considerações críticas sobre a questão da reserva de cotas

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considerações críticas sobre a questão da reserva de cotas
Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias/Vol. 01- Nº 02/Jul-Dez 2014
CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A QUESTÃO DA RESERVA DE
COTAS ESPECÍFICAS PARA O INGRESSO DE ESTUDANTES NO
SISTEMA UNIVERSITÁRIO BRASILEIRO
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ/Professor da FACC-UFRJ
E-mail: [email protected]
Resumo: Neste texto abordamos considerações críticas contrárias ao sistema de concessão de
cotas universitárias conforme critérios “raciais”, salientando que essa proposta é eivada de
dispositivos ideológicos e demagógicos.
Palavras-chave: Cota Racial. Demagogia. Ensino Público.
Abstract: In this text we approach contrary critical considerations to the system of
concession of university quotas as “racial” criterions, pointing out that this proposal is
contaminated of ideological and demagogic devices.
Keywords: Racial Quota. Demagogy. Public Education.
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INTRODUÇÃO
O presente texto é fruto de um questionário crítico do qual fui convidado a colaborar
pelos pesquisadores Sonia Nascimento e Anderson Fernandes, que realizaram uma valiosa
enquete acerca da polêmica em torno do problema da destinação de cotas universitárias para
estudantes negros, servindo de suporte para a matéria denominada “Cotas: a nova consciência
negra”, publicada na revista-magazine Psique Ciência & Vida n. 59, pela Editora Escala,
2010, p. 54-59.
Uma vez que os autores do texto apenas recortaram as partes de meu escrito original e
inseriram esses fragmentos de forma esparsa, considero de grande pertinência intelectual que
a comunidade acadêmica efetivamente interessada na discussão acerca da questão da
destinação de cotas raciais para estudantes negros e demais grupos sócio-culturais tome
conhecimento das minhas colocações originais; algumas dessas colocações foram ampliadas
em sua exposição argumentativa, de modo a esclarecer com mais precisão determinados
pontos que porventura no documento estavam um tanto obscuros. Dessa maneira acredito que
se suprirá o problema técnico decorrente da fragmentação das minhas ideias pelos autores do
artigo, que assim o fizeram por estritas motivações jornalísticas, uma vez que a extensão
completa de meu texto oferecido como contribuição para o desenvolvimento da matéria em
pauta apresentava uma dimensão digna de um pequeno artigo acadêmico. Ressalto que em
minhas respostas apresentadas a seguir expressei as minhas genuínas perspectivas avaliativas
acerca do debate proposto, e destaco ainda que, apesar de talvez contrariar expectativas
libertárias de alguns setores de nossa sociedade, agi em nome de minha coerência intelectual e
de minha consciência íntima, ela mesma regida pelos princípios libertários da crítica social
aos parâmetros normativos de nossa ordenação política plutocrática e de nossa massificação
cultural cada vez mais fundamentalista. Afinal, o fato de ser contrário ao sistema de cotas
raciais ou sociais não significa que eu seja alheio aos problemas estruturais de nossa nação.
Outras questões conexas se encontram devidamente manifestadas no decorrer do texto,
permitindo assim um pequeno debate sobre os problemas sociais que perpassam nossa
estrutura política.
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A COTA RACIAL É UM BENEFÍCIO REAL DE UMA DÍVIDA SOCIAL
QUE AJUDA A COMBATER O PRECONCEITO OU ELA ENFATIZA
AINDA MAIS O RACISMO?
Considero que o dito sistema de cota racial já nasce de um erro técnico e uma
mistificação ideológica, pois esse mecanismo de pretensa inclusão social segue critérios
fenotípicos, e o próprio progresso das ciências biológicas demonstra cada vez mais que o
código genético da humanidade é extraordinariamente mesclado, dissolvendo assim qualquer
pretensão de existência de uma identidade genotípica definida e precisa; mais ainda, as
investigações antropológicas de ponta evidenciam que o conceito de “raça” se revela
extremamente inadequado tecnicamente para compreendermos os paradigmas da condição
humana., tornando assim improcedente o uso de tal termo em um viés objetivamente
científico. Para Bauman,
Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não têm
a solidez de uma rocha. Não são garantidas para toda a vida, são bastante
negociáveis e revogáveis. E de que as decisões que o próprio indivíduo
toma, o caminho que percorre, a maneira como age – a determinação de se
manter (BAUMAN, p. 2005, p. 17).
No caso especificamente do povo brasileiro, constata-se na convivência pública que
grande parte da população “branca” possui traços étnicos negros ou indígenas, em decorrência
de nossa própria formação multirracial, sem esquecermos ainda das influências asiáticas em
alguns grupos especiais. O próprio autor do presente artigo possui ancestrais distantes de
origem negra, e certamente se fizesse um exame de DNA apresentaria uma grande carga
genética própria da etnia negra.
O sistema de cotas raciais demonstra a sua impertinência axiológica se porventura
atentarmos para o seguinte caso ilustrativo: O estudante negro proveniente de uma família
abastada encontra certamente muito mais facilidades em sua vida cotidiana do que um
estudante descendente de poloneses que viva em condições miseráveis. Pelo malfadado
sistema de cota racial, esse estudante “branco” não poderia obter o benefício institucional, não
obstante a concretude das suas dificuldades materiais.
Vejamos ainda outro caso que revela o caráter estúpido do sistema de cotas raciais: um
pai branco e uma mãe negra geram um filho fenotipicamente branco, uma situação pouco
usual, mas possível de ocorrer. Nesse caso, esse jovem não teria direito a se beneficiar
academicamente pelo emprego do sistema de cotas raciais?
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Percebemos na discussão do sistema de cotas raciais a ausência de critérios
intelectuais mais rigorosos, havendo apenas, em especial, a tentativa de se legitimar, de
maneira sensacionalista e demagógica, uma questão mal fundamentada cientificamente.
Nessas condições, caberia a pergunta: o que é o ser “negro” e o ser “branco” enquanto
estatuto ontológico? É imprescindível que, acima de tudo, quebremos a mitologia branca de
cunho patriarcal que fundamenta nossas relações sociais, cujas bases arcaicas se encontram no
espírito colonial da produção latifundiária. Não existe alma negra ou alma branca, como o
senso comum apregoa irrefletidamente.
Vale ainda destacar o caráter preconceituoso presente na formulação original do
projeto de concessão de cotas universitárias para estudantes negros: com efeito, apenas estes
seriam contemplados com tal medida. Ora, mas nossos inúmeros povos indígenas,
paulatinamente dizimados na história “civilizada” do Brasil, não teriam também o direito de
integrarem esse sistema prescritivo, ou mesmo outros grupos sociais marginalizados no
decorrer das eras? Muitos alegariam que a motivação básica para a inexistência de uma
mobilização dos povos indígenas em prol do direito dos seus jovens ingressarem em
universidades públicas decorre talvez da falta de interesse cultural e talvez organização social
e política nesse sentido, mas em verdade essa pretensa apatia ocorre pela própria destruição
paulatina que a arcaica organização colonialista e a gestão tecnocrática da sociedade moderna
impuseram aos indígenas no decorrer dos séculos, sem que houvesse da parte do Estado
efetivas medidas de proteção para esses grupos.
Apesar de toda a violência física e moral imposta pelos exploradores patriarcalistas
aos negros tanto no regime colonial, imperial e republicado da história política brasileira, os
militantes da causa negra souberam progressivamente se organizar de maneira conveniente
para os seus propósitos de emancipação social; circunstância politicamente louvável, pois
cada grupo social deve se esforçar para obter o respeito devido pela esfera pública, uma
autêntica luta por reconhecimento em que o oprimido combate contra sua desumanização
operada pela ação necrófila do opressor. Segundo Paulo Freire,
Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos
oprimidos à violência dos opressores é que vamos encontrar o gesto de amor.
Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião dos oprimidos, que é
sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos
oprimidos, sim, pode inaugurar o amor. Enquanto a violência dos opressores
faz dos oprimidos homens proibidos de ser, a resposta destes à violência
daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser. Os
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opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem
igualmente ser; os oprimidos, lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de
oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que haviam perdido no
uso da opressão (FREIRE, 2005, p. 48).
Portanto, se os negros possuem o direito de reivindicar a concessão de cotas especiais,
assim também os indígenas, ciganos e quaisquer outros povos componentes da dita minoria
constituinte da população brasileira deveriam obter tal oportunidade de inserção na vida
acadêmica. Os indivíduos portadores de albinismo deveriam também receber tal amparo, pois
suas condições fenotípicas impedem que essas pessoas possam desempenhar adequadamente
uma série de funções práticas, apresentando sinais de fotofobia e extrema sensibilidade
cutânea aos efeitos da luz solar. Perante o clima abrasador típico do território brasileiro, os
indivíduos portadores de albinismo
adequadamente
as
suas
atividades
se esforçam ardorosamente para desempenharem
cotidianas.
Muitos
inclusive
são
estigmatizados
socialmente por essa moléstia. Por qual motivo não foram incluídos no seleto grupo de cotas
raciais? Não seria talvez isso também um preconceito?
A cota racial, conforme a minha perspectiva particular, não pode ser de forma alguma
considerada efetivamente como um benefício real para quem é concedida, pois mantém em
vigor a decadência estrutural do ensino primário e secundário das escolas públicas,
desonerando
assim
a
organização
do
Estado
de
qualquer
responsabilidade
pelo
aprimoramento da qualidade desse segmento de ensino; tanto pior, cria um falso sentimento
de reparação histórica pelos séculos de escravidão ocorridos no período colonial e imperial do
Brasil, cujos efeitos deletérios se manifestaram no decorrer da era republicana (proletarização
negra, miserabilidade para uma massa humana marginalizada das benesses do progresso,
violência endêmica nos cortiços e favelas). Ora, sabemos que é pragmaticamente muito mais
vantajosa do ponto de vista econômico a criação de medidas superficiais que geram comoção
pública do que a realização de esforços concretos que fortaleçam a base educacional da
sociedade e promovam a integração efetiva de todos os setores de nossa população. Contudo,
as bases plutocráticas e corruptas do Estado não pretendem sanear os problemas fundamentais
do ensino fundamental e médio, pois seria um investimento de longo prazo que ao fim
dissolveria certamente as camadas burocráticas que se aproveitam da situação degradante na
qual chafurdam professores, estudantes e os profissionais da educação. Uma juventude bem
formada desenvolve maior senso de cidadania e consciência política, prejudicando assim os
interesses de grupos politiqueiros que prosperam mediante a alienação intelectual das massas.
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De certa maneira, é até possível afirmarmos que o estabelecimento do sistema de
concessão de cotas raciais é um instrumento passível de ser imputado como valorativamente
bem intencionado em suas motivações de reparação histórica para um grande contingente
humano cujos antepassados permaneceram por séculos alijados da participação nas decisões
políticas e oprimidos cotidianamente por sua crônica situação de pobreza, sendo assim
marginalizados socialmente; entretanto, analisado profundamente, a criação desse sistema de
cotas raciais se revela administrativamente falho; afinal, a questão não é simplesmente
promover através de recursos facilitadores a entrada dos ditos grupos historicamente
excluídos nos cursos universitários públicos, mas sim de se fornecer de maneira igualitária
condições adequadas de ensino e necessidades vitais básicas para todos, independentemente
de formação cultural, social e étnica do estudante-candidato. Cabe ao Estado criar medidas
que promovam a autonomia e a emancipação social das classes desfavorecidas, e não medidas
assistenciais que perpetuarão a dominação política das massas, dependentes das benesses
governamentais. Nessas circunstâncias, infelizmente a efetivação do sistema de cotas raciais
não auxilia no processo de combate ao preconceito, seja ele racial ou social, mas o
escamoteia, pois não modifica as bases infraestruturais de nossa sociedade capitalista de
cunho excludente e juridicamente plutocrático, justamente a instância que deveria ser
transformada radicalmente para que um maior contingente de pessoas pudesse se beneficiar
do usufruto da cidadania efetiva, para além dos signos de consumo.
Ao invés de se promover melhorias radicais nas bases educacionais das escolas e
mesmo nas condições vitais dos estudantes, instituições demagógicas estabelecem o sistema
de
cotas
universitárias
para
que
os
problemas
de
formação
educacional sejam
convenientemente reparados no topo da cadeia de ensino; ou seja, transmite-se a ideia de que
não há efetivo interesse de se reformular radicalmente a estrutura do ensino de formação, cada
vez mais precário e flexível no seu rigor avaliativo, vide a estupidez institucional da
aprovação automática ou dos subterfúgios pedagógicos para se evitar a reprovação escolar, e
como “indenização” por essa inépcia do Estado os jovens socialmente desfavorecidos
receberão concessões de facilitação de admissão no sistema universitário. Tal mecanismo se
assemelha ao ato de se esconder a poeira debaixo do tapete, mantendo-se assim a aparência
pública de limpeza, mas com a escória devidamente colocada longe do olhar público.
Portanto, o sistema de cotas raciais é moralmente ilegítimo e motivador de estigmas sociais ao
invés de eliminá-los, uma vez que o sujeito que adentrou no ensino universitário público
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através desse procedimento corre o risco de ser imputado como possuidor de capacidade
intelectual inferior em relação aos demais estudantes, fato que não seria de se estranhar
levando-se em consideração a tacanhez de grande parte do alunado universitário e da própria
opinião pública conservadora.
A escravidão negra é uma mancha moral na formação política brasileira, e se hoje
condenamos tal procedimento é porque nossa consciência humana se desenvolveu sob os
paradigmas da justiça efetiva; contudo, devemos aplicar uma análise dialética no vil processo
de escravidão e não imputar aos negros escravizados a condição de coitados, pois as próprias
lideranças
tribais
africanas,
por
interesses
econômicos
que
superavam seus
laços
comunitários, étnicos, morais e espirituais, não hesitaram em comercializar pessoas negras
aos traficantes colonialistas, brancos ou não.
Pensemos ainda nas seguintes situações de ordem prática: digamos que dois
candidatos a um emprego em uma empresa privada que segue os preceitos liberais da
concorrência e da competitividade de alto nível se submetam ao crivo avaliador de um
selecionador criterioso em sua proposta profissional. Um gestor rigoroso e cônscio das
discrepâncias acadêmicas dos procedimentos assistencialistas incrustrados nos processos
admissionais das universidades públicas, ao tomar ciência de que o candidato X realizou sua
trajetória universitária do sistema público através da facilitação oficial do sistema de cotas,
certamente excluiria essa pessoa do processo de seleção, pois o outro candidato ingressou na
universidade pública através dos seus esforços próprios, sem qualquer concessão.
Vejamos também esse caso: o estudante negro que ingressou na universidade pública
de maneira convencional, isto é, prestando o exame de vestibular sem depender de qualquer
concessão de cota, caso adepto da visão liberal de mundo, se sentiria intelectualmente
superior aos colegas que receberam tal benefício, gerando-se inclusive um possível mal-estar
existencial em sua subjetividade ou mesmo desprezo por seus consortes, inclusive acreditando
que se ele estudou e se esforçou para conquistar sua vaga de maneira isonômica aos demais
candidatos, por que os demais não poderiam?
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HÁ UM QUESTIONAMENTO POLÊMICO QUE DEFENDE AS COTAS SOCIAIS E
NÃO RACIAIS. ACREDITA QUE O TEMA DEVERIA SER TRATADO
SOCIALMENTE? POR QUÊ?
A defesa das cotas sociais é uma iniciativa que, tecnicamente, é um pouco mais
coerente do que a defesa das cotas raciais, pois em tal questionamento se identifica também
um problema crônico da falta de infraestrutura da sociedade brasileira em saúde, saneamento
básico, educação e justa distribuição de renda que permita o estabelecimento efetivo do estado
de bem-estar social para um maior contingente populacional.
De certa forma, podemos constatar que a instauração do sistema de cotas sociais
amplia a oportunidade de todos os setores que foram historicamente prejudicados pelas
injustiças sociais possam vir a obter uma condição de concorrência mais equânime nos
processos de seleção de vestibular. Entretanto, mascara-se também o problema principal de
nossa desigual organização social: a inexistência de uma política social eficaz na promoção
ótima dos diversos âmbitos da vida, tais como alimentação, moradia, segurança pública,
assistência médica e sanitária, assim também como o fornecimento de educação de qualidade
desde a primeira infância.
A ideia geral que se manifesta é a seguinte: deixa-se intocado os problemas cruciais de
grande parte da população brasileira, e quando esta se encontra na idade de ingressar do curso
universitário público fazem-se concessões sociais para ela, como compensação pelos “erros” e
descasos contínuos da má gestão pública na organização da vida social. Por conseguinte,
transmite-se publicamente a ideia de que é a universidade pública que retificará os mais
gritantes problemas sociais, concedendo-lhe assim caracteres soteriológicos, quando em
verdade caberia ao Estado promover as condições básicas da cidadania ao estabelecer efetivas
condições isonômicas para toda a população marginalizada, quebrando a lógica empresarial
que impede a justa distribuição de riqueza para as classes trabalhadoras, mantidas em estado
de pauperismo. Ora, mas tal procedimento não é favorável aos interesses governamentais,
pois investimentos pesados seriam necessários para tal monta e desagradaria ao empresariado
corruptor; nessas condições, é preferível que se conceda cotas aos estudantes materialmente
desfavorecidos, circunstância que expressa claramente todas as motivações econômicas que
lhe são subjacentes, e assim gera-se uma sensação artificial de consenso social.
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Caberia ainda destacar um dado muito importante: uma vez que já se experimentou
em diversas universidades públicas brasileiras a concessão de cotas raciais e sociais, por uma
questão de coerência, seria imprescindível que no futuro se viesse também a disponibilizar
vagas para os grupos minoritários que são constantemente oprimidos ao longo da nossa
preconceituosa e hipócrita formação sócio-cultural, tais como os homossexuais; mais ainda,
no futuro próximo, estudantes que sofrem contínua opressão no espaço escolar pela prática de
bullying também poderiam requerer a concessão de tal benefício e, nesse contexto,
encontrariam motivações válidas. Afinal, os estudantes oprimidos no decorrer da infância e da
adolescência por práticas discriminatórias e humilhantes tendem a sofrer de um baixo índice
de rendimento pedagógico e, tanto pior, os coordenadores educacionais e diretores escolares
revelam-se pouco aptos do ponto de vista técnico e profissional para a resolução rigorosa
desse grande problema social que, por sua vez, se pauta pela ausência de um princípio ético
fundamental: o respeito incondicional pela diferença. Essa situação se agrava quando
direcionamos nosso enfoque avaliativo para o sistema comerciário de ensino, onde o aluno
vale por aquilo que ele paga de mensalidade, justificando-se assim todos os atos antissociais e
comportamentos indisciplinados realizados nas dependências do estabelecimento educacional,
inclusive aviltando toscamente contra a dignidade profissional dos professores que aplicam
com justiça o rigor acadêmico, o que deveria ser a condição normal. Em tais instituições, os
coordenadores de ensino são em geral burocratas que não conhecem efetivamente a dinâmica
da experiencia docente e a complexidade das vivências intelectuais que ocorrem em uma sala
de aula; por sua vez, os diretores são apenas especuladores gananciosos que anseiam pela
obtenção de lucro acima de tudo e a satisfação dos seus clientes, isto é, o alunado cada vez
mais medíocre intelectualmente e os familiares que se esqueceram das suas autênticas
responsabilidades paternais, pois necessitam pagar as dívidas do automóvel, das viagens de
férias e outras urgências pequeno-burguesas.
De toda maneira, considero que cabe a realização do debate social da questão da
utilidade efetiva da implementação das cotas universitárias, justamente em nome da afirmação
democrática das nossas instituições públicas. A instauração do sistema de cotas universitárias,
em qualquer circunstância, deve passar por todas as instâncias e segmentos da estrutura
universitária, de modo que não seja apenas uma decisão obscura do grupo dirigente, que
estabelece tal decisão de maneira vertical contra toda a pluralidade da comunidade acadêmica.
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DADOS ESTATÍSTICOS APONTAM QUE OS NEGROS VÊM GANHANDO
ESPAÇO NÃO SÓ NAS UNIVERSIDADES, MAS EM DIVERSAS ÁREAS DA
PROPAGANDA, MERCADO DE TRABALHO, ETC. A QUE ATRIBUI
ESSA ASCENSÃO?
Existem medidas legais que promovem a inserção de negros em diversos setores da
vida cultural e econômica do Brasil; tal circunstância possui inegável validade pelo fato de
que houve durante muitas décadas o projeto de branqueamento simbólico do padrão midiático
e empresarial de nossa organização econômica, enquanto a condição negra era imputada,
ainda que veladamente, como um sinal de grande estigma social. O talento de uma pessoa não
corresponde ao seu grupo étnico, mas ao seu potencial criativo despertado pela educação, pela
disciplina e pelo esforço de superação contínua de suas limitações intrínsecas. De um modo
geral, o sucesso profissional de uma pessoa se deve acima de tudo por sua competência,
criatividade, empreendorismo e habilidade técnica, e não pelo auxílio de instrumentos sociais
facilitadores de sua ascensão pessoal. Contudo, constatando-se a existência de quaisquer tipos
de medidas discriminatórias contra indivíduos considerados fora do padrão estabelecido pela
estrutura normativa da sociedade, cabe ao Estado impor através de medidas legais uma justa
inclusão de tais indivíduos na estrutura econômica e profissional da esfera privada: tal
mecanismo certamente obrigará as instâncias conservadoras e preconceituosas da sociedade a
aprenderem a conviver com a figura do “outro”, imputado sempre como o “estranho” pela
lógica discriminatória da moralidade medíocre vigente em qualquer civilização norteada pelo
padrão de mercado.
QUAIS SÃO OS EFEITOS PSICOLÓGICO-SOCIAIS DAS COTAS PARA OS
ESTUDANTES BENEFICIADOS POR ELAS? HÁ AUMENTO DE AUTOESTIMA,
POR EXEMPLO, OU A SENSAÇÃO DE SER NOVAMENTE O "DIFERENTE"?
É inegável que pode vir a ocorrer um nível de ampliação da auto-estima de um
estudante que ingressa em uma universidade pública através do benefício das cotas, da mesma
forma que uma pessoa auxiliada pelo corporativismo institucional de uma empresa também
sentirá ampliação do sentimento de auto-estima ao ser favorecido no processo de seleção. Não
pretendo de forma alguma igualar os dois processos, pois um é legalmente aceito pela esfera
pública e outro movido por objetivos escusos que, justamente por uma falta de
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regulamentação deontológica, promove a admissão do candidato ao emprego mais bem
relacionado no contexto empresarial (o famigerado “Quem Indica”).
Porém, há que se destacar que em nível de fruição de contentamento, ambos os
processos são parecidos. Entretanto, não se pode descartar a possibilidade de vir a ocorrer a
estigmatização do estudante que obteve sua admissão na universidade pública pelo sistema de
cotas; tal fator depende do meio acadêmico no qual ele se encontra inserido, e de que maneira
o foro intimo desse estudante lida com tal situação. Percebemos mais uma vez um problema
crucial: uma coisa é o estudante ser favorecido em sua admissão na universidade pelo sistema
de cotas, outra é conseguir perseverar academicamente no curso de graduação; se ele não for
provido de recursos técnicos e materiais adequados, corre o risco de se tornar um indivíduo
mal-formado academicamente, permanecendo alheio ao progresso intelectual que lhe poderia
ser fornecido caso obtivesse adequadas condições de estudo e manutenção de sua vida
cotidiana. Portanto, caso vigore de maneira global o sistema de cotas sociais nas
universidades
públicas
brasileiras,
é
imprescindível
que
a
instituição
realize
um
acompanhamento constante na trajetória acadêmica do estudante, fornecendo-lhe subsídios
adequados para o seu progresso educacional, como bolsa de pesquisa e assistência social
completa; as universidades partidárias do sistema de cotas sociais, por conseguinte, deveriam
seguir tal parâmetro de conduta para que, consolidando-se de fato tal processo, se realize de
maneira adequada o projeto de formação plena do estudante, e assim a iniciativa das cotas,
ainda que basicamente equivocada em suas origens, pelo fato de não estimular um nível de
educação de qualidade no início da trajetória estudantil, promova ao menos benefícios
autênticos no decorrer da graduação, e assim estimulando a autonomia intelectual e o
aprimoramento da competência profissional do estudante inserido no mercado de trabalho em
condições de razoável competitividade.
É
POSSÍVEL
CONCEITUAR
O
PROCESSO
PRECONCEITO? COMO ELE SE MANIFESTA?
PSÍQUICO/SOCIAL
DO
A experiência do preconceito se manifesta de diversas maneiras, muitas delas talvez
até inusitadas ao longo de nossa vida cotidiana. A terrível associação entre negro e
criminalidade é uma delas, circunstância que, apesar das inúmeras transformações sociais e
culturais vividas pela população brasileira no decorrer das últimas décadas, permanece ainda
em vigor no imaginário social. Um exemplo típico desse problema se encontra na
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criminalização da pobreza, perspectiva que é assimilada inclusive por membros das classes
economicamente
desfavorecidas,
que
adotam,
curiosamente,
o
discurso
patriarcalista
dominante. O pior oprimido é aquele que acredita que no fundo de seu âmago não odeia o
opressor, mas gostaria de ser também como um, e quando adquire ascensão material, exerce
sobre os seus consortes o mesmo tipo de poder dominante das elites avessas ao bem comum.
Com efeito, quem é oprimido e ao mudar de situação se torna um opressor nunca nutriu
aversão pela opressão, talvez até gostasse dela como forma de envenenar o seu âmago e
encontrar assim um culpado moral para o seu fracasso existencial, dando vazão ao mais
sórdido espírito de ressentimento.
Pensemos no seguinte caso: um indivíduo desfavorecido economicamente que venha a
cometer um delito causa muito mais temor nas classes abastadas e na esfera pública de uma
forma geral do que o político corrupto que prejudica quantitativamente um contingente muito
maior da população. Pensemos no disparate de tal situação. O indivíduo que rouba um
cidadão na rua é temido, odiado, execrado, preso, enquanto o político desonesto, engravatado
e elegante, com seus atos sórdidos motiva um transtorno social muito maior do que a ação
particular do ladrão desqualificado. Quando tomamos ciência da ação desonesta de um
político nos indignamos, mas em breve essa revolta se esvai, circunstância que auxilia na
manutenção do sistema degradado no qual vivemos, onde a afirmação da esfera pública
praticamente inexiste. Enquanto isso, o dito “criminoso comum” amarga dolorosamente a sua
punição imposta pelo Estado. Ora, se de fato houvesse a tão propalada justiça para todos no
sistema social brasileiro, os grandes criminosos da política e os grandes especuladores
financeiros deveriam receber punição mais severa do que os marginais sociais. Talvez os
diretores escolares movidos apenas pela ânsia sôfrega de lucro em detrimento da expansão da
cultura e dos genuínos valores morais deveriam também ser incluídos no rol dos indivíduos
passíveis de punição legal mais severa, pois essa classe comercialista de especuladores do
sistema educacional é extremamente deletéria para a formação de uma sociedade instruída e
preparada não apenas para a inserção no mercado de trabalho, mas para os rigores da vida
autônoma.
Podemos afirmar que o preconceito nasce da incompreensão da diferença, dos seus
valores próprios,
do
seu modo
de ser inerente. O indivíduo preconceituoso vive
simbolicamente conforme a lógica da identidade: somente aquilo que é “igual” aos seus
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parâmetros valorativos é considerado algo válido para si, legitimado existencialmente. Em
uma escala social, tal posicionamento perante a realidade ocasiona os mais diversos atos de
preconceito. A maior dificuldade da convivência social em qualquer circunstância histórica
reside na incapacidade de vivenciarmos a experiência da alteridade, que não é apenas a
aceitação do outro, a tolerância com sua existência, ainda que considerada “incômoda”, mas
sua genuína afirmação ética.
A vivência da alteridade consiste na capacidade de afirmarmos efetivamente o valor
do outro, de nos colocarmos simbolicamente no lugar do outro em qualquer circunstância, e
promovermos todos os meios possíveis para que ele possa expressar as suas qualidades
reprimidas pela estrutura normativa dos costumes sociais que se tornaram hegemônicos no
decorrer do processo de formação da esfera coletiva.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Discute-se de maneira acalorada nos meios educacionais brasileiros a questão do
estabelecimento das cotas raciais e/ou sociais para determinados estudantes no processo de
admissão no ensino universitário, especificamente a graduação. Contudo, por qual motivo não
se vislumbra a implantação do sistema de cotas também nos cursos de pós-graduação
(mestrado e doutorado)? Certamente é curioso para quem analisa criticamente essa questão
constatar que o caso da postulada democratização do acesso de estudantes desfavorecidos
socialmente e culturalmente se aloque apenas no nível da graduação, mas por qual motivo a
criação de cotas para estudantes de pós-graduação não se enquadra nesse processo? Na
conjuntura acadêmica atual do cenário intelectual brasileiro, uma pessoa que obtenha apenas o
título de graduado raramente poderá obter grandes avanços em sua carreira profissional,
exigindo-se assim que ela realize mestrado e doutorado. Vejamos o caso do pesquisador em
Filosofia: para o indivíduo de formação intelectual deficitária e portador de baixa titulação
acadêmica, apenas estão reservados as escolas públicas estaduais, alguns colégios privados
regidos pelo dispositivo comercialista do ensino e talvez ainda alguns cursos universitários
intelectualmente
decadentes.
Para
o
profissional da
Filosofia
que
queira
ascender
academicamente, somente quando se realiza o curso de doutorado é possível conquistar essa
elevação, de maneira que a obtenção de tal título é o seu diferencial intelectual.
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A partir desta colocação, podemos voltar de forma mais precisa ao foco de nossa
atenção, através das seguintes questões: De que adianta então se promover a reserva de cotas
para estudantes pretensamente desfavorecidos apenas no processo de exame de vestibular?
Por qual motivo essa iniciativa não é estendida para os cursos de pós-graduação strictu sensu?
Por uma questão de coerência, todas as instâncias da vida universitária deveriam ser
contempladas então com o sistema de reserva de cotas. Em suma, percebemos nesses
mecanismos de ascensão acadêmica por métodos extrínsecos, ou seja, a admissão pelo exame
de vestibular, nada mais do que uma sucessão de incoerências e a ausência de um critério
racional, preciso e rigoroso. Uma vez que o espaço universitário é destinado ao debate
intelectual, equilibrado, sensato e ponderado, motivações espúrias e populistas não deveriam
ser ali abordadas, em nome da própria independência do pensamento e da criação acadêmica
de excelência.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevistas a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
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