organização familiar antiga e atual do kaiowá

Transcrição

organização familiar antiga e atual do kaiowá
ORGANIZAÇÃO FAMILIAR ANTIGA E ATUAL DO KAIOWÁ
DA RESERVA AMAMBAI
JUNIOR MOREIRA CAVALHEIRO1
Prof. Kaiowá – Aldeia Amambaí, Amambaí
Profª MS. Veronice Lovato Rossato
Orientadora- SED/MS
RESUMO
Os livros de história contam que, antigamente, muitas famílias indígenas se organizavam
fazendo grupos grandes e moravam numa casa gigantesca. Os objetivos desta pesquisa,
feita como trabalho final do Curso Normal Médio Ára Verá, em 2010, foram: descrever os
modos de convivência das famílias e a forma de se organizarem nessas moradas; desvendar,
através da história oral, até quando a comunidade da aldeia de Amambai vivia em casas
grandes e como era essa convivência; descobrir por que, com a virada do milênio, esse
modo de viver juntos acabou. Para realizar o trabalho, foram feitas entrevistas com pessoas
mais velhas que moravam em casas grandes; pesquisa em livros; fotografias e desenhos das
casas atuais e antigas; elaboração de um mapa da organização guarani e kaiowá dentro do
território. Descobri que a parentela grande do povo Guarani e Kaiowá morava, de fato,
numa casa grande todos juntos. Só que os livros não contam que esse tipo de vida acabou,
que as famílias hoje estão desestruturadas e que a óga pysy já não existe mais do mesmo
jeito. Também não mostram por que essa forma de organização acabou, que vivemos agora
confinados, toda parentela esparramada, porque a família grande já não tem mais condições
de se sustentar apenas com um pedacinho de terra ou com nenhum. Essa forma de moradia
finalizou em 1965 e a última casa durou até a virada do milênio. A desestruturação das
famílias teve consequência não só na desunião das famílias, na educação das crianças, e o
esparramo das famílias acabou influenciando para a contaminação da língua Guarani e dos
costumes do povo. Este trabalho poderá ajudar as escolas, pois, quando os alunos
estudarem História, já terão em mãos a história dos seus pais e avos e entender o que está
acontecendo com eles.
Palavras-chave: Guarani e Kaiowá, organização familiar, Reserva Amambai, óga pysy.
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Trabalho final do Curso Normal Médio Formação de Professores Guarani e Kaiowá, 3ª turma 2006-2010.
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INTRODUÇÃO
Escolhi este tema porque na escola onde eu estudava História dos povos indígenas,
via as “tribos” com uma forma de organização, morando todos numa casa grande. Pensava,
então, se a organização Guarani e Kaiowá era dessa forma no passado. Foi então que, numa
quarta feira à noite, quando juntava os cursos Ára Verá e Teko Arandu, a professora Leia
me disse que eu devia escolher a organização familiar dos Kaiowá, por que eles se
organizam todos juntos numa casa só. Ela sugeriu este tema porque conheceu esta história
no Campestre, onde morei e, então, lembrei da minha infância em Amambai, onde também
conheci a óga pysy.
Tendo concluído essa pesquisa, provavelmente ela será útil para várias pessoas, até
para os meus filhos no futuro, inclusive a historia de como foi a construção deste trabalho e
qual foi a dificuldade que passei para terminá-lo. Espero desvendar o motivo da
desorganização das famílias Guarani e Kaiowá hoje. Segundo a História, o que os livros
nos contam é que antigamente não só uma, mas todas as famílias de uma etnia, se
organizavam fazendo grupos grandes e moravam numa casa gigantesca onde cabiam todas
aquelas famílias. A casa era tão grande que tinha até um espaço para fazer a dança, a reza e
outras atividades.
Despertou em mim a curiosidade de saber por que isso mudou tanto nos dias atuais,
o que as famílias pensam sobre esse assunto, se conhecem essa história dos nossos
antepassados. E se agora, da forma que está a organização, é melhor do que antigamente,
ou não. O outro motivo da escolha do tema foi descobrir porque há separação nas famílias e
porque não permanecemos assim até hoje, como antigamente, vivendo nesta forma de
convivência. Será que existiam brigas entre as famílias que moravam na casa grande? Nesta
casa cabiam mais de noventa pessoas ou até mais. Por que, com a virada do milênio, todo
esse costume, o modo de viver tranquilos na paz, felizes todos juntos, acabou?
Isso se foi com o tempo e ficou na memória guardada a lembrança dos nossos
antepassados Guarani e Kaiowá e outros. E agora, será que se voltarmos a usar as formas de
organização familiar, ou seja, a moda antiga tradicional, como seria? Alguma coisa iria
mudar ou não? Ou do jeito que estamos levando a nossa organização, hoje, está bom? Será
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que a desorganização das famílias justifica a forma misturada da nossa língua, como o
“jopara”?
Agora se vê vovô e vovó sozinhos no seu canto esquecidos. Nem todos constroem
suas famílias ao redor da casa dos seus pais. Essa história nós conhecemos através dos
livros e dos nossos avos ao redor do fogo, contando a história dos nossos ancestrais.
Os objetivos desta pesquisa são descrever os modos de convivência das famílias e a
forma de se organizarem na sua morada; desvendar, através da história, até quando a
comunidade da aldeia de Amambai vivia em casas grandes e como era essa convivência.
Para abordar esse tema trabalhei com entrevista com pessoas mais velhas que
moravam em casa grande; estudo bibliográfico; fotografias das casas atuais; mapa da
organização guarani e kaiowá dentro do território; descrição etnográfica de uma família
grande hoje; e, por fim, o relatório.
As pessoas entrevistadas foram o Sr. Cassimiro Leme, de 56 anos; Florentina
Acosta, de 70 anos e Mário Soares, de 79 anos. Para fazer as entrevistas, primeiro eu
marquei com eles antes, perguntando se eles concordavam de me falar a respeito do
assunto. Eles me receberam muito bem, primeiro conversamos sobre diversos assuntos,
tomamos terere, até que falou para fazer logo o trabalho. Com cada um deles voltei três
vezes, porque não dava para apurá-los, mas algum demonstrou impaciência. O que foi
difícil no trabalho foi a busca de informação porque eu tive que correr atrás, com ou sem
chuva, para concluir a monografia. Não tirei fotos, porque não existe mais oga pysy em
Amambaí, mas achei alguma na bibliografia .
As questões a serem pesquisadas nesta história foram as seguintes: Até quando resistiu
a última Oga Pysy? Quais eram as famílias grandes de Amambai? Como se chamavam os
ocupantes da casa grande? Como se relacionavam as famílias nucleares na casa grande?
Será que brigavam mais? Quem era o chefe a Oga pysy e como eles se relacionavam com
as famílias nucleares (administração interna na casa grande)? Qual foi o ano inicial desta
moradia e durou até que ano? Quando iniciou o “sarambipa” (esparramo) das famílias?
Como eram os cuidados das crianças dentro da grande casa? Será que tinha guacho e como
era tratado na casa grande? E como está a organização das famílias hoje? Descrever como
as famílias se distribuem hoje na aldeia? Hoje, que as famílias moram em casa separadas,
como é o relacionamento entre os parentes? Do grupo familiar? Será que se ajudam menos?
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E hoje, se não for a mãe, quem cuida das crianças? Qual é função da casa grande hoje? Não
vou citar a fala de cada um dos entrevistados. A palavra deles foi organizada no texto como
um relato único.
Sou indígena da etnia Kaiowá, natural da reserva Amambai, no município de
Amambai, em Mato Grosso do Sul. Venho de uma família mestiça, sendo que minha
família paterna é indígena e minha família materna é não-indígena. Meu avô materno é da
Bahia e minha avó materna é paraguaia. Depois que casei, em 2005, fui morar na aldeia
Campestre, onde dei aula até 2009. Em 2010 voltei para Amambai, perto da minha família,
que é bem grande e unida. Apesar de ter antepassado não-indígena, minha mãe e os filhos
dela, que somos eu e meus irmãos, meus primos, todos seguem hoje os costumes da família
do meu pai, que é Kaiowá. Em Amambai, atualmente, estou dando aula na escola indígena,
como substituto.
A escola onde trabalho chama-se Escola Indígena Guarani Kaiowá, tem mais ou
menos 1.200 alunos, 41 professores indígenas e 26 não-indígenas. Atende Ensino
Fundamental completo e Educação Infantil. Também tem uma escola estadual de Ensino
Médio, mas não é indígena. E tem outra escola ao lado da reserva que atende alunos
indígenas, nas terras da Missão Presbiteriana.
A reserva de Amambai foi reservada com 3.600 hectares, pelo SPI. Mas foi
demarcada com apenas 2.429 hectares, em 1916. Atualmente tem uma população de,
aproximadamente, 6 mil habitantes. Segundo a FUNASA, existem na aldeia 1450 famílias
nucleares, distribuídas em 1020 casas registradas. A reserva se localiza no município de
Amambai, no cone sul de MS, entre Coronel Sapucaia, Ponta Porã e Caarapó e é cortada
pela rodovia Ponta Porã-Amambai, no km 04. Sua economia se baseia em pequenas roças e
lavouras de soja na aldeia, trabalhos nas usinas de álcool da região, empregos públicos e
aposentadorias, além de cestas-básicas do governo e bolsa-família para quem tem filhos na
escola.
A OGA PYSY
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A oga pysy, que é também chamada de ogajekutu (casa de paus fincados no chão), é
uma casa grande onde morava a família extensa. Ela tinha capacidade de abrigar até 100
pessoas.
A última casa em Amambai, que acabou em 2000, tinha cerca de 20 metros de
comprimento, por 10 metros de largura e 7 de altura, com porta principal aberta para o sol
nascente, e mais duas menores nas laterais da casa, posicionadas em cantos contrários. De
frente para a porta principal, dentro da casa, havia um altar chamado “yvyra’i marangatu”,
feito de paus arredondados com vários instrumentos de reza, tais como mbaraka, takuapu,
chiru, kurusu, mimby e um cochinho com a água de cedro para benzimentos.
Naquele tempo, cada família de pai, mãe e filhos pequenos, que moravam dentro da
casa, o que separava cada grupo era os esteios da casa, sem parede. Todos os seus
moradores eram ungidos pelo ñanderu, por isso quem vinha de fora e não era ungido, não
podia entrar, a não ser que fosse convidado e benzido pelo ñanderu.
Na casa não tinha cama, só redes, e também não tinha móveis, só fogo de chão,
panelas e objetivos de caça. Para iluminar a casa, usava-se vela de cera de abelha. Também
ninguém podia tocar nos objetos sagrados do Ñanderu, que ficavam descansando no yvyra’i
marangatu, porque cada homem ou mulher tinha o seu próprio que também ficava aí, para
serem usados nas noites e dias de rituais.
Hoje em dia, em algumas aldeias, ainda tem oga pysy, só que não é mais moradia,
só serve para rituais e é chamada de “casa de reza”. Ali dentro não seguem mais as normas
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que havia antigamente, qualquer um entra e também toca nos objetos sagrados. Além das
rezas, a casa serve também para reuniões da comunidade. O que é mais triste é que muitos
indígenas hoje sentem vergonha desta casa e preferem até queimar, como já aconteceu com
muitas em várias aldeias. Isso é devido às novas religiões que estão entrando na aldeia, que
dizem que tudo o que é tradicional é do “diabo”. Preferem dar mais valor à religião das
igrejas, do que a religião tradicional, discriminando os ñanderu. Por isso eles não querem
mais rezar. Segundo o Sr. Casimiro Lemes, é por isso que as casas grandes não existem
mais em Amambai, nem como moradia, nem como casa de reza.
O Sr. Casimiro conta que, em Amambai, o ano que levou a extinção da oga pysy foi
em 1965, finalizando a existência dela na aldeia. Mas, mesmo com a ação discriminada dos
próprios irmãos indígenas, uma se firmou e continuou atuando no local, onde permaneceu
até a virada do milênio (ano 2000). Os donos não conseguiram mais ter forças para mantêla em pé até o ano em que estamos vivendo. A casa mãe desapareceu, virou cinza, levando
com ela, no tempo, toda a história que viveu. A oga pysy, que continuou carregando a
história indígena, não teve mais força e deixou que o tempo a levasse junto com o milênio
que passamos, deixando-a no passado.
A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR ANTIGA
O lugar onde as famílias grandes moravam chamava-se tekoha, onde construíam
suas oga pysy (casa grande). Cada tekoha tinha poucas famílias grandes. A oga pysy era
muito importante para o Kaiowá, tinha um grande significado. Era um espaço grande onde
todas as famílias se organizavam economicamente, social, política e mais religioso.
Nessa casa grande morava avó, neto, pai, mãe; até mesmo animais de estimação
como papagaio, quati e macaco eram comuns nessa casa. Também andavam pela casa, os
cachorros e as galinhas. Lobinho não podia ser animal de estimação como o cachorro,
porque era considerado como “alma penada” e quando ele aparece para alguém é sinal de
que um parente vai morrer. Mas geralmente, ninguém mata lobinho, porque ele tem história
de “porakue”, que quer dizer fantasma, então as pessoas só espantam para assombrar em
outro lugar.
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Tekoha guasu - Num único território havia muitos tekoha.
Cada tekoha tinha um que comandava, geralmente uma pessoa mais antiga da
família. O chefe do tekoha era um homem religioso que sabia rezar. O cuidado e os deveres
domésticos eram das mulheres. Os homens se encarregavam de caçar, pescar e fazer roça.
As relações entre as famílias eram muito apegadas, porque, em primeiro lugar, entre
eles não brigavam. Entendiam que quem fazia as brigas era mau-espírito e acreditavam
muito na espiritualidade.
Quando alguma criança da família ficava doente, o rezador que curava fazia uma
reza a noite toda. Qualquer problema que acontecia entre as famílias, o chefe da casa é que
resolvia.
Até meados do século 20, as moradias das famílias eram organizadas desse jeito, na
convivência na óga pysy. Os Kaiowá acreditam que a casa grande iniciou a partir da
existência do grande Deus (Ñanderuvusu), porque Ele mora neste tipo de casa. A oga pysy
construída aqui na terra é uma imitação da casa sagrada onde mora o nosso grande pai. E
foi passado de geração em geração, que essa oga pysy tinha que ter uma porta principal
voltada para onde o sol nasce todos os dias.
A oga pysy acabou porque as pessoas que sabiam construir a casa grande morreram
e ninguém mais sabe construir. Construir até pode, mas o arquiteto da casa tem que saber a
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reza certa para fazer essa casa. E não existem mais, em Amambai, quem sabe ñembo’e
(reza); é por isso também que não se constrói mais a casa grande.
As crianças eram cuidadas desde o nascimento. Entre 0 e 1 ano, a maioria dos bebês
eram cuidados por todos; avo, tio, tia, irmão davam muito carinho para os pequenos. A mãe
amamentava até sair o primeiro dente da criança e carregava consigo onde ia. A partir da
saída dos primeiros dentes, o cuidado maior já era da avó, do irmão ou irmã mais velhos,
mas o cuidado geral não deixava de lado, era obrigação de todos. Toda manhã, quando o
sol nascia, a criança era colocada de frente para o sol para fazer jehovasa e se fazia também
antes do sol se por. Isso era feito para as crianças terem saúde.
Os maiores eram educados de acordo com o que a tradição mandava: respeitar a
todos, o ser humano em geral, a natureza, animais e plantas. No caso da menina, ela era
educada pela mãe, preparando para a vida adulta. Os meninos eram educados pelo pai para
a vida adulta também.
Um dos maiores rituais que acontecia na óga pysy era o Kunumi Pepy, a iniciação
dos meninos adolescentes para passar para a vida adulta. Eles ficavam dois ou três meses na
casa, recebendo ensinamentos do ñanderu, comendo uma comida especial, só de peixe e
mbeju, sem sal e sem açúcar. No ritual, eles tinham que tomar muita chícha para ficarem
bêbados e não sentir a furada no lábio de baixo, onde era colocado o tembetá, que é uma
varetinha feita de resina de uma árvore sagrada, tembetáry. Essa cerimônia só podia ser
acompanhada pelos homens que também já tinham o lábio furado. As mulheres não podiam
entrar, mas no final, todos participavam de uma grande festa com a chícha e com as danças
guachire, guahu e kotyhu.
Menino de Amambai, um dia depois de colocar o tembeta,1969.
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A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR ATUAL
A partir do século 20 é que as famílias começaram a se esparramar (sarambipa),
muitas vezes quando morria uma pessoa mais velha que era da parentela da casa. Cada um
procurava o seu destino, no caso da mulher, era seguir o seu marido, o resto mudava para
outro lugar. E nesse novo lugar demorava para construir uma nova família. Outra razão foi
a civilização não-indígena, quando os fazendeiros começaram a expulsar as famílias de
suas terras. Também devemos considerar que o próprio SPI (Serviço de Proteção aos
Índios) foi responsável pelo esparramo das famílias, com o surgimento das reservas. Muitas
famílias ficavam isoladas umas das outras, algumas ficavam no tekoha antigo e outras
procuravam o trabalho na changa, em fazendas vizinhas. E muitos trabalhavam na
Companhia Mate Laranjeira.
Essa divisão familiar veio também a partir do ano em que foi instalada a capitania,
que se intensificou após a entrada da Missão Evangélica Caiuá na aldeia de Amambai, em
1928 e com a criação das oito reservas, em áreas de, no máximo, 3.600 hectares.
Reservas indígenas Guarani e Kaiowá de MS
Desde então acabou a harmonia e a paz que existia nas comunidades indígenas dos
Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Por isso que achamos nossos parentes longe uns
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dos outros. A partir de então, cada reserva já era obrigada a ter nome próprio: Amambai,
Limão Verde, Takuapery, Sassoró, Porto Lindo, Pirajuí, Dourados e Caarapó.
Hoje as famílias estão desorganizadas, porque não existe mais oga pysy e chefe da
família que sabe rezar. A vida na aldeia é diferente de antigamente porque, hoje, quem
manda é o Capitão. Há uma política diferente na aldeia, já não há mais um chefe que
pertence à família extensa. E também o que está desestruturando as famílias é o casamento,
muitas vezes casam com pessoas de uma família que não gosta da outra. Aí começam a se
odiar e não vão mais para casa do outro na aldeia e se separam.
Outra coisa que desestrutura muito as famílias é o álcool, porque as famílias bebem
e acabam brigando, muitas vezes entre os próprios parentes. E sempre a conseqüência disso
recai na criança, no caso da menina, ela cai na prostituição, engravida precocemente. A
usina também é responsável pela destruição das famílias, porque os pais ficam muitos dias
longe de suas casas e a responsabilidade maior é sempre das mulheres e as mulheres,
muitas vezes, não dão conta de organizar a família. Até quando os filhos são crianças, as
mães conseguem administrar a família, mas quando chegam na adolescência, começam os
problemas maiores.
A desorganização das famílias acabou se comparando ao modelo de organização das
famílias não-indígenas, pois foram obrigadas a seguir este modelo de convivência, uma
família separada da outra, mas todas amontoadas dentro da reserva.
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Agora as famílias são nucleares, quer dizer, vivem numa casa pequena só o pai,
mãe e filhos e, às vezes, algum adotado, ou agregado, ou mesmo o avô ou avó. Quando
conseguem morar perto uns dos outros é bom, mas muitos já não conseguem nem isso. E
também a influência de outro tipo de chefia, a dependência de ajuda externa e o trabalho
fora da aldeia, já tira a autonomia das famílias. Além disso, hoje já tem outras coisas que
estão ajudando a piorar a situação de desunião e descontrole das famílias: as escolas, as
igrejas, a televisão, os vídeos, a cidade e outras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O trabalho desta monografia foi feito em cima da realidade dos Guarani e Kaiowá,
sobre a forma de organização das famílias indígenas. Na conclusão descobri que a
organização dos Guarani e Kaiowá é compatível com a História que conhecemos nos livros
didáticos, pelo menos com relação à organização antiga das famílias. A parentela grande de
nosso povo morava, de fato, numa casa grande todos juntos. Aprendi também como os
Guarani e Kaiowá antigos faziam para se comunicar de uma aldeia para outra. Era por
mensagem mandada pelos ñanderu, através da oração (ñembo’e) e cânticos (porahéi),
convidando a outra aldeia para participar de festa ou coisa parecida.
Só que os livros não contam que esse tipo de vida acabou, que as famílias hoje estão
desestruturadas e que a óga pysy já não existe mais do mesmo jeito. Também não mostram
o motivo por que essa forma de organização acabou. Não mostram que vivemos agora num
chiqueirinho, toda parentela esparramada, porque a família grande já não tem mais
condições de se sustentar apenas com um pedacinho de terra ou com nenhum. Essa forma
de moradia finalizou no ano de 1965 e a última casa durou até a virada do milênio. Concluí
que a desestruturação das famílias teve conseqüência não só na desunião das famílias, na
educação das crianças, mas também na língua, porque foram falando mais o Português e
deixando de lado o Guarani e o esparramo das famílias acabou influenciando para a
contaminação de nossa língua e de nossos costumes.
O que mais me chamou a atenção na pesquisa foi que toda essa vivência que
vínhamos carregando até agora está acabando e ninguém mais está dando valor à nossa
cultura, apesar de dizerem que a cultura e a tradição estão no sangue, na pele. Mas só isso
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não adianta, porque cultura e tradição é vivência e, se não voltarmos a praticar tudo o que é
nosso, como vamos saber as regras, os passos e os valores da nossa tradição. Além disso,
hoje em dia só dão valor ao costume dos brancos e têm vergonha das nossas coisas. E o
mais chocante é que toda essa vivência da oga pysy aguentou até pouco tempo atrás e, num
tempo muito curto, acabou tudo.
Entendo que a organização familiar da forma antiga não seria mais possível adotála, porque hoje todos cresceram dessa forma e acredito que eles não vão mudar. Penso que
vai ser muito difícil retomar a convivência antiga, mas, se valorizarmos a família grande
unida, com certeza, a comunidade irá pensar na casa grande e mantê-la em pé novamente,
embora não mais para morar, mas sim como lugar de festa religiosa.
Entendi que como indígena, nós nunca devemos abrir mão do que somos. Mesmo
que queiramos ser outra pessoa de uma outra etnia não dá, a nossa identidade jamais será
mudada. Mesmo que os costumes da nossa tradição desapareçam nos tekoha, ela sempre
estará presente na nossa alma. Por isso devemos dar valor ao que é nosso e defender
bravamente a nossa cultura e tradições e revitalizar tudo o que está desaparecendo com o
tempo. Vamos acordar! Japaikena! Ndovalei ñamboyke ñande reko, ndovalei ñambuete
ambue reko. Ñaha’ã mbarete ñamopu’ã jevy haguã umi naimbaretevéimava.
A lição que tive é que devo incentivar os pequenos que estão crescendo para nunca
deixar de ser o que são e dar valor ao que é nosso e que eles têm de aprender a construir os
materiais que são nossos, como os de caça e pesca. Mas para caçar, pescar e construir óga
pysy precisa ter as condições, que são, principalmente, a terra e a natureza, que hoje já
estão muito escassas.
Este trabalho irá ajudar muito nas escolas. Quando os alunos estudarem História,
eles já terão em mãos a história dos seus pais e avos, que vivenciaram essa época na
infância deles. Do mesmo modo que surgiu dúvida em mim, com certeza surgirão em
outros e eles já terão mais uma fonte de informações, desta vez feita por um professor
Kaiowá, que estudou o Ára Verá, porque esta pesquisa diz quase tudo em relação ao modo
como as famílias se organizavam.
Consegui superar todas as barreiras e dificuldades que tive com este trabalho. A
pesquisa me mostrou todo o trajeto histórico de sofrimento e discriminação do povo
Guarani e Kaiowá vivido no passado e até hoje, em um lugar chamado Amambaí.
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Mas eu digo, mesmo que tudo vire em cinza, a óga pysy estará presente conosco
todas as noites brilhando no céu como uma estrela olhando para nós, com o espírito
guerreiro dos ñanderu, que já viviam muito antes de existir a nova geração atual e que
continuam existindo até hoje.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NASCIMENTO, A. C. e outras. Projeto Criança Kaiowá e Guarani em Mato Grosso do
Sul: a realidade na visão dos índios. Campo Grande: UCDB, 2005.
Fotos:
GUARANI KAIOWÁ, Mbo’ehára Kuéra. Tynynÿi Ñe’ë Nenoasãi. Brasília/DF: MME,
2008.
GUARANI-KAIOWÁ. Ore rehegua ñe’ë. La nostra storia. Roma: Sinnos Editrice, 2002.
GUARANI RETÃ 2008. Povos Guarani na fronteira Argentina, Brasil e Paraguai.
2008.
Ilustrações:
JÚNIOR MOREIRA CAVALHEIRO, 2010.
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