Português - ActionAid Brasil
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Campanha pela Justiça no Comércio INVASORES DO COMÉRCIO A OMC e o “direito à proteção” dos países em desenvolvimento Título original em inglês Trade Invaders: The WTO & developing countries’ ‘Right to Protect’ Conceituação e coordenação: Adriano Campolina e Aftab Alam Khan. Autor: Mark Curtis. Colaboradores: Aftab Alam Khan, Angela Wauye, Anna Antwi, Buba Khan, Hannah Crabtree, James Kintu, John Moru (in memoriam), Louise Hilditch, Mustafa Talpur, Mariano Iossa, Mausumi Mahapatro, Moussa Faye, Nasir Aziz, Sam Goddard, Tim Rice, Toby Gethin, Tom Sharman, Tony Durham, Mukul Sharma e Umi Daniel. Contribuições de pesquisa dos seguintes programas de países da ActionAid: Brasil, Gana, Índia, Paquistão, Nigéria, África do Sul e Gâmbia. Apoio editorial: Nicola Peckett Apoio de arquivo fotográfico: Chryssa, David San Millan Del Rio e Laurence Watt. Projeto gráfico e produção: ARSHA, Islamabad Este relatório é resultado de um esforço coletivo da equipe da ActionAid Internacional, que contou com a participação de muitas pessoas. Agradecemos a contribuição de todas as pessoas e programas de países envolvidos no processo. Tradução e edição em português sob a coordenação da ActionAid Brasil Tradução: Jones de Freitas Revisão final: Sonia Aguiar Diagramação: PSIKHE Rio de Janeiro, Brasil Esta publicação pode ser utilizada de qualquer forma. Sinta-se à vontade para citar, traduzir, distribuir e transmitir. Por favor, dê crédito à fonte. ISBN 89473 Edição em português - 2007 Índice Siglas e abreviaturas Prefácio Resumo executivo Capítulo 1: Visão geral À beira da crise O que querem os países ricos A experiência de liberalização no mundo em desenvolvimento Tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento Bloqueando as propostas atuais 4 5 6 9 9 9 11 15 16 Capítulo 2: O comércio de alimentos e o perigo de ampliar a liberalização 19 Capítulo 3: A ameaça da desindustrialização 33 Capítulo 4: Serviços: a nova fronteira da liberalização 45 Os efeitos da liberalização comercial na agricultura As negociações atuais Acesso ao mercado agrícola Ajuda interna Subsídios às exportações Tratamento especial e diferenciado As recomendações da ActionAid O que querem os países ricos O impacto da liberalização industrial As negociações atuais Reduzindo tarifas Iniciativa setorial Tarifas consolidadas Tratamento especial e diferenciado As recomendações da ActionAid O que querem os países ricos Os efeitos da liberalização dos serviços As negociações atuais Padrão de referência Modo 4 As recomendações da ActionAid 20 22 23 24 26 26 29 33 34 38 39 39 40 40 42 45 47 49 49 52 53 Siglas e abreviaturas* ACP Países Africanos, Caribenhos e do Pacífico African, Caribbean and Pacific countries GATS Acordo Geral sobre Comércio de Serviços General Agreement on Trade in Services NAMA Acesso a Mercados para Produtos Não Agrícolas Non-Agricultural Market Access FAO Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação Food and Agriculture Organisation of the United Nations ESF Fórum Europeu de Serviços European Services Forum FMI IMF Fundo Monetário Internacional International Monetary Fund FDI Investimento Direto Estrangeiro Foreign Direct Investment SSM Mecanismo de Salvaguarda Especial Special Safeguard Mechanism OCDE OECD Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômicos Organisation for Economic Co-operation and Development OMC WTO Organização Mundial do Comércio World Trade Organization ONG NGO Organização Não Governamental Non-Governrnental Organisation CAP Política Agrícola Comum** Common Agricultural Policy SP Produto Especial Special Product LDC Países Menos Desenvolvidos Least Developed Countries SSG Salvaguarda Especial Special Safeguard SDT Tratamento Especial e Diferenciado ‘Special and Differential Treatment TRIMs Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio Trade Related Investment Measures UNCTAD Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento United Nations Conference on Trade and Development UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância United Nations Children’s Fund UNRISD Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social United Nations Research Institute for Social Development * As siglas em negrito correspondem à versão oficial ou ao uso em português. (N. do T.) ** Política da União Européia (N. do T.) Prefácio Quanto mais se aproxima a conclusão da rodada de negociações de Doha na OMC (prevista para o final de 2007), mais os países ricos pressionam as nações mais pobres a adotarem o livre comércio global. Ao mesmo tempo, os EUA e a União Européia têm resistido aos pedidos para fazerem cortes significativos nos subsídios agrícolas que concedem a seus agricultores. Além disso, em troca de qualquer corte oferecido – não importa o tamanho – querem que os países em desenvolvimento assumam o compromisso de abrir seus mercados a seus produtos industriais e serviços. A ActionAid acredita que essas práticas levaram ao ridículo essa rodada de negociações, lançada em Catar, em 2001. Chamadas de “rodada de desenvolvimento”, essas negociações tinham como objetivo atingir um acordo que ajudasse a trazer os benefícios do comércio global para as nações mais pobres do mundo. Porém, longe de aliviar a pobreza e trazer o desenvolvimento econômico, acreditamos que o resultado dessa negociação, no estado em que se encontra atualmente, poderia ameaçar os meios de subsistência de milhões de pessoas nos países africanos, asiáticos e latino-americanos, onde trabalhamos. Como mostra este relatório, quando produtos importados baratos e subsidiados da Europa são comercializados na forma de dumping em países como Gana e Gâmbia, as pessoas que mais sofrem são justamente aquelas às quais o “livre” comércio teria de ajudar. Como demonstram nossas histórias da vida real, as fábricas fecham, as terras ficam sem cultivo, os empregos são perdidos e a pobreza se aprofunda. Esta é a razão pela qual exigimos não somente o fim imediato dos subsídios agrícolas nos países ricos, como também que os países pobres tenham o direito de proteger os meios de subsistência de seus pequenos agricultores e a segurança alimentar da população em geral. Além disso, cremos que, apesar do que os países ricos exigem, os países pobres devem ter o direito de liberalizar seus setores de indústria e serviços somente quando assim o desejarem. Como ficou claramente demonstrado pelas experiências dos trabalhadores têxteis da Nigéria e das comunidades da África do Sul afetadas pela privatização da água, são as pessoas pobres que mais sofrem atualmente, e continuarão a sofrer, com a proliferação das regras de comércio injustas. Portanto, achamos que os países em desenvolvimento devem ter o direito de proteger seu “espaço político” no sistema de comércio multilateral, para que possam desenvolver, como acharem apropriado, seus setores de agricultura, indústria e serviços, da mesma forma que os países industrializados de hoje fizeram quando estavam se desenvolvendo. Nosso relatório explica em mais detalhes o que acontece com as pessoas pobres, sejam elas plantadores do milho da África do Sul, produtores de leite do Brasil ou tecelões de seda da Índia, quando esse direito à proteção lhes é negado. Como parte do movimento global pela justiça no comércio, continuaremos a fazer campanhas por esse direito, para que os meios de subsistência de milhões de pessoas pobres de todo o mundo não sejam ameaçados pelas táticas de intimidação dos países ricos. Os países em desenvolvimento, especialmente os grupos como o G-20, G-33 e G-90 que os representam, devem exigir um resultado das negociações que verdadeiramente fomente o desenvolvimento. Ramesh Singh Diretor Executivo ActionAid Internacional Resumo executivo “A terra onde plantávamos arroz está hoje sem cultivo e é usada como campo de futebol. Não conseguimos sobreviver. Estamos sendo forçados a competir nos mercados do exterior. É como se nosso time de futebol sub-20 enfrentasse o Manchester United.” John Ayariga, plantador de arroz, Bolgatanga, Região Leste Setentrional, Gana. “Como não há trabalho, fico aqui sentado, pedindo esmola.” Vishambar, 35, ex-tecelão, Varanasi, Índia. “Isso tem nos afetado tanto… Agora, pensamos duas vezes … se compramos pão ou economizamos para pagar a água.” Jennifer Makoatsane, 34, cliente de empresa de água privada, Soweto, África do Sul. “Há um movimento poderoso na produção de leite e laticínios que... leva à exclusão dos pequenos agricultores.” Sérgio Antônio Görgen, produtor leiteiro, Brasil. Entre as pessoas mais pobres do mundo, a subsistência de milhões está ameaçada pelas negociações que se realizam neste momento, em preparação para a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio, em Hong Kong. Os países ricos procuram novos mercados de exportação para sua produção agrícola, produtos industriais e serviços. Eles querem que todos os países – inclusive os mais pobres – assinem novos compromissos comerciais que irão abrir suas economias ainda mais à competição internacional. Uma pesquisa da ActionAid mostra que as atuais medidas de liberalização comercial já estão afetando as pessoas pobres em muitos países em desenvolvimento. Se essa ação dos países ricos não for detida, a pobreza e a desigualdade podem aumentar em muitos países onde trabalhamos. • • Na Gâmbia, importações baratas de frangos, ovos, leite e arroz invadiram o mercado, baixando os preços e levando muitos produtores locais à falência. Na África do Sul, a eliminação de tarifas e subsídios levou muitos pequenos agricultores, principalmente produtores de milho, a abandonarem sua atividade. Entre 1993 e 2002, o número de unidades agrícolas comerciais caiu 21% e a força de trabalho agrícola foi reduzida em 14%. • No norte de Gana, o mercado foi inundado pelo arroz barato subsidiado. A maior parte dos agricultores não ganhou nada com as plantações de arroz nos últimos anos e, em 2002 e 2004, dois terços deles perderam dinheiro. • No Brasil, a eliminação das barreiras comerciais tem permitido que corporações multinacionais expulsem do mercado os pequenos produtores de leite, ameaçando sua única alternativa de subsistência quando há quebra das colheitas. • A eliminação de tarifas sobre as importações têxteis forçou o fechamento de 20 fábricas na Nigéria, com uma perda de 16.000 empregos. Outras 18 fábricas estão ameaçadas de fechamento. Desde 1998, foram perdidos quase dois terços dos empregos no setor. • Na Índia, as reduções das tarifas de importação de produtos industriais, como têxteis e couro, resultaram numa onda de produtos importados baratos e no fechamento de muitas empresas. Quase 500 fábricas foram fechadas em 2004. • Na África do Sul, a privatização do abastecimento de água resultou no corte de água de meio milhão de pessoas por não pagamento das contas, durante um trimestre de 2001. Também foram registrados surtos de cólera, quando as famílias passaram a usar a água de rios poluídos. • No Paquistão, a crescente competição estrangeira no setor pesqueiro está expulsando do mercado 300.000 pescadores e pescadoras locais. Alega-se que a liberalização comercial é um caminho para os países em desenvolvimento conseguirem sair da pobreza. No entanto, há evidências de que uma liberalização comercial prematura pode causar retrocessos no desenvolvimento e que experiências como a de Vishambar, Jennifer e Sérgio (citados no resumo executivo) podem se tornar cada dia mais comuns. Assim, acreditamos que os países pobres devem ter o direito de proteger suas economias frágeis da devastação infligida pela competição global. Negociações sobre a agricultura Os EUA e a União Européia (UE) alegam ter cortado seus subsídios agrícolas ao longo dos anos. Porém, na realidade, não houve nenhuma redução substancial. Apesar de suas ofertas recentes de cortes de subsídios, pretendem continuar como antes, simplesmente retirando seus subsídios de uma categoria ou “Caixa” e os realocando em outra. Segundo estimativas da ActionAid, os EUA concedem subsídios agrícolas de US$ 25 bilhões por ano. No entanto, após a implementação de sua proposta atual, ainda dariam US$ 17-27 bilhões anuais. Da mesma forma, a UE fornece cerca de € 64 bilhões anuais e com a atual proposta ainda daria € 55-58 bilhões. Portanto, estas propostas recentes não passam de ilusão. Além disso, os EUA estão evitando qualquer compromisso autêntico de redução de seus subsídios ao algodão, enquanto 10 milhões de plantadores de algodão pobres continuam a sofrer na África Ocidental e suas demandas por justiça são ignoradas. Os países desenvolvidos também resistem aos pedidos dos países em desenvolvimento para isentarem colheitas alimentares vitais (Produtos Especiais) das reduções tarifárias e garantir um sistema (conhecido como Mecanismo de Salvaguarda Especial) para enfrentarem surtos de importações agrícolas. Ainda mais, os países desenvolvidos introduziram uma nova categoria de “produtos sensíveis” nas negociações, para protegerem seus próprios mercados. Negociações sobre industrializados Nas atuais negociações sobre o acesso ao mercado de produtos não-agrícolas (NAMA, na sigla em inglês), os países ricos estão pressionando para conseguir grandes reduções de tarifas sobre produtos industrializados importados nos países em desenvolvimento, alegando que isso é do interesse dos países em desenvolvimento. Entretanto, as tarifas industriais cumprem um papel importante na proteção de indústrias nascentes, criando empregos e enfrentando problemas no balanço de pagamentos. Na verdade, quando os países que hoje são ricos estavam se industrializando utilizavam tarifas para conseguir exatamente isso – como também fizeram a Coréia do Sul e Taiwan, mais recentemente. Negociações sobre serviços Nas negociações do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, na sigla inglesa), os países pobres sofrem pressões para abrirem seus “Queremos liberalizar o comércio e desenvolver mercados onde possamos vender produtos e serviços europeus. As negociações multilaterais [OMC] oferecem a melhor oportunidade para realizar isso.” Peter Mandelson, Comissário de Comércio da UE, 2 de julho de 2005. “Os EUA … serão os mais beneficiados por reformas ousadas de liberalização comercial.” Robert Portman, Representante de Comércio dos EUA, 21 de setembro de 2005. “Quando chegar o momento decisivo, a [UE] …será fortemente influenciada pelo grau de ambição de todos os membros da OMC em relação ao NAMA e aos serviços. Certamente não haverá nenhum acordo sobre a agricultura a menos que (e até que) haja um resultado equilibrado em todos os setores.” Peter Mandelson, Comissário de Comércio da UE, 10 de outubro de 2005. INVASORES DO COMÉRCIO setores de serviços aos exportadores estrangeiros. Nada nessas negociações – nem mesmo serviços essenciais, como abastecimento de água, educação e saúde – está excluído de possível liberalização. Os países desenvolvidos também pressionam para substituir um processo voluntário por outro que exija compromissos mínimos de todos os países. No entanto, resistem às demandas dos países em desenvolvimento para a liberalização das regras de movimentação internacional dos trabalhadores. As recomendações da ActionAid Está claro que as atuais negociações não levarão a um resultado verdadeiramente a favor do desenvolvimento na Rodada de Doha, pois não levam em conta as necessidades das pessoas pobres. Se o acordo final for algo como o que está atualmente na mesa de negociação, a ActionAid acredita que os países pobres devem assumir uma atitude histórica e rejeitá-lo. Os países desenvolvidos devem parar de forçar as nações mais pobres a liberalizar suas economias e permitir que os países em desenvolvimento escolham suas próprias políticas em seu próprio ritmo. Acreditamos que todos os países pobres têm o direito de proteger suas economias e que é inaceitável qualquer coisa que não seja o reconhecimento pleno desse direito. Mais especificamente, recomendamos que: • os países desenvolvidos anunciem uma data próxima para a eliminação genuína de todos os subsídios domésticos à exportação que distorcem o comércio; • os países em desenvolvimento tenham acesso significativo e substancial a Produtos Especiais e a um Mecanismo de Salvaguarda Especial; • os subsídios dos EUA ao algodão sejam imediatamente eliminados, para não por em risco a subsistência de 10 milhões de plantadores de algodão na África Ocidental. Além disso, os agricultores já afetados devem ser indenizados por suas perdas; • os países em desenvolvimento tenham o direito de escolher quais produtos industriais desejam expor à competição estrangeira e não sejam forçados à liberalização quando esta é contrária a seus próprios interesses; • os países desenvolvidos parem de forçar os países pobres a liberalizarem seus setores de serviços; • serviços públicos – como abastecimento de água, educação e saúde – sejam explicitamente excluídos de compromissos de liberalização; • os países em desenvolvimento tenham acesso a tratamento especial significativo para proteger suas frágeis economias da concorrência estrangeira; • nenhum compromisso de país desenvolvido deve depender de compromisso de países em desenvolvimento com outros acordos. Capítulo 1 Visão geral As decisões tomadas pelos negociadores do comércio nas próximas semanas vão afetar a vida de milhões de pessoas em todo o mundo. As negociações realizadas na Organização Mundial do Comércio representam uma grande ameaça para os países em desenvolvimento e, especialmente, para as pessoas pobres. Os países ricos estão utilizando seu poder para assegurar novos mercados para as suas exportações de produtos agrícolas, produtos industriais e serviços. O principal objetivo é pressionar todos os países, incluindo aqueles mais pobres e menos desenvolvidos, para que adotem novos compromissos de liberalização nessas três áreas de comércio e abram ainda mais suas economias à competição internacional. A menos que consigamos deter essas pressões, a pobreza e a desigualdade podem ser aprofundadas em muitos países pobres. À beira da crise Neste relatório, a ActionAid apresenta novas análises e estudos de caso mostrando como os pobres estão sendo prejudicados pelas atuais medidas de liberalização comercial, por que qualquer novo acordo de liberalização pode ser desastroso para as pessoas pobres e por que as atuais pressões dos países ricos por mais liberalização precisam ser detidas. A ActionAid acredita que há uma necessidade urgente de interromper essas negociações comerciais e de avaliar a situação, analisando todas as áreas de negociação a partir de uma perspectiva de desenvolvimento e em favor das pessoas pobres. As negociações devem levar em conta as necessidades das pessoas pobres e, para que isso aconteça, todos os acordos precisam ser reorientados: no lugar de buscarem a “liberalização progressiva” nos países em desenvolvimento, eles necessitam manter o foco no “direito à proteção”. Em outras palavras, precisam promover políticas que protejam as frágeis agricultura e indústria dos países em desenvolvimento da devastação da competição internacional e, em contrapartida, as incentive. Este enfoque não é excessivamente idealista; na verdade, está em sintonia com o que muitas organizações internacionais, acadêmicos e os próprios países em desenvolvimento vêm exigindo. Em 2001, depois da reunião ministerial da OMC em Doha, os países membros adotaram uma declaração afirmando que “a maioria dos membros da OMC é de países em desenvolvimento” e que os países vão “procurar colocar suas necessidades e interesses no centro do Programa de Trabalho adotado nesta declaração”. Este objetivo está longe de ser alcançado no estágio atual das negociações. De fato, as negociações não apenas têm falhado na promoção do desenvolvimento, como também estão à beira de contribuir para aumentar ainda mais os níveis de pobreza nos países em desenvolvimento.1 Caso o acordo final seja parecido com o que está atualmente na mesa de negociações, a ActionAid acredita que os países pobres na OMC devem assumir uma postura histórica e rejeitá-lo. As nações desenvolvidas devem parar de forçar os países mais pobres a implementarem a liberalização e permitir que os países em desenvolvimento tenham o direito de escolher suas próprias políticas e de pô-las em prática no seu próprio ritmo. O que querem os países ricos Em discursos e publicações, os líderes dos EUA e da UE têm esboçado explicitamente suas metas básicas para as atuais negociações da OMC. Por exemplo, o Comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, afirmou em julho de 2005: “Desejamos liberalizar o comércio e desenvolver mercados nos quais possamos vender bens e serviços europeus. As negociações multilaterais [da OMC] oferecem a maior oportunidade para isso.”2 Ele também tem afirmado INVASORES DO COMÉRCIO que a meta primária da União Européia é “abrir os mercados aos bens industriais, agrícolas e de serviços, inclusive [nas relações comerciais] entre países em desenvolvimento”.3 Além disso, Mandelson tem dito que as metas da UE são ambiciosas e eles querem “reduzir as barreiras comerciais tarifárias e não-tarifárias em todos os países em condições de fazê-lo e ajudar os que precisem de uma integração mais progressiva à economia global”.4 Em artigo no Financial Times, Mandelson também declarou que a questão-chave das atuais negociações era um compromisso de todos os países de “oferecerem oportunidades de negócios novas e reais aos agentes econômicos de outros países, sejam da indústria, agricultura ou serviços”.5 Em relação aos EUA, o Representante de Comércio, Robert Portman, afirmou: “A promessa dessas negociações globais de comércio só poderá ser plenamente cumprida com uma ambição profunda e equilibrada nas três áreas essenciais de acesso ao mercado: agricultura, produtos industriais e serviços.”6 Em setembro de 2005, Portman também dizia que as atuais negociações eram “uma oportunidade de melhorar significativamente o acesso ao mercado para nossos produtos em todo o mundo”. Candidamente, ele acrescentou: “Os EUA já são o país desenvolvido mais aberto e seremos os mais beneficiados por reformas ousadas de liberalização comercial.”7 A invariável retórica do desenvolvimento das autoridades está em contradição com as posições reais assumidas pelos países desenvolvidos nas negociações. Embora os governos dos países desenvolvidos tenham este ano tentado aparecer como os grandes defensores da África, suas delegações nas negociações recentes da OMC em Genebra têm promovido fortemente uma agenda baseada nos interesses das grandes empresas. Todas as negociações nas áreas de agricultura, produtos industriais e serviços ameaçam abrir as economias dos países em desenvolvimento ao controle das corporações baseadas no Norte. Grupos empresariais desenvolvem um trabalho forte de lobby pelo “sucesso” de compromissos de liberalização profunda. Por exemplo, em setembro de 2005, seis grandes grupos empresariais da União Européia, Canadá, México, Japão e Austrália emitiram uma declaração conjunta alertando que as negociações “estavam à beira do colapso”. Defendendo “reduções profundas e abrangentes de tarifas” nos produtos industriais, afirmavam que um fracasso em chegar a um acordo em Hong Kong “poderia trazer sérias conseqüências para 10 VISÃO GERAL o crescimento e o desenvolvimento econômico em todo o mundo e tem o potencial de afetar criticamente o aspecto essencial da atual rodada”.8 Organizações como a Unice (a federação européia dos empregadores), a Mesa-Redonda dos Industriais Europeus (que reúne as corporações transnacionais mais influentes da UE), a EuroComércio (que representa as empresas varejistas e atacadistas da UE), o Fórum Europeu de Serviços (representando as empresas de serviços), o Diálogo Empresarial Transatlântico (representando as principais corporações da UE e dos EUA) e a Câmara Internacional de Comércio estão todas fazendo forte pressão política em Bruxelas e/ou Washington, buscando uma liberalização abrangente nos serviços, investimentos, produtos agrícolas e industriais, assim como nas aquisições governamentais, e o estabelecimento de ambientes favoráveis aos investimentos em outros países.9 A boa notícia é que as negociações estão efetivamente paralisadas na maioria das áreas, embora haja risco de “acordos” injustos serem fechados com desvantagens para os países em desenvolvimento, tanto por causa da pressão que recebem quanto por divisão entre eles ou, ainda, porque considerem a melhor alternativa numa situação ruim. A notícia ruim é que os países desenvolvidos vão certamente utilizar seu poder de várias formas. Os países ricos, especialmente na UE, atualmente se recusam a eliminar seus subsídios agrícolas domésticos à exportação até que os países em desenvolvimento concordem em liberalizar ainda mais produtos industriais e serviços.10 Os grupos de países desenvolvidos têm alertado que, a menos que os países mais pobres façam ofertas melhores de liberalização nas negociações sobre serviços, “as negociações de Hong Kong vão fracassar”.11 Outro risco é que os países em desenvolvimento sejam “subornados” com promessas de “ajuda para o comércio” – ou seja, de receber ajuda para melhorar seu desempenho comercial, desde que se comprometam a aprofundar a liberalização. Embora esta ajuda seja certamente necessária, seus termos vão determinar se vale a pena. Por exemplo, o preço será demasiado alto se a ajuda simplesmente capacitar os países pobres a implementar acordos aos quais se opõem – e por boa razões. Os países ricos continuam opondo-se às reivindicações dos países mais pobres do mundo por um tratamento mais justo e regras diferentes. Na verdade, como aconteceu nas reuniões ministeriais anteriores da OMC em Doha (2001) e Cancún (2003), a agenda dos países ricos opõe-se abertamente ao que reivindicam os governos dos países em desenvolvimento, que representam a maior parte da população mundial. Embora muitos temas das rodadas anteriores de negociação da OMC que são favoráveis aos países em desenvolvimento não tenham sido ainda implementados, os países desenvolvidos estão, assim mesmo, buscando novos e importantes compromissos de liberalização por parte das nações em desenvolvimento. Caso os países desenvolvidos sejam bemsucedidos nessa estratégia, o resultado será um desastre contínuo para os países em desenvolvimento. Os sistemas agrícolas e a segurança alimentar dos países pobres, assim como seus setores industriais, estão sendo atualmente solapados pelas políticas de liberalização e pelas regras da OMC. Existe o perigo de que os setores de agricultura, indústria e serviços possam ser ainda mais dizimados, com o risco de uma desindustrialização ainda mais ampla. Não é exagerado afirmar que isto é o que está em jogo nas negociações e é por esta razão que qualquer acordo em Hong Kong provavelmente será pior do que nenhum acordo. A experiência de liberalização no mundo em desenvolvimento Nos últimos anos, o debate sobre a liberalização comercial tem sido um dos mais acirrados. Muitos funcionários governamentais e de instituições multilaterais, assim como alguns acadêmicos, ainda argumentam que a liberalização comercial é um caminho seguro para os países em desenvolvimento conseguirem sair da pobreza. Ao mesmo tempo, uma enorme quantidade de evidências reunidas pela ActionAid e outras ONGs demonstram como a liberalização comercial nos países em desenvolvimento tem consistentemente prejudicado as pessoas pobres e causado retrocesso no desenvolvimento. A experiência da ActionAid tem demonstrado que, em geral, embora a liberalização comercial possa algumas vezes favorecer a erradicação da pobreza e o desenvolvimento, o mais freqüente é que ela tenha efeitos prejudiciais, havendo necessidade urgente de políticas alternativas. Em especial, como será mostrado mais adiante neste relatório, as importações baratas podem solapar maciçamente a produção local, especialmente na agricultura, e aprofundar a pobreza dos agricultores vulneráveis. Defensores da liberalização comercial alegam, freqüentemente, que ela pode induzir a inovação tecnológica, diminuir os privilégios da elite e, assim, contribuir para o crescimento econômico geral. Isto pode acontecer, como também pode ocorrer o oposto: a tecnologia importada pode forçar o deslocamento da tecnologia e investimento locais, enquanto a corrupção pode ser induzida por novos vínculos com as corporações estrangeiras. Em resumo, os benefícios da liberalização comercial para a população em geral muitas vezes dependem de fatores que nada têm a ver com a liberalização propriamente dita, tais como governança, distribuição de renda e as políticas de eqüidade promovidas pelo governo. Por exemplo, dependendo das circunstâncias internas, a riqueza gerada pelo crescimento das exportações pode tanto ser canalizada para as elites nacionais quanto beneficiar a sociedade mais amplamente. Vai depender de fatores domésticos se o comércio em geral (e não somente a liberalização comercial) beneficiará ou não as pessoas pobres. Por exemplo, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, a UNCTAD (na sigla em inglês): “Nem todos países que exportam produtos manufaturados tiveram sua industrialização acelerada pela exportação. Na verdade, a experiência mais comum, na qual o crescimento das exportações de bens manufaturados está vinculado à integração nas cadeias globais de produção e de montagem de insumos importados, tende a estar mais associada à estagnação ou mesmo ao declínio da produção de produtos manufaturados.”12 Toda a abordagem da OMC – pressupondo que a liberalização comercial é boa para o desenvolvimento – está, portanto, superada porque os benefícios da liberalização comercial estão longe de serem automáticos. O mandato da OMC está construído sobre a pressão por liberalização progressiva – por mais e mais liberalização – e isso, por sua vez, equivale a uma liberalização irreversível. Na visão da UNCTAD, o “que a atual abordagem faz é considerar a liberalização como um dado e, então, ver como compatibilizar com ela as metas de redução da pobreza, no lugar de priorizar a redução da pobreza e, depois, perguntar como a liberalização comercial poderia ser encaixada nisso”.13 INVASORES DO COMÉRCIO 11 Crescem as evidências contra o modelo da liberalização comercial Estão bem documentadas as evidências contra a liberalização comercial, como um modelo a ser seguido em todas as circunstâncias. Observem estes resultados recentes: • • • • Uma análise da UNCTAD mostrou que, numa amostra de 36 países classificados de acordo com seu grau de “restrição” e “abertura” comerciais, no final da década de 1990, a pobreza aumentou tanto naqueles países que adotaram os regimes comerciais mais abertos quanto naqueles que continuaram com os regimes mais fechados. “Porém, entre esses extremos, houve uma tendência de declínio da pobreza naqueles países que tinham liberalizado seus regimes comerciais em menor grau e de aumento da pobreza nos países que tinham liberalizado seus regimes comerciais em maior extensão.” A conclusão foi de que “com base nessas evidências não é possível concluir que a liberalização comercial reduz, no curto prazo, a pobreza ou leva a uma relação mais virtuosa entre comércio e pobreza”.14 Outra análise das taxas de crescimento de países em desenvolvimento entre 1997 e 2001 mostrou que, dos 108 países estudados, somente 10 dos 35 classificados entre os “mais abertos” tinham alto crescimento do PIB e apenas 7 dos 36 países classificados como “restritivos” apresentavam baixo crescimento do PIB. Havia 37 países que tinham alto crescimento do PIB com o regime de comércio “restritivo” ou um baixo crescimento com regime de comércio “aberto”.15 Nos últimos anos, uma das análises mais influentes em favor da liberalização comercial foi feita por David Dollar e Aart Kraay, em 2001. Ela procurava demonstrar que os países em desenvolvimento que haviam aberto mais seu comércio recentemente tinham aumentado seu crescimento econômico mais do que aqueles que tinham “permanecido fechados”. O dois grupos foram denominados de “globalizadores” e “não-globalizadores”. No entanto, esta análise tem sido fortemente criticada. Por exemplo, um estudo contrário demonstrou uma sobreposição estreita entre “globalizadores” e “nãoglobalizadores”, e países classificados como “menos dependentes de produtos primários” e “mais dependentes de produtos primários”, mostrando que aqueles países que dependem de exportar um pequeno número de commodities primárias cresceram muito mais lentamente do que aqueles que dependem menos das commodities. Esta análise argumentava que Dollar e Kraay tinham destacado a “maldição da dependência de commodities primárias” e não os benefícios da participação no sistema de comércio global.16 Os países menos desenvolvidos tornaram-se mais pobres nas últimas duas décadas, com 80% de suas populações vivendo atualmente com dois dólares por dia ou menos (a metade vive com um dólar por dia ou menos). Contudo, esses países foram, nesse mesmo período, altamente integrados A ActionAid concorda com esta visão e acredita que os países pobres devem ter o direito de buscar políticas alternativas – um direito que eles claramente ainda não possuem. Estas evidências sugerem que a promoção da liberalização comercial como um modelo que serve para todos é algo extremamente frágil. Mais do que isso, este modelo está sendo promovido por motivações ideológicas e porque beneficia as corporações dos países ricos ao abrir mercados estrangeiros para elas. Na verdade, o modelo de liberalização comercial não está baseado sequer numa análise racional do que funcionou no passado. Há uma vasta 12 VISÃO GERAL literatura, que já cobre pelo menos uma década, mostrando que os casos mais bem-sucedidos de desenvolvimento do pós-guerra – no Leste Asiático e, especialmente, em Taiwan e Coréia do Sul – foram em países que rejeitaram a abertura plena de suas economias em etapas importantes de seu desenvolvimento.23 Muitas vezes esses países protegeram suas indústrias por períodos limitados e com exigências claras de desempenho, assim como deram preferência às empresas nacionais para promover o desenvolvimento industrial de longo prazo, intervindo ativamente na economia através de políticas de regulamentação e de financiamento dos investimentos. Num relatório para o Instituto de Pesquisa da ONU para o Desenvolvimento Social (UNRISD), K. Jomo, à economia global, comercializando cerca de 51% de seu PIB, percentual mais alto do que o dos países mais ricos (43%).17 Entretanto, embora tenham se tornado cada vez mais globalizados, esses países viram sua parcela do comércio global cair de 3% em 1954 para 0,68% em 2004.18 • • • • As taxas de crescimento dos países em desenvolvimento onde a liberalização comercial está em curso geram mais dúvidas sobre seus benefícios. Durante as décadas de 1960 e 1970, quando muitos países praticaram as políticas de “substituição de importações” (hoje considerada herética), a renda per capita nos países em desenvolvimento cresceu em torno de 3% ao ano. Nos anos 1990, após mais de uma década de liberalização comercial, as taxas médias de crescimento caíram para 1,7%.19 O aspecto crítico para determinar se a liberalização comercial ajudará ou prejudicará os países mais pobres é verificar se a composição de suas exportações será modificada, permitindo que seja diversificada com a exportação de produtos mais dinâmicos, reduzindo sua dependência de poucos produtos primários. As evidências sugerem que a liberalização comercial não vai ajudá-los nessa tarefa e que os países que têm uma composição de exportações não-dinâmica antes da liberalização vão continuar com uma estrutura de exportação não-dinâmica após a implementação da liberalização. Num estudo de onze países, sete estavam perdendo participação no mercado no período préliberalização e esse número subiu para oito no período posterior à liberalização. A UNCTAD conclui que “o processo de liberalização comercial nos países menos desenvolvidos tem reforçado sua especialização na exportação de produtos primários, no lugar de promover uma mudança para exportações de bens manufaturados”.20 Outras análises têm demonstrado que a liberalização comercial nos países em desenvolvimento tende a prejudicar a balança comercial e o balanço de pagamentos. Num estudo de países em desenvolvimento em geral, as exportações cresceram 2% após a liberalização mas as importações subiram 6%. A liberalização comercial piorou o balanço de pagamentos em mais de 2% do PIB e a conta corrente em 0,8% do PIB. As balanças comerciais e as contas correntes deterioraram em todas as regiões analisadas: África, Ásia e América Latina.21 De fato, numa época em que os países em desenvolvimento ficam ouvindo sobre os ganhos maravilhosos que teriam com mais liberalização, vale a pena analisar os avanços realizados na rodada prévia sobre liberalização comercial – a Rodada do Uruguai. Naquela época, as estimativas dos países ricos e das instituições multilaterais muitas vezes sugeriam avanços da ordem de centenas de bilhões de dólares. Contudo, uma estimativa recente sugere que esses ganhos foram, na verdade, de cerca de US$ 75 bilhões, dos quais quase US$ 70 bilhões foram para os países desenvolvidos e US$ 5 bilhões para os países recém-industrializados, como Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan. Como grupo, os países em desenvolvimento não tiveram nenhum ganho.22 professor de economia da Universidade de Malaya, Kuala Lumpur, observava: “Atualmente, existem evidências consideráveis de que o crescimento alto no Leste Asiático resultou de intervenções de políticas públicas de desenvolvimento bem-sucedidas e adequadas e não de liberalização econômica. Assim, a Coréia do Sul e Taiwan não apenas foram muito mais longe em termos de crescimento, industrialização e mudança estrutural do que a Tailândia, Indonésia e Malásia, como também fizeram isso com menos desigualdade. O melhor desempenho econômico desses dois primeiros países deveu-se a intervenções governamentais mais eficazes, especialmente políticas industriais seletivas, enquanto a menor desigualdade explica-se por uma significativa redistribuição de bens (especialmente de terras), antes do período de alto crescimento, pleno emprego e desenvolvimento social para assegurar apoio às políticas públicas de desenvolvimento.”24 Um aspecto importante do bem-sucedido desenvolvimento no Leste Asiático foi que aqueles países não sofreram “choques” de liberalização. Ao contrário, sua industrialização havia sido iniciada muito antes da liberalização dos anos 1980 e INVASORES DO COMÉRCIO 13 tinha avançado na base de um espectro amplo de políticas comerciais e industriais, formuladas especificamente para estimular a emergência de atividades de maior valor agregado e produtos de alta tecnologia e intensivos em capital. As estratégias estavam orientadas para fora, mas sem adotarem a liberalização indiscriminada. Em especial, os investimentos estrangeiros foram administrados estrategicamente para assegurar que apoiassem os esforços nacionais, que continuassem a fortalecer e modernizar as capacidades produtivas domésticas.25 O fato de que os países desenvolvidos não seguiram o modelo do livre comércio em etapas importantes de seu próprio desenvolvimento, de terem protegido suas nascentes indústrias, no lugar de abrí-las à plena competição global, tem sido bem analisado pelos acadêmicos e será mais discutido no capítulo 3 deste relatório. As atuais pressões dos países ricos pelo aprofundamento da liberalização comercial nos países pobres parecem mais uma estratégia para evitar o seu desenvolvimento e fazer oposição aos competidores. Um alto funcionário do Banco Mundial certa vez observou que “as pessoas pobres dos países em desenvolvimento muitas vezes estão em melhores situações quando seus governos ignoram os conselhos políticos do FMI e do Banco Mundial.26 Da mesma forma, o vice-presidente do Ministério de Comércio Internacional e Indústria do Japão observou que, se seu país tivesse adotado o livre comércio, “teria quase sempre sido incapaz de romper com o padrão asiático de estagnação e pobreza”. 27 Um estudo realizado para o Unicef, que identificou dez países em desenvolvimento de “alto desempenho”, também não conseguiu levar adiante a causa dos que defendem a liberalização comercial. Costa Rica, Cuba, Barbados, Botsuana, Zimbábue, Maurício, o estado indiano de Kerala, Sri Lanka, Coréia do Sul e Malásia foram reconhecidos por terem um desempenho relativamente bom na promoção do desenvolvimento e na erradicação da pobreza. O estudo observou que, nesses países, os avanços na saúde e na educação, que levaram quase 200 anos para se efetivar nas nações desenvolvidas, “foram atingidos em mais ou menos uma geração”. Entre as razões principais estão o “papel proeminente do Estado em assegurar que a vasta 14 VISÃO GERAL maioria da população tivesse acesso aos serviços básicos”; os gastos relativamente altos com serviços sociais; a expressão da “voz” do povo (em todos os casos, exceto na Coréia do Sul); a não priorização do crescimento econômico em detrimento do desenvolvimento social; e as mulheres serem consideradas como agentes iguais nas mudanças. 28 O estudo não analisou especificamente a liberalização comercial, porém é significativo que nenhum desse países tenha adotado a plena liberalização do comércio como estratégia. Ela não foi destacada como um instrumento político importante – e este é provavelmente o motivo de não ter sido enfocada no estudo. A maioria daqueles países rejeitou totalmente a abordagem da liberalização. E o que acontece com a bem-sucedida experiência recente da China e da Índia em reduzir a pobreza de parte de sua população? Poderia se argumentar que isso demonstra o êxito do modelo de liberalização. De fato, a China liberalizou recentemente várias áreas da economia – sendo este o preço que pagou para ter acesso à OMC – ter acesso à OMCter ppter, porém isso não foi um choque de reforma, inclusive porque deu continuidade ao processo de liberalização gradual dos últimos dez anos e também porque a liberalização da China ocorreu numa posição de força e não de fraqueza. Além disso, a China tem resistido às pressões para liberalizar seu mercado de câmbio e a conta de capital, tendo desfrutado de considerável depreciação de sua moeda, o que tem sido um fator que facilita o ajuste ao regime comercial mais liberal, evitando uma deterioração forte do balanço de pagamentos.29 Ao mesmo tempo, na Índia, como demonstrou Jayati Ghosh, da Universidade de Nehru, as taxas de crescimento do PIB real já estavam em alta na década de 1980, antes do início das reformas de liberalização econômica em 1991. O crescimento do PIB foi o mesmo, de 5,6% ao ano, tanto no período de 1980-1990 quanto em 1990-2000. No entanto, desde 1991, o crescimento tem sido acompanhado por um aumento da desigualdade entre as regiões do país e entre as pessoas ricas e pobres, enquanto a taxa de declínio da pobreza em geral tem diminuído. Ghosh observa que “as crescentes desigualdades de renda nesse período acentuaram certos aspectos estruturais de longo prazo da sociedade indiana, com grupos mais favorecidos buscando perpetuar e aumentar seu controle sobre recursos limitados e sobre canais de geração de renda da economia. Por sua vez, isso tem significado uma efetiva perda de direitos econômicos para um grande número de pessoas”. Além disso, Ghosh observa que a liberalização do comércio teve um impacto especial nas comunidades agrícolas e que “a agricultura indiana tem vivido uma crise contínua numa escala sem precedentes”. A ausência da proteção mínima para os agricultores indianos diante da competição dos produtores subsidiados dos países desenvolvidos, juntamente com a mudança de cultivo dos alimentos básicos tradicionais para as colheitas voltadas para o mercado, tem produzido um declínio na segurança alimentar e uma queda do consumo de grãos per capita para níveis que não eram vistos desde o início da década de 1950.30 Tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento A ActionAid argumenta que, com base nas evidências apresentadas acima, os países em desenvolvimento devem ter a possibilidade de promover políticas que protejam suas economias da devastação causada pela liberalização do comércio global. Porém, esse “direito à proteção” tem sido severamente prejudicado por ataques sucessivos de liberalização através da OMC e também dos programas de empréstimo do Banco Mundial/ FMI para os países pobres. Por exemplo : • Suas tarifas comerciais foram cortadas, especialmente as tarifas de produtos agrícolas. • Sua capacidade de fornecer subsídios à agricultura e à indústria domésticas foi reduzida e, em alguns casos, eliminada. • Sua capacidade de discriminar investidores estrangeiros em favor dos investidores locais tem sido reduzida. • Esses países não têm podido fortalecer seus direitos de propriedade intelectual, logo seus recursos naturais, bem como conhecimentos e tecnologias locais tem sido passados ao controle de empresas estrangeiras. Em geral, a liberalização progressiva tem reduzido o crítico “espaço político” necessário para que os países mais vulneráveis possam promover políticas Declínio do espaço político Organizações internacionais e vários economistas destacados vêm alertando há muitos anos para a grande perda de espaço político resultante dos acordos da OMC: • • • De acordo com a UNCTAD: “As pressões por uma maior abertura, especialmente num ambiente econômico de incertezas e numa era de mudanças estruturais dinâmicas, têm tornado cada vez mais difícil para os países seguirem suas próprias políticas nacionais de desenvolvimento e integração à economia global.”31 Segundo o PNUD: “Os acordos multilaterais que crescem rapidamente – as novas regras – trazem muitas obrigações para os governos nacionais e limitam as escolhas de políticas internas, inclusive daquelas que são críticas para o desenvolvimento humano. Essas regras impulsionam uma convergência de políticas num mundo que apresenta enorme diversidade econômica, social e ecológica.”32 De acordo com Ha-Joon Chang, um economista da Universidade de Cambridge: “O tempo se esgota. Nas últimas duas décadas, o espaço político disponível para os países em desenvolvimento tem encolhido dramaticamente. Se os países desenvolvidos prevalecerem, esse espaço vai encolher durante a próxima década até um ponto só visto nos tempos do imperialismo, tornando quase impossível a industrialização e o desenvolvimento econômico no mundo em desenvolvimento. Aqueles que estão verdadeiramente preocupados com o desenvolvimento, tanto no Sul quanto no Norte, precisam realizar ações articuladas para evitar esse desastre.”33 INVASORES DO COMÉRCIO 15 econômicas nacionais adequadas às suas próprias circunstâncias. Embora o tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento e para aqueles menos desenvolvidos esteja formalmente consagrado nos acordos da OMC, e esteja explicitado na agenda de Doha, acordada na reunião ministerial de 2001 e no Marco de Referência de julho de 2004, que estabelecem os termos das atuais negociações, esse tratamento especial não se concretizou e tem enfrentado grandes problemas. Em especial: • A implementação dos acordos existentes sobre tratamento especial tem sido um fracasso, principalmente devido à oposição do mundo desenvolvido. • Atualmente, o tratamento especial está voltado para ajudar os países em desenvolvimento a implementarem seus compromisso de liberalização e a se adequarem às regras da OMC e não a promoverem seus objetivos de desenvolvimento. • O aprofundamento dos dispositivos de tratamento especial atuais não é mais suficiente para os países em desenvolvimento, especialmente em face das novas pressões por liberalização cada vez maior da parte dos países ricos. Há muito tempo os países em desenvolvimento insistem que sua capacidade de assumir novos compromissos de liberalização depende tanto de sua capacidade de implementar os compromissos do passado quanto do impacto destes compromissos sobre suas economias. Os países-membros tinham acordado em Doha que os problemas de implementação deviam ser “tratadas como matéria prioritária pelos organismos relevantes da OMC”, porém o progresso tem sido muito lento em todos os aspectos de interesse particular para os países em desenvolvimento, especialmente a revisão de dispositivos para os países em desenvolvimento que enfrentam dificuldades na implementação dos acordos comerciais (“problemas de implementação”). Os países desenvolvidos ainda não estão dispostos a cooperar plenamente e a enfrentar alguns desses problemas, que em alguns casos remontam à década de 1980. Como conseqüência, os países em desenvolvimento vêm negociando camadas adicionais de compromissos de liberalização, 16 VISÃO GERAL enquanto os problemas com os acordos existentes não foram enfrentados de forma apropriada e muito menos resolvidos. Bloqueando as propostas atuais Atualmente, os membros da OMC devem trabalhar de acordo com um mandato que requer o fortalecimento dos dispositivos de tratamento especial para torná-los, nas palavras do Marco de Referência de julho de 2004, “mais precisos, eficazes e operacionais”.34 No entanto, está acontecendo justamente o oposto. Na mesa de negociações, permanece formalmente uma lista de 88 propostas para melhorar o tratamento especial e diferenciado, preparada principalmente pelos países africanos e menos desenvolvidos e que trata, entre outras coisas, de mudanças nos acordos sobre serviços, agricultura e propriedade intelectual. Estas propostas, que avançariam bastante no caminho de tornar as regras comerciais muito mais orientadas ao desenvolvimento, têm sido em grande medida ignoradas e de facto rejeitadas pelos países desenvolvidos, a tal ponto que atualmente os países menos desenvolvidos estão propondo uma lista com somente cinco áreas de tratamento especial. Esta lista inclui a demanda de que os países desenvolvidos se comprometam a propiciar às exportações dos países menos desenvolvidos acesso ao mercado livre de impostos (duty-free), que os países em desenvolvimento recebam maiores dispensas das atuais obrigações da OMC, e que os países menos desenvolvidos recebam uma isenção mais ampla do acordo da OMC sobre investimentos (TRIMs – Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio). Mesmo esta curta lista está enfrentando uma oposição significativa. Os EUA se opõem ao compromisso vinculante sobre as exportações dos países menos desenvolvidos, sugerindo que acordos bilaterais são mais adequados para essa tarefa, e alguns países latinoamericanos também se opõem às demandas dos países menos desenvolvidos por maiores dispensas da OMC, enquanto os países desenvolvidos em geral estão pedindo mais esclarecimentos sobre as isenções do acordo TRIMs.35 Outra reivindicação atual dos países menos desenvolvidos é a revisão da “cláusula de habilitação” do acordo da OMC, garantindo que o “grau e o ritmo da liberalização sejam determinados em consultas com o governo” dos países menos desenvolvidos, reconhecendo que esses países não devem ser forçados a tomar medidas de liberalização que entrem em conflito com suas necessidades de desenvolvimento ou financeiras. A parte mais controvertida desta proposta é a sugestão de que os países menos desenvolvidos tenham permissão, quando justificado por sua situação econômica e comercial e estágio de desenvolvimento, de não realizarem nenhuma redução de tarifas nos setores agrícolas e industriais e de manterem taxas tarifárias consolidadas em níveis consistentes com suas necessidades. No entanto, tem sido divulgado que “muitos países desenvolvidos, incluindo os EUA, afirmam que os países menos desenvolvidos não podem ter a expectativa de não assumirem nenhum compromisso ou de receberem uma isenção em branco e permanente, pois o objetivo dos membros da OMC é a integração ao sistema de comércio multilateral”. Nas recentes negociações de Genebra, algumas fontes sugeriram que “EUA, UE, Canadá e Japão não estavam dispostos a conceder uma isenção tão abrangente por temerem que isso crie um precedente de exceções à regra e um tratamento diferente para distintos países em desenvolvimento”. Além disso, essas discussões foram realizadas somente alguns dias antes que muitos desses mesmos países se reunissem na cúpula do G-8, em Gleneagles, e dessem seu apoio, diante da mídia de todo o mundo, ao desenvolvimento da África e ao direito dos países pobres decidirem suas próprias políticas. Com freqüência, é extremo o contraste entre relações públicas e as políticas reais. Os países desenvolvidos também se recusam a implementar os atuais acordos de tratamento especial e diferenciado até que aqueles países que denominam de “em desenvolvimento mais avançados” deixem de receber tratamento especial.36 Esta preocupação se refere a países como o Brasil, China e Índia, que cada vez mais são vistos como competidores pela União Européia e EUA. A ActionAid acredita que nesses países ainda vivem milhões e milhões de pessoas pobres. Por exemplo, de acordo com o Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005,37 o Brasil está classificado na posição 63 do Índice de Desenvolvimento Humano, com 22,4% de sua população vivendo abaixo da linha de pobreza de US$ 2 por dia, enquanto a China ocupa a posição 85 com 46,7% de sua população vivendo na pobreza extrema, seguida pela Índia, classificada na posição 127, com 80% da população vivendo na pobreza extrema. Portanto, esse países devem ter direito a tratamento especial. A ActionAid também acredita que os países em desenvolvimento, e especialmente os menos desenvolvidos, já enfrentam uma grande crise em termos da implementação dos atuais compromissos de liberalização. Assim, a aceitação da atual agenda dos países desenvolvidos de aprofundamento da liberalização na agricultura, produtos industriais e serviços irá causar uma erosão ainda maior de seu espaço político e agravar a crise. O grupo africano também levantou preocupações similares em sua recente carta ao Comitê de Negociação Comercial da OMC. Nesta carta, o grupo afirma que “as modalidades devem levar em conta a necessidade de um espaço político adequado que permita aos países africanos adotarem políticas agrícolas que dêem apoio às suas metas de desenvolvimento, estratégias de redução da pobreza e preocupações com segurança alimentar e meios de subsistência”. 38 INVASORES DO COMÉRCIO 17 Notas 1 A menos que seja especificado de outra forma, a expressão “países em desenvolvimento”, neste relatório, inclui os países menos desenvolvidos. 2 Peter Mandelson, discurso, 21 de julho de 2005, http://www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles 3 Peter Mandelson, discurso, 4 de outubro de 2004, http://www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles 4 Peter Mandelson, discurso, 21 de julho de 2005, http://www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles 5 Peter Mandelson, Financial Times, 3 de maio de 2005. 6 Robert Portman, ‘Kick-starting global trade talks’, International Herald Tribune, 2 de maio de 2005. 7 Robert Portman, Declaração à Comissão de Agricultura, Nutrição e Administração Florestal dos EUA, Senado dos EUA, 21 de setembro de 2005, www.ustr.gov 8 http://www.businessroundtable.org/pdf/20050905003WBLGJointStatement.pdf 9 Ver, por exemplo, as publicações recentes da UNICE e EuroComércio em www.unice.org e www.eurocommerce.be 10 ‘Supachai: Negotiations behind schedule for July, Hong Kong’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 4 Maio de 2005, www.ictsd.org 11 Citado em Focus on the Global South, ‘The end of an illusion: WTO reform, global civil society and the road to Hong Kong’, Focus on Trade, Issue No. 108, Abril de 2005, www.focusweb.org 12 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, p. 84, www.unctad.org 13 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, pp. 70-1, www.unctad.org 14 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, p. 188, www.unctad.org 15 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, p. 86, www.unctad.org 16 Citado em UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, p. 82, www.unctad.org 17 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, p. 106, www.unctad.org 18 Lakshmi Puri, ‘Towards a new “Marshall Plan” for least developed countries’, Trade, Poverty and Cross-cutting Development Issues, Study Series No.1, UNCTAD, 2005, p. 2 19 Ha-Joon Chang, ‘Towards practical alternatives to prevailing trade policy’, South Bulletin, 15 de junho de 2005, p. 269, www.southcentre.org 20 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, pp. 199, 213, www.unctad.org 21 UNCTAD, The Least Developed Countries Report 2004, pp. 201-2, www.unctad.org 22 Citado em Yilmaz Akyuz, ‘WTO’s NAMA negotiations: Policy space at stake’, South Bulletin, 30 de julho de 2005, p. 364, www.southcentre.org 23 Por exemplo, ver Ajit Singh, ‘How did East Asia grow so fast?’, UNCTAD Bulletin, maio de 1995, pp. 4-14; Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective, Anthem Press, Londres, 2002. 24 K. Jomo, Globalisation, Liberalisation and Equitable Development: Lessons from East Asia, UNRISD, julho de 2003, p. 31 25 Richard Kozul-Wright e Paul Rayment, Globalisation Reloaded: An UNCTAD Perspective, Documento de discussão da UNCTAD N.167, pp. 15-16 26 William Easterly, citado em K. Jomo, Globalisation, Liberalisation and Equitable Development: Lessons from East Asia, UNRISD, julho de 2003, p. 15 27 Citado em Michael Barratt-Brown e Pauline Tiffen, Short Changed: Africa and World Trade, Pluto Press, Londres, 1992, p. 14 28 Santosh Mehrotra, Integrating Economic and Social Policy: Good Practices from High-achieving Countries, Documentos de trabalho Innocenti, N. 80, UNICEF, outubro de 2000, www.unicef.org 29 Yilmaz Akyuz, ‘Trade, growth and industrialisation: Issues, experience and policy challenges’, janeiro de 2005, p. 17 30 Jayati Ghosh, ‘Is India a success story of economic liberalisation?’, Documento de discussão da Christian Aid, maio de 2005 31 UNCTAD, Trade and Development Report 2004, p. 95, www.unctad.org 32 Pnud, Human Development Report 1999, p. 35, http://hdr.undp.org/reports/global/1999/en 33 Ha-Joon Chang, ‘Towards practical alternatives to prevailing trade policy’, South Bulletin, 15 de junho de 2005, p. 271, www.southcentre.org 34 O Marco de Referência de Julho de 2004 está reproduzido em South Bulletin, 30 de julho de 2004, pp. 340-9, www.southcentre.org 35 ‘No results on S&D despite marathon negotiations’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 27 de julho de 2005, www.ictsd.org 36 Focus on the Global South, ‘The end of an illusion: WTO reform, global civil society and the road to Hong Kong’, Focus on Trade, Issue N. 108, abril de 2005, www.focusweb.org 37 Human Development Report 2005. ‘International Cooperation at a Cross Roads: Aid, trade and security in an unequal world’, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), Nova York 10017, EUA. 38 Carta do Grupo Africano para Pascal Lamy, Genebra, 8 de novembro de 2005. 18 VISÃO GERAL Capítulo 2 O comércio de alimentos e o perigo de ampliar a liberalização As atuais negociações da OMC sobre agricultura representam uma ameaça crescente para centenas de milhões de pessoas em todo mundo que dependem da agricultura para sua subsistência. A agenda dos países ricos é muito clara: • Estão buscando novos mercados, pressionando os países pobres a reduzirem ainda mais as barreiras tarifárias às exportações agrícolas dos países ricos. Ao mesmo tempo, resistem às repetidas demandas dos países em desenvolvimento para que os produtos agrícolas alimentares vitais fiquem isentos das reduções tarifárias, de modo que os países em desenvolvimento possam se proteger dos surtos de importação, que solapam a produção local e podem devastar as comunidades de agricultores. • Introduziram nas negociações uma nova categoria de “produtos sensíveis” para isentarem uma grande porção de suas próprias importações de cortes de tarifas, restringindo ainda mais as exportações dos países em desenvolvimento. • Estão buscando manter – e, além disso, procurando novas regras para expandir – os subsídios domésticos a seus próprios agricultores, que causam superprodução e dumping nos países em desenvolvimento. As ofertas recentes da União Européia e dos EUA para reduzir subsídios não passam de ilusão. Estimativas da ActionAid mostram que eles poderiam manter seus altos subsídios. Se essa agenda for levada adiante, agravará a devastação entre os agricultores de todo o mundo já desencadeada pelas regras do comércio global. Não é nenhum segredo que a União Européia e os EUA estão pressionando por maior acesso ao mercado dos países em desenvolvimento como o preço que teriam de pagar para que eles concordassem em eliminar os subsídios às exportações e reduzir seu apoio doméstico à agricultura.1 Em alguns setores, isso poderia ser visto como chantagem dos fortes contra os fracos, porém, para a União Européia e os EUA, trata-se simplesmente de negociação diplomática global – não importando o custo humano. INVASORES DO COMÉRCIO 19 “Com 95% de nossos clientes potenciais no exterior e o mercado dos EUA já maduro, temos de assegurar o acesso aos consumidores do mundo para manter o crescimento dos lucros... Nossa meta nas negociações de Doha é dar aos nosso produtores agrícolas a mesma capacidade de competir, abrindo novos mercados e facilitando o movimento mais eficiente de mercadorias através das fronteiras... A expansão da renda global através da adoção de políticas orientadas para o mercado abrirá mercados em todo o mundo, com grande benefício para a comunidade agrícola dos EUA... Os países que bloquearam o acesso dos EUA a seus mercados, especificamente através de altas tarifas, precisam mostrar seriedade na questão da abertura dos mercados nas negociações.” Representante de Comércio dos EUA, Robert Portman, 21 de setembro de 2005.2 Os efeitos da liberalização comercial na agricultura Nas regras da OMC, os produtos agrícolas são tratados como qualquer outra mercadoria comercializável, mas para milhões e milhões de pessoas, a agricultura é muito mais do que isto – é a sua sobrevivência. Estima-se que 1,3 bilhão de pessoas em todo mundo trabalha na agricultura e mais 1,5 bilhão depende desse setor. Mais da metade de toda a população dos países em desenvolvimento trabalha na agricultura, proporção que chega a 85% em alguns países mais pobres. A agricultura é a principal fonte de renda e segurança alimentar para a maioria das pessoas pobres do mundo. Isso é particularmente verdadeiro para as mulheres, que tendem a ser as principais responsáveis pela alimentação da família e pela produção estimatimada de 60-80% dos alimentos cultivados na maior parte dos países em desenvolvimento. A agricultura é crítica na redução da pobreza porque o crescimento da economia dos pequenos proprietários é a maneira mais eficaz de aliviar a pobreza rural. O aumento da renda dos pequenos agricultores reduz a pobreza na economia como um todo, ao aumentar a demanda local por bens e serviços como transportes, construção civil e mão-de-obra agrícola. Uma forte economia baseada em pequenos empreendimentos, aliada a distribuição eqüitativa de terras, é fundamental para o crescimento econômico mais amplo. Assim, na maior parte dos países em desenvolvimento, a agricultura deve cumprir um papel central em qualquer estratégia eficaz de desenvolvimento nacional. Poucos países desenvolveram economias industriais fortes sem antes conseguirem um crescimento de sua pequena agricultura. Nos últimos 300 anos, quase 20 todos os casos de redução maciça da pobreza começaram com aumentos de renda resultantes da maior produtividade dos empreendimentos rurais de pequena escala. Portanto, é difícil exagerar até que ponto são críticos para os países pobres acordos comerciais que desenvolvam seus setores agrícolas. No entanto, a realidade atual mostra justamente o oposto. Como foi documentado num relatório recente da ActionAid, o comércio de produtos agrícolas é controlado, cada vez mais, por um punhado de corporações transnacionais sediadas no mundo rico.3 Em grande medida, os acordos globais de comércio vêm sendo estabelecidos de acordo com os interesses dessas corporações. Os setores agrícolas dos países em desenvolvimento foram abertos às importações baratas e muitos desses países têm sido forçados a reduzir seu apoio interno à agricultura, enquanto os preços dos produtos primários – dos quais dependem os países mais pobres – praticamente entraram em colapso nos últimos vinte anos. Ao mesmo tempo, os países industrializados continuam dando maciça proteção à sua agricultura, impedindo muitas exportações dos países em desenvolvimento e levando ao dumping de produtos agrícolas dos países ricos nos mercados mundiais – o que desvaloriza os preços e arruina os produtores locais. Se o mundo formulasse conscientemente um sistema de comércio de alimentos para prejudicar os mais vulneráveis, seria difícil igualar o atual. Um aspecto permanente da difícil situação enfrentada pelos países em desenvolvimento nas últimas duas décadas tem sido a invasão dos mercados agrícolas locais por importações baratas, O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO África do Sul: fim dos subsídios leva ao desemprego 14% da força de trabalho agrícola Na África do Sul, a desregulamentação do setor agrícola teve início na década de 1980, como resultado das condições e recomendações do Banco Mundial e FMI, assim como da participação do país no Acordo de Agricultura da OMC. O livre mercado foi colocado no centro da política, com o Estado “ajudando” o mercado a fornecer bens e serviços para o desenvolvimento, tais como terras e infra-estrutura. No entanto, a vasta maioria dos pequenos agricultores permanece presa à pobreza. Por exemplo, a eliminação dos subsídios forçou muitos agricultores marginais, principalmente na produção do milho, a encerrarem suas atividades. Houve uma queda de 21% no número de unidades agrícolas comerciais, entre 1993 e 2002.4 Ao mesmo tempo, ocorreu uma redução de 14% na força de trabalho agrícola (permanente e temporária), logo em seguida a uma queda de 12% no emprego, entre 1988 e 1992.5 A liberalização também resultou em maior concentração de poder nas cadeias de produtos agrícolas e alimentícios. Cada vez mais, as corporações globais dominam os mercados de sementes, como a Monsanto no milho, trigo e verduras; Syngenta no milho e verduras; e Delta & Pine Land no algodão.6 No geral, a desregulamentação e liberalização têm favorecido os agricultores voltados para exportações em nichos de mercado, especialmente nos setores de frutas e vinhos, como também em setores menores, como o de flores cortadas e e o de lã. No entanto, outros setores, como o milho, tornaram-se muito mais voláteis à medida que os mercados foram desestabilizados por uma combinação de flutuações fortes da moeda, declínio dos preços das commodities e superprodução global da maior parte das principais mercadorias agrícolas. Além disso, os preços dos alimentos têm subido fortemente nos últimos anos, principalmente por causa da taxa de câmbio volátil, atingindo mais as famílias mais pobres. No final da década de 1990, a África do Sul estava com um excedente de 3 milhões de toneladas de milho, enquanto mais de 14 milhões de pessoas não tinham comida suficiente.7 Programa de Parceria da África Meridional, ActionAid, OMC, serviços e experiências de privatização da água na África do Sul, 2005. especialmente – porém não exclusivamente – de produtos agrícolas subsidiados vindo dos países desenvolvidos. A remoção de tarifas nos países em desenvolvimento, como resultado dos compromissos com a liberalização do comércio, tem piorado muito essa situação e os mais atingidos têm sido as pessoas pobres. Os efeitos têm variado de sérios a devastadores, como bem documentados nos últimos anos pela ActionAid e outras ONGs. Por exemplo, no Haiti as importações de arroz barato e subsidiado dos EUA expulsaram milhares de agricultores pobres de suas atividades e forçaram muitas pessoas a abandonarem suas terras. Na Jamaica, 3.000 produtores de leite pobres estão tendo que encerrar suas atividades por causa do dumping de 5.500 toneladas de leite europeu altamente subsidiado no seu mercado. Entre outros exemplos, estão as importações de frango para a África Ocidental, laticínios para o Quênia e pasta de tomate para o Senegal, assim como outros produtos para Sri Lanka, Guiana, Trinidad e Tobago, Filipinas, México, Gâmbia e Brasil – para citar somente alguns casos.8 O dumping – venda de produtos a preços abaixo dos custos de produção presumíveis – continua a causar grande destruição em boa parte do mundo em desenvolvimento. Por exemplo, em 2003, o dumping das empresas de alimentos e dos agronegócios com sede nos EUA fez com que o trigo fosse exportado a um preço médio 28% abaixo do custo de produção, enquanto a soja e o milho eram exportados a 10% abaixo do custo de produção, o algodão a 47% e o arroz a 26%.9 Desde que a OMC foi fundada, em 1994, empresas dos EUA têm descarregado pesadamente altos volumes das suas cinco mercadorias agrícolas mais exportadas. Os efeitos disso são duplos: as importações a baixo custo expulsam os agricultores dos países em desenvolvimento dos mercados locais, enquanto os agricultores que vendem seus produtos aos exportadores descobrem que sua participação no mercado foi prejudicada pelo preço mundial rebaixado. Embora as regras da OMC proíbam formalmente o dumping, a prática é comum e essas regras tornam complicado e dispendioso para os países pobres estabelecerem as bases legais das ações antidumping.10 INVASORES DO COMÉRCIO 21 Gâmbia: surto de importação de frangos expulsa avicultores de suas atividades A Gâmbia é um dos países mais pobres da África, com uma renda média anual per capita de somente US$ 320. Uma variedade de produtos agrícolas está inundando atualmente este mercado, desvalorizando os preços e prejudicando os produtores locais. Por exemplo, as importações de frango cresceram dez vezes no período 1995-2003, sendo que a maior parte vinha da Alemanha, Holanda e Bélgica. Ao mesmo tempo, as tarifas de importação sobre aves foram reduzidas de 28% em 1998 para 18% em 2004. A Avicultura Kombo, em Kololi, é apenas uma das muitas que foram forçadas a fechar. Seu ex-administrador, Mohammed Hydara, diz que quando abriram em 1987 tinham 3 aviários, cada um abrigando 3.000 aves. O estabelecimento era moderno e profissional, afirma ele, e os negócios foram bem-sucedidos nos primeiros anos. Mohammed esperava colocar “um ovo em cada mesa”, porém seu sonho desapareceu à medida que as tarifas de importação eram reduzidas e produtos avícolas baratos inundaram o país, depois da implementação da liberalização comercial, supervisionada pelo FMI e pelo Banco Mundial. A Avicultura Kombo fechou suas portas em 2002 e o dono passou a plantar mandioca. Infelizmente, o mesmo acontece com a indústria do amendoim, assim como com as indústrias do leite, do arroz e da pesca. Por exemplo, a queda súbita e acentuada do preço do amendoim no mercado mundial, juntamente com o custo crescente de suprimentos como fertilizantes, agravou a situação de muitos agricultores. Ao mesmo tempo, a liberalização trouxe para o país óleos vegetais mais baratos, que substituíram o óleo de amendoim no mercado interno. O leite subsidiado da Europa está também sendo importado no país, enfraquecendo os produtores locais, enquanto o governo tem permitido que seja importado arroz barato com tarifa zero. As importações de arroz mais do que dobraram entre 1990 e 2002, pois os consumidores preferiam comprar o arroz importado mais barato. ActionAid Gâmbia, Efeitos da Liberalização do Comércio na Agricultura e Agricultores, 2005 A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) observa que “desde a década de 1980, com as reformas do comércio e sua liberalização unilateral em muitos países em desenvolvimento, têm havido surtos de importação mais freqüentes, por país e por produto”.11 De fato, a FAO identificou a enorme quantidade de 1.217 casos de surtos de importação, envolvendo somente oito produtos primários, em 28 países em desenvolvimento, no período de 1984 a 2000. Um surto de importação significa que o volume de bens importados sobe significativamente ou os preços de importação se reduzem drasticamente, de modo a aniquilar ou ameaçar a produção interna. Um surto é definido como um desvio de 20% da média de cinco anos das importações. Como esta análise é altamente seletiva por produto e também considera somente uma pequena proporção de todos países em desenvolvimento, a extensão real dos surtos de importação deve ser bem maior. Com base nessa amostra, os países especialmente afetados foram a Guiné, Malauí, Níger, Filipinas e Tanzânia.12 22 Na prática, os países em desenvolvimento têm poucos mecanismos para evitar essas importações porque o processo é dispendioso, oneroso ou politicamente complicado. De fato, como a FAO destacou, “os países em desenvolvimento não têm recursos para proteger seus produtores de preços de importação artificialmente baixos. O potencial para aumentar tarifas é limitado e vai diminuir com tarifas consolidadas menores”.13 As negociações atuais As atuais negociações comerciais sobre agricultura em Genebra estão divididas em três áreas: acesso ao mercado (isto é, redução de tarifas), apoio doméstico e subsídios às exportações. Essas questões estão sujeitas a desacordos tão intensos, especialmente a redução de tarifas, que as negociações têm estado efetivamente paralisadas há algum tempo. Todas as três áreas de negociação contêm perigos e ameaças para os países em desenvolvimento. Essencialmente, os países desenvolvidos estão pressionando pelo acesso ao mercado dos países em O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO Gana: agricultores pedem proteção contra as importações baratas A agricultura é um modo de vida e um meio de sobrevivência para dois milhões de pessoas que vivem nas regiões mais pobres de Gana – Norte, Leste Setentrional e Oeste Setentrional. São cultivados tomates, arroz, quiabo e cebola, o que representa 90% do emprego e da renda. No entanto, a redução das restrições comerciais nas décadas de 1980 e 1990 fez com que arroz barato inundasse o país, assim como arroz da UE pesadamente subsidiado. John Ayariga, produtor de arroz na fértil Bolgatanga, região Leste Setentrional, explica o que aconteceu: “Sou agricultor há 19 anos e comecei a cultivar aos 12. O plantio de arroz não é mais lucrativo porque o arroz importado é mais barato do que o produzido localmente. Não podemos sobreviver… As terras onde plantávamos arroz estão sem cultivo e são usadas para jogar futebol. Estamos sendo forçados a competir em mercados estrangeiros – é como se nossa seleção sub-20 enfrentasse o Manchester United. Diga-me, isso é equilibrado? É justo? Dá vergonha de ser agricultor hoje em dia. Não há mais o orgulho de ser agricultor.” Os plantadores de arroz foram ainda mais atingidos quando o Estado deixou de subsidiar suprimentos como fertilizantes, inseticidas e sementes. Madam Adombilla Awelgya, de 47 anos e com quatro filhos, está entre as pessoas afetadas: “O alto custo dos insumos agrícolas torna difícil a sobrevivência. Não resta nenhum dinheiro, depois que você paga tudo a preços muito altos... Estamos pedindo ao governo para que apóie os agricultores, especialmente mulheres como eu, com crédito e máquinas de processamento. Sem uma debulhadora mecânica, debulhamos o arroz no chão e isso o deixa com pequenas pedras, tornando-o pouco atrativo para os consumidores. Não agüento mais; acho que vou desistir...” O cultivo do tomate foi afetado de forma similar. Ayene Adda, que está no negócio há 20 anos, concorda com Madam Awelgya: “O governo precisa intervir. Isso deve ser a grande idéia e a coisa certa a fazer. O governo deve entrar para nos ajudar... reduzindo o efeito do tomate e dos seus derivados importados sobre a produção local.” ActionAid Gana, Vozes dos pobres e liberalização do comércio em Gana, 2005. desenvolvimento, enquanto não estabelecem uma data para a extinção dos seus subsídios às exportações, e há pouca movimentação para uma redução substancial de seu apoio interno aos agricultores. Além disso, a União Européia, em particular, está impedindo as reformas da agricultura até que os países em desenvolvimento concordem com a liberalização de suas áreas de produtos industriais e serviços. Isso é uma estratégia explícita. O Comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, afirmou, por exemplo, em outubro de 2005 que: “No momento decisivo, a flexibilidade final da União Européia nas negociações da agricultura será fortemente influenciada pelo grau de ambição de todos os membros da OMC em relação ao NAMA e aos serviços. E, certamente, não haverá nenhum acordo sobre a agricultura a menos (e até) que exista um resultado equilibrado em todas as categorias.”14 Acesso ao mercado agrícola O Marco de Referência da OMC de julho de 2004, que estabelece os termos das negociações atuais, exige “reduções tarifárias substanciais e gerais” e afirma que a “progressividade nas reduções tarifárias será alcançada através de cortes mais profundos nas tarifas mais altas, com flexibilidade para os produtos sensíveis. Haverá melhorias substanciais no acesso ao mercado para todos produtos”. As negociações sobre o acesso ao mercado não são somente as mais complexas, como também estão no estágio menos avançado, sendo que a questão mais controversa é a estrutura de redução tarifária. Persistem grandes divisões entre os países de altas tarifas, como os da União Européia e os países importadores líquidos de alimentos, e os grandes exportadores agrícolas, tais como os EUA e o Grupo de Cairns.17 Há o perigo de que seja exigido dos países em desenvolvimento que façam cortes maiores em suas tarifas agrícolas, restringindo ainda mais uma ferramenta política potencialmente vital de apoio a INVASORES DO COMÉRCIO 23 Quem ganha mais com os avanços da liberalização? Apesar dos efeitos da liberalização do comércio de alimentos, os países ricos querem prosseguir nesse caminho. Não é difícil entender a razão. Estudos recentes mostram as vantagens do aprofundamento da liberalização comercial para os agronegócios dos países ricos. Uma simulação realizada recentemente pela UNCTAD e pela FAO sobre os efeitos da liberalização global do comércio agrícola sugere que a “maior parte dos benefícios da liberalização vai para os países desenvolvidos”. Como um grupo, os países em desenvolvimento ganham no geral, “mas os avanços são pequenos e distribuídos desigualmente”, enquanto os países em desenvolvimento que são importadores líquidos de alimentos “tendem a perder por causa dos preços internacionais mais altos”.15 Os governos dos países ricos alegam constantemente que os países em desenvolvimento devem ter ganho significativos com a liberalização do comércio global. Em alguns casos, alegam que os países em desenvolvimento serão os que mais vão ganhar. No entanto, como mostra um recente estudo do Banco Mundial, a verdade é justamente o contrário. Este estudo fornece evidências muito úteis de que os ganhos primários da liberalização comercial para os países em desenvolvimento ocorreriam se os países ricos liberalizassem seu comércio agrícola, sem que os países em desenvolvimento fizessem o mesmo. Os dados do Banco sugerem que, se o comércio global fosse totalmente liberalizado, os países em desenvolvimento ganhariam US$ 129 bilhões e os países ricos US$ 137 bilhões. Entretanto, se a liberalização ficasse restrita aos países ricos, os países em desenvolvimento ganhariam US$ 142 bilhões (devido à balança comercial líquida, à medida que as exportações superassem as importações) e os países ricos perderiam US$ 142 bilhões. Os ganhos dos países de baixa renda seriam dobrados nesse cenário: ganhariam US$ 10 bilhões com a liberalização global, mas ganhariam US$ 21 bilhões se apenas os países ricos fossem liberalizados.16 Com base nesses números, fica claro que os países pobres não serão os maiores ganhadores com a liberalização comercial global, a despeito do que dizem os ricos. Ainda mais importante, essas cifras mostram por que o direito à proteção é crucial para os países mais pobres. seus agricultores, especialmente com as limitações institucionais e financeiras para prover outros tipos de apoio à agricultura. As conseqüências da redução de tarifas e de permitir que importações baratas inundem os mercados já foram analisadas. Por exemplo, o Marco de Referência de julho sugere que os países em desenvolvimento podem ser forçados a fazer reduções maiores de tarifas do que os países desenvolvidos (isto é, “através de cortes maiores nas tarifas mais altas”). É provável que todos aqueles países em desenvolvimento que durante as negociações comerciais da Rodada Uruguai optaram por impor tetos tarifários18 sejam agora penalizados, sendo forçados nos termos da fórmula em bandas (tiered formula), a realizarem os cortes maiores em todas as tarifas. Além disso, outras propostas discutidas nas negociações insistem na harmonização de tarifas entre os países, o que também significaria que os países em desenvolvimento teriam de realizar os cortes maiores. Os países do G-2019, que representam 65% da população mundial, reivindicaram que os países em desenvolvimento assumissem “menos compromissos de redução do que os países desenvolvidos”, com isenções para os menos desenvolvidos.20 24 O Marco de Referência de julho também introduz uma nova categoria de “produtos sensíveis”, afirmando que “os membros podem indicar o número adequado, a ser negociado, de linhas tarifárias que serão tratadas como sensíveis”. Isso ocorreu em conseqüência das pressões dos países desenvolvidos, especialmente da União Européia, Suíça, Japão, etc, para continuarem a proteger suas economias de várias exportações importantes de países em desenvolvimento. Assim, isso constitui uma espécie de tratamento especial para os países desenvolvidos! Representa uma aprofundamento do protecionismo, enquanto os mesmos países exigem cortes tarifários mais profundos de parte dos países em desenvolvimento. Provavelmente isso significa que os países desenvolvidos podem continuar com altas tarifas de importação sobre certos produtos, tais como açúcar, laticínios e produtos de carne, enquanto fazem dumping desses mesmos produtos nos mercados dos países em desenvolvimento. Ajuda interna No Marco de Referência de julho está declarado que cada país “fará uma redução substancial do nível geral de apoio às tarifas consolidadas que distorcem o comércio” (com exceção dos países O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO menos desenvolvidos, que estão isentos dos compromissos de redução). Também afirma-se que aqueles países com níveis mais altos de apoio “realizarão as maiores reduções gerais para atingir uma harmonização”. suas tarifas agrícolas mais do que os países desenvolvidos. O embaixador da Argentina na OMC sugeriu que a proposta poderia até mesmo significar que os subsídios dos EUA seriam de fato aumentados.26 O grupo de países do G-33, que atualmente é composto de 44 países em desenvolvimento ou menos desenvolvidos21, está se opondo às reduções do apoio doméstico ‘de minimis’ à agricultura nos países em desenvolvimento (ou seja, o limite abaixo do qual o gasto com ajuda interna deve ser obrigatoriamente reduzido), com o argumento de que esse apoio “constitui um instrumento político fundamental para apoiar os pequenos agricultores e aqueles com recursos escassos e para lidar com a segurança alimentar, a segurança dos meios de subsistência e o desenvolvimento rural”. Este apoio, afirma, é “um dos poucos caminhos que [esses países] têm atualmente para ajudar seus setores agrícolas de forma compatível com a OMC”.22 O Marco de Referência de julho também aumenta a capacidade de os países desenvolvidos darem apoio a seus agricultores. Estes países conseguiram modificar o critério que permite o apoio a seus agricultores nos termos da Caixa Azul.27 Isso possibilitará que esses países desloquem seus arranjos de ajuda interna de uma Caixa para outra, e significa que o nível geral de apoio doméstico não vai diminuir. Isso foi feito principalmente por exigência dos EUA, que desejam proteger os pagamentos anticíclicos a seus agricultores.28 A Oxfam calcula que esse deslocamento de Caixas permitiria aos EUA aumentarem essa ajuda, que distorce o comércio em cerca de US$ 7,9 bilhões por ano acima dos níveis atuais, e a União Européia, em aproximadamente € 28,8 bilhões por ano.29 A Declaração de Délhi (março de 2005) do grupo G-20 também exigia que não houvesse redução do apoio de minimis à agricultura nos países em desenvolvimento, afirmando que “os volumes de apoio nos países em desenvolvimento são insignificantes, se comparados aos dos países desenvolvidos”.23 As tentativas de outros países de estabelecerem limites para essa flexibilidade encontraram a oposição firme dos EUA, a um ponto em que essa questão tornou-se um dos obstáculos para o avanço das negociações. Há informações de que os EUA estão vinculando uma possível restrição nesses critérios da Caixa Azul a concessões de outros países nas negociações de acesso ao mercado.30 O G-20 tem sugerido que os subsídios internos sejam classificados em quatro bandas diferentes que, por sua vez, estariam sujeitas a cortes diferentes. Por exemplo, os países da União Européia seriam colocados na banda mais alta. A proposta também especifica que os países em desenvolvimento realizariam menos de dois terços dos cortes que seriam exigidos dos países desenvolvidos na mesma categoria.24 A União Européia e os EUA alegam que vêm cortando seus subsídios domésticos ao longo dos anos, porém, na realidade, não houve nenhuma redução substancial. Ao contrário, o apoio existente simplesmente mudou de categoria e, desde a Rodada do Uruguai, iniciada em 1986, o apoio total à agricultura nos países desenvolvidos tem permanecido em torno de US$ 250 bilhões por ano.25 No início de outubro de 2005, autoridades anunciaram amplamente que uma proposta dos EUA incluía cortes substanciais no apoio doméstico. No entanto, uma análise mais detalhada mostrou que a proposta resultaria em cortes desprezíveis nos subsídios pagos aos agricultores dos EUA e, ao mesmo tempo, também exigia que os países em desenvolvimento cortassem Em outubro, os EUA e a UE apresentaram propostas para cortar seus subsídios internos. Propuseram cortá-los em 60% e 70%, respectivamente. No entanto, de acordo com as estimativas da ActionAid, os EUA concedem atualmente US$ 25 bilhões por ano em subsídios agrícolas e, depois de implementada a atual proposta, ainda concederiam US$ 17-27 bilhões por ano. Da mesma forma, a UE concede cerca de € 64 bilhões anualmente. Pela atual proposta, ainda poderia conceder € 55-58 bilhões.31 Portanto, não há redução de subsídios. Ao mesmo tempo, atualmente não existe nenhuma restrição ao volume de recursos que os países podem alocar em pagamentos a seus agricultores, através de outro mecanismo de ajuda interna – a Caixa Verde.32 Os EUA e a União Européia, que são grandes exportadores de produtos agrícolas, têm aumentado significativamente o uso dessa categoria de apoio. Os países em desenvolvimento vêm pressionando por uma revisão do critério que permite a inclusão do apoio doméstico na Caixa Verde, propondo formas para modificar o critério. INVASORES DO COMÉRCIO 25 O desejo da União Européia de manter o status quo pode ser atribuído a temores de que as mudanças no critério de Caixa Verde possam prejudicar as recentes reformas da Política Agrícola Comum (CAP), pela qual a União Européia deslocou uma parte significativa de seu apoio à agricultura para a Caixa Verde. Nos EUA, os pagamentos nos termos da Caixa Verde já representam uma grande proporção de seu apoio à agricultura e, assim, mudanças nesse critério também levariam a modificações significativas no seu sistema de apoio. A estratégia da União Européia e dos EUA é uma contestação direta dos dispositivos da Declaração de Doha e do Marco de Referência de julho, que tratam das reduções da ajuda interna. Ao mesmo tempo, os países em desenvolvimento vêm implementando unilateralmente medidas de liberalização significativas nos seus setores agrícolas. Como parte de seus programas de ajuste estrutural e por exigência do Banco Mundial e do FMI, essas medidas de liberalização foram implementadas repetidas vezes. Subsídios às exportações Em relação aos subsídios às exportações, a Declaração de Doha concordava com uma “redução de todas as formas de subsídios às exportações, com a perspectiva de eliminá-los gradualmente”. Quase quatro anos depois, a União Européia, principal usuária de subsídios às exportações, continua se recusando a estabelecer uma data final para suprimi-los. Os EUA propuseram eliminar esses subsídios em cinco anos e os países em desenvolvimento também afirmaram que “um acordo num prazo curto criaria uma nova dinâmica nas negociações sobre agricultura e tornaria mais fácil avançar nas outras frentes”.33 A União Européia têm apresentado várias condições para eliminar os subsídios às exportações. Entre elas, estão propostas para que todos os países concordem com a “eliminação paralela” não somente dos subsídios às exportações, como também de “todas as formas” de subsídios, como créditos às exportações, e que os avanços nessa área sejam vinculados a movimentos de parte dos países em desenvolvimento para liberalizar os produtos industriais e serviços.34 Os níveis de subsídios continuam altíssimos e parcialmente encobertos. Por exemplo, os EUA concedem apoio às exportações duzentas vezes maior do que o declarado – o equivalente a US$ 6,6 bilhões por ano. A União Européia paga o 26 equivalente a US$ 5,2 bilhões por ano.35 Este fracasso em eliminar os subsídios às exportações garante a continuação do dumping. Tratamento especial e diferenciado O Marco de Referência de julho afirma que o tratamento especial e diferenciado para os paísesmembros em desenvolvimento é “uma parte integral dos acordos da OMC e deixa claro que os países menos desenvolvidos estão isentos de terem de reduzir tarifas e seu apoio doméstico. Além disso, esse documento promete a revisão dos dispositivos sobre tratamento especial do acordo de Doha, “com a perspectiva de reforçá-los e torná-los mais precisos, eficazes e operacionais”. Porém, o aprofundamento do tratamento especial simplesmente não está ocorrendo, principalmente por causa do bloqueio dos países desenvolvidos. O Marco de Referência de julho também declara que os países em desenvolvimento poderão “designar um número apropriado de produtos como produtos especiais, baseados nos critérios de segurança alimentar, segurança dos meio de subsistência e necessidade de desenvolvimento rural”. Finalmente, o documento afirma que um Mecanismo de Salvaguarda Especial (SSM) será estabelecido para utilização dos países em desenvolvimento. Contudo, decorrido um ano desde que esses compromissos foram assumidos, houve pouco avanço no estabelecimento desses mecanismos. Em junho de 2005, o grupo G-33 emitiu um comunicado reivindicando um “tratamento especial e diferenciado mais significativo” nas negociações e que um marco de referência sobre produtos especiais e um Mecanismo de Salvaguarda Especial fossem acordados na reunião ministerial de Hong Kong. O comunicado afirmava que “os produtos que se enquadrem nos critérios de segurança alimentar, segurança dos meio de subsistência e desenvolvimento rural devem ser designados como produtos especiais” e que cada país deveria ter a prerrogativa de decidir quais seriam esses produtos. O G-33 também afirmava que esses produtos deveriam ser isentos de compromissos de redução tarifária e deveriam ter acesso a um Mecanismo de Salvaguarda Especial. Este mecanismo deveria estar disponível para todos os países em desenvolvimento e “forneceria uma solução operacional mais efetiva contra os surtos de importação e as reduções de preços nos países em desenvolvimento”. O Mecanismo de Salvaguarda O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO África Ocidental: a disputa do algodão A disputa sobre algodão na OMC é um dos exemplos mais claros da falta de vontade dos países ricos em estabelecer regras justas de comércio. Essa disputa joga os agricultores de alguns dos países mais pobres do mundo contra os governos e os lobbies empresariais das nações mais ricas. O algodão constitui entre 50-80% das exportações dos Estados da África Ocidental, como Mali, Benin, Togo, Chade e Burkina Fasso, e mais de 10 milhões de pessoas na região dependem do algodão para sua subsistência. Os custos de produção estão entre os mais baixos do mundo, tornando os produtores da África Ocidental potencialmente os mais competitivos do mercado global. No entanto, os subsídios pagos pelos EUA e a União Européia a seus produtores de algodão estão distorcendo os preços internacionais e impedindo que os produtores da África Ocidental explorem suas vantagens comparativas. De acordo com os cálculos do Banco Mundial, o corte dos subsídios do algodão nos EUA aumentaria a renda dos agricultores africanos em US$ 250 milhões por ano.36 Nos últimos anos, os países africanos vêm lutando por justiça. O princípio de conceder tratamento especial ao algodão por causa de seu impacto na pobreza foi aceito antes da reunião ministerial de Cancún, em setembro de 2003, mas desde então houve poucos avanços. Ocorreu um certo avanço em junho de 2004, quando a OMC decidiu em favor do Brasil na sua disputa com os subsídios ao algodão nos EUA, e George Bush afirmou na recente reunião do G-8 que os EUA reduziriam seus subsídios. No entanto, com base nas cifras fornecidas pelo Departamento de Agricultura dos EUA, a ActionAid calcula que as exportações de algodão dos EUA vão cair somente 1,3-1,7%, mesmo que a proposta de Bush seja implementada. Ao mesmo tempo, os governos e as organizações de agricultores da África Ocidental continuavam a exigir a eliminação dos subsídios ao algodão e a solicitar tratamento especial para esse produto. A ministra de Comércio e Indústria do Chade, Ngarmbatina Soukate, enfatizou que precisavam ver avanços reais e tangíveis na resolução dessa disputa: “Não queremos declarações, precisamos de algo concreto para dar a nossos agricultores... É a nossa vida.”37 Especial (SSM) deve estar disponível, afirmava o comunicado, para todos os produtos agrícolas e ser invocado se o volume de importações de um produto determinado exceder o volume médio de importações dos três anos anteriores, ou se o preço das importações cair abaixo da média mensal dos três anos precedentes; neste caso, uma taxa ou restrições quantitativas poderiam ser aplicadas por um período máximo de um ano.38 A resposta dos países ricos a essa proposta é esclarecedora. De acordo com várias informações, os EUA e a União Européia, juntamente com a Nova Zelândia, Austrália, Tailândia, Malásia, Chile, Argentina e Colômbia, expressaram sua preocupação de que as questões mais amplas da liberalização e do acesso ao mercado pudessem ser diluídas. Esses países têm defendido uma restrição ao número de produtos especiais e os EUA e a União Européia também se opõem à isenção de redução tarifária para os produtos especiais. A Nova Zelândia deseja limitar o número de países que poderiam utilizar o Mecanismo de Salvaguarda Especial39, enquanto outros países têm defendido a limitação dos produtos especiais às colheitas dos agricultores de subsistência que vivam com menos de um dólar por dia.40 Os EUA se opõem fortemente ao Mecanismo de Salvaguarda Especial e desejam, tanto quanto possível, limitar seu escopo e flexibilidade. De fato, os EUA têm argumentado que a demanda por um Mecanismo de Salvaguarda Especial é uma duplicação da demanda por produtos especiais. O G-33 responde que os produtos especiais representam uma isenção de longo prazo dos compromissos da liberalização, enquanto o Mecanismo de Salvaguarda Especial é de curto prazo, para ajudar os países em desenvolvimento a enfrentar flutuações nos preços ou nos volumes de importação.41 Acredita-se que a União Européia apóia em princípio o Mecanismo de Salvaguarda Especial, porém não na forma em que está sendo atualmente proposto. A UE acredita que o mecanismo deve INVASORES DO COMÉRCIO 27 ser utilizado somente para enfrentar os surtos de importação (e não as depressões de preços) e que não deve estar disponível para todos os produtos agrícolas (somente para uns poucos produtos, a serem negociados). Assim, os países em desenvolvimento estão sob grande pressão para minimizar o escopo dos produtos especiais e da medida de Salvaguarda Especial. Além disso, os temas dos produtos especiais e do Mecanismo de Salvaguarda Especial foram relegados à periferia nas atuais negociações. O G-33 destacou recentemente sua insatisfação com esse aspecto, afirmando numa carta à OMC que “está cada vez mais preocupado com o fato de que as questões do tratamento especial e diferenciado não terem tido a plena atenção que merecem. O G-33 gostaria de destacar que o texto a ser apresentado aos ministros deve assegurar o mesmo nível de especificidade para todos os temas, incluindo as questões de tratamento especial e diferenciado. Para o G33, especificamente, seria difícil concordar com qualquer texto no qual as questões dos produtos especiais e da medida de Salvaguarda Especial não merecessem o mesmo nível de especificidade que as outras do pilar de acesso ao mercado”.42 A presidência das negociações sobre agricultura em Genebra observou em junho de 2005 que “não podemos tratar de questões como o Mecanismo de Salvaguarda Especial até que tenhamos implementado algumas estruturas básicas nos pilares de ajuda interna e de acesso ao mercado”.43 O risco para os países em desenvolvimento é só terem avanços nesse tratamento especial se concordarem com mais compromissos de liberalização do acesso ao mercado e do apoio doméstico. Ao mesmo tempo, os países desenvolvidos continuam a desfrutar de um direito similar. Eles têm acesso a Salvaguarda Especial (SSG), facilmente invocadas para proteger seus setores de surtos de importação. Isso significa que a União Européia pode utilizar essas salvaguardas especiais contra 539 produtos, os EUA contra 189, o Canadá contra 150 e Austrália contra 10. A FAO tem argumentado, em sintonia com as demandas dos países em desenvolvimento anteriormente mencionadas, que os próprios países devem ter o direito de decidir que produtos serão designados como produtos especiais e também que o Mecanismo de Salvaguarda Especial (SSM) deve estar disponível para todos os produtos. 28 Em relação ao contra-argumento de que o SSM provavelmente será mal utilizado, a FAO observa que a experiência da Salvaguarda Especial (SSG) sugere que isso não ocorreria, afirmando ser “improvável que os governos se comportem dessa forma porque a aplicação de uma SSG não é feita sem custo, especialmente custos administrativos”.44 Vários aspectos das propostas de produtos especiais e de Mecanismo de Salvaguarda Especial (SSM) ainda precisam de detalhamento; por exemplo, se deve haver uma definição de produtos especiais, que tipo de tratamento tarifário os países em desenvolvimento poderão usar com esses produtos e quais produtos poderão ser incluídos no SSM. Num estudo recente realizado pelo vice-diretorgeral da OMC e atual membro da Comissão de Planejamento do governo da Índia, Anwarul Hoda, são feitas várias sugestões. Em termos da identificação dos produtos especiais, as questões principais incluem a importância do produto na dieta da população, o nível de auto-suficiência Por que é crítica a proteção contra surtos de importação – o caso de Gana A pesquisa da ActionAid em Gana ilustra a necessidade vital de os países pobres terem medidas melhores para se proteger contra as importações baratas que podem prejudicar os agricultores locais. Nos anos recentes, os altos níveis de importações de arroz trouxeram uma queda de renda para os produtores internos. Por exemplo, em 2002, 66% dos agricultores tiveram rendimentos líquidos negativos na produção do arroz. No ano seguinte, 19% tiveram rendimentos negativos, enquanto 47% não tiveram perdas, porém nada ganharam. Em 2004, os preços declinantes do arroz importado outra vez causaram perda de renda para 66% dos agricultores. Como o arroz é tanto um alimentos básico como fonte de renda para muitas pessoas pobres de Gana, o efeito das importações baratas pode ser devastador, com a perda de renda levando diretamente à fome no período da entressafra. Por exemplo, no norte de Gana, durante o período de escassez de alimentos, de maio a julho, dois terços das famílias fazem somente uma refeição por dia. ActionAid Gana, Arrozais abandonados: estudo de surto de importação em Gana, 2005 O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO Brasil: liberalização do comércio permite que multinacionais arruínem os pequenos produtores de leite Um dos maiores produtores de leite do mundo, o Brasil forneceu mais de 23 bilhões de litros do produto em 2004. Com cerca de 1,4 milhão de estabelecimentos de agricultura familiar de pequeno porte envolvidos com a indústria de laticínios, a subsistência de muitos depende deste setor. Próximo à cidade de Santo Cristo, no estado do Rio Grande do Sul, os pequenos produtores contam como no ano passado a seca afetou essa região, destruindo as sementes. A produção de leite transformou-se na única atividade rural capaz de os sustentar. “Dia a dia, com chuva ou sol, as vacas continuavam produzindo”, contou um fazendeiro. “Eu considero o leite como um salário mensal”, disse Ademar Stelman, de 49 anos. “E vejo como estão indo à falência as fazendas que não produzem leite.” Na verdade, esse meio vital de sobrevivência está cada vez mais ameaçado pela competição do grande capital. Durante os anos 1990, muitas barreiras comerciais foram erguidas como parte da iniciativa governamental de atrair investimentos estrangeiros e cumprir com os compromissos com o FMI e, posteriormente, com a OMC. As tarifas de importação aplicadas ao setor de alimentos, por exemplo, caíram de 77% no final dos anos 1980 para 12% em meados da década de 1990. Com baixas tarifas e um enorme mercado de consumo (170 milhões de pessoas), o Brasil tem atraído cada vez mais a atenção das corporações multinacionais. Empresas como Parmalat e Elegê rapidamente assumiram o controle do mercado (acima de 70%) nos estados de Minas Gerais e Goiás, na medida em que os pequenos produtores não dispõem dos recursos necessários para resistir ou para competir com essas corporações gigantes. Os pequenos produtores familiares foram ainda mais afetados devido à queda contínua dos preços do leite, desde que despencaram em mais de 50% durante os anos 1990. Cilmar Dietrich, de 45 anos, um produtor de leite que vive próximo à cidade de São Lourenço do Sul, no estado do Rio Grande do Sul, lembra do tempo em que a vida era mais fácil. Conta que, quando era criança, seu pai produzia 22 litros de leite por dia. Isto era suficiente para cobrir todos os gastos domésticos e ainda sobrava dinheiro para a poupança. Mas hoje, diz ele, esse mesmo nível de produção cobre apenas os gastos com a alimentação da família e a compra de sementes para as plantações em suas terras. Sérgio Antonio Görgen, integrante do Movimento de Pequenos Produtores, afirma: “hoje há um poderoso movimento na produção de leite e derivados que... leva à exclusão dos pequenos produtores, e pensamos que é preciso sustar esse processo.” Rede Internacional de Gênero e Comércio (IGTN - International Gender and Trade Network) / ActionAid Brasil. Impactos da liberalização do comércio no setor de leite e derivados a partir de uma perspectiva de gênero, 2005. nesse produto e o percentual de mão-de-obra agrícola empregada na produção daquele produto. Hoda também argumenta que a “auto-escolha” dos produtos especiais pelos próprios países em desenvolvimento “é a única opção viável”, embora seja provável que faça parte de um pacote multilateral mais amplo sobre o comércio agrícola. Ele ainda argumenta que devem ser estudadas as isenções de redução tarifária para os produtos especiais e que o Mecanismo de Salvaguarda Especial deve estar disponível para todos aqueles produtos.45 As recomendações da ActionAid Esse capítulo mostra que as negociações atuais favorecem claramente os países ricos. Caso o acordo final seja parecido com o texto que está na mesa de negociações, a ActionAid acredita que os países pobres devem tomar uma atitude histórica e rejeitar o acordo. Para que o resultado favoreça o desenvolvimento, nas negociações sobre agricultura devem ser mantidos o direito de os países em desenvolvimento protegerem os meio de subsistência de seus agricultores pobres, de alcançarem a segurança alimentar e o desenvolvimento rural. Os produtos especiais e o Mecanismo de Salvaguarda Especial são veículos potenciais para alcançar esse direitos, mas somente se seus dispositivos não forem prejudicados. As seguintes questões precisam ser enfrentadas para um acordo que desenvolva a agricultura: INVASORES DO COMÉRCIO 29 • É preciso urgentemente conseguir um acordo sobre produtos especiais e o Mecanismo de Salvaguarda Especial. • Os países em desenvolvimento devem ter a liberdade de decidir que produtos devem ser incluídos como especiais. Esses produtos especiais devem ser isentos de reduções tarifárias e de qualquer compromisso sobre cotas tarifárias. Os produtos especiais devem também ter acesso ao Mecanismo de Salvaguarda Especial. • Somente os países em desenvolvimento devem ter a flexibilidade de enfrentar a volatilidade de preços e os surtos de importação através do Mecanismo de Salvaguarda Especial, que deve estar disponível para todos os produtos agrícolas. • Os subsídios ao algodão nos EUA devem ser imediatamente eliminados, para que os meios de subsistência de 10 milhões de plantadores de algodão na África Ocidental não sejam mais ameaçados. Esses plantadores de algodão africanos devem ser indenizados por suas perdas. internacional; essas medidas devem incluir o anúncio de uma data próxima para a eliminação dos subsídios às exportações. • Deve haver uma revisão abrangente e completa da Caixa Verde, para assegurar que todos os subsídios categorizados nessa Caixa preencham o critério de não distorcer o comércio ou de o fazer num grau mínimo. Esta revisão deve ter como objetivo avaliar o impacto dos subsídios de Caixa Verde sobre a produção e o comércio. Todos os subsídios de Caixa Verde devem ser inteiramente desvinculados da produção e voltados somente para a provisão de bens públicos. Os subsídios relacionados à produção devem ser eliminados e os restantes subsídios da Caixa Verde, além daqueles para serviços agrícolas gerais, devem ter um limite superior. • O dumping de produtos agrícolas deve ser proibido. • Deve ser introduzido no acordo um mecanismo de compensação para os países em desenvolvimento. Este mecanismo permitiria que os países em desenvolvimento enfrentassem os problemas causados pelos efeitos cumulativos dos altos níveis de produção e dos subsídios que distorcem o comércio concedidos à agricultura nos países ricos Isso possibilitaria que os países em desenvolvimento ajustassem seus níveis tarifários de acordo com o nível de subsídios dos países exportadores. • Os aumentos de tarifas e os picos tarifários impostos pelos países desenvolvidos devem ser eliminados. • Qualquer acordo na Rodada de Doha deve garantir melhor acesso aos mercados agrícolas dos países ricos, que beneficie os produtores pobres dos países em desenvolvimento. Além disso, a ActionAid exige que os seguintes princípios orientem qualquer novo marco para negociar um acordo sobre agricultura: • • 30 Os países desenvolvidos devem reconhecer os efeitos danosos das reformas anteriores do comércio, implementadas nos países em desenvolvimento nos termos dos programas de ajuste estrutural do FMI e Banco Mundial. Os países desenvolvidos devem tomar medidas concretas para eliminar todos os subsídios internos e subsídios às exportações que distorcem o comércio O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO Notas 1 Anwarul Hoda, Special Products: Options for Negotiating Modalities, ICTSD, Genebra, junho de 2005, versão preliminar, p. 14 2 Declaração à Comissão de Agricultura, Nutrição e Administração Florestal do Senado, http://www.ustr.gov/Trade_Sectors/Agriculture/ Agriculture_Recent_Updates/Section_Index.html 3 ActionAid Internacional, Power Hungry: Six Reasons to Regulate Global Food Corporations (Fome de Poder: seis razões para regulamentar as empresas globais de alimentos), 2005, www.actionaid.org 4 Estatísticas da África do Sul, Census of Commercial Agriculture 2002: Financial and production statistics. Relatório 11-02-2001, 2002; StatsSA/ Departamento Nacional de Agricultura, Pretória, p. 1 5 Farmworkers Research & Resource Project, Farm Labour Review: Farmworkers and Agriculture in South Africa, FRRP, Johannesburgo, 1996, p. 6 Ver Centro Africano de Biossegurança (African Centre for Biosafety), A Profile of Monsanto in South Africa, 2005, pp. 17-18, http://www. biosafetyafrica.net/briefing_papers.htm 7 Cynthia Ngijima, apresentação do Departamento de Saúde à Conferência Consultiva Internacional sobre Segurança Alimentar e Nutrição como Direitos Humanos, da Comissão Sul-Africana de Direitos Humanos, Randburg, 25-27 de março de 1999. 8 Mark Curtis, Trade for Life: Making Trade Work for Poor People, Christian Aid, Londres, 2001, pp. 41-2, 153-7; Oxfam, Europe’s Double Standards: How the EU should reform its trade policies with the developing world, documento de briefing da Oxfam N. 22, 2002, p. 11, www. oxfam.org; Mario Jales, Tariff Reduction, Special Products and Special Safeguards: An analysis of the agricultural tariff structures of G-33 countries, ICTSD, Genebra, junho de 2005, versão preliminar, p. 31 9 IATP, ‘A decade of dumping on world agricultural markets’, South Bulletin, 30 de março de 2005, pp. 127-9, www.southcentre.org 10 IATP, ‘A decade of dumping on world agricultural markets’, South Bulletin, 30 de março de 2005, pp. 127-9, www.southcentre.org 11 FAO, ‘The need for special safeguards for developing countries’, http://www.fao.org//docrep/005/y4852e/y4852e05.htm 12 FAO, A Special Safeguard Mechanism for Developing Countries, Notas Técnicas da FAO sobre Políticas Comerciais N. 9, sem data, http://www. fao.org/trade/policy_en.asp 13 FAO, A Special Safeguard Mechanism for Developing Countries, Notas Técnicas da FAO sobre Políticas Comerciais N. 9, sem data, http://www. fao.org/trade/policy_en.asp 14 Peter Mandelson, ‘EU conditional negotiating proposals’, declaração à Reunião Ministerial Informal da Rodada de Doha da OMC, 10 de outubro de 2005, http://www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_2005_en.cfm 15 Um grupo de 17 países líderes em exportações do mundo desenvolvido e em desenvolvimento. 16 Os tetos tarifários se referem à opção de consolidar todas as tarifas no mesmo nível relativamente alto, como 100 ou 150%. 17 Ralf Peters e David Vanzetti, Shifting Sands: Searching for a compromise in the WTO negotiations on agriculture, Policy Issues in International Trade and Commodities, Série de Estudos N. 23, Unctad, 2004, www.unctad.org 18 Banco Mundial, ‘Global agricultural reform: What is at stake?’, Global Agricultural Trade and Developing Countries, Washington DC, 2005, pp. 121-3 19 Um grupo de 21 países em desenvolvimento em 1 de novembro de 2005: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Egito, Guatemala, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Filipinas, África do Sul, Tanzânia, Tailândia, Uruguai, Venezuela e Zimbábue. 20 G-20, Declaração de Nova Délhi, março de 2005, parágrafo 19, http://www.twnside.org.sg/title2/twninfo190.htm 21 Membros do G-33 em 1 de novembro de 2005: Antígua e Barbuda, Barbados, Belize, Benin, Botsuana, China, Costa do Marfim, Congo, Cuba, República Dominicana, El Salvador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Índia, Indonésia, Jamaica, Quênia, Coréia do Sul, Maurício, Mongólia, Montserrat, Moçambique, Nicarágua, Nigéria, Paquistão, Panamá, Filipinas, Peru, São Cristóvão e Névis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Senegal, Sri Lanka, Suriname, Tanzânia, Trinidad e Tobago, Turquia, Uganda, Venezuela, Zâmbia e Zimbábue. 22 ‘G-33 ministerial communiqué: Food and livelihood security vital’, in South Bulletin, 30 de junho de 2005, p. 311, www.southcentre.org 23 ‘G-33 ministerial communiqué: Food and livelihood security vital’, in South Bulletin, 30 de junho de 2005, pp. 309-11, www.southcentre.org 24 ‘Clouds over agriculture negotiations prior to Dalian meet’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 13 de julho de 2005, www.ictsd.org 25 Oxfam, A Round for Free: How rich countries are getting a free ride on agricultural subsidies at the WTO, Documento de briefing da Oxfam N. 76, 15 de junho de 2005, p. 3, www.oxfam.org 26 Tetteh Hormeku, ‘US agriculture proposal criticised as inadequate and ignoring SDT for developing countries’, Serviço de Informação da Rede Terceiro Mundo, 15 de outubro de 2005, www.twnside.org.sg 27 Programas de ajuda interna que estão vinculados a programas de limitação da produção; por exemplo, quando o nível de pagamentos está baseado em área e produção fixas ou no número de cabeças animais. 28 Subsídios pagos aos produtores quando os preços dos produtos primários (commodities) caem abaixo de níveis específicos. 29 Oxfam, A Round for Free: How rich countries are getting a free ride on agricultural subsidies at the WTO, Documento de briefing da Oxfam N. 76, 15 de junho de 2005, p. 4, www.oxfam.org 30 ‘Agriculture: Following July stalemate, intense negotiations expected in lead-up to Hong Kong’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 3 de agosto de 2005, www.ictsd.org 31 Tanto a EU quanto os EUA deixaram de informar seu real apoio à agricultura desde 2001/2002. Portanto, as atuais estimativas são baseadas em dados obtidos em diferentes fontes. As estimativas futuras estarão sujeitas aos movimentos de preços internacionais, ao faturamento dos INVASORES DO COMÉRCIO 31 produtores rurais americanos em 2007 e às próximas reformas da Política Agrícola da União Européia. 32 Pagamentos de apoio aos agricultores; como são considerados que não distorcem o comércio, estão isentos de compromissos de redução. 33 ‘G-33 ministerial communiqué: Food and livelihood security vital’, in South Bulletin, 30 de junho de 2005, pp. 309-11, www.southcentre.org 34 Centro do Sul (South Centre), ‘State of play in agriculture negotiations: Country groupings’ positions’, julho de 2005, www.southcentre.org 35 Oxfam, A Round for Free: How rich countries are getting a free ride on agricultural subsidies at the WTO, Documento de briefing da Oxfam N. 76, 15 de junho de 2005, p. 3, www.oxfam.org 36 Citado em ‘US Cotton Subsidies: Killing farmers and poisoning consumers and the Earth’, 2003, http://www.organicconsumers.org/clothes/ willallen011504.cfm 37 Tetteh Hormeku, ‘African cotton countries demand concrete results at Hong Kong’, South-North Development Monitor, e-newsletter SUNS #5898, 20 de outubro de 2005, www.sunsonline.org 38 ‘G-33 ministerial communiqué: Food and livelihood security vital’, em South Bulletin, 30 de junho de 2005, pp. 309-11, www.southcentre.org 39 ‘Group of 33 submits proposals on special products and special safeguard mechanism in agriculture’, Serviço de Informação da Rede do Terceiro Mundo, 14 de junho de 2005, www.twnside.org.sg; ver também South Centre, ‘State of play in agriculture negotiations: Country groupings’ positions’, julho de 2005, www.southcentre.org 40 ‘Clouds over agriculture negotiations prior to Dalian meet’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 13 de julho de 2005, www.ictsd.org 41 ‘Busy agriculture week focuses on market access’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 8 de junho de 2005, www.ictsd.org 42 Carta do G-33 para a presidência das negociações sobre agricultura, 380/WTO/XI/05, 1 de novembro de 2005, http://www.tradeobservatory. org/library.cfm 43 Agriculture Negotiations – Status Report: Avaliação da Presidência, 27 de junho de 2005, JOB(05)/126, http://www.wto.org/english/tratop_e/ agric_e/negoti_tnc_july05_e.htm 44 FAO, A special safeguard mechanism for developing countries, Notas Técnicas da FAO sobre Políticas Comerciais N. 9, sem data, http://www. fao.org/trade/policy_en.asp 45 Anwarul Hoda, Special Products: Options for Negotiating Modalities, ICTSD, Genebra, junho de 2005, versão preliminar. 32 O COMÉRCIO DE ALIMENTOS E O PERIGO DE AMPLIAR A LIBERALIZAÇÃO Capítulo 3 A ameaça da desindustrialização Os países desenvolvidos estão atualmente pressionando por novas regras de comércio que permitam que seus exportadores inundem os mercados estrangeiros de produtos industrializados. Nas atuais negociações da OMC sobre o “acesso ao mercado de produtos não-agrícolas (ou NAMA), esses países estão pressionando por grandes reduções das tarifas sobre importações industriais nos países em desenvolvimento, como parte de um novo acordo multilateral.1 Como mostra um relatório recente da ActionAid, não há praticamente nada nessas negociações que vá beneficiar os países em desenvolvimento.2 Porém, esses países certamente têm muito a perder. Na verdade, os países em desenvolvimento podem perder o direito de promoverem políticas críticas para apoiar seus objetivos de desenvolvimento. As políticas comerciais, especialmente no setor de manufaturados e na agricultura, são um componente importante na promoção do desenvolvimento e da erradicação da pobreza nos países em desenvolvimento. As tarifas industriais cumprem um papel importante na proteção das indústrias nascentes, criando empregos e enfrentando os problemas do balanço de pagamentos. Por esse motivo, muitos países em desenvolvimento têm mantido flexibilidade nas suas políticas de comércio de produtos industriais, para assegurar o desenvolvimento de sua base manufatureira. Existe um perigo real de que isso acabe. O escopo e o ritmo das reduções tarifárias que estão sendo propostas atualmente podem levar a desindustrialização dos países em desenvolvimento, assim como à perda de empregos e de receitas governamentais essenciais. O que querem os países ricos Os EUA, a União Européia e o Canadá publicaram um documento conjunto em 2003 no qual afirmavam que sua meta básica para as negociações do NAMA era conseguir “aumentos comercialmente significativos de acesso a mercados, através de reduções ambiciosas de tarifas sobre produtos não-agrícolas em geral e a completa eliminação de tarifas em setores específicos”.3 A União Européia, em particular, identificou cortes profundos nas tarifas industriais como uma de suas primeiras prioridades na reunião de Hong Kong, afirmando que a União Européia continuaria “a liderar negociações em 2005 para conseguir uma fórmula ambiciosa de eliminação gradual das tarifas”, principalmente em “setores prioritários para a UE, especialmente têxteis e roupas, calçados e couro”. Seu objetivo geral é conseguir uma convergência entre a os membros da OMC “em torno dos menores níveis possíveis de proteção”.4 A Comissão Européia afirmou que a “indústria precisa de certezas” e por isso a UE deseja que os países em desenvolvimento “consolidem” suas tarifas de importação (isto é, que concordem em não INVASORES DO COMÉRCIO 33 aumentar as tarifas sobre importações de produtos industriais).5 O impacto da liberalização industrial O Comissário de Comércio da UE, Peter Mandelson, afirmou: “No caso do acesso ao mercado de produtos industriais, há um consenso crescente a favor de uma forma de redução de tarifas que abra genuinamente novas oportunidades de negócios, incluindo os mercados de crescimento rápido das nações emergentes.”6 Este consenso pode existir nos corredores da Comissão de Comércio em Bruxelas e também em Washington, mas certamente não existe em muitos países em desenvolvimento. Ao contrário, há grande oposição de vários grupos de países em desenvolvimento à ofensiva pelo acesso ao mercado de produtos industriais. Da mesma forma que nas negociações sobre agricultura, a linha oficial de Bruxelas e Washington é que a liberalização industrial será de interesse dos países em desenvolvimento. No entanto, as evidências do passado e do presente indicam um quadro diferente. Historicamente, os países desenvolvidos e alguns dos mais bem-sucedidos países em desenvolvimento alimentaram sua capacidade manufatureira doméstica com uma variedade de intervenções políticas, incluindo proteção tarifária. Esses países não foram forçados a adotar a liberalização do comércio e a maior parte das barreiras comerciais somente foram eliminadas quando o crescimento já estava firmemente estabelecido. As nações ricas de hoje se desenvolveram primeiramente com barreiras protetoras que só foram liberalizadas quando suas indústrias já eram competitivas. Isso é exatamente o oposto do que atualmente está sendo proposto para os países em desenvolvimento nas negociações do NAMA. A estratégia dos países ricos não é nada mais do que dificultar o desenvolvimento dos atuais países pobres.9 Logo atrás dos formuladores de políticas estão os grupos de interesses das corporações fazendo lobby por compromissos mais profundos com a liberalização. Ocupam posições de destaque entre esses grupos da indústria o Conselho Nacional de Comércio Exterior dos EUA, a Associação Nacional das Indústrias Manufatureiras (NAM) dos EUA e o grupo EuroComércio7, dos varejistas europeus, que não podem participar das negociações da OMC, mas têm permissão de organizar sessões de lobby durante as reuniões. Por exemplo, a NAM dirigiu uma delegação global de grupos de lobby da indústria nas negociações de Genebra, em abril de 2005, pressionando por “cortes realmente ambiciosos nas barreiras tarifárias industriais”. Esta Associação também observou que o “grande resultado das negociações sobre produtos industriais foi que todos os países aceitaram o princípio de grandes cortes tarifários e da eliminação setorial de tarifas” (embora, na verdade isso vá além do que foi acordado).8 A tabela a seguir mostra que tanto os EUA quanto o Reino Unido mantinham em 1950 tarifas mais altas sobre produtos industriais do que a tarifa média aplicada pelos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos em 2001. Isso ocorria apesar de os EUA serem, em 1950, quase três vezes mais ricos, e o Reino Unido mais de duas vezes mais rico, do que os atuais países em desenvolvimento.10 Como foi observado no capítulo 1, os tigres do Leste Asiático, como a Coréia do Sul e Taiwan, Tarifas industriais médias em países desenvolvidos e em desenvolvimento11 34 País Ano PIB per capita (US$) Tarifa média sobre produtos industriais (%) EUA 1950 9.561 14 Grã-Bretanha 1950 6.907 23 Brasil 2001 5.508 10,4 China 2001 3.728 12,3 Todos os países em desenvolvimento 2001 3.260 8,1 Todos os países menos desenvolvidos 2001 898 13,6 A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO não alcançaram a diversificação econômica e seu crescimento impressionante como resultado de uma liberalização laissez faire. Ambos os países apoiaram o desenvolvimento de uma capacidade manufatureira nacional através de uma diversidade de intervenções políticas, incluindo subsídios, incentivos fiscais, acesso a insumos livres de impostos e proteção tarifária. A maior parte dessas barreiras ao comércio somente foi eliminada na década de 1980, quando o crescimento já estava firmemente consolidado.12 Outros países, como Maurício, Vietnã e China, que têm sido bem-sucedidos em combinar desenvolvimento industrial com redução da pobreza, também protegeram seus mercados domésticos até que o crescimento estivesse bem avançado. Em Maurício, o PIB real cresceu em média 5,9% ao ano entre 1973 e 1999, porém a liberalização do comércio só foi iniciada no final da década de 1980 – e mesmo nessa época ainda restavam barreiras comerciais substanciais.13 Segundo o FMI, Maurício ainda era uma das economias mais protegidas do mundo no início dos anos 1990, recebendo uma classificação de 10, o que representava o mais alto nível de restrições de políticas de comércio.14 A história também nos mostra que a liberalização industrial rápida – por exemplo, como parte dos programas de ajuste estrutural – muitas vezes colocaram as empresas dos países em desenvolvimento em competição direta com as empresas dos países mais avançados, antes que aquelas empresas se tornassem competitivas. Em conseqüência, a produção industrial caía, as fábricas eram fechadas e os empregos perdidos. Isso tem levado à desindustrialização, crescente dependência de produtos primários e dificuldades no balanço de pagamentos. O impacto da liberalização do comércio na capacidade manufatureira local foi especialmente sério em países como Zimbábue, Bangladesh, Equador, Hungria, Filipinas e Gana. Nestes países, a liberalização foi seguida por declínio ou estagnação da participação da indústria manufatureira no PIB, enquanto a repentina exposição à competição estrangeira levou muitas empresas à falência. As pequenas e médias empresas foram as mais atingidas. Um estudo da UNCTAD envolvendo 40 países mostrou que metade deles sofreu desindustrialização após a liberalização do comércio. Muitos desses países, como Gana, Zimbábue, Paraguai, Barbados e Haiti, já estavam em níveis baixos de desenvolvimento, porém mesmo os que tiveram aumento nas exportações depois da liberalização, como Chile, Filipinas, Brasil e Venezuela, viram sua base industrial ser reduzida à medida que eliminaram suas barreiras comerciais. O estudo observa que uma diferença importante O impacto da liberalização do comércio de produtos industrializados15 • No Chile, o emprego líquido no setor manufatureiro caiu cerca de 8% depois da liberalização do comércio. • O Haiti, um dos países mais pobres do mundo, viu sua economia estagnar e seus indicadores sociais declinarem depois da redução das tarifas de importação, em meados dos anos 1990. • O Senegal perdeu um terço de todos os seus empregos no setor manufatureiro depois de um programa de liberalização de duas etapas, nos anos 1980. • Nas Filipinas, o programa abrangente de reformas aplicado nos últimos 15 anos causou quedas substanciais de produção em várias indústrias, incluindo têxteis, calçados e vestimentas. • Em Gana, calcula-se que o aumento da competição de produtos de consumo importados, depois da liberalização dos anos 1980 e início da década de 1990, forçou o fechamento de pelo menos 120 fábricas, com a perda de 50.000 empregos. Foram particularmente atingidos os setores de roupas, couro, produtos eletrônicos e farmacêuticos. • No Equador, a liberalização das importações contribuiu para um número crescente de falências e para o aumento do desemprego entre 1992 e 1998. INVASORES DO COMÉRCIO 35 entre os países bem-sucedidos e os malsucedidos foi que os primeiros embarcaram na liberalização do comércio “gradual e seletivamente, como parte de uma política industrial de longo prazo”, enquanto os últimos adotaram a “reforma estrutural rápida, incluindo uma liberalização uniforme e geral”. Na sua conclusão, o estudo observava: “Na forma recomendada pelo Consenso de Washington, a liberalização do comércio tem mais possibilidades de levar à destruição das indústrias existentes, especialmente daquelas que estão nos seus estágios iniciais, sem necessariamente levar ao surgimento de novas indústrias... Uma coisa está clara: qualquer indústria nova que surgisse estaria em sintonia com vantagens comparativas estáticas e não com vantagens comparativas dinâmicas. No caso particular dos países de baixa renda, isso significaria que estariam presos à produção e exportação de commodities primárias, processamento simples e, no melhor dos casos, operações de montagem de produtos ou outras atividades intensivas em mão-de-obra, com poucas perspectivas de melhoria.”16 Não queremos dizer que não haja exemplos nos quais uma maior abertura comercial tenha contribuído para o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza. Contudo, nesses casos, a liberalização foi gradual e direcionada, sendo realizada – como no Leste Asiático17 – como parte de uma estratégia bem planejada de desenvolvimento industrial. Mesmo na Índia, país muitas vezes apresentado como prova de que os “neoliberais” estão certos, a liberalização foi implementada parcial e gradualmente, mantendo a flexibilidade da política tarifária para alimentar e promover o desenvolvimento de sua base manufatureira. “Mesmo naqueles países onde a liberalização industrial contribuiu para o crescimento econômico, o processo tendeu a favorecer os trabalhadores qualificados sobre a mão-de-obra não qualificada. Isso é um problema significativo, pois o ‘teste de pobreza’ real para qualquer programa de liberalização deve ser sua capacidade de criar novas oportunidades de emprego para os trabalhadores não qualificados. A venda de mãode-obra não qualificada é a fonte de renda mais importante das pessoas pobres.18 Sem novos empregos para os trabalhadores não qualificados, 36 A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO dificilmente pode-se alegar que a liberalização do comércio favorece as pessoas pobres.” A magnitude da crítica acadêmica ao esforço atual pela liberalização industrial é notável, expondo a base intelectual extremamente frágil dos argumentos dos países ricos. Por exemplo, segundo o renomado economista Yilmaz Akyuz (que trabalhou para a UNCTAD de 1984 a 2003): “A questão-chave para os países em desenvolvimento não é o que se pode ganhar ou perder com a liberalização do comércio, em conseqüência de seus efeitos one-offNT... Ao contrário, são as implicações de deixar seu progresso industrial, avanço tecnológico e crescimento econômico nas mãos das forças do mercado global, dominado pelas grandes empresas maduras dos países industrialmente avançados.” Mesmo que os países em desenvolvimento pudessem evitar os custos one-off do ajuste da liberalização e do acesso aos mercados dos países desenvolvidos, observa Akyuz: “Esses benefícios one-off podem ser bastante insignificantes, comparados com as perdas de longo prazo que podem ocorrer em conseqüência da perda de espaço político na industrialização rápida.” O perigo é que qualquer deslocamento rápido para o livre mercado “estabeleceria uma divisão internacional de trabalho baseada inteiramente nas vantagens competitivas estáticas, derivadas das atuais habilidades e capacidades”. A conclusão de Akyuz é que “embora a proteção à indústria nascente não seja garantia de uma industrialização e crescimento bem-sucedidos, não há nenhum exemplo de industrialização moderna “Os arranjos institucionais que dão apoio a uma industrialização bem-sucedida não seguem um padrão uniforme; mas um ambiente político caracterizado pelo ecletismo e a flexibilidade, possibilitando que as medidas sejam ajustadas às circunstâncias econômicas locais e às preferências no que tange às soluções de compromisso entre o crescimento rápido e a estabilidade social.” UNCTAD, Crescimento e Desenvolvimento nos Anos 1990: Lições de uma Década Enigmática, TD/B/52/7, 14 de setembro de 2005. Índia: importações têxteis e de couro ameaçam milhões de empregos Nos últimos anos, o governo indiano embarcou numa estratégia de redução autônoma de suas tarifas sobre produtos industriais importados. As tarifas mais altas foram reduzidas de 355% em 1990-1991 – quando as reformas neoliberais foram iniciadas – para 105% em 2005, porém com a taxa real (aplicada) sendo reduzida de 133% para 22%. O resultado foi um surto de produtos industrializados importados, que é visto por muitos setores da indústria indiana como uma ameaça à industrialização nacional. Atualmente, a Índia vivencia o fechamento de muitas empresas em setores tradicionais de emprego, como o têxtil e o de couro. Nos últimos cinco anos, os índices de produção desses setores vêm declinando ou diminuindo de ritmo, à medida que diminuem as exportações e aumentam as importações. Um número crescente de unidades industriais têm fechado suas portas; e, no setor têxtil, o número de unidades fechadas dobrou de 220 em 1998 para 468 em 2004. O setor têxtil é vital para a Índia, contribuindo com 4% do PIB e empregando cerca de 30 milhões de pessoas, especialmente mulheres e trabalhadores com menos instrução ou qualificação. A perda de participação no mercado trouxe o desemprego para muitas dessas pessoas. Vishambar, um tecelão de seda de Varanasi de 35 anos, é um dos que perderam o emprego. “Não há trabalho,” diz ele. “Fico apenas sentado, pedindo esmolas… Quero trabalho pra mim e para as outras pessoas da aldeia.” Desde o ano 2000, o setor do couro, que emprega cerca de 2,5 milhões de pessoas, vem também sendo atingido pelo contínuo declínio das taxas de crescimento. Embora parte do problema seja relacionado às regulamentações ambientais impostas em meados dos anos 1990, a abertura do setor à competição internacional e a redução de tarifas causaram surtos de importação. Essas importações têm sido principalmente de produtos acabados, como malas e bolsas de mão, enquanto as exportações desses mesmos produtos vêm declinando. As reduções de tarifas sobre os produtos acabados de couro estão, portanto, pressionando muito as indústrias domésticas. Um fabricante de calçados de Agra explica a situação: “Em calçados fabricados com materiais sintéticos, a China tem uma grande vantagem competitiva e é muito difícil para os produtos indianos competirem com os chineses no mercado. Nós fabricamos um sapato por 150 rupias, enquanto os chineses podem vender um par de sapatos pelo mesmo preço. Uma maior redução das taxas sobre importação de sapatos vai nos afetar gravemente. As indústrias de calçado indianas ficarão em apuros, pois as chinesas têm uma vantagem competitiva muito boa em sapatos de materiais sintéticos.” Hosiyar Singh, pai de sete filhos, 42 anos, diz que a vida está ficando muito mais difícil. “O trabalho atualmente está reduzido por causa do governo. Eles continuam importando sapatos do exterior. Não estão exportando nada daqui. Ficamos sem empregos. Costumava fazer 150 pares por dia, agora faço somente 32 pares.” Além disso, as taxas aduaneiras também foram reduzidas. Elas contribuíam em mais de 30% para as receitas do governo em 1990, mas em 2004 representavam menos de 20%. Como proporção do PIB, isso foi uma redução de 3,6% para 1,8%. Esse declínio da receita aduaneira está ocorrendo a despeito dos surtos de importação resultantes das tarifas mais baixas. Assim, esse aumento das importações não foi suficiente para compensar a perda de receita. ActionAid Índia, NAMA e seu impacto na economia indiana, 2005. INVASORES DO COMÉRCIO 37 Nigéria: o setor têxtil enfrenta uma “tsunami industrial” A retirada das restrições sobre importações têxteis da Nigéria devastou a indústria têxtil do país. Ocorreu um descarregamento maciço de produtos manufaturados baratos, forçando os fabricantes locais a encerrarem suas atividades. Segundo o sindicato dos têxteis, vinte fábricas foram forçadas a fechar, com a perda de mais de 16.000 empregos. Levando em conta as famílias afetadas, isso significou que quase 100.000 pessoas perderam sua fonte de subsistência. Outras 18 fábricas correm o risco de fechamento. No total, foram perdidos pelo menos 58% do emprego da indústria desde 1998, o que levou o sindicato dos têxteis a descrever a situação como uma “tsunami industrial”. A indústria têxtil da Nigéria tem agora apenas 27% de participação no mercado interno. Os plantadores de algodão de Funtua, no norte da Nigéria, explicam a situação: “A indústria têxtil precisa do governo para proteger o mercado local através de tarifas altas sobre os produtos importados. A atitude governamental de não dar apoio à indústria está produzindo desemprego.” Os trabalhadores têxteis da vizinha Kano concordam que a indústria local precisa de proteção: “A política governamental de liberalização deveria ter sido introduzida somente depois que o governo estivesse seguro de que todas as coisas funcionavam bem. A política de liberalização do comércio levará ao colapso das indústrias nigerianas.” ActionAid Nigéria, O Impacto da Liberalização do Comércio sobre as Indústrias Têxteis, 2005. baseada no laissez-faire. Em conseqüência, há poucos razões econômicas para os países em desenvolvimento aceitarem a diminuição de suas opções de utilização de tarifas na industrialização, concordando com uma significativa consolidação e diminuição dessas tarifas nas atuais negociações sobre o NAMA”.19 Sanjaya Lall, da Universidade de Oxford, repete Akyuz ao observar: “As regras e pressões da liberalização ameaçam congelar a vantagem comparativa em áreas onde existem capacidades no momento da liberalização.” Ele também mostrou como a abordagem neoliberal das políticas industriais “pode resultar num desenvolvimento tecnológico lento e truncado, aumentando as distâncias entre os países”. Lall também observa que atualmente as ferramentas de políticas industriais permitidas pelas regras da OMC “provavelmente não são suficientes para fomentar um desenvolvimento rápido e factível das capacidades tecnológicas”. Ele reivindica uma política industrial para uma nova era, baseada num espaço político muito maior para os países em desenvolvimento.20 As negociações atuais O Marco de Referência da OMC de julho de 2004, no qual as atuais negociações estão baseadas, 38 A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO contém três perigos principais para os países em desenvolvimento: • Primeiro, cortes mais profundos de tarifas para os países pobres, através de uma fórmula de redução tarifária não-linear, que reduziria drasticamente as tarifas em muitos países em desenvolvimento, prejudicando seu espaço político e sua capacidade de proteger as indústrias nascentes e fortalecer a sua base industrial. • Segundo, a “iniciativa setorial” que harmonizaria, ou mesmo eliminaria, as tarifas em certos setores. • Terceiro, a demanda para que todos os países em desenvolvimento, incluindo os menos desenvolvidos, aumentem o nível de sua consolidação tarifária (isto é, estabeleçam uma taxa máxima além da qual as tarifas não podem ser aplicadas), abrindo mão de uma ferramenta política importante para ajudar sua industrialização. Os países em desenvolvimento deveriam ter um prazo mais longo do que os países ricos para reduzir suas tarifas e os países menos desenvolvidos (assim como outro grupo de doze países) deveriam ter isenção de redução tarifária. Entretanto, as reduções tarifárias dos países em desenvolvimento serão mais profundas em algumas áreas do que aquelas que os países ricos precisam realizar, pois atualmente os países em desenvolvimento têm tarifas mais altas. Os países em desenvolvimento estão também sendo pressionados para aumentarem o número de linhas de produtos industriais com tarifas consolidadas. Reduzindo tarifas A fórmula atualmente proposta pelos países desenvolvidos para a redução tarifária, a chamada “fórmula suíça não-linear”, significa que as tarifas mais altas sofrerão cortes maiores. Ou seja, os países em desenvolvimento, que têm tarifas mais altas, provavelmente vão ter de implementar reduções mais profundas. Por exemplo, em outubro de 2005, a UE e os EUA propuseram conjuntamente que as tarifas industriais tivessem um teto de 10% nos países desenvolvidos e de 15% nas nações em desenvolvimento.21 No entanto, a tarifa industrial média nos países desenvolvidos é de cerca de 6%, enquanto é de quase 30% nos países em desenvolvimento. Portanto, por essa proposta, seriam exigidos cortes mais profundos nos países pobres do que nos ricos. O Marco de Referência de julho também especifica que os países em desenvolvimento estarão sujeitos a “menos do que plena reciprocidade nos compromissos de redução” e que a fórmula de redução tarifária “deve levar plenamente em conta as necessidades e interesses especiais dos países em desenvolvimento e dos menos desenvolvidos”. Não somente a fórmula proposta é totalmente incapaz de enfrentar as necessidades especiais dos países em desenvolvimento, como também exige que estes países implementem mais do que plena reciprocidade com os países desenvolvidos em relação aos compromissos de redução. Além do mais, os cortes tarifários nos países em desenvolvimento vão representar uma perda significativa de receitas fiscais. Um documento do grupo de países Africanos, Caribenhos e do Pacífico (ACP) submetidos às negociações do NAMA observa que, em média, 40% das receitas governamentais vêm das receitas tarifárias e que qualquer perda precisaria ser substituída num “processo de longo prazo que pode ser dispendioso e que muitos países do ACP não podem implementar”. Eles observam que “impostos sobre vendas ou sobre o consumo poderiam substituir as receitas tarifárias, mas mudanças de tal importância nos sistemas fiscais são onerosas e podem anular o objetivo do exercício”.22 Iniciativa setorial Os países desenvolvidos estão também pressionando fortemente pela iniciativa setorial – a eliminação ou redução de tarifas em setores inteiros. Recentemente, foram realizadas discussões em Genebra sobre setores, tais como os de eletrônicos, produtos químicos, pescados, calçados, pedras preciosas e jóias. Muitos países em desenvolvimento têm mantido sua longa oposição a compromissos compulsórios, insistindo que qualquer participação na iniciativa setorial deve ocorrer em base voluntária. Por causa desta oposição, os países desenvolvidos agora pressionam por uma “abordagem de massa crítica”, para que haja concordância em liberalizar uma certa proporção do comércio num determinado setor.23 Um setor de interesse fundamental para muitos países em desenvolvimento é o têxtil, que é um componente importante do desenvolvimento industrial de vários deles. O encerramento do Acordo sobre Multifibras (MFA, na sigla em inglês) em janeiro de 2005 – que extinguiu o sistema de cotas e liberalizou o comércio do setor – colocou os fabricantes de têxteis com custos mais altos, por exemplo, do Nepal, Camboja, Bangladesh e Sri Lanka, em competição direta com produtores que têm custos mais baixos, como os da Índia e China. Muitos desses países já estão sofrendo o impacto através da perda de empregos, queda de produção e declínio nos mercados de exportação, como mostra o estudo de caso da ActionAid sobre a Índia. A harmonização ou eliminação de tarifas sobre têxteis, através da abordagem setorial, pode prejudicar ainda mais esses países. “Qualquer que seja o enfoque, os países em desenvolvimento serão levados a fazer os cortes maiores em suas taxas máximas (bound rates) e vão enfrentar acréscimos proporcionalmente maiores a suas importações. Sofrerão, também, importantes perdas em receitas tarifárias, o que será uma grande preocupação na maior parte dos casos.” Santiago de Cordoba e outros, Market Access Proposals for Non-agricultural Products (Propostas de Acesso a Mercados para Produtos Não-agrícolas), UNCTAD, 2005 INVASORES DO COMÉRCIO 39 Como foi observado na seção anterior, a redução de tarifas provavelmente vai significar um aumento significativo das importações de países desenvolvidos, que pode levar a dificuldades no balanço de pagamentos e à competição crescente para os produtores domésticos. Nos casos em que a indústria doméstica é pequena e incipiente, a redução prematura de tarifas provavelmente acarretará perda de produção e desemprego, assim como também prejudicará o espaço político e a capacidade de os países pobres protegerem e desenvolverem suas indústrias nascentes e reforçarem sua base industrial. Várias análises acadêmicas têm demonstrado a importância vital das tarifas para o desenvolvimento industrial. Um desses estudos, examinando 100 países, concluiu que as tarifas iniciais contribuíram positivamente para o crescimento durante o período 1970-1997, especialmente nos países em desenvolvimento. Outro estudo concluiu que as relações entre tarifas e crescimento foram negativas entre os países desenvolvidos, porém positivas nos países em desenvolvimento.24Yilmaz Akyuz argumenta que “uma estrutura tarifária racional, baseada na proteção seletiva e temporária, parece ser um dos fatores que diferenciam as economias do Leste Asiático, tais como Taiwan e Coréia do Sul, dos países menos bem-sucedidos que tinham proteção tarifária média e distorção de preços similares ou ainda menores. Deste ponto de vista, os países desenvolvidos estão pressionando os países pobres para que “cortem seus próprios pescoços”.25 Tarifas consolidadas As exigências de aumento do nível de consolidação tarifária, especialmente para os países menos desenvolvidos, assemelha-se a uma camisade-força para aqueles que, no futuro, podem precisar utilizar as tarifas para aumentar a receita governamental, fomentar o estabelecimento de novas indústrias ou proteger indústrias nascentes. Um documento submetido às negociações pelo grupo ACP afirma que se os países em desenvolvimento forem forçados a reduzir sua consolidação tarifária para níveis abaixo das taxas aplicadas, ou seja, das taxas reais, “então isso eliminaria qualquer flexibilidade que os países em desenvolvimento teriam na utilização de tarifas para fins de desenvolvimento”. Embora os países possam apelar para ações antidumping e outras medidas de restrição de importações, “para os países do grupo ACP o uso desses instrumentos é muito oneroso e, portanto, nosso mecanismo 40 A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO primário de defesa continua a ser manter as tarifas consolidadas num nível suficiente”.26 Como observou Veena Jha, o processo de consolidação é em si mesmo uma concessão dos países em desenvolvimento, pois atualmente eles têm o direito de aumentar suas tarifas para o nível que quiserem. Enquanto os países desenvolvidos consolidaram 98% de suas tarifas sobre produtos industrializados, os países em desenvolvimento consolidaram 77% e os menos desenvolvidos somente 33%.27 Espera-se agora que os países em desenvolvimento, que não estão entre aqueles menos desenvolvidos, aumentem sua cobertura para no mínimo 95%. Muitos países em desenvolvimento podem ser afetados negativamente por esse aumento na consolidação, pois mantiveram um número significativo de linhas tarifárias não consolidadas. Países como Bangladesh, Burundi, Chade, Gâmbia, Moçambique, Mianmar, Tanzânia, Togo, Uganda e Zâmbia têm todos uma cobertura de consolidação de menos de 10%. Outros países também possuem baixa cobertura de consolidação, como Camarões (0,1%), Congo (3,2%), Gana (1,2%), Quênia(1,6%), Nigéria (6,9%) e Zimbábue (9%). O processo de negociações do NAMA também é fundamentalmente falho. A presidência das negociações reintroduziu um texto básico que favorece de forma flagrante os países desenvolvidos e que muitos países em desenvolvimento tinham rejeitado na reunião ministerial de Cancún. Estes países só concordaram com a inclusão desse texto mediante a insistência de que fosse precedido de um primeiro parágrafo afirmando que seus componentes principais – incluindo a fórmula de redução tarifária, o tratamento das tarifas não consolidadas e a iniciativa setorial – ainda teriam de ser acordados e negociados. Ao mesmo tempo, a União Européia faz todos os esforços para negociar uma solução de compromisso entre suas preocupações defensivas na agricultura e seus interesses ofensivos no NAMA. Peter Mandelson afirmou que a União Européia está pronta para eliminar gradualmente seus subsídios às exportações, porém somente em troca de cortes nas tarifas industriais nos países em desenvolvimento.28 Tratamento especial e diferenciado As negociações do NAMA estão em grande parte paralisadas e sujeitas a desacordos intensos, principalmente entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, e envolvendo a fórmula de redução tarifária. Em julho de 2005, a presidência das negociações relatava que “atingimos um impasse”.29 As posições sobre o NAMA estão endurecendo, de acordo com o ex-diretor-geral da OMC, Supachai Panitchpakdi, por causa da “falta de avanços na agricultura”.30 Na verdade, as propostas alternativas dos países em desenvolvimento estão sendo bloqueadas ou adiadas pelos países desenvolvidos. Em julho de 2005, um documento conjunto de alguns países caribenhos (Antígua e Barbuda, Barbados, Jamaica e Trinidad e Tobago) propunha uma fórmula alternativa de redução tarifária baseada em cortes médios, no lugar da “fórmula suíça” simples. Isso incluía a necessidade de os países em desenvolvimento “terem flexibilidade e espaço político para variar seus níveis tarifários de acordo com acontecimentos e necessidades, como mudanças das prioridades econômicas ou das circunstâncias” e “serem capazes de adotar medidas que levem a um desenvolvimento industrial bem-sucedido”.31 Esta proposta foi bem acolhida por muitos países, incluindo Índia, Quênia, Bolívia e Argentina, porém a União Européia expressou desconfiança, afirmando que o uso de uma tarifa média não era aceitável e que a proposta seria um obstáculo nas negociações.32 Uma proposta conjunta do Congo, Costa do Marfim, Cuba, Quênia, Maurício e Zimbábue exigia que os países consolidassem suas tarifas em níveis “consistentes com suas necessidades de desenvolvimento, comerciais e fiscais”, enquanto um documento assinado pela Armênia, Geórgia, Quirguistão e Moldávia – países que são membros recentes da OMC – reivindicava que suas economias fossem isentadas das reduções tarifárias. Há informações de que “os países desenvolvidos não gostaram dessas propostas e ambas enfrentaram a reação negativa da União Européia, EUA e outros países.33 Os países desenvolvidos também se opuseram a uma proposta conjunta da Argentina, Brasil e Índia em favor de uma forma de redução tarifária alternativa que fortaleceria o tratamento especial para os países em desenvolvimento e não exigiria que fizessem reduções tarifária mais profundas do que os países desenvolvidos. Os EUA e a União Européia expressaram a preocupação de que a proposta não reduzisse as tarifas aplicadas existentes. Os EUA afirmaram que “não há nada a ganhar em termos de acesso real ao mercado se não diminuirmos as tarifas aplicadas”, enquanto a UE afirmava que o “fim das taxas é de importância primária para as empresas da Comunidade Européia”.34 O Paquistão também apresentou uma proposta tentando encontrar bases comuns nas negociações do NAMA. Os governos africanos estão muito preocupados que a liberalização tarifária multilateral tenha como conseqüência a perda de acesso preferencial aos mercados dos países ricos que desfrutam atualmente. Um documento do Grupo Africano, de fevereiro de 2005, submetido às negociações, observava que a maioria dos países africanos depende atualmente das preferências para grande parcela de suas exportações e que “qualquer nova liberalização deve levar em conta esta realidade comercial, para evitar mais marginalização de alguns países africanos, que precisam adaptar progressivamente sua frágil base industrial. O documento afirma que a “desigualdade de fatores econômicos e níveis de desenvolvimento significa que esses países não podem participar de comércio recíproco sem efeitos devastadores para suas estruturas econômicas” e que “muitos desses países dependem de indústrias específicas e têm economias que são sensíveis às flutuações tarifárias”. Em relação à proposta de iniciativa setorial, isso “vai dificultar o desenvolvimento de setores industriais na África”. A proposta africana é de um “coeficiente de correção” a ser aplicado para melhorar a margem de preferência das exportações africanas.35 Foram apresentadas várias alternativas à liberalização indiscriminada que os países ricos estão propondo. Por exemplo, Sanjaya Lall, numa análise anteriormente citada, reivindicou uma política industrial de quatro etapas “para a nova era”. A primeira etapa seria fornecer a formuladores das políticas uma análise objetiva e detalhada do que os países bem-sucedidos fizeram para desenvolver suas capacidades industriais. “Isso não ocorre atualmente”, observa Lall. “Ao contrário, o sistema nega que uma política industrial tenha qualquer papel a cumprir.” A segunda etapa é criar um espaço maior para a política industrial nos acordos internacionais de comércio. A terceira etapa envolve o desenvolvimento de capacidade para montar uma política industrial, incluindo a construção de competência administrativa e fortalecimento das capacidades governamentais. A quarta etapa seria ajudar a conceber estratégias adequadas para cada país. “Se nesse momento parece uma proposta sem esperanças, pense na alternativa de continuar com a liberalização indiscriminada”, adverte Lall.36 Yilmaz Akyuz argumenta que os países em desenvolvimento não precisam de tarifas altas INVASORES DO COMÉRCIO 41 “para todos os setores, durante todo o tempo. Porém, devem ter a opção de usar tarifas numa base seletiva, quando forem necessárias para o progresso da industrialização. Não se deve esperar que diminuam suas tarifas de uma rodada comercial para outra, mas que possam movê-las nas duas direções, em diferentes setores, no curso do desenvolvimento industrial”.37 As recomendações da ActionAid A ActionAid acredita que as atuais negociações sobre o NAMA certamente serão prejudiciais e poderão ser desastrosas para o desenvolvimento industrial e a redução da pobreza nos países em desenvolvimento. Caso o acordo final seja parecido com esse que está na mesa de negociações, a ActionAid acha que os países pobres devem assumir uma atitude histórica e rejeitá-lo. Além disso, é importante que: • O texto atualmente sendo negociado (desde julho de 2004) seja rejeitado. • Seja realizado uma avaliação completa e independente dos potenciais impactos das negociações do NAMA no desenvolvimento e no meio ambiente. A ActionAid também acredita que os seguintes princípios devem guiar qualquer novo marco de referência para negociações do NAMA: • Os países em desenvolvimento devem ter a possibilidade de manter a flexibilidade para escolher que linhas de produtos consolidar e a que níveis. • Os países em desenvolvimento devem manter a flexibilidade de escolher seus compromissos de redução tarifária. • Ajuda e capacitação devem estar acessíveis para permitir que os países em desenvolvimento participem completa e efetivamente das negociações. • Os países menos desenvolvidos devem ser isentados de todos os compromissos e devem ter acesso imediato aos mercados dos países desenvolvidos, sem taxas ou cotas. • A erosão da preferência, o uso de medidas antidumping e de outras medidas para bloquear as importações dos países em desenvolvimento devem ser adequadamente enfrentados. • Os interesses de todos os países em • Os países desenvolvidos devem enfrentar • Deve haver menos que plena reciprocidade, • As iniciativas setoriais devem ser desenvolvimento – especialmente daqueles menos desenvolvidos – devem estar no centro das negociações. assim como um efetivo e significativo 42 tratamento especial e diferenciado, para os países em desenvolvimento em todos os aspectos das negociações. A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO os picos tarifários, a escalada de tarifas e as barreiras não-tarifárias no seus setores industriais. abandonadas. Notas 1 As negociações incluem principalmente os produtos industriais, mas envolvem também a pesca e os minerais. 2 ActionAid, Bound and Tied: The Developmental Impacts of Industrial Trade Liberalisation Negotiations at the WTO, http://www.actionaid.org. uk/wps/content/documents/wto_nama.pdf 3 Non-Agricultural Market Access - Modalities, contribuição do Canadá, Comunidade Européia e EUA, 20 de agosto de 2003, JOB(03)/163, http:// www.ictsd.org/ministerial/cancun/documents_and_links.htm 4 Comissão Européia, DG trade, ‘EU trade policy: main issues for the 133 Committee in the second half of 2005’, Bruxelas, 1 de julho de 2005; http://www.europa.eu.int/comm/trade/issues/sectoral/industry/tntb/index_en.htm 5 http://www.europa.eu.int/comm/trade/issues/sectoral/industry/tntb/index_en.htm 6 Peter Mandelson, discurso, 28 de julho de 2005, http://www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles 7 Para uma amostra das posições do grupo de lobby empresarial, ver ‘NAM leads manufacturers’ fly-in to Geneva seeking reduction of tariff barriers to trade’, Associação Nacional das Indústrias Manufatureiras, 11 de abril de 2005, http://www.nam.org/s_nam/doc1.asp?CID=202217& DID=233755; ‘Vargo says agreement will boost Doha Round’s industrial trade negotiations’, Associação Nacional das Indústrias Manufatureiras, 3 de junho de 2005, http://www.nam.org/s_nam/doc1.asp?CID=67&DID=234308. Ver também Bound and Tied, p. 34ff, www.actionaid.org 8 John Hilary, The Doha Deindustrialisation Agenda, War on Want, abril de 2005, p. 11. 9 Ha-Joon Chang, Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective, Anthem Press, Londres, 2002 10 Meena Raman, ‘Experts warn of devastating effects of NAMA framework’, Serviço de Informação da Rede do Terceiro Mundo, 22 de maio de 2005, www.twnside.org.sg 11 ActionAid, NAMA Negotiations at the WTO: Policy Briefing for the October General Council, ActionAid Internacional, 2005 12 Dani Rodrik, The Global Governance of Trade as if Development Really Mattered, Pnud, 2001. 13 A. Subramanian, e D. Roy, Who can explain the Mauritian Miracle: Meade, Romer, Sachs or Rodrik?, Documento de trabalho do FMI, WP/01/116, www.imf.org 14 Ibidem. 15 S. Shafaeddin, Trade Liberalisation and Economic Reform in Developing Countries: Structural Change or De-industrialisation?, Documento de discussão N. 179, Unctad, abril de 2005, www.unctad.org; S. Shafaeddin, Trade Policy at the Crossroads – The Recent Experience of Developing Countries, Palgrave Macmillan, Nova York, 2005; SAPRIN, Structural Adjustment: The Policy Roots of Economic Crisis, Poverty and Inequality, Zed Books, 2004, cap. 2; E. Buffe, Trade Policy in Developing Countries, Cambridge University Press, Cambridge, 2001. 16 S. Shafaeddin, Trade Liberalisation and Economic Reform in Developing Countries: Structural Change or De-industrialisation?, Documento de discussão N. 179, Unctad, abril de 2005, www.unctad.org 17 S. Shafaeddin, Trade Policy at the Crossroads – The Recent Experience of Developing Countries, Palgrave Macmillan, Nova York, 2005. 18 Banco Mundial, PRSP Sourcebook, cap. 13, Washington DC, 2004 NT One-off é um termo que significa limitado a uma única vez, ocasião ou circunstância (Nota do Tradutor). 19 Yilmaz Akyuz, ‘WTO’s NAMA negotiations: Policy space at stake’, South Bulletin, 30 de julho de 2005, pp. 364-70, www.southcentre.org 20 Sanjaya Lall, Reiventing Industrial Strategy: The Role of Government Policy in Building Industrial Competitiveness, Documento de discussão do G-24 N. 28, Unctad, Abril de 2004, www.unctad.org 21 ‘EU links progress on agriculture to deep NAMA tariff cuts’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 5 outubro de 2005, www.ictsd.org 22 Grupo de Negociação sobre o Acesso ao Mercado, Market Access for Non-agricultural Products: Communication from Trinidad and Tobago on Behalf of the ACP Group of States, TN/MA/W/47, 30 de março de 2004, http://www.namawatch.org/wto.html 23 Martin Khor, ‘Fate of South’s industries at stake in WTO’s NAMA negotiations’, Serviço de Informação da Rede do Terceiro Mundo, 21 de setembro de 2005, www.twnside.org.sg 24 Citado em Yilmaz Akyuz, ‘WTO’s NAMA negotiations: Policy space at stake’, South Bulletin, Edição N. 108, 30 de julho de 2005, p. 367, www. southcentre.org 25 Yilmaz Akyuz, ‘WTO’s NAMA negotiations: Policy space at stake’, South Bulletin, Edição N. 108, 30 de julho de 2005, p. 367, www.southcentre. org 26 Grupo de Negociação sobre o Acesso ao Mercado, Market Access for Non-agricultural Products: Communication from Trinidad and Tobago on Behalf of the ACP Group of States, TN/MA/W/47, 30 de março de 2004, http://www.namawatch.org/wto.html 27 Veena Jha, ‘NAMA: Policy space for development at stake’, South Bulletin, 15 de julho de 2005, p. 336, www.southcentre.org; Santiago Fernandez de Cordoba et al, Blend it like Beckham: Trying to read the ball in the WTO negotiations on industrial tariffs, junho de 2004, p. 7. 28 Peter Mandelson, ‘Trade and Development: The Road Ahead’, discurso na Conferência EPC-KBF, 16 de junho de 2005, http://www.europa. eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_2005_en.cfm 29 Grupo de Negociação sobre o Acesso ao Mercado, State of Play of the NAMA Negotiations: Chairman’s Commentary, 8 de julho de 2005, JOB(05)/147, http://namawatch.org/wto.html 30 Tetteh Hormeku, ‘Major differences in NAMA talks’, TWN-Africa, 8 de julho de 2005, www.namawatch.org 31 A Development-oriented Approach to Tariff Reduction, Comunicação de Antígua e Barbuda, Barbados, Jamaica, e Trinidad e Tobago, 5 de julho INVASORES DO COMÉRCIO 43 de 2005, http://www.namawatch.org/wto.html 32 Tetteh Hormeku, ‘Trade: Caribbean countries propose new formula at NAMA meeting’, TWN-Africa, 5 de julho de 2005, www.namawatch.org 33 Tetteh Hormeku, ‘Major differences in NAMA talks’, TWN-Africa, 8 de julho de 2005, www.namawatch.org; ‘New Caribbean formula stirs up NAMA talks’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 6 de julho de 2005, www.ictsd.org 34 Goh Chien Yen, ‘Trade: divergencies over modalities to tariff reduction in NAMA talks’, 8 de junho de 2005, www.namawatch.org 35 Grupo de Negociação sobre o Acesso ao Mercado, Market Access for Non-agricultural Products: Treatment of Non-reciprocal Preferences for Africa, Comunicação de Ruanda em nome do Grupo Africano, TN/MA/W/49, 21 de fevereiro de 2005, http://www.namawatch.org/wto.html 36 Sanjaya Lall, Reiventing Industrial Strategy: The Role of Government Policy in Building Industrial Competitiveness, Documento de discussão do G-24 N. 28, Unctad, abril de 2004, www.unctad.org 37 Yilmaz Aykuz, The WTO Negotiations on Industrial Tariffs: What is at Stake for Developing Countries?, Rede do Terceiro Mundo, maio de 2005, p. 26 44 A AMEAÇA DA DESINDUSTRIALIZAÇÃO Capítulo 4 Serviços: a nova fronteira da liberalização Os países em desenvolvimento enfrentam outra ameaça nas negociações sobre serviços. Nestas negociações, os países desenvolvidos estão aumentando a pressão sobre os países em desenvolvimento para que façam “ofertas” de abrir seus setores de serviços aos exportadores estrangeiros. Isso faz parte de um grande esforço, apoiado pelas empresas, para assegurar o acesso a novos e lucrativos mercados. A ameaça está na possibilidade de as companhias estrangeiras assumirem o controle de negócios e setores nascentes nos países pobres, assim como da privatização de serviços públicos básicos. Apesar da firme resistência dos países em desenvolvimento (sem falar dos grupos da sociedade civil em todo mundo), nenhum setor, incluindo serviços essenciais como água, educação e saúde, está excluído da possibilidade de liberalização nessas negociações. A estratégia dos países desenvolvidos também envolve pressões para modificar as regras do jogo, de um processo que permite ofertas puramente voluntárias para outro que negocia compromissos mínimos de liberalização de todos os países. Ao mesmo tempo, os países desenvolvidos resistem às reivindicações dos países em desenvolvimento para que liberalizem as regras de movimentação de trabalhadores através de fronteiras – o que é seu interesse básico nessas negociações. O que querem os países ricos A Comissão Européia afirmou recentemente: “Para a Comunidade Européia, o principal objetivo das negociações sobre serviços é melhorar o acesso aos mercados estrangeiros para os exportadores e serviços europeus, assegurando um ambiente regulatório mais transparente e previsível para os serviços.” Em janeiro de 2005, a União Européia submeteu à OMC uma lista de “solicitações” de liberalização em outros países, em setores como serviços financeiros, turismo, serviços ambientais e de água, e construção. A União Européia assegura que não está buscando compromissos de liberalização que desmontem ou privatizem os serviços públicos, como o abastecimento de água. No entanto, as solicitações cobrem “todos os subsetores do meio ambiente”, como a coleta de água, serviços de tratamento e distribuição e serviços de esgoto, assim como algumas solicitações procuram compromissos de liberalização em “serviços públicos tradicionais (especialmente serviços municipais)”, como os setores de água e lixo.1 O conjunto anterior de “solicitações” GATS da União Européia, de 2003, mostrava que estava buscando a liberalização dos serviços de água em 72 países (de um total de 102 “solicitações” de liberação de serviços). Durante as negociações do GATS, a posição da União Européia vem sendo fortemente influenciada pelo Fórum Europeu de Serviços (ESF, na sigla em inglês), um grupo de lobby das companhias de serviços. Numa correspondência confidencial com o ESF, a Comissão observou que “a contribuição da indústria para esse exercício seria muito bemvinda, tanto em termos de apontar onde estão os problemas quanto em termos de fazer solicitações específicas. Sem a contribuição do ESF, este exercício corre o risco de se tornar puramente intelectual”. Depois da reunião ministerial de INVASORES DO COMÉRCIO 45 Os serviços e o acordo do GATS O Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS) estendeu as regras da OMC para incluir serviços de forma abrangente, de serviços bancários e de turismo até serviços essenciais, como água, transporte, saúde e educação. Da mesma forma que outros acordos da OMC, o objetivo do GATS é a “liberalização progressiva”, isto é, a remoção de restrições comerciais “desnecessárias” e de regulamentações governamentais que sejam consideradas barreiras ao comércio entre os países. O acordo do GATS permite que os países escolham entre abrir ou não seus serviços ao processo de liberalização; porém, se o fazem, a regra de tratamento nacional se aplica (segundo ela, os fornecedores de serviços estrangeiros devem ser tratados da mesma forma que as empresas nacionais). Arquivo ActionAid Brasil Os serviços são a área que cresce mais rápido na economia global, representando quase 20% do comércio mundial e três quintos do investimento estrangeiro. Os países em desenvolvimento representam 22% das exportações mundiais de serviços, porém isso está concentrado em poucos países. A África representa apenas 1% das exportações de serviços do mundo, enquanto todos os países menos desenvolvidos juntos totalizam somente 0,44%.3 Ao mesmo tempo, a União Européia também pressiona nos termos do GATS por compromissos de liberalização na área de aquisição governamental de serviços. Isso significa que os gastos governamentais com serviços poderiam também ficar sujeitos ao princípio do tratamento nacional, no qual as firmas estrangeiras têm os mesmo direitos que as domésticas. Portanto, o GATS também é visto como um passo na direção da liberalização das aquisições governamentais. 46 SERVIÇOS: A NOVA FRONTEIRA DA LIBERALIZAÇÃO Arquivo ActionAid Brasil Como o acordo do GATS cobre os investimentos diretos estrangeiros em serviços, é também um instrumento para promover a liberalização dos investimentos. Na verdade, como o investimento estrangeiro em serviços representa aproximadamente a metade dos investimentos estrangeiros totais do mundo, o GATS pode ser visto como uma etapa intermediária rumo a um acordo de liberalização global dos investimentos. Para os países desenvolvidos, é um mecanismo para proteger os direitos do investidor e “amarrar” compromissos de liberalização em benefício das companhias estrangeiras. Cancún, o ESF emitiu uma declaração sobre as negociações da OMC afirmando que “o comércio de serviços assumiu um papel central, pois é o que tem mais a oferecer à economia da União Européia”. Três semanas depois, a Comissão emitiu um comunicado dizendo que as negociações sobre serviços “são claramente uma das áreas... onde a União Européia tem muito a ganhar. Assim, os serviços devem ser mantidos no topo da agenda de negociações da União Européia”.2 Em relação às metas dos EUA, elas foram claramente expressas pelo Representante do Comércio dos EUA, Robert Portman, num discurso em setembro de 2005 para a Coalizão das Indústrias de Serviços, um grupo de lobby das grandes empresas. Portman observou que a meta dos EUA era “atingir um nível mais alto de liberalização em todo o globo”, assegurando que “os compromissos de acesso aos novos mercados sejam de alta qualidade e que tenhamos a garantia desses compromissos naqueles países mais importante para nós”. Ele prosseguiu: “Também identificamos setores-chave, como serviços financeiros, telecomunicações, serviços relacionados a computadores, entrega rápida, serviço de distribuição e de energia, para os quais vamos assegurar uma massa crítica de compromissos de alta qualidade dos principais países em desenvolvimento. Assim, esse é nosso foco: concentrar nos países mais importantes, focalizando aqueles serviços onde vemos o maior potencial de ganhos. Achamos que temos uma boa idéia de que países constituiriam uma massa crítica: países em desenvolvimento maiores, assim como, naturalmente, aqueles mercados tradicionais para nossos serviços. E sabemos bem o que estamos buscando em termos de qualidade: compromissos de investimentos diretos sem restrições e fornecimento ilimitado de serviços através das fronteiras.” Portman concluiu dizendo à sua audiência de importantes empresas de serviços: “Estou muito satisfeito que vocês estejam avançando na preparação de algumas propostas interessantes que abordam essa questão de novos ângulos. Acho isso importante. Claramente, suas opiniões serão importantes à medida que comecemos a desenvolver nossa política nessa área.”4 Os efeitos da liberalização dos serviços A ActionAid acredita que o acesso aos serviços sociais é um direito básico e que não existe nenhuma evidência substancial de que a liberalização dos serviços em si mesma contribua para o desenvolvimento e a erradicação da pobreza. Na verdade, os grupos da sociedade civil temem há muito tempo que o GATS seja encarado pelos países desenvolvidos e suas empresas como parte importante das pressões pela privatização dos serviços básicos nos países em desenvolvimento. Embora isso tenha sido sempre negado veementemente pela União Européia e outros países, é claro que as pressões sobre os países em desenvolvimento nas negociações do GATS – juntamente com a pressão bilateral sobre os países em desenvolvimento em negociações comerciais regionais e outras negociações do comércio, condicionalidades vinculadas a empréstimos do Banco Mundial e o uso de ajuda bilateral de países como o Reino Unido para promover a privatização5 – são todos fatores que apontam numa determinada direção. Nos países em desenvolvimento, o setor de serviços é uma base fundamental para o desenvolvimento e a erradicação da pobreza. Na maior parte dos países em desenvolvimento, os governos cumprem um papel-chave em assegurar o acesso público a serviços sociais essenciais, para atingir os objetivos das políticas de desenvolvimento. Em geral, as pressões do GATS e outras pressões por liberalização ameaçam reestruturar radicalmente o papel dos governos dos países em desenvolvimento em detrimento do interesse público. Nas palavras de Robert Wade, da Escola de Economia de Londres, o acordo do GATS “torna quase impossível que os governos dos países em desenvolvimento possam proteger suas indústrias de serviços da competição das empresas estrangeiras já consolidadas, do mesmo modo que fizeram virtualmente todos os países que tiveram sucesso no desenvolvimento”.6 O GATS exige tratamento nacional, o que significa que os governos devem tratar as empresas estrangeiras da mesma forma que as firmas domésticas, e também “acesso ao mercado”, o que impede que os governos limitem o número de fornecedores de serviços ou pontos de vendas e onde eles operam. Essas medidas representam grandes limitações do espaço dos países em desenvolvimento para promoverem políticas adequadas às suas características nacionais. No entanto, no acordo do GATS existe alguma flexibilidade para os países em desenvolvimento, pois os governos podem especificar limitações para alguns dos compromissos que assumiram num determinado setor e, portanto, podem proteger INVASORES DO COMÉRCIO 47 determinadas leis ou regulamentações da influência do GATS. Porém, na realidade, a pressão de fora do acordo do GATS para liberalizar e privatizar ameaça destruir as flexibilidades que os países em desenvolvimento tecnicamente receberam do atual acordo. Uma liberalização dos serviços inapropriada ou realizada de forma demasiado rápida pode causar um leque de problemas sérios para os países em desenvolvimento. Entre esses problemas estão o deslocamento das empresas nacionais, as perdas líquidas de empregos causados pela expansão das empresas estrangeiras, saídas líquidas de divisas devido à remessa de lucros das empresas estrangeiras e instabilidade financeira em conseqüência da abertura dos mercados financeiros aos fluxos de capital. A diminuição da capacidade de regulamentar as empresas de forma adequada é a preocupação central de muitos países em desenvolvimento. Uma proposta conjunta recente de um grupo de países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, Colômbia e Filipinas, reafirmou fortemente o direito de os países regulamentarem e introduzirem novas regulamentações, assim como de definirem o “tipo de obrigação de serviço universal que desejam manter”. A proposta defende diferentes tipos de regulamentos e estipula tratamento especial para os países em desenvolvimento.8 No entanto, toda uma infra-estrutura de ajuda foi desenvolvida no Banco Mundial e por alguns doadores importantes – como o governo do Reino Unido – para estimular e promover o envolvimento do setor privado no abastecimento de água, mesmo naqueles países onde a distribuição de água controlada pelo setor público estava funcionando de forma eficiente. Em conseqüência, campanhas públicas maciças estão atualmente em curso em inúmeros países, alguns dos quais, como a Bolívia, tiveram em geral sucesso em resistir à tentativa de controle da água por interesses que buscam o lucro, propondo alternativas de propriedade comunitária e/ou publicamente controladas.10 Existe o temor de que a experiência de privatização da água pode no futuro vir a ser replicada em outros serviços públicos no mundo em desenvolvimento e que o GATS esteja caminhando nessa direção. A liberalização dos serviços relacionados à agricultura também poderia ter conseqüências negativas sérias para a segurança alimentar e para o emprego rural. A maior parte dos países As experiências de liberalização e privatização dos serviços públicos, nos termos dos programas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI, têm sido quase sempre desastrosas, sujeitando os serviços básicos às leis da oferta e da procura e, com efeito, privando setores inteiros da população de serviços de saúde e educação adequados. No entanto, essas experiências desastrosas não têm impedido a promoção dessa causa por uma nova geração de defensores da liberalização. A privatização da água é uma questão importante que afeta um grande número de pessoas em todo mundo e tem sido submetida a intenso exame dos grupos e movimentos da sociedade civil. A maior parte das experiências recentes com as privatizações teve conseqüências extremamente sérias para as pessoas pobres, em países tão diversos quanto as Filipinas, Argentina, Bolívia, África do Sul e Indonésia, onde os desligamentos das linhas de abastecimento de água e os preços crescentes depois das privatizações sempre aumentaram as privações e aprofundaram a pobreza. 48 SERVIÇOS: A NOVA FRONTEIRA DA LIBERALIZAÇÃO Os supostos benefícios do investimento O GATS é em parte um acordo sobre a liberalização de investimentos e abertura das economias ao investimento estrangeiro direto. A crença de que os países mais pobres devem fazer todo o possível para atrair investimentos estrangeiros está ainda amplamente difundida e é um dos argumentos apresentados para explicar por que os países em desenvolvimento devem estar abertos ao fornecimento de serviços estrangeiros. No entanto, vai depender de uma série de fatores o investimento estrangeiro realmente beneficiar ou não os países em desenvolvimento. Segundo a UNCTAD, “fluxos de capital sustentáveis e de longo prazo, especialmente investimentos diretos estrangeiros em novos ativos, são primariamente atraídos por países que já atingiram crescimento econômico rápido e melhorias estáveis da sua infra-estrutura humana e física. Assim, para aqueles países com uma dinâmica robusta de investimentos, tanto em capital físico quanto humano, o comércio e o investimento estrangeiro direto podem reforçar um ciclo de crescimento virtuoso já estabelecido. Onde isso não ocorre, aquelas mesmas forças têm a mesma probabilidade de levar à marginalização e/ou a um desenvolvimento do tipo enclave”.7 em desenvolvimento tem oferta abundante de mão-de-obra e serviços, tais como o plantio do arroz, a colheita do trigo, a colheita, classificação e empacotamento de frutas, são fornecidos por essa reserva de mão-de-obra barata. Contudo, o uso de máquinas pelos fornecedores de serviços estrangeiros, buscando atingir eficiência, poderia deslocar milhões dessa força de trabalho rural, especialmente as mulheres. No Sudeste Asiático, por exemplo, as mulheres fornecem até 90% da mão-de-obra no cultivo do arroz11 e, portanto, seriam as mais afetadas pela mecanização dessas tarefas. As negociações atuais À luz das experiências passadas e presentes, não é surpresa que muitos países em desenvolvimento, especialmente da África, tenham participado muito pouco do processo do GATS e tenham oferecido poucos setores de serviços para a liberalização. Esses países não somente reconhecem que essa liberalização não seria favorável a seus interesses, como também estão impedidos por numerosos problemas de capacidade, como falta de sistemas regulatórios em funcionamento, que seriam necessários para abrir seus setores de serviços. As atuais negociações sobre serviços estão claramente prosseguindo com base na agenda dos países desenvolvidos. Estes estão aplicando pressões enormes sobre os países em desenvolvimento para que “ofereçam” serviços para a liberalização, especialmente através da promoção de um novo processo (“padrão de referência” ou benchmarking). Ao mesmo tempo, o principal interesse dos países em desenvolvimento nas negociações – o movimento de trabalhadores através das fronteiras – está paralisado. Mesmo sendo uma exigência legal das regras da OMC, também têm sido ignoradas as repetidas solicitações dos países em desenvolvimento para uma revisão e avaliação abrangentes da liberalização dos serviços, antes da continuação do GATS. Padrão de referência Até o momento, a principal proteção para os países em desenvolvimento no acordo do GATS tem sido o fato de que os compromissos de liberalização precisam ser assumidos voluntariamente, baseado em “ofertas” e “solicitações”. Porém, os países desenvolvidos, especialmente a União Européia e os EUA, vêm se mostrando aflitos com o ritmo lento (e a qualidade, em termos da profundidade da liberalização) das “ofertas”. O Comissário de Comércio da União Européia, Peter Mandelson, observou recentemente que o processo é “deprimentemente lento” e, num comentário dirigido aos países africanos, afirmou: “Insisto com vocês, em seu próprio interesse, façam suas ofertas.”14 De forma ameaçadora, a União Européia recentemente As experiências de privatização da água dos países em desenvolvimento9 • Na Bolívia, depois de ganhar um contrato de concessão de 40 anos, a empresa Bechtel aumentou as tarifas de água entre 100-200%, o que levou a distúrbios e protestos na cidade de Cochabamba. • Na Indonésia, as companhias de água Thames e Suez receberam um contrato de 25 anos, mas foram incapazes de realizar os investimentos prometidos, enquanto as pessoas em Jacarta eram forçadas a fechar seus poços privados. • Na Argentina, a Suez recebeu um contrato em 1993 com o compromisso de reduzir as tarifas de água em 27 %, mas elas aumentaram 177% em 2002 e 7.200 trabalhadores perderam seus empregos. • Em Manilha, nas Filipinas, foi assinado um acordo de arrendamento por 25 anos com a Manila Water (de co-propriedade da Bechtel) e a Maynilad (de co-propriedade da Suez) em 1997, com a promessa de trazerem um investimento de US$ 7,5 bilhões, com cobertura de 100% até 2007 e um preço garantido de 4,97 pesos filipinos por metro cúbico. Após um ano, a Maynilad solicitou um aumento de preços e a tarifa aumentou para 6,58 pesos filipinos por metro cúbico em 2001, e depois para 15,46 pesos em 2003; os custos mensais com água subiram de 87 para 147 pesos. Quase 3.000 trabalhadores foram dispensados. INVASORES DO COMÉRCIO 49 África do Sul: privatização traz aumentos na conta de água e escolhas difíceis Na África do Sul, o abastecimento de água tornou-se parte de estratégia de “recuperação de custos” e de privatização, com as políticas nacionais voltadas para fazer da água uma fonte de lucros para as corporações transnacionais. Embora a Constituição sul-africana e a Lei dos Direitos protejam o direito à água como um direito humano básico, a Lei dos Serviços de Água de 1997 foi a primeira peça legislativa aprovada no governo do Congresso Nacional Africano que possibilitou a entrada dos interesses empresariais na área do abastecimento de água. Atualmente, a responsabilidade pelo abastecimento de água na África do Sul é compartilhada com grandes empresas internacionais, que também estão ativas em outras partes do mundo. Entre elas estão a Vivendi (operando como Veolia Environment), Biwater, SAUR (operando como Siza Water) e Suez, que controla o abastecimento de mais de 5 milhões de pessoas no Cabo Oriental e Johannesburgo. Embora o acesso a serviços básicos tenha aumentado para muitos sul-africanos a partir de 1994, como isso aconteceu dentro de um marco neoliberal, significou que as pessoas tiveram que começar a pagar por serviços numa época de hiperdesemprego e crescente pobreza. O governo sul-africano não divulga o número de residências que tiveram o abastecimento de água cortado por falta de pagamento, porém, de acordo com o Estudo de Viabilidade de Projetos para 2001 do Departamento de Governo Provincial e Local, aproximadamente 500.000 pessoas tiveram sua água cortada por falta de pagamento nos últimos três meses de 2001. Em Phiri, no Soweto, foram instalados medidores para água pré-paga, aumentando as privações de muitos residentes pobres. Jennifer Makoatsane, 34 anos, vive numa casa de quatro quartos com outros oito membros da família – nenhum deles atualmente empregado. Ela disse: “Isso nos afetou tanto que não usamos mais tanta água quanto antes. Aprendemos a utilizar menos água porque não podemos pagar por ela. Por exemplo, usamos a mesma água para diferentes coisas. Quando lavamos pratos ou roupas, guardamos aquela água para dar descarga na privada ou os adultos se banham na mesma água que as crianças utilizaram. Decidir o que priorizar em termos de gastos também causou conflitos em nossa família. É difícil pensar em comprar água. Agora, você pensa duas vezes se deve comprar pão ou economizar para comprar água.” Henry Nkuna tem 36 anos e reside no distrito de Kanyamazane, 20 km a noroeste de Nelspruit. Ele tem feito campanha contra a privatização da água que começou em 1999, quando a Autoridade Local de Nelspruit contratou a empresa Biwater, com sede no Reino Unido, para fornecer serviços de água durante os próximos trinta anos. Henry disse que as coisas mudaram rapidamente com a Biwater. Enquanto, no passado, os declarou: “Vários países em desenvolvimento importantes ainda não submeteram nenhum oferta e existe uma preocupação crescente sobre o que fazer em relação aqueles membros que até o momento recusaram o engajamento.”15 A abordagem do “padrão de referência”, atualmente sendo promovida pela União Européia, exigiria dos países um nível mínimo de compromissos consolidados para setores e subsetores importantes. Esta abordagem entra em conflito com o GATS e as diretrizes para as atuais negociações, que afirmam que o processo de “solicitação-oferta” é o principal método das negociações.16 Embora os 50 países em desenvolvimento tenham repetidamente rejeitado os padrões de referência, eles continuam voltando para a mesa de negociações. Em setembro de 2005, seis novos documentos foram submetidos às negociações de Genebra (pela União Européia, Japão, Austrália, Suíça, Coréia do Sul e Taiwan), afirmando que o processo de solicitação-oferta tem dado poucos resultados e propondo novas maneiras de garantir compromissos de liberalização. Algumas das propostas exigiriam que os países consolidassem seus níveis atuais de liberalização e assumissem o compromisso de abrir um percentual mínimo SERVIÇOS: A NOVA FRONTEIRA DA LIBERALIZAÇÃO residentes pagavam pela água uma taxa fixa e de 6,66 rands e “não havia problemas”, depois que a Biwater assumiu o controle do abastecimento de água, as residências começaram a receber contas acima de 300 rands. Ele explica por que os residentes de Kanyamazane não estão satisfeitos com a Biwater: “Só depois descobrimos que a Biwater é uma grande empresa de água multinacional com sede na Grã-Bretanha. Eles entraram pela porta dos fundos, para nos enganar. Nem mesmo levaram em conta se a pessoa estava ou não trabalhando. A Biwater começou a instalar novos medidores, mas não puseram novos encanamentos como tinham prometido. Os mesmos encanamentos que foram instalados há muito tempo, durante os anos do apartheid (na década de 1970), ainda estão sendo usados. Depois da instalação dos medidores, tivemos que pagar valores maiores pela água e se não pagávamos, eles cortavam.” Henry prosseguiu relatando como os membros da comunidade decidiram que não pagariam: “Agora, dissemos para nós mesmos, deixemos que eles briguem com a gente, se puderem.” As pessoas se juntaram para formar o Fórum Antiprivatização de Kanyamazane e, nas palavras de Henry, afirmaram: “Se eles [Biwater] cortarem a água, as pessoas da comunidade devem avisar à nossa organização e faremos com que nossa própria gente ligue outra vez. Quando eles desligarem, nós ligamos. Nós compramos canos e fazemos as ligações diretamente das linhas principais para as casas das pessoas, sem medidores ou condições – damos água diretamente para as pessoas. Isso não é roubo, mas pegar o que foi tomado de nós e devolver ao povo.” O Dr. Bright Mabaso é um médico que tratou de muitas pessoas de Matsulu, um distrito a 15 km de Nelspruit, que haviam bebido água de riachos contaminados naquela área em janeiro de 2004. Ele lembra: “Trabalho com comunidades pobres e, como parte de meu trabalho, atendi muitas crianças que chegavam com casos graves de diarréia, vômito e gastrenterite. Normalmente, encontramos um caso desses por dia, mas nessa ocasião (que durou cerca de uma semana) havia entre 5 e 10 casos por dia, o que, por definição, já é um surto. Tentamos analisar e descobrir a origem disso. Nesse caso, várias residências foram afetadas, o que significava que havia uma fonte comum e deduzimos que tinha de ser a água contaminada. Isso afetava toda a comunidade.” O Dr. Mabaso sugere que, embora a infecção pudesse ter vindo através da água encanada, é mais provável que fosse conseqüência de os residentes terem tido seu fornecimento normal de água cortado e estarem usando água de rios e riachos contaminados. Ele afirma: “Esses [cortes] não são algo que tenha ocorrido somente nessa época; estão acontecendo todo o tempo, regularmente. Existe a possibilidade real que quando não haja abastecimento, as pessoas procurem a água dos riachos.” Programa de Parceria da África Meridional, ActionAid, OMC, serviços e experiências de privatização da água na África do Sul, 2005. de subsetores aos fornecedores estrangeiro de serviços, a partir de uma lista de setores a ser negociada. Esses documentos enfrentaram oposição ampla dos países em desenvolvimento. Por exemplo, um grupo de Estados caribenhos respondeu, afirmando que “as novas abordagens propostas tornariam impossível para nossos fornecedores de serviços domésticos manterem seus mercados nacionais” e que “níveis tão profundos de liberalização em mais subsetores do que nós racionalmente assumiríamos comprometeria nossas próprias metas e objetivos de desenvolvimento”.17 O Vice-Representante de Comércio dos EUA, Peter Allgeier, também sugeriu recentemente que a abordagem de solicitação-oferta não tinha levado a resultados significativos e, segundo informações, afirmou que um enfoque mais proativo seria necessário para assegurar a abertura de mercado em “áreas críticas essenciais”. Este novo enfoque parece ter sido influenciado diretamente pelos interesses empresariais dos EUA. Ao mesmo tempo, a Coalizão de Indústrias de Serviços dos EUA tem feito lobby para que os membros da OMC concordem com aberturas de mercado iniciais em todos os setores de serviços porque afirma que “muito poucas ofertas foram apresentadas INVASORES DO COMÉRCIO 51 Ganhos maciços ou especulação enganosa? Os países desenvolvidos, juntamente com o Secretariado da OMC, há muito tempo promovem a idéia de que os países em desenvolvimento teriam ganhos maciços com a liberalização multilateral dos serviços. Um impacto positivo seria o aumento provável de investimento estrangeiro depois da liberalização. No entanto um estudo da Unctad observa: “Não existe nenhuma evidência empírica ligando qualquer aumento significativo de fluxos de investimentos estrangeiros diretos para os países em desenvolvimento com a conclusão do acordo do GATS.”12 Atualmente, parece que nenhum discurso sobre comércio, feito por autoridade dos EUA, Reino Unido ou União Européia, está completo sem uma referência ao estudo da Universidade de Michigan, assegurando que a liberalização multilateral dos serviços irá aumentar as rendas em centenas de bilhões de dólares. No entanto, o estudo também sugere que 81% dos ganhos irão para os países desenvolvidos. Além do mais, essa estimativa deve ser tratada com reservas. As previsões de ganhos com acordos comerciais são conhecidas por variações extremas e, com freqüência, erram totalmente de alvo. Na verdade, as cifras do estudo de Michigan foram amplamente criticadas por outros analistas, argumentando que essas simulações nunca podem ser suficientemente precisas para serem usadas diretamente na condução das negociações do GATS.13 e elas contêm um grau muito insuficiente de liberalização”.18 Os países em desenvolvimento também estão sob pressão de outros setores para submeterem suas “ofertas” iniciais. Ao negociar “acordos de parceria econômica” com grupos regionais de países em desenvolvimento, a União Européia tem utilizado uma estratégia mais agressiva do que na OMC. A UE está tentando forçar o ritmo das negociações, conseguindo que os países do grupo ACP, por exemplo, concordem que 2006 seja a data “mais tardia” para início das negociações sobre a liberalização dos serviços. Isso representa um cronograma muito mais rápido do que o da OMC. A União Européia está, portanto, tentando forçar regionalmente o que não foi capaz de conseguir de forma multilateral. A Comissão tem assegurado que os Estados do grupo ACP não possam impor nenhuma outra “medida discriminatória” contra empresas de serviços da UE, agora que as negociações sobre esses acordos foram iniciadas.19 As táticas de negociação dos países ricos que foram esboçadas acima, juntamente com a sugestão de que há um “clima de crise” em torno dessas negociações, estão efetivamente negando o direito que os Estados-membros possuem de decidir que setores vão abrir e quando. Esta estratégia está minando a flexibilidade que os países pobres atualmente têm de estabelecer 52 compromissos consolidados somente quando estão preparados para isso e contradiz a clara obrigação legal, segundo as regras da OMC, de conceder “flexibilidade adequada para cada um dos países-membros em desenvolvimento” e de aceitar compromissos que estejam “sintonizados com a situação de desenvolvimento [dos países pobres]”. Modo 4 A área de negociações que poderia produzir mais benefícios para os países em desenvolvimento está no “Modo 4”, que define o “movimento de pessoas físicas” através das fronteiras. Um estudo realizado para o Secretariado da Comunidade Britânica calcula que se os países da OCDE permitissem uma cota de 3% de trabalhadores de países em desenvolvimento na sua força de trabalho, os benefícios seriam 150% maiores do que os de todas as áreas de liberalização.20 No entanto, houve pouca ou nenhuma discussão séria dessa questão na última reunião de Genebra. Com uma abundância de mão-de-obra, os países em desenvolvimento também solicitaram que fosse discutida a mão-de-obra semiqualificada nos termos do Modo 4, embora atualmente isso também não esteja sendo considerado. Um estudo publicado em abril de 2004 por dezoito países em desenvolvimento mostra que até então não tinha havido “nenhuma melhoria real” nos SERVIÇOS: A NOVA FRONTEIRA DA LIBERALIZAÇÃO Paquistão: as comunidades de pescadores enfrentam dura competição das traineiras estrangeiras Um estudo recente sobre a liberalização dos serviços de pesca mostra os efeitos negativos sobre os pescadores do país. Depois da comercialização do setor de pesca, as comunidades locais foram progressivamente ultrapassadas na produção, preços, comercialização e processamento. Cerca de 300.000 pescadores locais envolvidos na pesca familiar com pequenos barcos não puderam mais competir com as traineiras comerciais e estão sendo deslocados de suas atividades. As empresas exportadoras de pescado estabeleceram um monopólio no mercado e os pescadores locais também estão perdendo terreno em termos de preços para os agentes de mercado corporativos. A sustentabilidade do estoque de peixes também está sendo ameaçada pela sobrepesca. Muhammad Yousif, um pescador de 29 anos, explica os efeitos: “As traineiras substituíram os pescadores locais. As empresa nos paga pouco. Estamos ficando mais pobres, enquanto as empresas ganham mais.” Baghi, de 25 anos, concorda com isso: ”Os estrangeiros que entraram no setor pesqueiro expulsaram os locais... não sobra nenhum dinheiro para gastar com problemas de saúde e doenças.” Fórum de Pescadores do Paquistão – ActionAid Paquistão, Globalização e Subsistência com a Pesca no Paquistão, 2005. compromissos de Modo 4 assumidos pelos países desenvolvidos. Este estudo exigia a eliminação das condições de emprego prévio, restrições de cotas de visas e restrições sobre sua duração, entre outras áreas.21 Informações recentes sugerem que os EUA não estão dispostos a expandir sua oferta inicial sobre o Modo 4, que contempla o movimento temporário de profissionais que prestam serviços22 através de fronteiras. Uma análise dos compromissos de Modo 4 nos serviços de saúde, por exemplo, evidencia que a União Européia geralmente não tem respondido a solicitações dos países em desenvolvimento para que permita a entrada de trabalhadores de baixa qualificação, assim como persistem as barreiras, como requisitos estritos de qualificação, permissões de trabalho e todo o processo de entrada. A análise conclui afirmando que as exigências dos países desenvolvidos de compromissos mais profundos com a liberalização devem ser tratadas com cautela, pois esses mesmos países desenvolvidos têm sido muito cuidadosos em atender a solicitações dos países em desenvolvimento.27 As recomendações da ActionAid A ActionAid acredita que a atual abordagem dos países desenvolvidos nas negociações sobre serviços representa uma estratégia agressiva, fundamentalmente prejudicial aos interesses dos países em desenvolvimento. Se o acordo final sobre serviços for similar ao que está atualmente na mesa negociações, a ActionAid acredita que os países pobres devem assumir uma atitude histórica e rejeitá-lo. A ActionAid exige que as seguintes questões fundamentais sejam enfrentadas num acordo para o desenvolvimento: • É preciso haver uma revisão e avaliação independente e abrangente do impacto da liberalização dos serviços nos países em desenvolvimento, antes que as negociações no GATS avancem ainda mais. • Os países em desenvolvimento não devem assumir nenhum novo compromisso de liberalização dos serviços até que sejam realizadas avaliações setoriais abrangentes, que pesem cuidadosamente os benefícios e as desvantagens da liberalização. • Os países desenvolvidos devem retirar imediatamente suas propostas de padrão de referência porque elas contradizem a arquitetura básica do GATS, prejudicam a flexibilidade e contradizem as diretrizes de negociação do GATS. INVASORES DO COMÉRCIO 53 Uma nova fronteira: a liberalização dos gastos governamentais A União Européia está também pressionando, nos termos do GATS, por compromissos de liberalização na área da aquisição governamental de serviços. O documento da UE submetido à OMC em junho de 2005 defende “regras de procedimento para aquisições governamentais e a possibilidade de incluir listas de compromissos (schedules) específicos no GATS para abrir à competição internacional a aquisição de serviços por parte dos governos”. A Comissão tem como objetivo os serviços de construção, onde afirma que os gastos governamentais representam a metade da demanda total por serviços de construção.24 A maior parte dos países em desenvolvimento rejeita a abordagem da UE, argumentando que o acordo do GATS exclui as aquisições governamentais de serviços da regra de tratamento nacional. No entanto, está claro que a Comissão considera as atuais discussões da OMC sobre transparência nas aquisições governamentais – tema que os países em desenvolvimento não permitiram que fosse incluído no programa de trabalho formal de Doha – como um passo na direção da plena liberalização, não somente no setor de serviços, como em todos os gastos governamentais. A Comissão afirmou que o importante é o “desenvolvimento de disciplinas multilaterais para garantir que os procedimentos de aquisição pública sejam transparentes e que haja oportunidades de licitação para contratos estrangeiros”.25 O mercado global de aquisições governamentais é enorme e, portanto, um objetivo lucrativo para as empresas européias. Como disse o Comissário Mandelson: “As licitações públicas são outro exemplo onde as preferências nacionais impedem o acesso ao mercado. Representando até 15% do PIB, essas licitações provavelmente constituem o maior setor do comércio ainda protegido da competição estrangeira.”26 • São necessários dispositivos mais profundos do GATS para permitir a flexibilidade de os países em desenvolvimento regulamentarem as empresas fornecedoras de serviços, para promover os objetivos do desenvolvimento nacional. • Os setores de serviços públicos, tais como educação, saúde, água, extensão rural e serviços relacionados ao meio ambiente, devem ser explicitamente excluídos dos compromissos de liberalização. • Os países em desenvolvimento têm expressado preocupação não somente com a falta de clareza, como também com a ambigüidade das listas de compromissos submetidas pelos países desenvolvidos. 54 SERVIÇOS: A NOVA FRONTEIRA DA LIBERALIZAÇÃO Portanto, é essencial que essas listas de compromissos sejam revistas por um comitê imparcial de especialistas internacionais. • As negociações sobre as regras do GATS e medidas de salvaguarda emergenciais devem ser concluídas antes que os países em desenvolvimento assumam qualquer compromisso de acesso ao mercado. Isso será coerente com as diretrizes de negociação e protegerá os setores de serviços nascentes nos países em desenvolvimento. Os países em desenvolvimento não devem oferecer nenhum setor para abertura nos termos do GATS, antes que essas regras sejam finalizadas. Notas 1 Unctad, Review of developments and issues in the post-Doha work programme of particular concern to developing countries, 26 agosto de 2005, TD/B/52/8, www.unctad.org 2 Comissão Européia, Summary of the EC’s Revised Requests to Third Countries in the Services Negotiations Under the DDA, Brussels, 24 de janeiro de 2005, http://europa.eu.int/comm/trade/issues/sectoral/services/wto_nego/index_en.htm 3 Movimento pelo Desenvolvimento Mundial (World Development Movement), GATS: The Forgotten Battle over WTO Investment Rules, fevereiro de 2004, p. 1, www.wdm.org.uk 4 Robert Portman, discurso para a Coalizão de Indústrias de Serviços, 20 de setembro de 2005, www.ustr.gov 5 Ver, por exemplo, WDM, Dirty Aid, Dirty Water: The UK Government’s Push to Privatize Water and Sanitation in Poor Countries, 2005, www.wdm. org.uk 6 Robert Wade, What strategies are viable for developing countries today?: The World Trade Organisation and the shrinking of “development space”, Programa de Estados em Crise: Documento de trabalho N. 31, LSE, junho de 2003, p. 8, www.lse.ac.uk 7 Unctad, Growth and Development in the 1990s: Lessons from an Enigmatic Decade, TD/B/52/7, 14 de setembro de 2005, www.unctad.org 8 ‘Services: Members discuss Mode 4, domestic regulation’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 23 de fevereiro de 2005, www.ictsd.org 9 Ver, por exemplo, Public Citizen, ‘Water Privatization Fiascos: Broken Promises and Social Turmoil’, Campanha de Água para Todos, Oakland, Califórnia, março de 2003; D. Santoro, ‘The ‘Aguas’ Tango: Cashing in on Buenos Aires’ Privatization’, Fórum de Políticas Globais (Global Policy Fórum), 2003, http://www.globalpolicy.org/socecon/tncs/2003/0206argentinewater.htm; Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, ‘Indonesia: Water and Politics in the Fall of Suharto’, 2003, http://www.waterconserve.info/articles/reader.asp?linkid=20134; R Landingin, ‘Loaves, Fishes and Dirty Dishes: Manila’s Privatized Water Can’t Handle the Pressure’, Centro de Integridade Pública (The Centre for Public Integrity), 2003, http://www.icij.org/water/report.aspx?sID=ch&rID=51&aID=51 10 Ver, por exemplo, Observatório da Europa Corporativa, Reclaiming Public Water: Achievement, Struggles and Visions from Around the World, CEO, Amsterdã, 2005, www.corporateeurope.org e www.waterjustice.org 11 FAO, http://www.fao.org/gender/en/agrib4-e.htm 12 Unctad, A Positive Agenda for Developing Countries: Issues for Future Trade Negotiations, 2000, p. 172, www.unctad.org 13 Edward Sussex, ‘Assessing the global economic impact of the liberalisation of trade in services: research and propaganda’, setembro de 2005, www.ourworldisnotforsale.org 14 Peter Mandelson, discurso, 8 de junho de 2005, www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles 15 Comissão Européia, DG Trade, ‘EU trade policy: main issues for the 133 Committee in the second half of 2005’, Bruxelas, 1 de julho de 2005. 16 Sabrina Varma, ‘GATS: Tweaking “benchmarks” misses development’, South Bulletin, 30 de junho de 2005, p. 312, www.southcentre.org 17 Martin Khor, ‘Developing countries object to “benchmarking” proposals’, Serviço de Informação da Rede do Terceiro Mundo, 27 de setembro de 2005, www.twnside.org.sg 18 ‘New US approach to inject momentum into services talks?’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 18 maio de 2005, www.ictsd.org 19 ‘EU Directives for the negotiations of Economic Partnership Agreements with ACP countries and regions’, 17 de junho de 2002. 20 Citado em Goh Chien Yen, ‘Developing countries cautioned against services liberalization commitments in GATS/WTO’, fevereiro de 2003, http:// www.ifg.org/analysis/wto/cancun/gatt/devcaut.htm 21 Citado em IISD, Trade in Services, Série de Briefings sobre a Rodada de Doha, dezembro de 2004, p. 3, www.iisd.org 22 ‘Services cluster inconclusive, negotiations in trouble’, BRIDGES Weekly Trade News Digest, 2 de março de 2005, www.ictsd.org 23 Centro do Sul (South Centre), ‘Analysis of actual liberalization versus GATS commitments of Quad members: Mode 4 and health services’, junho de 2004, www.southcentre.org 24 Grupo de Trabalho da OMC sobre as Regras do GATS, Communication from the European Communities: Government Procurement in Services, 15 de junho de 2005, http://www.wto.org/english/tratop_e/gproc_e/gpserv_e.htm 25 Comissão Européia, Summary of the EC’s Revised Requests to Third Countries in the Services Negotiations Under the DDA, Bruxelas, 24 de janeiro de 2005, http://europa.eu.int/comm/trade/issues/sectoral/services/wto_nego/index_en.htm 26 Comissão Européia, Doha Development Agenda: Making Trade Work for All, junho de 2005, www.europa.eu.int/comm/trade/icentre/infopack_ en.htm 27 Peter Mandelson, discurso, 15 fevereiro de 2005, www.europa.eu.int/comm/commission_barroso/mandelson/speeches_articles INVASORES DO COMÉRCIO 55 Campanha pela Justiça no Comércio Este relatório mostra que os países em desenvolvimento enfrentam grandes perigos nas atuais negociações da OMC. Se os países desenvolvidos atingirem seu objetivo de conseguir compromissos mais profundos de liberalização de parte dos países em desenvolvimento na agricultura, produtos industriais e serviços, terá início outra etapa prejudicial de liberalização econômica global, o que certamente vai levar ao aumento da pobreza e da desigualdade para muitas das pessoas mais vulneráveis do mundo. Para que a Rodada de Doha tenha resultados verdadeiramente favoráveis ao desenvolvimento, os países desenvolvidos devem parar de forçar a liberalização das nações mais pobres e permitirem que os países em desenvolvimento tenham o direito de escolher suas próprias políticas, no seu próprio ritmo. Isso significa, no contexto global atual, o direito à proteção. ActionAid Internacional A ActionAid Internacional é uma parceria singular de pessoas que estão lutando por um mundo melhor – um mundo sem pobreza. www.actionaid.org Secretariado Internacional Johannesburgo Escritório Regional da Ásia Bangcoc Escritório Regional da África Nairóbi Escritório Regional das Américas Rio de Janeiro ActionAid Brasil Rua Santa Luzia, 651/ 17º andar - Centro Rio de Janeiro - RJ - Cep: 20030-041 Telefone: 2189-4600 Fax: 2189-4612 www.actionaid.org.br A ActionAid Internacional está registrada como uma fundação em Haaglanden, Holanda, sob o número 27264198