Padre com espírito de cowboy

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Padre com espírito de cowboy
ACTUALIDADE
Bodas de prata sacerdotais
Padre com espírito de co
Jorge Amaro, celebra as bodas de prata sacerdotais. Ordenado padre há 25
anos, desenvolveu a sua acção em três
continentes: África, América e Europa.
O sacerdote natural de Loriga, Seia, revela-nos como a ideia de ser padre se
enraizou nele aos seis anos, tendo sido
retomada com firmeza após ter terminado o ensino primário.
A ideia tem muito a ver com as histórias de cowboys que o Jorge bebia nos
filmes da época. “A imagem do cowboy
cativou-me. Ele chega a uma cidade
dominada pelos bandidos; ajuda a povoação que nem sequer sai à rua, tolhida de medo. Ensina a usar as armas,
treina o povo e, por fim expulsa os
texto Elísio Assunção fotos FM
Vida em pedaços repartida pelo
Escrita num dos seus sonetos ao pé do
golfo de Aden, entre a Etiópia e a Somália, a frase «Vida em pedaços repartida pelo mundo» é de Camões viajante
e missionário. Na minha formação andei de terra em terra: de Poiares para
Fátima, de Abrantes para Cacém; fiz o
noviciado em Valhadolide, Espanha, e
estudei em Madrid. Entendi que a vida
do missionário é vivida como saltimbanco, de um lado para o outro. «Deixar pelo mundo a vida em pedaços repartida» é o oposto de viver no mesmo
sítio, sempre com a mesma gente, com
a mesma actividade.
Iniciaste a tua vida de padre na Etió­
pia, com uma intensa actividade.
Na missão fui enfermeiro e médico; curei
feridas e salvei vidas; combati o tifo, a tuberculose e a malária; cosi ferimentos com
agulha e linha normal, sem anestesia; fui
criador de gado e director de escolas. No
Canadá, de escola em escola, fiz animação
missionária, em várias línguas: espanhol,
português, inglês e italiano.
Porque é que escolheste a Etiópia
para iniciar o teu ministério?
Tinha duas ideias claras: não tinha interesse na América Latina, nem que-
ria ir para países onde Portugal tivesse sido colonizador. Preferia a África
e, dentro de África, escolhi a Etiópia,
Tanzânia ou África do Sul. Sendo um
pessoa impulsiva, queria um país duro.
Calhou-me a primeira escolha. Na
Etiópia, onde salvámos a fé cristã, os
portugueses são bem vistos. O filho de
Vasco da Gama, Cristóvão da Gama,
chefiou uns 400 portugueses, armados
de arcabuzes, que mataram o senhor
muçulmano que estava a aniquilar o
cristianismo. Qualquer etíope que tenha frequentado a escola primária,
conhece este feito.
Como é que viveste a tua passagem
de África para a América?
Quem vive a “vida pelo mundo em pedaços repartida” adapta-se fácil e até rapidamente a uma cultura diferente. Sou
uma pessoa visceral, julgo tudo com as
vísceras, intuo, observo muito. Adapto-me facilmente às diferentes situações.
Há um abismo entre o modo de viver
da Etiópia e a vida na América.
Gosto muito de viver mais ecologicamente. Não me afecta viver na Etiópia, ter de cozinhar e comer apenas
uma vez por dia, não tomar banho
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diariamente, por falta de água, e assim por diante. Aceito este modo de
viver, como aceito o máximo conforto.
A vida de sofrimento do povo etíope,
a fome, os desequilíbrios afectam-me enquanto miséria do povo, mas
Por colinas e montanhas e na celebração de um
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cowboy
bandidos com a ajuda da população”.
Mas era o final da história que mais tocava o coração do jovem Jorge. “Quando finalmente a situação estava resolvida, o povo procurava o cowboy, mas
ele já tinha desaparecido. Outras vezes,
ofereciam-lhe a estrela de xerife e a
moça, mas o cowboy recusava”. Partia,
seguindo o seu caminho de aventura.
No filme seguinte, o Jorge ficava
boquiaberto, quando via o mesmo
cowboy em acção noutra cidade, enfrentando de novo os bandidos para
libertar a população. “Não vive para
si; de cidade em cidade, arrisca a sua
vida, em vez de viver sempre no mesmo lugar, com as mesmas pessoas”.
mundo
não no sentido de ter de me adaptar.
Na América, chocou-me ver tanta gente gorda, os gastos com animais, o estragar toneladas de comida, o esbanjar os recursos do planeta, enquanto
outros estão privados deles. Estas
Mas a ideia de ser padre era muito anterior. “Tem a ver com Fátima, com a
minha mãe. Ela teria pedido a Nossa
Senhora um filho padre. Casou aos 35
anos e tinha receio de já não ser mãe.
Se lhe nascesse um filho, seria padre.
Ou terá pedido a graça de ter um filho padre”. E nasceram, não um filho,
mas três. “O certo é que o meu irmão
mais velho foi para o seminário, mas
saiu passado um ano. A minha mãe
ficou triste e eu achei, com seis anos,
que deveria substitui-lo, talvez para
consolar a minha mãe”.
A decisão de uma criança de seis anos
realizou-se quatro anos depois, terminado o ensino primário. “Quero
ir para o seminário”. Responde-lhe
a mãe: “Para fazeres como o teu irmão?”. Mas sentiu-se profundamente
tocada quando ouviu o filho dizer-lhe:
“Não te lembras o que te prometi?”.
O Jorge não esquecera a promessa.
Hoje com 25 anos de sacerdócio, o
recorda outro episódio. “Os missionários que passaram pela minha escola
tiveram um papel muito importante.
Aos 10 anos tinha a consciência clara
que não queria ser como os padres da
freguesia. Queria ser diferente”.
E o missionário de Loriga acrescenta
outro pormenor que enraizou nele o
espírito de Camões: “A minha terra está situada num vale. Subindo a
uma das montanhas, lá do alto, avisto um horizonte amplo, quase até ao
mar. Avistam-se muitas aldeias . Isso
atraía-me e fazia-me pensar: Não
quero ficar aqui, nesta cova. Gostava
de contemplar a paisagem. A minha
terra não tem vistas. É só montanha
de todos os lados. Atraía-me contemplar, lá do alto, os imensos horizontes
de quilómetros e quilómetros”.
situações mexeram muito comigo.
Deixando a vida repartida pelo mun­
do, ficas com mais ou menos vida?
Deixo e trago. Quanto mais se dá,
mais se tem. Quanto mais viajarmos,
mais desenvolvemos a comunicação
de ideias. “Quem quer aprender, ou lê
livros ou viaja”. Eu tenho feito as duas
coisas. Tenho uma bagagem maior do
que quem viveu toda a sua vida no mesmo sítio. Conheço mais aspectos da vida
humana, mais culturas, mais formas de
viver e isso enriquece-me.
Qual a actividade que mais te mar­
cou nestes 25 anos?
Marcaram-me os sete anos da Etiópia.
Lidar com a vida humana, salvar vidas
é fantástico! Lembro-me de uma criança de cinco anos, que demonstrou uma
grande maturidade, quando os pais estavam fora de casa a cultivar os campos.
O menino foi atacado e mordido pelos
chimpanzés que assaltaram os celeiros, umas pequenas cabanas à volta da
grande cabana da família. A criança sabia que a mãe tirava dali o grão para a
comida e enfrentou os chimpanzés para
defender a vida dos seus. Trouxeram-me a criança toda mordida. Faltava-lhe
um pedaço de carne no rabo. Com uma
religiosa, cosemos o miúdo a frio. Habituei-me de tal modo a estas situações,
que já me pareciam normais.
Nos Estados Unidos, marcou-me a fé dos
açorianos, os seus costumes. É um povo
diferente; são muito unidos. A sua devoção ao Espírito Santo é única na Igreja
católica. Quando entram em conflito
com os padres dizem: “O Espírito Santo
é do povo”. Gostei dessa frase. O Espírito
Santo é de todos, sopra onde quer.
matrimónio, dois momentos da vida missionária de Jorge Amaro na Etiópia
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