Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de

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Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de
Autorizamos o Comitê Acadêmico do II Congreso de Estudios Poscoloniales y III
Jornadas de Feminismo Poscolonial – “Genealogías críticas de la Colonialidad” a
publicar este trabalho em qualquer formato a ser definido posteriormente.
Mesa temática: 7. Biopolítica y necropolítca
Título: Biopolítica e corpos infantis.
Autoras: BOHM, Alessandra Maria. SILVA, Rosimeri Aquino da.
Instituição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS
[email protected] [email protected]
Biopolítica e corpos infantis
Na infância, o melhor dos mundos possíveis.
A partir de uma assertiva singularizada, costuma-se dizer que a infância é a
melhor fase da vida. É um lugar paradisíaco, é a fase das brincadeiras, dos
descobrimentos, das experimentações, das irresponsabilidades, do riso fácil, dos
amigos, das festas de aniversário. O mundo da infância, numa apropriação da obra
Candide, ou l'Optimisme, de Voltaire, é o melhor dos mundos possíveis. Além das
alegrias, há a proteção e o amor incondicional dos pais.
Ampliando a compreensão deste período, podemos pensar em infâncias de forma
pluralizada: são outras infâncias caracterizadas por diversas precariedades, por
abandonos, por solidões, por violências e exclusões de diversas ordens. Sobre esse
último aspecto, a escritora e teórica cultural Gloria Evangelina Anzaldúa narra
verdadeiras torturas sofridas por ela, praticadas por dentistas, professores e outras
figuras de autoridade. Eles eram os adultos brancos, americanos que não mediam
esforços para domar sua “língua selvagem” de chicana e ensinar que, para uma menina,
era impróprio falar demais. Anzaldúa era lembrada constantemente, na forma de um
ditado popular, de que “En boca cerrada no entran moscas.” As garotas bem
comportadas não devem responder aos adultos, não devem ser faladeiras, fofoqueiras e
mentirosas. “Muchachitas bien criadas não respondem” (ANZALDÚA, 2009, p.306).
Essa infância, assim como outras, se contrapõe à visão anterior: essencialista, cheia de
otimismos, ufanista e reduzida aos simples aspectos festivos dessa fase da vida.
Crianças criam línguas secretas, códigos. Essas seriam formas de comunicação
próprias de seus diferentes grupos de afinidade, mas também podem ser estratégias para
escapar dos dispositivos polivalentes de vigilância, dos panópticos que estão por toda
parte, que as vigiam, as disciplinam, as normalizam. Na infância, de acordo com a
linguagem pedagógica, aprende-se a aprender, a significar o ser e o estar no mundo
social. No que se refere às dimensões de gênero, compreendendo-as como um dos
mecanismos pelos quais se estruturam as dimensões de poder desiguais constituídas ao
longo da história, aprende-se a ser menino ou menina. E sobre essa aprendizagem
especialmente sobre os aprendizes, a vigilância é constante. Dessa forma, o menino
descobre como se comportar (e também agradar aos adultos). As crianças aprendem
com quem elas devem ou não falar. Os pais recomendam aos filhos: não falem com
estranhos!
A narrativa de uma aluna, em um curso de formação de professor@s em
Educação Infantil e Anos Iniciais1, exemplifica a vigilância acima referida: um avô
levara seu neto ao supermercado e, ao ver outro garoto que apresentava trejeitos
afeminados cumprimentá-lo, explicitou ao neto que ele não deveria falar com uma
“bicha”. Para esse avô, nesse processo de disciplinamento do neto, era preciso ensiná-lo
a manter distância de meninos estranhos como esse colega, afinal, nas palavras da
aluna,“[...] ele parecia uma menina. Onde já se viu?!”
Em outro momento de sala de aula, uma professora explicitou seus sentimentos
confusos em relação a esses meninos que têm um comportamento estranho. Ela falou de
seu embaraço frente ao aluno de Educação Infantil que havia aparecido com as unhas
pintadas na escola. A professora afirmou que “aquilo era errado”, mas sentia-se incapaz
para tomar alguma atitude, pois a própria mãe é quem havia pintado as unhas do filho.
Na avaliação dessa professora, a inadequação do comportamento do garoto causava
desconforto a todos.
Algumas famílias também estão atentas para a afirmação compulsória da
heteronormatividade de suas crianças. Uma professora relata uma situação ocorrida
quando um pai foi à escola, acusando a todos de ensinarem coisas incorretas para seu
filho, argumentando que a “modernidade” que ali ocorria não era correspondente aos
valores de sua família, e que o menino não frequentaria mais aquela escola. O homem
pegou a professora pelos cabelos e disse que caso seu filho não mudasse e “virasse
1
Utilizamos como fonte empírica registros orais e escritos, colhidos de nossa experiência como
professoras em cursos de Formação de Professores.
homem”, ela deveria pegar a criança e levar para sua casa, referindo-se ao próprio filho
como um “puto”. Apavorada, após essa agressão, a professora falou para esse pai que
não notara nada de diferente no seu filho, mas o pai insistia que o menino estava
aprendendo alguma coisa ali que não deveria. A professora argumentou que não
entendia o motivo do pai estar tão bravo, questionado sobre os motivos, o pai respondeu
que seu filho havia nascido homem e morreria homem.
Na medida em que o comportamento queer é compreendido como algo que
desafia as normas regulatórias da sociedade e tendo em vista que os comportamentos
dessas crianças são tidos como estranhos, raros, esquisitos, excêntricos, pode-se pensar
que essas são infâncias queer. As sexualidades desviantes - homossexuais, bissexuais,
transexuais, travestis, drags, também podem ser consideradas como queer, e elas são
temidas. Ou melhor, há o temor de que as crianças se identifiquem com elas. E mesmo
que as crianças só brinquem de representações de gênero, essas brincadeiras ou
experimentações causam mal-estar nos adultos da comunidade escolar. Queer é como
um corpo estranho, ele incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2004).
As narrativas acima também ilustram o argumento de que a hegemonia
heterossexual, nos termos de Beatriz Preciado, defende seus privilégios e oprime
minorias sexuais e de gênero com verdadeiros facões de guerra e forçam as crianças a
carregá-los. As crianças diferentes, as crianças queer encontram-se indefesas frentes aos
discursos de ódio, de morte, de opressão, de violência de gênero e de sexualidade
proferidos por essa hegemonia (PRECIADO, 2013).
Sobre o corpo infantil, assim como sobre os demais corpos, atuam discursos
regulatórios oriundos de diferentes campos do conhecimento, que vão desde as áreas
biomédicas até as áreas humanísticas. Pedagogias culturais tais como o Cinema, a
Literatura, a Internet, as mídias consolidadas, o rádio, a televisão, os jornais também são
de grande contribuição para a significação dos corpos. Também sobre esses corpos
atuam interesses de mercado, que através de rígidas delimitações de gênero oferecem
seus produtos. Para o consumo dos meninos, são muitos os artefatos lúdicos disponíveis
nas lojas: tanques de guerra, soldados, super-heróis, carrinhos que imitam os últimos
modelos do automobilismo, helicópteros, armas de brinquedo, estilingues, bolas de
futebol, luvas de boxe. São brinquedos pensados para seus pequenos corpos já tidos
como másculos, ativos, dinâmicos e mais agressivos. Desta maneira não é incomum
nos depararmos com frases para a promoção desses brinquedos, tais como “Lute e seja
considerado o melhor!”; “Entre na pele de um super-guerreiro e enfrente seus
inimigos!”; “Você tem uma arma super poderosa nas mãos e precisa acertar nos alvos
com precisão!”.
Já para as meninas, descortina-se um mundo cor-de-rosa e cheio de referências
ao cuidado da casa e dos bebês: carrinhos de bonecas e bebês, casinhas, cozinhas
equipadas com fogões, geladeiras, jogos de mesa, lava-roupas, tábuas para passar.
Sobre seus pequenos corpos também se desenham imposições desse mercado. As
meninas devem preocupar-se com a sua aparência, por isso lhes são oferecidos produtos
femininos como batons, blushes, acessórios para cabelo, bijuterias, esmaltes para unhas,
penteadeiras. A vigilância sexual sobre elas também é esmerada. Uma professora, ao
perceber o decote de uma aluna em sala de aula, exclamou que não “havia ido lá para
ver tetas, mas para ensinar”. A menina em questão tinha 13 anos.
Por falar em seios, uma professora lembrou-se de seu tempo de menina. Ela
gostava de brincar na chuva, jogar futebol, brincar de carrinho, esportes de contato e
correr com outras crianças da sua idade. Na época, ela foi alertada pela sua mãe que não
poderia mais continuar com essas brincadeiras de que tanto gostava, elas eram
inadequadas para uma garota e seus seios estavam começando a aparecer. Enquanto a
menina não “tinha seios”, o brincar era livre. Laurie, do filme Tomboy2, assim como
essa professora da vida real, aprecia as brincadeiras e a estética reguladas como próprias
para os meninos, inclusive ela joga futebol e tira a camisa, já que seus seios ainda não
aparecem. No time, assim como no grupo constituído pelas crianças da vizinhança,
ela/ele é identificada/o como um menino e é chamado de Mickael (BOHM, 2014).
Em cursos de formação de professor@s em Educação Infantil e Anos Iniciais
geralmente emergem falas, em um tom de preocupação, em torno do comportamento de
meninas que são tidas como mais ousadas. De acordo com esses professores, as roupas
sensuais usadas por elas podem provocar atitudes e comentários agressivos por parte
dos meninos. São meninas muito interessadas em sexo e que falam sobre isso
abertamente na sala de aula. Na avaliação desses professores, elas correm o risco de
engravidar precocemente, adquirir doenças sexualmente transmissíveis - DSTs e
causarem muitos problemas para a e escola e para seus pais. Meninas que demonstram
publicamente a sua não identificação com as marcas do feminino, instituídas pela
2
Tomboy, (França, 2011), dirigido por Celine Scianma.
cultura, também são objeto de preocupação. Elas jogam futebol, usam roupas e
acessórios masculinos, têm cabelos curtos e eventualmente namoram outras meninas.
É possível perceber nos relatos acima a ação das disciplinas nos corpos infantis,
através de instituições como a escola, a família e através de Pedagogias Culturais
presentes no mercado de consumo destinado às crianças. Essas disciplinas atuam
fortemente na normalização, no adestramento e na docilização desses corpos em
consonância com as regulações de gênero e de sexualidade, estruturadas a partir dos
rígidos padrões da heteronormatividade. Entretanto, mesmo submetidas a essas
regulações, algumas crianças escapam. Essas crianças queer criam outros mundos nos
quais elas podem experimentar outras identidades que não aquelas que lhe são
tradicionalmente atribuídas a partir de seu sexo biológico.
Algumas meninas (não necessariamente queer, mas tidas como problemáticas)
também podem ousar, experimentar liberdades e uso de seus corpos (roupas, acessórios,
brincadeiras) sem as coerções sociais que certamente pesarão nas suas vidas na medida
em que elas crescerem.
É certo que as rotas de fuga traçadas por essas infâncias desviantes da norma não
se dão de forma não conflitiva, afinal, as instituições que as controlam justificam suas
ações de punição e exclusões através de discursos pautados na defesa, no cuidado e na
proteção das crianças e da família. Um filme considerado um clássico da temática
LGBTT no cinema, Minha Vida em Cor-de-Rosa3, aborda essa dimensão de forma
pertinente. Nessa trama, o pequeno Ludovic se identifica com o mundo rosa da
feminilidade e sofre violências homofóbicas (simbólicas e físicas) por conta dessa
identificação. Ele se sente infeliz, solitário, com muitos medos e responsável por todas
as coisas ruins que acontecem na sua família. Assim como nessa trama, a infância de
muitas crianças queer é constituída sob as marcas da precariedade.
As travestis, de acordo com algumas fontes4, são as que mais sofrem violência
homofóbica na sociedade brasileira. Elas vivem uma trajetória de múltiplas violências
3
Minha vida em cor-de-rosa (Ma vie en rose, Bélgica/França/Inglaterra, 1997), dirigido
por Alain Berline
4
<http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/debate/viol%C3%AAncia/homofobia>.
Acesso em 25/10/2014.
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2014-09/pais-registrou-218assassinatos-de-homossexuais-este-ano>. Acesso em 25/10/2014.
que começam na família e na escola e depois se disseminam em outros espaços sociais.
Elas relatam sobre violências sofridas na escola desde os primeiros anos nessa
instituição: humilhações, espancamentos, abusos e invisibilidade por parte dos
educadores que fingiam não enxergar as violências e, quando enxergavam, tendiam a
culpá-las. As travestis, no tempo de escola, eram aqueles meninos cujos gestos eram
considerados por demais delicados e cuja voz lembrava a das meninas e que eram alvos
de zombaria constante, inclusive de alguns professores. Ir para a escola, para essas
crianças, significava não poder ir ao banheiro, ter medo o tempo todo, sentir vergonha e
ódio, servir de “saco de pancadas”, ser chamado em coro de viado-mariquinha-boióla,
ser abusada de todas as formas, mentir para a família que vai para a aula e ficar
perambulando pelas ruas com os materiais de estudo (mochilas, canetas, cadernos,
livros), parar os estudos, não ser defendido por ninguém, conhecer o verdadeiro inferno
(BOHM, 2009).
Sobre essas considerações, questionamos: é possível estabelecer relações entre a
heteronormatização da infância e as múltiplas violências sofridas na adultez de lésbicas,
gays, bissexuais, transexuais e travestis? Para elaborar possíveis respostas a essas
questões, argumentaremos a seguir sobre violências sofridas pela comunidade LGBTT
na sociedade brasileira contemporânea.
Biopolítica ou necropolítica da infância queer?
As violências físicas e simbólicas heteronormativas que pesam sobre os corpos
infantis queer deixam suas marcas nas suas vidas presentes, enquanto crianças, e, em
alguns casos, nas suas vidas futuras como adultos queer.
A hipótese que desenvolvemos neste trabalho é a de que os discursos que
eliminam a possibilidade de outras experimentações do corpo, da sexualidade, das
identidades de gênero, que não aquelas instituídas pela heteronormatividade,
contribuem para as mortes de alguns desviantes em diferentes aspectos: a morte social, a
morte civil, a morte moral e, no extremo, a morte física. A assertiva é a de que algumas
infâncias precárias resultam também em vidas adultas precárias.
BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012>. Acesso
em 25/10/2014.
Nos termos foucaultianos, se a Biopolítica (desenvolvida no final do século XIX
e início do século XX) pode ser compreendida como uma nova capacidade de controle
das populações a partir de um incentivo à vida e num aniquilamento de suas partes
consideradas perigosas, é possível pensar nas formas pelas quais diferentes instituições,
contemporaneamente, ensinam e definem quais vidas são possíveis ou não de serem
vividas. Quais são as vidas que importam e quantas outras vidas não se encaixam na
legitimidade culturalmente construída de não poderem existir.
As práticas disciplinares, na perspectiva foucaultiana, visavam governar o
indivíduo; a biopolítica visa o conjunto dos indivíduos, visa o controle da população.
Sobre esse aspecto, pensando na população brasileira, há alguns anos era possível
verificar a expressiva morte de crianças por desnutrição5. Atualmente, com a grande
diminuição desta problemática é possível pensar em outras mortes da infância, entre
elas, a morte social de uma contemporânea infância queer na medida em que, entre
outros dispositivos, se proliferam discursos fundamentalistas cerceando essas infâncias.
São discursos que inclusive manifestam a necessidade de disciplinamento com violência
destes pequenos corpos que teimam em escapar da heteronormatividade. A biopolítica,
que interpela e define corpos e comportamentos infantis, está presente e dissipada em
diferentes esferas: nas orientações familiares, médicas, jurídicas e religiosas.
Uma
notícia6 veiculada no ano de 2014 ilustra esse contexto: um menino de quatro anos foi
morto por espancamento. A mãe do menino, autora do assassinato, argumentou que agiu
daquela forma porque temia que o seu filho se tornasse homossexual quando crescesse.
A mãe ainda narrou que houve uma série de espancamentos prévios à morte, na
tentativa de corrigir o comportamento afeminado do garoto. Assim como nesse caso,
são verificadas violações cotidianas de crianças7 e, em alguns casos, a ocorrência de
crimes letais quando há a suspeita de homossexualidade.
A infância se constitui como uma fase da vida marcada pela necessidade de
cuidados, afetividade e experimentações lúdicas. Contudo, nos contextos violentos, ela
se transforma em um terreno fértil para o exercício de violações de diversas formas a
5
Informação disponível em: < http://www.blog.saude.gov.br/index.php/34594-ministerio-liberar-12-milhoes-para-combater-desnutricao-infantil>. Acesso em: 29/10/2014.
6
Notícia disponível em: <http://jornaldehoje.com.br/mae-espanca-filho-de-4-anos-ate-mortepor-achar-que-ele-era-homossexual/>. Acesso em: 29/10/2014.
7
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.
pdf>. Acesso em: 29/10/2014.
partir de argumentos travestidos na correção de seus desvios do imperativo
heterossexual. (BUTLER, 1999).
É possível pensar em uma necropolítica aplicada aos corpos infantis, na medida
em que muitos deles são penalizados em virtude de seus comportamentos destoantes do
que se espera socialmente para cada gênero. Trata-se apenas de corpos infantis, de
pequenos corpos que desde cedo conhecem o peso de uma sociedade normativa que
considera como inadequadas e monstruosas as manifestações de comportamentos não
condizentes ao “sexo” de nascença. A infância queer, por vezes constituída por outros
marcadores como raça e classe social, compreenderia o conjunto destas vidas de menor
importância. Afinal, quais as infâncias que importam em uma sociedade cujos
marcadores sociais brancos, cristãos, heterossexuais são considerados de maior valor?
O relatório sobre a Violência Homofóbica no Brasil de 20128 registra um
aumento do número de violações de Direitos Humanos de LGBTT, configurando um
quadro de violências multifacetadas: abuso financeiro e econômico, discriminação,
negligência, trabalho escravo, tráfico de pessoas, violência física, violência
institucional, violência psicológica, violência sexual. Violências físicas são tipificadas
como maus tratos, cárcere privado, tentativa de homicídio, latrocínio, lesão corporal,
chacina, homicídio.
Embora se reconheça que há subnotificação de registros, segundo dados do
relatório, as travestis foram as mais vitimadas por essas violações (51,68%) do total,
seguidas por gays (36,79%), lésbicas (9,78%), bissexuais (1,17 %). A invisibilização
das transexuais também é revelada na subnotificação, pois não foram encontrados
registros relacionados a essa parcela da população. Em relação à faixa etária das vítimas
em 2012, confirmando outras pesquisas sobre vitimização9, os jovens entre 14 e 29 anos
somam a grande maioria: 54,99% do total. É preciso assinalar que as violências
direcionadas à população LGBTT não atingem a todos da mesma forma. Aspectos como
idade, religião, raça/cor, deficiência e situação socioeconômica exacerbam a
vulnerabilidade de algumas pessoas que compõem essa população. Em outras palavras,
8
BRASIL. Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil: ano de 2012. Disponível em:
<http://www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-homofobica-ano-2012>. Acesso
em 25/10/2014.
9
<http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_Criancas_e_Adolescentes.
pdf>. Acesso em: 29/10/2014.
quanto mais precárias são suas vidas, maiores são as possibilidades dessas pessoas
sofrerem violências, ódios, exclusões e discriminações.
Recentemente foi exibido nas mídias o caso de um homossexual que foi
brutalmente assassinado, com requintes de crueldade, no estado brasileiro de Goiás. O
jovem de 18 anos, além de ter sofrido espancamento, fraturas e asfixia, tinha em sua
boca um bilhete que dizia: "Vamos acabar com essa raça maldita". O fato pode ser
considerado como um crime de ódio homofóbico, traduzido pelo enunciado proposto de
extermínio de identidades que divergem da heteronormatividade, numa espécie de
espetacularização da morte, como ocorria nas sociedades de soberania. É como se essa
punição servisse de exemplo para todos os que destoam da norma heterossexual. Não se
trata de um caso isolado, já que diariamente são noticiados, nas diversas mídias10,
recorrentes assassinatos no Brasil de membros das populações LGBTT, em sua maioria
crimes marcados pelo uso de violências extremas. Além do uso de armas de fogo, é
usual a utilização das denominadas armas brancas (facas, foices, machados), além dos
casos de espancamento, degolamento, tortura e carbonização. Tais ocorrências
destacam-se pela crueldade e ódio destinados a essas pessoas. Segundo uma entidade de
apoio aos homossexuais brasileiros, Grupo Gay da Bahia, foram registradas 312 mortes,
no ano de 2013, resultantes de homicídios e suicídios da população LGBTT. Esse dado
aponta para uma média de uma morte a cada 28 horas. Já em 2014, de janeiro a
setembro foram registradas 218 mortes de LGBTT no Brasil por meio de pauladas,
apedrejamentos, asfixia, tiros, facadas, espancamentos.
Considerações
Não há como determinar se crianças que destoam dos padrões heteronormativos
e experienciam atividades lúdicas próprias da infância transitarão pelas fluidas
fronteiras dos gêneros na idade adulta. Entretanto, é possível afirmar que sobre elas
pesarão os guardiões dessas fronteiras, vigilantes que agem muitas vezes de forma
10
<http://homofobiamata.wordpress.com/estatisticas/relatorios/>. Acesso em 25/10/2014.
<http://igay.ig.com.br/2014-09-10/corpo-de-jovem-e-encontrado-com-bilhete-na-boca-vamosacabar-com-essa-praga.html>. Acesso em 25/10/2014.
<http://www.brasilpost.com.br/2014/02/13/assassinatos-gay-brasil_n_4784025.html>.
em 25/10/2014.
acesso
violenta para delimitar o que é permitido e dicotomizado para cada gênero. Também
não há como afirmar de forma categórica que uma infância queer precária implicará em
uma vida adulta precária. Afinal, muitas crianças escapam da heteronormatividade
compulsória, resistem às suas violências e se permitem outras experimentações de seus
corpos para além dos discursos hegemônicos de gênero e de sexualidade. No entanto,
parece pertinente, frente à fenomenologia da violência contemporânea, considerar a
vulnerabilidade de muitos integrantes da comunidade LGBTT.
As travestis constituem a parcela mais vulnerável da população LGBTT, no que
se refere ao enfrentamento às violações diárias de seus direitos básicos: saúde,
educação, acesso ao trabalho. Ser e estar travesti numa sociedade como a brasileira
significa estar em uma batalha constante pela vida.
Cabe a afirmação de Mbembe
(MBEMBE, 2011) de que se desenha contemporaneamente uma nova forma de
dominação, uma nova governamentalidade, fundamentada na sujeição da vida à morte.
Na atual necropolítica brasileira, direcionada a comunidade LGBTT, esta afirmação
parece pertinente.
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