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LEITURAS LIBERTÁRIAS DA NATUREZA HUMANA:
de Pelágio a Marx na contra-mão do cristianismo autoritário
Jorge Pinheiro1
Resumo
Ao final de seu livro O povo brasileiro, Darcy Ribeiro (2005, p.545) diz que
"somos povos novos na luta por fazermos a nós mesmos como um gênero
humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas
também muito mais bela e desafiante". Em relação à teologia, muitas vezes
recorremos à antropologia na busca da compreensão de quem é este homo
sapiens. E nesse texto partiremos dessa afirmação antropológica, somos povo
em construção, entendendo que sem a compreensão do que somos pouco
podemos compreender sobre nossas possibilidades e destino.
Palavras-chave: natureza humana; destino; liberdade; bem; mal.
Abstract
“Libertarian readings of human nature: from Pelagius to Marx in opposition to
the authoritarian Christianity”
Darcy Ribeiro (2005, p.545, at the end of his book “the Brazilian people”, says
that "we are new peoples fighting to make ourselves a new kind of human being
that has never existed before. Not only was it a much more difficult and arduous
task, but also more beautiful and challenging". Regarding theology, many times
we refer to anthropology trying to understand who this Homo sapiens is. In this
text we will begin with this anthropological statement: we are people in
construction, understanding that without comprehension of what we are, there is
little we can know of our possibilities and destiny.
Key words: Human nature; destiny; freedom; good; evil.
1 INTRODUÇÃO
Esta análise do gênero humano parte da Carta à Demétria2 escrita por
Pelágio a uma adolescente. As reflexões de Pelágio sobre a pessoa
consideravam existir uma bondade inata na natureza humana, fruto da imago
Dei. Dirá que podemos avaliar a bondade humana pela referência ao Criador
(2.2), já que Deus transmitira ao humano o atributo da vontade livre, que
1
Jorge Pinheiro é Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo,
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, Graduado em
Teologia pela Faculdade Teológica Batista de São Paulo e Graduado em Jornalismo pela
Universidade do Chile. É professor de Teologia e Filosofia e faz Pós-Doutorado na
Universidade Presbiteriana Mackenzie.
2
Pelagius, “Letter to Demetrias” in B.R. Rees, The Letters of Pelagius and His Followers,
pp.35-70.
2
possibilita a escolha livre e o domínio próprio. E Paul Tillich, em sua Teologia
Sistemática, afirmou que a alienação é um estado da existência. Nesse
sentido, quando o ser humano exerce sua liberdade, sob o estado de alienação
presente na existência, sempre tem diante de si a possibilidade do mal. A partir
daí, num sobrevôo passamos por Nicolas de Cusa, Lutero e Marx. Para esses
pensadores, cada um a sua maneira e em contextos diferentes, o humano se
constrói historicamente, enquanto pessoa e comunidade, enquanto percepção
de que a natureza humana tem potencialidades que podem se cumprir através
da ação transformadora. Essas leituras realçam a responsabilidade moral das
pessoas e das comunidades e, como conseqüência, exortam à construção de
políticas educacionais formadoras de sociedades solidárias.
O debate teológico a respeito da natureza humana faz parte da própria
história da teologia. Mas em nossa análise vamos partir de Justino Mártir
quando afirmou que o humano, por ser racional e livre, é responsável por seus
próprios atos.
Tal afirmação levou a discussão para a relação existente entre Adão e a
alienação existencial. Dentro da tradição teológica da Igreja oriental, no
primeiro humano estavam tipificadas as separações e o distanciamento do
Criador. Já para a Igreja ocidental, que a partir do debate com os donatistas,
precisava formular a questão dos sacramentos e o papel sacerdotal, Adão
passou a ser visto como fonte do mal humano e não protótipo. A discussão foi,
então, polarizada no debate de dois pensadores: o monge Pelágio e Agostinho
de Hipona. Séculos mais tarde, a crítica da Reforma ao racionalismo tomista
trará o debate de volta. Só que a discussão será feita sob novas abordagens,
tais como: qual é o destino que Deus reservou aos seres humanos? Assim, a
discussão da natureza humana levará ao tema do destino humano.
2 PELÁGIO E A LIBERDADE
Aqui vamos voltar no tempo e procurar reconstruir o pensamento do
monge Pelágio (FERGUSON, 1989, p. 386) (354-418). Sabemos que saiu da
Grã-Bretanha (FERGUSON, 1980, p. 115), onde tinha jogado um papel
importante na formação do cristianismo celta. Era monge e muito respeitado na
Grã-Bretanha tanto entre o clero como entre os líderes celtas não religiosos.
3
Nunca foi visto como herege ou alguém que não merecesse a confiança de
seus companheiros. Foi um precursor do humanismo, pois acreditava nas
possibilidades da pessoa e via o mal como um produto social. O que para a
época era simplesmente um pensamento revolucionário. Estas idéias de
Pelágio não combinavam com o momento teológico vivido pela Igreja ocidental.
Naquela época, a Igreja enfrentava o pensamento donatista na África do Norte.
Para os donatistas a eficácia dos sacramentos dependia do estado espiritual
dos sacerdotes que os ministravam. Essa idéia trouxe um problema para a
Igreja cristã ocidental. Se ela concordasse com tal visão, quem garantiria o
estado de santidade do clero que ministrava os sacramentos? E se não
concordasse, por que então os sacramentos não poderiam ser ministrados
também pelos leigos? Mas, se a declaração dos donatistas fosse falsa, então
os sacramentos poderiam ser ministrados pelo clero, sem que se cogitasse seu
estado espiritual diante de Deus. A acusação de heresia conservaria, desta
forma, a estrutura da Igreja. Naquela época, muitos homens da Igreja, inclusive
Agostinho, defendiam que ela era uma instituição cuja santidade vinha dos
sacramentos e não da fé das pessoas. Assim os sacramentos produziam
santificação e não eram frutos da vida piedosa de homens santos. A igreja
celta, porém, não viu a discussão dessa maneira. Para Pelágio e seu discípulo
Caelestius, a questão girava ao redor do livre arbítrio. Não concordavam com a
idéia defendida por Agostinho, que até aquele momento não era majoritária, de
um pecado original que contaminou a humanidade.
Como os trabalhos de Pelágio foram proibidos de circulação e
posteriormente queimados, chegou até nós pouquíssimo de sua produção.
Mas, ainda temos condições de examinar a Carta à Demétria (REES, 1991,
p.35-70), escrita a uma adolescente e que nos possibilita estudar sua visão
sobre a natureza humana.
“Sempre que eu tenho que falar no assunto da instrução moral e na
conduta de uma vida santa [disse o monge], costumo demonstrar o poder e a
qualidade da natureza humana e primeiramente o que ela é capaz de
realização" (2.1).
Uma vida de pureza moral, para Pelágio, só podia ser conseguida a
partir de dois componentes, aquilo que é bom na natureza humana e o dom da
graça (9.1). Esse é o tema central dessa sua epístola.
4
[Em vez de considerar os mandamentos de Deus como privilégio] ...
lamuriamos a Deus e dizemos: Isso é muito duro! Isso é difícil
demais! Não podemos fazê-lo! Somos apenas humanos e, portanto,
somos impedidos pela fraqueza da carne! Que loucura! Que
ostensiva presunção! Ao agir assim, acusamos o Deus da sabedoria
de dupla ignorância – ignorância de sua própria criação e de seus
próprios mandamentos. Seria como se Deus, esquecendo-se da
fragilidade da humanidade – a qual, afinal de contas, foi criada por ele
mesmo! -- nos tivesse ordenado algo que não pudéssemos fazer. E,
ao mesmo tempo (que Deus nos perdoe!), imputamos ao justo
injustiça e crueldade Aquele que é santo, primeiro, ao reclamar que
Deus nos ordenou o impossível e, segundo, por imaginar que alguns
serão condenados por Deus pelo que não poderiam evitar; de outra
forma, que – e essa é a blasfêmia suprema! -- concebe-se que Deus
esteja buscando nossa punição, em vez de nossa salvação
(McGRATH, 2005, p.508).
As reflexões de Pelágio sobre o ser humano não estão distantes
daquelas
apresentadas
pelos
pais
da
Igreja
oriental,
que
também
consideravam existir bondade na natureza humana, fruto da imago Dei. Por
isso, dirá que podemos inferir a bondade do ser humano a partir do amor do
Criador (2.2). Assim, a divindade transmitiu à humanidade os atributos da
liberdade, que possibilitam a livre escolha e o domínio próprio. Isto porque
Deus desejava para o ser humano a liberdade de ação e não a ação sob
coerção. Por esta razão, deixou-o livre para fazer suas próprias decisões e
para escolher entre vida e
morte, entre bem e mal, e viver conforme lhe
parecesse melhor (2.2). Pelágio, no entanto, sabia que boa parte dos cristãos
acreditava que se o ser humano tinha sido criado com a possibilidade de
realizar o mal, então não tinha sido criado perfeito. Ao contrário, o monge celta
acreditava que o ser humano tinha sido criado para realizar o bem, mas não
compulsoriamente. E a partir dessa compreensão afirmava que se não fosse
assim não haveria humanidade real e nem virtude verdadeira (3.1). Aqui está o
centro da espiritualidade pelagiana: a crença de que se negarmos a liberdade
finita do ser humano negamos a possibilidade da vida moral.
Esta bondade da pessoa, para Pelágio, não foi destruída com a
alienação existencial. O ser humano continua a carregar dentro de sua
natureza a bondade da criação, uma graça, uma santidade natural (4.2). E isso
pode ser visto na vida de pessoas que não são cristãs. Muitas delas são
tolerantes, generosas e rejeitam os prazeres do mundo. São amantes da
justiça e buscam o conhecimento (3.3). O que o levou a considerar que é
impossível trilhar o caminho da virtude se não houver nos corações a
5
esperança de alcançá-la. Não haveria virtude se em seu esforço as pessoas
achassem que nunca haveriam de encontrá-la (2.1). Por isso, Pelágio
abominava a covardia diante dos desafios da vida. Ao contrário, exatamente
porque a carne é frágil, todos são exortados a vencê-la e isso é possível (16.2).
A bondade e a capacidade de viver uma vida santa estava e está nos planos
de Deus porque ele não criou o ser humano para a punição ou para a danação,
mas para a liberdade. Negar a possibilidade da bondade humana e a
capacidade de viver uma vida santa não é somente pessimismo moral, é uma
blasfêmia: significa que Deus não sabe o que fez, ou que não levou em conta a
fragilidade humana, ou que ordenou algo impossível e deseja não a salvação
humana, mas a punição (16.2).
O monge celta não responsabilizava a natureza por aquilo que é a
escolha de pessoas livres. Considerava que não se pode culpar a natureza,
pois em ambos testamentos tanto o bem como o mal são apresentados como
ações voluntárias (7). Isto é demonstrado na vida de Caim e Abel, e Esaú e
Jacó, irmãos de sangue que fazem escolhas diferentes. O monge dizia que
quando os méritos diferem na mesma natureza, a escolha é a causa da ação
(8.1). Logo, a alienação existencial não poderia ter corrompido a natureza
humana ao ponto de incapacitá-la de escolher entre fazer o bem ou fazer o
mal. O efeito da alienação existencial deve ser entendido mais em seus efeitos
ambientais do que éticos.
Pelágio não acreditava que a natureza humana estivesse degenerada
pela alienação existencial dos primeiros seres humanos. Defendia que eram
os atos e não a natureza que levavam o ser humano a realizar o mal. Por isso,
discordou de Agostinho quando este afirmou que o ser humano só poderia
ganhar a salvação através da Igreja. Considerou a idéia de pecado original sem
base neotestamentária e afirmou que todos são concebidos sem pecado e,
diante de seus delitos, são salvos pela graça de Deus, que não merecemos,
que nos é entregue através de Cristo. Até aquele momento, a visão de Pelágio
e seus seguidores traduziam a idéia da liberdade de escolha, e da natureza
humana que tinha sido alienada, mas não degradada (FERGUSON, 1980, p.
115).
A compreensão da proposta pelagiana nos remete à importância da
educação na construção da ética cristã. A partir daí, a ênfase não estará no
6
conhecimento de Deus, mas na imitação de Cristo. Nesse sentido, a teologia
de Pelágio é uma teologia do caminho, onde está presente a afirmação da vida,
e como conseqüência, do amor, da justiça e da verdade. E se o ser humano é
colocado entre as alternativas da vida e da morte, do bem e do mal, é porque
pode escolher a vida e o bem. E o princípio da vida aponta para o amor, porque
se o ser humano deve ser imitador de Cristo, a ênfase recairá sobre a justiça e
a misericórdia. Ora, a justiça é inseparável da liberdade e, por isso, o caminho
se faz ao andar: deve ser trilhado, porque aí estão os desafios da existência
humana. E é esse sentido de realidade e sua prática no cotidiano que leva a
teologia cristã à política. Aqui, o discurso contra-autoritário de Pelágio cobra
força, pois o cristianismo deixa de ser religiosidade privada e de padrões de
pensamentos para se articular com as demandas das comunidades.
3 TILLICH E A LIBERDADE
Para o teólogo teuto-americano Paul Tillich (2005, p.339), o estado da
existência é o estado da alienação. Ou seja, o ser humano se encontra
alienado do fundamento do seu ser, dos outros seres humanos e de si mesmo.
E essa alienação é fruto de sua ruptura com o mundo ideal da criação, da
natureza perfeita, o que dá origem à consciência. Mas, para Tillich, é
importante entender a relação entre alienação e sociedade. Para ele, uma
comunidade é uma estrutura de poder, onde existe conflito potencial ou real,
mesmo que exista ação solidária da comunidade como um todo. Na
comunidade não existe culpa coletiva, embora exista destino universal e, por
isso, as pessoas participam deste destino. Para Tillich (2005, p.352), o destino
se acha inseparavelmente unido à liberdade, que é experimentada como
deliberação, decisão e responsabilidade (TILLICH, 2005, p.193).
Numa abordagem teológica, a questão da origem é fundamental para o estudo
da natureza humana, pois posiciona a liberdade em condições e momentos
diferentes, conforme a leitura que se faça de Gênesis. De todas as maneiras, a
relação origem versus liberdade sublinha o surgimento do ser humano como
imago Dei, o que permite a leitura de que aquele ser era pessoa e que, por
isso, poderia escolher como melhor lhe aprouvesse. Mas no uso da liberdade
estava contida a possibilidade de se opor ao que estava definido e nomeado. A
7
alienação consiste nisso, na decisão autônoma do ser humano de distanciar-se
da ordem e do estabelecido. Esse deslocamento, de ruptura com a natureza,
permitiu ao ser humano colocar-se como centro de sua vontade e de seu fazer,
produzindo distanciamento da natureza, mas consciência de sua existência.
Nesse sentido, essa ruptura, esse distanciamento é um encontro. Ou, como diz
La Boétie (1982, p.19), “que mau encontro foi esse que pode desnaturar tanto o
ser humano, o único nascido de verdade para viver francamente, e fazê-lo
perder a lembrança de seu primeiro ser e o desejo de retomá-lo?”. E Clastres
(apud LA BOÉTIE, 1982, p.110,111) analisando o texto desse libertário do
século 16, que influenciou o pensamento huguenote francês, nos apresenta
uma definição da alienação existencial:
Mau encontro: acidente trágico, azar inaugural cujos efeitos não
cessam de ampliar-se, a tal ponto que é abolida a memória do antes,
a tal ponto que o amor da servidão substituiu-se ao desejo de
liberdade. O que diz La Boétie? Mais do que qualquer outro
clarividente, afirma inicialmente que essa passagem da liberdade à
servidão deu-se sem necessidade, afirma acidental – e, desde então,
que trabalho pensar o impensável mau encontro!.
Assim
para
Clastres,
antropologicamente,
a
alienação
leva
à
possibilidade do mal, pois é corrupção da liberdade do ser humano por ele
próprio que, por essa corrupção, se coloca em estado de servidão voluntária.
Teologicamente, podemos dizer que o mal é um fazer que se opõe ao amor, à
justiça e à verdade. Assim, o entendimento do mau encontro enquanto
alienação e abertura à perda de liberdade forma o pilar de uma teologia
libertária, já que o problema do mau encontro passa a estar ligado à liberdade
do ser humano.
Segundo Tillich (2005, p.353), a alienação humana tem como
conseqüência descrença, hybris e concupiscência, expressões de um estado
que se opõe ao ser essencial do humano, sua potencialidade para o bem. Essa
compreensão está presente na tradição judaico-cristã. Assim, no Antigo
Testamento temos uma tríade conceitual nas idéias de aliança, fidelidade e
constância, cujo centro epistemológico é a liberdade. E no Novo Testamento o
vértice dessa discussão é o conceito de destino.
Paralelamente ao pensamento hebraico, a cultura grega apresentou uma
leitura especial e trágica do conceito de destino, que traduzia a maneira de
pensar e viver do helenismo. Na sua época, por razões apologéticas, o
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apóstolo Paulo apresentou um conceito de destino que resgata, mas vai além
do conceito veterotestamentário de aliança. Entre os gregos, a religião e os
cultos de mistérios traduziam uma luta contra o destino, era uma tentativa de
colocar-se acima dele. Para o ser humano helênico a luta com o destino era
inevitável, porque se apresentava como poder sagrado, mas destrutivo.
Envolvia o ser humano numa culpa objetiva. Os cultos de mistérios, dessa
forma, ofereciam uma purificação das mãos de deuses que manipulando o
destino, excluíam dos seres humanos qualquer possibilidade de liberdade.
Da mesma maneira, a filosofia helênica, através do conhecimento,
procurava elevar o ser humano à transcendência, despojando-o dos objetivos e
formas da vida imediata, para lançá-lo através da abstração em direção ao ser
puro. Mas, nunca conseguiu tal objetivo, e o mundo helênico permaneceu um
mundo de culpa objetiva, castigo trágico e profundo pessimismo, que
atravessou a produção teórica de gênios como Anaximandro, Pitágoras,
Demócrito, Sócrates, Platão e Aristóteles. Nas discussões do helenismo pósplatônico, possibilidade e necessidade foram conceitos chaves. Mas o medo de
demônios continuou a obscurecer o espírito helênico. O epicurismo tentou, em
vão, libertar seus seguidores do medo, mas ao definir o conceito de
possibilidade absoluta [ou azar], abriu o espaço para o medo em sua
argumentação filosófica.
Apesar dessa visão trágica, os gregos eram apaixonados pela vida e é
esse paradoxo que dará riqueza a esta que será uma das mais expressivas
culturas da humanidade. Mas, em última instância, a luta do filósofo -- superar
o destino -- permaneceu inalterada em todo o helenismo.
Dessa maneira, a filosofia grega caminhou para ceticismo, já que a
presença do mal na existência humana se mostrava avassaladora. Ao mesmo
tempo, as nações foram submetidas ao domínio romano, metáfora da
personificação do mal. Diante desse destino trágico, o mundo helênico ansiava
por um destino libertador.
E foi assim que o cristianismo se apresentou como vitória do humano
sobre o medo trágico e sobre a matéria que resiste. Colocou-se como negação
radical do caráter demoníaco da existência em si, dando a esta um valor
essencialmente positivo e valorizando os acontecimentos da ordem temporal.
Assim, para o cristianismo, ao contrário do que pensava Anaximandro, a ordem
9
do tempo não levava apenas ao transitório e perecível, mas também à
possibilidade de algo totalmente novo, um propósito e um fim que dá pleno
significado à vida humana.
Para esse jovem cristianismo, o tempo triunfa sobre o espaço. O caráter
irreversível do tempo bom, do kairós, substitui o tempo cíclico, transitório e
perecível do pensamento helênico. A partir desse momento, destino traz
libertação no tempo e na história. Antes, a filosofia buscava desesperadamente
a libertação, agora a libertação apodera-se da filosofia dando origem à teologia.
Assim, a teologia jogou fora o destino demoníaco e se apropriou de suas
formas lógicas e de seus conteúdos empíricos. O transitório e perecível da
filosofia helenística perdeu importância na construção do pensamento cristão
oriental, que se desenvolveu a partir da idéia da liberdade, que se constrói
historicamente, e acontece num tempo bom.
Mas voltemos um pouco atrás, para entendermos esse processo. Dentro
da visão do apóstolo Paulo, que fez a correlação entre o pensamento cristão
palestino e o helenismo, destino traduz a idéia de que os limites estão dados
de antemão, ou seja, da lei transcendente na qual está imbricada o conceito de
liberdade. Assim, destino implica numa tríade conceitual: (1) o destino está
sujeito à liberdade; (2) destino significa que a liberdade também está sujeita à
lei, e aqui vamos entender lei como natureza; (3) destino significa que liberdade
e lei ou natureza são interdependentes e complementares.
Analisando o conceito cristão exposto por São Paulo (Carta aos
Romanos 8.31-39; e 9), podemos dizer que a liberdade humana está ligada às
leis universais, de tal forma que liberdade e natureza se encontram
intrinsecamente entrelaçadas. Aqui Paulo trabalha com um conceito judaico, de
que lei é imposição de limites, que faz parte da revelação, e que se expressa
pela primeira vez como criação de Deus. Mas para Paulo, se o mal é uma
probabilidade que surge da dialética lei/natureza versus graça/liberdade, o
julgamento, a decisão, é inerente ao ato humano. Ou, nas palavras de Tillich
(2005, p.193,194): “destino é aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base
indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que
torna todas nossas decisões nossas decisões”.
Assim, a certeza de que o destino é a liberdade e não o mal e tem um
significado realizador e não destruidor é a peça chave do pensamento paulino,
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que coloca o Cristo, aquele que possibilita a escolha certa, acima do destino.
Mas, devido à alienação, em nós humanos há sempre um elemento de
aventura e risco diante da realização da liberdade. Ainda assim, devemos
correr este risco, sabedores de que este é o único meio através do qual a
construção daquilo que é bom pode ser viabilizado. Por isso, o Novo Ser,
aquele que pode ser buscado fora da história e pode ser entendido como alvo
da história, que apresenta a universalidade da expectativa humana por uma
nova realidade (TILLICH, 2005, p.380), deve se refletir no pensamento
humano, embora não exista um ato do pensamento sem a premissa de sua
verdade incondicional (Carta aos Romanos 12.2 e I Coríntios 2.16.).
Quando mantemos relação com o Novo Ser, que leva o finito à
plenitude, deixamos de temer a ameaça do destino demoníaco, aceitamos o
lugar que cabe ao destino em nosso pensamento. Podemos reconhecer que
desde o princípio estivemos submetidos ao destino e que o nosso pensamento
sempre desejou livrar-se dele. Tarefa teológica da maior importância, na
análise cristã do destino é saber relacionar Novo Ser, a busca de um novo
estado de realidade, e kairós, a plenitude do tempo. O Novo Ser deve alcançar
o kairós, o tempo oportuno, tempo de agir (TILLICH, 2005, p.800). O Novo Ser
deve envolver e dominar as leis universais, a plenitude do tempo, a verdade e o
destino da existência. Para o cristianismo paulino, a separação entre Novo Ser
e existência chegou ao fim. O Novo Ser alcançou a existência, penetrou no
tempo e no destino. E isso aconteceu não como algo extrínseco a ele próprio,
mas porque é a expressão de seu próprio caráter intrínseco, sua liberdade.
É necessário, porém, entender que tanto a existência como o
conhecimento humano estão submetidos ao destino e que o imutável e eterno
reino da verdade só é acessível ao conhecimento liberto do destino. Dessa
maneira, para o jovem cristianismo, ao contrário do que pensavam os gregos,
todo ser humano possui uma potencialidade própria, enquanto ser, para
realizar seu destino. E quanto maior a potencialidade do ser, que cresce à
medida que é envolvido pelo Novo Ser, mais profundamente está implicado seu
conhecimento no destino.
Assim, destino passa a ser compreendido como serviço aquilo que
liberta, ao Novo Ser, num novo kairós, que emerge das crises e desafios de
nossos dias. Quanto mais profundamente entendermos nosso destino, no
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sentido grego de prokeimai, estar colocado, ser proposto, e o de nossa
comunidade, tanto mais livres seremos. Então, a ação humana será plena de
força e verdade.
Mas, a vontade humana não é neutra e a liberdade humana sempre se
dá dentro de uma realidade condicionada. Assim, a liberdade entende-se como
relação dialética entre lei/natureza e graça/liberdade. Quando Hegel afirmava
que a liberdade é a consciência da necessidade cometia um erro porque
descartava a realização da liberdade. É por isso que para Marx liberdade é
práxis. Ora, para Marx, práxis é consciência da necessidade mais ação
transformadora. Ou seja, em termos teológicos, consciência da lei/natureza
diante da alienação existencial se traduz no conceito grego metanóia, ação
transformadora.
Por isso, para a jovem Igreja cristã, o mal, ao contrário do que pensavam
os gnósticos, não é um ser, mas um fazer. Em relação ao imediato é uma
possibilidade e no que se refere às sociedades é a construção de um domínio.
Numa definição teológica, o mal acontece perante aquilo que minha liberdade é
desafiada, quando meu julgamento tem a possibilidade de escolha entre aquilo
que é bem e aquilo que é mal. Ou seja, o mal surge como feitura humana.
Nesse sentido, o mal não se apresenta sem agente moral e nem pode
acontecer fora da cultura. Toda vez que o ser humano realiza sua escolha, a
lei/natureza está presente: assim o mal é um antítipo da liberdade.
Por isso só podemos responder ao mal reconhecendo que o mal é
feitura minha e de minha espécie. A partir daí, não podemos perguntar porque
o mal existe, como se fosse um ser. Mas devemos nos perguntar, como fez
Agostinho, o que me leva a fazer mal? O que nos exorta à ação libertária, já
que o mal é o que não devia estar. É a partir daí que nasce um ética libertária,
de combate a este fazer e domínio na vida de meu próximo e da comunidade.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Gostaríamos de acrescentar que as leituras libertárias da natureza
humana atravessaram os séculos e desembocaram na modernidade. Em 1970,
Ballestero (1970) ao analisar o caráter radical da liberdade no pensamento de
12
três gênios da modernidade, Nicolas de Cusa, Lutero e Marx, disse que “neles,
em um e outro plano, liberdade significa abolição da lei, colapso da
determinação exterior, e não – à maneira conservadora – comportamento que
se adequou aos limites da ordem. Liberdade para os pensadores que aqui
analisamos significa a destruição de toda ordenação que seja exterior e
anterior ao próprio ato livre.”
Assim, podemos dizer que a revolução teórica empreendida por Cusa e
Lutero não era gratuita, nem produto de um simples ato ideal, mas se enraizou
no tecido histórico do movimento de decomposição global da formação social
pré-capitalista. Cusa e Lutero clamam por essa destruição. Sem entrar nos
detalhes das mutações vividas no século 16, com a ruptura do equilíbrio
cidade/campo, o surgimento das manufaturas e consolidação do sistema de
trabalho assalariado, vemos que a dimensão negativa da condição humana na
incipiente sociedade capitalista será percebida por Cusa e Lutero: a autonomia
do sujeito se dá como dor. Mas ambos consideram essa subjetividade liberada
pelo início da arrancada capitalista como desequilíbrio. Assim, tanto Cusa
quanto Lutero partem da negação dessa subjetividade alienada do nascente
capitalismo, considerando que deve ser superada para que o Espírito floresça.
Aí, então, teríamos o fim da inessencialidade do sujeito alienado e a inserção
deste na totalidade objetiva. Mas isso não pode acontecer sem a
transformação dessa realidade objetiva em realidade espiritual, que sustém o
ser humano. Dessa maneira, para os dois pensadores, o Espírito constrói num
nível superior o universo anteriormente negado.
Ou como dirá Lutero (1955, p.225), “o cristão é senhor de todas as
coisas e não está submetido a ninguém. O cristão é servo em tudo e está
submetido a todo mundo”. Livre e não submisso, mas servo e escravo do ideal
da liberdade. Para Lutero, o ser humano existe como estrutura ontológica dual.
Sua conceituação traduz a ansiedade teórica do século 16, mas traduz-se em
superação da subjetividade alienada. O cristão é senhor de todas as coisas,
não está submetido a ninguém e esse senhorio radical é produto da
graça/liberdade. A apropriação da liberdade é fruto da certeza que transforma a
subjetividade alienada em realidade objetiva. Nesse sentido, o caráter espiritual
da autonomia do cristão se dá como processo. Morre o imediato, o alienado, e
tem início a construção de uma segunda natureza. A liberdade surge como
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deslocamento do ser humano natural, como distanciamento crítico daquilo que
foi naturalmente dado. O primeiro momento da liberdade parte de uma
concepção trágica, porque o senhorio num primeiro momento implica em
servidão, criando tensão e luta... “É necessário desesperar-se por você
mesmo, fazer com que você saia de dentro de você e escape de sua prisão”
(LUTERO, 1955, p.259).
O jovem Marx, seguindo os passos de Hegel, partirá dessa discussão.
Para ele, embora a religião fosse a realização imaginária da essência do ser
humano, essência essa que não tem realidade, assim como Cusa e Lutero, a
liberdade é abolição da legalidade, coincidência do momento subjetivo com o
momento objetivo, responsabilidade suprema do ser humano. Esse ponto de
vista marxiano está expresso na Introdução à Crítica da Economia Política
(MARX, 1982), texto que só foi descoberto em 1902 e publicado por Kautsky
em 1903.
Dessa maneira, conscientes da tensão alienação/natureza humana,
temos a liberdade enquanto destino, uma dimensão de combate. Mas, se não
existe vida pessoal sem o encontro com outras pessoas dentro de uma
comunidade, e não existe comunidade sem a dimensão histórica de passado e
futuro (TILLICH, 2005, p.423), é aí, na comunidade, que o ser humano constrói
a liberdade que vai além, a liberdade que é fonte de realidade e ação.
Podemos aqui tirar algumas conclusões dessas leituras libertárias da
natureza humana:
1. Se o mal é feitura humana e construção na cultura enquanto domínio – ele
não é um ser com existência própria –, as pessoas e comunidades não
precisam de sacramentos, nem de heteronomias para sua libertação;
2. A liberdade apresenta-se como graça que produz metanóia, ação
transformadora da realidade, que surge enquanto irrupção, acontece dentro do
humano e se expande;
3. As leituras libertárias da natureza humana foram combatidas pela Igreja, pois
subvertia a idéia agostiniana de que "fora da Igreja não há salvação". A
Reforma protestante deu um salto em direção à ruptura com a heteronomia
católica, mas perdeu força na sua arrancada e reconstruiu os padrões que
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combateu. Ao dar existência ao mal, ao fazer dele ser, recolocou a
necessidade de exterioridades para combatê-lo. Voltamos, dessa maneira, ao
destino demoníaco do pensamento helenístico. E por ser assim, diante desse
destino trágico, o mundo carece do Cristo, destino de liberdade.
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