o consenso punitivo no caso joão hélio

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o consenso punitivo no caso joão hélio
O CONSENSO PUNITIVO
NO CASO JOÃO HÉLIO
Vinicius da Paz Leite
Defensor Público, Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia.
1. INTRODUÇÃO
No ano de 2007 ocorreu a morte de um menino em decorrência da prática de
roubo de um veículo na cidade do Rio de Janeiro. Este caso foi amplamente divulgado na mídia por dois motivos apenas aparentemente justificados: envolvia a vida de
uma criança e o modus operandi. Ao realizar-se o assalto, os autores, após renderem
a motorista (mãe da vítima), tomarem posse do veículo, saíram em disparada sem
notar que o menino tinha ficado pendurado no cinto de segurança, sendo arrastado
por várias ruas, fato que causou a sua morte.
Emprega-se tal expressão (apenas aparentemente justificado) porque os dados
estatísticos relativos à tutela da infância e da juventude no país nos indicam que além
de práticas sistemáticas de maus-tratos, muitas crianças no Brasil são diariamente
assassinadas, vitimas de pedofilia e se encontram em condições miseráveis de vida,
dependentes de craques e outras drogas,vivendo nas ruas de nossas cidades, sem
que o Estado se preocupe em atuar em defesa de seus interesses. Não obstante,
este caso chamou a atenção da mídia e a dramaticidade dessa morte foi explorada incessantemente pelos meios de comunicação. A exposição exaustiva do caso
caracterizou-se como uma campanha em prol de maior segurança pública (conceito,
aqui, limitado ao combate da criminalidade).
A campanha foi declarada como uma exigência cidadã de respostas oficiais
por parte das autoridades públicas. Pode-se perceber que, em resposta a exigências
“cidadãs” midiáticas, em prol do “bem comum”, há uma pronta resposta estatal, discursiva, formal e informal, em que se percebem reverberações discursivas, reiterações do mesmo discurso midiático propulsor dessas respostas.
O presente artigo pretende observar as funções manifestas deste discurso
midiático, entendendo como o medo – categoria histórica estratégica para o controle
social1 – fundado na criminalidade, constrói símbolos de uma conjuntura de pânico e
BATISTA, Vera Malaguti. Medo na Cidade do Rio de Janeiro - Dois tempos de uma história (Rio de
Janeiro: Revan, 2003). Observa a autora que “a hegemonia na nossa formação social trabalha a difusão do
medo como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O medo torna-se
fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico, político ou social”. Logo depois a
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de que forma se darão as reverberações dessas alegorias de desordem nos discursos, alusivos ao caso, de parlamentares, do Governador do Estado do Rio de Janeiro
e do órgão judicial responsável pelo julgamento dos fatos.
Após discorrer brevemente acerca da metodologia, analisar-se-á o discurso
produzido pela abordagem midiática envolvendo o caso João Hélio. Em seguida, as
reverberações propriamente ditas desse discurso nas agencias judiciais, executivas
e legislativas,
2. METODOLOGIA
Adota-se a perspectiva da criminologia crítica, em sua vertente abolicionista,
para se analisar o caso em questão. Considera-se que a criminalidade não é uma
qualidade pré-constituída, mas sim rotulação de certos indivíduos.
Foi feita uma análise de quatro discursos. Em um primeiro momento analisou-se a terminologia empregadas pela mídia ao veicular a informação sobre o caso. O
corpus de análise foram reportagens, publicidade e colunas de jornais, veiculadas na
mídia televisiva e impressa - com especial atenção à TV Globo - sobre o caso João
Hélio. Textos jornalísticos que demonstram a repercussão do caso. Reportagens veiculadas no sítio G1, a entrevista dada pelos pais de João Hélio à Fátima Bernardes
no programa Fantástico e as reportagens e publicidades de jornais, veiculadas na
mídia impressa (jornais O Globo, O Dia e Jornal do Brasil, de 08/02/07 e 09/02/072).
A recorrência ao sítio G1 e ao jornal O Globo, das Organizações Globo, dá-se
pelo fato de constituir-se uma das mais acessadas fontes de informação no meio
jornalístico.
Em um segundo momento, com base nos estudos sobre a sociologia judicial,
foram identificadas as reverberações de tais discursos midiáticos nos discursos dos
operadores jurídicos, abrangendo as alegações do promotor e da magistrada responsáveis pelo caso, além da análise do discurso das agências políticas, responsáveis
pela criminalização primária e de cartas de leitores veiculadas no jornal O Globo,
percebendo como se opera um verdadeiro processo de reificação do discurso, desaguando num consenso punitivo em torno do caso,.
Os discursos das agências políticas serão tirados, no caso de Sérgio Cabral,
de suas manifestações na própria mídia, e, no caso dos parlamentares federais, de
suas manifestações no Congresso Nacional.
Repercussões alegóricas do medo na sentença prolatada pelo judiciário, em
primeira instância e a busca por pequenos indícios processuais serão necessários
para se chegar à compreensão da influência do discurso midiático na formação das
meta-regras3.
autora levantará o papel histórico do medo na visão colonizadora da América.
A referência a tais dias deve-se ao fato de haver, como se exporá a diante, um aumento de espaço de
divulgação do caso tanto na mídia impressa, como na televisiva.
2
O termo “meta-regas” é utilizado pelo autor Fritz Sack, citado por Alessandro Baratta como sendo o autor
pertencente à recepção alemã do “Labeling Approach”. Segundo Baratta: “Na teoria do direito existe uma
distinção semelhante (entre regras e meta-regras): ao lado do conjunto de regras gerais de comportamento,
3
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Analisar-se-á a apropriação do discurso jurídico legal pelo discurso midiático;
como e porque se dá uma diferenciação entre “amigos” e “inimigos” e o papel fundamental da estética do medo para a difusão de um clima de insegurança necessário à
administração do neoliberalismo.
A hipótese central é que a apropriação pela mídia de um discurso de legitimação e expansão da ideologia law and order gera consequências materiais, pautadas
em símbolos subjetivos e ideológicos, conforme as necessidades do vídeo-capital
financeiro, nas agências executivas, legislativas e judiciais do sistema penal.
A análise de discurso pretende, pois, identificar, nos mecanismos de controle
de produção de discurso, o poder e o desejo proibido que escapam pelo ato falho,
pela metáfora, pelo deslize, pelo equívoco, tendo-se por base que “o sujeito discursivo não é razão porque ele tem inconsciente e ideologia”4. A falsa impressão trazida
pelo sujeito do discurso, a impressão de que nosso discurso é objetivo e neutro é
denominada por ilusão do sentido literal e ilusão do efeito referencial, por Dea Rita
Matozinho5. Tal enfoque toma grande relevância na abordagem do discurso midiático,
que se pauta no ideal de completude e lógica nos argumentos de recrudescimento
penal, mas que, na verdade, é articulado por um sujeito discursivo, que faz uma
opção ideológica. “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas - sinais, indícios - que permitem decifrá-la. Ou seja, detalhes mínimos podem desvelar fenômenos
mais profundos, processos mais essenciais.”6
Certos fatores vão influir nas condições de produção do enunciado, como a
relação de sentidos (não há discurso fechado, ele sempre se relaciona com outros
discursos); o mecanismo de antecipação (o locutor se antecipa, colocando-se no
lugar do interlocutor, argumentando conforme o efeito que nele pretenda ou pense
produzir) e as relações de força (o que o sujeito diz vai valer mais ou valer menos de
acordo com o lugar de onde ele diz).
A identificação do “sujeito” e de seu “lugar” na sociedade não se dá tomando
os sujeitos ou seus lugares físicos, mas “suas imagens que resultam de projeções”
tomar-se-ão suas formações imaginárias.
existe um conjunto de regras de interpretação e de aplicação das regras gerais (...) Sack trata de deslocar
a análise das ‘meta-regras’ do plano perceptivo da metodologia jurídica para um plano objetivo sociológico.
(...) As meta-regras, pois, são regras objetivas do sistema social, que podem orientar-se para o que Sack
chama ‘a questão científicas decisiva’, que se relaciona à diferença intercorrente entre criminalidade latente
e criminalidade perseguida: o problema de como devemos representar o ‘processo de filtragem’ da população criminal, ou seja, em ultima análise, ‘daqueles contra os quais, afinal, se pronuncia uma sentença
em nome do povo’ ”. Continua o autor: “Neste sentido, as regras sobre aplicação (basic rules, meta-regras)
seguidas, conscientemente ou não, pelas instâncias oficiais do direito, e correspondentes às regras que
determinam a definição de desvio e de criminalidade no sentido comum, estão ligadas a leis, mecanismos
e estruturas objetivas da sociedade, baseadas sobre relações de poder ( e de propriedade) entre grupos
e sobre as relações sociais de produção” (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito
Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro:
Editora Revan, 3ª edição. 2002.p. 156).
MATHOZINHOS, Dea Rita. As Formas de Silêncio na Justiça Criminal Brasileira. Dissertação (Mestrado
em Direito) - Universidade Cândido Mendes. 2003.p.28.
4 op. cit. p.15.
5 BATISTA, Vera Malaguti. Medo na Cidade do Rio de Janeiro - Dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro:Revan, 2003. p.13.
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O funcionamento do discurso é explicado focando a análise na articulação intradiscurso (o que está sendo dito agora, em circunstâncias dadas – o eixo horizontal)
com o interdiscurso (a memória discursiva – o eixo vertical), tendo sempre em mente
as formações imaginárias ou representações, ressaltando-se que as formações discursivas são afetadas por formações ideológicas.
Enquanto a formação discursiva é o lugar de onde alguém fala, a formação
ideológica é o imaginário, a projeção que este alguém faz das coisas.
Após esta etapa, passa-se então a analisar os efeitos de sentido do discurso,
focando-se, nessas circunstâncias, quem o produz e a quem se dirige.
Vai-se considerar a “memória discursiva (interdiscurso), o já-dito e esquecido
que vem da história, que alguém falou antes, em outro lugar, sem relação de dependência com a situação presente. O já-dito afeta o dizer de agora, pois a língua e a
história nos afetam.”7
3. MÍDIA
Devido ao grande poder hegemônico de difusão, educação, informação e entretenimento desempenhados pelos meios de comunicação de massa uma questão que
surge é a possibilidade de uma legitimação do estado de polícia, conclamada nas transmissões com altos índices de audiência por meio da imposição de consenso em relação
à normalidade de violações a princípios e garantias fundadoras do estado de direito.
Graças à imensa capacidade advinda da tecnologia eletrônica, podem ser
criados espetáculos que oferecem uma oportunidade de participação e um foco compartilhado de atenção a uma multidão indeterminada de espectadores fisicamente
remotos, “o indivíduo se acha plena e verdadeiramente na presença de uma força que
é superior a ele e diante da qual se curva”8.
Assim, surge a hipótese de que propagações, por parte da mídia, de discursos de exceção, próprios do direito penal do inimigo, seriam reiterados por parte
de agentes estatais responsáveis pela implementação de políticas criminais. Diante
deste quadro a mídia seria uma agência do sistema penal, que atua previamente às
agencias legislativas, executivas e judiciárias. Procurar-se-á identificar como se dão
os mecanismos de produção de um discurso único, propagado pelos mass media e
legitimado por parlamentares , representantes do executivo e membros do judiciário.
4. O DISCURSO MIDIÁTICO
4.1. ANÁLISE DA MÍDIA IMPRESSA. PERSPECTIVA QUANTITATIVA E
QUALITATIVA:
Primeiramente, ao analisarmos o enfoque da mídia impressa sobre o caso em
questão, é relevante destacar a diferença do tamanho de espaço físico destinado à
notícia da morte de João Hélio nos jornais dos dias subsequentes ao fato:
7
Op. cit. p.59.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança o mundo atual. Rio de Janeiro: Editora Jorge
Zahar, 2003, p.40
8
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08/02/07
Jornal
O Globo
JB
O Dia
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09/02/07
Capa
Interior
30x 20 cm 5 pags
24x 23 cm 6 pags
32x 27 cm 4 pags
Jornal
O Globo
JB
O Dia
Capa
não
não
10x 6 cm
Interior
16x 15 cm
não
20x 8 cm
Fazendo uma análise quantitativa em relação ao espaço utilizado pelos jornais
dos dias subsequentes à morte de João Hélio percebe-se uma diferença abrupta da
quantidade de espaço destinado pelos jornais impressos do dia 08/02/07 para o dia
09/02/07.
Com base nesta diferença, comparativamente com conteúdo dos jornais de
ambos os dias, levando-se em consideração que o evento morte ocorreu no dia
07/02/07, percebe-se que os fatos responsáveis pelo aumento de espaço destinado
à cobertura do caso de um dia para o outro foram: a prisão de dois acusados e um
suspeito de participarem do acontecimento e o enterro de João Hélio – “ao mesmo
tempo em que João Hélio Fernandes era enterrado em Sulacap, seus assassinos
chegava à delegacia de Marechal Hermes”9.
Desta forma, de acordo com os jornais impressos, infere-se que o evento morte
teve menos relevância que os eventos prisão dos acusados e enterro da vítima. Esta
polarização sofrimento das vítimas versus punição dos criminosos será a responsável
pelo incremento de espaço físico destinado ao caso pelos jornais da semana.
Portanto, se os editores de jornais consideraram mais relevante a punição dos
inimigos e o sofrimento das vitimas, a ponto de aumentarem em mais de dez vezes o
espaço destinado à cobertura do caso, certamente eles estavam esperando com isso
um aumento também na venda de jornais, o que é noticiado pelo Jornal do Brasil de
09/02/07, porém, reportando-se à emissora de televisão pertencente – assim como
o Jornal do Brasil – à Editora Abril: ”A comoção foi tão grande que o programa Brasil
Urgente, da TV Bandeirantes, apresentado por José Luiz Datena, aumentou dois
pontos de audiência em dois minutos ao exibir uma entrevista ao vivo com Diego“
(um dos acusados).
Na primeira página do jornal O Globo de 09/02/07, lê-se a manchete: “Barbárie
contra infância”. Logo a baixo, vê-se a foto do menino branco e de cabelos lisos, filho
da classe média, e um desenho feito por ele destinado à mãe e à irmã. Há um claro
apelo emocional, utilizando-se de símbolos maternais, fraternais e infantis, para, num
processo de ressignificação fratricida, na segunda página do jornal, contendo uma
foto da irmã de João Hélio, desesperada, com a seguinte legenda: “Revolta de irmã:
Aline, abraçada pelo pai, fala em “matar aqueles dois”. A catarse ainda é vivenciada
na segunda página com a foto da mãe chorando, que ocupa a maior parte da página,
situando-se em seu centro. Uma alegoria de dor e desespero, com a seguinte legenda: “Lágrimas de mãe: amparada por amigos e parentes, Rosa Cristina F. Vietes, em
desespero chora no enterro do filho”.
Lágrimas de mãe e revolta de irmã parecem ser o ponto alto – emoldurado pela
manchete: ”A Cidade Chora por João” – da sequência emocional proporcionada pela
9
Jornal do Brasil de 09-02-07, p. A 15.
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ordenação de páginas. Ainda, aqui, não há qualquer indício explicitamente publicitário; permanece o sentimento fraternal, contudo punitivo, fratricida.
Da emoção da mãe que chora e da irmã que pede morte, uma terceira página
surge, com um mapa do caminho do arrastamento, abaixo dos dizeres: “Menino foi
arrastado pelas ruas de 4 bairros”. No detalhe, a insistência em identificar agências
do sistema penal – sugerindo uma ineficácia de tais agencias –, incluindo a menção a
um fórum no caminho percorrido, como se o juiz ou o promotor pudessem sair como
super-homens do fórum e impedir o arrastamento.
Logo a baixo, outra manchete: “Apenas dois PMs em todo trajeto”, em cima,
uma foto em que se pode ver o secretário de Segurança e o comandante-geral da PM
do Rio de Janeiro, sob a legenda: “O secretário Beltrame chega ao cemitério com o
coronel Ubiratan”, o que demonstra mais uma vez um discurso implícito de embate
entre as agências, numa clara cobrança por parte do jornal à instituição policial carioca10.
Ainda nesta página pode-se perceber no espaço inferior esquerdo um anúncio
do colégio pH, claramente dirigido aos pais de classe média que podem pagar caro
para o ensino de seus filhos.
Na quarta página há a predominância da estética publicitária, com o domínio
de um comercial da Chevrolet, com uma imensa placa de trânsito, onde está escrita
a palavra “PARE”.
Placa de transito é destinada a carros. Um pare para a sequência do arrastamento emocional proporcionado pelo encadeamento da notícia. Um pare, preste a
atenção no que você precisa para ser um amigo. Em cima, na parte central da margem superior, há a foto do menino, que por sinal é repetida em todas as páginas. Em
baixo, letras garrafais escritas sob uma paisagem da cidade do Rio de Janeiro, com
os seguintes dizeres: “COM TODO O RESPEITO”. Logo abaixo da placa “PARE”, os
seguintes dizeres: “Rede Chevrolet informa: hoje você não pode comprar carro” –
pare com todo o respeito na cidade do Rio, porque você hoje não pode comprar carro.
Se não o seu filho consumidor é arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro, que possuem
apenas dois policiais, na página anterior denunciados.
Aqui, a publicidade, apesar de predominante, não se caracteriza por sua independência. Ela depende do contexto da matéria. Uma coluna que fica espremida no
canto direito e é retomada na pagina seguinte, o que nos faz crer que tudo faz parte
de uma mesma estratégia: medo para consumir.
O grande mecanismo que se faz perceber no tocante à propaganda é a confusão entre entretenimento, informação e propaganda propriamente dita. A fluidez, a
falta de limites entre a propaganda e a notícia fica clara quando da análise do jornal O
Globo em que mais 80% da pagina do jornal era propaganda de carro e apenas 20%
O Estado, segundo Bauman, “não mais preside os processos de integração social ou manejos sistêmicos que faziam indispensáveis a regulação normativa, a administração da cultura e a mobilização
patriótica, deixando tais tarefas para forças sob as quais não tem jurisdição” – assim, a apropriação dos
instrumentos de coesão nacional pela mídia de massa. ”O policiamento do território administrado é a única
função deixada nas mãos dos governos dos Estados; outras funções ortodoxas foram abandonadas ou
passaram a ser compartilhadas e assim são apenas em parte monitoradas pelo estado e por seus órgãos,
e não de maneira autônoma”.
10
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era noticia sobre o roubo do carro dos pais de João Hélio. É nítido o aproveitamento
propagandístico da notícia do carro roubado pelo anuncio de um carro novo, configurando-se o latrocínio um verdadeiro garoto propaganda do automóvel ali anunciado.
Há, na sexta e última página, a volta para a notícia da prisão dos agentes
envolvidos, sem publicidades. Pode-se ver uma foto em que três policiais seguram
três meninos (nenhum branco) pelo pescoço, numa clara demonstração de que estão
expondo seus rostos. Um dos jovens de calça aberta, mostrando a genitália, provavelmente pelo modo violento com que foi capturado, embaçada. Sob a foto, a legenda:
“PMs exibem os três presos no Morro São José da Pedra: o menor (à esquerda), o
homem que foi liberado na delegacia e Diego (à direita)”.
Não sem remeter à apreensão do dito “menor”, que “deve ficar detido por apenas 3 anos”, segundo a manchete desta ultima página, contraposta na submanchete
a “outro bandido, que tem 18 anos e confessou o crime” e que “pode ser condenado
à pena de 20 a 30 anos de prisão”. O adolescente será ressignificado como “homem
criminoso”, posteriormente, na carta que a irmã de João Hélio escreveu para o programa Fantástico, da TV Globo, da semana. “Menino” e “homem”, aqui, variam não
conforme a idade, mas sim conforme a necessidade de criminalização.
O que caracteriza a situação de amigo, de “menino de bem com a vida”, “uma
criança muito feliz” é o fato de que “o menino ganharia este ano um quarto só seu,
verde, sua cor preferida com a nova casa da família”, “cantava musica em inglês,
decorava gibis da Mônica e do Cebolinha para contar à família”, enquanto os “seres
abomináveis, (...) bárbaros, só com penalidade máxima”11. Até a linguagem radialista
entra na dança da ressignificação.
“Na casa de dois andares - a mais luxuosa do condomínio, os banhos (de piscina) eram democráticos: Joãozinho sempre convidava a turma de amigos e ninguém
dispensava” 12.Só os denominados “monstros”13 que não foram convidados para festinha, a eles, “esses seres abomináveis ainda terão direito a banho de sol e visitas
íntimas, isso se ficarem preso, não fugindo logo depois. Precisamos colocar esses
bandidos trabalhando das 6h às 17h (...)” 14. Fica claro o pleno direito de lazer do
consumidor e violação de direitos básicos ligados à dignidade humana e aos diretos
sociais.
4.2. ANÁLISES DO FANTÁSTICO
Cabe, preliminarmente, apontar algumas dificuldades encontradas em relação
ao acesso ao corpus escolhido para ser analisado neste trabalho. No dia 8 de fevereiro de 2007 (dia seguinte ao fato que encadeia a análise)
todas as edições dos telejornais da TV Globo relataram a morte de João Hélio. O
interesse pelo caso surgiu no momento da percepção de que os discursos proferidos
nos meios de comunicação relacionavam o crime ocorrido com as reivindicações de
11
Jornal O Globo de 09-02-07.
12 Cartas do Leitor. Ibidem.
13
Cartas do Leitor. Ibidem.
14
Cartas do leitor. Ibidem.
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redução da maioridade penal. Partindo dos estudos anteriormente indicados sobre a
o papel da mídia, levantamos a hipótese da configuração de uma possível programação criminalizante relacionada ao caso João Hélio.
Contudo, houve dificuldade de acessar as matérias jornalísticas amplamente
divulgadas no dia posterior ao crime. A rapidez na veiculação das informações torna-se, curiosamente na economia de mercado, um óbice para o seu acesso, criando a
valorização da informação instantânea15.
Aquilo que um ano antes de se iniciar a análise deste caso era alardeado em
todos os telejornais do dia - e disponibilizado em larga escala pela internet - não é
mais possível de ser acessado com tanta facilidade. Por este motivo, analisar-se-á,
neste artigo, somente a entrevista dada pelos pais de João Hélio à Fátima Bernardes
no programa Fantástico.
O programa Fantástico é iniciado com a fala de Zeca Camargo: “Boa noite.
Uma família viveu esta semana no Rio de Janeiro uma tragédia que abalou o país:
quarta-feira à noite o menino João Hélio de seis anos voltava pra casa com a mãe
Rosa Cristina e a irmã Aline”.
Analisando a materialidade linguística das palavras proferidas pelo apresentador, verifica-se que a mencionada “tragédia” não é descrita na sequência frasal. A
forma como ocorreu sequer é mencionada pelo jornalista, sendo a simples menção
ao nome João Hélio autoexplicativa. Esta leva o telespectador a reproduzir em seu
imaginário o intertexto imagético do arrastamento, incessantemente reprisado, anteriormente, naquela semana. Na verdade, a finalidade principal desta introdução à
indumentária do medo é passar a sensação de sofrimento nacional, assim, há uma
dupla função dialética consistente em união, de todo o país abalado versus exclusão,
sob a figura de um inimigo. Tal dialética é assimilada sob um misto de espetáculo
e informação “imparcial”, como uma profecia que se autorrealizará posteriormente,
inclusive na sentença criminal, adiante analisada
A fala seguinte é atribuída à Glória Maria, que elucidará o motivo da comoção
nacional, completando a frase propositadamente inacabada por Zeca Camargo: “O
carro onde eles estavam foi assaltado e na fuga os bandidos arrastaram o menino,
preso pelo cinto de segurança por sete quilômetros”.
É importante perceber que a frase não é iniciada fazendo alusão ao ato de
arrastamento da vítima, mas, sim com a alusão a res furtivae, o carro assaltado. O
arrastamento gesticulado pela apresentadora constitui mais um clichê emocional.
O que está em disputa em tais discursos são as alocações dos devidos lugares
de verdade na estante do real: o pecado é a violação do direito de propriedade. A
gradação dos fatos demonstra bem qual é o motivo de tanto alarde e medo: o ataque
à propriedade, insculpido no artigo 157, parágrafo 3º, do Código Penal, cuja pena
máxima é a maior do nosso ordenamento punitivo.
Podem-se sintetizar indícios de um único discurso proferido em dois tempos
por duas pessoas diferentes: o que se quer é transformar um conflito local, vivido por
uma família, num conflito patrimonial nacional; sentido por todos. Generalizar o direito
Cf. MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real”: O fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Editora
Revan, 2002, p78.
15
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de propriedade como sacro até para aqueles que nada possuem. A propriedade é,
discursivamente, transformada em preocupação nacional.
Finalizando a fala, Zeca Camargo completa: “Ainda muito abalados, Rosa Cristina e Elton, os pais de João Hélio, conversaram com Fátima Bernardes”.
A referência direta a um nome de peso do Jornal Nacional e aos nomes dos
pais de João Hélio gera uma intimidade, uma familiaridade que será afirmada também
no verbo utilizado – conversar, em vez de entrevistar, um bate papo informal na sala
– e na transposição de Fátima Bernardes do ambiente frio da bancada do jornal para,
não somente à casa dos entrevistados, mas para à casa de todos os brasileiros que
assistem ao programa: entretenimento, informação e remédio ao tédio que o domingo
representa à massa desfalcada de seu cotidiano laboral.
O sofá, o ambiente caseiro e familiar, a conversa entre mães que é marcada pela
imagem de um abajur cujas extremidades apontam cada uma para uma das mães,
dividindo bem no meio a fotografia da cena, além de quadros na parede são artifícios
para que os telespectadores se identifiquem com o que está sendo proposto pela Rede
Globo, preparando caminhos simbólicos para a concretização do “abalar o país”.
A cena se passa na sala da casa dos pais do menino. Fátima Bernardes, mãe,
conversa com outra mãe, vítima, que porta em suas mãos a imagem de uma terceira
mãe: Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo. No único momento em que o pai do menino fala na entrevista a foto de Nossa Senhora é passada para suas mãos, como estandarte do que a jornalista denomina de “cruzada contra a impunidade”. Mais tarde,
“o outro” será endemonizado, caracterizado como a expressão do mal. A utilização da
imagem da santa que separa “nós”, o bem do mal, será reiterada diversas vezes no
discurso analisado. Isso permite gerar uma identidade comum (unificadora- abalar o
país) e justificar o poder punitivo.
Rosa Cristina: “O motivo mais importante de estarmos aqui é principalmente
que os governantes tivessem alma, olhassem o João como filho, como filho, e não
como mais um... Ah, morreu... Amanhã outro João morre!”.
Em seu discurso na entrevista, a mãe de João Hélio deixa implícito que há
pessoas cujas mortes são banalizadas. Ela não quer que seu filho seja olhado exatamente como são olhados os não cidadãos, mortos diariamente em favelas do Rio
de Janeiro. O não dito de seu discurso: os menores consumidores frustrados, como
aquele que arrastou João Hélio, são os que mais morrem e mais têm sua morte
banalizada, pois, segundo a própria mãe consumidora, “eles não têm coração”. Esta
relação entre o dito e o não dito, explicitada na fala da mãe, demonstra uma dualidade
perversa, típica dos sistemas penais do capitalismo tardio16.
A morte de seu filho, entretanto, não será banalizada: Tinha espaço pro João
andar de bicicleta... Tava linda a casa! ”, “Tinha o quartinho dele, que a gente deixou
ele escolher todos os detalhes...”, “O quarto que ele entrava e falava: Esse quarto é
meu, esse banheiro é meu... é do Dexter!”. O menino é importante porque possuía,
consumia plenamente.
BATISTA, Nilo. Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio. Disponível em: <www.bocc.ubi.pt>. Acesso em: 15 set. 008
16
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A morte não banalizada se reflete também na necessária mudança da lei. A
mãe então utiliza a referencia ao seu filho para reivindicar uma mudança legislativa e
mais adiante, como se verá, em uma reivindicação sobre o fundamento de uma futura
sentença judicial.
Rosa Cristina continua: “Não pode... Tem que mudar, tem que acabar... tem
que rever a legislação! O Rio de Janeiro não pode ser encarado... é um caso específico... Estados mais violentos têm que ter uma legislação específica...”
O discurso é extremamente emocional e por isso desconexo, saltando-se literalmente de um tema para o outro e retomando tema anterior quando se considera
necessário.
Pergunta Fátima Bernardes: “Surge alguma revolta?
Mãe de João Hélio: Surge, surge uma revolta sim... Surge uma revolta porque
eu vejo que não são todas as pessoas que têm uma alma boa, que têm amor no
coração... eu vejo que não é assim, tem pessoas duras, tem pessoas que não têm
coração, que têm uma pedra no lugar do coração... Não adianta, não tem como arrancar amor de uma criatura daquelas...”. “... Aquela criatura não tinha sentimento
nenhum... Você vê que o que você acha que é impossível... Não, não tem coração...
Se ela ficar solta na rua ela vai fazer de novo... Vai e ainda vai rir...”.
Aqui, percebe-se a total instrumentalização, pelo Fantástico, da vítima, que se
transforma em especialista apta a propagar o consenso punitivo.
5. REVERBERAÇÕES DAS ALEGORIAS DE MEDO
5.1. AS AGÊNCIAS POLÍTICAS: EXECUTIVO E LEGISLATIVO
As reverberações do discurso único vindicativo do qual se utilizam os meios de
comunicação de massa podem ser percebidas em discursos de membros de outras
agências do sistema penal.
Ao discurso da mãe que reivindicava mudança na lei, segue-se a reposta das
agencias estatais. A “vítima-especialista”, instrumentalizada pelo sensacionalismo
midiático, clama pela federalização das normas penais, como bem visto à cima, e
o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, acatou de imediato, retirado do sítio
G1: “É isso que eu estou falando permanentemente, que os governadores têm que
discutir a autonomia legislativa dos seus estados”, “Eu, como pai, fico extremamente
sentido consternado e solidário com os pais do menino João. Eu tenho um filho de
nome João. Então, evidentemente que isso chocou a todos nós. Evidente que nós
temos um desafio pela frente, que é aumentar o policiamento”.
“O governador do Rio, Sérgio Cabral, disse nesta sexta-feira (9) que os estados
brasileiros deveriam ter autonomia para tratar de assuntos legais, como acontece nos
Estados Unidos.”
“É uma barbaridade a concentração de legislação em Brasília. É isso que eu
estou falando permanentemente, que os governadores têm que discutir a autonomia
legislativa dos seus estados. Não dá para os estados terem a mesma legislação so-
O consenso punitivo no caso João Hélio
193
bre transito, sobre penalidades que devem variar de acordo com a necessidade de
cada estado. Isso a curto prazo.”17
A mídia simbolicamente estabelece suas leis.
O jornal o Globo do dia 10/02/07 já parece apontar para as possíveis consequências legislativas posteriores ao caso com a manchete de primeira página: “Martírio
de criança reabre debate sobre leis mais duras”, entre a menção à manchete principal
do dia anterior: “Barbárie contra infância” e a submanchete: “Cabral defende rediscussão da idade penal; Lula, CNBB e STF são contra”.
Enquanto o clamor punitivo de uma mensagem do Globo online, na margem
superior da página, ao lado da foto de João Hélio: “Senhores senadores, senhores
deputados, deem instrumentos aos nossos juízes para que eles possam ser mais
severos. Precisamos de uma revisão constitucional” parece ser atendido pelos deputados Alfredo Kaefer, Fernando de Fabinho, Rodrigo de Castro, Rogério Lisboa18,
entre outros que fizeram propostas de Emenda à Constituição de 88, e também pelos
senadores membros da Comissão de Constituição e Justiça, que no dia 26/04/07
aprovaram a redução da maioridade penal.
Sobre a redução, também foram apresentados à Câmara três projetos de
decreto legislativo, cujos teores convocavam a realização de “plebiscito para consulta popular da redução ou não da maioridade”, na forma do artigo 14, inciso I da
Constituição da República. Tais projetos19 foram arquivados, sob argumentação de
inconstitucionalidade, contudo, desarquivados em 28/03/07 - menos de dois meses
após a morte do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, atendendo a requerimento
de diversos deputados, na forma do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados.20
As justificações apresentadas no bojo dos projetos visitam lugares conhecidos do senso comum criminológico. Aduzem que a redução seria medida eficaz na
“pacificação de conflitos”, que os menores têm sido frequentemente recrutados para
“práticas criminosas”, que o quadro atual é “injusto e demagógico”; apontam o volume
intenso de informações hoje à disposição da juventude, o paradoxo consistente na
“conferência de responsabilidade ao menor de dezoito anos para o voto e na sua
inimputabilidade” e que a iniciativa viria em favor dos próprios jovens, daqueles de
“boa índole, caráter probo e honesto”.21
5.2. A AGÊNCIA JUDICIAL
17
<www.g1.com.br>, Acesso em: 16-04-08
Os nomes dos deputados constam na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº453192, de 2007
(Fonte: site do Congresso Nacional)
18
PDL’s nº 1.028-03; 1.144-04; 1.579-05, de autoria, respectivamente, dos deputados Luiz Antônio Fleury,
Nelson Marquezelli e Arnaldo Faria de Sá.
19
BORGES, Rafael Caetano. As Propostas de Redução de Maioridade na Câmara e no Senado Federal.
A redução da maioridade penal vai resolver o problema da violência?, São Martinho, Rio de Janeiro: CEDECA, 2008, p.5-7.
20 PEC nº 321-2001. (Fonte: site do Congresso Nacional
BORGES, op. cit., p. 5-7.
21
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Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012
Na sentença proferida pela juíza no processo criminal, os agentes “resolveram
usar o veículo táxi, modelo Vectra, de propriedade do genitor do quarto denunciado, Tiago, para chegar até o início do locus delicti.”22quando realizaram a “conduta
abominável que resultaram as lesões corporais”. João Hélio, não merece a alcunha
“menor”, ele é “o pequeno João”, que, ao invés de “genitor”, possui mãe e irmã, segundo a juíza.
A subtração de bens alheios para a satisfação de futilidades, tais como lanches e saídas para boates e praia; as
circunstâncias do delito, que envolveram o arrastamento
cruel de uma criança por quase sete quilômetros pelas
vias públicas, na frente de sua mãe e irmã, causando-lhe
a morte; e as consequências do crime, que redundaram no
precoce perecimento da vida do menino João Hélio, com
o estraçalhamento de seu pequeno corpo; fatores que, em
muito, fogem ao padrão de normalidade, bem como os demais elementos dos autos, mormente a personalidade do
agente, voltada para a prática de delitos.
Ou seja, para a ilustre juíza, lanchar, ter direito a alimentar-se e ir à praia, ter
direito ao lazer, são motivos fúteis para praticar um crime contra o patrimônio de um
“pequeno João”, que já possuía tais direitos. Há uma impossibilidade de se admitir
serem legítimas as necessidades do refugo humano do atual ciclo de atualização do
capital. Eles são de “personalidade voltada para as práticas de delitos”, possuindo,
um nítido caráter ôntico de inimigo, abertamente vociferado pela magistrada,
Desclassificar as condutas de Carlos Roberto e Tiago para
roubo duplamente qualificado importaria em chancela, pelo
Poder Judiciário, da criminalidade desenfreada que assola
nosso país, bem como em consagração ao desrespeito pela
vida humana, tão pouca valorizada pela desestrutura social
atual, mas tão relevante para aqueles dotados de valores
morais e éticos mínimos.
Esta foi a resposta dada pela juíza no que toca o pedido pela própria acusação de desclassificação do crime quanto ao resultado morte de João Hélio, violando
abertamente o princípio acusatório em nome de um consenso punitivo partido da
mesma materialidade discursiva – “abalar o país”, proclamada por Zeca Camargo no
Fantástico que noticia o caso.
Diante dos argumentos da juíza, fica claro que a mídia teve participação fundamental na formação das meta-regras aplicadas no caso, evidenciada pela repetição
do interdiscurso do programa Fantástico:
quando o trio supramencionado já estava embarcado, deu-se repentinamente a partida mediante brusca aceleração.
Os fragmentos a seguir foram retirados da sentença, proferida em primeira instancia no processo
nº2007.202.001808-4, TJ RJ
22 O consenso punitivo no caso João Hélio
195
Começou aí o suplício de pequeno João Hélio, o que estarreceu e comoveu o país (...)
Antes de adentrar no exame do mérito da causa, insta
salientar que a hipótese dos autos cuida de fatos que abalaram a sociedade e a ordem jurídica nacional, ganhando
repercussão intensa na mídia, inclusive internacional, haja
vista ter tido como vítima fatal um menino de tenra idade.
O indeferimento da desclassificação de dolo eventual no resultado homicídio
do crime de latrocínio para homicídio culposo em concorrência com o crime de roubo, desclassificação esta pleiteada pelo próprio Ministério Público, é baseada “na
criminalidade que assola o país” e o fato de “ter ganhado repercussão intensa na
mídia”, entra, também, em cena, toda uma valoração do réu que possuía genitores e
arrastou uma criança que possuía pai e mãe, João Hélio era pequeno e o réu possuía
“personalidade voltada para o crime”.
5.3 .CARTA DOS LEITORES
A função da mídia no sistema penal é a de ditar onde se alocam as coisas
do real, e a juíza o fez muito bem, fica claro a distinção entre o menino e o “menor”.
Aquele, por ter onde brincar, piscina, merece proteção e sensibilização; ao passo,
este, que não tem piscina, não tem lazer, merece a punição, por se tratar de “menor”.
O que caracteriza a situação de amigo, de “menino de bem com a vida”, “uma criança
muito feliz” é o fato de que “o menino ganharia este ano um quarto só seu, verde, sua
cor preferida com a nova casa da família”, “cantava musica em inglês, decorava gibis
da Mônica e do Cebolinha para contar à família”, enquanto os “seres abomináveis, [...]
bárbaros, só com penalidade máxima”23 .
Em todas as páginas dedicadas ao caso no jornal O Globo do dia 09/02/07,
havia na margem superior, duas falas de leitores especialistas24, mensagens para O
Globo online, em itálico, com grande destaque, e, ao centro, entre cada fala, a foto
de João Hélio:“O que vão dizer os nossos senhores da justiça e da legislação [...]?o
que dizer mais uma vez? Que dizer de uma legislação que protege criminosos cruéis
menores de idade [...]”
Esse jogo de apropriação de outros interdiscursos desemboca e clama por
resultados práticos:
Estou chocada com este acontecimento diabólico que aconteceu ontem! Não
podemos mais ficar de baços cruzados diante de antas barbaridades, meus irmãos!
Temos que fazer algo [...]”;“Espero que a lei exista para ser modificada [...]. As nossas
leis são do tempo que os bandidos roubavam mariola.”; “Só há um saída para as
barbaridades que assoam o Rio. Pena de morte para bárbaros, só com penalidade
máxima. Foi pego num flagrante ou mesmo confessou um crime bárbaro como este,
pena de morte.
23 Jornal O Globo de 09-02-07.
Expressão de Bourdieu, no original fast thinkers, traduzida por Nilo Batista em Mídia e Sistema Penal
no Capitalismo tardio.
24
196
Revista da Defensoria Pública - Ano 5 - n.1 - 2012
Alessandro Baratta, ao mencionar as teorias psicanalíticas da criminalidade,
referindo-se a Freud, fala que no caso de transgressão de um tabu, a punição ocorre
de modo espontâneo. Todos os componentes do grupo se sentem ameaçados pela
violação do tabu e por isso se antecipam na punição do violador. Tal mecanismo seria
um modo primitivo de solidariedade, e, nas palavras do autor: “é explicado por Freud
pela tentação de imitar aquele que violou o tabu, liberando, assim, como aquele que
o fez, instintos de outro modo reprimidos. [...]. A reação punitiva pressupõe, portanto,
a presença, nos membros do grupo, de impulsos idênticos aos proibidos”25.
6. CONCLUSÕES
A toada “comoveu o país”, para além de servir de uma simples chamada para
a matéria veiculada no programa Fantástico, da TV Globo, comprova, claramente,
os efeitos do denominado “teorema de Thomas”, ou seja, “situações definidas como
reais têm efeitos reais”. Os meios de comunicação afirmaram a imagem do “abalo
nacional”. Tal imagem da realidade age efetivamente sobre a estrutura ideológica e
material da sociedade. Um sistema político ou um governo, não é necessário influir
sobre a realidade, é suficiente agir sobre sua imagem. Assim, se percebe violação
ao sistema acusatório e indeferimento da desclassificação pleiteada pelo Ministério
Público, desarquivamentos de projetos de emenda constitucional, pronunciamentos
do Governador do Rio, no sentido de rever o pacto federativo e cartas de leitores
indignados.
O dano causado a uma família é apresentado como o dano causado a uma
inteira nação. Quando o Fantástico amplia o abalo para um nível nacional, está, ao
menos, sendo um amplificador da ideologia das elites nacionais. Ideologicamente,
unifica o país, de extensões territoriais continentais, dividido em classes portadoras
de interesses antagônicos, por meio de um abalo ideológico traduzido na figura do crime. Evidente, portanto, se torna o papel, já não mais informativo, e sim configurador
da própria realidade da mídia. Há, desta forma, a imposição de um consenso punitivo
com a eleição de inimigo
Pode-se perceber as diversas “vozes” em uníssono a repetir o discurso midiático do medo, representado pela materialidade discursiva desses sujeitos especialistas, que nos remete à ilusão do sujeito referencial – como se partissem deles
a indignação –, mas que tem sua formação discursiva basicamente midiática, que
também se utiliza de lugares discursivos próprios do poder executivo, legislativo e
judiciário, gerando uma dialética intrínseca ao embate, à disputa no campo simbólico.
Assim, Vera Malaguti, ao falar da conquista da América, nos diz que “na verdade é
no nível do imaginário que se desenvolvem as principais batalhas pela hegemonia
política”26.
Há uma disputa simbólica entre os diversos campos discursivos, ao passo que
esses diversos lugares discursivos (judiciário, legislativo, executivo, materno, fraterno, punitivo, etc.), que se digladiam entre si, são apropriados pelo próprio discurso
midiático e ressignificados. A maneira como se dá esta ressignificação, permitirá
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito
penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p. 50-51.
25 26
Malaguti Batista, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro : dois tempos de uma história., p. 29.
O consenso punitivo no caso João Hélio
197
entender o embate que há entre democracia e estado de exceção, entre estado de
direito e estado de policia, entre o que é jovem merecedor de proteção – tal qual é
o intuito do ECA 27 - e o que é um “homem criminoso”, entre o amigo e o inimigo, o
“monstro” e o “anjo”.
A ideologia do patronato brasileiro, difundida pela mídia, pautada no medo
como significante e no crime como signo, fundamenta sentenças judiciais, permeia
cartas de leitores, discursos do Governador do Rio de Janeiro e de parlamentares
federais. Assim percebe-se que o medo é o ingrediente de coesão de um perigoso
consenso punitivo.
Fica claro que o menor que merece a tutela é o consumidor. enquanto o menor preso na favela tem negado o direito de ter suas infrações sancionadas dentro
dos limites do direito penal liberal, isto é, das garantias estabelecidas pelos direitos
humanos.
A grande pergunta que fica é qual classe, de fato, um crime patrimonial abala. A
partir desta resposta é fácil perceber de qual lugar os operadores midiáticos discursam
e a quais interesses de classe a abordagem do caso atende. A classe patronal sempre
teve o interesse de manter unido um território tão vasto como o Brasil, o fez, outrora,
com base em muita repressão física e agora o faz sob o signo midiático do crime.
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sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 3ª edição. Rio de
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O princípio protetivo é o norteador do ECA, de acordo com seu art 1º: “Esta lei dispõe sobre a proteção
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