Discurso – Galeria dos Decanos O pescador de pérolas tirou estes

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Discurso – Galeria dos Decanos O pescador de pérolas tirou estes
Discurso – Galeria dos Decanos
O pescador de pérolas tirou estes mimos das conchas de
nosso oceano musical: o amor é o carinho, o espinho que não se vê
em cada flor, é a vida quando chega sangrando aberta em
pétalas de amor (VINICIUS DE MORAIS, “O velho e a flor”), e, a
lágrima de amor vira flor pelo bem que faz, flor que morre e
prossegue enfeitando mesmo já morta (MILTON NASCIMENTO,
“Lágrima flor”). Entoando a música de CARTOLA, “se as rosas não
falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti”,
quem na vida professa o bem comum, arranha os pés e as mãos nos espinhos do
caminho, mas alcança a culminância com a consciência pura pelo dever cumprido
com abnegação, recebendo a coroa de rosas dos concidadãos. A fragrância dessas
rosas flui da dignidade de vida, do relevo das obras, da munificência e da ilustre
memória, pois, a prova dos nove de cada indivíduo é o passado, e o tempo, é o
examinador.
Inaugura-se hoje a Galeria dos Decanos, homenagem
dedicada aos colegas que, desde verdes anos, passaram pela Instituição, muitos
até a aposentadoria beirando os 70 anos de vida.
Justa é a reverência porque esses nobres membros do
Ministério Público do Estado de São Paulo suportaram privações e
trabalharam décadas na carreira, fazendo espontâneo sacrifício de amor por seu
amor, com afinco mesmo enquanto já vergastados pela idade avançada,
pavimentando a estrada grandiosa da Instituição. Empenharam-se pela
independência da função, e, como flui da poesia de PABLO NERUDA,
“nutrindo o amor que pode ser eterno, mas também fugaz, e
que, divinizado ao aproximar-se, vai embora quando é
encurralado”, tiveram por lema, o amanhã melhor e para a frente, no sonho
sublime da realização da justiça, tornando-se agentes de transformação quando
importantes questões convulsionavam as Instituições e a identidade do País.
Atenderam ao interesse público e foram exemplos de caráter e correção aos
colegas adventícios na Instituição. Participaram, com projetos e ações, do
esforço de construção e consolidação da carreira, legalmente organizada em 1939,
no Estado de São Paulo. Quando a humanidade enfrentava o horror do segundo
conflito mundial, por ser a música a mensageira de sentimentos, o notável ARY
BARROSO, para descontrair, pintou o território verde-amarelo na canção
“Aquarela do Brasil”. Todavia, preocupados, nossos antigos
companheiros analisaram os
problemas que afligiam a sociedade, as
desigualdades, as distâncias das classes sociais e o porquê de uns tão ricos e
outros tão pobres, escancarando as mazelas, tocando nas feridas e incomodando o
legislador ao propor mecanismos para fortalecer a democracia, excluir os
monopólios
e fomentar a inclusão social, antecipando-se deveras ao contraponto, em 1978, de
ALDIR BLANC e MAURÍCIO TAPAJÓS, a revisitar o País com a melodia
“Querelas do Brasil”, visando o conhecimento do Brasil com “s” e não com
“z”, com suas querelas e aquarelas, pois, a música é porta-voz do sonho e da
realidade, de enganos e desenganos, da dúvida e da esperança do povo.
É importante louvar quem, por muito tempo se dedicou à
causa pública. Esta é uma ocasião mágica que escapa à prosaica realidade, um
sonho em que a aurora não apaga o brilho das estrelas. Os antigos
companheiros que deram tudo de si ao bem comum, nesta galeria de retratos
evocam os versos de CAMÕES: “assim que vida e alma e esperança,
e tudo quanto tenho, tudo é vosso, e o proveito disso eu só o
levo, porque é tamanha bem-aventurança o dar-vos quanto
tenho e quanto posso, que quanto mais vos pago, mais vos
devo”. Afrouxando as rédeas da imaginação, repassando o fio das lembranças
pela fenda do passado que a memória rasgou, sem ser metempsicose e pedindo
vênia aos nobres Decanos presentes, doravante todos irão expressar-se por
minha voz, atual Decano, embora no crepúsculo deste Decanato.
Não acreditávamos que alguém se interessasse por nós, os
Decanos. No ostracismo, cobertos pelo pó do oblívio e empilhados nas estantes
dos antigos colaboradores, despertávamos apenas a atenção de raros estudiosos.
O tempo tem a fugacidade de um flash, privilegiando o presente e o futuro, sem
esgaravatar o passado, abandonando num desvão da consciência as lembranças e
os vultos pretéritos, pois, fatos insólitos ocorrem como novidades permanentes e
problemas inéditos exigem pronta solução para cauterização de situações que
eclipsam direitos de primeira grandeza, obscurecendo as evocações e as
testemunhas de outrora. É preciso, com a bussola da premência, responder a cada
instante à interrogação das encruzilhadas e resolver os dilemas em face das
apocalípticas contingências enfrentadas pela sociedade convulsionada pela
violência que, como um rastilho de pólvora, provoca incêndios aqui e ali,
obstaculizando a pulsão sonâmbula da pesquisa, do estudo e da memória,
cessando-se a relação interativa com o que passou ou com quem se foi.
Conscientizamo-nos, porém, com CHARLIE CHAPLIN em
“Luzes da Ribalta”, “que há um lugar onde ninguém tira você de
mim: é o passado e nele você me pertence”. Como se fosse o eco do
passado captado na sonoridade de suas vibrações, com o farol da saudade de nós
mesmos e o fio de Ariadne da memória, vamos viajar pelo labirinto das
reminiscências, seguindo a teia invisível que nos prendeu à esta Casa, o mundo
que nos encantou. Se a glória é o sol dos inativos e dos mortos, e, se a posteridade
é a vingança daqueles que sofreram os desdéns do tempo,
estávamos
resignados
qual Prometeu atado ao Cáucaso, ou como quem suporta a chuva que não
pode impedir. Sentimos que nos tornamos inativos uma segunda vez ou que
morremos, relegados à indiferença sobre o que fomos, o que fizemos e o que
representamos. Todavia, esta é uma tarde de sonho, uma folga da vida e um
domingo do pensamento. Emocionamo-nos com a magnânima deferência do
Exmo. Procurador Geral de Justiça, Dr. Marcio Fernando Elias Rosa, ao
destinar uma parede do andar em que se encontra o Órgão Especial do Colégio
de Procuradores de Justiça, no prédio do Ministério Público de São Paulo,
para fixar a Galeria dos Decanos, demonstrando o profundo senso de
solidariedade e gratidão dos Promotores e Procuradores de Justiça por
companheiros, como nós, a fazer da Instituição o nosso mundo, e da carreira
da vida inteira um tesouro repleto de gemas de fino lavor, de trabalho contínuo,
renúncia e sacrifício. Essa consagração de amor e devoção por um ideal resultante
na comunhão de décadas dedicadas ao Ministério Público, deve impressionar
não apenas os noviços na Instituição, mas aqueles que sentem dentro de si o
“j’ai quelque chose là”, imortalizado pelo mártir da Revolução Francesa,
Andrea Chénier, e exaltado na ópera homônima de UMBERTO
GIORDANO: ninguém pode furtar-se a repassar à Pátria, as
dádivas e as qualidades passadas pela Providência.
Esta ocasião é de sonho, e não devem ser olvidadas duas
iluminadas colegas de Ministério Público, duas fadas pelo carinho dedicado
aos mais antigos, e, por consequência, ao ideal de suas próprias carreiras. Como
na sedutora partitura de ballet “La Sylphide”, coreografada por
FILLIPO TAGLIONE, cuja personagem, a sílfide, lendária fada dos ventos, a
ninfa assemelhada aos anjos, inspirava os homens por sua sensível capacidade
intelectual, duas brilhantes mulheres, Procuradoras de Justiça, duas fadas,
e, portanto, duas flores caídas da grinalda de um anjo, tiveram a fina sensibilidade
de cultuar os mais antigos: a Dra. Aparecida Maria Valadares da
Costa, a primeira a saudar especialmente o Decano, o Dr. José Roberto
Garcia Durand, como consta de ata da primeira reunião do Órgão Especial nos
idos de 2006, reavivando a memória e destacando o realce do mais antigo
colega do Ministério Público; e a Dra. Marilisa Germano Bortolin, a
postular, e a formalizar, com o precioso auxílio de um proeminente Procurador de
Justiça integrante do Órgão Especial do Colégio de Procuradores de
Justiça, o Dr. Walter Paulo Sabella, o requerimento que redundou, em 22 de
maio de 2009, na criação do cargo de Decano do Ministério Público, de que
a Magistratura Estadual já dispunha há muito.
Vivemos décadas pela Instituição. Em remoto passado, nos
antiquados vagões de trem embarcamos nossa alegria, fé e imaginação, em
busca
do desconhecido e do enigma da Promotoria da primeira comarca do sertão.
Abrimos caminhos novos através de obstáculos para servir a arraia-miúda, os
pobres,
os camponeses e os necessitados sem sorte e sem norte, a encarnação da falta de
perspectiva, levando à essa gente a palavra e a escrita como instrumentos de ação,
ajuda, esperança e trabalho, para que deixassem de ser os eternos perdedores
abandonados pela sociedade. Nenhum passo em falso, próprio da juventude, e, se
as moedas dos estipêndios não tapavam o fundo das algibeiras, os projetos
transbordavam nossos cérebros. Vencemos etapas, galgamos entrâncias,
amadurecemos e alcançamos a final Instância. Da Instituição fizemos nossa
vida e nossa casa, e, mesmo imolados no calvário dos achaques da velhice,
ardemos esses prolongados anos na pira fumegante do espírito da utopia e do ideal
de bem servir, inquebrantavelmente fiéis ao dever de cumprir as obrigações,
procurando, pela oblação e tenacidade na fiscalização da execução da lei,
transformar fatos corriqueiros em adventos do memorável. Apenas baixamos à terra
as asas do coração, como da águia ferida, diante da septuagenária idade,
inexorável contingência que nos alcançou. E foi isso mesmo, pois, maduros e com
bagagem jurídica vigorosa, no teatro da vida vimos baixar o pano, ainda que nós, se
possível fosse, seguiríamos na carreira, embora não querendo, nas escaramuças
contra o tempo, como o “Fausto” de GOETHE, transacionar a alma em resgate
da juventude. Aliás, seria prescindível a mocidade, pois, como reza antigo ditado
italiano, para ser perfeito o vinho deve ter sabor e personalidade, e ser velho. Afinal,
valia tanto esse amadurecimento acumulado que, na magistral peça da belle époque
teatral, intitulada “Deus lhe pague”, do dramaturgo JORACY
CAMARGO, o personagem central, o idoso mendigo protagonizado
em mais de 3.000 apresentações pelo ator PROCÓPIO FERREIRA,
censurou o lamento do esmoler novo, o qual “não via ninguém passar pelas
escadarias da Igreja para dar-lhes um óbolo’, respondendo-lhe
“passava sim, o que mais importava, a vida, entregando-lhes a
moeda da experiência”. Atendemos os desvalidos com presteza, e,
protocolos vivos, conhecíamos os processos sob nossas vistas, como o repentista
do sertão memoriza seu canto. Não nos desgarramos da trilha austera por onde a
virtude guia ao Céu, qual o fizeram ANITTA MALFATTI na primeira metade do
século XX, e, na outra metade, o argentino naturalizado brasileiro,
CARYBÉ, desenhando gente simples e cenas do cotidiano em suas pinturas, e
não demonstrações de luxo e do supérfluo. Poderia alguém, desconfiado da
perenidade da seiva desse ideal e desse amor inextinguível, perguntar segredos à
sibila do bosque sobre o que nos moveu a resistir na carreira, velhas árvores a
renovar os galhos e a reviçar as ramas como enfeitiçadas pela Fada Morgana
da lenda celta, embora os agourados futuros recomendassem desistência. É
que, ao contrário dos interessados em ganho,
sucesso financeiro ou outra mola qualquer, gente que a primeira tempestade faz
naufragar a frágil piroga de vida, ou, flor delicada que o primeiro vendaval a faz
despetalada, nós, os Decanos, dávamos cem ilusões por cada realidade, sempre
pelo ideal, e, em todos os dias de trabalho, com alegria e alma de criança que
ganha um brinquedo novo, mesmo no julho glacial da vida, pois, paixão assim não
adoenta.
Consideramos, pois, que o exemplo de protagonismo e
dedicação que nós, os Decanos, apresentamos ao servir por toda a vida útil,
justificou a criação desta Galeria de Retratos, quiçá, um insight capaz de
estimular nos colegas da ativa o arrebatamento, o entusiasmo, o fervor e o
sacerdócio imaculado pelo Ministério Público. As fotografias fixam um
determinado momento ou alguém, e, aqui foram emolduradas para parecerem
atemporais, para naturalizarem o que deve ser eternizado enquanto carregado de
intencionalidades, representando-nos, personagens do amor maior, do infatigável
labor, da devoção e da paixão pela Instituição, até a aposentadoria pela idade ou
à morte, como sucedeu com o Decano Dr. MARIO MOURA ALBUQUERQUE, a
descancelar os áditos da eternidade em 1967, quando integrava lista tríplice em
mãos do Governador, para outro mandato como Procurador Geral de Justiça.
Essa experiência prolongada de amor ao Ministério Público pode ser a faísca
elétrica a acender benfazejas centelhas desse contágio aos mais jovens, como no
sonho do poeta MARTINS FONTES (“Chuva de Estrelas”): sonhei
que as almas são cadentes, estrelas multi refulgentes, embora
efêmeras também, pois, nascem, transfulgem e se apagam,
mas noutros seres se propagam, como essas bólides no além.
Assim é. Sonhando, e, cortejando a literatura, o cinema, essa
fábrica de ilusões que é instrumento de compreensão do próximo, e que às vezes se
faz poesia, revelou uma das contradições que modulam e temperam a vida. Há 21
anos, o ator italiano Massimo Troisi possuía uma lesão cardíaca congênita,
mas representava com ímpeto, e, impressionado pelo livro “Ardiente
paciência”, de ANTONIO SKÁRMETA, sobre o exílio do poeta PABLO
NERUDA na Itália, concebeu o filme “Il Postino – O carteiro e o poeta”,
dirigido por Michael Radford, cujo personagem que ele encarnou, era o
carteiro Mario, a levar correspondência ao poeta. Lutando, moço aos 41 anos,
contra a saúde abalada pelo coração fraco, Troisi esbanjou força de expressão e
sentimento no papel do carteiro, cuja graça com que lutava para expressar-se,
embora a ignorância, para declarar-se à amada Beatriz, tornou o filme
extraordinário, sendo indicado para o “Oscar” de melhor ator. Lutava Troisi para
concluir o filme, mas, traído pelo coração fraco mal parava em pé, sugerindo-lhe
então o Diretor o adiamento das últimas cenas para cuidar da saúde, pois, “um
filme não vale uma vida”, porém persistindo Troisi em trabalhar, replicando
que “esse era o filme de sua vida”. Troisi morreu no último dia de
filmagem, e, se com o seu
coração fraco não ganhou o “Oscar” póstumo de melhor ator (o vencedor foi Mel
Gibson, com o filme “Braveheart – O Coração Valente”), essa superlativa
interpretação de Troisi, do weak heart - o coração fraco, foi coroada com o prêmio
mais destacado: a conquista do coração de milhões de espectadores,
impressionados com sua atuação, pela energia e sentimento que acudiam ao
corpo antes das palavras, emprestando alma àquela vida ordinária do carteiro.
Igualmente, se nós, os Decanos, apaixonados pelo
Ministério Público, não ganhamos prêmio ao passar o bastão ao cabo de uma
vida de servidão ao bem comum, velando pelo patrimônio moral conquistado pela
Instituição e pela operosidade de seus integrantes, fizemo-lo com alma, ardor
e emoção, e tivemos o galardão de ver o fio que costurou as pétalas de todos os
acontecimentos da longa carreira, fechar-se em bela, magnífica e perfumada flor.
Nosso destino foi digno de inveja e para ter essa inexprimível sorte, muitos dariam
a vida, como a rosa no poema de THÉOPHILE GAUTIER, a inspirar a
encantadora encenação de ballet com a música de WEBER, “O espectro da
rosa”, em que a rosa colhida na véspera pela jovem, a enfeitou
e a alindou enquanto presa ao peito, e depois do baile, em
forma de espectro, passou a povoar os sonhos da jovem todas
as noites, pois, engalanar assim a moça, faria invejar os reis.
Para rematar, com SHAKESPEARE, na buliçosa peça
“Medida por medida”: como a natureza só forma grandes almas
para grandes fins, sabíamos que não nos pertencíamos, e, que
nossas qualidades e virtudes não deveriam ficar retidas
conosco, pois, a Providência faz de nós o que fazemos das
tochas, que não é para elas que as acendemos, e, se as
virtudes não irradiassem fora de nós, seria como se as não
tivéssemos.
E sendo as obras, os rastros que os homens deixam enquanto
mal riscam as areias do tempo na vida fugaz, a longa dedicação ao bem comum foi
a rosa que se colou à nossa existência, embelezou, emocionou, enfeitiçou e
marcou esta grandeza definitiva, fazendo-nos granjear o reconhecimento dos
demais membros da Instituição, a ponto de sermos homenageados na
Galeria dos Decanos, à vista de todos, de olhos, corações e mentes, a
representar a perdurabilidade do efêmero carregado de amor, e de amor que, como
VINICIUS DE MORAIS celebrou em sonetos de fidelidade, “pode não ser
imortal posto que é chama, mas deve ser infinito enquanto
dure, pois, o amor é a memória que o tempo não mata, e o
verdadeiro amor de quem se ama, tece a mesma antiga trama,
que não se desfaz”.
José Roberto Dealis Tucunduva
PROCURADOR DE JUSTIÇA DECANO

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