completamente distintas.
Nas morais antigas, mas, epicuristas, são o bem e o prazer que se procura, e não a
utilidade material. Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que
fossem postas em vigor e elevadas à altura de princípios as noções de lucro e
indivíduo.(...). Mesmo os homens que escreveram o sânscrito clássico, e que empregaram
a palavra artha, muito próxima de nossa idéia de interesse, fizeram do interesse, bem
como das demais categorias da ação, uma idéia diferente da nossa. (...)
Foram nossas sociedades ocidentais que, muito recentemente, fizeram do homem um
‘animal econômico’”. (Mauss, 176) Mas não somos ainda todos seres desse gênero, ao
menos em nossa totalidade.
8
“Nas economias e nos direitos que precederam os nossos, não constatamos nunca, por
assim dizer, simples trocas de bens, de riquezas ou de produtos no decurso de um
mercado entre indivíduos. Em primeiro lugar, não são indivíduos, e sim coletividades que
se obrigam mutuamente, trocam e contratam (...)”(Mauss, 44)
Existe muito mais complexidade na troca do que a aparência do dar e receber.
Uma teoria geral da obrigação em sociedades ‘arcaicas’ não limita o vínculo à realização
contraprestação monetária. Tomando exemplo os maori, o vínculo de direito,vínculo
pelas coisas, é um vínculo de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. (Mauss,
56)
Ainda se referindo às culturas polinésias sintetisa: “todas essas instituições (deveres e
direitos de consumir e de retribuir) exprimem unicamente um fato, um regime social,
uma mentalidade definida: é que tudo, alimento, mulheres, crianças, bens, talismãs, terra,
trabalho, serviços, ofícios sacerdotais e postos é matéria de transmissão e retribuição.
Tudo vai e vem como se houvesse uma troca constante de uma matéria espiritual
compreendendo coisas e homens, entre os clãos e os indivíduos, repartidos entre as
categorias, sexos e gerações.”(Mauss, 59)
Do ponto de vista jurídico, ... cumpre acrescentar o seguinte: os objetos materiais dos
contratos, as coisas que são trocadas, têm, também elas, uma virtude especial que faz com
que sejam dadas e sobretudo com que sejam retribuídas”. (Mauss, 104)
Como conclusão às observações da Mauss, trazendo-as à proposta de Contrato de
Repartição de Benefícios, diria o seguinte:
1. o objeto apropriado, seja o recurso genético ou o conhecimento tradicional de uma
comunidade contém muito mais do que um código genético ou uma informação cultural.
Isto são aparências, valores imediatos que invoca todo um conjunto que está sendo
apropriado pelo outro e sobre o qual ele deve responsabilidades e contraprestações. Ao
acessar um código genético, ocorre a apropriação de formas de vida que se
desenvolveram e permaneceram em relação de sobrevivência e de existência de uma
sociedade e no momento da troca esta história de coexistência é transferida para que
outras culturas possam também co-existir com a vida expressa no código genético
transferido. Ao obter uma informação, a cultura receptora traz para seu universo cultural
um enriquecimento compartilhado graças à existência de uma outra estrutura de
relacionamentos sociais que possibilitaram a construção daquele saber. Não é a
informação meramente transferida. Com ela vão-se os espíritos ancestrais, o sentimento e
a intuição, os rituais e a relação própria que permitiu àquela cultura desenvolver, guardar
e transmitir um conhecimenot importante para sua própria existênca: há um
compartilhamento da força de existir que apesar da história, permiti aquela cultura ser o
que é: o Outro desigual.
2. a contrapartida, isto é, os benefícios devem ser conceituados de modo tal que revelem
exatamente as beneces obtidas com o objeto acessado, que, como vimos, é superior à crua
e nua informação. É importante complexiazar o conceito de benefícios para que o
conceito de benefícios ultrapasse o simplismo do desejo mais comezinho de acumulação,
próprio da ambição, e construam-se em bases sólidas dentro do concreto da existência –
incluindo as significações morais e espirituais, livrando o contrato de repartição de
9
benefícios da simplificação nefasta à sociedade de co-existência, pura satisfação da
ambição na ação do intercâmbio.
Todas as sociedades constroem regras, a partir das quais forma-se uma estrutura social de
relacionamentos. No relacionamento da troca podem estar contidos os mais profundos
sentimentos de pertencimento de uma sociedade que são intercambiados como dons
recíprocos (Mauss, p. 103). Não têm caráter meramente econômico, mas são dotados de
uma significação simultaneamente social e religiosa, mágica e econômica, utilitária e
sentimental, jurídica e moral. (Levi-Strauss, 92)
É possível dizer que o contrato, nesta perspectiva mais abrangente é uma instituição
arcaica, no sentido de que é é tão fundamental que a transformação de seus meios de ação
nem foi possível nem necessária”. (levi- Strauss, 102)
Na tese de que existem estruturas mentais fundamentais arcaicas em toda a sociedade,
Levi-Strauss as enumera em três: 1 a exigencia da regra como regra; 2 a noção de
reciprocidade considerada como a forma mais imediata em que possa ser integrada a
oposição entre o eu e o outro; 3 o caráter sintético do dom, isto é, o fato de que a
transferência consentida de um valor de um indivíduo para outro os transforma em
parceiros, e acrescenta uma qualidade nova ao valor transferido. (p. 123)
São, sem dúvida, elementos que estruturam o intercâmbio em uma sociedade, e, a meu
ver resultam em fundamento antropológico bastante para a defesa desta instituição como
meio de reconhecimento do ‘outro’ (o caboclo, o bugre, negro, sertanejo) na comunidade,
verdadeira sociedade democrática.
Todavia o desafio está lançado. Como transmutar uma relação originariamente de
dominação e destruição em uma relação de reciprocidade e de integração e respeito
cultural? Como superar a miséria das relações de intercâmbio e alcançar a verdadeira
relação de dar e retribuir, no interior da estrutura social dominante? E, por fim, como
fazer de um instrumento, comumente usado para legitimar acumulação e resplandecer o
sentimento de ambição, um meio de intercâmbio de valores muito mais complexos e
profundos do que o preço representado em equivalente monetário?
3– Valores interculturais: a difícil tarefa para realizar justiça e
eqüidade.
“ Raymundo Lé cozinhou para mim um chá de urumbeba.
Era um recurso para aliviar meu achaque. Alaripe pegou a gabar a virtude mazinheira
das mais raízes e folhas. ‘Até estas aqui, duvidar, devem de poder servir, em doses, de
remédio para algum carecer, só que não se sabe...’- ele disse, por uma moita rosmunda
de frei-jorge, esfiada em tantos espetos, e a povoã por perto crescida. ali, naquela hora,
eu conferi como era usual a gente estimar os companheiros, em ajuntado.”422
Crença X Ciência
10
O valor da transmissão de conhecimentos de cura tem a força de laços de pertencimento,
afetividade e desenvolvimento comunitário. O poder transmitir retorna em um poder
pertencer e crescer junto. Esta é a constatação de Riobaldo.
Nas sociedades contemporâneas, a ‘contraposição de interesses’ própria ao contrato de
compra e venda de direitos de propriedade, este pensamento está desvalido. Entretanto, a
CDB quando quer juntar à noção de contrato, o conceito de justiça e equidade, tem de
afastar essa noção precária de intercâmbio, sem o que nada mais fará do que ajudar as
injustiças e acelarar o processo de exaustão e anulação cultural e ambiental que a força
desta prática econômica realiza desde há qunhentos anos.
No Brasil, a extração das “drogas do sertão” foi à atividade econômica precursora da
ocupação amazônica e a atividade que restou para os órfãos da falência do ciclo da
borracha. O uso de plantas medicinais é tão familar ao caboclo, sertanejo, indígena,
quanto o uso da terra para o cultivo de alimentos.
Apesar dos povos indígenas terem, por tempos imemoriais, vivido com a floresta e da
floresta, apesar dos relatos dos primeiros viajantes do século XVII e XVIII, revelarem um
conhecimento daquilo que depois da colonização fez a sobrevivência dos ocupantes das
florestas com a venda das “drogas do sertão”, este pensamento foi mudando com o século
da razão positiva.
Friedrich von Martius, naturalista vienense do século XIX, nutria, em nome de um
distanciamento e superioridade científica, verdadeiro despreso pela medicina indígena,
não obstante prosseguia com seus relatos e pesquisas.
Em um relato que descreve indígenas com aparência de portadores de mazelas
intermináveis, afirma o seguinte:
“Este fato [a aparência doentia] desmente a noção geral, porém falsa, de que os índios
dispõem de muitos e eficazes medicamentos. Segundo a minha experiência, são raras as
plantas que conhecem, primando entre elas certos frutos purgativos, como meio curativo,
e muitos cipós e sucos seivosos de efeito venenoso”. “De fato, conhecem os índios muitas
ervas e árvores, e sabem diferença-las por seus próprios nomes; mas isso é sobretudo
quando se trata de plantas comestíveis, que sirvam para a tinturaria ou sejam aplicaveis
ao uso domestico. Das plantas medicinais principalmente remédios (poçanga) eles têm a
mais obscura noção, quasi sempre supersticiosa, idéia incutida pelos pagés. Em geral, a
maioria das plantas, hoje empregadas no Brasil pela medicina, foram achadas pelos
primeiros colonos, em particular os paulistas, e por aqueles que já traziam reminiscências
das plantas uteis das Indias orientais”. (F. Von Martius, p. 250)
O futuro não fez jus a estas afirmações do grande naturalista. A título de exemplo,
ficando apenas no aspecto meramente regional, o mercado de plantas medicinais na
cidade de Manaus é constante e estável, tem a adesão das pessoas da região e recebe
crescente visita de turistas, estudantes e pesquisadores. Embora predominantemente
atenda classes de mais baixa renda que não tem acesso aos remédios convencionais, o
mercado recebe todas as classes sociais que “just in case”, valem-se das drogas do sertão.
Segundo pesquisa de Maria Rosa Lozano, os compradores buscam as plantas com
indicações empíricas variadas, entre as quais a diabete, doenças do fígado, colesterol alto,
11
para emagrecer, câncer, vermes, respriados, pressão alta, dor de barriga, tosse, gastrite,
úlcera, afrodisíacos e tônico neuro muscular (p. 27)
A maioria dos consumidores estão na faixa de 30 a 40 anos de idade (33,7%), com
predominância do sexo feminino (60,1%), em geral residente em Manaus (87,2%). As
profissões mais comuns foram referidas como: ‘do lar’ (21%), comerciante (15,3%), e
outras profissões (16,9%).
A maior parte dos consumidores relatou ter o hábito de usar plantas medicinais (89,6%).
Quando perguntados se já haviam utilizado a planta que tinham vindo comprar no
Mercado, 62,4% responderam afirmativamente. ...
As indicações são por conhecimento tradicional difuso, amigos, mãe, outros. Não houve
nenhuma indicação por médico. .... (M.R. Lozano Borrás, p. 28-29)
O imaginário popular atribui à natureza uma característica mística, corporificando uma
identidade divina que vem em socorro daqueles que a protegem e que solicitam seus
favores.
Neste contexto, as plantas aparecem não apenas como meros vegetais que ornamentam
alimentam e protegem, mas também como entidades que promovem a cura, não porque
contenham substâncias químicas que atuam em estruturas biológicas, mas porque
possuem uma característica mágica que vai resolver o problema pessoal ou de doença.
(Lozano Borrás, p. 213).
Este fundamento alia-se à noção do contrato como um intercâmbio de uma complexidade
muito além do objeto aparente. A adquirir a erva, leva-se consigo, a indicação do
ervateiro, o acúmulo de conhecimento e experiências, a mística de um modo de preparo
ou da origem divina daquela erva. São muitos valores que estão embutidos naquela
amostra de natureza, que pode ser uma folha uma casca de árvore, um fruto. Teria isto
um preço?
A ciência quando entra em contato com este mundo, faz uma triagem, A lâmina do
microscópio é preparada para buscar a unidade da unidade. Com isto, altera o objeto de
pesquisa, mas não é capaz de alterar a sua essência curativa. Tão somente, muda a
perspectiva, altera a rota para encontrá-la. O concreto e verdadeiro é a totalidade. Esta
unidade é a especificidade (Hegel). O que é sempre será em seu todo, seja qual for o meio
usado para conhecer, o todo permanecerá, o que muda é a visão sobre ele.
Por isto que não se trata de opor conhecimento tradicional há ciência laboratorial.
“A realidade não opera do lado da ciência ou do lado popular. Um não vive sem o outro.
A pesquisa das plantas nasce do conhecimento popular que direciona o cientista. Se a
atividade for comprovada e a planta não apresentar toxicidade, nasce o fitoterápico, que é
o extrato bruto da planta ou simplesmente a planta moída. A partir do fitoterápico, a
pesquisa contnua até se encontrar o princípio ativo, que pode ser comercializado como
fitofármaco. Para se chegar a fitoterápico, o valor necessário para a pesquisa é de cerca
de 2,5 a 3 milhões de dólares, enquanto o fitofármaco exige pesquisas de
aproximadamente 100 milhões de dólares e 10 a 15 anos de trabalho científico.
Várias plantas deram origem a medicamentos largamente utilizados até hoje. A morfina,
oriunda do ópio, os digitálicos a partir da Digitalis purea e Digitalis lanata, os
antineoplásticos vincristina e vinblastina extraídos da Catharantus roseus, a nossa popular
“lavadeira”, planta invasora de jardins e praças, usada no tratamento da leucemia. A
12
pilocarpina, usada no tratamentop do glaucoma, e é extraída da brasileira Pilocarpus
jaborandi. Muitas outras plantas originaram medicamentos largamente utilizados em
terapêutica, sem que a população tome conhecimento do fato.
Estes dados, mesmo quando apresentados, não sào bem recebidos. A ciência é a vilã que
destrói mitos. É preferível acreditar na tradição oral, mesmo que nunca tenha sido
encontrada aquela atividade farmacológica na planta.
Em relação às plantas medicinais, mitos de ambas as partes estão sendo destruídos.
Experimentos mostram que plantas utilizadas para o tratamento do diabetes, não
apresentam atividade hipoglicemiante. Ao mesmo tempo quase todas as plantas
amazônicas testadas têm atividade antiinflamatória. A ciência copia a cultura popular.
Várias plantas são conhecidas por tratarem de todas as doenças, melhorarem os estado
geral dos doentes, serem fortificantes, tônicos. Apesar de muitas vezes ocorrer uma
indicação terapêutica, esta é inespecífica, tal como antiinflamatório ou tônico. (p. 214)
Difícil perceber no interior da sociedade do progresso que devora o passado e impõe-se
soberano sobre o futuro, mas o fato é que os usos e costumes são matrizes de normas
sociais e motrizes de comportamentos. Os usos e costumes são princípios estendem seus
domínios sobre nossos juízos e exercem considerável influência sobre os sentimentos
morais da humanidade, e são as principais causas das diversas opiniões irregulares e
discordantes que prevalecem nas diferentes épocas e nações, quanto ao que é censurável
ou louvável. (AS239)
A cultura é construída pela prática repetida e consentida, e marca a identidade de uma
comunidade e por isto estranha o outro, o estrangeiro os usos e costumes da cultura
alheia, porque este sujeito vem imerso nos seus próprios costumes.
Montagne, comentando as impressões de Villegaignon que permaneceu dez anos na
França Antártica (Rio de Janeiro), conclui que, na verdade cada qual considera bárbaro o
que não se pratica em sua terra. (101)
O que não é próprio meu é desvalorizado, e no tempo do filósofo pejorativamente
chamado de selvagem, pura recusa do outro, pelo pensador do século XVII reprovado.
A abertura da Europa ao Novo Mundo estabeleceu, em micro e macro cosmo, uma
relação permanente de dependência recíproca, visível na transferência de recursos
naturais, mão de obra, interesse financeiros, conhecimento.
Com a abertura do pequeno continente, floresceu o capitalismo. Neste contexto, a
diversidade se mostrou o combustível da vida social e econômica dominante. O outro é a
origem da riqueza, a possibilidade de acumulação, a força criativa de expansão e
renovação do modo de produção capitalista.
Ao mesmo tempo, este modo de vida é “uma máquina compulsiva de nivelamento que
atua contra a mais linda energia da espécie humana, que se reconhece em suas diferenças
e apartir delas se vincula. Lo mejor que el mundo tiene está en los muchos mundos que el
mundo contiene, las distintas músicas de la vida, sus dolores y colores: las mil y una
maneras de vivir y decir, creer y crear, comer, trabajar, bailar, jugar, amar, sufrir y
celebrar, que hemos ido descubriendo a lo largo de miles y miles de años. (25)
La igualación, que nos uniformiza y nos emboba, nos se puede medir. No hay
computadora capaz de registrar los crímenes cotidianos que la industria de la cultura de
masas comete contra el arcoiris humano y el humano derecho a la identidad. Pero sus
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demoledores progresos rompen los ojos. ... los dueños del mundo nos comunican la
obligación que todos tenemos de contemplarnos en un espejo único, que refleja los
valores de la cultura de consumo”. (26) Eduardo Galeano, Patas Arriba – la escuela del
mundo al reves)
Esta contradição inspira a idéia de que os relacionamentos de apropriação do outro
(ambiente e cultura) devem responder à riqueza da diversidade, permitindo viver e deixar
viver. Sobre isto se constróem faticamente as formas de justiça e equidade, que devem
prevalecer na execução do preceito de repartição justa e equitativa de benefícios.
Justiça é sempre uma construção comparativa, nos ensina Aristóteles. Conhece-se o justo
apenas com referência ao injusto. Neste contexto de intercâmbio intercultural, o justo
estaria na valorização das culturas pela prática do contrato. A justiça deveria ser
construída no momento da repartição dos benefícios obtidos com a relação desenvolvida.
O Estado da Arte
Segundo a CDB, os benefícios deverão ser repartidos em razão da obtenção de valores
como conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos e obtenção da
biodiversidade conservada graças às formas tradicionais de existência sustentável com o
ambiente natural. Recentemente, a Inter-Agency Technical Committee of the Forum of
Minister of the Environment of Latin America and the Caribbean, realizou seu primeiro
encontro na Venezuela (2- 3 March, 2006).
Nesta ocasião, adotaram-se as “frameworks” para regulamentação do acesso ao recurso
genético como também para o estabelecimento da repartição justa e equitativa dos
benefícios provindos da utilização dos recursos genéticos, conforme prevê a Convenção
sobre Diversidade Biológica.
O documento oficial que rege o conteúdo do que seria repartição justa equitativa foi
desenvolvido em 2002, numa das reuniões da CDB, chamada de Diretrizes de Bonn sobre
acesso aos recursos genéticos e participação justa e equitativa nos benefícios
provenientes de sua utilização.
The Guidelines identify the steps in the access and benefit-sharing process, with an
emphasis on the obligation for users to seek the prior informed consent of providers.
They also identify the basic requirements for mutually agreed terms and define the main
roles and responsibilities of users and providers and stress the importance of the
involvement of all stakeholders.
They also cover other elements such as incentives, accountability, means for verification
and dispute settlement. Finally, they eumerate suggested elements for inclusion in
material transfer agreements and provide an indicative list of both monetary and nonmonetary benefits.
Pursuant to mutually agreed terms established following prior informed consent,benefits
should be shared fairly and equitably with all those who have been identified as having
contributed to the resource management, scientific and/or commercial process.
Benefits should be directed in such a way as to promote conservation and sustainable use
of biological diversity and associated traditional knowledge.
14
Observando o documento das diretrizes de Bonn, podem-se depreender os aspectos
qualitativos que preenchem o conceito de justo e equitativo voltado para a melhoria da
vida de toda comunidade com quem ocorreu o acesso. Daí sublinhar que o contrato de
obtenção de informação sobre recurso genético ou conhecimento tradicional deve atender
os seguintes princípios:
• Manutenção da livre troca e acesso sobre os recursos bio-culturais entre os
indivíduos, familiares e comunidades vizinhas;
• Reconhecimento das praticas coletivas de produção do conhecimento, gestão
e tecnologia, evitando trazer-lhes uma ética individualista do enriquecimento,
acumulação e concorrência.
• Garantia do uso responsável e a conservação do patrimônio ambiental e
cultural.
• As relações de acesso devem preservar a ética comunitária e eventuais
hierarquias existentes, além de cultivar as regras e práticas já usadas de
conservação e uso sustentável dos recursos naturais, ou mesmo, aprofundar esta
ética com a transferência de saberes e tecnologias apropriadas.
Sem dúvida, estes parâmetros auxiliam a determinação do que seria justo e equitativo no
relacionamento contemplado pela CDB, não obstante ainda persistir uma grande
dificuldade para se estimar o que seria justo e equitativo, ou, pelo menos, para se
definirem os meios que levem a determinação destes conceitos.
Tenho para mim que, para se determinar justiça e equidade no contrato em análise requer
identificar as características dos sujeitos (quem são?), do objeto (o que intercabiam?), dos
resultados (o que são benefícios para os sujeitos envolvidos?)
A resposta à primeira questão foi apresentada na primeira parte deste trabalho, o objeto é
definido pela própria CDB, já os resultados, são dependentes da determinação que seja
necessário para se construir a justiça e equidade.
4 Justiça e equidade no Contrato de Repartição de Benefícios por acesso
a recursos genéticos e a conhecimento tradicional associado à
biodiversidade.
A Justiça é o valor maior de uma sociedade: “Na justiça se resume toda a excelência”
(ÉTICA A NICÕNACO – ARISTÓTELES – 322 a.c.)
A justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da
excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de
justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação
ao próximo (...) O exercício do poder revela o homem, pois os governantes exercem
necessariamente os seus poderes em relação aos outros homens e ao mesmo tempo são
membros da comunidade. (Aristoteles, 93)
15
Com estas palavras Aristóteles já nos mostra duas perspectivas de justiça: aquela
realizada para e pelo sujeito, e aquela realizada pelo exercício do poder para os outros
(Pólis)
Tratando da justiça no intercâmbio, Aristóteles equivale justiça à equidade, que é a
proporcionalidade concretizada com a ação recíproca do dar e receber. “É pela
reciprocidade proporcional que a” “polis” “se mantém unida”. (99)
A equidade é a concretização da justiça considerando os sujeitos implicados e formando
uma relação de proporcionalidade. O equitativo só é possível precisar no particular.
Cf. 109.
A justiça política, por sua vez, vai para além do equitativo em relação de comutatividade.
O compromisso com a construção do satisfatório em uma sociedade pluriclasses e
multicultural não comporta um justo que se uniformize. A justiça encontra-se na
valorização social da diversidade, por meio do reconhecimento do outro e sua
incorporação na rede de relações sociais.
Portanto, quando a CDB prevê uma repartição justa e equitativa de benefícios, não está
incorrendo em um pleonasmo. Faz na verdade uma distinção das duas perspectivas de
justiça: a justiça política, e a justiça realizada entre sujeitos sociais que se relacionam
(equidade).
Justiça Política
Existem várias máximas de justiça: “A cada um segundo seu esforço (liberalismo
econômico)”; “A cada um segundo seu direito legal (Estado de direito)”; “A cada um
segundo o seu merecimento (em organizações aristocráticas)”;. “A cada um segundo sua
necessidade (socialismo)”. Seria possível uma conciliação entre estas máximas?
(Hoffe, p. 41)
Höffe responde afirmando que a legitimação da perspectiva da justiça depende da
política.
“o Político, sobre o qual se dirige a perspective ética, não tem qualquer apresentação fixa,
nem sobretudo estática. No decorrer da história mostra-se profundas modificações com o
desenvolvimento do espaço cultural por exemplo desde os grandes reinos da antiguidade
oriental, passando pela civilização helênica, o império romano, passando pelos campos
religiosos da idade média e seus estados territoriais. De fato, a política é um fenômeno
histórico, e portanto, a justiça política também o será. (Höffe, p. 63)
O natural do ser humano é a vida em sociedade a polis, instituição mais uniforme e
presente na sociedade que a própria noção de família e parentesco.
A polis não é nenhuma forma de vida, que se constrói a despeito do conhecimento e da
ação humana pelas suas costas. A polis é um existente e um devir, posto que é histórica.
O ser humano é pressuposto e agente da forma de sociedade (polis) em que vive. Como
possibilidade e chance o ser humano é pressuposto, como desenvolvimento da
16
possibilidade por outro lado é resultado. O ser humano precisa produzir ele próprio a
realidade da sua natureza política. (270)
Neste processo de construção a justiça política da sociedade pluricultural não traz em si
princípios substancialmente válidos a priori em um ponto de vista meramente normativo.
É necessária uma complementação descritiva e no nível fundamental uma antropologia,
para que sejam desenvolvidas juntas as reflexões ética e antropológica
No ramo da justiça distributiva coloca-se a questão, se existem interesses fundamentais
válidos no campo intercultural, interesses que se deixariam realizar somente dentro de
relações de reciprocidade interculutral. (Höffe, 2004, p. 161)
Justiça = concepção política em função da coletividade
“Todas las culturas tienen el derecho y deben tener la oportunidad de plantear y controlar
su propio destino a partir de ejercicio libre de sus decisiones y del empleo también libre
de su patrimonio cultural que está siempre en constante actualización”. (Olivé, Bonfil,
29)
Não há uma cultura nacional o que implica em aceitar que não deve haver um direito de
afirmação cultural uniforme. Todavia existe uma cultura hegemônica que organiza o
Estado, e a política, e a economia. Esta cultura fundada na idéia de progresso e expansão
produtiva impulsiona as demais culturas a modificarem-se e as seduz para a serem
incorporadas à alucinante nave ideológica que conduz ao mais e ao melhor – idéia
bastante familiar à mitologia guarani da terra sem males.
Para limitar Chronos, que não se devore os próprios filhos, mutile seu próprio gerador e
finalize a humanidade ou humanização, reaciona-se com o encaminhar de uma nova
relação política que responda às demandas sobre território, justiça respeito a tradições e
costumes e livre determinação dos povos.
Grupos culturais distintos assumem a herança e o domínio de um determinado patrimônio
cultural, quer dizer, de um conjunto de bens, tangíveis e intangíveis que abarcam desde
um território até formas de organização social, conhecimentos, símbolos, sistemas de
expressão e valores que consideram seus. Seus no sentido de que somente os membros do
grupo, somente os que são admitidos dentro desta identidade coletiva, dentro deste nós,
teriam direito, em princípio ao uso e usufruto, ao manejo destes elementos que formam
seu patrimonio cultural criado historicamente pelo grupo (Batalla, p. 191)
Considerando que não há isolamento entre culturas, é bastante difícil estarmos diante e
uma situação em que o nós e o patrimônio cultural estejam perfeitamente determinados.
A tendencia é que o controle original do patrimonio cultural que cada gruo assume como
próprio se transforme em virtude da relaçào de dominaçào. Isso significa que o grupo
dominado começa a perder, por um lado suas capacidades de decisão, quer dizer, há
17
ambitos de sua vida, de sua cultura, de sua contidianidade, de sua vida cerimonial etc,
que deixa de estar sob seu controle. (192)
Manter um costume pode ser um processo de resistência. Manter uma cultura própria
depende da construção de um ambito de expressão e efetivação do exercício de sua
capacidade de decisão. Uma ética intercultural deve ter subjacente princípios de
corresponsabilidade e de solidariedade, que representam o fato de que a união pode ser
construída sem dominação.
“partiendo del reconocimiento de que los pubeblos no son iguales, prescribiera que lo
justo es estabelecer de común acuerdo mecanismos que aseguren la satisfacción de las
diferentes necesidades de cada pueblo? Tales mecanismos deberían incluir, por ejemplo –
entre otras medidas- reglas justas de comercio, de propiedad de la tierra y de los recursos
naturales, así como del consumo energético.”(Olivé, p. 345)
A ação intercultural de afirmação e convivencia das diferenças por meio de
corresponsabilidade e solidariedade são, a meu ver, a máxima de conduta política para a
justíça distributiva entre culturas. E com isto a busca da justiça passa a ser o caminho de
resistência à ação uniformizadora da globalização econômica.
Equidade ou justiça equitativa
A justiça equitativa é a justiça que se constrói a partir da justiça política que estabeleceu
uma igualdade participativa na socieade, material e política e que possibilita, a partir
deste esteio geral que constrói a polis, que as relações concretas se reconheçam em suas
diferenças e estabeleçam objetivamente e pontualmente regras de convivialidade.
“A equidade exige que se compartilhe ao mesmo tempo poder e ter”. (I. Illich, 395)
Os benefícios materiais e o empoderamento devem ser ganhos objetivos que
demonstrarão que o ganho financeiro da empresa está sendo repartido de maneira
qualitativamente equânime.
Repartição equitativa é aquela que respeita o equilíbrio dos interesses envolvidos entre as
partes contratantes, a partir da comunicação, onde, são divididos, interesses e
expectativas, gerando uma contrapartida de aumento de qualidade de vida, compatíveis
com os valores das comunidades e o uso sustentável dos recursos naturais.
A repartição de benefícios deve responder a um equilíbrio de valores intercambiados
entre as partes contratantes e servir para a construção de uma sociedade mais justa.
Para funcionar adequadamente, a economia industrial precisa sacar recursos que estejam
fora do ciclo de sua re-produção. Porém, ao tomar estes recursos, eles deixam a fonte de
reprodução e de renovação do capital. Se assim é, deve-se concluir que o capitalismo
necessita do não capitalismo para sobreviver.
18
Resolver este paradoxo faz parte do modo como serão desenvolvidos os contratos,
demarcados os benefícios e determinado o que seja justa socialmente e equitativa
repartição de benefícios. Sem dúvida, isto envolve reconhecer o instrumento contratual
para além da mera contraposição de interesses na aquisição de direitos de propriedade.
Para isto, já bem antes da construção da CDB, abria-nos os olhos Ivan Illich quando
expunha a necessidade de equidade de utilizar diferentemente os instrumentos da
socieade industrial para construir o que vai chamar de “sociedade da convivialidade”:
“No es facil imaginar uma sociedad donde la organización industrial esté equilibrada y
compensada con modos distintos de producción complementarios y de alto rendimento.
Estamos a tal grado deformados por los habitos industriales, que ya no osamos considerar
el campo delas possibilidades; para nosostros, renunciar a la producción en masa
significa retornar a las cadenas del pasado o adoptar la utopía del buen salvaje.
Pero si hemos de ensanchar nuestro angulo de visión hacia las dimensiones de la realidad,
habremos de reconocer que no existe una unica forma de utilizar los descubrimientos
cientificos, sino por lo menos dos, antinomicas entre si. Una consiste en la aplicación del
descubrimiento que conduce a la especialización del poder; En ella el hombre se
convierte en accesorio de la megamaquina, en engranaje de la burocracia. Pero existe una
segunda forma de hacer fructificar la invención, que aumenta el poder y el saber de cada
uno, permitiendole ejercitar su creatividad, con la sola condición de no coartar esa misma
posibilidad a los demás.
Si queremos, pues, hablar sobre el mundo futuro, diseñar los contornos teóricos de una
sociedad por venir que no sea hiperindustrial, debemos reconocer la existencia de escalas
y de límites naturales. El equilibrio de la vida e expande en varias dimensiones y, fragil y
complejo, no transgrede ciertos cercos. (...)
Llamo sociedad convivencial a aquella en que la herramienta moderna está al servicio de
la persona integrada a la colectividad y no al servicio de un cuerpo de especialistas.
Convivencial es la sociedad en la que el hombre controla la herramienta.
(...) el padre de este vocablo es Brillat-Savarin en su Physiologie du goût; Meditations sur
la gastronomie transcendantale. (...) (P. Illich, 373-4)
Por convivencialidad entiendo lo inverso de la productividad industrial. Cada uno de
nosotros se define por la relación con los otros y con el ambiente, así como por la sólida
estructura de las herramientas que utiliza. Éstas pueden ordenarse en una serie continua
cuyos extremos son la herramienta como instrumento dominante y la herrmienta
convivencial. El paso de la productividad a la convivencialidad es el paso de la repetición
de la falta a la espontaneidad del don. La relación industrial es reflejo condicionado, una
respuesta estereotipada del individuo a los mensajes emitidos por otro usuario a quien
jamás conocerá a no ser por un medio artificial que jamás comprenderá. La relación
convivencial, en cambio siempre nueva, es acción de personas que participan en la
creación de la vida social. Trasladarse de la productividad a la convivencialidad es
sustituir un valor tecnico por un valor etico, un valor material por un valor realizado. La
convivencialidad es la libertad individual, realizada dentro del proceso de producción, en
el seno de una sociedad equipada con herramientas eficaces. Cuando una sociedad, no
importa cuál, rechaza la convivencialidad anes de alcanzar un cierto nivel, se convierte en
19
presa de la falta; ya ninguna hipertrofia de la productividad logrará jamás satisfacer las
necesidades creadas y multiplicadas por la envidia. (385)
La equidad en la distribución de los productos industriales es condición necesaria, pero
no suficiente para un trabajo convivencial. ... Debemos construir – y gracias a los
progresos cientificos lo podemos hacer -se una sociedad posindustrial en la que el
ejercicio de la creatividad de una persona no imponga jamás a otra un trabajo, un
conocimiento o consumo obligatorio. En la era de la tecnología cientifica, solamente una
estructura convivencial de la herramienta puede conjugar la supervivencia y la equidad.
La equidad exige que, a un tiempo, se pompartan el poder y el haber. ... Una estrutura
convivencial de la herramienta hace realizable la equidad y practicable la justicia; ella
constituye la única garantia de supervivencia”. (Illich, 387)
Com este texto de Ivan Illich, concluo o conceito de repartição equitativa de benefícios,
mostrando que é o coroamento moderno das relações arcaicas de intercâmbio identificada
por Mauss, e desejadas nos textos da CDB. É o desafio. Se a efetivação do contrato de
repartição de benefícios se afastar dos valores e conceitos externados neste artigo e
defendidos pelos antropólogos, teórico do direito e filósofos aqui trazidos, o bem
desejado para as populações tradicionais se reverterá no mais recente processo de
colonização e destruição. Cabe ao desenrolar dos fatos provar que em 1992 instaurou-se
um processo de reversão ao iniciado em 1492.
“Viver é muito perigoso...Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar
sendo se querendo o mal, por principiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si,
para o concertar consertado. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo.”(J.
Guimarãe Rosa. Grande Sertão: Veredas, p.32)
Que a reflexão do sertanejo não se torne uma profecia na aplicação da repartição justa e
equitativa de benefícios. O estabelecimento do diálogo intercultural como meio de
formação de justiça política e equidade nos relacionamentos entre sujeitos igualmente
formadores de uma comunidade, mas distintos em suas raízes, formação, e classe social é
imprescindível. O modo como isto deve ser feito, o que deve ser trocado, quais e quanto
são os benefícios fundadores da justiça e reveladores da eqüidade devem ser definidos,
para que não sejam o exercício da dominação colonial travestido em contrato do século
XXI. A troca de experiências deve ser um elemento de fortalecimento de laços sociais,
fundados na dádiva e na obrigação de reciprocidade.
O desafio da democracia é o reconhecimento do diferente, dar-lhe voz autonoma, e
formar espaço de comunicação intercultural capaz de reforçar os patriônio próprio e fazer
com que o intercâmbio seja um meio de fortalecimento das identidades e não a dissolução
em equivalente etéreo de uma identidade universal abstrata e que só pode perdurar em um
imaginário que oprimirá as ações do cotidiano enraizado nas origens e construções
históricas necessariamente plurais. “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de
repente aprende. Por que é que todos não se reúnem, para sofrer e vencer juntos, de uma
vez?”326
20
Será que seremos capazes, quinhentos anos depois, de pormos fim à maldição de
Malinche?
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