Democracia e webjornalismo

Transcrição

Democracia e webjornalismo
Democracia e
webjornalismo
Uma reflexão sobre o potencial democratizador da
internet e seu impacto sobre a prática jornalística
Georgia Jordan
Novembro 2010
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
Curso de Jornalismo
Monografia lato sensu
Democracia e webjornalismo
Uma reflexão sobre o conceito de democracia aplicado ao jornalismo e o uso das novas mídias na profissão
Autor
Georgia Jordan
Agradecimentos
Prof. Silvio Mieli
Prof. Urbano Nojosa
Prof. Milton Pelegrini
Prof. Pollyana Ferrari
Prof. Sérgio Amadeu
André Deak
Orientação Acadêmica
Prof. Luiz Carlos Ramos
Orientação Gráfica
Prof. Valdir Mengardo
Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes
Índice
Introdução......................................................................................................... 5
Democracia e sociedade da informação ............................................. 8
Webjornalismo e midiativismo .............................................................15
Casos de estudo: Iniciativas de webjornalismo independente
..............................................................................................................................22
Twitter .........................................................................................................26
Global Voices .............................................................................................29
Wikileaks ....................................................................................................33
ProPublica ..................................................................................................35
Spot.Us .........................................................................................................37
Conclusão.........................................................................................................41
Bibliografia .....................................................................................................45
Introdução
Introdução
Os críticos da apologia às tecnologias, e mais especificamente, do que chamam de “evangelismo das mídias sociais”,
dizem, enfaticamente: a revolução não será tuitada. (Gladwell
2010) De fato, não é a tecnologia que é revolucionária, mas o
uso que se faz dessa ferramenta.
Meu objetivo aqui não é escrever um evangelho, mas apresentar as raras formas de uso da tecnologia pelo jornalismo que quebram com os modelos hegemônicos.
Afinal, o furor e os mitos gerados pelas novas tecnologias
de comunicação (NTC), especialmente o da revolução democrático-socialista da Web 2.0 e da morte do jornal(ismo), devem ser questionados. Não deixamos de acreditar, no entanto,
ou ao menos ter esperanças, de que há formas alternativas de
uso dessas NTC, que vão na contramão do que muitos pensadores já detectaram como os efeitos negativos da tecnologia
sobre o humano.
Cheguei a esse tema após escrever uma reflexão sobre
dois textos: “Sobre a passagem de um grupo de pessoas por
um breve período da História e Breve cronologia do movimento”, de Pablo Ortellado, em que descreve a história e práticas do movimento anti-globalização no mundo e no Brasil,
aplicáveis ao jornalismo alternativo; e “The New Socialism:
Global Collectivist Society Is Coming Online”, do editor da
revista Wired, Kevin Kelly, que faz uma análise (um tanto otimista) da evolução da internet para uma ferramenta que
promove um novo ‘socialismo da informação’.
Admito que meu interesse pelo assunto parte de uma motivação um tanto egoísta: minha frustração com o jornalismo
tradicional das mídias hegemônicas e minha esperança de que
um outro jornalismo é, sim, possível. Um jornalismo de maior
relevância social, dissociado de interesses econômicos – tanto
o jornalismo que visa somente o lucro, o maior público, como
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Democracia e webjornalismo
a difusão de discursos que defendem o status quo, as elites das
quais os donos dos jornais fazem parte e seus anunciantes.
“It’s more the business model that limits participation
and disenfranchises the public than the technology itself” 1, diz
um comentário em um blog 2 que critica a ‘cruzada’ do jornalista Malcolm Gladwell contra esse “evangelismo das mídias
sociais”, sobre o desenvolvimento atual das novas tecnologias
de comunicação. O mesmo comentário vale para o jornalismo.
Como afirma o publicista alemão conservador Paul Sethe:
“Como a produção de jornais e revistas requer cada vez mais
capital, o grupo de pessoas com capacidade de publicar os
órgãos de imprensa está se reduzindo constantemente. A liberdade de imprensa é a liberdade para duzentas pessoas
endinheiradas difundirem suas opiniões. Mas aquelas que
por acaso pensam de maneira diferente não têm porventura
o direito de expressar suas opiniões? A constituição lhes confere esse direito, mas a realidade econômica o destrói. Livres
são os ricos e, como jornalistas não são ricos, não são livres.”
(p.41, Martinez 2003)
Apesar disso, é hoje cada vez mais frequente ouvirmos falar da “morte do jornalismo”, afirmação na maioria das vezes
seguida de dados sobre a queda na circulação de jornais e
atribuída à informação gratuita da internet. Isso não aponta
para nada mais além da morte desse modelo de negócios do
“É mais o modelo de negócios que limita a participação e cassa os
direitos do público que a tecnologia de fato.” (todas as traduções
apresentadas neste trabalho serão traduções livres da própria autora)
1
laniwurm, comentário em Russwurm, Laurel L. “Tie Theory”, no
blog Oh! Canada
http://whoacanada.wordpress.com/2010/09/30/tietheory/#comment-333
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Introdução
jornalismo, que não está conseguindo se adaptar às NTC e ao
novo tipo de público que estas estão criando.
É um público – pequeno, mas crescente – que busca uma
informação menos superficial, mais plural, abrangente e contextualizada. Um modelo mais participativo, independente,
ativista e abertamente subjetivo, de maior relevância social.
Como afirma a professora da PUC-SP, Pollyana Ferrari, “a
imprensa precisa reconhecer que os meios mudaram e, com
eles, a produção e recepção da comunicação” (p.24, Ferrari
2010).
Mas a mídia de massas tradicional está caminhando em
uma direção diametralmente contrária, usando as NTC para
extrapolar um mesmo modelo falho de jornalismo, de infotainment, press releases, textos curtos e superficiais, em nome da
notícia em tempo real e da curta capacidade de concentração
do público.
O desafio (meu, de jornalistas, de ativistas) é adaptar a
profissão, as técnicas e as ferramentas tecnológicas para quebrar com o modelo de negócios e a ideologia liberal nas quais
o jornalismo se desenvolveu e está inscrito, de forma a não
limitar a participação e o envolvimento do público, que é o
maior interessado nas consequências deste jornalismo na
sociedade.
Mas o jornalismo não é, por excelência, uma das pilares
da democracia? E a ampliação do acesso às novas tecnologias
não faz parte do progresso desenvolvimentista desencadeado
pelo sistema democrático?
A base de minha tese é a resposta a essas duas perguntas:
não. Nada disso é inerente ao jornalismo e muito menos à
tecnologia. Mas não é impossível retomar esses ideais na prática jornalística, e sim, a tecnologia pode ajudar nisso.
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Democracia e webjornalismo
Democracia e sociedade da informação
Dizem que vivemos na era da sociedade da informação.
Um termo utópico difundido pelo senso comum do discurso
neoliberal da globalização, sob o que o sociólogo francês Armand Mattelart chama de “mito da tecnologia salvadora”, que
se apropria e muda o “sentido dos conceitos de liberdade e de
democracia” em nome de um “determinismo tecnocomercial”.
Para este, “as apologias da ‘sociedade da informação’ [a
promovem] a paradigma dominante da mudança e caução de
um mundo ‘mais solidário, transparente, livre, igualitário’.”
“Grande parte dos teorizadores da ‘sociedade da informação’- que partilha, com os iluministas, da crença de que o
conhecimento tem um carácter auto-formador e emancipatório – tende a pensar que mais informação leva, necessariamente, a um acréscimo no conhecimento.” (Serra 1999)
É do mesmo pensamento, com suas bases iluministas, que
se origina a noção recentemente exposta pelo ministro Carlos
Ayres Britto, do STF: “A imprensa cumpre o papel de buscar a
essência das coisas, tem uma função emancipadora, é irmã
siamesa da democracia”. 3
O potencial emancipatório do conhecimento que as informações do jornalismo permitem está no cerne de nossa
concepção de democracia, onde o acesso ao conhecimento é
um direito inalienável do cidadão. Pelo menos na teoria.
É preciso lembrar que o ideal democrático que conhecemos hoje é fruto de todo um desenvolvimento histórico do
Stangler, Jair. “Judiciário é a maior ameaça à liberdade de imprensa
hoje, diz Ayres Britto.” O Estado de S. Paulo. 26 de novembro de
2010. http://blogs.estadao.com.br/radarpolitico/2010/11/26/judiciario-e-a-maior-ameaca-a-liberdade-deimprensa-hoje-diz-.
3
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Webjornalismo e midiativismo
termo, intimamente ligado à construção do liberalismo, que
nos leva à democracia liberal atual.
Dentro desta mesma tradição liberal, foram se desenvolvendo teorias sobre as comunicações ao longo dos séculos XIX
e XX, que hoje formam nosso conceito do significado do jornalismo. Partindo da linha positivista dos “sistemas de comunicação como agentes de desenvolvimento e civilização” (p.21,
Mattelart 1999), foi se criando um senso comum sobre o
poder emancipatório da informação.
Ao longo do século XX, teóricos voltavam à esta mesma
linha de raciocínio, como os difusionistas dos anos 50 e 60,
que concebiam o desenvolvimento (ou modernização) como
um “tipo de mudança social no qual novas ideias são
introduzidas em um sistema social tendo em vista um
aumento de renda per capita e dos níveis de vida mediande
métodos de produção mais modernos e de uma organização
social aperfeiçoada” (Everett Rogers, p.50, Mattelart 1999,).
“A mídia converteu-se sem mais nem menos em agente da
modernização por excelência, irradiando e difundindo as
atitudes modernas da mobilidade”, diz o sociólogo francês
sobre a linha teórica, que vê a difusão da cultura moderna
pela tecnologia como agente do desenvolvimento das
sociedades.
As primeiras teorias do século XX – que influenciariam os
difusionistas – visam portanto estudar formas mais eficientes,
funcionais de comunicar, partindo de uma visão mais
racionalista, técnica de informação e comunicação.
“A linha funcionalista [das teorias de comunicação de massa] vinda principalmente dos Estados Unidos – preocupada
com uma análise ‘científica’ ou estrutural dos fenômenos de
comunicação e os seus impactos sob o viés da compilação de
dados, dos estudos de massa ou psicologia cognitiva. Tal abordagem tem resultados às vezes entusiastas da tecnologia
pela tecnologia, ou traz recortes limitantes ao não inserir
uma visão mais ampla no campo ideológico ou cultural.”
(p.11, Martinez 2003)
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Democracia e webjornalismo
Um dos principais nomes dessa sociologia funcionalista
da mídia foi Paul F. Lazarsfeld, entre outros, que no
comentário de Mattelart demonstra uma das grandes falhas
destas linhas de pensamento, no entanto:
“Insinua-se a ideia de que uma ciência da sociedade não pode ter por objetivo a construção de uma sociedade melhor,
uma vez que o sistema de democracia realmente existente,
representado pelos Estados Unidos, já está feito.” (p.45,
Mattelart 1999)
A base dessa “sociedade melhor” vem do ideal iluminista,
ignorando as imperfeições que hoje vemos claramente após
séculos de vivência desse modelo ocidental de democracia:
“O ideal do ‘nivelamento’ igualitário, da igualização cidadã,
inspira a proclamação dos direitos humanos, a unificação da
língua pela supressão dos dialetos, a adoção do código civil,
a instauração de dispositivos estatísticos.” (p.26, Mattelart
2002)
Nem todos, no entanto, concordam com essa concepção
da comunicação, que prioriza técnica sobre sentido:
“A sociologia funcionalista concebia mídias, novas ferramentas da democracia moderna, como mecanismos decisivos de
regulação da sociedade e, nesse contexto, só podia advogar
uma teoria voltada para a reprodução dos valores do sistema social, do estado de coisas existente. Escolas de pensamento crítico irão se interrogar sobre as consequências do
desenvolvimento desses novos meios de produção e transmissão cultural, recusando-se a tomar como evidente a ideia
de que, dessas inovações técnicas, a democracia sai necessariamente fortalecida. Descritos e aceitos pela análise funcional como mecanismos de ajuste, os meios de comunicação
tornam-se suspeitos de violência simbólica, e são encarados
como meios de poder e dominação.” (p.73, Mattelart 1999)
E de fato, percebe-se que esse modelo tem como objetivo
a defesa e manutenção do status quo econômico através do
determinismo tecnológico.
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Webjornalismo e midiativismo
“o verdadeiro objetivo da First Ammendment da Constituição americana [que protege a liberdade de expressão e de
imprensa] foi garantir a proteção do ‘monopólio do saber’
exercido pela imprensa. Ao consagrar a liberdade de imprensa, a Constituição sacrificou o direito de as pessoas falarem umas com as outras e de se informarem mutuamente.
Ela substituiu isso pelo direito de ser informado pelo outros,
particularmente pelos profissionais.” (p.72, Mattelart 2002)
Esta visão está diretamente ligada ao modelo liberal de
sociedade e de economia, em uma lógica que transforma a
cidadania em uma questão de consumo, ao valorizar o método
da livre concorrência sobre qualquer outro valor democrático
humanista (Mattelart 1999, p.84).
“No âmbito simbólico, a imprensa cristaliza o ideário da ‘opinião pública’ das sociedades democráticas ocidentais pósRevolução Francesa, onde surge a noção de que o homem,
governado pela razão, é livre para pensar, opinar e, na sociedade de massas capitalista, também comprar.” (p.40,
Martinez 2003)
A própria democracia é uma forma de livre comércio – há
inclusive setores da teoria política que postulam isso, como a
os pensadores da linha minimalista, para os quais são as regras de garantia da livre competição por votos que determinam um regime democrático e portanto, garantem a democracia plena e todos os ideais que esta implica (Schumpeter
1984, Dahl 1997).
O tecnicismo desta definição de democracia é sintomática
de todo uma conjuntura na academia ao longo do século XX de
determinismo técnico e tecnológico, em que a democratização
de um Estado-nação se torna sinônima ao seu
desenvolvimento econômico, modernização tecnológica e
cultural, enfim, sua ocidentalização.
A transformação da informação em mercadoria segue essa evolução, que o sociólogo brasileiro Laymert dos Santos
chama de ‘virada cibernética’, e o que permite isso é a “alcance e abrangência da noção tecnocientífica de informação”.
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Democracia e webjornalismo
“A imprecisão que envolve a noção de informação coroará a
de ‘sociedade da informação’. (...) A tendência a assimilar a
informação a um termo proveniente da estatística
(data/dados) e ver informação somente onde há dispositivos
técnicos se acentuará. Assim, instalar-se-á um conceito
puramente instrumental de sociedade da informação.” (p.71,
Mattelart 2002)
Essa conceituação funciona dentro do discurso da globalização, no entanto, por caber nos ideais de igualdade citados
antes. Laymert dos Santos denuncia esta inversão de valores,
ao afirmar que a sociedade ocidental contemporânea opta
“pela estratégia da aceleração tecnológica e econômica total,
pela colonização do virtual e pela capitalização da informação
genética e digital” em nome do progresso, do futuro, condenando “todas as outras sociedades à integração ao seu paradigma ou ao desaparecimento”.
“Discussões como a democratização da informática e da internet não podem se limitar à exaltação ou à crítica dos novos meios. Isso porque as tecnologias da informação extrapolam imensamente o campo de atuação da mídia e das novas mídias, pois operam – em todos os campos – a codificação e digitalização do mundo ao manipularem a realidade
informacional que permeia a matéria inerte, o ser vivo e o
objeto técnico.” (dos Santos 2003)
O que Laymert defende aqui é uma mudança de paradigma nos modos de ver e pensar as tecnologias. Ele concebe a
globalização como “fruto de uma aliança entre o capital e a
tecnociência”. Segundo ele, “o capitalismo de ponta passa a
interessar-se mais pelo controle dos processos do que dos
produtos, mais pelas potências, virtualidades e performances
do que pelas coisas mesmas”, gerando a “tecnologização da
sociedade” ou virtualização do real – ou seja, um processo de
desumanização e consequente mercantilização do saber e do
próprio ser humano.
Como afirma Jair Ferreira dos Santos, em entrevista à
revista Caros Amigos:
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Webjornalismo e midiativismo
“O sujeito liberal humanista está em declínio. O próprio inconsciente de Freud não tem essa liberdade, por conta de
pressão social. Se observarmos a sociedade contemporânea,
resta apenas o consumo para o exercício de uma suposta liberdade. Na natureza humana, essa liberdade não é tão extensa como a ideologia liberal quer que a gente aceite isso.”
(dos Santos 2007)
Portanto, a deturpação de conceitos como democracia e
liberdade não é nova e nem exclusiva ao discurso neoliberal
da globalização, mas é fruto de todo um processo histórico de
evolução das sociedades e economias liberais, das quais o
jornalismo faz parte.
O que a evolução desse pensamento gerou hoje, no entanto, é um ideal de modernidade “amnésica, isenta de projeto
social” (p.171, Mattelart 2002), em que o progresso tecnológico significa, também, “o fim da ideologia, o fim do engajamento, a negação da política” (p.8, Mattelart 2002).
Como nos lembra outro sociólogo francês, Jean Baudrillard, “estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido” (Serra 1999), e é
exatamente esta a sociedade que o discurso hegemônico nos
vende: da abundância da informação, mas uma abundância
esvaziada de conhecimento. 4
Num mundo em que a concepção de informação (e de
humano) é de um dado, um código, completamente
desprovido de seu contexto, a informação perde seu potencial
emancipatório, uma vez que perdeu a possibilidade de se
traduzir em conhecimento.
Fazendo das palavras de Paulo Serra minhas palavras: “tomamos
aqui ‘informação’ no sentido (...) de ‘conhecimento objectivado sob a
forma de uma mediação’; e, inversamente, ‘conhecimento’ no sentido de ‘informação apropriada subjectivamente mediante um acto de
atribuição de sentido’.” (Serra 1999)
4
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Democracia e webjornalismo
A suposta democratização que a tecnologia gera, portanto, é na verdade apenas a legitimação dos mesmos poderes
sob novas formas de controle.
No entanto, como afirma Mattelart sobre a teorias críticas
da Escola de Frankfurt à cultura industrial, “estreitamente
ligada à nostalgia de uma experiência cultural independente
da técnica”, também não devemos deslegitimar o uso da
tecnologia simplesmente por suas implicações. Dentro desta
conjuntura, e das condições que se apresentam a nós, não é
impossível “fazer o fabuloso potencial das tecnologias da informação e da comunicação escapar da lógica do desenvolvimento desigual e do imperativo de segurança da Global War
para investi-lo em uma sociedade na qual o conhecimento seja
efetivamente compartilhado por todos” (p.9, Mattelart 2002).
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Webjornalismo e midiativismo
Webjornalismo e midiativismo
Como a professora Pollyana Ferrari faz questão de enfatizar, a internet não é um meio de comunicação alternativo,
mas sim um meio de comunicação de massa. E muitas das
críticas que se faz aos modelos tradicionais de comunicação
de massa se aplicam à internet.
Para o professor Sérgio Amadeu, no entanto, “a internet é
melhor que a mídia de massas”5, uma vez que certos aspectos
da rede permitem seu uso de ambas as formas, tanto pelo
modelo tradicional quanto pelo modelo alternativo.
O que seriam esse aspectos? O que define o webjornalismo e o diferencia do que se convencionou a chamar de “jornalismo online”, que limita a internet ao papel de meio de
transmissão? O blogueiro Robert Hernandez 6 explica:
“I look at the latest technology and opportunities only available on the Internet and try to harness them for the advancement and distribution of storytelling and journalism.” 7
Dessa forma, por exemplo, o vídeo deixa de ser uma imposição do meio, como é no telejornalismo, onde muitas vezes
acaba contribuindo para a superficialidade da notícia. No
webjornalismo, o audiovisual é usado somente quando necessário, quando ajuda a contar uma história, como nos frequen-
vídeo de debate durante 1o turno 2010 do “48 horas democracia –
uma cobertura cidadã das eleições”, no dia 2 de outubro de 2010.
http://48hdemocracia.com.br/
5
Hernandez, Robert. “Online journalism or journalism online?” OJR:
The Online Journalism Review. 13 de setembro de 2010.
http://www.ojr.org/ojr/people/webjournalist/201009/1885/
6
“Penso nas últimas tecnologias e oportunidades disponíveis apenas na internet e tento usá-las para o avanço e distribuição de histórias e do jornalismo.”
7
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tes casos de vídeos amadores mostrando a truculência da
polícia durante protestos de rua (desde a greve na USP e a
morte de um jornaleiro durante os protestos do G20 em Londres, em 2009, ao mais recente caso da cavalaria da polícia,
que atacou uma concentração de manifestantes em Londres,
durante os protestos contra a reforma do sistema de ensino
superior no país).
Este é um aspecto em que a internet abre oportunidades
para o jornalista – o multimídia, que permite adaptar o meio
ao conteúdo e não deturpar a notícia para servir ao meio. As
reportagens multimídia nascem dessa busca por atender as
necessidades da história que está sendo contada 8, seja pela
publicação da gravação de uma entrevista citada na reportagem 9, ou a possibilidade de ver na íntegra um depoimento de
um documentário interativo 10, ou hipervídeo.
"O computador também dá origem a novas formas narrativas, tanto jornalísticas quanto literárias, oferecendo recursos de hipertexto, combinando design, texto, foto, vídeo, arte,
infográficos, animação, slide shows, áudio, links, facilitando
a atualização e permitindo a interatividade por meio de
8“O
novo jornalismo meu é o jornalismo multimídia,” disse o jornalista André Deak certa vez, em entrevista.
Como em “Crônica de uma catástrofe”, reportagem multimídia de
André Deak e Paulo Fehlauer para a revista Fórum sobre a catástrofe ambiental no Rio Paraíba do Sul. A matéria (“assunto ignorado
pela mídia tradicional”, como lembra o editor da revista no editorial
da edição) foi publicada tanto no site da revista como em sua versão
impressa, uma vez que “a reportagem ficaria incompleta se publicada apenas no papel...[e] poderia ficar menos visível se apenas divulgada em nosso site”.
9
Como no ganhador do prêmio Vladimir Herzog de 2009 na categoria Internet, “Nação Palmares”, da Agência Brasil.
10
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chats, blogs, quiz, polls, games. Ao contrário da mídia tradicional, é possível conciliar formas lineares e não-lineares na
narrativa multimídia. E atribuir ao mesmo indivíduo as funções de autor, editor, divulgador e distribuidor." 11 (p.75,
Barbosa 2007)
Essas novas oportunidades ao jornalismo se devem ao caráter hipertextual da internet, que entra em confronto direto
com o modelo linear de emissão e recepção da informação
que vemos nos modelos de comunicação de massa tradicionais, retomando a importância do papel do receptor na comunicação.
”O jornalismo está sofrendo os impactos provocados pela
utilização das NTC, como também o leitor, já que estamos
mudando o nosso modo de pensar e se relacionar com o
mundo.” (p.23, Ferrari 2010)
O hipertexto – ‘texto’ aqui implica qualquer tipo de conteúdo comunicacional – reproduz a miríade de conexões que o
cérebro faz entre diferentes informações.
“Texts connect or refer to other texts, either through explicit
connections implanted by the text’s creator, as when a film
director pays homage to a predecessor by copying their signature style, or, less consciously, as the producer of a text inevitably draws on previous cultural codes, experiences and
resources. Moreover, consumers of texts make connections,
too, both those intended by the producer and those unintended ones that maybe they alone see.” 12 (p.82, Bell 2007)
Barbosa cita aqui o livro “Pena de aluguel: escritores jornalistas 1904 @ 2004”, de Cristiane Costa.
11
“Textos se conectam ou fazem referência a outros textos, seja
através de conexões explícitas implantadas pelo criador do texto,
como quando um diretor de cinema faz uma homenagem a um precursor ao copiar seu estilo, ou , de forma menos consciente, quando
o produtor de um texto é inevitavelmente influenciado por códigos
12
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Democracia e webjornalismo
Do mesmo jeito que tecnologias anteriores – como a imprensa de Gutenberg – mudaram nossas formas de pensar e
ver o mundo, percebe-se uma transformação dos processos
cognitivos na sociedade a partir da internet, que apresenta
um “novo modelo de representação e de organização do conhecimento” (Cantoni 2008) que quebra com o modelo linear.
Apesar de seus efeitos negativos (algo que vemos muito
entre as novas gerações, que hoje têm dificuldade em se adaptar ao modelo linear de ensino das escolas, facilmente distraídas pela multiplicidade de informações disponíveis 13), as possibilidades abertas pela hipertextualidade da internet podem
ser “adaptadas, não só adotadas” (p.78, Bell 2007), como afirma o sociólogo espanhol Manuel Castells, uma das principais referências no estudo da sociedade da informação, apesar de ser criticado por muitos por sua apologia das tecnologias.
A apropriação das novas tecnologias pelos usuários – que
deixa de ser mero consumidor – para usos diferentes dos
quais foram criados foi discutido por teóricos como Sherry
culturais, experiências e recursos anteriores. Ainda mais, consumidores de um texto também fazem conexões, tanto aquelas previstas
pelo produtor como outras não-intencionais que talvez só ele vê.”
Paulo Serra descreve bem os problemas da multiplicidade informações de internet hoje, apesar de resolver questões que impediam
a ‘perfeição’ dos primeiros projetos, de inspiração iluminista, de
catálogo e organização de todo o conhecimento humano relevante,
encabeçados pelos Enciclopedistas no século XVIII: sua atualização
permanente, as múltiplas conexões que sua hipertextualidade permite e sua abrangência de temas, que vai além dos ditados pela ‘alta
cultura’. No entanto, escreve Serra, resta ao internauta “navegar às
cegas, saltitando de site para site, de informação para informação,
até deparar com a informação mais fácil, ou a mais atractiva, ou
mesmo a mais chocante”.
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Webjornalismo e midiativismo
Turkle, Maria Bakardjieva e o próprio Castells (Bell 2007)
muito antes da popularização da internet e dessa nova cultura, a cibercultura. Castells chama essa apropriação de “grassrooting the space of flows”, ou ciberespaço, o espaço das redes, dos fluxos; Bakardjieva usa a expressão “use genres” para
descreve esse processo, em que usuários estão “rerouting the
development of cyberculture towards more democratic and
inclusive ends”. 14 Da mesma forma que a tecnologia
transforma nossos processos cognitivos, nós a transformamos
com seu uso diário: “the user isn’t simply configured by tecnhnology; there is a mutual configuring and reconfiguring” 15
(p.40, Bell 2007).
Esse pensamento é retomado por várias vozes mais
otimistas sobre o poder democratizador da internet, como o
editor da revista Wired, referência no setor, Kevin Kelly. No
artigo “The New Socialism: Global Collectivist Society Is
Coming Online”, Kelly discute como o coletivismo inerente à
atual encarnação da internet, a Web 2.0 – em que reina o conteúdo gerado pelos usuários – está criando uma espécie de
“novo socialismo”, onde jovens estão crescendo em uma cultura, “a spectrum of attitudes, techniques, and tools that promote collaboration, sharing, aggregation, coordination, ad
hocracy, and a host of other newly enabled types of social
cooperation” 16 (Kelly 2009).
“reconfigurando o desenvolvimento da cibercultura em direção a
fins mais inclusivos e democráticos”
14
“o usuário não é simplesmente configurado pela tecnologia; há
uma configuração e reconfiguração mútua”
15
“um espectro de atitudes, técnicas, e ferramentas que promovem
a colaboração, o compartilhamento, a agregação, a coordenação, a
ad hocracia, e uma série de outros novos tipos de cooperação social
só agora tornados possíveis”
16
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Democracia e webjornalismo
“the tools of online collaboration support a communal style
of production that shuns capitalistic investors and keeps
ownership in the hands of the workers, and to some extent
those of the consuming masses” 17
Para Kelly, a ‘internet socialista’ representa uma terceira
opção entre o individualismo do livre-mercado capitalista e a
autoridade centralizada do modelo tradicional de estado comunista, mas dentro de uma mesma linha de pensamento que
a do fim das ideologias propagada como parte da utopia pósmoderna da sociedade da informação. “There is one way in
which socialism is the wrong word for what is happening. It is
not an ideology”. 18
Segundo esse pensamento, cada vez mais hegemônico em
nossa sociedade (e que vai além do socialismo – o movimento
ecologista de sustentabilidade é um bom exemplo), o sonho
de ‘mudar o mundo’ não se baseia mais no utopismo de Edgar
Morin, da crença nas instituições globais, mas depende muito
mais da ação individual, à qual a rede dá mais força, ao unir
grupos com afinidades e divergências sobre um valor em comum e disseminar sua voz a um círculo de influência gradativamente maior.
Ao trazer a noção de rede para a realidade dos movimentos políticos por sua vez, o professor da USP Pablo Ortellado
mostra uma forma como essa apropriação da internet pelos
“as ferramentas da colaboração online sustentam um estilo de
produção comunal que é adversa aos investidores capitalistas e
mantém a propriedade nas mãos dos trabalhadores, e até certo ponto, as mãos das massas consumidoras”
17
“Há um jeito em que socialismo é a palavra errada para o que está
acontecendo: Não se trata de uma ideologia.”
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Webjornalismo e midiativismo
usuários pode ser positiva, como uma “cotidianização da luta” 19 (p.22, Ortellado 2004).
“Em vez de buscar atingir diretamente o homem comum que
é indiferente à política ativista, o modelo [da estrutura concêntrica das redes] sugere que se deve buscar as pessoas
mais próximas, para que elas se aproximem cada vez mais
do núcleo ativista e ‘puxem’ consigo as pessoas menos ativas
com as quais têm contato” (p.21, Ortellado 2004)
Mas Ortellado também alerta que, “sem a reflexão sobre
os fins políticos, a lógica das táticas se [autonomiza] e o meio
se [transforma] no fim”, um perigo que vemos com frequência
na política institucional, e que pode facilmente ser aplicada às
reflexões sobre a internet.
“[Habermas] identifica a crise da democracia como devida
ao fato de os dispositivos sociais, que deveriam facilitar as
trocas e o desenvolvimento da racionalidade comunicativa,
ganharem autonomia, de serem administrados como ‘abstrações reais’, fazendo realmente circular a informação, mas
entravando as relações comunicativas” (p.145, Mattelart
1999)
Como vemos no pensamento de Habermas, o alerta não é
novo e atenta para a discussão sobre os meios de comunicação (especialmente de massa) como formas de controle, de
poder. Há o perigo de regredirmos para a máxima de Marshall
McLuhan, “o meio é a mensagem”.
Em seu artigo, Gladwell critica essa cotidianização pela futilidade
e “laços fracos” políticos que gera.
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Casos de estudo:
Iniciativas de webjornalismo independente
Uma das principais contribuições de Castells para o meu
trabalho foi abrir meus olhos para as convergências que a
internet permite.
Muito antes da popularização da internet, Castells já detectou muitas das principais mudanças que esta geraria na
comunicação, uma vez que a sociedade da informação vai além da internet, e Castells discute em sua obra a transformação da sociedade em uma rede global, preceito básico do movimento de globalização.
A principal transformação que Castells identifica é a da
convergência – do tempo e do espaço, dos processos de produção, das pessoas e das informações – que a cultura dessa
sociedade em rede gera, e são as convergências que a internet
permite na prática do jornalismo que quero discutir aqui.
Os principais aspectos que detectei, com base em Castells
e diversas leituras na internet 20, foram a convergência das
mídias (texto, audiovisual, etc.), ou multimídia; a convergência entre emissor e receptor; produtores e consumidores de
conteúdo (a interatividade, o “público ativo” de Downing21, os
“prosumers”); a convergência do espaço global e local (“multimedia culture is at once global (in reach) and local (i.e. perComo o blog do jornalista e pesquisador André Deak, especialmente o post “JORNALISMO MULTIMÍDIA, ONLINE, 2.0, JORNALISMO DIGITAL ETC”, 21 de outubro de 2008.
http://www.andredeak.com.br/2008/10/21/jornalismomultimidia-online-20-jornalismo-digital-etc/
20
21
22
(Downing 2002)
Casos de estudo
sonalized): it is glocal”22 (p.76, Bell 2007)); a convergência
dos tempos em um “presente perpétuo” (“instantaneity is a
form of timeless time. Another is called by Castells desequencing: as a result of living in the multimedia age with limitless
access to streams of live and archived material, as well as ever
more wondrous ways to predict and imagine the future, we
are exposed to a montage of instants wrenched from temporal
context: past, present and future are disassembled and reassembled for us and by us.”23 (p.75, Bell 2007)) .
Há diversas formas em que jornalistas, tanto profissionais
quanto amadores, vêm se apropriando da internet e de suas
convergências. Algumas delas são listadas por André deak em
um post de seu blog:
“Jornalismo multimídia: se utiliza mais de uma mídia (vídeo,
áudio, texto, foto), é multimídia. Multi (várias) + Mídia.
Jornalismo online: é o jornalismo feito na internet, em rede
Jornalismo digital: qualquer jornalismo que não utilize mais
meios analógicos é jornalismo digital, seja vídeo, áudio ou
texto
Jornalismo 2.0: o termo 2.0 surgiu associado à web 2.0, com
vários significados, mas que acabou virando mais ou menos
sinônimo de “jornalismo de redes sociais”. Jornalismo 2.0
pode ser associado portanto ao jornalismo que utiliza essas
“a cultura multimídia é ao mesmo tempo global (em seu alcance) e
local (ou seja, personalizada): ela é glocal”
22
“a instantaneidade é uma forma de tempo eterno. Outra é o que
Castells chama de desequenciamento: como consequência da vida
na era multimídia, com acesso ilimitado a fluxos de material arquivado e em tempo real, além das formas cada vez mais incríveis de
prever e imaginar o futuro, estamos expostos a uma colagem de
instantes arrancados de seu contexto temporal: passado, presente e
futuro são desorganizados e reorganizados por nós e para nós.”
23
23
Democracia e webjornalismo
redes de alguma maneira, normalmente de modo colaborativo
Jornalismo colaborativo (ou participativo): veja acima e abaixo.
Jornalismo cidadão (citizen journalism): jornalismo produzido por pessoas que não são jornalistas profissionais, que
não trabalham com isso no dia-a-dia. Associado ao jornalismo colaborativo ou participativo.
Jornalismo cívico (civic journalism, ou public journalism às
vezes): O jornalismo cívico é um jornalismo engajado com a
comunidade, que tenta transformar o veículo num fórum de
discussão daquele grupo. Tem parentesco próximo com o
jornalismo comunitário.
Jornalismo comunitário: jornalismo feito para a comunidade, pela comunidade. Há quem diga que é um, há quem diga
que é o outro, e quem sustente que se não for os dois juntos
não é.” 24
As novas tendências que vemos hoje no jornalismo com o
advento da internet, portanto, vão além da precarização da
grande mídia de priorizar o tempo real, os textos curtos, o
copia-e-cola de releases e agências, a terceirização, a ‘estagiarização’ das redações, o trabalho gratuito do ‘jornalista cidadão’, a queda na receita de publicidade, onde as grandes reportagens e o jornalismo investigativo são deixados de lado
por serem “caro, trabalhoso, chato”, como no título da matéria
de Branca Vianna na edição de outubro deste ano da revista
Piauí (Vianna 2010).
Até agora, apenas o modelo comercial de jornalismo dos
grandes jornais podia arcar com os custos de um trabalho
Deak, André. “JORNALISMO MULTIMÍDIA, ONLINE, 2.0,
JORNALISMO DIGITAL ETC.” André Deak. 21 de outubro de 2008.
http://www.andredeak.com.br/2008/10/21/jornalismomultimidia-online-20-jornalismo-digital-etc/
24
24
Casos de estudo
mais aprofundado como esse, mas com a crise (por culpa da
internet), estes preferiram investir na quantidade de notícias 25 sobre a qualidade, acreditando ainda num monopólio
que não existe mais, de que são as únicas fontes de informação de seus leitores, como lembra Philip Meyer, autor do livro
“Os jornais podem desaparecer”:
“o velho jornalismo era dominado por um único jornal local
e, mesmo no nível nacional, sempre foram alguns poucos
jornais que não respondiam a ninguém. Com os blogueiros
ou mesmo com outros usos da internet, esta cobrança da
qualidade da informação está vindo e forte. Isto será bom
para o jornalismo, o padrão de qualidade vai ser mais exigente. Grande parte da imprensa está acostumada com o
monopólio da informação e ficou arrogante. A nova mídia
será muito mais humilde e mais disposta a aprender.” (p.2122, Ferrari 2010)
É por essa arrogância que Dan Gillmor, diretor do Centro
Knight de Jornalismo, por exemplo, diz que "professional
journalism's worst enemy may be itself"26 (p.xxvi, Gillmor
2006).
No entanto, vimos se desenvolverem nos últimos anos
novas formas de apresentar informações (multimídia, infográficos interativos), de dar ao leitor o que ele quer (não o infotainment, mas o jornalismo financiado pelo capital cognitivo),
de lidar com as exigências de tempo (tanto o tempo real do
Twitter quanto o eterno presente de reportagens investigativas sobre problemas sistêmicos) e de espaço (os filtros e a-
Lembrando que a notícia, nesse caso, não é nada mais que “um
relato do que as organizações de comunicação ficaram sabendo
recentemente sobre questões de alguma significância ou interesse
para a comunidade específica à qual essa organização serve” (p.43,
Martinez 2003), segundo Jack Fuller, da Universidade de Chicago.
25
26
“o pior inimigo do jornalismo profissional é ele próprio”
25
Democracia e webjornalismo
gregadores de conteúdo, tanto ferramentas quanto pessoas)
de cada história.
Gostaria de discutir alguns exemplos positivos que detectei nos últimos anos.
Twitter
Começarei pelo mais polêmico: o Twitter é uma rede social de microblogs onde as pessoas publicam mensagens de
140 caracteres por vez sobre qualquer coisa que lhes vem à
cabeça. Apesar da maioria das mensagens tratarem de besteiras de adolescentes, eu me tornei uma usuária ávida do serviço a partir do momento que percebi com quantas informações
novas tenho contato.
Críticos dizem que o Twitter apenas propaga o jornalismo
superficial, em que apenas os 140 caracteres da manchete
ganham destaque. Mas o meu uso dos 140 caracteres e da
maioria dos perfis que “sigo” é principalmente para compartilhar links para outros sites, sites que eu normalmente nunca
visitaria, muitas vezes com informações, opiniões e análises
mais aprofundadas que as que eu encontro nos jornais.
Nos meios jornalísticos, o Twitter ganhou fama como uma
forma mais rápida de ficar sabendo de notícias que aconteceram no minuto, como aconteceu no caso da morte de Michael
Jackson, em que a informação correu o mundo primeiro pelo
Twitter antes de chegar à homepage dos grandes portais. O
serviço também é frequentemente usado por jornalistas para
buscar personagens para suas matérias e saber as impressões
das pessoas sobre determinado assunto.
Virou moda no jornalismo brasileiro sempre recorrer ao
Twitter para saber o que as pessoas estão pensando sobre o
assunto do momento – o chamado Trending Topic –, mas isso
reflete nada mais que a falta de dedicação dos jornalistas e
dos jornais, que incentivam esse tipo de jornalismo meiaboca, ignorando o fato de que os usuários da rede social representam uma minoria com acesso à internet num país de
190 milhões de habitantes.
26
Casos de estudo
Um exemplo amplamente citado pelos apologistas das redes sociais são os protestos que surgiram no Irã após as eleições presidenciais no país, que muitos acusavam de terem
sido aparelhadas. Correspondentes internacionais, que não
tinham acesso às informações, acabaram se apoiando no Twitter, de uso limitado entre iranianos devido à baixa inclusão
digital no país, além da censura à internet, para saber o que
estava acontecendo nas ruas, sem checar que muitas vezes, as
mensagens não eram de iranianos mas de pessoas em outros
países do mundo.
O Twitter e o fato de que cada vez menos jornalistas checam suas informações é um excelente exemplo de como a mídia profissional vem abrindo mão de seus princípios básicos
nos últimos anos em nome da adaptação tecnológica.
Mas a culpa não é do determinismo tecnológico, pois é
possível usar a tecnologia para melhorar o jornalismo, não
piorar, mas isso depende de uma transformação no pensamento do e no modelo de jornalismo.
É sim possível, inclusive, usar uma ferramenta tão falha
quanto o Twitter para fazer um bom jornalismo, e o jornalista
veterano Adam Penenberg provou isso em setembro. 27
Penenberg, famoso por ter desmascarado as reportagens
falsas de Stephen Glass, repórter da revista New Republic, em
1998 28, também publicou um livro no início da década sobre
um caso de recall não-feito pela Ford nos anos 90, que causou
Outro exemplo que presenciei foi da jornalista da Reuters Natuza
Nery (hoje da Folha de S. Paulo), que aproveitou a facilidade de comunicação do serviço para entrevistar o ministro do Planejamento
Paulo Bernado, em 1º de outubro.
http://twitter.com/#!/Paulo_Bernardo/status/26079004863,
http://twitter.com/#!/Paulo_Bernardo/status/26079417271,
http://twitter.com/#!/Paulo_Bernardo/status/26081366967
27
28
(Carr 2010)
27
Democracia e webjornalismo
muitas mortes ao longo dos anos devido a um erro no design
de um utilitário Ford Explorer, que fazia com que o carro capotasse facilmente.
Em 2 de setembro de 2010, a Ford foi, pela primeira vez,
responsabilizada por isso, sendo condenada a pagar como
indenização pela morte de uma estrela do beisebol incríveis
US$131 milhões. Penenberg, que ficou sabendo da decisão
através de uma fonte, esperou a notícia aparecer nos portais,
mas quando viu que ela tinha sido ignorada, decidiu cobri-la
ele mesmo.
O jornalista não trabalha em uma redação de diário, mas
escreve especiais para diversas revistas. Devido à momentaneidade da notícia, no entanto, não queria esperar para divulgá-la em uma reportagem. Começou então a “tuitar”, o que
acabou gerando uma matéria de mais de mil palavras, com
informações fatuais e contexto, e até, ocasionalmente, algumas alfinetadas a seus colegas:
“C'mon reporters. Am I only one who thinks $131 MILLION
verdict against FORD in a product liability suit is news??
Dear reporters: You won't get the story by sitting on your
asses surfing Google News or PR Newswire. You have to
make some phone calls.” 29 (Penenberg 2010)
Os “tweets” foram um sucesso, e logo outros veículos publicaram suas próprias matérias, muitas com base no trabalho
“Vamos lá jornalistas. Eu sou o único que acha que um veredito de
US$131 MILHõES contra a FORD em um processo que a responsabiliza por um erro eu um produto é notícia?
29
Caros jornalistas: Vocês não vão conseguir essa matéria sem tirar a
bunda da cadeira, esperando sair no Google News ou no wire da PR.
Vocês precisam fazer ligações.”
28
Casos de estudo
de Penenberg, que pensa em repetir a experiência se a notícia
pedir.30
Perguntei para Penenberg31 por que ele escolheu usar o
Twitter ao invés de um blog, onde poderia publicar um texto
na íntegra, facilitando a leitura. Ele respondeu:
“@zil_chica Wanted to experiment with the form. A blog w
comments much more static than real-time Twitter. RTs led
to morphing of story.” 32
Global Voices
O que Penenberg destaca na sua fala é a importância da
colaboração de seus leitores. E de fato, o jornalismo colaborativo tem se tornado uma tendência positiva para combater a
arrogância do jornalismo profissional:
"We will learn we are part of something new, that our readers/listeners/viewers are becoming part of the process. I
take it for granted, for example, that my readers know more
than I do - and this is a liberating, not threatening, fact of
journalistic life." 33 (p.xxiv, Gillmor 2006)
30
(Jeffries 2010)
13 de setembro de 2010.
http://twitter.com/#!/zil_chica/status/24398888301
31
“Queria experimentar o formato. Um blog com comentários é
muito mais estático que o tempo real do Twitter. Os RTs [‘re-tweets’,
onde outros usuários retransmitem a mesma mensagem] levaram a
uma transformação da matéria”
http://twitter.com/#!/Penenberg/status/24401633193
32
“Aprendemos que somos parte de algo novo, que nossos leitores/ouvintes/público estão se tornando parte do processo. Eu acho
normal, por exemplo, que meus leitores saibam mais do que eu – e
isso é um fato libertador, não ameaçador, da vida do jornalista.”
33
29
Democracia e webjornalismo
Claro que há ressalvas nisso: um exemplo é como vemos
as organizações de imprensa se aproveitando cada vez mais
do trabalho de “jornalistas cidadãos” que, em busca de seus
15 minutos de fama, cedem seu trabalho gratuitamente aos
jornais, à revelia do trabalho pago do profissional.
No entanto, há quem use o potencial agregador da internet para um desenvolvimento positivo do jornalismo, e um
exemplo que encontrei foi o do Global Voices:
“Global Voices is a community of more than 300 bloggers
and translators around the world who work together to
bring you reports from blogs and citizen media everywhere,
with emphasis on voices that are not ordinarily heard in international mainstream media.
Global Voices seeks to aggregate, curate, and amplify the
global conversation online - shining light on places and
people other media often ignore. We work to develop tools,
institutions and relationships that will help all voices, everywhere, to be heard.” 34
Não se trata, portanto, de um empreendimento amador.
Muitos blogueiros brasileiros importantes, por exemplo, estão
representados e são frequentemente citados nas matérias do
Global Voices, que agregam frases de diversas mídias sociais
“O Global Voices é uma comunidade internacional de mais de 300
blogueiros e tradutores que trabalham juntos para trazer informações de blogs e mídia cidadã de todo o mundo, com uma ênfase nas
vozes que normalmente não são ouvidas na mídia mainstream.
34
O Global Voices busca agregar, editar e amplificar a conversa global
online – trazendo à luz lugares e pessoas que outras mídias geralmente ignoram. Trabalhamos no desenvolvimento de ferramentas,
instituições e relacionamentos para ajudar com que todas as vozes,
de todos os cantos do mundo, a serem ouvidas.”
http://globalvoicesonline.org/about/
30
Casos de estudo
diferentes para dar um contexto a notícias que dificilmente se
vê na mídia tradicional.
Um exemplo está na cobertura35 que fizeram sobre o impacto do recente vazamento de telegramas diplomáticos dos
EUA pelo Wikileaks no Brasil, escrita pelo blogueiro Raphael
Tsavkko Garcia 36, que apresenta uma excelente análise do
caso, a partir de comentários políticos e informações oficiais
divulgadas na internet.
A estrutura narrativa dos textos do Global Voices também
é extremamente interessante, pois reflete os novos processos
cognitivos hipertextuais, com seu crowdsourcing (algo como
“uma multidão de fontes”) e sua multiplicidade de links às
informações originais.
Este é outro fator que me interessa muito, uma vez que é
uma forma de explicitar o fazer jornalístico. No jornalismo
tradicional, o leitor vê apenas o produto pronto, sem saber
como se chegou às informações, o que ficou de fora, etc. A
internet muda essa dinâmica, gerando um relacionamento do
que em inglês chamam de accountability (mas também podeGarcia, Raphael Tsavkko. “Brasil: Blogosfera brasileira reage ao
WikiLeaks”, Global Voices português.
http://pt.globalvoicesonline.org/2010/12/02/brasil-blogosferabrasileira-reage-ao-wikileaks/
35
Segundo informações de seu perfil no Global Voices: “Mestrando
em Comunicação (Cásper Líbero), Bacharel em Relações Internacionais (PUCSP), blogueiro e amante da mídia alternativa, Euskal Herria (País Basco), Nacionalismo e Cibercultura.
36
Blog: Tsavkko - The Angry Brazilian [pt];
Colaborador do Trezentos [pt]
Colunista do Diário Liberdade - “Defenderei a casa de meu pai”
Twitter: @Tsavkko
Facebook: Tsavkko”
31
Democracia e webjornalismo
mos falar em transparência) entre leitor e jornalista que não
existe no modelo de jornalismo comercial.
Da mesma forma que Maria Bakardjieva falava em relação
à tecnologia, o público não é incentivado a “’olhar dentro’, se
perguntar como funciona” (p.39, Bell 2007) o jornalismo. Na
internet, a crítica da mídia, no entanto, está se tornando mais
disseminada, e as pessoas estão começando a questionar o
que leem nos jornais e veem na TV. 37
Como afirma Lokman Tsui, no resumo de seu trabalho de
doutorado sobre o Global Voices, pela Universidade da Pensilvânia:
“The Global Voices newsroom, for example, demonstrates
how the internet allows for different kinds of newsroom routines that are designed to bring attention to underrepresented voices, whereas it was previously thought routines
determined the news to be biased towards institutional and
authoritative voices. I argue that these changes in news production challenge us to judge journalistic excellence not only
in terms of objectivity or intersubjectivity, but increasingly
also in terms of hospitality. Roger Silverstone defined hospitality as the “ethical obligation to listen.” Understanding
journalism through the lens of hospitality, the internet presents a unique opportunity as well as poses a radical challenge: in a world where everybody can speak, who will listen? I suggest that in a globally networked world, there continues to be a need for journalism to occupy an important
position, but that it will require a process of rethinking and
renewal, one where journalism transforms itself to an institution for democracy where listening, conversation and hospitality are central values.” (Tsui 2010)
Um exemplo disso foram os vários vídeos feitos por amadores
questionando o episódio da “bolhinha de papel” que foi jogada na
cabeça do candidato José Serra durante a campanha presidencial. A
rede Globo havia informado que se tratava de um objeto maior e
mais pesado, que acabou levando o candidato ao hospital.
37
32
Wikileaks
Casos de estudo
Citei a cobertura do Global Voices da última leva de vazamentos do Wikileaks, mas ele próprio é um exemplo do que
esperamos hoje do jornalismo. O Wikileaks já virou clichê,
mas seu impacto nesses últimos meses não pode ser ignorado.
A transparência e falta de privacidade da internet não afeta mais só o indivíduo que expõe sua vida no Facebook. Cada
vez mais, esperamos de nossos governos e até de corporações
(especialmente depois da crise econômica, causada em parte
por operações financeiras suspeitas de grandes bancos), e o
cidadão vem exigindo um melhor acesso aos dados que lhe
interessam.
Em novembro, o governo britânico anunciou o lançamento do site data.gov.uk, um banco de dados de fácil uso que dá
acesso a todo tipo de informação sobre o governo. Não é mais
preciso ser jornalista para ver contratos de licitação do governo, por exemplo.
“The Government is releasing public data to help people understand how government works and how policies are made.
Some of this data is already available, but data.gov.uk brings
it together in one searchable website. Making this data easily available means it will be easier for people to make decisions and suggestions about government policies based on
detailed information.” 38
O Wikileaks, liderado pelo polêmico e excêntrico australiano Julian Assange, funciona um pouco da mesma forma, pu-
“O Governo está publicando dados públicos para ajudar as pessoas a entender como o governo funciona e como nossas políticas são
criadas. Parte desse dados já é disponibilizado, mas o data.gov.uk
junta tudo isso no mesmo site, onde podem ser pesquisados. Tornar
esses dados facilmente disponíveis ajudará as pessoas a tomarem
decisões e fazerem sugestões sobre políticas governamentais baseadas em informações detalhadas.” http://data.gov.uk/about
38
33
Democracia e webjornalismo
blicando documentos confidenciais em sua forma bruta de
forma facilmente acessível para o internauta. Ao mesmo tempo, no entanto, a organização sem fins lucrativos faz um trabalho jornalístico meticuloso, muitas vezes contando com o
apoio de grandes jornais como The New York Times, The
Guardian, Der Spiegel, Le Monde, etc. para checar fatos e editar
as informações em uma forma publicável.
O impacto dos últimos vazamentos, este ano, tem sido tão
grande que o Wikileaks se tornou uma pedra no sapato para o
governo americano, seu principal alvo nos últimos meses, a tal
ponto que não poderei citar o site da organização porque ele
está fora do ar no momento, tendo sofrido vários ataques de
hackers nos últimos dias e perdido sua hospedagem após a
publicação de telegramas diplomáticos dos EUA.
O curioso é que a mídia, especialmente a americana, vem
repercutindo mais as críticas do governo dos EUA à organização, afirmando que a publicação de dados sigilosos coloca em
risco diversas pessoas e o próprio país, que o teor dos documentos.
Diferentemente do que muitos veículos hoje fazem quando levam um furo, que é publicar as informações sem checálas, a mídia (inclusive parceiros nessa mais recente empreitada, como o NYT) está partindo direto para o ataque, e está
sendo duramente criticada por isso. Como afirma um
blogueiro do site Huffington Post:
“It's sort of strange: here, Assange and his compatriots have
gone to the trouble of doing most of the legwork and has
served up scooplets in the most convenient way possible.
You'd think there might be a little gratitude.” 39
“É meio estranho: Assange e seus compatriotas se deram o trabalho de fazer a maior parte do esforço e lhe deu pequenos furos da
forma mais conveniente possível. Seria muito esperar um pouco de
gratidão?” Linkins, Jason. “WikiLeaks Prompts Orgy Of Media SelfAbnegation”. The Huffington Post. 1 de dezembro de 2010.
39
34
Casos de estudo
Afinal, os jornalistas profissionais não parecem estar fazendo seu trabalho, que é justamente descobrir o que é secreto e de interesse público.
ProPublica
A ProPublica nasceu justamente desse contexto. Como afirmam em seu texto de apresentação:
“ProPublica is an independent, non-profit newsroom that
produces investigative journalism in the public interest. Our
work focuses exclusively on truly important stories, stories
with “moral force.” We do this by producing journalism that
shines a light on exploitation of the weak by the strong and
on the failures of those with power to vindicate the trust
placed in them.” 40
Em abril, a organização recebeu um Puitzer – prêmio máximo do jornalismo americano – pela investigação de 13 mil
palavras, 2 anos e US$350 mil da médica Sheri Fink, doutora
em neurociência, sobre a difícil decisão de médicos de praticar a eutanásia de pacientes em um hospital de Nova Orleans
nos dias imediatamente posteriores à passagem do furacão
Katrina.
A reportagem foi publicada também na revista dominical
do The New York Times, “para obter maior repercussão”
http://www.huffingtonpost.com/2010/12/01/wikileaks-promptsan-orgy_n_790659.html
“A ProPublica é uma redação independente, não-lucrativa que
produz jornalismo investigativo de interesse público. Nosso trabalho foca exclusivamente nas histórias realmente importantes, histórias de “força moral”. Fazemos isso produzindo um jornalismo que
joga luz na exploração dos mais fracos pelos mais fortes e no fracasso daqueles no poder de vindicar a confiança que colocamos neles.”
http://www.propublica.org/about
40
35
Democracia e webjornalismo
(Vianna 2010). As parcerias com jornais, revistas, sites de
notícias e redes de rádio e televisão são frequentes, mas o
conteúdo é livre, e é sempre disponibilizado no site da organização. Inclusive, “a Pro Publica está tentando aumentar o tráfego em seu site para não depender tanto dos parceiros. Até
agora, não teve muito sucesso. Força moral não costuma ser
um grande chamariz de público” (Vianna 2010).
Apesar de não se tratar de um caso de uso específico das
ferramentas da internet, escolhi falar sobre a ProPublica devido à sua preocupação com um jornalismo que não existe
mais na mídia hegemônica e a necessidade deste ser livremente disponível, por se tratar de informações de interesse
público.
Diferentemente de muitas das novas formas de jornalismo que encontrei ao longo dos meses, a ProPublica é quase
careta, profissionalíssima41:
Em sua reportagem, Branca Vianna cita o bem mais antigo e informal Center for Public Integrity, ou CPI, que age como um meiotermo, quase, entre ProPublica e Wikileaks: “A ideia de uma redação
não comercial que colabore com os veículos tradicionais não foi
inventada pela Pro Publica. Ela é a base, há duas décadas, do Center
for Public Integrity, o CPI. Ele foi criado por Charles Lewis, que o
dirigiu por quinze anos e hoje é professor da American University,
em Washington. Lewis é um fundador compulsivo de redações sem
fins lucrativos. Desde 1989, já foram quatro. O CPI, além de produzir
jornalismo, é o que os americanos chamam de watchdog group, um
grupo que monitora instituições de interesse público. Com esse fim,
o centro produz relatórios e livros sobre suas pesquisas. Tudo é
publicado no site. (…)A redação do CPI, barulhenta e movimentada,
parece com ele. Os repórteres são mais jovens do que os da Pro
Publica, vestem-se de maneira mais informal, decoram as baias com
objetos pessoais e pregam avisos de feiras de produtos orgânicos e
shows de música pela sala. Parece mais a sede de uma ong. Mas
ninguém trabalha de graça, e os salários são semelhantes aos da Pro
41
36
Casos de estudo
“Segundo Philip Gourevitch, repórter da New Yorker, a Pro
Publica ‘é uma redação de verdade, chefiada por um jornalista de verdade, com repórteres de verdade. A única coisa
que eles não têm de fazer é administrar um jornal’.” (Vianna
2010)
Também me interessa a forma encontrada para financiar
esse tipo de jornalismo “caro, trabalhoso, chato”. O casal de
bilionários Marion e Herb Sandler, hoje com 80 anos, procuram causas para investir seu dinheiro através de uma fundação em seu nome. Ao ficarem sabendo da “morte” do jornalismo investigativo, “o ramo mais importante para o funcionamento de uma democracia”, do o diretor de redação do
Wall Street Journal, Paul Steiger, decidiram criar a ProPublica,
garimpando e roubando alguns dos melhores nomes do jornalismo americano dos grandes jornais e chamando Steiger para
ser editor-chefe.
“A Fundação Sandler doou 30 milhões de dólares para sustentar os três primeiros anos da Pro Publica. A cada final de
ano o financiamento pode ser renovado por mais doze meses, de tal forma que, se a fonte secar, a redação terá sempre
dois anos para buscar novos patrocinadores. Até agora, a
renovação aconteceu como previsto. O dinheiro está garantido até pelo menos 2013.” (Vianna 2010)
Spot.Us
“Uma das críticas mais comuns à Pro Publica,” afirma
Branca Vianna, “está no fato de seus recursos virem praticamente de uma só fonte. Isso daria poder demais aos Sandler, e
colocaria em risco a continuidade do projeto caso desistam de
Publica. O jornalismo que se produz ali é tido pela imprensa tradicional como confiável e de alta qualidade. Além de colaborar com
todos os grandes jornais, revistas e redes de rádio e televisão, o CPI
se associa também a veículos estrangeiros, como o jornal The Guardian e a BBC.”
37
Democracia e webjornalismo
cacifá-lo. Paul Steiger vem tentando diversificar o financiamento, mas, como parte do patamar de 10 milhões de dólares
por ano, não é fácil achar quem queira contribuir”.
O ‘jornalismo financiado’ coletivamente pelo ‘capital cognitivo’ foi a solução encontrada pelo fundador do Spot.Us,
David Cohn, de 27 anos, ex-colaborador da revista Wired e
mais conhecido na internet pelo pseudônimo digidave, para
esse dilema: o público, ou o próprio jornalista, sugere uma
pauta de interesse para sua comunidade e doa dinheiro para o
jornalista apurar produzir a reportagem.
“Spot.Us is a nonprofit project of the "Center for Media
Change" and funded by various groups like the Knight Foundation. We partner with various organizations including the
Annenberg School of Communications in Los Angeles. (...)
We are an open source project to pioneer “community powered reporting.” Through Spot.Us the public can commission
and participate with journalists to do reporting on important and perhaps overlooked topics. Contributions are tax
deductible and we partner with news organizations to distribute content under appropriate licenses. (...)
We practice the TAO of Journalism - Transparency, Accountability, and Openness” 42
“O Spot.Us é um projeto sem fins lucrativos do “Centro por Mudanças na Mídia”, e é financiado por diversos grupos como a Fundação Knight. (...)
42
Somos um projeto opensource para incentivar ‘reportagens financiadas pela comunidade’. Através do Spot.Us, o público pode comissionar e participar com jornalistas de reportagens sobre temas importantes e talvez ignorados. As contribuições são sujeitas a dedução de impostos e temos parcerias com organizações de notícias
para distribuir nosso conteúdo de acordo com as licenças necessárias.” http://spot.us/pages/about
38
Casos de estudo
Cohn fundou o site “após pesquisar a aplicação do crowdfunding, modelo de financiamento coletivo via internet, ao
jornalismo”. Ele recebeu US$300 mil da Knight Foundation,
“instituição que premia as iniciativas mais inovadoras da mídia” (Branco, Hirata e Salvador 2009), para colocar a ideia em
prática.
Descobri o site através de uma matéria da revista do curso de jornalismo da Abril, a plug, que cita o exemplo do jornalista freelancer Chris Amico, de 23 anos, que “queria retratar
com maior profundidade o impacto da produção de cimento
no sul da Califórnia, assunto que acompanhou enquanto trabalhava em um jornal local” (Branco, Hirata e Salvador 2009).
Após juntar os US$350 dólares necessários para a pauta através de doações no Spot.US, produziu a matéria que acabou
sendo publicada em três jornais locais e um na Finlândia, além do próprio site do Spot.Us.
Durante a apuração, Amico também foi incentivado a blogar sobre o andamento da pauta, recebendo sugestões de internautas e dando maior transparência a seu trabalho. O site
também tem regras rígidas para definir o valor doado para as
pautas, que varia dependendo da experiência do jornalista e
do tamanho da reportagem.
“O site funciona nos moldes de uma rede social. Os jornalistas podem criar perfis, visíveis para outros usuários, em que
publicam pautas e pedem uma quantia para realizá-las.
Quando as doações atingem o total solicitado pelo jornalista, ele recebe um prazo para executar o trabalho. A equipe
do Spot.Us distribui o material para outros veículos e divide
o lucro entre os internautas que financiaram a história. Éditores podem pagar para ter preferência sobre as reportagens, ou obtê-las de graça, sem a exclusividade’,diz o editor
David Cohn”. (Branco, Hirata e Salvador 2009)
Sobre a colaboração com os meios de comunicação tradicionais, no entanto, Cohn sentencia:
“Ele acredita que a crise econômica e o avanço das notícias
gratuitas na internetdeve mudar [a posição dos jornais, que
39
Democracia e webjornalismo
compram poucas matérias do Spot.Us devido às ‘restrições
dos editores dos veículos tradicionais’]. As redações diminuirão e serão obrigadas a decidir se reduzem sua cobertura,
perdendo qualidade e leitores, ou se abrem sua estrutura
para colaboradores externos. ‘As organizações de mídia aprenderão a trabalhar com conteúdos que não estão sob seu
controle editorial direto’, prevê Cohn.” (Branco, Hirata e
Salvador 2009)
40
Conclusão
Casos de estudo
“Não se pode pensar na morte de um certo jornalismo e
no nascimento de outro”, lembra Alex Primo, professor da
UFRGS, no prefácio da coletânea Metamorfoses jornalísticas 2.
De fato, não é o jornalismo que está morrendo, mas apenas o
modelo de negócios que o rege desde sua formação.
"Our core values, including accuracy and fairness, will remain important, and we'll still be gatekeepers in some ways,
but our ability to shape larger conversations - and to provide context - will be at least as important as our ability to
gather facts and report them." 43 (p.xxv, Gillmor 2006)
O futurista Ross Dawson 44 concorda que o jornalista continuará agindo como mediador de um jornalismo “cada vez
mais crowdsourced”, produzido por “hordas de amadores, sob
a supervisão de profissionais”. Ele também diz que a boa reputação de muitos jornalistas, especialistas em suas respectivas áreas, irá assegurar que continuem tendo o respeito e
ganhando o público dos leitores.
Já a professora Pollyana Ferrari afirma: “o papel do Jornalista, o editor da notícia, continua o mesmo e vai continuar.
Não vejo esta ameaça, que apavora centenas de colegas”.45
“Nossos princípios básicos, incluindo precisão e imparcialidade,
continuarão importantes, e continuaremos sendo mediadores, de
certa forma, mas nossa capacidade de moldar discussões maiores –
e fornecer contexto – será no mínimo tão importante quanto nossa
habilidade em apurar fatos e reportá-los.”
43
Sinclair, Lara. “Newspapers gone by 2022 says futurist”. Site do
jornal The Australian. 24 de agosto de 2010.
http://www.theaustralian.com.au/business/media/newspapersgone-by-2022-says-futurist/story-e6frg996-1225909450033
44
“ENTREVISTA: POLLYANA FERRARI”, no blog André Deak, 5 de
dezembro de 2007.
45
41
Democracia e webjornalismo
Ela diz ainda: “na Internet ninguém é fiel a um endereço
apenas”. 46 Essa característica aberta da internet é apenas uma
extrapolação de algo que já existia no mundo não-virtual, no
entanto:
"Lemos o [Wall Street] Journal para cobertura de negócios, o
[New York] Times para relações exteriores, o [Washington]
Post para política de Washington e [a revista] New Yorker
para críticas de cultura. (...) Essas discriminações sutis operam como uma espécie de filtro da informação, um filtro que
construímos para nós mesmos cada vez que buscamos informação numa fonte e não em outra. Ao longo da próxima
década, essa costura de diferentes notícias e fontes de opinião vai se tornar pouco a pouco um tipo de jornalismo por si
mesmo, uma nova forma de relatar que sintetiza e digere a
grande massa de informação disseminada online a cada dia
(...) Isso deveria ser estímulo para qualquer pessoa interessada num modelo mais independente, e é mais um indício da
ampla influência da janela digital e seus rebentos." 47
Esse modelo mais aberto e independente não é inerente à
internet, apesar de parecer sê-lo no discurso de apologistas. O
modelo tradicional ainda vigora, e não está necessariamente
perdendo espaço para a internet, pois ele é e está na internet,
e usando-a muito bem ao seu favor.
http://www.andredeak.com.br/2007/12/05/entrevista-pollyanaferrari/
“ENTREVISTA: POLLYANA FERRARI”, no blog André Deak, 5 de
dezembro de 2007.
http://www.andredeak.com.br/2007/12/05/entrevista-pollyanaferrari/
46
Citação da p.78 do livro Cultura de interface, de Steven Johnson
(p. 80, Barbosa 2007)
47
42
Casos de estudo
“A informação deve poder circular. A sociedade da
infomação só pode existir sob a condição de troca sem
barreiras. Ela é por definição incompatível com o embargo
ou com a prática do segredo, com as desigualdades de
acesso à informação e sua transformação em mercadoria.”
(p.66, Mattelart e Mattelart 1999)
A internet só se torna democrática a partir do momento
em que se torna um hábito do internauta usá-la para buscar a
informação, ao invés de esperar que ela chegue até ele – algo
que continua acontecendo mesmo com a internet e todas suas
novas ferramentas, como por exemplo, as redes sociais.
A revolução democrática da internet é o internauta perceber, não só que qualquer um pode publicar, mas que qualquer um pode pesquisar no Google, pegar o telefone, ligar pra
uma fonte, seja assessoria de imprensa ou o CEO da companhia, pegar a informação e repassar ele mesmo. E é isso que
faz um jornalista.
Como bradou o professor Sérgio Amadeu durante a vigília
do 48 horas democracia 48, "o jornalismo foi a primeira atividade política remunerada". É raro, mas o que vemos na internet hoje são iniciativas retomam essa noção de jornalismo
como ativismo político, devidamente valorizado, remunerado
e profissionalizado.
E isso não depende de uma ferramenta revolucionária.
Depende de uma revolução do pensamento.
vídeo de debate durante 1o turno 2010 do “48 horas democracia –
uma cobertura cidadã das eleições”, no dia 2 de outubro de 2010.
http://48hdemocracia.com.br/
48
43
Democracia e webjornalismo
44
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