Aspades_Fernando_Monteiro_Cap1

Transcrição

Aspades_Fernando_Monteiro_Cap1
Edição de texto: Schneider Carpeggiani _ Edição de arte: Jaíne Cintra
www.cesarea.com.br
Recife, 2014
POSTENEBRAS
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Aspades ETS etc.
1. UMA INTRODUÇÃO AO CINEMA
DE VASCO ASPADES DO CARMO
“Não se fazem em Portugal filmes originalmente presunçosos. Dos modelos
estrangeiros, copia-se, além do resto, uma presunção estrangeira. Ao menos
inventemos, à falta do resto, uma presunção nacional. ”
PEDRO ANDRADE
Conheci Vasco Aspades em circunstâncias perfeitamente banais, em 1973.
Embora estivesse profissionalmente ligado ao cinema (desde 1968), no Brasil eu jamais ouvira falar nele, lera sobre seus filmes ou soubera qualquer
coisa a seu respeito — o que vale também para a primeira viagem a Portugal
(1969). Quatro anos depois, voltando à Europa, e pretendendo me demorar
em Lisboa por mais de um mês, ouvi falar em Aspades porque alguém havia
me indicado o nome e o endereço de um cineasta que era também arquiteto (acho que fosse o António de Macedo já não tenho bem a certeza), procurei-o e conversamos desinteressadamente um no outro, pelo quê, hora
e meia?..., ele mencionou Vasco do Carmo entre outros, e eu lhe dei, ao me
despedir, o nome do meu hotel, que “acontecia de ser” — explicou Macedo
— o de uns primos de Vasco Aspades... e esse foi todo o primeiro contato
que, inicialmente, tive com o cinema português e o nome do cineasta, logo
ao chegar (recém-casado — na verdade, em lua-de-mel!, num setembro que
levava a preguiçar no Rossio, nas pastelarias com café da África e a visão do
castelo de São Jorge, muralha onipresente sobre a cidade ladeirosa. Enfim:
eu tinha 24 anos, o cinema não era urgente, Portugal era ainda o velho: dos
táxis Mercedes e das obsequiosidades tensas, um pouco forçadas demais
para serem autênticas gentilezas)...
Mas Vasco Aspades do Carmo de fato estava hospedado no mesmo hotel
que nós; aliás, não era hotel. Era uma simpática pensão — Moraes —, que
Fernando Monteiro
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já não existe na Avenida da Liberdade, ah onde ela se inclina antes do Cine
Tivoli; os Moraes, pai e filho — o filho, desses mais velhos do que o pai —,
eram mesmo seus parentes, e Aspades vivia, então, o fim do seu primeiro
casamento. Tinha 48 anos, uma boa casa que deixara para trás e recebeu-me
dizendo que tentara realizar um filme no Brasil (!), em 1956, que se chamaria LADAINHA DEBAIXO DO MORRO, mas os produtores portugueses e brasileiros se desentenderam... Seu quarto era bem em cima do nosso, eu já havia cruzado bastante com aquele homem sério (a casa de banho era comum
aos dois andares, na pensão velha), de aparência quase grosseira — que pareceu um pouco incomodado em receber-me, apesar de uma gentileza, tipicamente portuguesa, que se forçou a ter, daquela forma um tanto determinada demais que revela que os Lisboetas estão sendo mais educados do que
verdadeiramente gentis (quando o recebem sem saberem o que você quer,
e quem você é etc.). Não poderia ter havido conversa menos espontânea,
no início, quando sentei- me justo numa poltrona que ainda estava quente
— era a dele — e o vi instalar-se, contrafeito, numa cadeira, enquanto eu
pensava duas vezes em propor a troca de lugares, que iria constrangê-lo —
porque daria a perceber que eu percebera seu incômodo etc. Com um sentimento de estar sendo idiota, comecei a falar sobre a coincidência da pensão
e essas besteiras que não têm alma na partida das conversas com pessoas
que não estão exatamente felizes em recebê-lo, ou prefeririam não fazê-lo,
continuar a ler um livro, uma revista, permanecer sentadas onde estavam,
nada fazendo — a ter que engendrar alguma conversa com um desconhecido, brasileiro, sentado na sua poltrona, “recém-casado” (eu acho que ele
logo ficou sabendo, porque me lembro de Vasco ter redobrado a gentileza,
postiça, dizendo: “Ah, sim, é uma senhora nova, eu já a vi... não parece uma
brasileira... então muito bem” etc. etc.)...
Quer dizer, Portugal é um país de surpresas, banais como táxis ou totais
como um homem com cara de jornaleiro, de boina de vendedor de bilhetes
e mãos grossas que esfarelam pão sobre sopas intocadas: esse homem é um
cineasta de filmes que você não conhece, hospedado na mesma pensão, lendo o programa das touradas com mais afinco do que as críticas, esteve no
Brasil — “fazendo o quê?” (“Um filme”), “Um filme?” —, assim começamos
nosso convívio intermitente, não fosse pelas cartas longas que firmaram a
amizade, dessas não se sabe por que fáceis, com um homem mal-humorado, ele talvez me vendo como eu era mesmo: jovem cineasta ignorante em
face de um artista de mãos dispostas a tocar num ponto sutil da realidade
que se equilibra na porta branca das imagens oh, por ela a espécie de halo
uma canção em preto e branco você podia sentir melhor a chuva dentro da
gaiola faz recordar um corredor florido como explicar um corredor florido?
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a canção nos jarros trepadeiras derramando-se como a luz por entre as paredes de madeira branca recém-pintada o chapéu de alguém uma conversa
interrompida a música do rádio se você tinha uma esperança uma coisa que
a noite dissipou então nessa manhã ao som claro das coisas no halo que me
faz ouvir o lugar a canção do rádio na gaiola sem porta onde você acordou
preso a lençóis amarfanhados essa palavra para dizer: Liberdade, vila morena, minha pequena você também é uma surpresa... as castanhas do ano
foram ruins há um cheiro rosado de pêssegos que amadureceram cedo demais como na sacristia da igreja junto com maçãs bichadas da quinta sesmaria que vemos passar pela solidão comovente dos campos sem ninguém
porque é muito cedo e rodamos em segredo e aspiramos também o cheiro
dos pinheiros junto com os venenos de levedos, fermentos, mosto do mais
doce dos meses pois abril só é cruel para os ingleses, abril cruel não conhecemos: isso na estrada de Aveiro; em Lisboa, nessa hora tão cedo, a manhãzinha nascendo debaixo das ameias do Castelo ora escondido por uma propaganda de Sandeman (uma espécie de Lord Byron de capa coimbrã), entre
os restos da festa sob a fonte deixada acesa e fremente para o banho — nós
nos banhamos, elas diziam, bem em frente dos Correios, adolescentes de
cabelo frisado ao sol oblíquo nos leves troncos do inverno transparente: oh
deus guarda-as das minhas mãos tristes quando reconhecem a pura beleza
condenada a perecer entre fetos como a anémona cedo fenece à primeira
luz da manhã no verão (seu joelho de grega luzia como limões pojados do
mesmo mistério amadurecendo os frutos ainda não amarelos da lua rolando redondamente azul sobre os muros), a Liberdade é triste só quando não
sabemos o que fazer com ela no primeiro e no segundo e no terceiro momentos mas é uma tristeza e uma confusão que valem imensamente a pena
de dor de dente, aquela que a língua sensual sente quando já não encontra
o molar doente, minha pega, minha pequena, minha morena de abril em
conserva, ameixa fresca, fruto maduro deixado agora somente para fazer
sumol.
Isso é possível de se entender? O “cineasta” ainda não é um cineasta —
para você — mas você o conhece como um personagem não mais distinto,
primeiro, do que figurantes de Lumière, gente que você não conhece e se
senta ao seu lado no trem, desembrulha uma maçã, desembarcará em breve
sem você saber ou se importar com o fato de que não irá mais ver essa pessoa — ou poderá encontrá-la quando fizer a viagem de volta, mais tarde, à
noite, quando a coincidência o incomoda mais do que se fosse de dia e você
se apressa para não encontrar o sujeito, mas ele é justamente o homem que
fuma e tem isqueiro ou fósforos num vagão de fumantes que não fumam
mas que ainda querem sentir o aroma forte dos cigarros ibéricos.
Fernando Monteiro
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Vasco Aspades do Carmo — e daí? Nunca ouvira falar. A MULHER DO FIM
DA ALAMEDA LINHAS TORRES é um filme? Dele? (E o que é?...) Não acho
que se deva perder tempo com cineastas portugueses. Manoel de Oliveira
— bem, é claro que eu respeito, mas só vi um filme dele, uma vez, no consulado, cópia em I6mm tremendo e apagada, e a tela instalada próxima de
uma janela de cortinas venezianas, corridas sim, mas por cujas frestas subiam e baixavam, intermitentemente, linhas amarelas de faróis de automóveis e ônibus passando lá fora — o que, como luz e sombra, cinema paralelo
de fachos passando, a intervalos, sobre uma tela de lona, parecia mais real
e atraente do que as imagens do cineasta, sem demérito nenhum para ele,
mal projetado numa noite quente em que conheci Cristina e me esforçava
por parecer casual e tentava tirar partido de qualquer coisa do filme para
parecer engraçado e irônico, de modo que conscientemente fazia uma grande injustiça ao cineasta de FRANCISCA e na verdade estava ansiando para
que o filme acabasse para que eu pudesse em seguida convidá-la para lanchar num lugar que acabou sendo o Arcádia, que também não existe mais
— nem tem nada a ver com Vasco …............................................... ….......................
...................................................................................................................................…...................
...........................................................................................smo tempo que pode dizer-se
o mesmo do cinema que havia sido feito até então, exceto pela presença do
muito veterano Manoel de Oliveira (hoje octogenário, ainda em atividade).
Podemos dizer também que o caso de Aspades era diferente dos outros, o
que é verdade, pelo menos com relação ao fato de o cineasta, por exemplo,
não ser de Lisboa, não ter nascido naquela circunstância que Fernando Pessoa tentou expressar de uma forma curiosamente evasiva — mas insinuante
—, algo que se refere diretamente a essa cidade “cartaginesa”, comerciante,
vivaz encarapitada lá naquela situação meio extrema do Ocidente cristão,
como se tudo que se fizesse ah — arte, leis de comércio, guerras, poemas
quilométricos para expressar coisas pequenas etc. —, tudo fosse coisa que
pudesse ficar insulada entre portugueses descendentes do mundo inteiro
(ou pelo menos do mundo conhecido até então), povo entre tantas línguas,
tantos ventos, tantas formas de amar, tanta saudade do que ainda não havia
passado e não deixara, ainda, de ser o futuro que se espera com melancolia,
entre bolor doméstico, conserva de séculos, corredores, saguões, sestas, lugar onde é de perdição a permanência, o amor é um bilhete perdido na gare
de dentro, pela eficácia sutil de um gesto num restaurante onde dois pratos intocados vão esfriar sobre o oceano da mesa ao cabo da tormenta do
tempo, na vaga de mormaço do julho lisboeta cuja onda quente abre — pela
lente do miúdo, logo antes dos títulos — o filme da mulher do fim de todas
as alamedas que as ditaduras tornam ainda mais estreitas.
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1973? Arma-se o tempo, acima da zona de comércio além do Grandella
(onde irá começar o futuro incêndio do Chiado velho), e o fogo purificador,
por ora, é apenas o dos isqueiros quando as luzes se apagam no Campo Pequeno, na cena estranha do filme* que ainda não conheço, de um cinema
que inexiste para meu desconhecimento — embora acabe de me despedir
de um dos seus realizadores mais importantes, com quem irei cruzar outras vezes, nas escadas que, então, minha juventude não rejeita enquanto
pode e não espera pelo lento elevador de grades sanfonadas da Pensão que
se incendiou bem antes do fogaréu lisboeta de 25 de agosto de 1988...
Mas não antecipemos datas (nem acontecimentos). Pelo contrário, recuemos no tempo, para a estufa de quando Portugal era uma flor doméstica na
lapela do seu professor de silêncio.
*A MULHER DO FIM DA ALAMEDA LINHAS TORRES (1966) (N. da E.)
Fernando Monteiro
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2.1953
“PS. Por que me disse que me tratava mal no seu trabalho? Ao contrário, sinto-me desfocado — em beauté. Creio que exagerou nos extremos. Ni ange ni
bête. Foi por me dizer escritor de segundo piano? Mas... vous me comblez, madame. Eu julgava que, sob o ponto de vista europeu, não havia atualmente em
Portugal nenhum escritor de primeiro nem de segundo nem de terceiro plano.
E para além os planos confundem-se e todos somos, com mais ou menos virtudes, moradores de um beco que ainda não tem saída.”
CAPITÃO HENRIQUE GALVÃO
(em carta de 26/02/1953, a Maria Archer)
“O ano de 1953 foi um mau ano”, disse-me o próprio Aspades, quando juntos assistimos, em 1973, à cópia restaurada de O FALSO FALCATO (para a
qual solicitavam a aprovação do cineasta), seu primeiro longa-metragem.
Um grupo reduzido, vimos desenrolar-se a história vagamente baseada
em... Hawthorne! — o que foi uma completa surpresa, quando li nos letreiros de apresentação daquele filme rodado no início de 1953. “Baseado num
conto do escritor norte-americano Nathaniel Hawthorne”...
O filme não foi um êxito, apesar da curiosidade que suscitou, talvez porque o conto do grande escritor de Salem em que está baseado — WAKEFIELD — é de falsa simplicidade, que nem Mark Van Doren, especialista em
Hawthorne, entendeu, ao escrever: “A pessoa suave obscura, retraída, um
tanto absurda, do sketch assim se conserva até o fim. Hawthorne especulou sobre ela, mas nada aprendeu; era isto o que pretendia, pois a própria
inutilidade do ato de Wakefield, sua quase anônima imbecilidade, era o que
o interessava em primeiro lugar, e sua intenção fora nunca ir além disto.”
Será? Discuti isso com Vasco do Carmo— que tinha um desinteresse total
em O FALSO FALCATO (talvez porque o roteiro não houvesse sido seu, ele
pegou o projeto em andamento, na maior parte patrocinado por um rico
editor português que confiou a escritor de sua amizade “reescrever” a obra
para o cinema, “o que o sujeito fez, pois desenvolveu o conto, fazendo o leitor acompanhar um Wakefield que volta para o lar, entra em casa e não é
reconhecido pela mulher, que casou com outro...” ) —, porque admiro muito
esse conto que teve origem numa notícia lida por Hawthorne, sobre um cidadão londrino que, “sob pretexto de fazer uma viagem, alugou aposentos
na rua pegada à sua casa, e ah, sem que dele tivessem notícia sua esposa e
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seus amigos, sem a mínima razão para esse retiro voluntário, viveu durante
mais de vinte anos”.
Acho que o autor de A LETRA ESCARLATE se interessou pela inutilidade
do ato absurdo, mas também pelo elemento de mistério e morbidez da total
desrazão, que ainda nos comunica certo frio, certa aproximação perigosa da
absoluta falta de motivo, centro meio enregelante daquela narrativa curta,
que Van Doren chama de “rala” (porque Hawthorne também teria ficado na
soleira, no vestíbulo, refletindo sobre “o risco tremendo” — palavras do romancista — que representa qualquer ato através do qual alguém “se isola
da vida, mesmo que seja por um momento”).
Ora, um personagem — como o de Burt Lancaster em GRUPPO Dl FAMIGLIA IN UN INTERNO (1974), de Visconti — pode ser visto se condenando,
mais do que à solidão, porque se afasta do centro ruidoso e vulgar da vida,
mas há nele uma opção consciente que é justamente o que o desumaniza
(no caso, o aristocrata cultor do mundo clássico, que foi tomado como um
autorretrato do cineasta nesse seu penúltimo filme), mas Wakefield tem e
não tem motivo: ele quer ver o que acontece quando se afasta, quando “não
está”... Esse é o centro da questão, parece-me, e O FALSO FALCATO — um
filme falso — passa por cima disso, na minha opinião; pior, avança do ponto terrível em que Hawthorne deixou o relato: Wakefield decide voltar para
sua casa mas ainda está parado à porta, indeciso, quando o conto termina
sem esclarecer se ele vai mesmo entrar...
Há quem sustente, em Portugal, que o filme se aproveita do argumento
para propor uma metáfora política, disfarçada (não esquecer que o filme é
dos anos salazaristas, quando a execrável PIDE tudo podia), mas Aspades
foi reticente quanto a isso, na conversa que surgiu logo após se acenderem
as luzes da cabine onde a sessão especial o deixara mais taciturno do que
nunca, revendo aquele preto e branco do passado que cumpria um ciclo de
vinte anos em 1973: situações mudadas, outro Portugal, outra Europa, cabelos brancos, alguns atores mortos, outros desfigurados pelas carreiras
como se tinham desenvolvido em derrisão de tanta esperança. Evitou-se falar de Maria da Graça Cançado, jovem atriz que interpretara uma inexistente filha (no conto) de Wakefield/Falcato, e mais tarde atriz de A MULHER
DO FIM DA ALAMEDA LINHAS TORRES. Percebi que havia algo relacionado
com Vasco e aquela bela portuguesa pálida, magra e alta como são os tipos
aristocráticos das lisbonenses que emanam voltagem, perigosa, de calma e
loucura estranhamente combinadas, ao mesmo tempo que essa Graça tinha
também algo de vicioso indefinível, qualidade que a câmera de imediato
captava, como capta a energia e a preguiça essenciais de um caráter, a placidez e a angústia das tranquilas e das intranquilas, a vontade determinada e
a falta de medo que algumas mulheres passam como possibilidade — maior
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do que a dos homens — de nada recusar.
Maria da Graça, pelas imagens, era assim — mesmo muito nova, ainda,
conforme aparece em O FALSO FALCATO. Uma mulher esplêndida. Se fosse
encontrada debaixo de véus tingidos de azul profundo, numa daquelas ruas
que se tornam, de súbito, planos ao nível de telhados, no Cairo, entre cemiteriozinhos e pátios internos vedados, ainda assim, na sombra azul do calor
e do silêncio, seria reconhecida como um ser dessa alta potência de atração
que representava perda, loucura, razões para se viver e morrer — apesar
de perfeitamente plácida, lânguida (não preguiçosa), caminhando como se
os pequenos pés não pisassem (preferissem não pisar) em areia movediça,
afundar em limo, calcar em lama.
Repito: a câmera capta esta presença, física e não-fisica, de uma qualidade
sutil, potencial, latente numa mulher: seu corpo imantado, suas mãos ajeitando o cabelo, com displicência e habilidade, sobre a nuca; sua faiscação,
rápida, de peixe-elétrico não-apagado. Tudo isso, quando está disponível
para a lente esfomeada, não se perde em nada—enquanto a escrita, por
exemplo, que vê pelo olho canhestro das palavras, corporifica-o, mas raramente o movimenta e anima suficientemente enquanto compreende (como
Flaubert tomado pelas razões de Emma, por sua não-contaminada virtude
de esperar mais da vida) a essência mas perde a translucidez da aparência,
o tal “algo indefinível” escoado na rede mental pelos buracos de renda fina
que todavia deixa quase sempre escapar o-mais-tangível e, entretanto, irreal, frágil, glória na relva que vai passar como uma nuvem breve sobre um
verde campo tenro. No entanto Maria da Graça está em OSTIENSE, NA VOLTA: chama-se Giuliana, na novela* passada entre Rama, Nápoles e Berlim
— respectivamente nas três cidades onde Aspades estudou (Centro Sperimentale di Cinematographia di Roma), amou e amou — pelo que é dado entender mesmo da prosa evasiva.
* Publicada em 1969 (Editora Ulisseia), revelou Aspades como um genuíno talento literário, desses que surpreendem pela extrema segurança logo da primeira experiência (mais próxima de um
Cario Emílio Gadda do que de um Fernando Namora, felizmente); não precisando gozar do prestígio de seu autor como cineasta, foi acolhida, sem favor, como uma das melhores obras de ficção
lançadas em Portugal naquele ano. (E permanece estimada — mas, não tendo aparecido novos títulos do autor, talvez tenha, hoje, mais o perfil “esquisito” das obras solitárias do que o lugar que
de (ato merece na literatura portuguesa contemporânea.) (N. do A.)
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Mas percebi que se evitara falar dela, naquela ocasião, e a sessão especial terminou por onde devia ter começado: pela exibição — sugerida por
alguém presente — dos dois filmes curta-metragem de Aspades, também
recuperados na ocasião. Um rodado pouco antes de viajar, em 1958, para
a Itália — FANAL, que não me impressionou muito —, e outro, já do período italiano — RAVENA (1960)* —, este uma bela contemplação de lugares
abandonados, esplendores desaparecidos, cenários de gerações estioladas
que perderam o viço no apagar de dois tempos, enquanto as hordas bárbaras batiam às portas douradas da civilização e imperadores cartógrafos,
bispos cúpidos e mulheres tristes amavam, com delicadeza, a decadência.
* Não posso afirmar que o cineasta houvesse pensado no poema, do mesmo título, do russo Aleksandr Blok, mas, com certeza, poemas da magnitude de “Ravena” (e “Viajando para Bizâncio” e “Bizâncio” — ambos de Yeats — e outros cânticos de melancolia menos pela perda do mundo antigo
do que pela conquista do nada, que é o triunfo do nosso tempo) não eram estranhos a Aspades ao
realizar seu filme. Lembro que ele referiu Blok pelo menos uma vez, ao expressar admiração por
um poema de Jorge de Sena, sobre o mesmo tema, publicado na Colóquio/Artes. (E o fez com isenção, porque Vasco era um dos tantos mal relacionados com o “difícil” Jorge, no cenário artístico-intelectual português.) (Idem).
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3.RAVENA E OUTROS LUGARES MORTOS
A Morte de Petrônio
A toda a volta um mundo acaba. Outro começa.
…..........................................................................
“Amigos”, diz, “notai que connosco perece... ”
Não pôde terminar: tombou-lhe a cabeça.
A seu lado, com ele, Eunice adormece.
O mundo é deserto. Tudo recomeça.
EUGÉNIO LISBOA (Londres, 16/11/81)
Os curtas-metragens de Vasco do Carmo não são muitos: CULTURA CASTREJA, o de estreia, em 1949, não o satisfez — na verdade, arrependeu-se
de ter aceitado a encomenda (que dava, a um cineasta de 24 anos, a oportunidade de filmar — o que, em Portugal, não era, e ainda não é, pouco). Mas
ele não gostou do resultado desse documentário com tomadas muito boas
no meio, depois de um começo talvez claudicante, cujo “esteticismo” hoje
o diverte — assim como a piada (ou um dito que “tem piada”, mas veio de
um declarado inimigo seu) de que o filme poderia ser “Cultura Castrense”
—, o que é injusto, inclusive porque teve dificuldades com a censura salazarista, caçando até originais na gaveta de Maria Archer (e outros escritores).
CULTURA CASTREJA tem algumas imagens provocativas para a época, de
vigilância paranoica, e não se prende à camisa-de-força do tema (a herança
celtibérica etc.), mas caminha ah por onde o Minho tropeçou, em desolação
e abandono, pelos três primeiros séculos da resistência cristã — também
tropeçando nos limites de um trabalho de encomenda. Veio, depois, FANAL,
que não me parece mais inspirado, como se o cineasta estivesse ressabiado
de argumentos anódinos (um velho farol, o faroleiro ensinando um aprendiz, nada de especial)... Mas seu terceiro filme curto — TAUROMAQUIA — é
um exercício de estilo, de grande elegância, sobre um tema que lhe fala de
muito perto (Vasco é aficionado, um tio seu foi dos mais afamados toureiros de Vila Franca, e administrador da ganadaria dos herdeiros de D. Maria
do Carmo Palha) e lhe traz alguns contatos que, indiretamente, vão resultar
no projeto de O FALSO FALCATO, um longa-metragem — o que consolida
seu início de carreira não muito fácil (principalmente para ele, homem do
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Noroeste que Lisboa não adoçou de hipocrisias bem-educadas... mas que,
pelo contrário, manteve uma seriedade próxima do mau humor à Torga —
ou quase), a partir da iniciação — como assistente — no festejado LEÃO DA
ESTRELA (1947), de Artur Duarte.
No FALCATO, ele já está em Lisboa, definitivamente; fez contatos que extrapolam da cena portuguesa (recusa a direção de uma peça de teatro, por
sinal), viaja para a Itália com Maria da Graça. É lá que realiza o que considero uma pequena obra-prima, de 14 minutos (19, na primeira versão da moviola), sobre a antiga Ravena, cidade das dissidências romano-bizantinas e
papais, capital ameaçada pelos bárbaros, decadente dos estertores de uma
civilização que já aceitara o compromisso de uma nova religião apenas para
salvar a si mesma... mas que estava condenada na esfera maior, no círculo
grande, que se fecha, de toda uma Idade desaparecendo.
RAVENA é um filme quase perfeito. Na sua concepção, metragem, fotografia em preto e branco (do italiano Guido Lupo), narração sensível, talvez
um tanto literária demais nas imagens competindo com as do filme (esse o
único ponto que discuto, como um tanto enfraquecedor de alguns momentos em que o discurso cinematográfico deveria correr “livre” da escrita)...
Apesar disso, o texto — de Aspades — é excelente, como literatura criada
para “comentar” um filme (necessidade que questiono); não o tenho transcrito do filme (que não voltei a rever), mas é possível se ter uma ideia de sua
qualidade por um outro texto, inédito, para um filme que não chegou a ser
feito, em continuação do projeto de RAVENA, isto é, filmar lugares mortos,
cidades em ruínas (Éfeso, Pompéia, Volubihs, Conimbriga — todas do mundo romano, não por coincidência). O fragmento, que Aspades me enviou a
propósito de uma epígrafe, é inteiramente inédito — e julgo que o cineasta
não se desagrade de vê-lo aqui reproduzido, em memória do projeto abandonado e para dar ideia do texto, bem anterior, que “forra” RAVENA:
“...Uma palavra real que baste, uma certeza que habitasse a alma, o nome
de uma mínima esperança tímida mas presente no limite do pânico, contra
a parede de trepadeiras mortas, no labirinto de um jardim fanado: aqui me
falta, como ao cego que não veria a lava despejando-se no piso inferior da
taberna, aos pés da prostituta dançando sobre a mesa. Em dois metros, há
dois mil anos, dois minutos de pavorosa eternidade; no plano baixo, o rio de
fogo que contemplaram, como um mar vermelho. (Quanto tempo a mais, de
vida impotente face à lenta surpresa dos bêbados, antes de morrer descalça, sitiada pela onda quente da lama?)
Também a morte me cerca entre dois níveis do tempo, duas ilusões, duas
mulheres mortas. Sob o sol que é, às vezes, monotonia para os velhos, para
uma população inteira, de olhos sãos e cegos, as estrelas todas se despejam
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na treva, o céu se torna sufocação, sepultura de agonias imóveis, esfriadas
para sempre, sob indiferença e copos de sorvete agora, nesse lugar no limbo
entre flores acinzentadas: as crianças sob a lava. Separadas, num momento,
do futuro que as tornaria em matronas e mercadores insepultos, não é tudo
alucinação? Oh, dúvida da luz, incerteza que apaga a memória (minha e deles?), suspeita que corrompe o coração da lembrança, monte escavado, cova
coletiva na carne da terra como em mim, no meu cemitério privado, onde se
abre a ferida da casa de luzes sempre acesas despejando-se sobre o jardim
de pequenas flores trazidas de longe como o heliotrópio triste junto à sombra do muro, igual ao cego e ao heliotrópio humano, de olhos sãos voltados
para o fantasma de uma sombra, o vulto de uma deusa lendo prosaicas revistas francesas, ninfa a consultar o oráculo da moda e o horóscopo, dançarina
de perfil recortado na luz, contra a janela, ou sentada no sofá de couro guarnecido de almofadas e segredos, travesseiros e confissões, encantamentos
da mão magra e longa a chamar a chuva da tarde quase finda (de qualquer
modo, a luz acesa como um farol do fim do mundo, fanal perdido), como se
fosse um ser verdadeiramente mitológico e naquele momento doce de preguiça, lânguido, triste, aspirando o cheiro do oceano vindo com a monção,
anúncio do inverno para a adivinha de outra terra, outra casa, outro túmulo
de degraus que descem, descem e descem — como eu e o cego talvez querendo a cegueira, minha pega de sandália de pregos.
Oh, esquecer leva tanto tempo (e é tão triste!): nos dias cinzentos, você
acorda na noite interna, entre alicerces de igual palácio da infelicidade, preservado do esquecimento. E reencontra a forma longilínea na chuva obediente, o som da música falhando, disco arranhado na cabeça, nos nervos já
destroçados pela outra recordação: orquestras de prisioneiras executando
músicas para alegrar carcereiros... Tudo dói, tudo retoma nesse cinema da
mente, água do rio que passa as mesmas neves derretidas do tempo, fantasmas de plantas boiando, mirtos mortos como o heliotrópio na sombra, as altas vinhas crescendo sobre os bebedores na taberna por descobrir ainda, se
continuam a escavar na terra como eu trabalho na minha tristeza, ouvindo
o silêncio irreal, jogando longe moedas de ouro fora de toda usura, e objetos
há muito sem utilidade apesar de tão perfeitos quanto os vasos no museu
da sepultura, camada após camada limpos do pó mortal que preservou do
fogo as sandálias que a outra não voltou a calçar...
Palavra estranha, nunca dita talvez, e mais acreditada do que a morte colhendo a indizível surpresa de todos eles, pode nos fazer morrer no fulgor
da lava ou na cama de um hospital de subúrbio, sem conhecê-la de outra
maneira. E a última alucinação, também. A forma de o segredo ser contado
sem quebra do compromisso com um ser cego e condenado não por seus
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erros, quando para a dança sobre a mesa ou o dia se detém na noite interior
das órbitas surpresas: estamos sós sob o planisfério celeste, a carta que julgamos ler inutilmente, o mapa de segredos que contém a lua — a mulher
— no meio, lâmina na água do Nilo de Cima, do rio aéreo que desce no corpo das fêmeas, universo estranho ao nosso totalmente. Recordação alheia,
memória perdida no mar do tempo em que tudo existe simultaneamente
para todos, entre tristezas e desejos, conchas e vísceras, vidros e navios de
garrafas partidas, páginas de revistas e papiros de adivinhos de porcelanas
marítimas, vitrolas de vizinhos e ossinhos de crianças que cantavam, sacerdotisas mortas e hierofantes quase vivos presidindo a cerimônia do desejo
da infelicidade... (pois invejo a sorte de um cego surpreendido pelo horrível
não visto, e da suspensa dançarina não acima do mesmo destino — vítima
da fatalidade do desejo prosseguindo com o movimento das rodas da bicicleta acabada na vala comum da escavação, repentino precipício, enquanto
o ato supremamente solitário de existir roda a própria essência indiferente
nas hastes vermelhas enlouquecidas num giro oposto à perfeita imobilidade
da ciclista caída, a dançarina de tênis no templo de Dionisos). O que é real,
entretanto — e como poderia ser reconhecido?”
Por todas as referências criptopompeianas, creio que esse texto—ao mesmo tempo semelhante e mais cifrado do que o escrito para RAVENA — remete aos arredores da campânia vesuviana: a Pompéia, Herculano, Stabia,
lugares visitados demoradamente por Vasco e Maria da Graça/ “Giuliana”.
Mas numa linguagem que, a rigor, não se pode saber se houvesse se transformado, já, em escrita pura, projeto talvez de uma continuação de OSTIENSE,
NA VOLTA — quando a ideia dos filmes sobre lugares mortos de certa forma tornou-se sombria demais para ele, quem sabe com a morte de “Giuliana” num acidente na estrada de Castellammara, quando a bicicleta em que
passeava pelos altos azuis colidiu com o monstro moderno — e vulgar —
de um ônibus de turismo, por sobre a visão magnífica das marinas. (Foi um
desses acidentes estranhos, brutais — sobre os quais inicialmente a culpa
recai sobre a vítima, quando parece, a princípio, que ela própria o provocou
talvez conscientemente, pondo em risco a vida de outros etc.; quando assim
se especula, a piedade não deixa de ser substituída por censura, ou mesmo
repulsa, e foi assim com o acidente da “portuguesa louca”, o corpo muito
branco lançado a metros de distância da bicicleta destroçada, as rodas girando furiosamente no ar...)
De qualquer modo, isso encerrou o período “italiano” de Vasco do Carmo
da maneira mais rude em meio à beleza da costa sorrentina, evocada com
amor tiberiano na novela de 1969 (cujo título entretanto se refere à estação
de Ostia, já próxima de Roma, e hoje ligada a Fiumicino pelo metropolitano).
Fernando Monteiro
17
Quando vi RAVENA, disse ao seu diretor que o filme, com relação ao movimento de câmera, lembrava-me em parte o VIAGEM À ITÁLIA, de Rossellini.
Hoje, vejo que me enganei: revi, recentemente, a obra do cineasta italiano (que ali resolveu fazer uso de inovações técnicas, filme eastmancolor em
exteriores pouco iluminados etc.), e percebo que o comentário quase não
se sustenta, com vantagem — total — para o discurso (quase à Straub) que
RAVENA, antecipada e originalmente, experimenta. Aqui também é oportuno lembrar um projeto, apenas esboçado, desse período: o filme que Aspades pensou em fazer sobre o Tibério recolhido em Capri, entre poemas,
jardins e rapazes — e a visão do Tirreno (que, então, passou a ser a funesta
moldura, também, do acidente com Graça, mancha terrível nos dias de sol
esplendoroso de que falam os versos do Imperador melancólico na ilha).
Mas tudo se desfez por um corte seco: os dias de Nápoles e Roma, “Tibério”,
os lugares mortos pela morte de “Giuliana”.
A Itália, porém, não era seu lugar (diz o cineasta, como do Brasil), mas sim
o Portugal de que viera forçado pela ditadura, conforme já fizera em 1956,
ao tentar o nosso país, chamado a dirigir LADAINHA DE BAIXO DO MORRO
— “um filme que tinha tudo para dar errado, fracassar em todos os níveis.
Artisticamente, duvido que pudesse se salvar do equívoco da premissa de
transplantar o mito grego de Orfeu para a favela (claro que o argumento,
eles mo puseram nas mãos, já roteirizado e tudo o mais, outra vez, como
no FALCATO). Mas Orfeu é Orfeu, e samba é samba, ainda acredito. E aí, ou
se força o mito ou se trai a favela — que eu não conhecia o bastante, como
Marcel Camus (que dois anos depois faria ORFEU NEGRO com base na mesma ideia) também não sabia nada do vosso país. É verdade que Camus só
pretendia, talvez, um êxito comercial — como, aliás, obteve — à base de cor
local etc. Eu, nem isso: via somente o lado artístico, quer dizer, na verdade não via, mas induzia-me a crer que poderia, de fato, ser tentado o tal do
mito no morro... O que, efetivamente, era um equívoco. De qualquer modo,
os produtores brigaram, e a coisa se resolveu por si mesma: fiquei livre, lindamente, da LADAINHA no meio, ‘sem choro nem vela...’ Fiz as mulas e voltei
para Lisboa, para o Portugal da camisa-de-força do salazarismo, dormindo
amarrado num catre da PIDE. Era o meu país; lá era o meu lugar.”
Isso está dito numa entrevista com Aspades, que fiz no final de 1973, publicada no início de 74, no Recife (Jornal Universitário), onde o realizador
era um nome totalmente desconhecido, pelo que pude perceber na época
(e hoje não mudou muito). Fica aqui como a forma de registrar o interregno
“brasileiro” de Vasco do Carmo — para ele, agora, um fotograma na parede.
Em todo caso, não há por que se deter num filme inacabado por sobre equivocado, na opinião do cineasta de RAVENA, severo no seu prognóstico — re-
18
Aspades ETS etc.
trospectivo — de diretor, autorizado a falar, melhor do que ninguém, desse
filme interrompido em tempo — sempre segundo o próprio realizador —,
a que, de seu mesmo, só emprestara o título sugerido aos produtores portugueses e paulistas de uma versão de um mito grego aclimatado no Rio...*
* Em todo caso, quando perguntei, ele não soube explicar por que LADAINHA DEBAIXO DO MORRO; disse que a sugestão fora aceita, e que um título “nunca deveria sintetizar, referir, aludir de turma totalizadora, mas apenas faiscar alguma nesga de significado — para logo se velar, na medida
exata (porque tudo é medida) do que se acende e se apaga nas palavras...” Gostava, mais que todos,
do título literário OST1ENSE, NA VOLTA (que o editor quisera mudar), por “coincidir perfeitamente com a qualidade velada da narrativa”. Fora disso, preferia o literalismo sem ênfase, diretamente
referindo personagem ou lugar: THE LADY FROM SHANGHAI (A dama de Shanghai, de Welles),
DE MAN DIE ZIJN HAAR KORT LI ET KNIPPEN (O homem do crânio raspado, de André Delvaux) —
citava Vasco — ou, cito eu, A MULHER DO FIM DA ALAMEDA LINHAS TORRES (um título duplamente cinematográfico, se se recordar o endereço da velha Tóbis Portuguesa, laboratório do qual
saíram as imagens do cinema luso, reveladas para o mundo), que iria se chamará A palavra, se já
não houvesse ORDET, de Dreyer, segundo informa Michel Laub. (N. do A.)
Fernando Monteiro
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4.DOIS COMEÇOS
“Le destin nous poursuit comme un dément armé d’un rasoir. ”
ANDREI TARKOVSKY
A carta chegou no mês de novembro. Remetida no dia 10 — carimbo vermelho, duplo, sobre dois selos azuis mostrando uma torre redonda de Milão,
no estilo do mausoléu de Adriano —, no dia 22 estava à sua espera, entre
outras cartas enfiadas sob a porta do apartamento. O dia foi fácil de guardar
em razão da data do assassinato de Kennedy (“o que você estava fazendo
quando soube?” etc.), assunto obrigatório dos jornais de 22 de novembro,
os editores se obrigando a relembrá-lo como um acontecimento já remoto,
um assunto apagando-se aos poucos na memória dos que o viveram (“o que
você...”) e novo-velho para os leitores mais jovens, indiferentes àquela morte
como ele o fora à de Lincoln, na escola: morte recuada na crônica política de
outro país, num outro século. Também parecia que ela estivera ah, naquele
apartamento, noutro século.
Vinte e dois. 22. “Dois patinhos na lagoa.” Há doze dias, portanto, talvez
com o vestido azul de bolas brancas graúdas, ela se dirigira a alguma agência de correio milanesa (do centro?, de bairro?) e postara o envelope um
tanto cheio, quadrado, aéreo. (No guichê, a funcionária talvez lhe perguntara, redundantemente, se a postagem era aérea.)
Ele não abriu de imediato. Em preâmbulo, com o envelope na mão que soltara os demais, rejeitados, pensava numa rua de Milão — digamos, a via Paolo Diácono — sob a chuva, onde ficasse a larga vidraça de uma agência de
correios das modernas. Ah, ela entrara com uma capa impermeável sobre
o vestido de bolas, uma revista recém-comprada — ou um embrulho acetinado, reto, largo como um livro de arte não muito pesado — protegendo a
massa de cabelos ruivos que ele conhecera longos e hoje podiam estar aparados...
Pensava em tanta coisa, com a carta na mão como um convite formal, um
bilhete de teatro que se vai entregar; pensava no que uma carta pode significar quando o remetente já morreu, por exemplo; nos caminhos insondáveis
da engrenagem postal, funcionando diariamente, ora pontual, ora incerta.
Aquela, por exemplo, fora entregue. Suspirou — involuntária, quase men-
20
Aspades ETS etc.
talmente —, como se acaso tivesse havido ameaça de não ser entregue...
Gostava de cartas. De remetê-las e de as receber, por igual (talvez um pouquinho mais de as remeter, como se fossem uma flecha magicamente pintada, enviada pelo guerreiro zen que, de olhos fechados, acerta o alvo porque
tem o coração puro. A flecha enviada pelo justo acerta o peito do inimigo...).
Demorou, portanto, a abrir o envelope. Sopesava-o para sentir-lhe a leveza de papéis de carta dobrados, semiocultos pelo azul quase transparente
do quadrado contornado pela barra de cores da Itália. Demorando a abri-lo,
quando o fez foi de repente, interrompendo as divagações silenciosas: com
um dedo brutal de quem enfia o indicador na garganta para vomitar uma
espinha de peixe. Abriu rompendo, dilacerando a borda direita dos carimbos e selos, onde enfiou o dedo reto — como um proctologista de luva que
não hesita nem treme. E o envelope se abriu qual ...................................................
.........................................................................................................................................................
..........................…..........................................................
Eis o começo de OSTIENSE, NA VOLTA — desconcertante como sói, ao
comparar, tão esquisitamente no final, a expectativa agitada do personagem (ele acabou de receber a carta de Giuliana) que, então, soa declarada,
brutal, com o medo de quem receia abrir uma carta e nela encontrar o indisfarçável tom que preludia a separação (quando se começa a falar, mornamente, em “amizade” e tudo mais)...
Valerio, o personagem, torce-se em dor, prévia, que é expressa por esse
corte ao gosto de Gadda, por essa quebra de delicadeza que beira o cômico
— e até parece deslocada, num primeiro momento. Mas, leiam de novo: é
calculada, milimetricamente, para o efeito, quando se fala em “dilacerar” e
a imagem que vem é, de propósito, buscada literalmente no fundo do “conhecimento da dor”...
Esse começo é idêntico ao de A MULHER DO FIM DA ALAMEDA LINHAS
TORRES, num aproveitamento, obsessivo, da mesma cena inicial: um homem igualmente recolhe cartas do chão, após vermos que ele chega de viagem, com bagagem, paga o táxi, entra. Encontra os envelopes, na verdade
pisa neles: cartas que esperam — ou o contrário, como em OSTIENSE: é o
viajante que desesperadamente depende de uma carta cuja letra reconhece, em meio às demais (que voltam ao chão, abandonadas sem interesse).
Com um dedo grosso, em grande primeiro plano, rompe o envelope...
Estamos na confluência de duas narrativas, cinema e literatura, que a partir daí se separam e contam, ambos, histórias (?) eu não diria divergentes,
mas vistas pelo olho e pela mente, a partir da cena comum de partida: Vasco do Carmo não pretende senão escrever romances como filmes — e esses
são, para ele, textos que se “visualizam” por fora, filmes dentro de filmes
Fernando Monteiro
21
vistos num romance, luz oblíqua, paralaxe da realidade visão refratada de
um vidro partido:
—“Alguém me conta uma história. ‘Vejo-a’, entendo-a, porque me é familiar
a significação dos sons correspondentes às palavras, na língua que escuto.
Se eu for analfabeto, essa história será pura significação auditiva, como na
roda da fogueira dos povos iletrados: tudo é sensório e imediato, como na
‘fala’ ideogramática.
Mas se a sua cultura tem uma língua, e você conhece a norma culta etc. então o grau de abstração do que você escuta pode incluir a ‘visualização’ das
palavras da narrativa, o que aumenta os limites de abstração do que lhe é
contado... Então, as palavras afastam — e tendem a substituir — a realidade, mas o cinema (que é concebido através, por e a partir de palavras) nos
remete de volta à solidão das coisas, ao primeiro olhar... — Vasco Aspades
olha, sem ver, para um ponto muito ao longe:
—Nessa direção, talvez se possa vislumbrar que tudo é mesmo ‘maya’, ilusão de um cinema projetado, pela mente, sobre a tela que chamamos ‘realidade’, simulacro de uma ordem sobre outra, e, no fim, está o que não é para
se compreender, o que não permite aproximação... A mais que perfeita perfeição perfeitíssima do que não pode ter nome nem ser imaginado, conhecido ou descrito em relação com nada, no vazio onde o espaço ‘para’ e o tempo
se encolhe sobre si próprio, dilatando-se para dentro, mordendo a própria
cauda, onde a ordem dos números, por exemplo, já não corresponde a qualquer realidade do vazio cheio (pois as palavras enlouquecem à medida da
aproximação dos véus estranhos da Verdade)...”
Isso está na entrevista de 1974, mas não foi publicado. Cortei essa e outras respostas que alongavam a matéria num sentido um pouco “filosófico”
demais para leitores de jornal.
Em OSTIENSE, a carta de Milão contém uma outra carta — do próprio Valerio — cuja devolução anuncia o desejo da separação também pelo código
da correspondência recusada, rudeza que sela um “não” não pronunciado.
Carta dentro de carta, VALERIO lê-sem-ler o que ele próprio escreveu torrencialmente, em alusões cifradas, palavras sob véus de palavras, hipnotizado pelo significado — também velado — da devolução:
... num navio intacto, deixado aceso dentro da água iluminada enquanto as
máquinas ainda trabalham e, sobre o mar, a clara neblina recompõe a uniformidade intranquila do oceano mal perturbado pelo naufrágio de um navio dentro de um aquário.
22
Aspades ETS etc.
Pensava numa bicicleta abandonada (imaginou: “vermelha”, mas não podia saber se era: à noite, todas as bicicletas abandonadas são pardas), no
cheiro a ostras, inexplicável, que sentira em toda parte, como se cercado de
vitrines de mariscos sob lâmpadas. Pensava também no beco afogado em
luar, que desembocava numa pequena praça: quatro bancos e seis árvores
(ou o contrário?) deixados para trás como o cheiro a ostras lhe recordando,
o tempo todo, as crianças brincando à vista dos mastros, entre os marinheiros descalços, numa outra infância.
Pensava em Patmos.
Pensava nos cães, estranhamente alheios ao seu deambular noturno, como
se fossem cães comovidos pelo sono de um homem em fuga, obrigado a viver numa cidade estranha e temendo morrer entre estranhos. Nos sonos
desses estranhos, nas imagens que se erguiam dos seus fracassos. Perguntava: a morte, como seria? A noite dentro de outra, barco dentro da garrafa,
num navio afundado? Pensava no resfolegar dos cavalos salvos da enchente,
parecendo um agradecimento daquelas pobres bestas.
Pensava também na canção perdida do rádio — qual era? — entre a chuva miúda e a fila de carros do fim de semana prolongado, onde seguíramos
um carroção de ciganos entre ruas estreitas, o que — para você — era mau
presságio.
Por que vejo as lembranças, vivo-as em ladainha de imagens dilatadas, tapeçaria longuíssima na água escura da noite, insone, na cama? Vuct também
as vê desse modo, irreais como num filme voltando sobre cenas e vozes ao
contrário?
Talvez Deus seja isso, no final de contas: recordar.
No filme A MULHER DO FIM..., a carta — remetida de um modo mais metafórico (e do subúrbio para o centro) — é uma não-carta, enviada sem palavras: apenas envelope e vago. Estamos no território do cinema, sem palavras (como diz C. P Leça, num artigo sobre o cinema de Straub: “As palavras
deixam de ter importância por si mesmas, acabam por se confundir com os
ruídos de fundo da banda sonora... A matéria verbal torna-se matéria bruta que, a partir da negação do seu valor semântico individual, ganha um
inesperado valor fonético global”), embora aqui se trate de algo em plano
mais “ideogramático”, com sentido análogo e imediato do que se vê e menos
do que quer que (por transferência de significado) se queira “representar”,
presente pela ausência (e vice-versa) como num filme sobre, digamos, o desastre do Titanic, rolando na cabine cinematográfica de um outro navio que
afunda, e onde o pânico geral (excetuando-se a paz majestática da cabine
tão escura quanto o oceano) houvesse esquecido de desligar a máquina, o
foco de luz leitosa da projeção não interrompida (para usar da imagem su-
Fernando Monteiro
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gerida pela cena final de um filme de Fellini*)...
Mas Valerio guarda o envelope sem carta no bolso do casaco, parte silenciosa de uma comunicação ansiada, um “não” — ou nada — que soa quase
“sim” aos seus ouvidos, como os olhos de crianças cegas imaginam as cores
de um filme em preto e branco, sugeridas para os sãos.
“O cinema é contra a cegueira.” (Vasco do Carmo, outubro de 1973.)
“E filma-se para saber por que se filma.” (Idem.)
* LA NAVE VÀ (1983). (N. da E.)
24
Aspades ETS etc.
5.DUAS VOZES
“Você diz que vai à Cracóvia para que eu acredite que você vai a Lemberg. Mas
eu bem sei que você realmente vai à Cracóvia. Por que, então, mentir?”
SIGMUND FREUD
(in Le mot d’esprit et ses rapports avec l’inconscient)
A MULHER DO FIM DA ALAMEDA LINHAS TORRES é, para mim, uma espécie de obra cinematográfica cujo parentesco é difícil de situar; em todo caso,
eu a aproximaria, de modo indireto, ou subterrâneo, dessa obra, ainda tão
desconcertante, que é o estranho LIMITE, filme que Mário Peixoto misteriosamente realizou, em 1931, criando uma lenda no cinema brasileiro, alguma
coisa realmente “limite” entre duas visões do cinema, revolucionária para a
época e, ainda hoje, exigente no tipo de espectador de que necessita. O filme de Vasco Aspades, não: não é assim tão irredutível, pode ser mais bem
acompanhado do que o de Mário (que, curiosamente, depois tentou diminuir a importância da sua obra), mas tem com ele uma proximidade interna
no que diz respeito a................................................................................................................
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........................................... …..........................................................................................................
...............................................…........................................................................................................
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Dois anos: 2. O patinho só. Feio, e só. Na lagoa.
A lagoa é gelada. A casa é bonita. O menino não é educado. A memória vai
falhar.
Vai apagar o sol de Tibério, o menino mau. Ele, no entanto, sabe agora colher o sol na pele salgada cuja brevidade ultrapassa o tesouro do mar, da lua
inútil como a solenidade dos papiros que coptas queimam para esquentar
café, diz a canção melancólica, Imperador, nos cantos dos lábios dos vossos
antepassados úmbrios, em suas belas sepulturas visitadas por turistas com
cólicas, procurando onde se aliviar nas tumbas... Soava como eu próprio
dissertando sobre simulacros & atrizes, para uma pequena graça também
queimada pelo sol da Villa Jovis, recendendo ao mar, porejada de areia nos
ombros sobre os quais pairava a sombra de uma sombra, nas câmaras que
Tibério mandara decorar para seus amigos... O Imperador era um grande
pato triste; eu sou um patinho feio que conhece a beleza de perto, viu seu
mistério surgir de uma piscina, coral & cinzas, rosmaninhos & mirtos, tudo
acompanhando uma náiade não de Corinto, mas de Óstia, na noite quente
Fernando Monteiro
25
de rumor de rádios e ares-refrigerados, proximidade de um farol enquanto você ouve sobre a praia de um verão esquecido, entre gritos de pessoas
que ficaram para trás, a intuição de que tudo está sumindo numa corrente
de canal que drena para o vazio todos os minutos de um caixeiro e os segredos de caravaneiros da rota da seda, os tesouros da recordação de um
cego e os lamentos dos nômades que se perderam de suas estepes, as vidas
dos mongóis e a névoa na mente dos prisioneiros que viram as glórias de
Gêngis, palácios de papel e árvores de pássaros de madeira cantando nas
horas monótonas do inverno enquanto papas, no Ocidente, vendiam ossos
de santos e indulgências que já não serviam para salvar uma alma de Ravena, mundo se desintegrando, condenado por um fracasso da crença, uma
indiferença, uma morte que não se conhecia, um cemitério de recordações
marinhas, de coisas sepultadas na água, um astro que escondia a mais bela
das culturas dos planetas, um esquecimento, uma palavra da língua morta que ainda servia para aquela espécie de beleza, um berço azul oscilante
pela mão do crime (mães que já não protegem mas assassinam nos ninhos),
tudo isso ao fundo do grande berço azul de água térmica da piscina capresa
de Heliodoro, o amante mais devotado ao imperador dos romanos, Tibério
do ano da morte de Jesus Cristo, nosso salvador sem poder senão o de oferecer, aos salvos, uma vida eterna que não interessa para nada, não traz Giuliana de volta, não retorna com os dias de novembro, não refaz as palavras,
não muda o sentido dos atos, não recompõe uma simples ferida humana de
carne cortada por uma garrafa, não alonga a noite da baía em outro tipo de
eternidade desejada, não reconstrói a vida sem amores de Cesare — embora ele amasse mais do que todos, sem nada receber em troca (o que Cristo
consideraria egoísmo) —, não acende e apaga a refrigeração a intervalos
calculados, no quarto, para sustar o frio em marcha e deter o fio de suor sobre uma têmpora dourada, não desliga rádios nem lembranças, não recebe
a manhã com a consciência de que tudo está passando, e essa única manhã
representa uma perda inestimável, não compreende isso, a essência desse
santo egoísmo feito de lamentação de crianças que não são mais crianças,
nós as perdemos como pequenas luas de humor em nossa órbita, satélites
que a vida atrai para o magnetismo sombrio dos saturnos, nem isso faz: salvar crianças de si próprias. Ela não compreendia. A princípio, ela não compreendia: olhava-me com essa expressão branca das mulheres, bela de ignorância, pura como um horizonte cujas máculas se disfarçam nas ondas de
calor da tarde.
Eu perdi essa luz — e essa sombra — nos seus ombros. Agora, janelas fechadas, o tempo na pele, a mão que é um mapa de endereços pompeianos,
placas sob lava, penso na perfeição — que não parecia perfeição — do on-
26
Aspades ETS etc.
tem, e busco mimetizá-la, pois se trata da chave da morte
—essa grande janela do tempo aberta para o éter — contra dispersão &
entropia, a sonata no ar, a casa de inverno, o bosque de choupos, o verão
onde tremeu sua imagem na água antes de se dobrar...
TIBÉRIO (anotação para a “sequência 3”):
—Não me inflija dor.
O deus tinha uma máscara de indiferença e falta, total, de piedade.
—Não...
Ela própria favoreceu o primeiro gesto, embora chorasse, começasse a chorar, dividida entre o medo, as lágrimas e — o olhar. Parque olhava, ela própria olhava.
—Não...
A máscara do deus revelou uma outra, como em Tirinto. Um rosto —
mesmo uma máscara — não podia ser daquele modo. O horror extremo, entretanto, de certa forma acalma, chega a um limite — e ela chegara.
O céu era belo, esplendor puro. Tibério assistia.
Tornara-se sábio, iluminado, santo — aquele crápula, imperador do mundo?
Estava lembrado, esquecido, consciente — morto, vivo?
Como a folha contemplada, prestes a cair, ligada ao galho até tremer, ao
vento frio do norte? Como o animal de sacrifício, sem futuro, sem passado
— qualquer animal —, só presente, só comer os brotos novos, era só isso?
O que vogava na cabeça branca, cingida por uma coroa de louros de ouro?
Imagens do passado, o reflexo do céu matizado de rosa porque o verão findava, o que se passava dentro do escuro poço envelhecido, além das árvores
de brancas estrias? Onde o nascimento entre pernas de uma mulher angustiada, a infância triste, a juventude rápida, a guerra que remia, o horror incomunicável, seu arrependimento, sua indiferença, sua esperança?
Que finalidade havia? E a necessidade, a razão do acaso, a desrazão do motivo — onde?
O Deus, o Oculto — existia? (Uma vez, em Alexandria, ele.................................
...........................................................................................................................................................
...........................................................................................................................................................
...........................................................................................................................................................
.........................................................................................................................................considerando o cinema do tipo do de Bresson, que hoje pareceria maneirista. (Jean-Marie Straub supõe que o cineasta foi levado a isso pelo receio da imitação
do teatro — e também porque Bresson acredita numa “pureza” cinematográfica que leva a uma espécie de ascese fria, cartesianismo de imagens que
Fernando Monteiro
27
é contrafação — para Straub — do meio fotográfico, indexal.)
Talvez se deva lembrar, de novo, LIMITE — filme que Vasco do Carmo nunca assistiu, segundo me disse (ele conhece Humberto Mauro, Gláuber, Joaquim Pedro, alguma coisa de Cavalcanti, mas LIMITE nunca viu). Da Baixa
para a alta monotonia, da Torre de Belém para a China, da escuridão dos
claustros para ilhas de selvageria, do Chiado que virou cinzas para o pó da
morte — como na cena final do filme de Vasco Aspades: sobre a ponte que
é o orgulho de Lisboa, parando seu automóvel sob o protesto de carros que
se desviam, ela acende um cigarro, encosta o fósforo mais ao fio dos pensamentos e, sem emoção aparente, cabelos ao vento, joga a urna com as cinzas
para o vazio, nuvem de pó absorvida na luz imediatamente, espalhada no ar,
partículas finas talvez sobre sua cabeça. As buzinas reclamam, ela acena.
Só então o fim já pressentido se explicita com essa palavra idiota que nos
avisa que um filme termina... (Aspades sorriu quando eu lhe disse que essa
é uma das poucas coisas de que não gosto em A MULHER DO FIM DA ALAMEDA — eu diria — QUE NÃO TERMINA
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Aspades ETS etc.
6. ANOS SEM FILMAR
“Da cultura portuguesa, ouvem-se algumas moscas troçando. A identidade
portuguesa, como disse alguém, ‘é feita de procurar a identidade portuguesa’
”
JOÃO MIGUEL BARROS
Como se castigado por divindades estranhamente irritadas, Vasco do Carmo ficou, a partir de ALAMEDA (e com alguma ajuda, menos estranha, das
divindades da política portuguesa), nove anos e meio sem filmar. A conta é
precisa, não arredondada para dez, nos grossos dedos da mão que achata,
não penteia, os cabelos.
Havia terminado A MULHER DO FIM..., no final de 1966. Quando o dezembro lisboeta trazia a azáfama das compras (em Badajoz etc., pelo menos
para os endinheirados de sempre), ele dava os toques finais na mixagem, e
se sentia vazio de alguma coisa que estivera, até bem pouco, o tempo todo
com ele. Não estava mais.
Recorda daquele como de um tempo estranho, alongado e parado, extático no meio de muito ir e vir da sonorização. Estacionava o carro nos lugares
mais inesperados, ficava sentado dentro, a fumar, ou saía para uma pracinha do bairro alto, ah pela Trindade cheia de pombos e velhinhas lépidas, ou
quase, ou ao menos vigorosas da certeza de suas vidas transcorridas num
bairro quieto, num pedaço do mundo aferrado à sua própria pequenez, ritmos da infância, sóis que todos os dias avançam pelos mesmos bancos com
a mesma régua polida e clara de desesperança que a ele, ali, no mesmo banco, assaltava como um ladrão do seu melhor momento, em anos.
Só quando estava no estúdio, com as imagens tremendo suas luzes e sombras cinzentas, sentia-se “real”. Isto costuma se escrever em romances baratos, mas aqui — que não é romance — é verdadeiro. Vasco pelo menos
o garante, ao recordar como vivia naqueles meses e, depois, nos anos que
vieram em seco, inférteis para a produção, a realização dos projetos, dos
filmes meio sonhados quando tentava reatar o fio de seda do sono, o ponto
impreciso de fusão daquele ouro que vinha do fogo de lembranças, sonhos
possíveis de dilatar e comprimir, mais tarde, só com um sopro da vontade,
mas sem se impor, sem nada forçar à luz crua da realidade, no mundo insucessivo onde tudo desfigura a corrente das imagens livres do controle do
Fernando Monteiro
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que chamamos “lógica” — simbólica ou não. (“Depois de soltar a mão estranha do sonho”... começava, assim, um poema que ele nunca terminou.)
Mas voltemos à Lisboa prosaica da Praça do Commercio. Ora em Portugal,
ora presente em festivais internacionais, com seu filme mais completo até
aquele momento, Vasco Aspades vivia o que, de fora, devia parecer o melhor
dos tempos.
Não veio nenhum prêmio, é verdade, pelo menos os de prestígio imediato, mas seu nome tomou o curso, afinal, do cinema europeu dos circuitos de
arte, a partir do filme que fizera não com certezas mas com inseguranças,
as ideias do sono, suas imagens incompletas, seus nexos secretos, seus pedaços de lembranças, coisas vividas e coisas que deviam pertencer a uma
outra vida simultânea, noutro lugar ou dimensão, como Wakefield na sua
duplicação de uma existência que contempla outra, ambas em uma só dobra do tempo...
Era o começo de consagração para além de Alvalade...
Muito bem recebido na Quinzena dos Realizadores, o filme foi a Sidney e
a Berlim, “fez carreira” — dizia-se nas tascas lisboetas frequentadas pela
humanidade particular do cinema, um pouco igual em toda parte. Havia
admiração — e inveja —, um pouco de ódio, nada anormal. A MULHER DO
FIM DA ALAMEDA LINHAS TORRES estava no ar, na tela dos cinemas, nas
conversas e nas piadas, e Vasco se tornara, definitivamente, “o Aspades”, o
cineasta, o novo Manoel de Oliveira, o Godard português, essas besteiras.
A verdade é que estava infeliz e só como nunca estivera. (Quantas vezes,
ainda, essa frase insuficiente vai ser escrita para expressar uma angústia
que não é literária?)
Em Berlim, após o festival de 68 (o ano se refletindo diretamente no clima
da mostra), Aspades cruzou o Muro alto, a divisória de mundos eletrificada e vigiada 24 horas por dia — e ficou, pelo tempo de um visto especial,
obtido de forma curiosa, por lá. Também não fazendo nada, precisamente. Gostava de andar e não escreveu para ninguém. Comprou bilhetes para
apresentações das orquestras — excelentes — do lado oriental, que, muitas vezes, não usou, deixando de ir sem motivo algum. Viu uns poucos filmes, nada de muito bom em 68 (Alemanha, tua alma se partiu e demorará
a ser colada pelas mãos decepadas dos anjos dos parques — escreveu, mas
não terminou)... Caminhava ao lado do rio Spree (e de lanchas-patrulha daquelas águas íntimas da cidade), quase sozinho, à frente ou atrás de algum
passante cinzento, sozinho como ele, nas manhãs em que saía, muito cedo,
do hotelzinho de longas escadas sem movimento também, apesar do elevador parado, com um aviso que enferrujara na porta sanfonada. Gostava da
“Ilha” de museus, que o rio acompanha, solene, e mais do que tudo do velho
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Aspades ETS etc.
Pérgamo fechado “para obras” — onde conseguiu entrar de posse de outro
salvo-conduto muito especial, obtido junto à mesma fornecedora do visto
de permanência temporária.
Acompanhado por uma senhora carrancuda, cujos saltos percutiam no
piso dos salões de modo pungentemente vítreo, ele percorreu seções e mais
seções das antiguidades orientais e do Ocidente, da Mesopotâmia longínqua e da Babilônia dos livros (os portões de Nínive, os murais cerâmicos
dos palácios esverdeados dos persas), os horrores do sono dos hititas, altos
pesadelos de pedra, tudo transferido para o museu da ex- capital (inclusive
o altar de Pérgamo, inteiro), tudo levado do seu lugar remoto para o silêncio daqueles salões sem vida, numa Berlim dividida. No lado oriental, as
pessoas não tinham pressa, mas também pareciam sem objetivo, sem nada
que festejar nos cafés, nos restaurantes calmos, semivazios em certas horas
— parecendo cenários vistos na irrealidade de espelhos polidos, hmpos,
sinistros.
Nunca vira tantas esculturas gregas, tantas cabeças e torsos e mãos e pés
em perfeição solitária, dizendo: “Nossa certeza de sermos belos e imortais
ficou para trás, entre a Lua e os limões...”
“Pérgamo!” — como foi o título, conciso e exclamativo, de um artigo que
Aspades conseguiu escrever, em meio do seu abulismo, e remeter para O Século (mas não foi publicado, porque o Museu não era do lado certo, e sobre
o autor, perdido em Berlim, não se tinha certeza, disseram os censores atentos). Por estranho que pareça, apareceu no jornal vaticano, L’Osservatore,
publicado por um padre português do Alentejo, amigo de Vasco (de tempos
da juventude às voltas com cineclubes católicos e não tão católicos), arqueólogo amador dos arredores de Roma e dos próprios museus do Papa, com
suas reservas técnicas assombrosas, abarrotadas de coisas que o mundo
nunca viu (padre Romão lhe mostrara os mais belos dançarinos do Touro,
como não vira nem no museu de Cnossos: parietais gafanhotos, saltimbancos do deus oferecendo a libação dos seus corpos como astronautas remotos, arqueados sobre a ameaça do animal verdadeiro, que era a Porta dos
saltos para o desconhecido... tudo em quatro ânforas sem registro).
No Pérgamo, nas salas tristes de mármores e bronzes patinados, semicarcomidos, vira uma Deusa-Mãe de Butrinto, bela e terrível Mãe! (que ainda
recebera o culto das avós-parteiras de toda a península, irradiada desde o
crescente fértil), uma antiguidade autêntica e, talvez, poderosa ainda, muito
semelhante à que conhecera — presença estranha — no apartamento de Graça, herdado do pai que mal conhecera, português desses que só conseguem
ser portugueses longe de Portugal... e comprador de antiguidades, falsas e
antênticas, nos lugares mais estranhos onde morara por largas temporadas
Fernando Monteiro
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de autoexílio. Era também uma terracota como aquela, legítima, iluminada no
limbo de uma casa de Cascais, numa estante profana de livros e biscuits sob
o foco, intermitente, do anúncio néon incidindo — SUMOL, SUMOL — sobre
a Deusa e o aquário com o navio dentro, onde só há peixes mortos como na
cabine onde a viu — oh, não era a deusa de Butrinto, mas uma lisboeta num
vestido de seda, bolas imensas, o cabelo molhado, odoroso no cubículo como
se espargisse um incenso luxurioso no travesseiro, a mão fria, depois quente,
muito quente, como os pés tépidos encolhidos sob um lençol onde já enxugara também o cabelo — que estreitava na nuca dourada de penugem com a
graça grega que trazia no nome e sorria na mancha do batom entre os lábios
apertando-se sobre a pequena ferida (suportando dor mas espalhando o batom..................................................................................................................................................
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...................
Vou lhe contar uma história, um segredo que não é para se contar e talvez
não seja um segredo: Ao partir com o seu saco de penas, arreios emendados
e uma espécie de grande peitoral de couro, além do pote de cera (veja, tudo
se pode ver nesse mármore de Elêusis), numa tarde luminosa demais para
tudo não sair perfeito, o rapaz talvez tenha pensado nos dias de inverno do
ano anterior, quando era mais novo e ela viera, porque ele estava doente e
impedido de ver a chuva noturna banhando o mar, inutilmente... Bem, ele
passara, então, os serões domésticos com ela! Viam, juntos, proibidos, proscritos, as mariposas gregas, de asas queimadas, caírem sobre o vago oceano
da mesa, ao pé da lâmpada de alabastro que ela mantinha acesa com o regrado óleo da casa recolhida cedo... Todos dormiam. Não veriam nada, de nada
saberiam. Ela, então, podia estender a mão longa, molhada da chuva, para
trazê-lo mais perto — e ele tocava o joelho redondo, rijo como os limões que
a lua amadurece, e depois espalmava a mão onde era doce — e quente —,
a parte interna da coxa, o lado voltado para dentro e sempre mais secreto e
tênue: era como se fosse a própria Deusa de Butrinto, mãe-irmã que vela, e
por isso era tão interdito quanto copular com ela, penetrar naquele leito...
Mas, veja
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Aspades ETS etc.
7. 1968/1975
“Chamo
a cada ramo
de árvore
uma asa.
E as árvores voam.
Mas tomam-se mais fundas
as raízes da casa... ”
CARLOS DE OLIVEIRA
“Lisboa! O anjo daqui — cada cidade tem um, como Berlim — parece querer avisar que perdi o caminho de casa... E é verdade: voltei para estar a me
sentir em lugar nenhum...” — escreve Aspades, um Vasco Aspades diferente
daquele que terminou 1967 numa festa cheia de bom humor e piadas, vinho, cerveja importada, num apartamento de Cascais — de quem era? —
com uma tal de Rita ao seu lado — quem era?... à janela dos fogos, depois
na cama. Depois, não lembrava. Uma mulher bonita. Tinha visto seu filme
no Castil (não, o novo Castil ainda não existia), gostara, não entendera nada
mas gostara. E queria ficar a última noite do ano com o cineasta, era simpática, inteligente, sem sensibilidade.
Nas fotos de 68, 69, Vasco está parecido com Pavese, tem aquele ar de
homem que perdeu qualquer coisa e ainda a procura nos bolsos, ainda se
apalpa, perplexo, quando o fotógrafo flagra sua busca de nada à volta, perto, longe, nas viagens, nas cidades surgindo do “sucesso” (?), por janelas de
trens e debaixo das asas dos jatos — as asas das árvores do poema de Carlos de Oliveira que o fez, de repente, chorar no meio da Avenida da Liberdade (por perceber que alguma coisa está dando completamente errado?).
Ritas, críticas, cifras, frases feitas, frias, tudo que ouve de irreal e falso, tudo
que vive rápido — como a noite de ano- novo com a tal Rita bonita, talvez
rica (não chegou a saber) —, e, então, desaparece como se jamais houvesse
estado ali...
Para de viajar, por sinal. Justo ao parar, conhece Flávia.
E repara em tomo, após meses de dormência, que afinal se começa a viver,
em Portugal, os estertores da velha ordem através do fim dos seus herdeiros
da ANP etc. Tem 44 anos — quase a idade do regime velho —, alguma pressa agora, a ansiedade dos que se mantiveram solteiros muito tempo, vendo
Fernando Monteiro
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nascer os filhos dos amigos e sendo chamado para padrinho e sem poder
apresentar as Ritas como madrinhas nas festas provincianas de amigos —
que os têm — pequenos-burgueses (gente da aldeia, do ginásio, parentes),
fiéis às missas dos domingos e gentis na sua afabilidade de portugueses incapazes de entender as vidas em branco, as piadas que já não têm piada, os
batismos solenes de domingos nos bairros seguidos de lautos almoços que
dão, depois, dor de cabeça... (as mulheres, muito cansadas; os homens, sem
saber por quê, brigando de repente, discutindo os “temas políticos”, a falta
do dinheiro porque a-economia-não-anda, pá...). Por todas essas razões insuficientes, para levar uma madrinha aos batismos, não fazer o café, tomá-lo
conversando, nos domingos, lendo os jornais que não têm nada para se ler,
por tudo isso e mais um sem-número de razões secretas — todas pequenas
—, casa com Flávia repentinamente, entra na posse da casa (que recebeu de
herança), reforma-a, vai morar lá sentindo-se um estranho que a alugasse
novamente, participa de debates para a criação do Instituto Português de
Cinema, não filma, não pensa, quase não sente. Leva a vida normal, afinal,
de toda gente. Não vêm filhos — Flávia já não é muito moça, ele não quer. Os
dias começam a ser um inferno de passeatas, protestos — mas antes assim,
há transtornos, falta dos correios, trens que se atrasam, outros que nunca
chegam, e o regime mostra visíveis sinais de fraqueza como todos os velhos
doentes em cima de suas camas em quartos abafados que querem sem luz,
mal arejados, cheirando a remédio. Portugal, Portugal — tu mesmo cheiras
a formol e água benta (que não tem cheiro, mas o dos nichos das igrejas)...
1970. Exceto pela agitação política — sinal de vitalidade —, o doente resiste, a Europa muda, o Brasil ganhou a Copa, a Lua vai ser uma colônia da
América, ele publicara — no ano anterior, rápido e vago — o romance que foi
a sua forma de sobreviver por dentro: OSTIENSE, NA VOLTA, e pensa em voltar ao projeto de Tibério, se possível (se puder ser feito sem parecer Ben-Hur
filmado em slow motion, com um roteiro de Resnais), sem vontade de dirigir
atores representando homens da antiguidade (como a desconhecemos!) —
mas ainda acalentando a ideia de filmar alguma coisa totalmente contemporânea em Pompéia, no vazio da morte, cheia de turistas que vão a Nápoles
por causa de filmes de Vittorio de Sica. Em Capri, alheios à velhice daquele
sol, visitain a Grotta Azzurra quando as marés permitem, sobem a Sorrento
cantarolando a canção napolitana, alheios ao que a noite lhes avisa, em ônibus abarrotados de pessoas meio atordoadas pelo que viram e não viram —
em todo caso, tudo fotografado para afastar realidades antigas, céus e terras
cansadas de morte em meio da banalidade dos dias que correm, e misturam
Capri e Anacapri, Ischia e Amalfi, Positano e Ravello poluídas de olhares, câmeras e sanduíches rápidos como a visita aos campos de sepulturas.
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Aspades ETS etc.
Nápoles. Maria...
“Giuliana”.
O que havia acontecido? (Ele devia saber: vinha tão próximo, atrás, sob a
obsedante visão da baía alargando-se como. …...........................................................
.....................................................….................................................................................................
..........................................................................................................................................................
........................................................ conceder que lembremos, quando os joelhos se
dobram enquanto as narinas acusam a pungência dos jasmineiros (estava
começando a ficar cansado, pedalando mais atrás), dos limões sob a poeira
— não a pedra-pomes — na estrada que subia afastando-se dos deuses soterrados com cidades sonolentas como ele próprio naquele momento — ou
não? —, em silêncio e no fingimento de um cansaço que se tomasse indiferença, apatia de um estranho amante na sombra (a tarde o verão abelhas o
mar o ônibus a moça que desaba numa curva em declive perfumado de jasmins em êxtase), debaixo da morte pressentida, da ação que você só descreve
como lentamente vertiginosa, em velocidade estranha do que não progride
mas descreve todos os saltos tríplices de surpresa — pensou, parado num
átimo sob a lava da visão desdobrada: é assim que se morre imaginando o
fogo de artifício que mordia a carne suave (imaginar? — não é propriamente imaginar, na compressão brutal do susto) em brutal descida — os padres
o inferno Romão o amigo a batina o relógio a vindima a pianola da infância
as roupas das primas a rotina da quinta a visita a uma tia a romaria o armarinho a compota de pêssego os ,asmins como esses os cavalos na água a
cheia de 30 o azevinho os pintassilgos mortos as cores do vestido os azuis
de brinquedos um berço vermelho que cheirava a tinta abelhas o mosteiro
de Romão o palácio de Tibério... — nos tais milésimos de segundo de filme
voltando sobre imagens e vozes e música e silêncio apagando a voz clara na
amplidão alvejada por um grito.
Fará esse filme? Não.
1974: o filme que realiza — CÓDIGO AQUELAU* — é uma incursão, meio
despropositada, pelo universo do thriller, cuja ação se passa na Lisboa neutra de 1944, cheia de refugiados em pânico, aproveitadores do mercado do
medo e espiões que, na cidade, entre as ruas do Ouro e da Prata, não podem
parecer perigosos, mas o são; á boas cenas de mulheres bem vestidas, ameaçadas ou não, subindo e descendo escadas, portas de carros que se fecham
e pombos cuja revoada descobre pessoas esperando outras, nas praças lu* CÓDIGO AQUELAU é o título, completo, do filme que ficou sendo referido como AQUELAU, em
filmografias publicadas (inclusive em enciclopédias ranzinzas na exatidão). Mas um dado curioso
vale acrescentar: vi um velho roteiro de CÓDIGO AQUELAU, no apartamento do cineasta, com um
título (DEUS RI DE NÓS) que foi depois — deduzo — infelizmente trocado. (N. do A.)
Fernando Monteiro
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minosas sob anúncios de época, para acertos misteriosos (saídas de cargueiros que levam clandestinos para a América do Norte e do Sul, compra
de passaportes, informações e consciências)... mas o argumento (de Alves
do Prado) era insuficiente para um cineasta que não trafega bem no trânsito da ação — para não dizer do óbvio... ou, pelo menos, na reta fácil de maniqueísmo que exclui a ambiguidade.
“No meio da filmagem” — diz Aspades — “interessei-me por aqueles nazistas odiosos; por exemplo, aqueles espiões a serviço do pior dos fascismos que a história conheceu (e que o cinema tem caricaturado).. Quero dizer, interessei-me como psicologia, como forma ‘mística’ de agir, por uma fé
cega, por uma espécie de aspiração bárbara — e consciente de ser bárbara,
isto é, de odiar determinados valores, inclusive porque perderam conteúdo e estão apodrecidos... mas o cadáver permanece na sala, por um acordo,
de velório, para não sentir o cheiro porque o cadáver é muito querido e tal.
Há, nesse ponto, um desvio perigoso de atração do pensamento, pelo seu
contrário, por exaustão do nosso modelo de civilização, como na passagem
do primeiro milênio, quando Ravena e Constantinopla viam desaparecer
o mundo de Tibério, retardatariamente... O mundo que o louco imperador
Juliano tentou salvar em desespero (mas isso não era a ação de um louco)...
enfim, nada a ver com o componente de ódio dentro do nazismo, mas tudo
a ver com uma civilização hipócrita que defendia a democracia na Europa e
no entanto impunha o governo colonial na índia, na África... (E depois!, aqui,
no ambiente de Lisboa, entre as vitrines de mariscos, na cidade dos anos
40, quando se acabava de fazer a grande Exposição do Mundo Português...
aqueles espiões nazistas do roteiro ou me faziam rir ou eu pensava em torná-los humanos — que eram —, equivocados — que somos —, enfim, não
nazistas de filmes seriados, não monstros monolíticos de brutalidade, mas
talvez cavaleiros templários da ordem negra que não seriam especialmente
mais ‘desalmados’ do que as polícias do franquismo, do salazarismo e das
colônias de Inglaterra e França etc... Penso como Cioran — que tem uma
frase muito estranha sobre o tipo de barbárie que foi o delírio hiderista, de
‘salvação’ do Ociden...............................................…..........................
1970.1971.1972.1973. Não há diferença nesses anos cinzentos, antes de
AQUELAU (“que nada representa”) — exceto que a Europa “está a preparar
a grande mudança de si mesma, quando nunca mais será igual a si própria
sem que nenhuma catástrofe, nenhuma escatológica bomba a tenha atingido no sagrado coração da OTAN” (o único texto “político”, publicado, consegue desagradar a Romão e seu conservadorismo e aos amigos socialistas
que nunca conseguiram inscrevê-lo no partido).
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Aspades ETS etc.
Essa nova Europa, de ruptura, de corte com um sonho iluminista, do humanismo (que ela, abertamente, parece acreditar que fracassou), tem na
morte de Pasolini — após sua incansável atividade de profeta, de Jeremias
dos “escritos corsários” e do impasse (SALÒ) dos últimos anos—um claro
sinal, no ano (1975) que, para Aspades, é também divisor de águas (como
foi 45), “Caminho de Lágrimas, Perdão”, do poema publicado na revista Colóquio, por entre os impasses do eurocomunismo e o pasticciaccio brutto do
chamado “período negro Gonçalvista”, em Portugal:
Perdão, aos mortos, peça-se por tudo: pelo tempo que passou e pelo tempo
que parou para eles, perdão pelo esquecimento e pela lembrança que, na morte, dizem, incomoda-os —perdão.
Perdão por sobreviver: é, às vezes, desgraça pior do que a morte — e um
ato involuntário de deslealdade, uma espécie de suprema indiferença que é
de todo não-volitiva e sem culpa para com os pais e os irmãos e a noiva e os
amigos mortos em fomos de extermínio, em coletivos desastres de avião e na
aldeia vietnamita, perdão.
Perdão pelo perdão: que pode ser essa forma de vaidade torcida, tortuosa,
terrível de ter no coração, segundo os cenobitas que nos censuram por pedi-lo
aos mortos silenciosos — uma descortesia, no mínimo —quando é aos vivos
que importa pedir perdão, aos vivos que não abandonaram os mortos mas
morreram com cada instante diminuído no tempo, pela distância, que vai se
alargando, entre o fotograma congelado da morte e a gratuidade do filme
continuando a rodar nas engrenagens de cines não desligadas após Hiroshima
assistindo a movietones de Hitler, Franco e Mussolini e títeres e micos do jogo,
atores menores, ditadores emformação para chaplins & pastelões de horrores deste século catito, pequeníssimo de grandiosidades e Senhores da Guerra
como dantes, cavaleiros loucos do outro modo, magno mas nem tanto, cegos
de maneira menos brutal, quem sabe, na forma da glória — essa demência —
que desaparece nesse molde mas se tomou em horrores de foguetes nos games
pulverizando escolas, hospitais e creches transformados em creme de carne e
sangue, perdão.
Perdão pela morte vencer o cristão, pois a glória é dela ó padre Romão caído
com o vírus do risco, segregado dos irmãos, separado do Cristo (?) pelo amor
do amor que pede perdão: perdão.
(E perdão pelo perdão de literatura — hóstia consagrada que não salva.)
Fernando Monteiro
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VASCO ASPADES DO CARMO — novembro de 1975, escrito no dia da morte de Her Paolo Pasolini. E no final de um ano em que a liberdade política, a
democracia sonhada no 25 de abril do ano anterior pareciam ameaçar Portugal com o mais instável destino dos governos da Europa. “Não estamos
bem, deliramos” — está escrito à margem —, “talvez por efeito de quarenta
anos deformados...”
Determinados fatos — com destaque para algumas mortes emblemáticas
— estão por sobre o hiato que nos imobiliza, enquanto os zeros do ano 2000
ainda não mergulharam os computadores em confusão quase semelhante à
que nos aguarda, quando algo mais que os zeros (ou algo menos) impuser o
recuo do século, e a plena atualidade se contar entre as datas de uma centúria finda, num milênio que passou, do ponto de vista ocidental e cristão
— essa “escora” (boa ou má, não importa) do que chamamos civilização.
Estamos vivendo no meio de uma espécie de mistério profano, e tentamos
decifrar seus sinais, prosaicos e imediatos, enquanto o tempo nos caça pelas
costas, um tanto dementado. Além disso, duvidamos dele — perigosamente.
Antes de começar este livro, estive muito impressionado com a imagem,
fisicamente torturada, de Stephen Hawking imobilizado em sua cadeira de
rodas, diante de um monitor de vídeo, operando a máquina me lhe sintetiza a voz, com a expressão fixa no rosto talvez estigmatizado pela doença*
— enquanto procurava deduzir a origem do Universo, desmentir o mito da
Criação e desvendar, matematicamente, o que se passa dentro do nó ilusório do Tempo buscado, nu, no interior do buraco negro que ignora todas as
leis físicas que conhecemos. Pensei, por oposição, na beleza de Adônis, filho
de Myrrha e Cyniras, amado de Vênus em noites de ânfora grega, as constelações correndo... e, depois, morto por um javali e metamorfoseado (pela
amada) em anêmona—e essa imagem, junto com a da flor estranha, deve
ter mais do que a ver somente com o corpo de anão deformado de Hawking,
por analogia ao contrário ou involuntária comparação, grosseira, da feiura
do cientista com a beleza do mito grego. Agora, releio esse texto de “perdão” geral, que Aspades implora a todos e a nenhum deus precisamente, a
propósito da morte premonitória de Pasolini (prematura e semelhante ao
desaparecimento de outros ícones — bons e maus — do nosso tempo), e
vejo, ou “sinto”, ou penso confusamente, que algum drama antigo — como
em POSTENEBRAS — está ritualmente em processo, de novo, diante nos* O Autor provavelmente se refere a cenas do documentário sobre S. Hawking, UMA BREVE HISTÓRIA DO TEMPO. (N. da E.)
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Aspades ETS etc.
sos olhos, enquanto tudo nos escorrega por entre os dedos, areia negra e
água envenenada (como em VOZES DA ÁGUA) enquanto nada, nada compreendemos — ainda agora quando a brilhante mente de Hawking se faz
ouvir, através da voz metalizada, disposta a ir ao fundo da Teoria do Campo
Unificado, que Einstein deixou incompleta, do mesmo modo como o personagem de Aspades (Próspero), no século XVI, pretendia formular sua Nova
Tábua Esmeralda ou Segundo Tratado da Pedra Filosofal... reescrito por um
sábio que era cego. É cedo para falar desse personagem —o que faremos
adiante —, mas desde já registro essa espécie de semelhança, contra o fundo de dois tempos agônicos (não esquecer que POSTENEBRAS se passa na
metade da trajetória do milênio que se encerra), e não devo precipitar atmosferas: por ora, estávamos nos anos grande agitação política, que varria
a Europa e o planeta, início da preparação para o fim da Ideologia, que estamos vivendo.
Pasolini se desesperara até da salvação por intermédio de alguma “nova
barbárie” — conforme a via no subproletariado urbano antagonizando “o
pior dos fascismos: o de consumo” — e começara a referir um hoje (“quando
tudo é abjeto e foi invadido por um monstruoso sentimento de culpa...”**)
que ainda não terminou, neste crepuscular quarto final do século cuja contagem talvez possamos datar justamente do sombrio novembro do seu massacre às mãos de um “salvador” dos subúrbios...
Era o tempo próximo da treva — mas ela ainda não se anunciara claramente (como nem mesmo agora dá a perceber que já começou).
**Pier Paolo Pasolini, in “Un pò di febbre per ignorare stupiditá e ferocia dei fascismo” (SCR1TTI
CORSARI, 1975). (ldem.)
www.cesarea.com.br
Recife, 2014

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