Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de
Transcrição
Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de
Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de Estudios Poscoloniales y III Jornadas de Feminismo Poscolonial – “Genealogías críticas de la Colonialidad” a publicar este trabalho em qualquer formato a ser definido posteriormente. Mesa temática: 7. Biopolítica y necropolítca Título: Biopolítica e corpos infantis. Autoras: BOHM, Alessandra Maria. SILVA, Rosimeri Aquino da. Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS [email protected] [email protected] Biopolítica e corpos infantis Na infância, o melhor dos mundos possíveis. A partir de uma assertiva singularizada, costuma-se dizer que a infância é a melhor fase da vida. É um lugar paradisíaco, é a fase das brincadeiras, dos descobrimentos, das experimentações, das irresponsabilidades, do riso fácil, dos amigos, das festas de aniversário. O mundo da infância, numa apropriação da obra Candide, ou l'Optimisme, de Voltaire, é o melhor dos mundos possíveis. Além das alegrias, há a proteção e o amor incondicional dos pais. Ampliando a compreensão deste período, podemos pensar em infâncias de forma pluralizada: são outras infâncias caracterizadas por diversas precariedades, por abandonos, por solidões, por violências e exclusões de diversas ordens. Sobre esse último aspecto, a escritora e teórica cultural Gloria Evangelina Anzaldúa narra verdadeiras torturas sofridas por ela, praticadas por dentistas, professores e outras figuras de autoridade. Eles eram os adultos brancos, americanos que não mediam esforços para domar sua “língua selvagem” de chicana e ensinar que, para uma menina, era impróprio falar demais. Anzaldúa era lembrada constantemente, na forma de um ditado popular, de que “En boca cerrada no entran moscas.” As garotas bem comportadas não devem responder aos adultos, não devem ser faladeiras, fofoqueiras e mentirosas. “Muchachitas bien criadas não respondem” (ANZALDÚA, 2009, p.306). Essa infância, assim como outras, se contrapõe à visão anterior: essencialista, cheia de otimismos, ufanista e reduzida aos simples aspectos festivos dessa fase da vida. Crianças criam línguas secretas, códigos. Essas seriam formas de comunicação próprias de seus diferentes grupos de afinidade, mas também podem ser estratégias para escapar dos dispositivos polivalentes de vigilância, dos panópticos que estão por toda parte, que as vigiam, as disciplinam, as normalizam. Na infância, de acordo com a linguagem pedagógica, aprende-se a aprender, a significar o ser e o estar no mundo social. No que se refere às dimensões de gênero, compreendendo-as como um dos mecanismos pelos quais se estruturam as dimensões de poder desiguais constituídas ao longo da história, aprende-se a ser menino ou menina. E sobre essa aprendizagem especialmente sobre os aprendizes, a vigilância é constante. Dessa forma, o menino descobre como se comportar (e também agradar aos adultos). As crianças aprendem com quem elas devem ou não falar. Os pais recomendam aos filhos: não falem com estranhos! A narrativa de uma aluna, em um curso de formação de professor@s em Educação Infantil e Anos Iniciais1, exemplifica a vigilância acima referida: um avô levara seu neto ao supermercado e, ao ver outro garoto que apresentava trejeitos afeminados cumprimentá-lo, explicitou ao neto que ele não deveria falar com uma “bicha”. Para esse avô, nesse processo de disciplinamento do neto, era preciso ensiná-lo a manter distância de meninos estranhos como esse colega, afinal, nas palavras da aluna,“[...] ele parecia uma menina. Onde já se viu?!” Em outro momento de sala de aula, uma professora explicitou seus sentimentos confusos em relação a esses meninos que têm um comportamento estranho. Ela falou de seu embaraço frente ao aluno de Educação Infantil que havia aparecido com as unhas pintadas na escola. A professora afirmou que “aquilo era errado”, mas sentia-se incapaz para tomar alguma atitude, pois a própria mãe é quem havia pintado as unhas do filho. Na avaliação dessa professora, a inadequação do comportamento do garoto causava desconforto a todos. Algumas famílias também estão atentas para a afirmação compulsória da heteronormatividade de suas crianças. Uma professora relata uma situação ocorrida quando um pai foi à escola, acusando a todos de ensinarem coisas incorretas para seu filho, argumentando que a “modernidade” que ali ocorria não era correspondente aos valores de sua família, e que o menino não frequentaria mais aquela escola. O homem pegou a professora pelos cabelos e disse que caso seu filho não mudasse e “virasse 1 Utilizamos como fonte empírica registros orais e escritos, colhidos de nossa experiência como professoras em cursos de Formação de Professores. homem”, ela deveria pegar a criança e levar para sua casa, referindo-se ao próprio filho como um “puto”. Apavorada, após essa agressão, a professora falou para esse pai que não notara nada de diferente no seu filho, mas o pai insistia que o menino estava aprendendo alguma coisa ali que não deveria. A professora argumentou que não entendia o motivo do pai estar tão bravo, questionado sobre os motivos, o pai respondeu que seu filho havia nascido homem e morreria homem. Na medida em que o comportamento queer é compreendido como algo que desafia as normas regulatórias da sociedade e tendo em vista que os comportamentos dessas crianças são tidos como estranhos, raros, esquisitos, excêntricos, pode-se pensar que essas são infâncias queer. As sexualidades desviantes - homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags, também podem ser consideradas como queer, e elas são temidas. Ou melhor, há o temor de que as crianças se identifiquem com elas. E mesmo que as crianças só brinquem de representações de gênero, essas brincadeiras ou experimentações causam mal-estar nos adultos da comunidade escolar. Queer é como um corpo estranho, ele incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2004). As narrativas acima também ilustram o argumento de que a hegemonia heterossexual, nos termos de Beatriz Preciado, defende seus privilégios e oprime minorias sexuais e de gênero com verdadeiros facões de guerra e forçam as crianças a carregá-los. As crianças diferentes, as crianças queer encontram-se indefesas frentes aos discursos de ódio, de morte, de opressão, de violência de gênero e de sexualidade proferidos por essa hegemonia (PRECIADO, 2013). Sobre o corpo infantil, assim como sobre os demais corpos, atuam discursos regulatórios oriundos de diferentes campos do conhecimento, que vão desde as áreas biomédicas até as áreas humanísticas. Pedagogias culturais tais como o Cinema, a Literatura, a Internet, as mídias consolidadas, o rádio, a televisão, os jornais também são de grande contribuição para a significação dos corpos. Também sobre esses corpos atuam interesses de mercado, que através de rígidas delimitações de gênero oferecem seus produtos. Para o consumo dos meninos, são muitos os artefatos lúdicos disponíveis nas lojas: tanques de guerra, soldados, super-heróis, carrinhos que imitam os últimos modelos do automobilismo, helicópteros, armas de brinquedo, estilingues, bolas de futebol, luvas de boxe. São brinquedos pensados para seus pequenos corpos já tidos como másculos, ativos, dinâmicos e mais agressivos. Desta maneira não é incomum nos depararmos com frases para a promoção desses brinquedos, tais como “Lute e seja considerado o melhor!”; “Entre na pele de um super-guerreiro e enfrente seus inimigos!”; “Você tem uma arma super poderosa nas mãos e precisa acertar nos alvos com precisão!”. Já para as meninas, descortina-se um mundo cor-de-rosa e cheio de referências ao cuidado da casa e dos bebês: carrinhos de bonecas e bebês, casinhas, cozinhas equipadas com fogões, geladeiras, jogos de mesa, lava-roupas, tábuas para passar. Sobre seus pequenos corpos também se desenham imposições desse mercado. As meninas devem preocupar-se com a sua aparência, por isso lhes são oferecidos produtos femininos como batons, blushes, acessórios para cabelo, bijuterias, esmaltes para unhas, penteadeiras. A vigilância sexual sobre elas também é esmerada. Uma professora, ao perceber o decote de uma aluna em sala de aula, exclamou que não “havia ido lá para ver tetas, mas para ensinar”. A menina em questão tinha 13 anos. Por falar em seios, uma professora lembrou-se de seu tempo de menina. Ela gostava de brincar na chuva, jogar futebol, brincar de carrinho, esportes de contato e correr com outras crianças da sua idade. Na época, ela foi alertada pela sua mãe que não poderia mais continuar com essas brincadeiras de que tanto gostava, elas eram inadequadas para uma garota e seus seios estavam começando a aparecer. Enquanto a menina não “tinha seios”, o brincar era livre. Laurie, do filme Tomboy2, assim como essa professora da vida real, aprecia as brincadeiras e a estética reguladas como próprias para os meninos, inclusive ela joga futebol e tira a camisa, já que seus seios ainda não aparecem. No time, assim como no grupo constituído pelas crianças da vizinhança, ela/ele é identificada/o como um menino e é chamado de Mickael (BOHM, 2014). Em cursos de formação de professor@s em Educação Infantil e Anos Iniciais geralmente emergem falas, em um tom de preocupação, em torno do comportamento de meninas que são tidas como mais ousadas. De acordo com esses professores, as roupas sensuais usadas por elas podem provocar atitudes e comentários agressivos por parte dos meninos. São meninas muito interessadas em sexo e que falam sobre isso abertamente na sala de aula. Na avaliação desses professores, elas correm o risco de engravidar precocemente, adquirir doenças sexualmente transmissíveis - DSTs e causarem muitos problemas para a e escola e para seus pais. Meninas que demonstram publicamente a sua não identificação com as marcas do feminino, instituídas pela 2 Tomboy, (França, 2011), dirigido por Celine Scianma. cultura, também são objeto de preocupação. Elas jogam futebol, usam roupas e acessórios masculinos, têm cabelos curtos e eventualmente namoram outras meninas. É possível perceber nos relatos acima a ação das disciplinas nos corpos infantis, através de instituições como a escola, a família e através de Pedagogias Culturais presentes no mercado de consumo destinado às crianças. Essas disciplinas atuam fortemente na normalização, no adestramento e na docilização desses corpos em consonância com as regulações de gênero e de sexualidade, estruturadas a partir dos rígidos padrões da heteronormatividade. Entretanto, mesmo submetidas a essas regulações, algumas crianças escapam. Essas crianças queer criam outros mundos nos quais elas podem experimentar outras identidades que não aquelas que lhe são tradicionalmente atribuídas a partir de seu sexo biológico. Algumas meninas (não necessariamente queer, mas tidas como problemáticas) também podem ousar, experimentar liberdades e uso de seus corpos (roupas, acessórios, brincadeiras) sem as coerções sociais que certamente pesarão nas suas vidas na medida em que elas crescerem. É certo que as rotas de fuga traçadas por essas infâncias desviantes da norma não se dão de forma não conflitiva, afinal, as instituições que as controlam justificam suas ações de punição e exclusões através de discursos pautados na defesa, no cuidado e na proteção das crianças e da família. Um filme considerado um clássico da temática LGBTT no cinema, Minha Vida em Cor-de-Rosa3, aborda essa dimensão de forma pertinente. Nessa trama, o pequeno Ludovic se identifica com o mundo rosa da feminilidade e sofre violências homofóbicas (simbólicas e físicas) por conta dessa identificação. Ele se sente infeliz, solitário, com muitos medos e responsável por todas as coisas ruins que acontecem na sua família. Assim como nessa trama, a infância de muitas crianças queer é constituída sob as marcas da precariedade. As travestis, de acordo com algumas fontes4, são as que mais sofrem violência homofóbica na sociedade brasileira. Elas vivem uma trajetória de múltiplas violências 3 Minha vida em cor-de-rosa (Ma vie en rose, Bélgica/França/Inglaterra, 1997), dirigido por Alain Berline 4 <http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/debate/viol%C3%AAncia/homofobia>. Acesso em 25/10/2014. <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-09/pais-registrou-218assassinatos-de-homossexuais-este-ano>. Acesso em 25/10/2014. que começam na família e na escola e depois se disseminam em outros espaços sociais. Elas relatam sobre violências sofridas na escola desde os primeiros anos nessa instituição: humilhações, espancamentos, abusos e invisibilidade por parte dos educadores que fingiam não enxergar as violências e, quando enxergavam, tendiam a culpá-las. As travestis, no tempo de escola, eram aqueles meninos cujos gestos eram considerados por demais delicados e cuja voz lembrava a das meninas e que eram alvos de zombaria constante, inclusive de alguns professores. Ir para a escola, para essas crianças, significava não poder ir ao banheiro, ter medo o tempo todo, sentir vergonha e ódio, servir de “saco de pancadas”, ser chamado em coro de viado-mariquinha-boióla, ser abusada de todas as formas, mentir para a família que vai para a aula e ficar perambulando pelas ruas com os materiais de estudo (mochilas, canetas, cadernos, livros), parar os estudos, não ser defendido por ninguém, conhecer o verdadeiro inferno (BOHM, 2009). Sobre essas considerações, questionamos: é possível estabelecer relações entre a heteronormatização da infância e as múltiplas violências sofridas na adultez de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis? Para elaborar possíveis respostas a essas questões, argumentaremos a seguir sobre violências sofridas pela comunidade LGBTT na sociedade brasileira contemporânea. Biopolítica ou necropolítica da infância queer? As violências físicas e simbólicas heteronormativas que pesam sobre os corpos infantis queer deixam suas marcas nas suas vidas presentes, enquanto crianças, e, em alguns casos, nas suas vidas futuras como adultos queer. A hipótese que desenvolvemos neste trabalho é a de que os discursos que eliminam a possibilidade de outras experimentações do corpo, da sexualidade, das identidades de gênero, que não aquelas instituídas pela heteronormatividade, contribuem para as mortes de alguns desviantes em diferentes aspectos: a morte social, a morte civil, a morte moral e, no extremo, a morte física. A assertiva é a de que algumas infâncias precárias resultam também em vidas adultas precárias. BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012>. Acesso em 25/10/2014. Nos termos foucaultianos, se a Biopolítica (desenvolvida no final do século XIX e início do século XX) pode ser compreendida como uma nova capacidade de controle das populações a partir de um incentivo à vida e num aniquilamento de suas partes consideradas perigosas, é possível pensar nas formas pelas quais diferentes instituições, contemporaneamente, ensinam e definem quais vidas são possíveis ou não de serem vividas. Quais são as vidas que importam e quantas outras vidas não se encaixam na legitimidade culturalmente construída de não poderem existir. As práticas disciplinares, na perspectiva foucaultiana, visavam governar o indivíduo; a biopolítica visa o conjunto dos indivíduos, visa o controle da população. Sobre esse aspecto, pensando na população brasileira, há alguns anos era possível verificar a expressiva morte de crianças por desnutrição5. Atualmente, com a grande diminuição desta problemática é possível pensar em outras mortes da infância, entre elas, a morte social de uma contemporânea infância queer na medida em que, entre outros dispositivos, se proliferam discursos fundamentalistas cerceando essas infâncias. São discursos que inclusive manifestam a necessidade de disciplinamento com violência destes pequenos corpos que teimam em escapar da heteronormatividade. A biopolítica, que interpela e define corpos e comportamentos infantis, está presente e dissipada em diferentes esferas: nas orientações familiares, médicas, jurídicas e religiosas. Uma notícia6 veiculada no ano de 2014 ilustra esse contexto: um menino de quatro anos foi morto por espancamento. A mãe do menino, autora do assassinato, argumentou que agiu daquela forma porque temia que o seu filho se tornasse homossexual quando crescesse. A mãe ainda narrou que houve uma série de espancamentos prévios à morte, na tentativa de corrigir o comportamento afeminado do garoto. Assim como nesse caso, são verificadas violações cotidianas de crianças7 e, em alguns casos, a ocorrência de crimes letais quando há a suspeita de homossexualidade. A infância se constitui como uma fase da vida marcada pela necessidade de cuidados, afetividade e experimentações lúdicas. Contudo, nos contextos violentos, ela se transforma em um terreno fértil para o exercício de violações de diversas formas a 5 Informação disponível em: < http://www.blog.saude.gov.br/index.php/34594-ministerio-liberar-12-milhoes-para-combater-desnutricao-infantil>. Acesso em: 29/10/2014. 6 Notícia disponível em: <http://jornaldehoje.com.br/mae-espanca-filho-de-4-anos-ate-mortepor-achar-que-ele-era-homossexual/>. Acesso em: 29/10/2014. 7 <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes. pdf>. Acesso em: 29/10/2014. partir de argumentos travestidos na correção de seus desvios do imperativo heterossexual. (BUTLER, 1999). É possível pensar em uma necropolítica aplicada aos corpos infantis, na medida em que muitos deles são penalizados em virtude de seus comportamentos destoantes do que se espera socialmente para cada gênero. Trata-se apenas de corpos infantis, de pequenos corpos que desde cedo conhecem o peso de uma sociedade normativa que considera como inadequadas e monstruosas as manifestações de comportamentos não condizentes ao “sexo” de nascença. A infância queer, por vezes constituída por outros marcadores como raça e classe social, compreenderia o conjunto destas vidas de menor importância. Afinal, quais as infâncias que importam em uma sociedade cujos marcadores sociais brancos, cristãos, heterossexuais são considerados de maior valor? O relatório sobre a Violência Homofóbica no Brasil de 20128 registra um aumento do número de violações de Direitos Humanos de LGBTT, configurando um quadro de violências multifacetadas: abuso financeiro e econômico, discriminação, negligência, trabalho escravo, tráfico de pessoas, violência física, violência institucional, violência psicológica, violência sexual. Violências físicas são tipificadas como maus tratos, cárcere privado, tentativa de homicídio, latrocínio, lesão corporal, chacina, homicídio. Embora se reconheça que há subnotificação de registros, segundo dados do relatório, as travestis foram as mais vitimadas por essas violações (51,68%) do total, seguidas por gays (36,79%), lésbicas (9,78%), bissexuais (1,17 %). A invisibilização das transexuais também é revelada na subnotificação, pois não foram encontrados registros relacionados a essa parcela da população. Em relação à faixa etária das vítimas em 2012, confirmando outras pesquisas sobre vitimização9, os jovens entre 14 e 29 anos somam a grande maioria: 54,99% do total. É preciso assinalar que as violências direcionadas à população LGBTT não atingem a todos da mesma forma. Aspectos como idade, religião, raça/cor, deficiência e situação socioeconômica exacerbam a vulnerabilidade de algumas pessoas que compõem essa população. Em outras palavras, 8 BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012>. Acesso em 25/10/2014. 9 <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes. pdf>. Acesso em: 29/10/2014. quanto mais precárias são suas vidas, maiores são as possibilidades dessas pessoas sofrerem violências, ódios, exclusões e discriminações. Recentemente foi exibido nas mídias o caso de um homossexual que foi brutalmente assassinado, com requintes de crueldade, no estado brasileiro de Goiás. O jovem de 18 anos, além de ter sofrido espancamento, fraturas e asfixia, tinha em sua boca um bilhete que dizia: "Vamos acabar com essa raça maldita". O fato pode ser considerado como um crime de ódio homofóbico, traduzido pelo enunciado proposto de extermínio de identidades que divergem da heteronormatividade, numa espécie de espetacularização da morte, como ocorria nas sociedades de soberania. É como se essa punição servisse de exemplo para todos os que destoam da norma heterossexual. Não se trata de um caso isolado, já que diariamente são noticiados, nas diversas mídias10, recorrentes assassinatos no Brasil de membros das populações LGBTT, em sua maioria crimes marcados pelo uso de violências extremas. Além do uso de armas de fogo, é usual a utilização das denominadas armas brancas (facas, foices, machados), além dos casos de espancamento, degolamento, tortura e carbonização. Tais ocorrências destacam-se pela crueldade e ódio destinados a essas pessoas. Segundo uma entidade de apoio aos homossexuais brasileiros, Grupo Gay da Bahia, foram registradas 312 mortes, no ano de 2013, resultantes de homicídios e suicídios da população LGBTT. Esse dado aponta para uma média de uma morte a cada 28 horas. Já em 2014, de janeiro a setembro foram registradas 218 mortes de LGBTT no Brasil por meio de pauladas, apedrejamentos, asfixia, tiros, facadas, espancamentos. Considerações Não há como determinar se crianças que destoam dos padrões heteronormativos e experienciam atividades lúdicas próprias da infância transitarão pelas fluidas fronteiras dos gêneros na idade adulta. Entretanto, é possível afirmar que sobre elas pesarão os guardiões dessas fronteiras, vigilantes que agem muitas vezes de forma 10 <http://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/>. Acesso em 25/10/2014. <http://igay.ig.com.br/2014-09-10/corpo-de-jovem-e-encontrado-com-bilhete-na-boca-vamosacabar-com-essa-praga.html>. Acesso em 25/10/2014. <http://www.brasilpost.com.br/2014/02/13/assassinatos-gay-brasil_n_4784025.html>. em 25/10/2014. acesso violenta para delimitar o que é permitido e dicotomizado para cada gênero. Também não há como afirmar de forma categórica que uma infância queer precária implicará em uma vida adulta precária. Afinal, muitas crianças escapam da heteronormatividade compulsória, resistem às suas violências e se permitem outras experimentações de seus corpos para além dos discursos hegemônicos de gênero e de sexualidade. No entanto, parece pertinente, frente à fenomenologia da violência contemporânea, considerar a vulnerabilidade de muitos integrantes da comunidade LGBTT. As travestis constituem a parcela mais vulnerável da população LGBTT, no que se refere ao enfrentamento às violações diárias de seus direitos básicos: saúde, educação, acesso ao trabalho. Ser e estar travesti numa sociedade como a brasileira significa estar em uma batalha constante pela vida. Cabe a afirmação de Mbembe (MBEMBE, 2011) de que se desenha contemporaneamente uma nova forma de dominação, uma nova governamentalidade, fundamentada na sujeição da vida à morte. Na atual necropolítica brasileira, direcionada a comunidade LGBTT, esta afirmação parece pertinente. Referências. ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987. ______. “Bridge, Drawbridge, Sandbar or Island: Lesbians-of-Color Haciendo Alianzas.” In: ALBRECTH, Lisa; and BREWER, Rose M. (eds.). Bridges of Power: Women’s MulticulturalAlliances. Philadelphia: New Society Publishers, 1990. p. 21633. _____. Como domar uma língua selvagem: Gloria Anzaldúa. Cap. 5, Trad. Joana Plaza Pinto; Karla Santos; Viviane Veras. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: difusão da língua portuguesa, Niterói, 2º semestre, 2009, n. 39, p. 305-318. _____. "La Conciencia de la Mestiza: Towards a New Consciousness", In: Feminist Thought Reader: Local and Global Perspectives. Comps. Carole R. McCann y SeungKyung Kim. New York: Routledge, 2003, p. 179-187. BOHM, Alessandra Maria. Brincando nas fronteiras dos gêneros: Apontamentos sobre infância queer. II Simpósio Luso-brasileiro em Estudos da Criança. Pesquisa com Crianças: Desafios Éticos e Metodológicos. Porto Alegre, ago 2014. Disponível em: <http://www.estudosdacrianca.com.br/resources/anais/1/1407698082_ARQUIVO_Brin candonasfronteirasdegenero-AlessandraBohm_1_.pdf>. Acesso em 23/10/2014. __________. Os „monstros‟ e a escola: identidade e escolaridade de sujeitos travestis. 2009. Dissertação de Mestrado - FACED/UFRGS, Porto Alegre. BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano- 2012>. Acesso em 25/10/2014. BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira (Org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 151-172. ________. Vida precaria: El poder Del duelo y la violência. Buenos Aires: Paidós, 2006. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ________. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de janeiro: Edições Graal, 1988. ________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36ª ed. Petrópolis: Vozes, 2009. VOLTAIRE. Candide: ou, L'optimisme; édition critique avec une introd. et un commentaire par André Morize. [S.l.: s.n.], 1931. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: LOURO, Guacira (Org.). O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 7-34. ________. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. MACHADO, Roberto. Introdução: por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. p. VII-XXII. MBEMBE, Achile. Necropolitica seguido de Sobre El Governo Privado Indirecto. Santa Cruz de Tenerife. Melusina. 2011. PRECIADO, Beatriz. ¿Quién defiende al ninx queer? Paris, 2013. Disponível em: <http://www.macba.cat/PDFs/pei/BPreciado_La%20infancia.pdf>. Acesso em 24/10/2014.