das páginas à tela: um breve estudo sobre norman bates

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das páginas à tela: um breve estudo sobre norman bates
 DAS PÁGINAS À TELA: UM BREVE ESTUDO SOBRE
NORMAN BATES Paloma Rodrigues da Silva* Orientadora: Drª Sandra Maggio (UFRGS) RESUMO Em 1960, o cineasta Alfred Hitchcock lançou nos cinemas seu mais novo filme, Psicose (HITCHCOCK,
1960), envolto em uma aura de mistério. O diretor criou uma pesada campanha publicitária para promover a
sua obra. Uma de suas ações foi retirar do mercado todas as cópias do livro (BLOCH, 1959) que deu origem
ao filme para ocultar o final da história. Com o passar do tempo, o livro foi redescoberto pelos fãs do filme.
O objetivo deste artigo é apontar as principais diferenças entre adaptação e obra original, analisando o papel
da personagem Norman Bates em ambas as versões. Para isso, serão utilizados como base os fundamentos da
teoria queer, teorias de adaptação e, é claro, as duas obras. Esta análise visa identificar brevemente as
principais características da personagem, a fim de encontrar as motivações para seu comportamento
psicopata, ou seja, porque Norman Bates mata e porque ele se esconde atrás do rosto da própria mãe? PALAVRAS-CHAVE: Psicose, teoria queer, adaptações. ABSTRACT In 1960, the filmmaker Alfred Hitchcock released his new movie, Psycho (HITCHCOCK, 1960), wrapped in
an aura of mystery. The director created a heavy advertising campaign to promote his work. One of his
actions was to withdraw from the market every copy from the book (BLOCH, 1959) in which the movie was
based on to hide the end of the story. In the course of time, the book was rediscovered by the movie fans. The
purposer of this article is to point it out the main differences between the adaptation and the original work,
analyzing the role of Norman Bates on both versions. For that, it will be use the fundaments of the queer
theory, the adaptation theory and, of course, the two works. This analysis aims to identify, briefly, the main
characteristics from that character, in order to find the motivations of his psychotic behavior, in other words,
why Norman Bates kills and why does he hide behind his mother’s face? KEYWORDS: Psycho, queer theory, adaptation. *
Jornalista do Centro Universitário Metodista IPA. Artigo escrito para a Jornada de Estudos Literários da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no módulo Teoria Literária e Literatura Comparada.
[email protected] O melhor amigo de um garoto é a sua mãe. – Norman Bates, Psicose (HITCHCOCK, 1960) 1 INTRODUÇÃO Alfred Hitchcock foi um popular cineasta inglês, conhecido por seus filmes de
horror e de investigação. Sua obra mais famosa foi Psicose, de 1960, um filme de
baixíssimo orçamento e considerado como um dos melhores filmes de todos os tempos
(BURR, 1999, p. 31). O filme é baseado em um livro de Robert Bloch (1959), mas muda
por completo a narrativa do autor, desde detalhes a respeito das personagens até a ordem
das ações das mesmas. O livro de Bloch conta a história de um homem, Norman Bates, que vive
sozinho com sua mãe idosa em um hotel de beira de estrada. Ele sofre abusos e possui
óbvios problemas mentais. Um dia, uma jovem ladra, Mary Crane, chega até o motel em
busca de abrigo e isso acaba por mudar o rumo da história de ambos. O filme de Hitchcock fala sobre Marion Crane [ou melhor, finge falar sobre
ela], uma jovem apaixonada que decide roubar o dinheiro de um cliente de seu patrão para
poder casar com o noivo. Ela foge e acaba chegando até o Motel Bates, onde encontra um
jovem tímido e simpático, Norman Bates, que lhe oferece abrigo. Depois de uma conversa
com o rapaz, Marion muda de ideia a respeito do dinheiro e decide voltar para casa. Mas já
é tarde de mais. Para Alfred Hitchcock, o mais interessante na obra de Bloch era, justamente, a
cena que viria a se tornar a mais icônica [e parodiada] da história do cinema: a famosa cena
do chuveiro. “Acho que a única coisa que me agradou e me fez decidir fazer o filme foi o
caráter repentino do assassinato no chuveiro; é completamente inesperado”, afirmou o
Hitchcock (TRUFFAUT, 1983, p. 270). Esta cena foi considerada pela revista
Entertainment Weekly (edição de 24 de setembro de 1999) como uma das cenas mais
marcantes do cinema. Mesmo quem nunca viu o filme, já viu pelo menos uma vez as
seguintes imagens: uma pessoa toma banho de chuveiro tranquilamente, uma sombra se
aproxima da cortina, pessoa misteriosa ataca a que está no banho. Filmes como A Fantástica Fábrica de Chocolates (BURTON, 2005), Alta
Ansiedade (BROOKS, 1977) e Pague Para Entrar, Reze Para Sair (HOOPER, 1981)
imitam esta cena, assim como o tema composto por Bernard Herrmann é tocado em
diversos filmes, sejam eles de horror ou comédia, para criar um clima de tensão. Neste artigo, irei analisar as diferenças entre a obra original e sua adaptação,
com foco nos primeiros capítulos do livro e na participação das personagens de Norman
Bates e Marion Crane. 2 OS QUATRO PRIMEIROS CAPÍTULOS... Primeiro capítulo: O relacionamento entre Norman e sua mãe é introduzido,
assim como o motivo para que o motel não tenha mais movimento. O estabelecimento
costumava ficar na estrada principal, mas quando esta foi transferida de local, a estrada em
frente ao motel ficou deserta. A mãe culpa Norman por não querer mudar de imóvel, pois
ele não se sente confortável com mudanças. Aqui, o relacionamento dos dois é
estabelecido e já temos várias pistas a respeito do final. É interessante notar que Norman
nunca olha a mãe nos olhos. Segundo capítulo: Conhecemos Mary Crane. Ela está fugindo de sua cidade,
pois roubou uma grande quantia de dinheiro de seu patrão. Mary está indo encontrar o
namorado, Sam Loomis, que vive em outra cidade e com quem pretende se casar. No
caminho, ela começa a relembrar tudo que a levou até aquele momento. Sua infância e
adolescência difíceis, seu relacionamento com a irmã, como conheceu Sam e seus
problemas econômicos. Mary parece odiar seu chefe e seus clientes ricos, e por isso
decidiu roubar o dinheiro. Perdida em seus pensamentos, Mary acaba entrando na estrada
errada e chega ao motel Bates. Terceiro capítulo: Mary conhece Norman. Ela o acha patético e por isso não se
sente assustada por estar perdida. Ele lhe oferece um quarto no hotel, onde ela assina como
Jane Wilson. A garota está com fome e Norman lhe convida para jantar na casa, que fica
nos fundos do motel. Ela aceita e os dois se encontram lá. A janta está servida na cozinha e
a conversa entre os dois gira completamente em torno de Norman. Para Mary, a figura de Norman se torna cada vez mais patética e digna de
comiseração. Ele lhe diz que não pode fumar ou beber porque sua mãe desaprova, mesmo
motivo pelo qual não tem uma namorada. Mary pergunta “Você não tem permissão para
fumar. Você não tem permissão para beber. Você não tem permissão para sair com garotas.
O que exatamente você faz, além de gerenciar o motel e cuidar da sua mãe?” (BLOCH,
1959, tradução nossa), ao que Norman responde que lê muito e pratica taxidermia, que
consiste na técnica de preservar animais mortos e “exibi-los tal como quando vivos”
(DICIONÁRIO online de português). Norman não se sente confortável sendo interrogado por Mary, mas a garota
continua, cada vez com mais sarcasmo e deboche. Quando ele explica que seu
relacionamento com a mãe não é fácil, Mary questiona se não seria melhor mandar a
mulher para um asilo e Norman começa a gritar: “Ela não é louca!” A voz não era mais suave e apologética; era alta e estridente
[...] “Ela não é louca”, ele repetiu. “Não importa o que você pensa, ou o que todo
mundo pensa. Não importa o que os livros falem, ou o que aqueles médicos do
hospício tenham a dizer [...] Eles a declarariam louca e a trancariam sem nem
pensar duas vezes. Tudo que eu preciso fazer é mandar. Mas eu não vou fazer
isso, porque eu sei. Você não entende? Eu sei, e eles não sabem. Eles não sabem
como ela cuidou de mim por todos esses anos, [...] os sacrifícios que ela fez. [...]
Quando ela veio me contar que ia se casar novamente, fui eu quem impediu ela.
[...] Você não precisa me falar sobre ciúmes, possessividade. Eu fui muito pior
do que ela jamais conseguiria ser. Dez vezes mais louco, se essa é a palavra que
você quer usar. Eles me prenderiam em um instante se eles soubessem das coisas
que disse e fiz, o jeito como agi [...] E quem você acha que é para dizer se uma
pessoa deve ou não ser internada?” (BLOCH, 1959, tradução nossa) Mary pede desculpa e se retira para o quarto. Lá, começa a pensar em Norman
e no roubo que acabou de cometer. Dá-se conta de que o que fez foi loucura, que jamais
iria conseguir esconder o roubo de Sam e que logo seria presa. A conversa com Norman a
fez perceber que todo mundo pode agir loucamente um dia, mas que a situação dela não
era tão ruim quanto à daquele homem. Mary decide voltar para casa no dia seguinte e
depositar o dinheiro, sem que ninguém saiba de seu ato de loucura. Se sentindo bem
consigo mesma, Mary toma banho, sem perceber que há mais alguém no banheiro com ela.
Quando Mary finalmente nota a figura feminina que a observa já é tarde de mais. “Era o
rosto de uma velha mulher enlouquecida. Mary começou a gritar e então as cortinas se
abriram e uma mão apareceu, segurando um facão. Era a faca que, momentos depois,
cortou seus gritos. E sua cabeça” (BLOCH, 1959, tradução nossa). Capítulo quatro: Norman fica nervoso após a briga com Mary e decide se
refugiar no escritório do motel, onde mantém uma garrafa de bebida escondida. Enquanto
bebe, começa a pensar em Mary, não conseguindo mais impedir pensamentos sexuais em
relação a ela. Norman a deseja, mas acredita que jamais seria capaz de realizar essa
fantasia. Na parede do escritório, o homem tem um pequeno furo que lhe permite ver tudo
que acontece no quarto ao lado. Ele observa Mary tirar a roupa para tomar banho e é
tomado por um desejo incontrolável, que o faz desmaiar. Quando acorda, encontra Mary
morta. 3 ... E OS CINQUENTA PRIMEIROS MINUTOS Marion Crane e seu namorado Sam Loomis se encontram em um quarto de
hotel. Através do diálogo descobrimos que os dois planejam se casar, mas Sam possui
muitas dívidas e precisa pagar pensão para a ex-mulher. Para que o sonho dos dois seja
realizado, eles precisam de dinheiro. Marion diz que não quer mais se encontrar as
escondidas com ele e que quer oficializar o namoro. Os dois combinam de jantar com a
irmã de Marion na próxima vez que Sam estiver na cidade e ele aceita ter um
relacionamento mais “correto”. Marion trabalha em uma imobiliária. Sua colega lhe diz que a irmã ligou para
avisar que estará viajando todo o final de semana e seu chefe chega neste momento com
um cliente rico que está comprando uma casa para sua filha. O homem exibe a pilha de
dinheiro para Marion, tentando seduzi-la, mas ela não lhe dá muito espaço. O chefe pede
que Marion deposite o dinheiro no banco. Ela pede para sair mais cedo, pois está com dor
de cabeça, e leva o dinheiro. No apartamento de Marion, vemos que ela não depositou o dinheiro. Ela está
se arrumando apressadamente e sua mala está pronta em cima da cama. Marion parece
hesitar, mas pega o dinheiro e a mala mesmo assim, indo embora do apartamento. No
carro, Marion é vista por seu chefe, que estranha sua presença ali [já que ela havia lhe dito
que não estava se sentindo bem e que iria para casa]. Cansada e apavorada, Marion para na
beira da estrada para dormir no carro. Ela é, então, acordada por um policial que bate em
sua janela. O policial acredita que há algo errado com Marion e fica preocupado, por isso
decide segui-la. Mas Marion acha que ele sabe sobre o roubo e começa a ficar paranoica.
Ela decide trocar de carro, para despistar. Na loja de carros usados, Marion percebe que o
policial a está observando e tenta apressar o vendedor, o que só a deixa ainda mais nervosa. Na estrada, Marion começa a imaginar os diversos cenários que ela encontrará
no futuro: a reação de Sam quando ela chegar a sua casa, o policial e o vendedor de carros
conversando sobre ela, a reação de seu chefe quando ela não for trabalhar e quando notar
que o dinheiro nunca foi depositado, etc. Essas ideias lhe dão medo, mas ao mesmo tempo
Marion parece sentir prazer com o que fez. Por estar mergulhada em seus pensamentos e
por causa da forte chuva que está caindo, Marion se perde e acaba chegando ao motel
Bates. Norman a recepciona e, com bom humor, lhe explica que desde que a estrada
principal mudou de rota, ninguém mais se hospeda lá. Ele a convida para jantar na casa,
mas logo em seguida Marion escuta a mãe de Norman gritando e humilhando o filho. Durante a janta [no escritório do motel], os dois conversam sobre suas vidas e
Norman explica seu relacionamento perturbado com a mãe. A conversa é pacifica e
educada, até que Marion pergunta a Norman porque ele não interna a mãe, se ela está tão
doente. A pergunta desconcerta o rapaz, que tenta manter a calma. Uma calma forçada que
acaba assustando Marion. Mesmo assim, a conversa termina pacificamente e Marion volta
para o quarto se sentindo melhor consigo mesma. Ela decide devolver o que restou do
dinheiro e lidar com as consequências de seu ato. Tudo que ela precisa agora é um banho
para lavar a alma. Norman observa Marion tirar a roupa por uma rachadura na parede do
escritório. Mergulhada em seus pensamentos, Marion não nota a figura feminina que
invade o banheiro, com uma faca na mão. Quando esta pessoa abre a cortina, Marion grita,
porém já é tarde de mais. Marion é esfaqueada até a morte. 4 AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE A OBRA DE BLOCH E A DE
HITCHCOCK A construção deste filme é muito interessante e é minha experiência mais
apaixonante de jogo com o público. Com Psicose, fiz a direção dos espectadores,
exatamente como se tocasse um órgão. (TRUFFAUT, 1983, p. 275) Quando Alfred Hitchcock leu Psicose de Robert Bloch não encontrou um bom
livro. Os diálogos são enfadonhos, os personagens previsíveis e grosseiros, e as situações
mal construídas. O que o diretor viu naquele livro foi uma grande história que precisava de
um grande diretor. Para transformar essa história, o cineasta utilizou diversas artimanhas e uma
delas foi a escolha do elenco. Mary Crane e Norman Bates não são carismáticos. Você não
torce por eles e não quer que eles se deem bem. Quando o assassino mata a mocinha, você
não se importa. Um bom filme necessita de “um personagem principal que desperta a
simpatia do público, alguém de quem o espectador possa gostar e com o qual consiga se
identificar” (SEGER, 2006, p. 22) e por isso Hitchcock transformou Mary, a ladra, em
Marion, a mocinha que toma decisões erradas, e Norman de desprezível a simpático e
tímido. A seguir, algumas das principais características das duas personagens: Personagens - Livro Norman Bates Gordo e baixo Cerca de 40 anos Vive com a mãe, que o domina Mary Crane Morena
27 anos
Acredita que casar com o namorado é a única
solução de seus problemas
Não gosta do chefe e sente nojo de seus clientes ricos
Pensa apenas em si mesma
Acha que é superior a Norman Reprimido sexualmente
Agressivo e instável Não consegue olhar mulheres nos olhos Acredita que tudo que sua mãe faz é direito e não a culpa por isso Não gosta de mudanças
Levemente baseado no serial killer Ed Gein
Tabela 1 - Personagens principais Fonte: Psicose (BLOCH, 1959) Personagens - Filme Norman Bates (Anthony Perkins)
Alto, magro e bonito Cerca de 25 anos Tímido e simpático Prestativo Calmo, controlado Marion Crane (Janet Leigh) Loira
Cerca de 30 anos
Apaixonada pelo namorado, quer casar com ele para
poder viver de forma “decente” Se sente culpada pelo que fez, mas ao mesmo tempo
sente prazer por transgredir as regras Tabela 2 Personagens principais Fonte: Psicose (HITCHCOCK, 1960) Ao criar a versão cinematográfica de Norman Bates, Alfred Hitchcock decidiu
que queria um personagem carismático e com quem a plateia pudesse simpatizar e até
mesmo se identificar. Norman não odeia a mãe, apenas odeia aquilo que ela se tornou [ou,
considerando o final da história, aquilo que ele mesmo criou]. Quando conhecemos
Norman no livro, logo no primeiro capítulo, já sabemos que ele é perturbado e que nada de
bom pode vir dele. Mas o Norman do filme não nos passa a mesma sensação. O mesmo
pode se dizer de Marion. Enquanto sua versão literária age de maneira premeditada e
mesquinha, a versão cinematográfica age por impulso e acaba se arrependendo. Mary quer
casar com Sam Loomis porque acredita ser esta sua única opção, mas Sam parece fugir de
suas investidas. Já Marion ama o namorado e o sentimento é recíproco. Apresentando Marion e seus problemas antes de apresentar Norman, Hitchcock
transforma o motel Bates em um lugar seguro, que levará nossa heroína ao seu perdão. O
diretor criou em torno de seu filme uma gigantesca campanha publicitária para que o
público realmente se surpreendesse com a virada que a história dá depois dos cinquenta
minutos iniciais. Aproveitando o tradicional método star system da Hollywood Clássica,
Hitchcock encabeçou seu elenco com duas figuras de peso do cinema norte-americano:
Anthony Perkins e Janet Leigh. Este método nada mais era do que a glamorização de
artistas hollywoodianos, que se tornavam verdadeiros astros intocáveis, recebendo novos
nomes, histórias e até mesmo novas aparências (MCDONALD, 2005). Foi desta forma que
Jeanette Helen Morrison se tornou Janet Leigh e que o homossexual Anthony Perkins se
casou e teve dois filhos. A campanha publicitária do filme girou em torno de dois aspectos: o final, que
não deveria ser revelado, e a imagem de Leigh. A atriz, bastante popular na época, tinha
uma base sólida de fãs que iam ao cinema apenas para vê-la. Se aproveitando desta fama,
Hitchcock fez de Marion Crane sua falsa protagonista e escondeu a sete chaves a sua morte
e a verdadeira história do filme. O autor chegou até mesmo a comprar todas as cópias
existentes do livro de Robert Bloch para que ninguém soubesse o final da trama. Foi
apenas depois do sucesso de Psicose que o livro voltou às livrarias. Analisando friamente, Norman Bates é uma criatura desprezível. Ao longo do
filme, o jovem rapaz simpático se transforma em um maníaco psicopata, capaz de matar a
própria mãe. A cena do chuveiro pode ser vista apenas como um assassinato típico dos
filmes americanos, mas também pode ser analisada por outros ângulos. Tanto no livro
quanto no filme [apesar de ser mais óbvio na versão literária], Norman sente desejo por
Marion/Mary. Mas ele se sente culpado por isso, por tanto, assume a identidade de sua mãe
para se “livrar” deste sentimento. É apenas no final da história que descobrimos que a figura da mãe não existe e
que Norman possui dupla personalidade. Ele se esconde por trás da imagem da mãe para
poder realizar seus desejos obscuros sem se sentir culpado. Assim, Norman é o mocinho e
o monstro. A teoria queer, que explora o papel da sexualidade diferenciada na mídia, ou
seja, “qualquer pessoa que não se define explicitamente em termos heterossexuais
'tradicionais'” (BENSHOFF; GRIFFIN, 2005, p. 63, tradução nossa), possui uma vertente
que analisa a fundo filmes de horror sob o aspecto queer. Para o crítico Robin Wood
(2006), a temática de horror poderia se dividir em três partes: “a normatividade (definido
principalmente por um capitalismo patriarcal heterossexual), o Outro (personificada na
figura do monstro) e o relacionamento entre os dois” (BENSHOFF; GRIFFIN, 2005, p. 63,
tradução nossa). Esta seria a estrutura básica de um filme de horror do início do cinema
americano, onde o mocinho [homem heterossexual, branco e americano] confronta um
monstro [a imagem daquilo que quer destruir a normalidade], para no fim conquistar aquilo
que deseja [na maioria dos casos, a mocinha ou a liberdade]. Podemos citar como exemplo
desta estrutura, filmes como Frankenstein (WHALE, 1931), Tarantula (ARNOLD,
1955) ou King Kong (COOPER; SCHOEDSACK, 1933). Norman Bates é a personificação desta estrutura. Norman quer ter uma vida
normal e pacífica, mas sua “mãe” (seja ela a verdadeira mãe, quando viva, ou ele vestido
como ela) não permite que isso aconteça. No livro A Arte da Adaptação (2007), Linda Seger diz que “[...] a adaptação
implica mudança. Implica um processo que exige que tudo seja repensado, reconceituado”.
Fazendo exatamente isso, Alfred Hitchcock acabou por criar uma nova obra, surpreendente
e superior, que conseguiu ultrapassar as salas de cinema e conduzir a plateia a seu belprazer. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Utilizando métodos simples de narração, um orçamento baixo e o antigo star
system de Hollywood, Alfred Hitchcock conseguiu criar uma obra prima do cinema de
horror e suspense. Psicose custou apenas 800 mil dólares, mas faturou mais de 50 milhões
de dólares em todo o mundo, além de conquistar uma legião de fãs. Sua adaptação do livro
de Robert Bloch não só faz jus ao original, captando a alma da história criada pelo autor,
como consegue ter uma vida própria. A própria natureza do ato de condensar envolve perda de material. Condensar
geralmente inclui a perda de subplots, a fusão ou o corte de personagens, a
necessidade de deixar de fora muitos dos temas que podem estar presentes em
um longo romance, além da necessidade de encontrar no material o começo, o
meio e o fim de uma linha dramática para a história. Essas escolhas podem ser
frustrantes, já que algumas vezes os escritores têm de abrir mão de cenas ou
personagens de que gostam, para fazer com que o filme fique bom. (SEGER,
2007, p .18 e 19) O que Linda Seger quer dizer é que, para se tornar uma boa adaptação o filme
não precisa ser uma versão literal da obra que o originou, mas sim ser capaz de contar a
história em uma nova mídia, sem perder o espírito. Além de fazer isso, Hitchcock também
deu uma nova cara as personagens principais, fazendo algo bastante característico do
cineasta: criando personagens cativantes, para no fim fazer a plateia torcer por aquele que
vai contra as regras. Podemos não nos identificar com Norman Bates ou com Marion Crane, mas
não queremos que eles se deem mal. Quando Marion é esfaqueada no chuveiro, nos
entristecemos porque realmente acreditávamos que ela iria se redimir. Mas isso não nos dá
raiva de Norman Bates [ou de sua mãe]. Muito pelo contrário. Não queremos que ele seja
descoberto, que seja punido. Entendemos suas motivações, frustrações e sentimentos.
Sabemos porque agem da maneira como agem. Assim, Psicose é mais do que um simples filme, é uma aula de cinema. REFERÊNCIAS BENSHOFF, Harry; GRIFFIN, Sean. Queer Cinema: The Film Reader. 2ª Edição. New
York e London: Routledge, 2005. BLOCH, Robert. Psycho. Oregon: Blackstone Audio, Inc., 2009. BURR, Ty. The 100 Greatest Movies of All Time. New York City: Entertainment
Weekly Books, 1999. DICIONÁRIO Online de Português. Disponível em < http://www.dicio.com.br > Acesso
em 18 jul. 2012. ENTERTAINMENT Weekly. The 100 Greatest Movie Moments 1950-2000. Disponível
em < http://www.ew.com/ew/article/0,,270803,00.html > Acesso em 19 jul. 2012. FRANKENSTEIN. Direção de James Whale. Universal Pictures, 1931. 70 min. KING Kong. Direção de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack. RKO Radio Pictures,
1933. 100 min. PSYCHO. Direção de Alfred Hitchcock. Shamley Productions, 1960. 109 min. SEGER, Linda. A Arte da Adaptação. São Paulo: Bossa Nova, 2007. TARANTULA. Direção de Jack Arnold. Universal International Pictures, 1955. 80 min. THE Internet Movie Database. Disponível em < http://www.imdb.com/> Acesso em 18 jul.
2012. TRIGO, Luciano; MORIN, Edgar. As Estrelas: Mito e Sedução no Cinema. 3 ed. São
Paulo: José Olympio, 1989. TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: Entrevistas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.