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COMPORTAMENTO Tema: Relações contemporâneas Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse As novas configurações de relações afetivas nos tempos atuais é o assunto deste programa que busca mapear as variações e possibilidades do encontro afetivo. Para tanto, aborda a solidão a dois de Cão Sem Dono, de Beto Brant, a relação a três de E Sua Mãe Também, do mexicano Afonso Cuarón, o romance entre personagens de identidades sexuais incomuns em Elvis e Madonna, de Marcelo Laffitte e as novas formas de família e identificação de gênero em Olhe Para Mim de Novo, de Kiko Goiffman e Claudia Priscilla. Apresentação dos filmes e das questões E Sua Mãe Também (Brasil, 2001), de Alfonso Cuarón E Sua Mãe Também é um road movie que trata da amizade e das descobertas sexuais de dois adolescentes, Tenoch (Diego Luna) e Julio (Gael Garcia Bernal) com Luisa (Maribel Verdú), casada com o primo de Tenoch. Eles a convidam para uma viagem à praia de Boca del Cielo. O filme é uma viagem, um trajeto provisório onde se lançam à experiência pura. Esse elemento dos “afetos provisórios” abordado pelo filme encontra sua melhor metáfora nessa viagem na qual eles se lançam sem saberem se a tal praia para onde vão existe realmente. Importa mais o caminho, a viagem, do que o destino. Cão sem Dono (Brasil, 2007), de Beto Brant e Renata Ciasca Baseado no romance Até o Dia em que o Cão Morreu, do escritor gaúcho Daniel Galera, Cão sem Dono, dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, é a história de um rapaz recém-­‐formado em Letras e sem perspectiva que se envolve com uma atriz iniciante. A dificuldade de entrega de ambos os lados é o que dá o tom do conflito. No filme a ideia de “perspectivas”, sejam profissionais, amorosas ou existenciais, não existem. Brant e Ciasca queriam fazer um filme sobre uma relação amorosa contemporânea e chegaram ao livro de Galera (parcialmente autobiográfico) em que a fragilidade dos elos afetivos e o medo do futuro definem a condição dos personagens. Elvis e Madonna (Brasil, 2010), de Marcelo Lafitte Elvis é uma garota que sonha em ser fotógrafa, mas vive de entregar pizza. Madona é um travesti cabeleireiro que quer ser estrela de teatro de revista. Ambos se conhecem e se tornam amigos, mas acabam se apaixonando. O casal inusitado, uma lésbica e um transexual, acabam por ficar “grávidos”: Elvis vai ter um bebê. Com bom humor o filme investe em um romance que não se adéqua a rótulos corriqueiros de sexo e gênero. Olhe para Mim de Novo (Brasil, 2011), de Kiko Goifman e Cláudia Priscila Silvyio Lúcio é um transexual que sonha em ter um filho legítimo com sua esposa. O documentário de Cláudia Priscila e Kiko Goifman é um road movie que cai na estrada com Silvyio e busca conhecer esse personagem singular que nasceu mulher e se transformou em homem, em “cabra macho” nordestino. Silvyio desafia classificações de sexo e gênero mais tradicionais (ainda que dentro do espectro “gay”), assim como, todos os personagens que conhecemos na estrada durante o filme também possuem características e comportamentos que desafiam rótulos mais normativos, sejam eles sexuais ou comportamentais. Material Anexo As novas famílias e os desafios da educação Qual o conceito de família e como os pais e educadores têm trabalhado estes novos padrões na formação das crianças e jovens? O conceito de família mudou. Na nova realidade mostrada pelo último levantamento do IBGE a formação tradicional -­‐ pai, mãe e filhos -­‐ divide lugar com outros grupos que vivem sob o mesmo teto. Qual o conceito de família e como os pais e educadores têm trabalhado estes novos padrões na formação das crianças e jovens? Pesquisas recentes revelam que a família é uma instituição em constante movimento e sujeita a determinações econômicas que forçam reorganizações e, consequentemente, novas formas de relacionamento com parentes, novas organizações familiares, para dar respostas às necessidades e mudanças causadas. 2 Dentro desta nova configuração, alguns dados se destacam, segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), realizado em 2010. Atualmente a formação clássica ‘casal com filhos’ representa 49,9% dos domicílios, enquanto outros tipos de famílias já somam 50,1%; são 10,197 milhões de famílias em que só há mãe ou pai; em 37% dos lares, as mães já são as principais responsáveis pelo sustento de todos e existem pelo menos 60 mil famílias homoafetivas brasileiras, das quais 53,8% são formadas por mulheres. Os pesquisadores do IBGE encontraram vivendo sob o mesmo teto mãe criando filho sozinha, pai criando filho sozinho, mãe com filho gerado de forma “independente”, pai que assumiu o filho de uma relação ocasional, marido e mulher vivendo juntos com os pais, irmãos e filhos de outros casamentos, “famílias” formadas por grupos de amigos, casais gays com filhos de relacionamentos tradicionais, adotados ou concebidos a partir de barrigas de aluguel, entre outros tantos arranjos identificados em todo o País (veja os números no infográfico). As novas composições recebem novas nomenclaturas, com as quais passamos a nos familiarizar. Entre elas estão: “família margarina”, “família mosaico”, “família monoparental”, “família estendida”, “família homoafetiva”. Outro termo para designar um tipo específico de composição familiar é o DINK -­‐ “Double Income No Kids”-­‐, sigla em inglês que define os casais onde os dois têm renda e não têm filhos. Esta designação, ainda sem tradução, confirma que o que define os agrupamentos familiares é, de fato, o componente financeiro. Um modelo em mutação O levantamento do IBGE reflete as mudanças ocorridas ao longo das últimas décadas e intensificadas a partir do ingresso da mulher no mercado de trabalho e do advento da pílula anticoncepcional, que ampliaram, no universo feminino, a liberdade de escolha e a possibilidade de desfazer e refazer casamentos. A principal constatação é que a formação clássica já não é dominante e a família não é mais determinada apenas por laços consanguíneos. O componente econômico também é apontado pela psicanalista Belinda Mandelbaum, professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho e coordenadora do Laboratório de Estudos da Família da Universidade de São Paulo (USP). Mas, na visão de Mandelbaum, a noção idealizada de família não é significativa para o desenvolvimento psíquico ou o desempenho escolar das crianças. Ela defende que as configurações existentes atualmente podem fugir ao modelo idealizado pela sociedade, mas têm plenas condições de obter sucesso na formação dos filhos e dependentes sob sua responsabilidade. Para a psicanalista, a ideia de que existe um modelo “certo” para a formação familiar deve ser deixada de lado por ser extremamente preconceituosa. "Nunca houve um modelo definitivo 3 de família e o essencial, quando existem filhos, é a criança ter em casa alguém que exerça os papéis materno e paterno – mesmo que seja uma pessoa só. Mas não é necessário ser o pai e a mãe biológicos para fazer isso – outros adultos podem ter uma dessas atribuições, como o avô e a madrasta”. Ela explica que o papel materno seria de acolhimento para criar o sentimento de confiança, fundamental para o desenvolvimento e, também, para a capacidade de aprendizado, em relação à educação formal. Nesse contexto, caberia ao pai exercer a autoridade, colocar limites, mostrar que há regras a respeitar. “Por outro lado, pode haver pai, mãe e filhos dentro de uma casa em que ocorrem situações de abuso ou de falta de limite”, compara. Aos pais e professores que ainda têm dificuldades em definir qual a melhor forma de abordar com as crianças as novas formações familiares (particularmente nos casos de filhos de casais separados ou de pais assumidamente gays), Belinda Mandelbaum sugere que utilizem as próprias estatísticas do IBGE. "Os dados são uma ótima maneira de falar do assunto e os números mostram que esses arranjos refletem a realidade das famílias atuais". Para a terapeuta Angélica Amigo, as premissas básicas de uma boa abordagem sobre o assunto são o respeito e o diálogo franco e aberto, mas dentro da capacidade de compreensão de cada faixa etária. “Criança é muito esperta e precisa ser conquistada para ganhar a confiança e o respeito do adulto que pretende orientá-­‐la sobre qualquer assunto”. Um exemplo interessante de abordagem do tema com as crianças vem da dupla Rita Rameh e Luiz Waak, ganhadora do prêmio TIM de melhor CD infantil em 2012: “Por quê?”. A música “Família” é uma ótima síntese dos novos tempos: “Tantas famílias, tão diferentes. Famílias com pouca, com muita gente. Isso não importa, o importante é ter, sempre uma família bem pertinho de você.” Para ouvi-­‐la acesse: http://www.myspace.com/cdporque/ Laços e sobrevivência Seja qual for o arranjo familiar, o papel do Estado ainda é determinante para garantir a manutenção da família, na opinião da assistente social Nayara Hakime Dutra Oliveira. Docente do Grupo de Estudos e Pesquisas GEPEFA – Família, perspectivas e tendências – da Universidade Estadual de São Paulo (UNESP), pelo qual desenvolveu o Projeto de Extensão Universitária “Falar de família é familiar”, no campus de Franca, Nayara classifica a família como um local para a construção da identidade pessoal e social, independentemente de sua forma ou configuração. A construção dos indivíduos sociais, no entanto, depende da ação profissional em diversas áreas, que deveria ser propiciada pelo Estado, permitindo que vínculos entre os membros dessa família se desenvolvam da melhor maneira. 4 “Diante da crise no mundo do trabalho, cujas principais características podemos verificar na atualidade, como o desemprego, a tripla jornada de trabalho e a ausência dos pais na criação dos filhos, entre outras, a abordagem com famílias assume novos contornos e especificidades”, afirma Nayara, para quem a política social ainda tem muito a crescer. Pós-­‐familismo Para o demógrafo americano Joel Kotkin, responsável pelo relatório internacional “A Ascenção do Pós-­‐Familismo”, atualmente as pessoas se identificam mais com a classe a que pertencem do que com a família. Para ele, os países ricos estão na dianteira desse processo, por razões econômicas, mas também culturais e políticas, envolvendo o custo alto de se criar um filho, a importância cada vez maior que as mulheres dão à carreira e a falta de incentivos à maternidade, em contraponto às políticas que pregam o controle da natalidade. Já o sociólogo brasileiro Dário Caldas, em recente artigo jornalístico considera que os novos estudos colocam uma interrogação sobre o futuro da família, mas observa também que os sinais de sua renovação multiplicam-­‐se. Para ele é especialmente relevante o anseio por família e casamento dos casais homoafetivos – normalmente considerados precursores de novas tendências e comportamento. Jornal Cidadania Disponível em: http://www.fundacaobunge.org.br/jornal-­‐
cidadania/materia.php?id=11988&/as_novas_familias_e_os_desafios_da_educacao Vida com dois pais e duas mães IBGE já detectou 60 mil famílias homoafetivas pelo Brasil. A maioria, 53,8%, é formada por mulheres 010 do IBGE. Já oficializadas do ponto de vista legal (ainda falta o casamento), as relações homoafetivas são mais um exemplo dos novos arranjos familiares no Brasil, conforme mostra a série de reportagens “A Nova Família Brasileira”, iniciada ontem no GLOBO. E as mulheres são maioria nesses arranjos, respondem por 53,8% dos lares. — Há uma subnumeração. As mulheres têm mais facilidade de reportar a condição ao recenseador. Duas mulheres juntas sofrem menos discriminação — afirma Ana Saboia, coordenadora de Indicadores Sociais do IBGE Um bom exemplo dessa nova realidade é o casal de empresários Mailton Albuquerque, 35 anos, e Wilson Albuquerque, 40, residentes em Recife. No mês de março, eles apresentaram Maria Tereza, a primeira criança com dupla paternidade do país, nascida de barriga de aluguel. 5 Na sua certidão de nascimento não há nome de mãe, só dos pais, que vivem juntos há 15 anos. Afirmam ter certeza que pretendem permanecer assim até o fim da vida. Por isso, decidiram constituir família. A menina, hoje com seis meses, é filha biológica de Mailton, que recorreu a uma clínica de inseminação artificial e contou com o óvulo de uma doadora anônima. Uma prima que nunca quis se identificar cedeu o ventre para a gestação. Ambos já têm embriões congelados, caso queiram aumentar a prole. O próximo projeto é um filho biológico de Wilson, que deve ser gerado a partir de outubro. Uma pessoa da família já se prontificou a abrigar o embrião e no momento se submete à bateria de exames necessários ao procedimento. — Não queremos dar um intervalo muito grande. Vamos criar os filhos juntos e esperamos que seja um anjo como Maria Tereza — diz Wilson, lembrando que pensaram em adoção, mas desistiram diante da burocracia. Mailton diz que os dois querem que a criança se espelhe na educação e no afeto dos pais, e por esse motivo têm se dedicado muito à menina, ao ponto de levá-­‐la duas vezes por semana à empresa deles em Recife: — Queremos que nós e não babás sejam sua referência, e que Maria Tereza tenha intimidade com a gente. Lésbicas, católicas e felizes O capacho da porta de entrada da família Matos Lima é um arco-­‐íris, numa alusão à bandeira dos movimentos gays. No amplo apartamento da Zona Oeste de São Paulo, minuciosamente decorado, vivem quatro mulheres: as mães Marcela Matos, de 43 anos, e Daya Lima, de 30, profissionais do ramo de comunicação, e as filhas Nina, de 16 anos, e Lisa, que completará dois. Marcela e Daya estão juntas há 10 anos. Nina foi adotada por Marcela quando tinha dois anos. Daya entrou na vida de ambas no ano em que a garota completara seis anos. A certidão de nascimento de Nina, assim como a de Lisa, leva o sobrenome das duas mães, graças a um processo judicial. Quase todos os domingos a família vai junta à missa. A experiência que tiveram ao manter Nina em um colégio católico, porém, não foi boa. As mães contam que, quando a filha tinha cerca de 10 anos, a professora pediu que os alunos escrevessem uma redação relatando como eram as suas famílias. — Todos leram o texto em voz alta na sala. Mas, quando chegou a vez de a Nina ler, a professora não deixou. Foi neste episódio que decidimos trocar de escola — conta Marcela, que agora está feliz pois sua filha estuda em um colégio sem preconceitos, onde as colegas dela curtem a ideia de ter duas mães. 6 Sete anos depois de morarem juntas, o instinto materno de Daya aflorou e ela decidiu que queria engravidar. Elas tentaram fazer uma inseminação artificial, mas não deu certo. Em seguida, mudaram o método, arriscaram a fertilização in vitro e tiveram sucesso. Diferente do comum, elas não procuravam homens de cabelos lisos e olhos azuis, mas algum com profissão interessante. — Havia um que era taxista. Eu achei tão romântico e sensível um cara ser taxista, que é uma profissão que não exige formação complexa, e doar o sêmen. Queria esse — diz Daya, mas sem revelar se esse foi o escolhido. Preconceito ainda persiste Um casal de homens, que também teve a rotina acompanhada pelo GLOBO, disse desde o primeiro encontro que não queria ser identificado nem fotografado. Um deles é executivo de uma grande multinacional e mantém sua opção sexual em sigilo. Só se assumem quando viajam ao exterior. Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/economia/vida-­‐com-­‐dois-­‐pais-­‐
duas-­‐maes-­‐5902254#ixzz2KvHaPDgr © 1996 -­‐ 2013. Todos direitos reservados a Infoglobo Comunicação e Participações S.A. Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização. O Globo Disponível: http://oglobo.globo.com/economia/vida-­‐com-­‐dois-­‐pais-­‐duas-­‐maes-­‐5902254 Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos de Zygmund Bauman Respeitado sociólogo da atualidade, Zygmund Bauman é professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia, e autor de diversas obras publicadas como “O Mal-­‐Estar da Pós-­‐Modernidade”, “Medo Líquido”, “Modernidade e Ambivalência”, “Modernidade e Holocausto”, “Modernidade Líquida” e “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”. Nesta última obra destacada o autor estende o conceito de “líquido” para as relações humanas na pós-­‐modernidade. Mas o que significa tal conceito? Trata-­‐se de uma característica essencial da pós-­‐modernidade: tudo se torna frágil, duvidoso, frouxo, livre e inseguro. Bauman estende o conceito “liquido” para entender toda pós-­‐modernidade e, muitas vezes, é criticado por isto. Todavia, naquilo que diz respeito à obra Amor Líquido, o autor consegue resultados consideráveis e, deste modo, ilumina as relações amorosas do século XXI e destaca que a frouxidão é a principal característica de tais relações. Bauman, logo 7 nas primeiras páginas desta obra deixa claro o objetivo do seu trabalho: “A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-­‐
los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.” (BAUMAN, 2004, p. 8). A fragilidade dos vínculos humanos são misteriosos, conflitantes e inseguros na medida em que o homem contemporâneo está abandonado ao seu próprio aparelho de sentido, de modo que tal aparelho tem, ao mesmo tempo, grande facilidade de conceder e descartar sentido nas “relações amorosas”. O homem moderno, ávido por relacionar-­‐se, ao mesmo tempo em que busca uma relação, e desta maneira repudia a solidão, não abre mão de sua liberdade, e para manter a liberdade mantêm a relação, entretanto com uma outra configuração . Desta maneira, temos um novo modelo de relação amorosa: é a relação líquida, frouxa. O homem moderno busca o outro pelo horror à solidão, mas mantêm este outro a uma distância que permita o exercício da liberdade. Diante da dúvida é que o outro e o eu se relacionam, toda relação oscila “entre sonho e o pesadelo e não há como determinar quando um se transforma no outro”. (BAUMAN, 2004, p. 8). A co-­‐presença da satisfação e insatisfação da relação traz mais uma vez a dúvida à baila: devemos escolher sabendo dos riscos do nosso investimento, todavia, os casais “estão sozinhos em seus solitários esforços para enfrentar a incerteza.” (BAUMAN, 2004, p.10). Bauman deixa claro que a relação pode acabar numa manhã de sol que o outro – este que um dia antes disse “eu te amo – levanta-­‐se da cama e exclama: acabou!Como entender tal mistério? Quais idéias que se auto-­‐organizaram para tal catástrofe? – catástrofe para aquele que perde o objeto de amor “garantido”. Como sobreviver depois deste salto, ou melhor, do céu ao inferno em uma noite? “O amor, dirá Bauman, pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. [...] Assim, a tentação de apaixonar-­‐se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar.” (BAUMAN, 2004, p.23). Diante desta atração e medo o homem faz suas escolhas e Bauman as analisa. O relacionamento passa a ser um investimento: a satisfação e a dor são proporcionais ao investimento. “Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas abomina a perspectiva de perder ainda mais dinheiro na tentativa de recuperá-­‐los. Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-­‐lhe devolvido – com lucro.” (BAUMAN, 2004, p. 28). O investimento pressupõe “lucro” – uma relação firme e feliz capaz de gerar satisfação para sempre –, todavia, não tendo este como resultado o que resta é uma desolação de tempo 8 perdido e trabalho desperdiçado como esforço inútil. Baumam salienta que um relacionamento ocasionará muita “dor de cabeça” (BAUMAN, 2004, p.8), mas antes de qualquer coisa e acima de qualquer estância “uma incerteza permanente”. (BAUMAN, 2004, p. 29). O ar pessimista da obra mostra que a mesma dificuldade que se tem para amar pode ser transposta para a morte, pois é tão difícil aprender a amar quanto a morrer. Os “insights” de Bauman na obra “Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos” são inúmeros e destacam comportamentos do nosso dia a dia, do que há de mais concreto na vida do homem moderno com suas relações de amor: seus acessórios tecnológicos – que alimenta a crença de um mundo melhor e tranqüilo –, a busca ensandecia pelo sentido, a crença no amor como oasis em um mundo trágico e violento, as relações como uma rede computacional, a imprevisibilidade das relações, a queda da distinção entre o regular e o contingente, a traição, os relacionamentos de bolso – que podem ser usados quando as partes bem entenderem –, o cartão de crédito como forma de antecipação da satisfação, a subordinação do amante e a opressão do amado, etc. “Todos os amantes desejam suavizar, extirpar e expugnar a exasperadora e irritante alteridade que os separa daqueles a que amam. Separar-­‐
se do ser amado é o maior medo do amante, e muitos fariam qualquer coisa para se livrarem de uma vez por todas do espectro da despedida. Que melhor maneira de atingir este objetivo do que transformar o amado numa parte inseparável do amante? Aonde eu for você também vai; o que eu faço você também faz; o que eu aceito você também aceita; o que me ofende também ofende você. Se você não é nem pode ser meu gêmeo siamês, seja o meu clone!” (BAUMAN, 2004, p. 29). O relacionamento na pós-­‐modernidade seria mais uma forma de massificação e obliteração da subjetividade? A crítica filosófica – diante deste ataque à capacidade humana de pensar, refletir e entender as relações – seria uma forma de voltar à caverna para trazer à luz os casais presos e encantados com as sombras da caverna? Bauman dá os primeiros passos neste resgate. Andrei Venturini Martins Revista Hypnos Disponível em: http://www.institutohypnos.org.br/?p=3596 E Sua Mãe Também (Y Tu Mamá También, 2001), de Alfonso Cuarón Sexualidade e crítica social 9 Com grande prazer, dois jovens satisfazem as necessidades de seus fervorosos hormônios no tórrido road movie “E Sua Mãe Também” (2001), do mexicano Alfonso Cuarón. A imoderada exibição de sexo seria tudo que o filme tem a oferecer se o roteiro fosse incapaz de atingir certa profundidade. Inspirado pelo seu país natal, Cuarón produz um amálgama exuberante que contém erotismo, consciência social, amadurecimento e consistente drama psicológico. Gael García Bernal e Diego Luna interpretam os melhores amigos recém livres da fatigante rotina escolar. A naturalidade dos atores é notável, a interação acontece sem dificuldades e suas calorosas interpretações vão além, entrelaçando-­‐se completamente. Altas gargalhadas, festas alucinantes, masturbação e sexo com as namoradas ocupam a vida dos inseparáveis. O ato sexual é apresentado logo no início, apressadamente para combinar com a impetuosidade da juventude. Um deles, Tenoch Iturbide (Diego Luna), faz sexo de despedida com sua namorada que partirá dentro de pouco tempo para a charmosa Europa. O outro, Julio Zapata (Gael García Bernal), está impaciente na casa da sua, que também viajará. Agora é Julio que faz sexo, pressurosamente, pois está quase na hora do embarque e os pais da moça acreditam que o casal está apenas procurando um passaporte no andar superior. Após a partida do avião, eles erroneamente acreditam que a saudade irá oprimir seus corações, mas logo estarão metidos em devaneios com corpos de outras. Tenoch vive confortavelmente por causa da desonestidade de seu pai, um político corrupto. No topo de sua mansão, ele, seu amigo e um traficante de drogas sorvem as tão deliciosas substâncias do cigarrinho de maconha. Julio é filho de uma mãe chefe de família, assalariada fiel ao seu emprego, e irmão de uma ativista, que honra o sobrenome que carrega dando uma espécie de continuidade, em uma realidade distinta, ao instinto subversivo do mexicano Emiliano Zapata. Em uma dispendiosa celebração matrimonial onde até o presidente se faz presente, Julio e Tenoch, enfastiados com o ambiente, conhecem a espanhola Luisa (Maribel Verdú), mulher sensual casada com Jano (Juan Carlos Remolina), um desagradável primo de Tenoch. Ansiosos como leões famintos em torno da presa, a dupla convida Luisa para uma praia chamada Boca Del Cielo, um lugar esplêndido que eles acabaram de inventar. Eles voltam para a casa, sem nenhuma garantia de diversão. Luisa aguarda na recepção de uma clínica para saber os resultados de uns exames, suas encantadoras formas de mulher madura estão fixas no imaginário dos meninos que se tocam deitados em trampolins, eles chegam ao orgasmo. Algo terrível aflige Luisa, sentada sozinha na cama. O telefone toca e Jano, compungido e alterado pelo álcool, revela uma aventura com outra mulher. Luisa é atingida pelas lancinantes palavras e o público automaticamente elimina sua angústia anterior. Ela pensa na proposta recebida no casamento e liga para Tenoch, quer 10 viajar com os meninos; seu íntimo conturbado impele a vontade de viver. Encontrar o paraíso é mais fácil que suportar um desejo ingente. No caminho, Luisa percorre a intimidade dos amigos e contribui com algumas confidências. Sabe bem que é objeto de desejo e fomenta a chama sem hesitação. Enquanto os meninos apresentam as regras do frívolo manifesto “charolastra”, Luisa afasta seus irremediáveis problemas. A vida inconstante do México enriquece a película, fora do carro que abriga conversas picantes, o coração do país palpita aceleradamente. Após o choro da aflição, Luisa seduz Tenoch. Dentro do quarto de um módico hotel, Tenoch faz um sexo risível com a mulher traquejada. Ansioso demais e incapaz de controlar o borbotão da libido saciada. Após observar o ato, Julio, movido por uma sensação indefinível, profere uma verdade dolorosa e a amizade é posta em xeque. Julio tem a sua oportunidade no carro, após acordar no banco traseiro, com calor e excitado. O fracasso repete-­‐se enquanto Tenoch isola-­‐
se com a sua indignação. Não está apaixonado, simplesmente não quer dividir com um “traidor” a mulher que provou primeiro. Julio é tão ligeiro quanto o amigo, são apenas garotos incapazes. Agora é a vez de Tenoch soltar sua verdade após o malogro sexual do amigo e uma imatura altercação tem o seu início, Luisa é atingida por um impulso furioso e deixa tudo para trás. Ela retorna com uma condição ― as regras terão de ser ditadas por ela e assim será. Inesperadamente a praia paradisíaca é localizada. No sol revigorante e na areia aconchegante, o trio junta-­‐se a família de um pescador. O que era apenas imaginação torna-­‐se realidade. Luisa chora por Jano pela última vez, uma dança sedutora em um barzinho aquece o ménage a trois que está por vir. Luisa não participa da viagem silenciosa de volta, fica na maravilha natural deixando um conselho ― a vida é lábil e por isso devemos nos entregar. Os discípulos de Luisa fizeram justamente o contrário, separaram-­‐se e como é muito comum, sacrificaram a liberdade pelo amadurecimento. Agora surgem modificados, circunspectos, visivelmente constrangidos com o fortuito encontro. Tenoch conta outra verdade que Julio ainda não sabia. Dissipar-­‐se no paraíso é algo assim tão triste? Fica a pergunta e uma despedida definitiva em um final realista, porém contrário aos sorrisos espontâneos da juventude que marcaram o grande triunfo de Cuarón. Cinema pela arte Disponível em: http://cinemapelaarte.blogspot.com.br/2011/11/e-­‐sua-­‐mae-­‐tambem-­‐
2001.html México é cenário para "road movie" 11 As viagens nos "road movies" têm sempre um mesmo destino: algum ponto escondido dentro do personagem. No caso de "E Sua Mãe Também", que estréia hoje no Brasil, os adolescentes põem o pé na estrada para encontrar outro tema clássico: a passagem da adolescência para a vida adulta. É verão na Cidade do México e Julio (Gael García Bernal) e Tenoch (Diego Luna) foram "abandonados" pelas namoradas, que partiram para a Itália. Amigos fiéis, gastam juntos o tempo em atividades pouco inspiradas. É numa dessas que encontram a espanhola Luisa (Maribel Verdú), uma mulher madura, mas com um toque amalucado, casada com um primo pouco apreciado de Tenoch. Ansiosos por mudar de ritmo e embalados pela fantasia de seduzir Luisa, convidam-­‐na a uma viagem. A estrangeira é ela; é Luisa quem supostamente está sendo conduzida pelos dois amigos por um país desconhecido. No entanto, é ela quem acaba guiando Julio e Tenoch, fazendo com que sua viagem iniciática gere não uma, mas várias revelações. No carro do trio, somos levados a um México que não nos chega pelas revistas de turismo e cujas diferenças e contrastes são ressaltados por um narrador em off. O filme representa uma (re)descoberta também para o diretor, Alfonso Cuarón. "E Sua Mãe Também" marca a volta do cineasta ao seu país e à parceria no roteiro com o irmão, Carlos. Juntos, haviam escrito o primeiro longa de Alfonso, "Solo con Tu Pareja" (Só com Seu Par), depois do que o mais velho foi tentar a sorte em Hollywood. Ironicamente, Alfonso precisou fazer sua viagem de regresso para encontrar o sucesso que fora buscar no vizinho do norte. O roteiro foi premiado em Veneza, e o filme tem feito sucesso de público por onde passa. Boa parte de seu êxito está na atuação da simpática dupla, também reconhecida pelo festival italiano, com o prêmio de revelação. Francesca Angiolillo Folha de S. Paulo -­‐ 30 de novembro de 2001 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq3011200112.htm Cão sem Dono (2007), de Beto Brant e Renato Ciasca "Cão sem Dono" flagra o medo de amar 12 Para o diretor Beto Brant, filme retrata "a travessia de uma dor" e reflete dificuldade geracional de "assumir emoções" Depois da primeira noite com a aspirante a top Marcela (Tainá Müller), o tradutor em crise existencial Ciro (Júlio Andrade) se comporta como quem não ligará no dia seguinte. Nem em nenhum outro. Desligado do mundo, Ciro não tem telefone, não pede o número de Marcela nem acena com um novo encontro. No entanto, os encontros dos dois serão muitos, porque o amor é o futuro do sexo em "Cão sem Dono", longa-­‐metragem de Beto Brant e Renato Ciasca, que estréia hoje, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Baseado no livro "Até o Dia em que o Cão Morreu" (Companhia das Letras), de Daniel Galera, o filme tomou o nome de "Cão sem Dono" porque essa expressão, para Brant, expressa "um estado de espírito". É o estado de espírito de quem teme a entrega amorosa ou o que ela exige de coragem para "assumir suas emoções, sua história, suas escolhas", afirma Brant, 43. "É um traço de geração. É complicado se descobrir amando, precisando estar presente, querendo saber [do outro]", diz o diretor. Ao tratar desse tema, Brant, que conquistou o respeito da crítica com seus quatro longas anteriores, diz que realizou um filme "intimista", deixando de lado o foco na complexidade socioeconômica brasileira firmado em "O Invasor". Respiro "A gente precisou se voltar para dentro, para respirar, assim como ele [o personagem]. Há um desapontamento com as perspectivas de transformação da sociedade brasileira, de ela ser mais justa. Há uma falência dessa condição", afirma Brant. "Cão sem Dono" foi filmado em Porto Alegre (onde o filme já está em cartaz), cenário do romance literário original, cuja adaptação para o cinema é assinada por Brant, Ciasca e pelo escritor Marçal Aquino. No Rio Grande do Sul, a equipe repetiu os preceitos já característicos do trabalho de Brant e de seus freqüentes colaboradores. "Não sabemos aonde vamos chegar, mas sabemos como queremos ir até lá", resume Ciasca, que atua habitualmente como produtor e volta à direção depois de 20 anos de sua estréia, também ao lado de Brant, com o premiado curta-­‐metragem "Aurora" (1987). O privilégio ao percurso em lugar do resultado final "não quer dizer submeter-­‐se ao acaso da filmagem", esclarece Brant, mas sim ter a disponibilidade de incorporá-­‐lo, quando uma fala, uma atitude ou um gesto imprevistos contarem a favor do filme. 13 "Vamos para o set absolutamente preparados e com o roteiro na mão, mas também com a consciência de que o filme não está no papel. Não pode estar. Por isso, temos de deixar abertos os cinco sentidos." Em "Cão sem Dono", o acaso e os sentidos conspiravam favoravelmente na cena em que Ciro retorna à casa dos pais, depois de um surto depressivo. O ônibus "real" tomado pelo personagem possuía um desses assentos em que o passageiro viaja de costas para o motorista. Isso contribuiu para que Brant e Ciasca traduzissem cinematograficamente o regresso emocional de Ciro. Travessia Da janela do ônibus, as imagens mostram a cidade ficando para trás, enquanto Ciro avança como quem recua. "É um momento duro para ele. Ele zera tudo na vida, para fazer a travessia dessa dor", diz Brant. A dor de Ciro surge da descoberta do amor por Marcela, num momento que parece ser tarde demais. Insegura quanto ao envolvimento dele e com um grave problema de saúde, ela se afasta, para atravessar sozinha a própria dor. A trajetória dos protagonistas é pontuada pela presença de dois outros casais -­‐formados pelos pais de Ciro (Roberto Oliveira e Sandra Possani) e um motoboy (Márcio Contreras) e sua mulher (Janaína Kremer), que se tornam amigos da modelo e do tradutor, depois de um incidente de trânsito envolvendo Marcela. Há ainda o personagem de Elomar (Luiz Carlos Coelho), porteiro do edifício de Ciro, fiel conselheiro e artista nas horas vagas, e Churras, o cachorro vira-­‐lata de quem o tradutor se sente mais amigo do que dono. Todos eles contribuem para descrever, como define Brant, "a construção do gesto de Ciro até o momento da entrega". Silvana Arantes Folha de S. Paulo -­‐ 15 de junho de 2007 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1506200707.htm ‘Cão sem dono’ retrata o vazio de uma geração Novo filme de Beto Brant revela a intimidade de um jovem casal. “Cão sem dono” abre logo com uma cena de sexo quase explícito, seguida do típico “day after”. Café e silêncio preenchem o vazio entre Marcela e o apático Ciro, na cozinha do apartamento dele. 14 O filme é adaptação do romance “Até o dia em que o cão morreu”, o primeiro do gaúcho Daniel Galera, destaque na novíssima geração da literatura brasileira, nascida e criada na internet. A trama mostra a trajetória íntima da relação amorosa de um jovem casal, desde seu nascimento, discreto e cheio de jogos, até seu momento de revelação, em que eles perdem o controle da situação. Adaptação Nas mãos da dupla de cineastas Beto Brant, de “O invasor” e “Ação entre amigos”, e Renato Ciasca, seu parceiro habitual com quem agora divide a direção, o livro de Galera ganha tintas naturalistas e delicadas, que fazem com que os protagonistas “saltem” vivos da tela e permaneçam na mente do espectador mesmo depois do fim da sessão. Cena de "Cão sem dono", dirigido pela dupla Beto Brant e Renato Ciasca (Foto: Divulgação) Recém-­‐formado em Letras, Ciro é um cara ranzinza e perdido, sem planos, que não sabe o que fazer com seu diploma nem com sua vida. Ele divide seu apartamento com um cachorro de rua, que vem e vai quando quer. “Eu não sou dono dele, sou só um amigo”, diz Ciro a certo ponto. Já Marcela é uma modelo vinda do interior que sonha rodar o mundo, conhecer pessoas e colecionar experiências. Para ela, esse objetivo é algo tão claro que a impede de entregar seu coração a outros desejos que apareçam no caminho. Filmado quase todo dentro de um apartamento, o longa tranca o público com o casal entre quatro paredes. Somos cúmplices do conflito que aos poucos nasce entre os protagonistas e dentro de cada um deles. A direção acerta no tom e no ritmo desse desenvolvimento, sem apelar para narrações em off ou recursos fáceis para transmitir os pensamentos dos personagens. Elenco Brant e Ciasca acertam também na escolha do par principal, o excelente Júlio Andrade e a bela Tainá Muller (casada com o autor do original), que começa numa atuação tímida e cresce surpreendentemente na tela do meio para o fim do filme. 15 O carisma da estreante acabou rendendo o prêmio de melhor atriz do Festival de Recife já em seu primeiríssimo trabalho. Além disso, a opção por dois rostos desconhecidos do grande público traz aquele frescor que tanto faz falta ao cinema brasileiro de hoje. “Cão sem dono” não foge da marca do cinema de Beto Brant, que tem como fio condutor a violência, em suas mais diversas formas. Entretanto, aqui ela chega disfarçada pelo ceticismo e o vazio que escondem o mal-­‐estar de uma geração, a que o filme retrata com a complexidade merecida e faz bonito. Carla Meneghini G1 Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL51394-­‐7086,00.html O sexo revela tudo', diz o cineasta Beto Brant Ao lado de Renato Ciasca, diretor lança “Cão sem dono”, que estréia nesta sexta (15). Em entrevista, dupla conta detalhes sobre nova produção. Em seu quinto longa-­‐metragem, Beto Brant mais uma vez aposta numa adaptação da literatura contemporânea para exercitar seu estilo, que mistura delicadeza e violência de uma forma única no cinema nacional. Depois de revelar a ansiedade dos assassinos em “Os matadores” (1997), os duros caminhos da vingança em “Ação entre amigos” (1998), a náusea do arrependimento em “O invasor” (2002) e os estranhos caminhos do desejo em “Crime delicado” (2005), o cineasta agora se infiltra na intimidade de um casal que acabou de se conhecer. "O sexo revela tudo que precisamos saber sobre as pessoas", diz o diretor, que já abre seu novo filme com cenas para lá de picantes. Baseado no livro “Até o dia em que o cão morreu”, do gaúcho Daniel Galera, “Cão sem dono” chega aos cinemas nesta sexta-­‐feira (15). Brant divide a direção com o parceiro de longa data Renato Ciasca. Em entrevista ao G1, a dupla contou detalhes sobre o processo de adaptação, a escolha do elenco, as cenas de sexo e o uso da música no filme, que inclui a banda Cat Power em seu repertório. “Acredito nos meus filmes até o último fotograma”, afirma Brant. Leia trechos a seguir: G1: Como surgiu a idéia de adaptar o livro de Daniel Galera? 16 Beto Brant: Ele chegou à nossa mão há uns três anos e aí deu vontade de filmar. Assim, simples. É que quando você escolhe um trabalho, tem que conviver com ele três ou quatro anos, ele passa a morar no seu ombro, incorpora na nossa vida. Então, um livro tem que ser muito especial para te levar a fazer um filme. G1: E o que “Até o dia em que o cachorro morreu” tem de especial? Brant: A construção do afeto, a história de um casal quando um se abre para o outro. O livro tinha essa sutileza de construir a intimidade de um casal gesto a gesto. Renato Ciasca: O protagonista é muito “todo mundo”. A gente se identificou muito com essa história humana. Se você reparar, todos os personagens do filme são bons. O conflito já começa aí. G1: Como adaptar um livro que fica tão em cima dos pensamentos do personagem? Brant: Não queríamos usar falas em off de forma alguma. Isso para nós é uma verdade. A gente vai até onde podemos para recriar e dialogar com a literatura sem nunca lançar mão do texto em si. Ciasca: O nosso cinema é assim, as cenas não precisam de explicação. Brant: O filme e o livro têm caminhos muito diferentes, principalmente no desenvolvimento final. A reconstrução é totalmente diferente, mas te leva para o mesmo lugar. G1: Qual é a importância do sexo na narrativa? O filme já começa com uma cena bem picante... Brant: Meus filmes sempre têm cenas de sexo e cenas com gente comendo. São atitudes que revelam o caráter dos personagens. Sexo não é só prazer, é também desprazer, uso do poder. No meu cinema, as cenas de sexo sempre servem para revelar quem são os personagens. No caso do novo filme, não importa como eles se conheceram ou como foi o cortejamento, o que interessa é para onde vai essa relação sexual, para a entrega ou para o afastamento. O sexo revela tudo que precisamos saber sobre as pessoas, revela tudo. G1: Como o casal de protagonistas foi encontrado? Brant: O julinho (Andrade) já era um grande ator de teatro no Rio Grande do Sul, apesar de esse ser o primeiro protagonista de longa dele. Já a Tainá, que inclusive é mulher do Galera, inicialmente ia ser assistente de direção. Mas aí, pelo fato de ela ter uma experiência como modelo e ter até morado em muitos lugares do mundo, tudo se encaixou. Ela tem uma 17 inteligência única e uma coisa muito forte em comum com a personagem, a Marcela: a Tainá tem esse instinto de se jogar no mundo, de ser aventureira. A Marcela não quer a fama, ela quer a aventura. Ela é o cão sem dono, ela quer o mundo. E a Tainá tem esse espírito. G1: Mas quando deu esse estalo que transformou ela de assistente de direção em protagonista? Brant: Ela comentou que estava fazendo curso de atuação e foi com a gente ajudar a selecionar o elenco em Porto Alegre. Vimos muitas modelos, mas ninguém chegou tão perto quanto ela. Renato: Eu e o Beto ficamos observando ela entrevistando as candidatas e vimos que ela sabia as respostas melhor do que qualquer uma ali! Brant: A Tainá estava insegura porque nunca tinha atuado, mas depois que desmistificou a situação, ela manifestou a vontade de ficar com o papel, e a gente imediatamente abraçou a idéia. G1: Por que vocês optaram por usar atores desconhecidos do grande público? Brant: Em outros filmes meus só chamei atores famosos porque são amigos meus, como o Marco Ricca e tal. Não defino elenco pensando em colocar rostos que possam dar mais visibilidade ao filme. G1: Teve algum tipo de preparação ou laboratório para o elenco? Brant: O Júlio morou naquele apartamento em Porto Alegre durante três meses antes de começar a filmar. Ele e o Churras, o cachorro que contracena com ele. G1: Onde vocês encontraram o cão? Brant: A gente não queria um cachorro treinado, com adestrador, queria um vira-­‐lata mesmo, autêntico. Então fomos a um abrigo público para adotar. Quando chegamos lá, todos os cachorros vieram na nossa direção, só ele ficou onde estava, de frente para a porta de saída. Aí a gente pensou: "esse é o único que realmente quer sair daqui. É ele". G1: Teve alguma situação em que o cachorro surpreendeu durante as filmagens? 18 Brant: Na cena em que o Ciro passa mal, não era para o Churras estar em cena. Mas quando ele viu que o dono dele estava vomitando, mesmo sendo o personagem, ele furou a produção e foi lá ajudar seu amigo. Foi absolutamente espontâneo. G1: E que fim levou esse cachorro? Brant: Ele ficou com um produtor do filme, ganhou uma casa lá em Porto Alegre. G1: Como a trilha sonora foi pensada? Brant: A música é toda incidental, são coisas que foram surgindo. A música não serve para pontuar nem para sugerir o que se deve sentir naquele momento. Elas estão lá de forma narrativa. Por exemplo, tem o momento em que a Marcela canta uma canção da banda Cat Power. Foi a Tainá quem trouxe essa música para o set. Um dia, num intervalo, ela pegou o violão e ficou brincando, cantando e tocando. Aquilo é dela, e foi tão verdadeiro que inlcuimos no filme. Só que como ela toca bem mal (risos), então colocamos na cena o Júlio com o violão e ela só na voz. G1: Qual foi o maior desafio de “Cão sem dono”? Brant: O maior desafio é sair de casa para fazer um filme e realmente fazê-­‐lo. Ainda é duro fazer cinema no Brasil. Mas a gente tenta não ver isso de forma penosa ou conflituosa. G1: Como é filmar no Brasil hoje? Brant: O que a gente sente na pele é que o difícil agora não é filmar, mas sim mostrar. Além da grande competitividade do mercado de exibição, o cinema está saindo da rua e indo para o shopping, o preço está astronômico etc. Com isso, as pessoas estão deixando de consumir cinema, ou quando consomem vão ver coisas do tipo ‘Homem-­‐Aranha’. É uma política bastante complicada. Mas gente faz o que a gente pode. Acredito nos meus filmes até o último fotograma. G1: Qual é o seu próximo projeto? Brant: Daqui para frente, tenho a adaptação de um livro do Marçal Aquino, “Eu receberia notícias melhores de seus lindos lábios”. Está em fase de roteiro e ainda não sabemos no que vai dar. Adaptar um livro é sempre um exercício de ruminar aquele texto. Na verdade, o roteiro é só a primeira abocanhada, o melhor vem depois. Nós, roteiristas, somos seres ruminantes. 19 Entrevista: Carla Meneghini G1 Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL51808-­‐7086-­‐1999,00.html cão sem dono, beto brant & renato ciasca Ciro (Julio Andrade) mora em um apartamento onde a mobília praticamente não existe. Ao invés de cama, colchão. Nada de sofá, televisão, nem mesmo telefone, como descobrimos após Marcela (Tainá Muller) – que ele conhecera na noite anterior – pedir-­‐lhe o número. Uma renúncia às posses materiais e ao contato mais aprofundado com outras pessoas denota uma atitude algo adolescente, até pelo fato de não ficar claro o quanto dessas opções deriva da inação. O desprendimento e a misantropia refletem mais despreparo que desinteresse em lidar com uma série de questões que a iniciação à vida adulta inevitavelmente traz consigo. Uma existência povoada por momentos bastante fortes, porém sem uma perspectiva durável de futuro. O melhor “amigo”, como o próprio Ciro o define, é um cão, com quem o rapaz obviamente se identifica tanto por enxergar no animal muito de si mesmo. Ainda que o trabalho esparso como tradutor e revisor do idioma russo indique erudição e um forte trabalho intelectual do protagonista, o corpo é a medida principal do filme de Beto Brant e Renato Ciasca. É na intersecção com outros corpos, e não com suas mentes que a narrativa acompanha Ciro. Sejam essas intersecções fruto de insistência, como a de Marcela em continuar a vê-­‐lo; de acidente, como o motoboy que atropela a moça e depois convida o casal para um jantar em sua casa; de inevitabilidade, nas refeições familiares, ou por uma vaga identificação, com seu Eliomar, o porteiro que dedica seu tempo livre à pintura. O corpo é o que dá início à relação entre Marcela e Ciro – pelo menos filmicamente, já que a primeira cena é uma transa dos dois na sacada do apartamento dele – e também dá a noção de finitude. Marcela é modelo. Sua profissão depende do fato de seu corpo ser bonito, e os flagelos sofridos por ele (o corpo dela) pontuam a narrativa. Como o já citado atropelamento que lhe fere a perna, porém traz as presenças de Lárcio e sua esposa. Ou quando uma quimioterapia que se faz necessária após a descoberta de um linfoma (descoberta essa que só foi possível através de uma biópsia, outra cisão do corpo), preconizando uma separação definitiva. Qual seria a função da arte frente a essa presença preponderante do físico? A questão se posa tanto em relação à literatura de Ciro, quanto para a pintura de seu Eliomar, quanto para o cinema de Brant e Ciasca. Em um determinado momento, Marcela pede para Ciro recitar um poema para ela. Ele ensaia versos banais, retendo-­‐se nos elogios a seu corpo. Ela devolve com 20 outro pedido: “Olhe dentro da minha alma”. Coisa que, aparentemente provém de seu Eliomar, que ao presentear Ciro com uma pintura, diz que Marcela era “luz”. Em outra cena, o personagem principal se submete a uma endoscopia, mostrando literalmente suas entranhas. A sensibilidade sub-­‐epidérmica engloba tanto valores artisticamente nobres, como a representação de um sentimento eternizado em imagem (seja no quadro do porteiro, seja no próprio ato de filmar os atores) quanto uma série de vísceras que sofrem os efeitos de abusos físicos e emocionais. Nem um cinema de investigação psicologizante, nem um retrato de seres que se limitam a responder a seus estímulos e satisfazer suas necessidades corpóreas. A mesma relação de atração-­‐repulsão que os personagens têm entre si ocorre entre estes e a câmera. Se em momentos de um romantismo mais idílico entre o casal protagonista ou em uma emocionada conversa de bar entre Ciro e Lárcio, o rosto dos atores preenche todo o quadro, em outras oportunidades a câmera se coloca respeitosamente à distância, compondo em plano médio, como na cena em que Ciro telefona do orelhão para o hospital buscando saber notícias de Marcela. Vale ressaltar que é um dos melhores momentos de atuação de Julio Andrade durante todo o filme, isso em uma cena na qual quase não se vê seu rosto. Outra cena que merece registro é a confissão do pai de Ciro sobre um período no qual este perdeu o negócio e quase também a família por conta do vício em cocaína. Ao invés de uma lição de moral, o relato vem como um desejo quase palpável de conexão com o filho. Se ao final vemos um Ciro que trocou a tradução pela venda de livros, não é com um conformismo amargo. Certa concessão para continuar perto do que mais ama talvez seja o mais próximo de um “aprendizado” pelo qual passa o protagonista, e se uma parte da vida que foi usufruída literalmente na carne precisa ser enterrada junto com o cachorro, o fim sorri com a possibilidade de um contracampo (aliás, a única cena em plano/contraplano é exatamente a última) que traga de volta a luz. Artur Ianckievicz Revista Taturana Disponível em: http://revistataturana.com/2010/02/19/cao-­‐sem-­‐dono-­‐beto-­‐brant-­‐renato-­‐
ciasca/ CÃO SEM DONO O protagonista de Cão Sem Dono é Ciro, jovem multitalentoso, inteligente, plenamente capaz, mas cuja vida parece de alguma forma estacionada, inflacionada de instantes intensos mas carente de ambições concretas, chapada no presente, desconectada de um horizonte. Retrato bastante pertinente de uma parcela da juventude atual, em falta ou em excesso de opções – 21 adolescentes duráveis, como o pai de Ciro o define sem qualquer reprovação ou preconceito, em uma das brilhantes cenas de refeição do filme. Quando se faz um retrato, minimizam-­‐se os movimentos, ressaltam-­‐se os traços, a fisionomia, o olhar; ocorre menos ação e mais caracterização. Partindo disso, o filme se cola ao ator Julio Andrade e estuda seu personagem. As situações se alternam e a câmera nunca perde Ciro de vista. Vemos cenas dele sozinho, com a namorada, com o cachorro, com os pais, procurando emprego, fazendo exame médico, jantando na casa de novos amigos... Depois da segunda metade do filme, na fase de “superação”, Ciro muda o repertório de atividades, e é mostrado jogando futebol, trabalhando, participando de um grande almoço de família, pulando num show de rock... Em suma, vemos fatias de sua vida, captadas pela sensibilidade do registro instantâneo, singular, e separadas por elipses mais ou menos indeterminadas. Na primeira seqüência do filme, Ciro e Marcela (Tainá Müller) acabaram de se conhecer. O aparente desprezo com que ele a trata pela manhã marca o início ambíguo da relação. Ele não tem telefone, então Marcela deixa o número do celular. Se ele quiser revê-­‐la, liga. Elipse: eles estão juntos de novo no apartamento de Ciro. Não vimos a ligação, sequer sabemos se o reencontro foi a partir de um telefonema, e isso antecipa a função crucial e enigmática que os telefonemas possuem nesse filme. Ciro e Marcela desenvolvem uma relação apreendida de forma carnal, direta. As cenas de intimidade são corpóreas, táteis, seja no sexo ou naqueles momentos em que tudo que importa é os dois estarem juntos, grudados, qualquer coisa que falem será apenas um complemento à proximidade física. Mas após a cena em que fala da proposta de trabalho em Barcelona, Marcela se torna um fantasma no filme, uma aparição rivettiana. Ela vem, invade o apartamento de Ciro, leva uma pintura embora, se esquiva de seus braços. Depois some por um tempo. Aí reaparece adoentada, despede-­‐se de Ciro, diz que vai morrer. Nessa breve visita, eles fazem um sexo estático e sofrido, em clima de despedida ou mesmo de morbidez. Talvez Marcela tenha sido desde o início uma indecisão entre realidade carnal e estado volátil. O telefonema do final corrobora essa ambigüidade: onde antes havia um plano sem contra-­‐plano (Ciro ligando do orelhão desesperado, querendo falar com Marcela e não conseguindo), de repente, para surpresa nossa e do personagem, ganha um contracampo: vemos Marcela no outro lado da linha, dizendo que está curada e convidando Ciro pra ir com ela a Barcelona. É a única vez em que os dois contracenam através do corte, em lugares estanques colados pela montagem, e não juntos no mesmo quadro. Que tipo de happy end é esse? A morte de um ser (o cão) nutre a reaparição fantasmática de outro? Nada se pode assegurar quanto à “realidade” daquela cena, tudo pode ser fruto da 22 imaginação e da vontade de Ciro. A cena é feliz, triste, feliz, triste, feliz, triste... numa alternância infinita. A doença assombra o filme de um modo estranho. Da dor no estômago de Ciro à misteriosa doença de Marcela, chegando na própria morte do cachorro ao final do filme, uma rede de patologia se tece soturnamente. Marcela trabalha como modelo, ou seja, vive da sua beleza e do carisma pessoal. Quando é atropelada por um motoboy e chega à casa de Ciro tristonha, febril, com a perna semi-­‐imobilizada, surge aí um ponto de intensa conexão com Crime Delicado: a beleza deve de alguma forma ser arrancada de sua ilusão de perfeição, de sua aparente simetria, para só então descobrir qual força verdadeira carrega. Para só então ser bela, talvez. O motoboy que atropela Marcela é Lárcio, grande figura, mais que um alívio cômico, muito mais que um auxiliar da narrativa. Ao lado de Elomar (o porteiro do prédio em que Ciro mora, que dedica suas horas vagas a pinturas naïf e abstratas), Lárcio é um dos personagens secundários mais vivos que vejo no cinema brasileiro desde... sei lá desde quando. E há quem diga que o personagem secundário é o personagem de cinema por excelência, aquele que só aparece em uma ou outra cena e mesmo assim nos dá a perceber toda a vida que encarna para além dos limites do filme – aquele que não precisa de um início e de um fim, mas apenas de um meio, exatamente como Ciro define para Marcela a vida (leia-­‐se: o que nós seres vivos temos da vida). No andamento elíptico de Cão Sem Dono, verificamos uma arte de “meios”, miolos de ação, sem início e sem fim. O que vale para o personagem, vale para o filme como um todo. Na cena do exame, há um momento extraordinário. Num mesmo plano, a câmera vai do rosto de Ciro (“amordaçado” como um cão bravio) ao monitor que mostra a imagem captada pela câmera endoscópica descendo até seu estômago. Alguém tinha mesmo que filmar esse plano; passar, num registro contínuo, do exterior do corpo ao interior do organismo, ir da epiderme à intimidade dos órgãos, espécie de auto-­‐regressão, de reconciliação com o corpo através de uma terapia não psicanalítica, mas puramente física. Há algo naquele movimento de câmera que está ainda acima – mesmo tendo visto e revisto o filme – de qualquer formulação que eu possa aqui arriscar. Essa cena precisa ser relacionada com um diálogo entre Ciro e Marcela na cama, num momento anterior. Ela lhe pede uma poesia. Ele solta palavras quaisquer, “Marcela, linda, gostosa, deliciosa”. Ela reclama que isso é obvio demais. Ciro argumenta que ela já é poesia pronta, não há por que rebuscar nas palavras. Mas ela reforça o pedido: “Olha dentro da minha alma”. E o filme em si indaga: será que esse olhar é possível? Ciro é inteligente, literato, mas não se guia pelo intelecto, ou ao menos não o põe acima do coração 23 ou das vísceras. O filme adere a essa descrença na racionalidade elevada, investindo no instinto e na intuição (forças motrizes na poesia de Ciro, nas pinturas de Elomar). Se a câmera não interioriza os personagens, não busca através de seus movimentos indícios da alma, esse olhar solicitado por Marcela se torna uma questão complicada. E que fica mais complicada ainda quando vemos, na cena da endoscopia, que o interior do homem nada mais é que um tubo viscoso, um organismo vivo, um sistema de vísceras que não nos distancia tanto assim dos demais animais. O filme não olha dentro da alma dos personagens. Em revanche, recobra o que há de profundo na epiderme. Cão Sem Dono mostra que o cinema já está no homem, basta estimulá-­‐lo, provocar sua manifestação na superfície do corpo. Um detalhe interessante é que Elomar usa jornais velhos como "tela" de suas pinturas; atrás daqueles quadros de formas e cores tão pessoais, encontram-­‐se notícias de jornal. Esse detalhe não revelaria, por si mesmo, um cinema construído no avesso das noções vulgares de realidade e de ambição de verdade? Embora o filme ofereça uma série de argumentos que caem como uma luva para os fiscais do realismo (os mais óbvios seriam: câmera na mão, pouca ou nenhuma luz artificial, bastante som ambiente, atuações vibrantes e convincentes...), o que está em jogo é um poder do cinema não exatamente de expor o real. É antes a idéia de criar um espaço de confissão. O filme não quer retirar dos personagens sua suposta essência, ou sua verdade, mas deixar que eles desabafem alguma coisa sobre si mesmos. Esse ímpeto de auto-­‐entrega, que surge espontaneamente, sem derivar de nenhuma argüição, possui alguns momentos culminantes. Há aquela cena de camaradagem magnificamente filmada a um palmo dos rostos de Ciro e Lárcio, que conversam no bar, eles próprios a um palmo um do outro, completamente bêbados, indo de devaneios poéticos a declarações de amizade. Ou nem precisa de tanto: Ciro se confessa à câmera também quando fuma um cigarro em silêncio na varanda do apartamento, à noite, com os carros acesos passando lá embaixo, seu olhar tomado de inércia e melancolia. Mas o ápice está na cena em que o pai de Ciro narra, com desconcertante sobriedade, uma fase de sua vida que ficou marcada pelo abuso da cocaína, quase arruinando o casamento. Tudo se dá em apenas um plano fixo com o mar ao fundo, singelo cenário de superação; o plano é lacônico e simples, a força da história se basta, a dramaticidade se impõe pelo peso da entrega e da confissão. Uma arte do depoimento com que muito documentarista deve sonhar todos os dias, sem jamais alcançar. A emoção do ator é evidente, a história de quem se viu quase perdendo a mulher e o filho e depois conseguiu dar a volta por cima ganha forma no seu rosto e na sua fala. Novamente: o cinema está no homem. 24 Na tal conversa embriagada no bar, Ciro fala para Lárcio: “Você tem a simplicidade da vida”. Podemos aplicar a frase ao filme com ligeiras alterações: Cão Sem Dono tem a simplicidade do cinema. E a complexidade da vida. Isso porque a câmera de cinema, assim como o cachorro, pode ser o melhor amigo do homem. Luiz Carlos Oliveira Jr. Contracampo -­‐ Revista de Cinema Disponível em: http://www.contracampo.com.br/87/critcaosemdono.htm Elvis e Madonna (2010), de Marcelo Lafitte Elvis e Madona' conta história de amor entre lésbica e travesti em Copacabana Um pai abandona a família para se tornar travesti. Anos mais tarde, tenta se reconciliar com os parentes, mas se apaixona pela namorada do filho. O caso mostrado em um programa mexicano, desses no qual convidados lavam a roupa suja em frente a um auditório, inspirou a história do filme "Elvis e Madona", do diretor Marcelo Laffitte. O longa tem a atriz Simone Spoladore no papel da lésbica Elvis e o ator Igor Cotrim como o transex Madona. A produção, filmada em 2008, está em fase de tratamento de imagem e deve estrear em novembro de 2010, no Festival de Brasília. "É uma história de amor muito delicada, com toques de comédia", define o diretor, que escreveu o roteiro "imediatamente" após assistir o tal programa sensacionalista na TV americana, quando foi lançar o curta "Vox populi" em uma mostra em Miami, há 12 anos. "Foi árduo conseguir verba para as filmagens. Começamos a rodar em 2007, daí acabou o dinheiro, retomamos em 2008". Assim como a dificuldade em conseguir patrocínio -­‐ o longa custou R$ 1,2 milhões -­‐, Laffitte temia que o enredo de "Elvis e Madonna" afugentasse o público mais conservador. O receio passou após algumas exibições-­‐teste, com diferentes perfis de espectadores. "Logo nos dez primeiros minutos os personagens estão tão bem desenhados, que as pessoas se desligam do fato de que se trata de um travesti e uma lésbica se apaixonando. Eles vão se divertindo com a história, se envolvendo com essa coisa do feminino e do masculino do casal se sobressair conforme as situações". Para diminuir o impacto do argumento, Laffitte preferiu deixar os protagonistas longe de ambientes marginalizados, como geralmente são retratados os homossexuais no cinema nacional. Madona é uma cabeleireira que trabalha duro para realizar o sonho de produzir um 25 espetáculo musical com drag queens. Elvis, entregadora de pizza, na verdade quer ser fotógrafa. Ambos vivem em Copacabana, onde se passa a maioria das cenas. O bairro carioca serviu também de inspiração para a música-­‐tema "I love you, Copacabana", composta por Laffitte e Gabriel Moura e gravada por Elza Soares especialmente para o filme. "O encontro da dupla acontece quando Elvis faz um delivery no apartamento de Madona e a vê toda machucada, após levar uma surra. Ali começa a amizade, que mais tarde evolui para um sentimento forte", explica o cineasta. Madona com um 'n' só. A escolha do nome do casal central não é apenas uma referência a dois grandes ícones do pop. Segundo Laffitte, "Elvis" é uma homenagem a uma amiga de infância chamada Elvira, que jocosamente recebeu o apelido. "Madona é por causa da popstar mesmo, mas a gente preferiu escrever com um 'n' só, para evitar problemas jurídicos". As associações à rainha do pop aparecem vez ou outra no filme. Igor Cotrim, o ator que dá vida à travesti, fez da música "Who's that girl?" um bordão da personagem. "Ela sempre diz essa frase quando se olha no espelho e se acha divina!", brinca Cotrim. O ator foi o último a ser escolhido para integrar o elenco, que também tem Maitê Proença, José Wilker, Buza Ferraz e Sérgio Bezerra. "O Igor foi o que se saiu melhor no teste, que teve mais química com a Simone", explica o diretor. "De início meu plano era ter um travesti de verdade no papel de Madona, inclusive fiz testes com alguns na Lapa". Alguns destes processos de seleção podem ser vistos no YouTube. "Quando fiquei sabendo do filme, me depilei e fui com a cara de pau, unha postiça e a coragem para o teste. Nunca fiz cinema, sempre fui ator de teatro", afirma Cotrim, que na televisão atuou na novela "Mulheres apaixonadas" (2003) e na série "Sandy e Júnior" (1999). Shows de drag queens e conversas com travestis na Lapa carioca serviram de laboratório, como conta o ator. "Foi lá que aprendi o gestual, a jogada de quadril, como mexer o cabelão, de misturar um monte de gírias com termos do candomblé", enumera. "Meu papel é o da 'mulherzinha' do romance, principalmente nas cenas mais quentes, quando Elvis vem para cima, querendo comer a Madona", debocha. Simone Spoladore, segundo define o diretor, foi orientada a ser uma "lésbica gatinha". "Claro que em alguns momentos ela tem uma expressão corporal mais dura. Mas a gente não queria que fosse uma mulher masculinizada. Ela faz uma lésbica gatinha, com momentos delicados", diz Laffitte. 26 A mesma preocupação teve a atriz. "Não queria que ficasse uma coisa estereotipada. Fui a boates gays observar as meninas, observei algumas à minha volta", conta. Para Simone, "Elvis e Madona" está longe de ser polêmico e deverá agradar o público. "É um filme muito simpático, com situações de humor. Tem todos os elementos de uma comédia romântica, apesar de o casal ser meio torto". Dolores Orosco G1 Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1252053-­‐7086,00-­‐
ELVIS+E+MADONA+CONTA+HISTORIA+DE+AMOR+ENTRE+LESBICA+E+TRAVESTI+EM+COPACA
BAN.html Marcelo Laffitte fala sobre o filme Elvis & Madonna Carioca de Volta Redonda, Marcelo Laffitte ingressou no cinema como assistente de produção em “Bete balanço” (1984), de Lael Rodrigues. Exerceu funções técnicas em vários filmes como assistente de direção e diretor de produção. Dirigiu curtas premiados, como “Vox Populi” (melhor filme no Festival Internacional de Santiago do Chile), antes de começar a dirigir seus documentários. Em 2002, foi presidente da ABD&C/RJ e, entre 2003 e 2005, da ABD. Em 2010 lançou seu primeiro longa-­‐metragem de ficção: “Elvis e Madona”. A comédia romântica “Elvis & Madonna” narra uma inusitada história de amor em um dos bairros mais emblemáticos do país: Copacabana. Elvis (Simone Spoladore) é uma fotógrafa freelancer que, sem trabalho, faz um trocado como entregadora de pizzas. A travesti Madona (Igor Cotrim) é uma cabeleireira que sonha produzir um show de teatro de revista. De um encontro entre as duas, nasce uma divertida e moderna história de amor. Consagrado pelo público como melhor filme no Festival de Cinema Brasileiro de Paris, “Elvis & Madonna” foi o único a representar o Brasil no Festival de Tribeca, em Nova York. Dois Terços: O filme é uma comédia romântica contemporânea e ao mesmo tempo reflete sobre o amor entre uma lésbica e um travesti. Como nasceu roteiro dessa história de amor? Marcelo Laffitte: Foi em Miami que a lâmpada acendeu. Eu estava participando de um festival com meu primeiro curta-­‐metragem, o Vox Populi, quando sintonizei na TV um programa de auditório em espanhol onde um rapaz discutia com uma travesti cinquentona. Apurei o ouvido e entendi que eram pai e filho, e que o filho estava revoltado porque o pai travesti estava tendo um romance com a esposa do próprio filho. Então a travesti falou: “Eu não me apaixonei 27 pelo corpo da sua mulher; me apaixonei pela sua alma”. Ali surgiu a vontade de contar uma história de amor entre uma lésbica e uma travesti. DT: Elvis & Madona foi aclamado em diversos festivais além de ter sido premiadíssimo por onde passou. Mesmo com todos esses prêmio, o filme só chegará as telas agora em setembro. Você atribui demora a algum fato em especial? ML: Nosso problema é com a distribuição. Nos últimos anos, a produção cinematográfica no Brasil avançou a olhos vistos. Todos os meses são lançados 4 ou 5 filmes no circuito comercial, que são filmes dos mais variados gêneros, matizes e tamanhos. O número de salas de exibição também cresceu consideravelmente e houve o surgimento de circuitos voltados para o público de menor poder aquisitivo. Porém, infelizmente, a distribuição não acompanhou esse ritmo e o nosso mercado se ressente. Existem alguns distribuidores especializados em blockbusters nacionais, assim como também existem os que são especializados em filmes de arte, e ambos têm um limite anual na quantidade de filmes que podem trabalhar. Mas o filme médio brasileiro, onde eu encaixo Elvis & Madona, não tem canais de distribuição competentes e com experiência. DT: Muitos gays se recusam a viverem um relacionamento com rapazes mais afeminados, abrindo um viés preconceituoso dentro da própria comunidade LGBT. Durantes as exibições nos festivais, como foi a reação do público diante do romance de uma lésbica com um travesti? ML: Bem, aqui há duas questões. Primeiro, eu não posso concordar nem discordar da sua afirmação, pois, ao longo da minha vida, vi uma infinidade de combinações amorosas que não se restringem ao binômio macho e fêmea. Não é à toa que a bandeira do movimento gay é um arco-­‐íris, não é mesmo? Entretanto, eu não conheço tão bem assim a comunidade LGBT para afirmar o contrário. Sobre a reação do público ao redor do mundo, eu avalio como excepcional. Já estivemos em Nova York (duas vezes), Gramado, Paris, Montes Claros, Zagreb, Tiradentes, Hong Kong, São Luis do Maranhão, enfim, são mais de 50 festivais em mais de 30 países. Estreamos comercialmente em Santiago do Chile antes de estrear no Brasil, e lá estamos entrando na quinta semana de exibição. Em todos esses lugares, o público embarca totalmente na história. Três exemplos: em Brasília, um rapaz – gay, por sinal – disse que “em 10 minutos de filme, 28 você esquece que são uma lésbica e uma travesti que se chamam Elvis e Madona; você esquece tudo e começa a viver a história de amor das duas”. Em Natal, um senhor me disse: “Sou sargento aposentado da Aeronáutica e nunca pensei, em toda a minha vida, que fosse torcer por um viado um dia”. Em Varsóvia, uma moça veio chorando até mim e disse que Elvis & Madona era o melhor filme que ela viu na vida. É claro que eu respondi sorrindo que ela deveria ver mais filmes, mas ela repetia soluçando: “Você não está entendendo: este é o melhor filme da minha vida!”. Contudo, não somos unanimidade Ainda bem, pois, como diria Nelson Rodrigues, toda unanimidade é burra. De cada 10 pessoas que assistem Elvis & Madona, nove saem falando maravilhas e uma sai dizendo que é o pior filme do mundo. DT: Com Elvis & Madona você estreia seu primeiro longa trazendo para a telona uma história de amor no mínimo impossível para muitos. Você não teve medo da reação do público diante desse amor? ML: Eu poderia fazer um filme denso e dramático, que discutisse preconceitos e levantasse bandeiras. Uma parte da intelectualidade conservadora me cobra isto. Mas eu pergunto: para quê? Eu nunca quis fazer um tratado sobre sexualidade, muito menos apontar o que é certo ou errado. Minha vontade sempre foi a de contar uma história ambientada numa sociedade que eu julgo ser viável e que pudesse ser entendida por um público amplo, geral e irrestrito. Assim, a opção pela comédia foi a forma de contornar a dificuldade e a estranheza desta combinação entre travesti e lésbica e, ao mesmo tempo, passar minha mensagem de forma direta para uma mente aberta pelo sorriso. O riso abre sua alma, enquanto o choro fecha. DT: As locações do filme aconteceram nas ruas do Rio de Janeiro, especialmente em Copacabana. Houve algum motivo especial por essa região? ML: Copacabana é a síntese da pluralidade e não existe bairro mais diversificado em todo o mundo. Em Nova York, por exemplo, que é o ícone da metrópole, os italianos moram num bairro, os negros em outro, os brasileiros têm uma rua só deles, e assim por diante. Copacabana não. Em Copa, você tem o banqueiro milionário da Avenida Atlântica e o mendigo que dorme na calçada; tem os pastores evangélicos e as prostitutas; tem os atores famosos da Globo e anônimos camelôs, todos morando no mesmo espaço geográfico. Isto não existe em nenhum outro lugar do mundo. 29 DT A captação de recursos para o cinema no Brasil mesmo com todo crescimento nos últimos ainda é muito difícil. Você acredita que a captação ficar mais difícil para produções voltadas para o público Gay? ML: Agora eu posso discordar da sua afirmação (risos). A captação de recursos para o cinema vem crescendo exponencialmente nos últimos anos e o fomento dos mecanismos diretos e indiretos totalizaram mais de R$ 200 milhões em 2010 . Ou seja, é muito fácil captar para um filme, o que levou a qualquer um a pretensão de fazê-­‐los. Hoje, todo mundo quer ser diretor de cinema. Por mais dinheiro que exista, sempre haverá muito mais gente ficando de fora. O problema real é quando cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Roberto Farias, que são a história da nossa cultura, caem nesta vala comum. Sobre a captação para produções voltadas para o público gay, que não é caso de Elvis & Madona, creio que seja difícil em todo o mundo. DT Como estão os preparativos para grande estreia. Haverá pré-­‐estreia em Salvador? ML: Quem poderá lhe responder esta pergunta é minha distribuidora. Se você conseguir esta resposta, por favor, me avise, pois eu também gostaria de saber. Genilson Coutinho Dois Terços -­‐ 21 de setembro de 2011 Disponível em: http://www.doistercos.com.br/marcelo-­‐laffitte-­‐fala-­‐sobre-­‐o-­‐filme-­‐elvis-­‐
madonna/ Comédia "Elvis & Madona" desmonta estereótipos sexuais Filme retrara a curiosa relação de uma lésbica e um travesti sem esbarrar no mau gosto Exibida e premiada em diversos festivais nacionais e estrangeiros, como Natal, Rio e Tribeca (Nova York), "Elvis & Madona", de Marcelo Laffitte, é um exemplo típico das dificuldades dos filmes independentes para entrarem em cartaz no Brasil. Filmada em 2008, finalizada em 2009 e percorrendo extenso circuito de festivais em 2010, a comédia tornou-­‐se um pequeno cult, mas só agora conseguiu estrear, revelando ao grande público um dos casais mais inusitados da história recente do cinema nacional, o travesti 30 Madona (Igor Cotrim, da novela "Mulheres Apaixonadas") e a lésbica Elvis (Simone Spoladore, "Não se Pode Viver Sem Amor" ). Madona é cabeleireira no salão Divas, em Copacabana, e dá duro para juntar dinheiro. Seu sonho é montar um musical estrelado por drag queens. Mas um dia um ex-­‐amante, o bandidão João Tripé (Sérgio Bezerra), aparece em seu apartamento e leva todas as suas economias, depois de agredi-­‐la. O ator Igor Cotrim não cai no escracho ao encarnar a travesti Madona Quem chega pouco depois é Elvis, motoqueiro que sonha em ser fotógrafo e sobrevive como entregador de pizzas, e veio justamente entregar um pedido de Madona. Depois de socorrê-­‐la, Elvis torna-­‐se grande amigo da cabeleireira. Os dois tornam-­‐se inseparáveis e dividem aventuras. Até que numa noite acontece algo mais e Elvis engravida. Se, para escrever seu roteiro (premiado no Festival do Rio 2010 ), o diretor Marcelo Laffitte partiu de notícias de jornal, ao elaborar sua história deixou de lado a inspiração inicial -­‐ que era o caso de dois travestis, pai e filho, que se envolviam com a mesma mulher -­‐ em benefício da criação de uma atmosfera cômica e de grande liberdade. E, é bom que se diga, nunca desrespeita a inteligência de ninguém nem esbarra no mau gosto ao arriscar-­‐se na transgressão de estereótipos sexuais. Um dos grandes achados do diretor foi o elenco. Atriz compenetrada e conhecida por papéis sérios, como em "Lavoura Arcaica" (2001), Simone Spoladore nunca exagera na composição da sua Elvis. Carregando sua valente Madona com enérgica simpatia, Igor Cotrim usa a dose certa de glamour e purpurina e não cai no escracho. O resultado é um projeto de família anticonvencional que não faria feio em nenhum filme de Pedro Almodóvar. Maitê Proença, como a mãe de Elvis, também tem uma cena das mais hilariantes, quando se desenrola a revelação sobre o bebê. É mais uma das surpresas deste filme. Reuters -­‐ 22/09/2011 Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/comedia-­‐elvis-­‐madona-­‐
desmonta-­‐estereotipos-­‐sexuais/n1597222997187.html Um passeio marginal Elvis e Madona investe sobre um universo pop bastante presente na cultura brasileira, mas que ainda parece até certo ponto interdito a muito do cinema recente, seja por um certo temor antropológico ou pela busca convencional de uma beleza acadêmica. Em questões de universo, é possível aproximá-­‐lo de alguns filmes de Pedro Almodóvar (pensemos na palheta 31 de cores de Kika ou Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), mas também da vital abordagem transsexual do cinema de João Pedro Rodrigues. Mas, passadas as primeiras camadas de aparência, é perceptível a diferença. Assim como na investigação do brega por Miguel Gomes em Aquele Querido Mês de Agosto, João Pedro Rodrigues parte de uma atitude de afirmação de identidade, que nasce em Portugal com João César Monteiro: não somos mais o povo de Eça de Queiroz, mas sim o de “quero cheirar teu bacalhau, Maria” (como dizia uma das canções de Recordações da Casa Amarela). O “bacalhau” pode ser bacana, rico e belo à sua maneira, mas é preciso que ele seja olhado com honestidade e frontalidade dentro da criação artística. É preciso, como faz Miguel Gomes com a canção popular, descobrir em que lugar essa visão de mundo ainda faz sentido, para então poder encená-­‐la com propriedade. Elvis e Madona não faz isso, e tampouco usa a negação de qualquer aderência como conflito para um impulso criativo. Resta apenas o faz de conta, a aproximação diagonal, a cordialidade e o deboche; resta apenas o kitsch, a banalização, o estapafúrdio feito classe média. Afinal, estamos diante de um filme sobre dois homossexuais (Elvis – Simone Spoladore – e Madona – Igor Cotrim), reconvertidos em uma relação heterossexual, onde a vivência gay é vista como manancial de tiradas do humor próximo ao de um Casseta & Planeta, e o fascínio da ambiguidade travesti é feito novamente normatizado, estéril, conformado. Onde deveria haver pulsão estética, há apenas reafirmação de preconceitos, padronização das diferenças (há algo mais reacionário e míope do que um romance entre uma lésbica e um travesti?), demarcação de distâncias, e um interesse maior por uma idéia pré-­‐concebida daquele universo do que por qualquer coisa que possa vir a emanar dele. Elvis e Madona é um pouco como um A Grande Família que troca o subúrbio carioca pelas boates gays de Copacabana, e que só consegue se aproximar desse universo deixando que as noções pré-­‐concebidas sobre o “outro” falem mais alto do que ele mesmo. É um filme conservador, pois não se deixa afetar, não quer ser afetado, e tem como único objetivo moldar o outro até torná-­‐lo mais confortável, mais simétrico, mais parecido com o desejo de quem filma. Nesse sentido, é bom lembrarmos de um belíssimo curta pernambucano recente, sobre universo igualmente marginal, chamado Faço de Mim o que Quero, de Sergio Oliveira e Petronio Lorena. Pois Faço de Mim o que Quero se aproxima da indústria tecnobrega do Recife decidido a incorporar seus valores, e deixar que eles também incorporem o filme. Como bem salientou Francis Vogner dos Reis em seu texto na cobertura do Festival de Brasília, esse sentimento fica especialmente claro nos créditos finais, onde os nomes da equipe e o título do filme aparecem literalmente pintados na pele das personagens, 32 fazendo diegético o não-­‐diegético, se deixando contaminar ou, mais do que isso, percebendo que o filme também é incorporado por quem é filmado. Falta a Elvis e Madona essa disposição “de pele” que é primeira, é pré-­‐filme, é pactual. Não há relação exógena possível quando ela não se dá dentro da tela. Fábio Andrade Revista Cinética -­‐ Janeiro de 2010 Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/elvisemadona.htm Olhe para Mim de Novo (2011), de Kiko Goifman e Cláudia Priscila Visão dos Diretores Syllvio Luccio, personagem principal do filme “Olhe pra mim de novo”, nos pareceu desde um primeiro momento extremamente singular e paradoxal. Só o fato de ser um transexual masculino em fase de transformação no sertão do nordeste brasileiro já é raro. Primeiro porque pessoas que nascem mulheres e desejam se transformar em homem são bem menos comuns do que o contrário e no Brasil – local famoso por travestis e transexuais femininos – isso ainda é bem menos usual. Segundo, porque o contexto é singular. O sertão é marcado pelo extremo calor, pobreza e violência. O machismo impera entre homens. Se ser transexual masculino em São Paulo já é difícil, no sertão é um ato de extrema coragem. Syllvio busca “construir um homem” que não é um ser abstrato, um homem qualquer. Syllvio quer ser um valente homem do nordeste. Um Macho. Syllvio é extremamente verborrágio. Por isso, nossa opção na montagem foi intercalar alguns minutos de silêncio; porém, assumir a força das palavras ditas por ele. Em certos momentos Syllvio comunica-­‐se através de uma “cachoeira de palavras”. Incorporamos isso ao filme. Nossa proposta, de viajar com o Syllvio em um road-­‐movie, foi a de tirar o personagem de sua “zona de conforto”. Na pequena cidade de Pacatuba, na qual vive, todos o conhecem e mesmo com o preconceito existindo, ele é respeitado. Levá-­‐lo em nossa viagem foi abrir o filme ao desconhecido e ao acaso, aspecto que julgamos fudamental em um documentário. Pouco a pouco Syllvio foi se deparando com famílias e questões relacionadas à genética, ao DNA, sexualidade etc. Uma metodologia de olhar baseadada no movimento. Por mais paradoxal que possa ser, “Olhe pra Mim de Novo” é antes de tudo um filme sobre a maternidade e as diferentes famílias. O final traz esse aspecto. Assim como, longe de casa, em uma viagem, muitas vezes entendemos melhor os seres humanos. O desconforto e o 33 estranhamento como uma forma de revelação. Quem tá na rua e no mundo, tem que se mostrar e se ver. Entrevista com Diretores Como se deu o processo de criação do filme; a escolha do Sylvio Luccio como protagonista, de filmar no sertão, de debater um tema como a transexualidade? Desde o início nosso desejo era abordar as novas transformações tecnológicas sobre o corpo e como as famílias se modificaram a partir de questões de gênero ou genéticas. O sertão nordestino é um celeiro de pesquisas sobre genética, pelo calor extremo (só os fortes sobrevivem) e também por conta do casamentos entre parentes. Partimos então para a realização da pesquisa para o documentário. Durante esse processo conhecemos Syllvio Luccio – transexual masculino – que se tornou protagonista do filme. Por que estruturar o filme como um road-­‐movie pelo sertão brasileiro? Nossa proposta, de viajar com o Syllvio em um road-­‐movie, foi a de tirar o personagem de sua “zona de conforto”. Na pequena cidade de Pacatuba, na qual vive, todos o conhecem e mesmo com o preconceito existindo, ele é respeitado. Levá-­‐lo em nossa viagem foi abrir o filme ao desconhecido e ao acaso, aspecto que julgamos fudamental em um documentário. Pouco a pouco Syllvio foi se deparando com famílias e questões relacionadas à genética, ao DNA, sexualidade etc. Uma metodologia de olhar baseada no movimento. Pergunta – Ao longo do filme, conversam com diversos personagens, como portadores da síndrome de Berardinelli, ou uma família de Albinos. Qual o elo entre todos os personagens? Em última instância, o que acreditam ser o principal assunto de “Olhe Pra Mim de Novo”? Acreditamos que o assunto principal do filme é a construção de novas famílias. As conquistas atuais na área da sexualidade e na genética trazem novos horizontes para as pessoas que dependem dessas tecnologias para a resolução de problemas. Estamos vivendo em uma época em que precisamos pensar novos códigos éticos para a absorção de tantas novidades, a bioética. O documentário tem em comum também a questão da maternidade. Mas aprofundar 34 esse ponto em uma entrevista resulta em estragar uma surpresa reservada para o final do filme (risos). Kiko, em “33” questões familiares aparecem; e Claudia, em seu longa “Leite e Ferro”, a questão da maternidade está bastante presente. “Olhe Para Mim de Novo” é um filme que debate, novamente, estas duas questões. Qual a importância, e de onde surgiu a vontade de revisitar tais assuntos? Foi um encontro de duas pessoas com a mesma vontade de tocar em assuntos contemporâneos, a genética e a transexualidade, um desejo de investigar essas conquistas. Acreditamos também que o filme retrata bem nossa parceria. De um lado podemos ver que “Olhe pra mim de novo” trata de tabus sociais (transexualidade masculina) que também estão presentes nos filmes anteriores do Kiko (como adoção em “33”, fobias em “FilmeFobia” e massacre em “Atos dos Homens” – Forum Berlinale 2006). Por outro lado, é um filme que trata de sexualidade como os filmes de Claudia (“Sexo e Claustro”, curta, Panorama Berlinale 2006 e “Phedra”) e também a questão da maternidade (“Leite e Ferro”). Kiko e Claudia, vocês já trabalharam em parceria em outros filmes; Claudia, você co-­‐escreveu o roteiro de “33”, e Kiko, você assina como produtor e diretor de fotografia de “Leite e Ferro”. Como foi retomar essa parceria, agora em uma co-­‐direção? Somos casados há 12 anos e gostamos de trabalhar junto. Passamos 24 horas do dia juntos e achamos pouco (risos). Dessa vez resolvemos dividir a criação inteira. Como já constituímos dinâmicas de trabalho, a parceria de direção foi harmoniosa. Somar os interesses, filmar e montar juntos, tudo isso nos dá muito prazer. O sertão é muito presente no imaginário brasileiro. É um local com uma forte cultura regionalista, na qual a tradição tem grande peso; como tais questões aparecem em “Olhe Pra Mim de Novo”? Como enxergam a figura de Syllvio Luccio neste ambiente? O sertão faz parte da história do cinema brasileiro. De Glauber Rocha até vários cineastas atuais o sertão aparece como protagonista, exatamente pela sua intensidade. Tratar de transexualidade em São Paulo, cidade cosmopolita é completamente diferente de abordar o mesmo assunto em um contexto ímpar. O homem do sertão traz um machismo bem forte. Lá 35 homem é homem e mulher é mulher. Por isso nosso personagem Syllvio Luccio aparece ainda mais ambíguo. Ele tem que ser duplamente mais corajoso. E com o calor extremo, a dificuldade em ter água, a pobreza, o ser humano do sertão é um ser que tem que ser forte. No Brasil, a transexualidade ainda é uma questão polêmica, vista por muitos com preconceito. Como foi a recepção do público a um filme que trabalha com estas questões? Sempre que um filme traz assuntos que não fazem parte do repertório da maioria das pessoas ele assusta um pouco. As pessoas muitas vezes se chocam quando precisam encarar o outro, o diferente. Até agora já vivemos as reações mais diversas que vai das piores até as melhores. Acreditamos, como muitos cineastas, que o filme existe neste espaço abstrato entre a tela de cinema e o público, ou seja, um filme é aberto a múltiplas interpretações. Tivemos de um lado reações emocionadas, admiradores da coragem de Syllvio. Por outro lado, não faltou “porrada” dos moralistas. O sul e o sudeste do Brasil – regiões mais ricas – também percebem o norte e o nordeste a partir de um viés preconceituoso. Mas assim como nosso personagem no filme, temos que ser fortes. Cláudia Priscila e Kiko Goifman Disponível em: http://olhepramimdenovo.wordpress.com/visao-­‐dos-­‐diretores/ O mundo e um homem A história de Sylvyo Lucio, a lésbica que decide por uma operação transexual, de forma a dar conta de sua interioridade masculina (nas palavras do personagem), é, sem dúvidas, extraordinária. Ao expandir o escopo para tratar das dificuldades que sua decisão acarretou em sua vida, onde problemas com familiares, amigos e afins afloram e deixam explícitos certos estados de irreconciliações e preconceitos compartilhados socialmente, o filme abre a possibilidade de uma imersão subjetiva bem intrigante. Sylvyo Lucio não quer apenas ser aceito, quer a possibilidade de ter um filho seu com sua mulher, Widna -­‐ um filho que venha tanto de seu óvulo quanto do dela. Para isso, ele se lança numa viagem pelo Nordeste, até achar um medico que aceite ou sustente a plausibilidade de seu sonho. Esta viagem, no filme, assume um tom tanto realista (de fato é uma viagem) quanto metafórico, nos planos de estrada nos quais vemos Sylvyo Lucio caminhando sozinho: esta viagem de Sylvyo é um esforço pessoal atrás daquilo que almeja, que deseja, e ele não irá desistir até ir a todos os lugares, todos os espaços, e ouvir todas as respostas. Com uma prerrogativa dessas, o maior motivo de estranheza no filme de Kiko Goifman e Claudia Priscila 36 é a aparente crença de que ao filme é necessário mais do que seu protagonista. Para um filme claramente pautado por um personagem de fortíssima personalidade, como o transsexual Sylvyo Lúcio, é de se intrigar a razão pela qual os diretores volta e meia abandonem seu protagonista e busquem, em outras histórias (como a família em que as filhas nasceram com uma rara condição genética, ou a mãe que depois de anos descobriu que seu filho foi na verdade trocado na maternidade), ecos que sustentem a narrativa principal. Em tudo, é extremamente tocante o encontro entre Sylvyo e sua filha, que não consegue compreender a necessidade de Sylvyo em trocar de sexo. O encontro é belo, posto que sincero: vemos pai e filha discutindo abertamente, abrindo o jogo e expondo as diferenças, cujos traços nenhum argumento “politicamente correto” consegue apagar, as posições que tomamos diante do mundo e que nos distanciam: diferentes. No entanto, ao buscar "elevar" seu conteúdo a uma categoria mais abertamente combativa, aliando à história pessoal de Sylvyo Lúcio uma tênue vontade de "desmascarar" os preconceitos e dificuldades que encaram aqueles que nasceram "diferentes", o filme enfraquece consideravelmente essa força evidenciada no encontro entre pai e filha. Sem se decidir entre um mergulho completo na vida e personalidade de Lúcio e uma vontade de escancarar (ou mesmo chocar) os atavismos de práticas sócio-­‐excludentes, Goifman e Priscila impossibilitam um desenvolvimento mais contundente de sua narrativa. É como se, diante do homem e as questões que pairam no mundo, desconfiassem que não exista um liame profundo que os ligue, e, trabalhando como se fossem apenas duas forças paralelas, terminam por nunca conseguir conciliá-­‐los. Thiago Brito Revista Cinética -­‐ Outubro de 2011 Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/olhepramim.htm Olhe pra mim de novo em Berlim Durante o festival de cinema de Berlim, acontece tradicionalmente um encontro com todos os participantes brasileiros na Embaixada. Esse ano o podium não oferecia o atrativo dos últimos anos. Faltou a presença do diretor de Xingu, Cao Hamburger, substituído por Andrea Barata Ribeiro, uma das produtoras do filme. Ivo Müller, ator principal de Tabu, uma coprodução de Alemanha, França, Portugal e Brasil, também faltou nessa mesa quase técnica. De quebra, foram apresentados os dois participantes brasileiros do fórum para jovens cineastas, o Talent Campus. 37 Mas o que realmente valeu a ida à Embaixada nessa terça-­‐feira chuvosa e fria, foi Sillvyo Luccio, protagonista do filme Olhe pra Mim de Novo. Este talvez seja o filme mais leve de Kiko Goifman e, como me foi confirmado pelo próprio, essa leveza teria vindo de Claudia Priscilla e de sua maneira de tematizar a sexualidade. Na mesa, Sillvyo é o membro mais expressivo, mas expansivo. Quando toma a palavra, cativa, instiga e traz real conteúdo a esse encontro, com pouquíssimos participantes e ignorado quase por completo por jornalistas da imprensa brasileira. Sillvyo fala daquilo que chama de “experiência traumática” quando se refere à reação da imprensa no último Festival de Gramado, quando um crítico de um grande jornal paulista teria sido ferrenho em cunho pessoal, atacando-­‐o pessoalmente ao se referir à sua forma de andar, de falar e outros aspectos alheios à temática do filme. “Quando o Kiko (Goifman) me ligou dizendo que o filme havia sido escolhido em Berlim eu disse: ‘Ah, legal’, mas não reagi com aquela euforia tão típica do pessoal do Nordeste” e acrescenta: “…imagina, se na minha própria terra a reação já é assim, se eu for para a Alemanha o pessoal lá vai me chicotear!”, causando um riso sem graça na plateia. Como surpreendido pelo sucesso do trabalho e quase se desculpando por esse lapso do acaso, Sillvyo completa: “Eu sempre fui na contra-­‐mão. Nasci mulher, me sinto homem. Nunca imaginei que fosse protagonista de um filme. Eu sou formado em Letras, participei de movimentos políticos partidários. Nunca tive nada com o cinema”. “Quando a Priscilla me ligou, nós ficamos durante 2 meses conversando ao telefone antes de termos o nosso primeiro encontro e enquanto isso não aconteceu, eu ainda não levava fé…” A diretora Priscilla acrescenta: “O Sillvyo roubou o filme, ele vai trilhando o caminho, conduz as entrevistas. Desenvolveu-­‐se muito mais do que somente um protagonista. Foi um grande presente conhecê-­‐lo e poder ganhar tanta coisa boa para o filme e para a nossa vida pessoal”. Sillvyo Luccio, muito mais do que figura-­‐magnética na tela do filme, é um ser humano de altíssima competência emocional. Dessas pessoas que sabem, em pouquíssimo espaço de tempo, acostumar-­‐se a situações inusitadas. Um cearense de postura de cidadão do mundo. Sillvyo anda pelos corredores do Berlinale Palast, aprecia as fotos dos vários atores que tiveram seus filmes mostrados, elogia o frio e as “lindas mulheres berlinenses”. Um discurso sério e, ao mesmo tempo, empacotado de uma ingenuidade que o faz terno. Por outro lado, sem papas na língua, Sillvyo fala da sua experiência como transgênero/transexual, nunca em tom egocentrista, mas sim como voz de um monte de gente que ainda continua escondendo suas verdadeiras identidades nos confins desse país territorial. O ranço de décadas de militarismo e o machismo, explícito e enrustido, ainda continua 38 imperando, nos confins do Ceará, nos bares de Copacabana e, como se pôde constatar em Gramado, na mente de jornalistas, formadores de opinião e multiplicadores por excelência. Como único membro da mesa com um senso de humor além do querer ser politicamente correto, Sillvyo quebra de vez o gelo diplomático e manda: “Um dia eu sonhei poder ter filhos e ser tratado com dignidade como um cidadão brasileiro. Sonhei muitas coisas….mas nunca sonhei vir para Berlim..” esboçando um sorriso descrente e arrancando sorrisos tímidos da platéia. “Eu acho que ainda não acordei, que ainda não percebi que eu estou na Alemanha, que eu estou convivendo com o povo que, para nós, como latinos, é o topo! Para mim é tudo lindo, tudo muito deslumbrante…”, confessa. O filme de Kiko Goifman não obterá em Berlim o caráter transcendente que, com certeza, terá no Brasil. A Alemanha, no centro da Europa, é um terreno privilegiado para pessoas de orientações sexuais das mais diferentes. Se existe um lugar no centro da Europa que é mundano, sexy e aberto para todos os tipos de preferências de vida, incluindo, claro, as opções sexuais, esse lugar é a cidade de Berlim, tradicionalmente abrigo para os desgarrados das convenções, para os sem destino, para os teimosos e para os ciganos. Em nenhum outro lugar do velho continente existem mais gays assumidos em cargos de confiança e potenciais formadores de opinião como nessa cidade, iniciando pelo prefeito social-­‐democrata, Klaus Wowereit; o segundo cargo no estado alemão, ministro das relações exteriores, Guido Westerwelle, e o diretor da mostra paralela Panorama”, Wieland Speck. Não é a Alemanha e nem muito menos Berlim que precisam de tolerância e aceitação para a diferença. Mas com o respaldo da exibição na capital gay européia, junto com a reputação que o Festival de Berlim possui, o filme terá um caminho mais fácil em circuito nacional, além de ser mais provável que mais pessoas se sintam motivadas a ir ao cinema para conhecer esse cearense porreta cabra-­‐macho sim senhor que tem muita história para contar. A direção de Kiko e Priscilla é impecável, sensível exatamente por deixar o motor do documentário, Sillvyo Luccio sair arrancando, dando ao filme a originalidade perfeita sem, em qualquer momento, cair no lugar-­‐comum de um olhar voyeurista pelo exótico e pelo “esquisito”. Olhe pra Mim de Novo nos leva na bagagem desse road-­‐movie com cenário natural de tirar o fôlego, nos mostra um Brasil escondido e, com isso, um pouco da história de cada um de nós. Fátima Lacerda Cenas de Cinema -­‐ 15 de fevereiro de 2012 Disponível em: http://www.cenasdecinema.com/olhe-­‐pra-­‐mim-­‐de-­‐novo-­‐em-­‐berlim/ 39 40 

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