gestapo ou big brother
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gestapo ou big brother
GESTAPO OU BIG BROTHER? POR UM REPENSAR SOBRE O TERROR NO UNIVERSO NAZISTA Bruno Periolo Odahara1 INTRODUÇÃO A literatura em geral sobre o nacional-socialismo alemão, especialmente no período pós-guerra, pode ser observada quase sempre sobre os mesmos enfoques, salvo discordâncias pontuais entre os autores, as quais, de qualquer maneira, dificilmente importam numa alteração do conteúdo propriamente dito. Tanto é que, de certa forma, pode-se dizer que o sujeito “nazismo” sofreu um processo de predicação ao longo do tempo, beirando a tautologia. A despeito disso, análises mais recentes, especialmente aquelas posteriores à década de 1970, trouxeram consigo uma novel forma de investigar e encarar os fatos que ocorreram durante o regime hitlerista. Deixando de lado as interpretações tradicionalistas, passaram a questionar o âmago dos argumentos colacionados, e descobriram, por exemplo, que, em nível empírico, o terror, um dos grandes algozes e responsáveis pela imagem que foi traçada da Alemanha nacionalsocialista, não era tão “totalitário” quanto se supunha. Certamente, não se está aqui a fazer votos por um revisionismo das tragédias que tomaram lugar naquele espaço e período, posto que agir desta forma implicaria numa postura carente da devida deferência para com os envolvidos, tal qual histórico-cientificamente irresponsável. O que se deseja, todavia, é fomentar indagações sobre os motivos que levaram à adoção de certas posturas da sociedade, da resistência e dos pensadores com relação aos acontecimentos e aos agentes governamentais, e perscrutar se, de uma foram ou de outra, elas continuam sendo válidas. Para tanto, inicialmente, serão retratadas algumas das qualidades distintivas do Estado em seu formato totalitário, eis que se reputa de extrema importância identificar quais são os traços que o fazem tão diferente e singular em contraposição às demais formas de governo. Uma vez apontados, passar-se-á a 1 Mestrando do Programa de Filosofia do Direito da Universidade Federal do Estado do Paraná – UFPR. reconhecê-los com maior especificidade no seu formato germânico, justificando-se as noções de originalidade, ideologia, monopartidarismo e, com maior ênfase, terror, explicando do que este se tratava e como era operado. Por fim, o terror será objeto de maiores considerações em sua interação com uma de suas mais alardeadas perpetradoras, a polícia secreta, e se procederá de forma a ilustrar, partindo da segunda geração de pesquisas, porque a agência não poderia ter imposto e sido – sozinha – responsável pelo sentimento de totalitarismo que foi cultivado pela Administração Estatal e pela população, e posteriormente reconhecido academicamente, cada qual com seus próprios interesses. 1 – CARACTERÍSTICAS DOS ESTADOS TOTALITÁRIOS Não se pretende, no presente trabalho, trazer qualquer definição ou conceito peremptório do que seria o Estado Totalitário – não apenas pelas pretensões já anteriormente fixadas, mas também pela hercúlea tarefa que assim estaria anteposta. Desta forma, será tão-somente proposto um recorte mais amplo das características ordinariamente atribuídas ao dito regime. Inicia-se pela demarcação operada por Giorgio Agamben na obra “Estado de Exceção”. Logo nos prolegômenos, ao retratar a dificuldade que estaria adstrita à definição do que é o estado de exceção – mormente suas intrínsecas relações com a guerra civil, a insurreição e a resistência2 –, toma como exemplo o Estado Nazista e aponta que, tão logo Hitler assumiu o poder (ou, ao menos, este lhe foi concedido), “ele proclamou o Decreto para a Proteção do Povo e do Estado, o qual suspendeu os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades pessoais”3. Uma vez que a norma jamais perdeu sua validade, “de um ponto de vista jurídico o Terceiro Reich inteiro pode ser considerado um estado de exceção que durou doze anos” 4, ou seja, de 28/02/1933 à 08/05/1945. Neste sentido, o totalitarismo moderno pode ser definido como o estabelecimento, através de um estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não apenas de adversários políticos, mas de categorias 2 AGAMBEN, Giorgio. State of Exception, p. 02. Idem. 4 Idem. 3 inteiras de cidadãos que, por algum motivo, não podem ser integrados no sistema político5. O Ausnahmezustand seria, portanto, uma zona de indeterminação entre a democracia e o absolutismo6, na qual as feições tradicionalmente atribuídas pela teoria política aos Estados perdem seu valor e se confundem em contornos acinzentados. Para Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski, a ditadura totalitária diferencia-se tanto da tirania, quanto do despotismo, apesar de “haver semelhanças significativas que justificam arrolar todos êsses regimes numa categoria comum. Essa categoria poderia ser, corretamente, a „autocracia‟”7. Todavia, a forma totalitária “é històricamente única e sui generis”8, podendo ser reconhecida através de seis “aspectos ou características básicas”9: A “síndrome”, ou padrão de aspectos interrelacionados, da ditadura totalitária, consiste em uma ideologia, um partido único tìpicamente dirigido por um só homem, uma polícia terrorista, um monopólio de comunicações, um monopólio de armamentos e uma economia centralizada. Em seu livro sobre a democracia e a anti-democracia, datado de 1956, José Maria Bello sustenta que “(a) idéia do Estado totalitário do fascismo corresponde no nazismo à de uma rígida organização social orientada por uma política única”10, não sendo simples para ele, porém, “distinguir os contornos do nazismo alemão. Herdeiro do militarismo de Guilherme II, êle é na doutrina e na prática profundamente anti-democrático”, razão pela qual “pode ser incluído entre os regimes autocráticos mais típicos da atualidade, em oposição às democracias representativas”11. Ao estudar os modelos de ditadura, Franz Neumann afirma serem elas de três tipos, quais sejam, (a) a ditadura simples, a qual “pertence ao objetivo do poder político monopolizado pelo ditador, que pode exercer o seu poder sòmente por meio do contrôle absoluto dos meios tradicionais de coação, ou seja, a polícia, o exército, a burocracia e o Judiciário”; (b) a ditadura cesarista, que agrega, à ditadura simples, 5 Idem. Idem, p. 03. 7 FRIEDRICH, Carl J.; BRZEZINSKI, Zbigniew K. Totalitarismo e Autocracia, p. 13. 8 Ibidem, p. 15. 9 Ibidem, p. 18. 10 BELLO, José Maria. Democracia e Anti-Democracia, p. 111-112. 11 Ibidem, p. 112. 6 o atributo de “criar um apoio popular (...) para a sua ascensão ao poder ou para o exercício do mesmo, ou até mesmo para ambas as coisas”; e, por fim, (c) a ditadura totalitária, que extrapola a “coação monopolizada” e o “apoio popular”, entendendo “ser necessário controlar a educação, os meios de comunicação e as instituições econômicas e assim engrenar tôda a sociedade e a vida privada do cidadão ao sistema de dominação política”, passível de desenvolver, ou não, “um cunho cesarista”12. Devendo ser tratado como “um problema separado”, há o afastamento do modelo totalitário das demais ditaduras, sendo necessário, assim, observá-lo através de “cinco fatôres essenciais”: a) “transição de um Estado baseado no Govêrno pelo direito (Rechtsstaat alemão) para um Estado policial”; b) “transição da difusão do poder nos Estados liberais para a concentração do mesmo no regime totalitário, concentração essa que pode variar em grau e forma”; c) “existência de um partido estatal monopolista”, o qual “fornece a fôrça para controlar a máquina do Estado e a sociedade, e para se desincumbir da gigantesca tarefa de cimentar os elementos autoritários dentro da sociedade”. Inclusive, esta forma monopartidária “envolve um aspecto sócio-psicológico que pertence ao que chamamos comumente de sociedade de „massa‟”; d) “transição dos contrôles sociais que passam de pluralistas para totalitários”, que vem a permitir a manipulação estatal através de cinco técnicas, a saber, “princípio de liderança”, “„sincronização‟ de tôdas as organizações sociais‟”, “criação de elites graduadas”, “atomização e isolamento do indivíduo” e “transformação da cultura em propaganda, de valores culturais em artigos de comércio”; e e) como “fator final e decisivo”, insere-se a “confiança no terror, como o uso de violência não-calculável como ameaça permanente contra o indivíduo”13. Reinhold Zippelius, por sua vez, argumenta que as peculiaridades do Estado totalitário fazem com que ele “não coincid(a) com os conceitos dos Estados autoritários e autocráticos, embora num Estado concreto se combinem frequentemente, de facto, características totalitárias, autoritárias e autocráticas”14. Em sua opinião, os “(e)lementos característicos do moderno totalitarismo surgiram depois do domínio dos jacobinos”15, defendendo serem quatro: 12 NEUMANN, Franz. Estado Democrático e Estado Autoritário, p. 260. Ibidem, p. 270 e SS. 14 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado, p. 368. 15 Ibidem, p. 369. 13 um dogmatismo ideológico (aqui sob a forma de um messianismo que pretendia concretizar o rênio da razão e da virtude cívica), a identificação do partido dominante com a colectividade, a invasão do Estado por agentes do 16 poder político e um terror organizado ao serviço deste dogmatismo . No entendimento do professor da universidade de Erlangen-Nürnberg, haveria condições que facilitariam ao Estado moderno tomar uma faceta totalitária, “desde que caia sob um governo centralizado, p. ex., sob uma ditadura”, haja vista estarem “à sua disposição para uma intensiva manipulação da opinião pública, os modernos meios técnicos e as experiências psicológicas, e, além disso, o aparelho de uma burocracia e de uma economia fortemente organizadas”17. Ademais, (o) Estado totalitário exige não só a obediência à lei, mas também convicção: uma mundividência nacional-socialista, amor e espírito de sacrifício face ao Führer, orgulho da raça, consciência de classe ou qualquer outro “zelo anímico”. Oportunismo, sanções fácticas ou pelo menos o temor de sanções são mobilizados para impor tais modos de pensar obrigatórios. Evidentemente, não se pode impor também por estes meios uma convicção como tal, mas pelo menos uma conduta que deveria corresponder a uma determinada convicção. Para levar adiante seu programa, Zippelius aponta que o regime totalitário empregou diversas técnicas de efeito bastante prático. Por meio de agentes a ele ligados, incute-se “na burocracia estatal e nas organizações sociais”, visando deixálas a sua mercê, fazendo uso de “um partido estatal com organização hierárquica e disciplina rigorosa” e auxiliado por “(u)ma polícia secreta do Estado” que “completa o sistema da penetração organizada do aparelho estatal e da sociedade com funcionários do poder político”18. No âmbito burocrático, preenche as repartições “com funcionários do partido e agentes de confiança”, e faz com que tanto a economia, como o mercado de trabalho, dependam daquilo que é determinado segundo os “métodos da economia planificada, ao passo que o objectivo do plano se orienta pelo programa político do Estado”19. A fim de garantir “uma uniformização ideológica”, expande sua propaganda “na rádio, na televisão, na imprensa de massas controlada e no cinema”, operando cirurgicamente com o fito de abolir a propagação de idéias 16 Idem. Idem. 18 Ibidem, p. 372-373. 19 Ibidem, p. 373. 17 contrárias e almejando “educar e moldar mentalmente o povo no sentido dos objectivos do Estado”. Nesse mister, até mesmo “a „ocupação dos tempos livres‟” é coordenada pelo partido, como se podia ver no avanço sobre a juventude, afinal, o domínio sobre o pensamento não se dada apenas pelo ensino “no espírito da ideologia oficial segundo os planos educacionais nas escolas, mas é também absorvida e influenciada durante os seus „tempos livres‟ pelas organizações estatais de juventude”20. Não é tolerada a resistência, sendo sufocada logo à nascença por um denso sistema de controlo que não hesita em recorrer à escuta telefónica, à vigilância do correio, à utilização de espiões, fazendo até desaparecer dezenas de milhares de opositores políticos em campos de concentração e de trabalhos forçados. São precisamente também os regimes totalitários que se servem da repressão de potenciais adversários e da disciplina da 21 comunidade política através do medo e do terror . A eficácia da adesão, portanto, é garantida através de qualquer meio que se fizer necessário. De fato, (m)uitos que desaprovam um regime de terror existente, suportam dificilmente a longo prazo a dissonância permanente entre a conduta exigida pelo Estado e as suas próprias convicções. Não raras vezes fraqueja a personalidade psíquica, sendo o mundo de convicções pessoais adaptado à conduta extorquida por intimidação. O mecanismo psíquico em que se baseia a “lavagem ao cérebro”, é utilizado desta maneira sobre 22 largas partes da população . Vale notar, igualmente, a opinião de Hannah Arendt, desenhada com maior profundidade no livro Origens do Totalitarismo, mas com opiniões em vários outros textos – alguns deles inéditos. A fim de que não se corra o risco de parecer leviano – eis que a densidade da filosofia da autora é tamanha que exigiria muito mais profundidade que o trabalho, no momento, pode abrigar – serão trazidas algumas opiniões de comentadores da autora, com pontuais excertos dos originais. Cumpre assinalar, inicialmente, que Arendt também constava dentre os pensadores que viram nos círculos totalitários uma forma nova de governo, “diferente de tudo aquilo catalogado por autores como Aristóteles e Montesquieu; [um modelo] construído inteiramente sobre o terror e a ficção ideológica e devotado 20 Idem. Idem. 22 Ibidem, p. 374. 21 a um movimento perpétuo de destruição”23. Para Jerome Kohn, Arendt teria vislumbrado no totalitarismo o surgimento no mundo de algo denominado “mal radical e absoluto”24; outrossim, ao contrário de todas as demais formas de governo (monarquia e sua antítese, tirania; aristocracia e oligarquia; democracia e oclocracia), ele não possuía um oposto, podendo ser qualificado como “a crise dos nossos tempos”25. Com Dana Richard Villa, pode-se verificar o entendimento arendtiano de que havia “pouca racionalidade estratégica no seu [regimes totalitários] uso do terror”, posto que os inimigos originários – políticos – já haviam sido exterminados enquanto da conquista do poder, ao passo que “populações totalmente inocentes (...) foram mortas assim que os regimes se estabeleceram” obedecendo a uma “suposta Lei da Natureza ou da História, a qual reduzia todo o desenvolvimento histórico à „realidade‟ subjacente fundamental de uma guerra entre raças ou classes”26. Daí, portanto, Arendt afirmar ser o terror total “a essência do governo totalitário”27. Ao lado do terror encontra-se o apelo ideológico, o qual encontrou seio e resguardo em povos que precisavam de conforto após os sofrimentos decorrentes da “Primeira Guerra Mundial, da Grande Depressão e da revolução”28. O ideário totalitarista, com sua “lógica inerente” calcada na visão marxista da história (“toda a história é a história da luta de classes”) ou na visão naturalista do nazismo (“desenvolvimento natural resultante da luta entre raças”), autorizou que “toda ação do regime pudesse ser logicamente „deduzida‟ e justificada em termos da „lei‟ da História ou da Natureza”29. Discorrendo sobre o assunto na quarta de seis palestras realizadas na New School for Social Research, de New York, em 1953, Hannah Arendt chama de logicidade “a lógica que devora [devours] a idéia onde quer que a ideologia esteja sendo feita o princípio de ação ou tomada como fundamento de um corpo político. 23 VILLA, Dana R. Introduction: the development of Arendt’s political thought. In: _____ (ed.). Cambridge Companion to Hannah Arendt, p. 1-21. 24 KOHN, Jerome. Totalitarianism: The Inversion of Politics, part 3. Disponível em < http://memory.loc.gov/ammem/arendthtml/essayb3.html>. Acesso em 02/09/2009. 25 Idem. 26 VILLA, Dana R. Op. cit. 27 ARENDT, Hannah. Ideology and Terror: a novel form of government. In: _____. Origins of Totalitarianism, p. 460-479. 28 VILLA, Dana R. Op. cit. 29 Idem. Não é a idéia, mas a lógica que subjuga as massas”30. Assim, “ela [a lógica] se torna a instância controladora dos sentidos: Nicht sein kann, was nicht sein darf"31. Terror e logicidade formam, portanto, a essência e o princípio do totalitarismo e, em conjunto, representam a sua natureza32. Em síntese, traz-se um trecho constante do primeiro parágrafo do décimo terceiro capítulo de Origens do Totalitarismo, o qual parece concentrar a concepção de características dos regimes totalitários para Arendt: (...) enfatizamos repetidamente que os meios de dominação total não são somente mais drásticos, como também que o totalitarismo difere essencialmente de outras formas de opressão política conhecidas por nós, tais como despotismo, tirania e ditadura. Onde quer que tenha ascendido ao poder, o totalitarismo desenvolveu instituições políticas completamente novas e destruiu todas as tradições sociais, legais e políticas do país. Não importando qual fosse a tradição especificamente nacional ou da fonte espiritual particular da sua ideologia, o governo totalitário sempre transformou as classes em massas, substituiu o sistema partidário, não por ditaduras monopartidárias, mas por um movimento de massa, transferiu o centro do poder do Exército para a polícia, e estabeleceu uma política exterior visivelmente direcionada à dominação mundial. Os governos totalitários hodiernos se desenvolveram de sistemas monopartidários; sempre que estes se tornavam realmente totalitários, eles começavam a operar de acordo com um sistema de valores absolutamente distinto de todos os outros, tanto que nenhuma das nossas categorias utilitárias tradicionais – legais, morais ou de senso comum – podia mais nos ajudar a 33 entender, ou julgar, ou prever o seu curso de ação . Desta forma, espera-se deixar em evidência quais são alguns dos elementos comumente aceitos que dão uma noção abrangente da composição dos Estados totalitários da primeira metade do século passado, sobretudo com relação ao nacional-socialista alemão. 30 ARENDT, Hannah. The Great Tradition and the Nature of Totalitarianism, lecture 4. Folder Title, Hannah Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C. Disponível em <http://memory.loc.gov/cgibin/ampage?collId=mharendt&fileName=05/05145a/05145apage.db&recNum=0> e seguintes. 31 Idem. A frase em alemão, que significa, em tradução livre, “aquilo que não deve, não pode acontecer”, parece fazer clara alusão ao poema Die unmögliche Tatsache (O Fato Impossível), de Christian Morgenstern, escrito em 1910. No original, “Weil, so schließt er messerscharf / Nicht sein kann, was nicht sein darf”). Outrossim, a frase também se encontra na obra “Os afogados e os sobreviventes”, de Primo Levi, que o descreve como “(u)m verso de tal modo alemão e de tal modo rico de significado que virou provérbio, não podendo ser traduzido em italiano senão através de uma perífrase desajeitada (...)”. LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. p. 140. 32 ARENDT, Hannah. On the Nature of Totalitarianism: An Essay in Understanding. Folder Title, Hannah Arendt Papers, Manuscript Division, Library of Congress, Washington, D.C. Disponível em <http://memory.loc.gov/cgibin/ampage?collId=mharendt_pub&fileName=05/051930/051930page.db&recNum= 0> e seguintes. (p. 56). 33 ARENDT, Hannah. Origins of Totalitarianism, p. 460. 2 – O TOTALITARISMO ALEMÃO REVISITADO 2.1 – Originalidade, ideologia, monopartidarismo e terror Até o presente momento, pode-se constatar uma linha geral nas opiniões trazidas pelos estudiosos tradicionais dos regimes totalitários, especialmente no que diz respeito ao modelo alemão, que é o objeto deste estudo. Ainda que com diferenças entre si, faz-se possível desenhar contornos bastante próximos entre os autores, aos quais serão feitas breves alusões. O primeiro deles diz respeito à perspectiva de originalidade, do ponto de vista histórico, que circundou o totalitarismo da primeira metade do século XX. Não houve, no entender dos escritores coletados, possibilidade de enquadrá-lo em qualquer modelo anteriormente visto, mesmo naqueles identificados como ditaduras, tiranias ou despotismos. Os métodos empregados e a complexa estrutura edificada pelos líderes dos regimes permitiram à Agamben falar de uma “zona de indeterminação”, na qual se fixara o Ausnahmezustand, ou estado de exceção; Carl J. Friedrich e Zbigniew K. Brzezinski disseram que o modelo seria historicamente único e sui generis, ao passo que Franz Neumann o afastou tanto das ditaduras de cunho simples, como daquelas cesaristas; através de Zippelius, é possível distanciálo dos arquétipos autoritário e autocrático. Dessa feita, é possível postar o sistema de governo em comento como uma totalitariedade originária. Na seqüência, encontra-se a carga ideológica dominante. Empregada de maneira sistemática e com o fim de controlar a massa não somente nos seus afazeres públicos, mas também – e principalmente – nos seus pensamentos mais íntimos, a ideologia do partido deveria garantir, por meio de sua proliferação única, a adesão total e irrestrita de todos os súditos. Ainda que sua nascente esteja na Administração Pública e em suas subdivisões, espraia-se horizontalmente através da propaganda por todos os lados do Estado, não conhecendo limites. Há também a faceta monopartidária, representada, no caso germânico, pelo domínio do NSDAP. Tal constituição, garantida pela manobra ideológica, faziase imperativa “porque os tradicionais instrumentos de coação não são bastantes para controlar uma sociedade industrial, e ainda menos porque as burocracias e fôrças armadas nem sempre são muito fiéis”34. Ademais, haveria, como Reinhold Zippelius mencionou, a assimilação e cooperação da população com o partido no 34 NEUMANN, Franz. Op. cit., p. 269. comando, notadamente através da condução dos meios de comunicação, tendo em vista que à estes não caberia a “tarefa de apresentar diversas alternativas políticas e ideológicas e de incitar os cidadãos a uma formação autônoma de opinião pública”35, mas repetir, à exaustão, o pensamento do Führer. Tal controle consta, igualmente, dentre as características apontadas por Friedrich e Brzezisnki. Por último, mas não menos importante, encontra-se o emprego do terror desmedido contra toda a população, traço este que marca e permeia a existência mesma do totalitarismo – é a sua própria essência, no jargão arendtiano. A tônica ideológica e o monopartidarismo são pilastras que, juntas, carregam a base do regime; todavia, para que sua manutenção se mostrasse possível, tornava-se imperativo um instrumento empírico, prático, que fizesse o público cativo e incapaz de reagir. Desta forma, o partido agia contra todos aqueles que eram – ou aparentavam ser – inimigos do Reich, através da perseguição generalizada, tendo a seu dispor, além do sistema legal e judicial, recursos que incluíam a pena capital, tortura, campos de concentração e, posteriormente, campos de extermínio, dentre outros. De fato, tratava-se de uma prática que não era tão nova, como assinala Frederick Lewis Schumann, em obra de 1936: O uso do terror e da brutalidade pela ditadura do NSDAP não se distingue daquela de outros regimes. A forma do terror nazista, todavia, difere-se em um número importante de aspectos de outras contrapartes recentes ou contemporâneas. De uma forma geral, as classes dominantes recorreram ao terrorismo em massa nos tempos modernos apenas para salvaguardar o regime de uma ameaça iminente de destruição ou para conter e vingar-se sobre aqueles que temporariamente tiveram sucesso em privar uma elite de 36 sua propriedade e poder . Esses foram os casos, por exemplo, do “Reino do Terror”, na Revolução Francesa, e do “Terror Vermelho”, na Revolução Russa37. Porém, (e)stas circunstâncias extremas, se é que podem assim serem consideradas, não estiveram presentes na Alemanha, nem em qualquer outra ditadura Fascista. (...). As vítimas do terror no Terceiro Reich não eram membros de grupos de oposição ameaçadores. Os Liberais entregaram-se ao jugo nazista sem pestanejar. A Democracia Social foi facilmente controlada ante a faca de Hitler. O Comunismo, também, estava 35 ZIPPELIUS, Reinhold. Op. cit., p. 373. SCHUMANN, Frederick L. The Uses of Violence. In: _____. Hitler and the Nazi Dictatorship: A Study in Social Pathology and the Politics of Fascism. p. 287-311. 37 Ibidem, p. 288. 36 igualmente desamparado. (...). A revolução nazista, para o desgosto de Spengler e de muitos dos membros das tropas de choque, foi uma vitória contra inimigos que não podiam ou não iriam levar um dedo em defesa própria. Não havia greves, lutas nas ruas, barricadas, rebeliões, assassinatos de funcionários públicos, guerra estrangeira, nem ameaças visíveis de qualquer natureza à autoridade incontestável dos ditadores. E, 38 mesmo assim, houve terror . Assim, fosse contra os adversários políticos anteriores, num primeiro momento, fosse contra toda a população, indiscriminadamente, na fase posterior, o terror total expandiu-se por todos os setores dos regimes totalitários. Para sua implementação, este terror teve substrato “na paixão alemã pela Ordnung [ordem] e na paixão de Hitler pela „legalidade‟”39, a ponto de que “as medidas de repressão fossem dignificadas com as formas da lei e que as agências governamentais fossem expressamente autorizadas a agir contra „inimigos do Estado‟”40. Distanciando-se do modelo tradicional que imaginava as leis positivas “transitórias e mutáveis de acordo com as circunstâncias”, ainda que resguardassem “uma permanência relativa se comparadas às mudanças muito mais rápidas das ações dos homens” e lhe garantissem, portanto, uma “função estabilizadora”41, “(n)a interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornaram, ao contrário, leis de movimento”, perdendo a Natureza e a História a característica de “fontes de autoridade para as ações dos homens mortais”, sendo “em si mesmas movimento e suas leis, portanto, ainda que alguém possa precisar de inteligência a fim de que possa percebê-las e entendê-las, nenhuma relação guardam com a razão ou a permanência”42. Portando, desta maneira, uma base legal, o terror foi disseminado estrategicamente. O descontentamento dos líderes do partido “com a administração da Justiça”, aliado às críticas da imprensa nazista a uma decisão proferida pela Suprema Corte, levou à criação, em 24/04/1933, da Corte do Povo (Volksgerichtshof), a qual tinha como papel “lidar com casos de traição” e que fora configurada de maneira a levar a cabo as pretensões do regime. Inclusive, faz-se mister assinalar a mudança operada pelo Dritten Reich no sistema jurídico, feita em dois instantes: no primeiro, houve a “identificação do NSDAP com o Estado e das punições à crimes contra o partido com crimes contra o Estado”; no segundo, o 38 Ibidem, p. 288-289. Ibidem, p. 298. 40 Idem. 41 ARENDT, Hannah. Origins…, p. 463. 42 ARENDT, Hannah. On the nature... 39 partido superou o Estado, sendo “punidos crimes contra o Estado como crimes contra o NSDAP”43. Com a premente função de evitar qualquer espécie de dissidência, em adição às Tropas de Choque (Sturmabteilungen – SA) e às Tropas de Proteção (Schutzstaffeln – SS), foi criada a Polícia Secreta do Estado (Geheime Staatspolizei – Gestapo), em 27/04/1933. Esta foi, inicialmente, “o instrumento principal do govêrno”, sendo comandada até 17/06/1936 por Hermann Goering, quando passou à supervisão de Heinrich Himmler. Mesmo antes da unificação à SS, em 26/05/1939, a Gestapo, desde 1936, “fôra separada do contrôle judicial e assumira, teòricamente, o controle e a operação dos campos de concentração”. Após proceder a uma distorção da “noção de „custódia protetora‟”, passou a operar mediante a “prisão arbitrária e encerramento em campos de concentração de qualquer pessoa que quizessem [sic] e pelo tempo que desejassem; a Gestapo tornou-se, assim, o mais dramático símbolo do terror e da ditadura totalitária em seus piores aspectos”44. A opinião arendtiana sobre as polícias secretas no totalitarismo, de que seriam elas “super-eficientes e super-competentes”, parece trafegar no mesmo sentido, apesar de destilar certa dose de ironia nas suas considerações posteriores45. 2.2 – Gestapo ou Big Brother? Em que pese as teorias dos autores acima mencionados servirem, já há tempo, como paradigma para boa parte das pesquisas que envolvem o totalitarismo em geral, e o germânico, em especial, reputou-se por bem empreender uma busca por novos holofotes a lançar outras luzes sobre o cotidiano nazista e suas práticas, mister naquilo que toca a polícia secreta do regime. De fato, não se pretende oferecer uma concepção revisionista – não, ao menos, em seu sentido usual, estigmatizado, que guarda substancial carga pejorativa, no sentido de alterar os fatos históricos e tentar, aqui, diminuir a importância, “justificar” ou mesmo negar aquilo que ocorreu no período compreendido entre os anos de 1933 e 1945 na Alemanha de Adolf Hitler. Esperase, sim, poder contribuir para uma abertura das discussões e salientar pontos que, talvez, tenham sido encobertos pelo tempo, realizando-se tal exercício sempre com 43 SCHUMANN, Frederick L. Op. cit., p. 300 e ss. FRIEDRICH, Carl J., BRZEZINSKI, Zbigniew K. Op cit., p. 134. 45 ARENDT, Hannah. Origins..., p. 420 e ss. 44 o devido respaldo acadêmico e respeito pela memória daqueles que, direta ou indiretamente, sofreram em decorrência das atrocidades promovidas em favor de “um bem maior”. No que respeita, então, ao conteúdo da corrente análise, pode-se afirmar, seguindo David F. Crew, que “nas décadas de 1950 e 1960, Hannah Arendt, Carl Friedrich e Karl Dietrich Bracher construíram uma descrição notoriamente longeva da Alemanha nazista como um Estado e sociedade „totalitários‟”46. Tal interpretação, que guarda similaridades com o livro 1984, de George Orwell, é amplamente aceita tanto em círculos universitários, como perante o senso comum. Entretanto, este “modelo totalitário derivou das próprias auto-representações ideológicas do regime nazista”, restando afastadas, assim, “de qualquer análise mais próxima da sociedade alemã [que vivia] sob o Nacional Socialismo”47. Espalharam-se, pois, durante muito tempo, estes discursos comuns, que “raramente iam além de vagas afirmações de „culpa coletiva‟ ou de tentativas igualmente simplistas de diferenciar entre as „vítimas‟ e seus „algozes‟”, ao passo que “novas pesquisas demonstram (...) que as realidades do dia-a-dia na Alemanha nazista não irão simplesmente se submeter a uma descrição dicotômica [black and white description]”48. Este é o caso, por exemplo, do mito de onisciência, onipotência e onipresença da Gestapo. Criado em grande parte pela propaganda do regime – na tentativa tanto de causar intimidação generalizada, como de esconder seus próprios problemas –, este mito serviu, eficientemente, para erguer a figura de uma polícia secreta capaz de “rastrear os inimigos do regime com uma acuidade instintiva”, sendo reproduzido em larga escala não apenas nos relatos daquele período, como também em pesquisas realizadas após o final da guerra49. Num primeiro momento, tal visão serviu para auto-justificar as agruras pelas quais passavam os membros dos movimentos de esquerda – ausência de uma resistência maciça, isolamento social e aniquilamento de suas formações. Explicações que defendessem a perfeição metodológica e instrumental da Gestapo eram escusas perfeitas para que os dissidentes não tivessem que enfrentar as 46 CREW, David F. General Introduction. In: _____ (ed.). Nazism and German Society: 1933-1945, p. 01-37. Idem. 48 Idem. 49 MALMANN, Klaus-Michael; PAUL, Gerhard. Omniscient, omnipotent, omnipresent? Gestapo, society and resistance. In: CREW, David F (ed.). Nazism and German Society: 1933-1945, p. 166-196. (p. 167). 47 causas mesmas que afastaram posturas contrárias ao partido, ainda que seu lastro apontasse para uma concepção absolutamente distorcida da realidade, refratária dos sentimentos que pesavam sobre aqueles que as delineavam50. No instante posterior à guerra, as análises que retratavam o mito de uma polícia secreta alemã suprema continuaram sendo propagados, ainda que sua função tenha sofrido relativa guinada. A antiga propaganda do Dritten Reich foi alçada “ao status de credo”, ao mesmo tempo em que a suposição de uma Gestapo onipresente “subsidiou, novamente, uma „saída de emergência‟ adequada – desta vez para o „homem comum‟ [„man in the street‟] e sua oportuna acedência no passado nazista” – afinal, mesmo que originada de uma “falsa representação histórica”, são mais convenientes as interpretações que centram a sociedade sob o controle intangível de seus “líderes criminosos”, completamente incapaz de se levantar “contra a tirania de violência nazi-socialista”, que outras que encontram traços de responsabilidade no próprio corpo social51. Da mesma superficialidade padecem os exames históricos sobre a resistência que corroboraram a divisão opressores-oprimidos e “engoliram por inteiro o mito de onipotência e eficiência”, eis que não perpassarem a “ofuscação propagandística” e deixaram de analisar “os procedimentos de fato do „Estado Discricionário‟ (Massnahmenstaat), sua topografia regional, a forma como estava incrustado na sociedade e, acima de tudo, as realidades de suas práticas cotidianas”. Desta feita, “(a) história da Gestapo tornou-se a estória de sucesso unidimensional dos onipotentes super-homens [vestidos] de preto”52. Deve-se ter em conta que uma grande gama de autores deixou-se levar pela faceta ideológica proposta pelo governo nazista e impressionou-se pela “monstruosidade da Gestapo”, sem, contudo, descrever como se dava a prática de suas operações. “Comum a todos estes estudos é o fato de que suas avaliações estão alicerçadas não em estudos empíricos, mas substancialmente em um sistema de suposições especulativas”, as quais desconhecem as interações entre “a polícia política e a sociedade” e apóiam-se numa história que fez amplo uso de uma compreensão horizontalizada e superficial, situada exclusivamente no comando 50 Ibidem, p. 167-168. Ibidem, p. 168-169. 52 Ibidem, p. 169. 51 berlinense e que ignorava os demais padrões regionais53. Segundo Klaus-Michael Mallmann e Gerhard Paul, pouca importância foi dada à “estrutura, equipamentos e atividades” da Gestapo em níveis descentralizados, o mesmo podendo ser dito da atenção “aos seus problemas, equívocos e sucessos”54. Ao contrário de incitar novas investigações, estas perspectivas limitadoras acabaram por imprimir na polícia secreta a marca de um “„big brother‟ onipotente”; outrossim, a “vigilância continuada e o terror precisamente direcionado tornaram-se uma espécie de senha ou „elo perdido‟” para os autores, cujo expediente garantiu uma “explicação preguiçosa para o fato de que a resistência havia sido esmagada, frustrada ou, simplesmente, não havia existido”55. Todavia, um novo panorama aparenta poder ser projetado a partir das análises de escritores como Detlev Peukert, Inge Marssolek, René Ott, Reinhard Mann, Robert Gelatelly e Burkhard Jellonek, além dos já mencionados Mallmann e Paul, posto terem oferecido à comunidade universitária e ao público geral opiniões que divergem das correntes tradicionais, colocando em xeque concepções que davam a impressão de serem, outrora, imutáveis, ante o arraigamento de teorias que, paradoxalmente, careciam elas mesmas de raízes. Retirada a máscara de um “sujeito propagandisticamente inflado” e passando-se a uma percepção segundo “sua normalidade e rotina diária”, a Gestapo nem de longe lembra as descrições comumente aceitas, até porque suas próprias forças “dificilmente poderia(m) tê-la viabilizado a cumprir o papel do „Big Brother‟ ubíquo”56. Uma vez alquebrada a corriqueira representação orwelliana, outro aspecto exsurge, não menos estarrecedor: a denunciação de populares por populares, fator que foi “quase ignorado até agora, mas assustador em sua extensão”. Era ela, pois, “que mantinha o maquinário do terror em movimento e constituía um componente central da „constituição‟ interna do Terceiro Reich”57, em oposição aos setores administrativos e de inteligência da organização, os quais, em sua maioria, eram extremamente carentes e deficitários58. Apenas exemplificativamente, na região que era abrangida pelo escritório regional de Düsseldorf e que tinha sob seu controle quatro milhões de pessoas, somente 281 53 Ibidem, p. 170-171. Ibidem, p. 171. 55 Ibidem, p. 172. 56 Ibidem, p. 172-173. 57 Ibidem, p. 173. 58 Ibidem, p. 173-175 e 176-179. 54 (duzentos e oitenta e um) agentes podiam ser convocados em março de 1937, incluídos nestes todos os que estavam lotados nas subestações, enquanto Hannover e Bremen tinham, respectivamente, quarenta e dois e quarenta e quatro empregados59. Até o começo da guerra, ainda que de forma reduzida, a polícia secreta alemã possuía em seu contingente pessoal treinado e razoavelmente qualificado, o que ajudava a manter a aparência de um organismo único, coeso e de amplo alcance, apesar de sua realidade estar muito distante da propaganda. Por outro lado, “(e)m termos quantitativos, a Gestapo mal representava uma enfermaria do fanatismo nacional-socialista”, não tendo muitos de seus membros nem mesmo participado do NSDAP – em Saarbrücken, “apenas 10 por cento daqueles ali empregados pertenciam à SS em 1935, enquanto 50 por cento eram membros do partido”. Mais: enquanto “(o) número daqueles que não pertenciam a nenhuma organização nazista era de 40 por cento, incrivelmente alta”, havia até mesmo exmembros de partidos republicanos e cristãos praticantes entre seus funcionários, algo que indica, ao menos, uma ideologia heterogênea entre seus participantes60. A deflagração do conflito externo trouxe consigo ainda mais dificuldades operacionais, obrigando a Gestapo a trazer para seu círculo pessoal “menos tecnicamente competente que os experts em criminologia” com quem estava habituada; eram, porém, “muito mais ideológicos”. “Este declínio em prática policial inteligente estimulou a substituição dos métodos policiais herdados por confissões extorquidas com o uso da força”. Daí, então, que “a realidade da Gestapo começou a se ajustar à sua popular concepção de uma gangue de criminosos brutais”61. Todos estes empecilhos, das mais diversas ordens, demandavam outras explicações para que as garras (não tão) afiadas da polícia política continuassem provocando danos. E eis, então, que foi colocado em questão o papel das denúncias espontâneas da população. Ainda que a prática tivesse variado em grau “de acordo com o período, a região e o tipo de comportamento criminalizado”, ela “representava provavelmente o mais importante recurso do conhecimento da polícia estatal, tanto quantitativa, como qualitativamente”, a ponto das denúncias representarem 69,5% (sessenta e nove inteiros e cinco décimos por cento) “de todos os casos que foram 59 Ibidem, p. 174. Ibidem, p. 175-176. 61 Ibidem, p. 176-177. 60 colocados sob a categoria de „traição‟ ou „alta traição‟ pelo promotor público de Saarbrücken”62. Não se pode olvidar que o fanatismo político tinha uma posição de destaque entre as razões que levavam às denúncias, não sendo, todavia, a única; “de regra, eram visões conflitantes, desejos de emancipação e sede de vingança que desempenhavam este papel”63. Eram, portanto, causas humanas (demasiado humanas, alguém poderia dizer) que compunham o substrato das motivações dos denunciantes. Ainda que se possa imaginar que alguns “informantes, homens e mulheres, não estivessem completamente a par de todas as possíveis conseqüências de suas ações”, não se pode ignorar que havia situações “nas quais o extermínio físico não era apenas aceito como possível resultado da denúncia, mas, na verdade, era deliberadamente pretendido”. Neste mister, é possível mencionar o caso da “operária que em Saarbrücken acusou seu marido, um excomunista, de ouvir a „rádio inimiga‟”; por quê? Para que fosse possível ao amante adentrar seu lar. “Ela disse ao filho, „Seu pai irá embora e você ganhará um muito melhor‟”64. De qualquer forma, um padrão foi percebido não somente pelo regime – que passou, inclusive, a punir denúncias flagrantemente mentirosas, até mesmo com o envio a campos de concentração –, como também por “atentos correspondentes estrangeiros”: “(o) fenômeno de denunciação em massa (...) não era algo que era forçado pelo regime por meio de uma lei ou de diretivas importantes; era uma questão puramente de livre-arbítrio”. Curiosamente, ao mesmo tempo em que as denúncias eram de suma importância para o regime – e para a polícia secreta, em especial – “elas também causavam uma grande sobrecarga nas capacidades da Gestapo e comumente prendiam os escritórios distritais à busca de interesses pessoais”. Portanto, “nesta medida, as denúncias eram tanto problemáticas como indispensáveis”65. Havia uma exceção, contudo: a “denunciação provou-se uma arma quase inútil” quando relativa a grupos conspiratórios de partidos políticos, no caso, de comunistas e social-democratas. Contra estes, a Gestapo dependia de informantes 62 Ibidem, p. 179. Ibidem, p. 180. 64 Idem. 65 Ibidem, p. 180-181. 63 pagos, cujo número era bastante restrito. Ademais, esta longa manus encontrava-se por demais debilitada, eis que os dados repassados raramente eram passíveis de serem utilizados, sem contar na desconfiança do próprio movimento com relação a alguns categorias de agentes66. Apesar da fragilidade das informações recebidas dos canais semiparalelos, as quais possibilitavam apenas prisões individuais, “a prática de „interrogatório sob tortura‟ (verschärfen Vernehmung), provou-se um instrumento investigativo excepcional para a Gestapo”, a ponto de permitir detenções em massa através de indicações dadas por aqueles que sob ela eram questionados67. Noutra senda, a inteligência provida por agências ligadas ao Estado subsidiava dados de importância fundamental, especialmente naquela que advinha de “registros populacionais, departamentos de trabalho e saúde, ferrovias e correios, polícia criminal e patrulha local”, mesmo que a cooperação variasse regionalmente e, por vezes, resultasse em atritos entre as autoridades68. Enfim, o que se pode perceber das descrições acima coletadas é que a Gestapo, longe de ser uma Terrormaschine de peças teutonicamente engendradas e ordenadas, mostrava-se amplamente fragmentada. Padecia fortemente, pois, das falhas internas nos setores administrativos e de inteligência, não possuindo nem mesmo uma ideologia unificada. Suas ações dependiam invariavelmente das denúncias populares e dos demais órgãos do governo e seus funcionários, que nem sempre se dispunham a ajudar e servir de empregados da polícia política. A escamoteação de suas (reconhecidas) deficiências69 por meio da ferramenta propagandística – a qual jogou uma nuvem de fumaça sobre o regime e a sociedade – mostrou-se quase infalível, diminuindo notoriamente as chances de levante e sustentando uma das facetas que desaguaram na caracterização acadêmica do “totalitarismo” nazista. Uma população acuada e desejosa de cumprir seus “deveres” (afinal, Estado e súdito confundiam-se num só ente) estava mais propensa a contribuir com os trabalhos, ainda que a essência fosse composta de interesses das mais diversas ordens e por vezes correspondesse, obliquamente, ao fanatismo nacionalista. 66 Ibidem, p. 181-182. Ibidem, p. 182-183. 68 Ibidem, p. 184. 69 Ibidem, p. 185-187. 67 Sem a colaboração expressa e ininterrupta das massas e sem os dados subsidiados por outros setores estatais, “a Gestapo estaria virtualmente cega”; sem a cooperação “da polícia criminal, das patrulhas e da força policial, ela não teria condições de executar as tarefas às quais havia sido destinada”70. Havia, assim, uma cumplicidade intrínseca com os “crimes de massa”, conceito este que pode passar a ser tomado sob duas vertentes: “estes eram crimes que afetavam as massas alemãs, mas uma grande parte da população alemã também participava nestes crimes”71. Não obstante, é possível argüir que a figura tradicional se formou a partir do ingresso de material humano menos tecnicamente preparado e mais dado a questões ideológicas, cujos métodos eram francamente perniciosos, ao mesmo tempo em que o aparelho judicial, mesmo corroborando muitos dos atos praticados, ficava à margem de parcelas significativas das investigações e punições ditadas pela Gestapo, que galgara importância na mesma medida em que suas atribuições cresciam e suas possibilidades de cumpri-las, ao menos formal e independentemente, arrefeciam. Este argumento, todavia, é erguido em pilares ocos, e se revela frágil tão logo se proponha a analisar, não mais macroscopicamente, mas ao nível das vicissitudes cotidianas do grupo, as quais indicavam uma distância patente entre a panfletagem oficial e a concepção pública de uma polícia big brother e as reais condições de insuficiência em que se encontrava. Ao serem percebidas estas contradições que se abatiam sobre a realidade diuturna da polícia política, faz-se possível enveredar por novos caminhos rumo ao Kern, ao centro do mito – caminhos estes que, por sinal, mostram-se tão (ou mais) polêmicos e, quiçá, bizarros, que aqueles anteriormente abertos. Enquanto são retiradas as capas de proteção que encobriam a justificativa para a débil, ou quase inexistente, resistência, bem como aquela que autorizara os autores, ao menos até fins da década de 1970, a continuarem defendendo um discurso que supervalorizava a ideologia disseminada pelo regime e protegia indiscutivelmente a sociedade, elementos mais putrefatos – e, portanto, humanos – são liberados. Fanatismo, sim; igualmente, ganância, luxúria, vaidade, preconceito, ira e soberba podem ser arrolados como motivadores para a cumplicidade e condescendência da 70 71 Ibidem, p. 184-185. Ibidem, p. 185. população, que, inicialmente, se prostrou – ou teria, em momentos, se entregue? – às ameaças, mas que também se mostrou bastante hábil no sentido de afastar sua responsabilidade no pós-guerra pela via acadêmica, diretamente ou por antepostas pessoas, e colocá-la toda numa versão mitificada, supra-humana, da Gestapo. Daí se poder dizer que esta possuía um nível muito menor de sistematicidade e inteligência criminal que a literatura anterior sugere, não sendo as possibilidades de vigilância tão “totalitárias” que a resistência estivesse, desde o início, condenada à catástrofe. A fragmentação interna do Massnahmenstaat e deficiências estruturais de suas agências permitiram uma variedade de espaços livres e 72 nichos para os quais o povo poderia ter se retirado . No lugar do mito de onipotência, onipresença e onisciência, em substituição a esta montagem à lá Orwell à qual durante muito tempo se rendeu, e descobrindo-se, empiricamente, que o castelo não era de pedra, mas de areia, pode-se proceder a uma nova constatação: a de que, “ao invés da imagem de um Estado capaz de uma vigilância (praticamente) perfeita de toda a população, nós agora precisamos ver uma sociedade que produziu denúncias em massa”73. O ofuscante e colossal Apolo, despido de seu uniforme de gala, revelouse, então, um homem de olhos e ouvidos falhos; suas mãos, apesar de ferruginosas, são conduzidas por músculos atrofiados; os pés, descalços e feridos, se locomovem por um terreno pantanoso e tenebroso; e por suas veias corre um sangue negro, negro como pode ser a natureza humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não se supõe que, com o que foi coletado e descrito nas linhas acima, se possam mudar opiniões, concepções ou entendimentos há muito inculcados, entalhados que foram por inúmeras reflexões e considerações que têm como assento alguns dos mais aclamados estudiosos dos Estados ditos “totalitários” e, principalmente, do regime nacional-socialista germânico. Seria de uma audácia estupenda – e estúpida – imaginar que tal empresa seria sequer possível. Uma vez transpassados, porém, os argumentos de autoridade, e buscadas novas fontes de pesquisa – que de fato se preocupem com aspectos históricos mais empíricos e menos estritamente acadêmicos e que, por isso, trazem 72 73 Ibidem, p. 187. Ibidem, p. 188. consigo a possibilidade de inéditas interpretações acerca do fenômeno nazista, tomado aqui como um todo (Estado e sociedade) –, as profundas rachaduras do muro tradicional começam a saltar aos olhos, fazendo-se improvável a continuidade de sua mantença erguida sem algumas revisões e eventuais reparos. De fato, se a idéia original de totalitário traz consigo, entre outras coisas, a suposição de que não havia possibilidade de oferecer contraposição ao regime, porque o terror que era impingido não permitia qualquer hesitação, dever-se-ia pressupor que o Estado possuiria condições e agentes suficientes para que o medo fosse disseminado em escala sem precedente. Era nesta visão – turva – que a população queria acreditar, que a resistência fundava seus próprios fracassos e que as pesquisas dividiam, binariamente, réus e vítimas, enquanto aquela promovia denúncias em massa, esses pouco – ou quase nada – faziam, e estas protegem ora seus autores, ora as duas primeiras categorias. Havia – como ainda há – muitas suposições, e poucas demonstrações, para que continuem a serem sustentadas tais versões. Para quê cogitar da origem da violência no próprio povo, se ele estava, de maneira indefectível, “subordinado” aos “nazistas do mau”? Por que não vislumbrar na ereção do mito da polícia secreta, cujo suporte era estritamente propagandístico, um anteparo para a passividade e ineficiência de movimentos de resistência? Qual a razão de esconder, por manobras semânticas muitas vezes, a concupiscência, a corrupção e a intimidade que resguardavam os interesses e as relações da Gestapo com a sociedade? Não se quer – nem se pode esperar – que tais perguntas sejam passíveis de respostas exatas, matemáticas. De fatos é “fácil” falar; difícil é entendê-los apenas como uma das várias interpretações possíveis para o episódio que se pretende descrever. Isenção não há: os interesses permeiam e, em parte, sufocam a compreensão que se faz do mundo. Se o trabalho servir ao seu propósito inicial, que é o de possibilitar uma nova dimensão de estudos sobre o assunto, pois bem. Repise-se, ainda que pareça enfadonho: não se quer promover idéias revisionistas ou levantar bandeiras a favor do anti-semitismo, racismo, nacionalismo, ou quaisquer outros “ismos”; almejam-se, sim, revisões, rediscussões, reestudos sobre este tema que, por espinhoso, acaba perturbando e afastando novéis análises. Se não servir, ao menos, que projete dúvidas sobre as considerações tomadas por habitualmente escorreitas. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. State of Exception (transl. by Kevin Attel). 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