afraudizio1 - Jornal de Letras on-line

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM METODOLOGIA DE ENSINO
DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA
AFRAUDÍZIO AZEVEDO SOARES
Moralidade e Sexualidade:
a interdição dos autores Naturalistas nos livros
Didáticos de Literatura Brasileira
Limoeiro do Norte - Ceará
2008
2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
AFRAUDÍZIO AZEVEDO SOARES
Moralidade e Sexualidade:
a interdição dos autores Naturalistas nos livros
Didáticos de Literatura Brasileira
Monografia apresentada ao Curso de Especialização
no Ensino em Língua Portuguesa da Faculdade de
Filosofia Dom Aureliano Matos - FAFIDAM da
Universidade Estadual do Ceará, como requisito
parcial para obtenção do grau de especialista no
Ensino em Língua Portuguesa.
Orientadora: Profa. Ms. Ana Maria Remígio Osterne
Limoeiro do Norte – Ce
2008
3
Universidade Estadual do Ceará
Especialização no Ensino em Língua Portuguesa
Título do Trabalho: Moralidade e Sexualidade: a interdição dos autores
Naturalistas nos livros Didáticos de Literatura Brasileira
.
Autor (A): Afraudízio Azevedo Soares
Defesa em: ___ / ___ / ___
Conceito obtido: __________
Banca Examinadora
__________________________________
Profa. Ms. Ana Maria Remígio Osterne
orientadora
__________________________________
Profa. Dra. Liduína Maria Vieira Fernandes
1ª examinadora
__________________________________
Profa. Ms. Fernanda Cardoso Nunes
2ª examinadora
4
As mulheres de minha vida: Brígida (mãe),
Ariella
(esposa)
e
Sophia
(filha),
as
grandes responsáveis por esta conquista.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente a força mística que governa todo o universo a qual
denomina-se Deus. Aos amigos Ciro e Mardônio que dividiram o sacrifício desta
batalha. Ao grande amigo “Jesi” que muito contribuiu com discussões e bibliografias,
ao eterno amigo, Júnior, aos professores que contribuíram para minha formação
com suas discussões. E por fim, a secretária Lenilda, por sua atenção, e em
especial a minha orientadora Ana Remígio, que muito contribuiu para o meu
crescimento intelectual.
6
“Não existe livro moral nem imoral.
Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo.”
(Oscar Wilde)
RESUMO
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Este trabalho busca, a partir da análise de 15 livros didáticos de Literatura de Ensino
Médio, observar a interdição dos autores Naturalistas. Tendo em vista a maneira
como o movimento foi recepcionado pela crítica, nos interessou especialmente as
questões relacionadas à moral e à antipatia ao Naturalismo; vislumbradas a partir da
análise dos compêndios didáticos nos quais somente três autores aparecem:
Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, percebendo-se a ausência de
romancistas como Júlio Ribeiro, Domingos Olímpio e Adolfo Caminha. Tomamos
para a análise dos livros didáticos, a maneira como os autores selecionaram os
recortes de leitura e a notória incidência dos mesmos fragmentos na maioria das
obras, sendo inclusive trabalhados da mesma forma. É central ao desenvolvimento
deste trabalho a idéia de que o conteúdo do livro didático se mostra regular quanto
ao desenvolvimento dos movimentos, possuindo restrições no tocante à questão
sexual, pois não abordam nem citam obras Naturalistas que possuam em seu
conteúdo cenas eróticas. Entendendo a escola como mecanismo disciplinador,
especialmente em relação à moralidade, buscamos entender essas interdições
como desdobramentos das finalidades da instituição.
Palavras-chave: interdição – Livro didático – Naturalismo – sexualidade – moral –
Escola.
8
ABSTRACT
This work wants, through the analysis of 15 literature textbooks of High School, to
observe the interdiction of Naturalist writers. In view of how the movement was
approved by the critics, we were interested especially the subjects related to morality
and empathy to Naturalism; realised from the analysis of didactic summaries in which
only three authors appear: Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia,
where are absent novelists such as Júlio Ribeiro, Domingos Olímpio and Adolfo
Caminha. We were taken for the analysis of the textbooks, the way how the authors
selected the clips of reading and notorious incidence of these fragments in most of
works, and even treated the same way. It is central for the development of this work
the idea of the content of the textbook is shown regularly on the development of the
movements, with restrictions regarding the sexual issue, because they do not quote
nor deal with Naturalist works that have erotic scenes in its content. Understanding
the school as a disciplining mechanism, especially in relation to morality, we wanted
to understand these development bans as purposes of the institution.
Key- words: Ban – Textbooks - Naturalism - Sexuality - Moral - School.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..............................................................................................................10
1. UMA COLÔNIA, DOIS MOVIMENTOS, REPRESSÃO E DESEJO ..........................14
1.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA SEXUALIDADE NA COLÔNIA PORTUGUESA.........15
1.2 O REALISMO E O NATURALISMO ........................................................................19
1.3 MORALIDADE VERSUS SEXUALIDADE ...............................................................27
2. LEITURAS INTERDITADAS, SOCIEDADE DOMESTICADA ...................................37
2.1 REPUDIADOS E MASSACRADOS, MAS CANÔNICOS ........................................40
2.2 O CÂNONE .............................................................................................................42
2.3 INSTRUÇÃO VIGIADA............................................................................................45
3. OS RECORTES NAS OBRAS LITERÁRIAS: INTENCIONAIS OU ALEATÓRIOS? .55
3.1 A LITERATURA BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO CATEQUÉTICA ..........................56
3.2 A SOCIEDADE BRASILEIRA E O REFLEXO DO REALISMO/NATURALISMO
NOS LIVROS DIDÁTICOS ............................................................................................58
3.3 INTERDITAR, PARA QUÊ? ....................................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................80
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ..............................................................................81
ANEXOS .......................................................................................................................85
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo discutir a relação entre moralidade
e sexualidade dando ênfase a interdição que os autores do Naturalismo brasileiro
sofrem em relação a sua abordagem nos livros didáticos. O que deteve nossa
atenção nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio foi, ao longo de nossa
experiência como professor de língua portuguesa e literaturas afins, assim como
nossas leituras sobre sexualidade, ter observado que os livros didáticos de literatura
do Ensino Médio não abordam ou abordam sucintamente obras com cunho erótico.
Alguns livros apenas citam as obras como O Bom Crioulo e A Normalista,
ambos de Adolfo Caminha, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo, mas sem nenhum
comentário adicional. Outros nem as citam, abordam apenas obras que não
desenvolvem um cunho erótico. Isso nos despertou um interesse em pesquisar o
porquê de tal interdição, tratando-se de movimentos como Realismo/Naturalismo.
Cientes de que isso poderia tornar-se um problema de pesquisa, nos
estimulou profundamente para a realização do referente trabalho. Isso porque, se
observarmos, muitas obras canônicas de autores consagrados, que são de suma
importância para compreendermos o movimento literário e sua época. Em muitos
livros didáticos, tais obras não são abordadas, sendo que em alguns aparecem
apenas como indicações de leitura.
Podemos ainda mencionar que os romances mencionados nos livros
didáticos são apresentados em forma de fragmentos de textos. Prática usual em
todos os livros didáticos, no entanto, vale ressaltar que tais fragmentos são
selecionados como exemplo para que se possa perceber as características do
movimento ou o estilo de um determinado autor. No caso dos romances
Naturalistas, cuja uma das características mais fortes é a temática do sexo as
citações postas nos livros didáticos interditam esse tema.
Na realidade, é sabido por todos que o que mais estimulou os movimentos
conhecidos como Realismo/Naturalismo foram as emergências da teoria Darwinista
e da psicanálise. Os autores dos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio não
trabalham tais temáticas. Os autores Naturalistas se preocuparam em inserir em
suas obras as descobertas de Darwin, tendo como característica a aproximação do
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homem com animal, o desenvolvimento de personagens patológicos com os fatores
de hereditariedade e a teoria Freudiana do inconsciente, onde havia a repressão da
libido. Como essas explicações remeteriam de imediato ao cunho erótico das obras,
suas supressões podem ser indícios da interdição de tal característica.
Durante o século XIX, também, a forma como a medicina tratou o sexo
serviu como pano de fundo para os romances, Thérèse Raquin, de Emile Zola,
Madame Bovary, de Gustave Flaubert, O Crime do Padre Amaro, de Eça de
Queirós, entre outros. A medicina da época havia sido tocada pela moral burguesa,
dando justificativas cientificas para a censura dos atos sexuais. Isso acabou tendo
reflexos na literatura Naturalista. (BRANCO, 1983: 90)
Estudar o Realismo/Naturalismo sem entender as questões que envolvem
os pontos relacionados à sexualidade é um tanto quanto vago, pois a finalidade dos
movimentos foi de denúncia dos vícios do cotidiano burguês, especialmente os que
competiam às vontades da carne, assumindo assim uma postura moralista. Logo é
imprescindível que venhamos a estudar os campos da sexualidade neste movimento
literário.
Mas, por qual motivo as obras eróticas são abordadas sucintamente e
muitas vezes nem estudadas nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio?
Este é outro ponto que aguçou bastante a nossa curiosidade para a realização de tal
trabalho. Pois, fica um tanto quanto lacunar, o estudo dos movimentos
Realismo/Naturalismo sem trabalharmos a questão sexual, uma de suas
características principais.
Sendo assim, os recortes dos romances deveriam conter cenas descritivas
ou narrativas que expusessem, não só as características que o autor da obra
didática deseja colocar em evidência, mas também as que fizeram com que o
movimento ficasse conhecido como aquele que tratou principalmente dos tipos
humanos e suas patologias, entre elas a grande maioria estava relacionada ao
campo da sexualidade.
Os movimentos Realismo/Naturalismo, da forma como foram trabalhados
nas obras didáticas, possuem trechos de livros em que seus recortes são escolhidos
providencialmente, ou seja, o autor retira trechos que expõem apenas as
características que estão mais relacionadas com o Realismo do que com o
Naturalismo.
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Deixando, assim, de abordar obras que enfatizam as patologias humanas
na concepção naturalista para trabalhar com obras que citam apenas as
características mais usuais do Realismo, que não envolvem nenhum pudor ou
ataque à moral. Logo, desejamos, através dessa pesquisa, entender alguns dos
motivos que levam os autores a não escolherem obras que tenham o conteúdo já
mencionado, e, quando escolhem, o porquê dos fragmentos não serem feitos com
cenas realmente que marcaram a época literária, características próprias dos
movimentos.
Durante todo o período de nossa vida profissional nunca tivemos a
oportunidade de trabalhar com livros didáticos de literatura que citassem ou
abordassem obras literárias que tivessem um caráter erótico. Ao pretender fazê-lo,
tivemos que partir para textos suplementares, pois os livros não traziam textos que
pudessem enfatizar as características do movimento, ou seja, as narrativas
selecionadas eram amenas quando o campo era sexualidade, embora o movimento
tivesse como característica o elemento sexo.
As obras literárias canônicas que fazem parte dos movimentos conhecidos
como Realismo/Naturalismo são: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom
Casmurro, ambas de Machado de Assis; O Ateneu, de Raul Pompéia; O Cortiço, de
Aluisio de Azevedo, O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, e A Carne, de Júlio Ribeiro.
Então, por que nem todas essas obras não são abordadas nos livros didáticos de
Literatura de Ensino Médio? Quais obras são suprimidas e o que elas possuem em
comum?
A maioria dos livros didáticos se limita a trabalhar com três obras: O
Cortiço, de Aluísio Azevedo, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis e O Ateneu, de Raul Pompéia. Tais obras são cânones da Literatura brasileira,
mas um fato bem curioso é o de que as três obras servem tão bem quanto as
suprimidas para trabalharem as características dos movimentos relacionadas à
questão erótica. Mas, suprimem obras como: O Bom Crioulo e A Normalista, de
Adolfo Caminha, A Carne, de Júlio Ribeiro e Luzia – Homem, de Domingos Olimpio,
que enfatizam bem melhor os movimentos.
No entanto, os autores ao citarem as três obras em questão, providenciam
recortes que expõem apenas as características que estão mais voltadas para o
Realismo, como verossimilhança, objetividade da escrita e as mazelas sociais –
fome, egoísmo, inveja ambição etc.
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Talvez para evitarem, que, as obras possuam com cenas de erotismo, não
sejam expostas, acabam citando apenas as que não causam nenhum ataque ao
pudor. Logo, isso nos causou uma inquietude: entender se o livro didático é
moralista ou informacional.
Ao entender todo o processo de tais questionamentos, passaremos a
contribuir para o ensino de Literatura no campo que diz respeito à sexualidade,
campo este sobre o qual há grande preconceito, isso porque vivemos em uma
sociedade patriarcal, moralista e catequética, devido a nossa colonização, e
formação intelectual.
A referente pesquisa se organiza em torno de algumas problemáticas, ela
nos trouxe indagações a respeito do assunto: os livros didáticos de Literatura
abordam ou não obras que tenham cunho erótico? Tal pergunta nos faz refletir sobre
as obras literárias em relação a sua classificação nos livros didáticos.
Criamos ainda mais questionamentos, os livros didáticos abordam a
questão sexual a partir de uma moral anti-erótica? Por qual motivo há interdições
das obras Naturalistas nos livros didáticos?
O presente trabalho será dividido em três capítulos, sendo o primeiro,
responsável por uma abordagem panorâmica da literatura brasileira citando
acontecimentos históricos que tiveram relação com os aspectos que evolvem os
movimentos literários em questão, juntamente com suas definições e semelhanças.
Logo em seguida, ainda no primeiro capítulo, trataremos das definições de moral e
dos conceitos que envolvem sexualidade.
No segundo capítulo, trataremos da formação do cânone ocidental
fazendo uma reflexão com as obras que compõe o Naturalismo brasileiro.
Abordaremos ainda, a recepção das obras Naturalistas pelo público brasileiro do
século XIX, e por último a instituição escola, suas peculiaridades, seu papel quanto
instituição, as influências que ela sofreu da Igreja Católica e as mudanças que ela
sofreu ao longo dos anos.
No terceiro e último capítulo, faremos a análise de 15 livros didáticos de
Literatura de Ensino Médio, onde verificaremos os cortes dos trechos das obras
citadas nos movimentos, Realismo e Naturalismo, observando principalmente a
interdição das obras Naturalistas.
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1. UMA COLÔNIA, DOIS MOVIMENTOS, REPRESSÃO E DESEJO
“As piores coisas são feitas com as melhores intenções” (Oscar Wilde)
Quando os portugueses desembarcaram no Brasil tiveram inicialmente a
intenção de explorar a terra recém descoberta, mas não demorou muito para que
eles também nos repassassem um pouco de sua cultura e seus costumes. Logo no
princípio estranharam o modo como os gentios de organizavam, se vestiam e se
relacionavam.
Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa de
cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta
inocência como têm de mostrar o rosto. (...) Eles porém contudo
andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda
mais que são como as aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar
melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus
são tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser.
(CAMINHA Apud SOUZA; CAMPEDELLI, 2000:75)
Pero Vaz de Caminha o primeiro a descrever a nova terra, observa nos
habitantes do lugar seus modos de vestir com admiração. Pero de Magalhães
Gândavo, os observa com relação à organização “carecem de ter três letras,
convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque
assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente
sem terem além disto conta nem peso nem medida.”
(SOUZA; CAMPEDELLI,
2000:75)
Nos textos produzidos sobre a terra descoberta pode-se perceber a
admiração do europeu, maravilhado com o selvagem, seus hábitos de vida e com a
natureza da nova terra. Muitos desses escritos buscam atrair os lusitanos para
riquezas da terra e, evidentemente, para consolidar o povoamento. (CAMINHA Apud
SOUZA; CAMPEDELLI, 2000:74)
Ao virem consolidar o povoamento da nova terra, os portugueses
trouxeram seus costumes e sua cultura de organização, isto inclui as suas normas
de pudor e moral. Desta forma temos uma influência européia quanto a religião, a
organização de governo e as leis de estado, criadas e desenvolvidas pelo ocidente.
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E assim, a referida cultura, foi repassada e incorporada ao longo dos anos chegando
até os séculos que surgiram posteriormente à colonização de nossa terra.
1.1 Uma breve história da sexualidade na colônia portuguesa
O Brasil por trazer como estigma histórico o fato de ter sido colônia de
Portugal e aqui inicialmente não ter existido uma fiscalização em relação à questão
sexual fez com que no início do período colonial tudo acontecesse sem o mínimo
controle.
Só depois da implantação do Santo Ofício da Igreja Católica é que as
coisas passaram a ter normas e controle. Mas sempre havendo algumas ressalvas,
pois ocorreriam inúmeros casos de pederastia, pedofilia e sodomia, principalmente
envolvendo padres e professores, ainda que os mesmos nunca pagassem por seus
delitos, pois o processo muitas vezes era engavetado e o inquisidor acabava
alegando falta de provas. (MOTT, 1989, p. 2)
Em nossa tradição luso-brasileira, parece que as relações sexuais
entre adultos e adolescentes, além de freqüentes, não eram
condutas das mais condenadas pela Teologia Moral, pois mesmo
quando realizada com violência, a pedofilia em si nunca chegou a
ser considerada um crime específico por parte da Inquisição. Estes
dois episódios exemplificam nossa asserção: em 1746, chega ao
Tribunal do Santo Ofício de Lisboa a seguinte denúncia: Maria
Teresa de Jesus, mulher casada, moradora na Vila de Santarém.
“saindo de sua casa um seu filho, Manoel, de 5 anos, foi levado por
um moço, Pedro, criado, para um porão e usou do menino por trás,
vindo o menino para casa todo ensangüentado”. Em 1752, outro
caso semelhante chega à Inquisição: no povoado de Belém, junto a
Lisboa, um moço de 25 anos, José, marinheiro, agarrou um menino
de 3 anos incompletos, João, o levou para um armazém, do qual
saiu a criança chorando muito, todo ensangüentado e rasgado seu
orifício com a pica do moço”.
Quando ocorria um fato de tal natureza na colônia, era feito um inquérito
que envolvia inúmeros fatores para que alguém pudesse ser condenado ou que no
mínimo o infrator pudesse receber a pena de reclusão. E tais acontecimentos só
eram considerados crimes quando os mesmos eram condenáveis pela cultura
européia.
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Quando se fala em sexualidade no Brasil colonial uma das primeiras
coisas a se pensar é na Inquisição. De fato, ela foi essencial na formação da
mentalidade sexual da colônia, mas isso não quer dizer que a repressão e o medo
de ser delatado ao Santo Ofício fizesse com que as pessoas estagnassem numa
vida sexual puramente em função da procriação. Na verdade, o que acontece é
exatamente o contrário, temos um Brasil que, como Gilberto Freyre disse, "parece
ter-se sifilizado antes de se haver civilizado" (FREIRE Apud Emanuel Araújo, 2001:
45-6)
O casamento foi popularizado, porém o sexo dentro dele só era lícito
se houvesse procriação ou, no mínimo ejaculação por via vaginal e,
obviamente, o prazer não estava incluído. Isso quer dizer que se o
casal copulasse de forma prazerosa, sem intuito de procriação,
pecava gravemente. O homem que tinha prazer com sua mulher era
considerado adúltero. Essa situação podia ter duas conseqüências. A
primeira seria o homem procurar se satisfazer com escravas índias
ou negras da forma que lhe aprazisse, assim não pecava ou teria
apenas um pecado leve. A mulher também poderia praticar o
adultério, porém correria risco de vida, pois nessa época era legal um
marido matar sua esposa por traição. A outra conseqüência seria
sempre a delatação e, dessa forma, cair nas mãos da Inquisição
caso o casal fosse pego praticando molície ou sodomia, por exemplo.
É interessante observarmos que na colônia havia certa liberdade sexual
tanto no campo masculino como no feminino, mas sempre, as conseqüências
recaiam sobre a mulher, já que viviam em uma sociedade moldada pelos europeus
tendo como base um sólido matrimônio, e como sabemos aqui perdurava uma
sociedade de mentalidade patriarcal e machista. Podemos observar na citação de
Emanuel Araújo que a colônia portuguesa era um lugar onde os limites da
sexualidade eram impostos pelo Santo Ofício da Igreja Católica, e como quem
dominava e regia muitas vezes os atos desse Santo Ofício eram os latifundiários e
os padres, a impunidade era mais comum do que punição. Portanto o Brasil era o
local perfeito para que a sexualidade germinasse de uma forma espontânea e livre.
Na realidade todos temiam o Santo Ofício, mas nem por isso deixavam de
realizar suas “necessidades sexuais”, o sexo ainda era tratado como um ato
reprodutivo e não prazeroso, e isso fazia com que muitos homens procurassem as
prostitutas para realizarem aquilo que na realidade as suas esposas não podiam
conceder. Isso porque pela moral imposta na colônia tal ato não era muito comum
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entre os casais, já que toda e qualquer relação matrimonial teria que ter um caráter
reprodutivo. Vejamos mais uma vez o que nos diz Emanuel Araújo, 2001: 52)
É claro que a definição de pecado para a mente da época era muito
diferente da de hoje. O sexo ilícito (molície, sodomia e bestialidade)
não era pecado se fosse feito com índias, negras ou prostitutas.
Ninguém ia ser delatado por sodomizar uma prostituta, por
exemplo. Porém, quando se tratava de brancas fossem donzelas ou
casadas, o sexo ilícito era pecado gravíssimo e levava direto às
chamas do inferno. É preciso frisar aqui o grande preconceito da
época em relação aos índios, negros e mulatos, vistos como raças
infectas e a importância da pureza de sangue. Um ditado popular
expressa bem o preconceito racial "branca pra casar, índia pra
fuder, negra para trabalhar".
Desse modo, um fator importante na sexualidade no Brasil no século XVII
era o sexo pluriétnico. Quando os portugueses chegaram ao Brasil não havia
mulheres brancas, fazendo com que se relacionassem com as índias. É clara a
imagem que o Brasil dava então aos estrangeiros: um país erótico, luxurioso,
quente, cheio de nudez e emoldurado pela exótica natureza tropical. Mas a verdade
é que ocorriam muitos estupros e violências com os índios e negros. Os grandes
proprietários estupravam seus escravos e muitos não poupavam nem crianças que
várias vezes morriam depois de tanta violência. Os proprietários menores e mais
pobres prostituíam seus poucos escravos a fim de conseguir mais renda. Isso
ocorria devido ao pouco controle sexual que havia na colônia.
De fato, a prostituição era muito explorada na colônia. Naquele tempo não
havia bordéis, então ela era feita nas casas de alcouce, que eram vendas ou
tabernas. As prostitutas eram sempre mulheres pobres, escravas ou recém
alforriadas que faziam seus programas por meio de uma alcoviteira.
Essa sociedade também era marcada pela aproximação entre o profano e
o sagrado. Um costume popular entre os casais era dizer as palavras de
consagração da hóstia (hoc est enim corpus meum) em meio ao ato. Outro hábito
era realizarem tal ato perto ou em cima de crucifixos.
Houve casos de homens que foram acusados de fazer suas necessidades
fisiológicas perto da cruz ou mesmo depositá-las nesta. E a Igreja, lugar mais
sagrado de todos, era também o lugar oficial dos flertes, paqueras e namoricos. Isso
se deve pelo fato de que a Igreja era onde a população se encontrava e por isso, um
lugar social. Além disso, era dentro dos confessionários que padres licenciosos
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aproveitavam sexualmente de suas fiéis. As Igrejas também eram um esconderijo
procurado por homens e mulheres para cometer adultério, ou simplesmente
realizarem suas necessidades sexuais. (ARAÚJO, 2001: 50-2)
Em parte isso se deve pela falta de privacidade generalizada que havia no
Brasil colônia. As casas costumavam ser lotadas de pessoas, sem muitas divisões,
com ausência de janelas envidraçadas, com redes ou invés de camas, salas viradas
para a rua, paredes esburacadas, enfim o mínimo de privacidade. Sem falar no
problema da espionagem.
Era comum para as pessoas espionar e fofocar das intimidades que
ouviam ou viam de terceiros. Então normalmente procuravam-se lugares alternativos
para o ato. A preferência, principalmente para aqueles que gostavam do sexo ilícito,
era um esconderijo no mato, o que não era de todo seguro, pois os envolvidos
sempre corriam o risco de serem pegos em flagrante.
Outro aspecto da sexualidade colonial era o das magias eróticas. Essas
magias eram práticas populares receitadas por uma feiticeira com o intuito de
seduzir o amado e na maioria das vezes envolvia os líquidos seminais. Uma das
receitas era dar o esperma do homem, depois de ejaculado na vagina de sua
parceira, para o próprio beber. Ou então lavava-se numa mulher as partes pudentas,
as axilas e as solas do pé com água. Depois colocava na água raspas da sola do pé
e no dia seguinte dava a água de beber ao homem disfarçada em alguma
bebida.Outra magia consistia em furar três avelãs e preencher os buracos com pelos
de todo o corpo, unhas, raspas da sola do pé e uma unha do dedo mínimo da
feiticeira. A mulher engolia as avelãs e depois de excretá-las, colocava-as no vinho
do marido.
Na colônia a mulher branca podia ser livre, mas não tinha muitas opções
depois que saía de casa, a não ser duas: casar ou tornar-se freira. Muitos ricos
senhores preferiam colocar suas filhas no convento para não ter que pagar o dote.
Na verdade, a melhor opção para a época era mesmo o convento. Primeiro porque
lá as mulheres estudavam e, assim, se intelectualizavam e segundo porque era um
espaço de liberdade, e de possível libertinagem.
A verdade é que havia muitos casos de freiras grávidas e flagrantes entre
frades e freiras. A roda, por exemplo, era um tipo de janela rotatória que havia nos
conventos onde as pessoas colocavam bebês indesejados, bastardos. Mas também
era um meio das freiras trocarem correspondências e prendas amorosas com seus
19
amantes. No locutório do convento havia grades que separavam as freiras dos
visitantes, mas mesmo assim não impediam as freiras de se divertir com qualquer
coisa do visitante que pudesse passar pelas grades… Enfim, o convento poderia ser
um lugar muito menos de recolhimento e oração e muito mais de luxúria e
devassidão.
1.2
O Realismo e o Naturalismo
Dentre todos os movimentos literários existentes no cenário mundial os
que mais se opuseram a sociedade foram sem dúvida: o Realismo e o Naturalismo.
Tais movimentos trataram de pontos que incomodaram toda uma sociedade.
Os realistas possuíam como principais características o fato de se oporem
ao Romantismo, seus autores eram antes de tudo anti-românticos e anticléricos.
Alguns posicionamentos fizeram com que, os movimentos se tornassem conhecidos
pelos grandes incômodos causados à sociedade da época, pois apontavam
justamente
os
“podres”
cometidos
pela
sociedade,
cobravam
assim
um
comportamento moral que se efetivasse.
Durante alguns anos esses movimentos foram repelidos pelas principais
sociedades européias. A sociedade logo tratou de repudiá-los com grande fervor,
conseguindo assim com que eles fossem deixados de lado, pois causavam pudor e
inconveniência dentro de tais sociedades.
A segunda metade do século XIX é marcada por grandes avanços,
expansão, conquistas coloniais, lutas militares, processos de independência,
intensas lutas ideológicas e grandes avanços no comércio.
A segunda metade do século XIX assiste à expansão burguesa no
mundo e, por isso mesmo, é uma fase de lutas militares, de
conquistas coloniais, de teorização de pretensas superioridades, de
intensa luta ideológica justificatória das superioridades proclamadas,
de desenvolvimento da produção e do comércio e, portanto, de
invenções, de inovações técnicas, de avanço científico. Tratava-se,
como afirma Leroy-Beaulieu, de "não deixar a meta do globo a
homens impotentes e ignorantes", ou, como expressa, em sua forma
contundente, o capitão de navio norte-americano A. T. Mahan, de
"expropriar as raças incompetentes". Ë preciso fazer avançar a
ciência, por isso tudo, e Arago diria: "Não é com belas palavras que
se faz açúcar de beterraba; não é com alexandrinos que se extrai a
soda do sal marinho". A ciência necessita, assim, de novos métodos
e, principalmente, de organização; deve servir a objetivos práticos,
20
oferecer resultados imediatos, apresentar processos viáveis de
utilização de matérias-primas ou de multiplicação de bens e,
portanto, de possibilidades de rápida acumulação de riqueza, de
capitalização, em suma. (SODRÉ, 1965: 13-4)
Esse era o panorama da metade deste século foi neste cenário que
floresceram os movimentos conhecidos como Realismo/Naturalismo. Eles surgiram
contra o ideário romântico, que era o grande representante da burguesia a fim de
firmar o interesse pelo avanço das ciências, o novo centro das preocupações
burguesas.
Os movimentos em questão vieram abordar temas não tratados por
escritores que para os românticos era como se fossem proibidos, já que eles
tratavam apenas dos pontos altos da burguesia. Os valores apresentados como
pertencente a sociedade burguesa pelos românticos eram:
a valorização, do
casamento, da virgindade, do primeiro amor e do sentimentalismo, são questionados
pelos escritores da nova safra. Os Realistas juntamente com os Naturalistas
desenvolveram em suas narrativas a denúncia da sociedade burguesa, fato que, não
era apresentado pelos signos românticos, mas sim, pelos da hipocrisia, provocou na
sociedade burguesa uma espécie de repúdio.
O
Realismo
e
o
Naturalismo
são
dois
movimentos
literários
completamente distintos, mesmo que para alguns eles sejam um só, isso ocorre
devido as suas características, se aproximarem.
Embora o Realismo e o Naturalismo tenham objetivos diferentes,
ambas as tendências se aproximam no projeto de observar,
documentar e denunciar a realidade social. O Realismo se apura na
análise da força das instituições sobre o indivíduo, no retrato das
relações humanas permeadas de interesse, na introspecção
psicológica. Menos psicológico do que o Realismo, o Naturalismo
analisa a força de fatores como hereditariedade e meio sobre o
comportamento humano. (CEREJA, MAGALHÃES, 2004: 307)
Muitos autores afirmam que o Realismo é que é “escola literária” enquanto
o Naturalismo é apenas o Realismo ao extremo. Tal comentário não passa de um
profundo desconhecimento dos movimentos, pois é muito mais convencional falar do
Realismo, que do Naturalismo, sendo que o último foi alvo de muitas críticas não só
no século de sua existência, mas também até os dias atuais.
21
A aproximação dos termos Realismo e Naturalismo é muito comum nos
livros didáticos de Literatura de Ensino Médio e, muitas vezes, até nos de História da
Literatura. Em muitos casos o nome dos movimentos é usado até como sinônimos.
Isso ocorre porque existem muitos pontos em comum entre o romance Realista e o
Naturalista. Como exemplo pode-se citar o ataque à burguesia ao clero e à
monarquia. As proximidades dessas estéticas são tantas, que, muitas vezes, é difícil
classificar um autor e, até mesmo uma obra, como pertencente a essa e àquela
corrente literária. Um bom exemplo é o escritor português Eça de Queiros,
considerado por muitos críticos literários como sendo Realista e, por outros, como
Naturalista.
Apesar de toda essa proximidade, é possível encontrar algumas
diferenças entre ambos. O Naturalismo é fortemente influenciado pela teoria
evolucionista de Charles Darwin. Por isso, vê o homem sempre pelo lado
animalesco. Nessa ótica o Homem se comporta como um animal, ou seja, não usa a
razão, pois os seus instintos naturais são mais fortes. Ainda sob esse ponto de vista,
o comportamento humano nada mais é do que o reflexo do meio em que o homem
vive Esse meio é composto por educação, pressão social, o próprio meio ambiente
etc..
Esse homem, que ainda é subjugado (dominado moralmente, reprimido,
amansado, domesticado) pelo fator hereditariedade física, está preso a um destino
que ele não consegue mudar. Um bom exemplo disso é a personagem Pombinha,
da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. No início do romance ela era uma jovem
cheia de virtudes e destinada ao casamento. No entanto, devido às influências do
seu meio, cedeu ao homossexualismo e à prostituição.
O Naturalismo aprofunda a visão científica do Realismo, pois acredita no
princípio de que somente as leis da ciência são válidas, renegando assim, qualquer
tipo de visão espiritualista. Dessa forma, acredita que o comportamento do homem
pode ser explicado cientificamente. Então, o escritor naturalista observa o seu
personagem muito de perto, buscando conhecer as causas desse comportamento
para chegar ao conhecimento objetivo dos fatos e das situações.
A temática dos movimentos também é um dos pontos em que há
diferenças significativas entre o Naturalismo e o Realismo. Os autores Naturalistas,
sempre por meio de uma análise rigorosa do meio social e de aspectos patológicos,
trazem para sua obra temas como a miséria, a criminalidade e os problemas
22
relacionados ao sexo como o adultério e o homossexualismo, tanto feminino como
masculino.
Esses temas são abordados sempre por meio de personagens que
representam os grupos marginalizados da sociedade, como por exemplo, em O
Mulato, O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Face a tudo o que foi exposto pode-se dizer
que todo Naturalista é Realista, porém, nem todo Realista é Naturalista. Pode-se
dizer ainda que o Naturalismo seja um prolongamento do Realismo, só que mais
intenso.
Segundo Nelson Werneck Sodré (1965: 23-4) o Realismo é que é um
problema para a literatura, pois foi o Naturalismo que realmente teve uma
representação fiel do homem. O movimento foi na verdade o representante fiel da
verossimilhança. Foi o Naturalismo que denunciou de uma forma objetiva e direta a
decadência dos valores da sociedade burguesa com seus falsos valores morais e
sua hipocrisia.
Que é realismo? Para o leigo, não é mais do que um estilo, entre
outros. Mas muito ao contrario dessa concepção vulgar, o realismo
é o problema fundamental da literatura. Naturalismo é que é uma
escola, entre outras: uma escola que, a pretexto de representar
fielmente a realidade, utilizou-se de determinadas fórmulas. Estas
fórmulas é que a caracterizam que definem a escola. Muitas são as
formas por que manifesta a sua decadência, a decadência dos seus
valores, inclusive os éticos e os estéticos. O naturalismo é uma
dessas Formas, e não à única, na literatura. No campo científico
desenvolvem-se as ciências da natureza; muito mais do que as
ciências da sociedade. Toma vulto a sociologia; o naturalismo é um
pouco a sociologia na literatura. (...) A marca decadentista da época
é conservadora, por mais que as inovações técnicas anunciem o
avanço, fixando a tendência em "conciliar as mais recentes
descobertas das ciências naturais com as velhas tradições
religiosas ou, mais exatamente, o oratório com o laboratório”. O
naturalismo pretende ser o laboratório, em literatura. E chegará a
pretender-se experimental, quando não ultrapassa o empirismo dos
arrolamentos. (SODRÉ, 1965: 24-5)
O Naturalismo se encarregou de trazer para a literatura as tensões entre
as ciências naturais e as sociais da época. No campo social, os valores morais; no
científico, o evolucionismo, o Empircismo cartesiano, o positivismo as inovações da
ciência social como, as idéias de Charles Darwin acerca da evolução humana. Foi o
referido movimento que se encarregou de por em seus romances as mazelas sociais
23
como uma espécie de denuncia e seus personagens traziam a tona os desejos
obscuros que, estavam encravados nos indivíduos da sociedade da época.
Depois do surgimento do Realismo com a exposição de Gustave Coubert
e a publicação de Madame Bovary de Gustave Flaubert, a sociedade européia
esperou dez anos para receber as inovações do Naturalismo de Emile Zola.
Logo que o Naturalismo surgiu com Zola, sua obra foi interpretada como
sendo Realista, só depois foi compreendida como Naturalista, com o surgimento do
movimento os críticos o batizaram de Realismo, mas com o passar do tempo
percebeu-se que suas temáticas ganhavam solidez e representação, e logo ganhara
outra nomeação sendo chamado de Naturalismo e se firmando com tal nomeação.
Os movimentos literários são sucessivos, sendo que tal sucessão denota a
superação de um sobre o outro. Vejamos alguns exemplos, o Romantismo supera o
Classicismo, o Realismo supera o Romantismo e o Naturalismo prevaleceria o
Realismo. (SODRÉ, 1965: 27-8)
Mas isso logo se transformou em um problema, porque ao colocar o
Naturalismo como um movimento superior ao Realismo com relação a suas
características, fazia com o primeiro fosse superior ao segundo não por uma
adequação histórica ou coisa assim, mas sim pela solidez do movimento e suas
questões estéticas (SODRÉ, 1965: 28). Acontecendo justamente o contrário do
convencional que é o desenvolvimento de idéias e posições contrárias ao
movimento já existente.
Tal confusão ainda é feita até hoje por autores de livros que tratam
principalmente do ensino de literatura. A grande maioria dos dicionaristas também
comete tal equivoco ao desenvolverem os seus verbetes colocando um movimento
como complemento do outro. Mas a distinção entre os movimentos não é definida
pelos livros didáticos de literatura, nem por muitos livros de historia da literatura.
Vejamos a citação de Nelson Werneck Sodré (1965: 29-30):
Enquanto o naturalismo implica uma posição combativa, de análise
dos problemas que a decadência social evidenciava, fazendo da obra
de arte uma verdadeira tese com intenção científica, o realismo
apenas "fotografa" com certa isenção a realidade circundante, sem ir
mais longe na pesquisa, sem trazer a ciência, dissertivamente, para
o plano da obra. O romance realista encara a podridão social usando
luvas de pelica, numa atitude fidalga de quem deseja sanar os males
sociais, mas sente perante eles profunda náusea, própria dos
sensíveis e estetas. O naturalista controlando a sua sensibilidade, ou
24
acomodando-a à ciência, põe luvas de borracha e não hesita em
chafurdar as mãos nas pústulas sociais e analisá-las com rigorismo
técnico, mas de quem faz ciência do que literatura”. A confusão é tal
que se torna necessária a imagem das luvas de pelica e de borracha,
para distinguir uma "escola" da outra. Confusão que não é
superficial, pois decorre de problemas de conteúdo.
Percebemos pela citação de Sodré que, a imagem das luvas de borracha,
é usada para referi-se ao Naturalismo como um movimento que trata de expor o que
a sociedade possuía de pior. Perceba que as luvas servem de alegoria para mostrar
que os atos da referida sociedade eram podres, e os Naturalistas usavam luvas para
evitarem a contaminação. Isso demonstra uma atitude moralista e repressiva.
Como já foi citado anteriormente, o Naturalismo foi interditado pela
sociedade da época não só pelo fato de ter ido muito mais longe do que o Realismo
em sua narrativa, mas pelo fato de ter se rebelado contra a mesma mostrando sua
verdadeira face, exigindo dela uma nova postura.
Os
extremamente
autores
que
atacados
enveredaram
pelos
meios
de
pelo
lado
do
comunicação
Naturalismo
da
época.
foram
Foram
considerados seres diabólicos, seres que possuíam cérebros monstruosos, capazes
de darem a luz a grandes aberrações em forma de escrita, uma das piores obras
que a literatura já havia concebido. (Bulhões, 2003: 43-4)
A sociedade européia com base nos moldes da moral vitoriana
questionava toda e qualquer manifestação literária em que fosse detectada pontos
que pudessem colocar a moral e os bons costumes em xeque. Ao produzir o
prefácio de seu romance, O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde escreveu que não
existe livro moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Por escrever tal frase
foi extremamente questionado no tribunal inglês por Edward Carson, advogado do
Marquês de Queensberry, pai de Alfred Douglas amante de Wilde.
Wilde estava sendo acusado por praticar atos homossexuais com o filho
do Marquês. Só pelo fato de proferir frases como a citada acima Oscar Wilde teve de
se explicar no tribunal, isso mostra como se constituía a moral da época dos
Realistas e dos Naturalistas. Uma moral totalmente castradora e repulsiva. Vejamos
um trecho do interrogatório de Edward Carson a Oscar Wilde:
CARSON. — Em seu prefácio a Dorian Gray, o Senhor disse: "Um
livro não é de modo algum moral ou imoral. Os livros são bem ou
mal escritos." Essa frase expressa sua opinião?
25
WILDE. - Minha opinião sobre a arte, sem dúvida.
CARSON. - Por conseguinte, suponho que um livro, por mais
imoral que seja, se está bem escrito é, em sua opinião, um bom
livro.
WILDE. — Sim, se estivesse suficientemente bem escrito para
provocar uma sensação de beleza, a mais elevada sensação que
um ser humano é capaz de vivenciar. Se estivesse mal, escrito,
provocaria uma sensação de aversão.
CARSON. – Portanto, um livro bem escrito que exponha opiniões
morais viciosas, poderia ser um bom livro?
WILDE. — Nenhuma obra de arte nunca expôs opiniões. As
opiniões são coisas de pessoas que não são artistas.
(MACHADO, 2006: 23-4)
Wilde acabou provando um pouco do gosto amargo das imposições da
rainha Vitória e sua moral castradora e punitiva. Isso acabou sendo apenas uma
prévia do que aconteceria com ele anos mais tarde, Wilde foi contemporâneo a
todos os fatos ocorridos no período que chamamos de Realismo e Naturalismo Os
realistas e os Naturalistas sofreram grandes castrações no tocante a exposição de
suas idéias e sua arte literária.
Os movimentos possuíam em suas entranhas pontos que causavam
inquietações e desconforto a sociedade da época e a moralistas de plantão. Em
Portugal Eça de Queiroz ao lançar o Primo Basílio e sofreu grandes ataques em
relação a sua produção recebendo o uso de adjetivos maldosos com relação a sua
obra. O Naturalismo propunha como nenhum movimento até então, em mostrar a
realidade.
Alguns críticos moralistas contribuíram negativamente para que o os
movimentos Realista/Naturalista não fossem bem recepcionada pelo público da
época, os autores realistas sofreram grandes punições morais e sociais por criarem
e desenvolverem uma nova narrativa. Eles foram chamados de imorais e de
libertinos. Vejamos a citação de Nelson W. Sodré (1965: 57-8):
Um dos exemplos mais curiosos da crítica moralista ao
naturalismo em Portugal foi o trabalho de Carlos Alberto Freire de
Andrade, A Escola Realista. Opúsculo Oferecido às Mães,
aparecido em 1881 e refletindo o eco do lançamento do Primo
Basílio. O naturalismo estaria contribuindo para "a desmoralização
das famílias”. O destaque da linha moralista, o dispautério da linha
patriótica e as insuficiências da linha de negação da originalidade
– certa, no fundo – mostram como os adversários do naturalismo
representavam algo pior do que o naturalismo.
26
Como observamos acima as obras Naturalistas não eram questionadas
quanto a sua estética, nem estrutura literária, mas sim pelos impactos que poderiam
causar nos seres e nas camadas da sociedade da época. Não havia preocupação
com a arte literária, mas sim com a desconstrução da moral.
Um dos grandes desejos dos Naturalistas era dissecar os tipos humanos e
mostrá-los para a sociedade da época, exibir o que, habitava os corações e mentes
dos indivíduos que compunham a sociedade do século XIX. Tais indivíduos
pregavam uma falsa moral alimentada de uma hipocrisia exacerbada.
O comportamento dos seres que pertenciam a sociedade do século XIX
era visto como atos normais, desde que o indivíduo possuísse um lugar de destaque
na sociedade em questão se isso ocorresse tudo era perdoável, caso contrário, se o
individuo pertencesse a um nível de menos destaque toda e qualquer atitude sua era
reprovada e considerada imoral e de pouca vergonha.
Quando os Naturalistas resolveram colocar no papel a podridão de tais
cidadãos eles foram extremamente criticados e repudiados pela sociedade que eles
denunciavam. Isso ao contrário do que muitos pensavam não ofuscou o brilho da
mente de tais autores e não demorou muito para que eles lançassem mão de mais
denúncias através de sua escrita criando personagens que passaram a representar
dignamente os tipos que circulavam na sociedade em questão. Assim o naturalismo
ficou conhecido como o movimento que melhor representou a realidade em seu
tempo, se contrapondo totalmente aos românticos e suas características. Vejamos o
que nos diz Nelson Werneck Sodré (1965: 73):
O naturalismo propunha-se a ir de encontro à realidade, enfrentála, mostrar os problemas que ela apresentava, discutí-los,
dissecá-los. Porque em suma, havia chegado o momento em que
era impossível conservá-los escondidos, mantidos em segundo
plano, sonegados. Saltando do plano da realidade, eles buscavam
invadir o da literatura. O naturalismo apresentou-se como a porta
larga, hospitaleira e fecunda, por onde poderiam penetrar. A
falsidade dessa porta, entretanto, só ficou demonstrada adiante.
A
atmosfera
do
contexto
histórico
em
que
os
movimentos
Realista/Naturalista surgem é a mesma aqui no Brasil, nossos autores sofreram as
mesmas castrações que os europeus, apesar de alguns terem sido muito mais,
visados do que outros, por exemplo, Machado de Assis é conhecido como o mestre
27
do Realismo brasileiro, mas ele não foi tão criticado como foram os autores
Naturalista.
Os autores Naturalistas causaram muito mais incômodos na sociedade
brasileira do que os Realistas. Entre os Realistas se destacavam Machado de Assis,
sendo que o mestre Machado, possuía em seu currículo uma fase romântica, talvez
por isso não tenha sido alvo das críticas impiedosas da sociedade moralista
brasileira.
Autores como: Aluísio de Azevedo, Júlio Ribeiro, Raul Pompéia e Adolfo
Caminha, foram acusados por muitos como infratores da moral e dos bons
costumes. Suas obras eram consideradas como leituras proibidas e libidinosas e
degeneradora da boa conduta. Assim, foi o cenário da sociedade do século XIX no
Brasil. Trataremos o assunto com mais ênfase no capítulo seguinte.
1.3
Moralidade versus Sexualidade
O nosso ancestral mais antigo em ordem direta tratando-se da
sexualidade foram os babilônios, eles tinham orgulho de sua cultura, duas fontes
tornaram a Babilônia extremamente familiar para nós, o antigo testamento que a
considerava: cidade maldita prostituída, e o historiador grego Heródoto. (CATONNÉ,
2001: 27-8)
Portanto o tema moral é muito antigo, tão antigo quanto às primeiras
civilizações, não se sabe se foram os gregos os primeiros a tratarem o assunto,
cujos deuses se embriagavam e tomavam a mulher do próximo, possuíam todos os
pecados dos homens, e cujas tragédias difundiam os problemas mais graves e
complexos, entre eles.
Ao falarmos em moral devemos nos lembrar que o significado da referida
palavra é amplo, pois ela possui uma carga semântica que traz em si diversos
sentidos, logo tal palavra por ser polissêmica é aplicada em várias situações do
nosso cotidiano. É comum o uso da seguinte expressão: “fulano é um homem sem
moral, ele se deixou gritar por sicrano”. Algumas pessoas atribuem o sentido desse
vocábulo a autoridade, sucesso, respeito entre outros, mas o fato é que moral é um
conjunto de regras criadas e aceitas (não obrigatória) por um grupo ou sociedade.
E quando alguém quebra esse conjunto de regras ele é chamado de
imoral, logo o conceito de moral ainda é muito estudado, mas pouco praticado em
28
nosso cotidiano, o significado fica mais para os exemplos que citamos acima.
Vejamos a definição que Otaviano Pereira (1998: 11-2) nos dar a respeito de tal
termo:
Moral é tudo aquilo (ato, comportamento fato, acontecimento) que
realiza o homem que o enraíza em si mesmo e, por ele e para ele,
ganha sentido humano.
Na rabeira desta definição a recíproca também é verdadeira:
"Imoral é tudo aquilo que desrealiza o homem”. Vale dizer, tudo
aquilo que o desenraiza, o desencrava de si mesmo, no marco de
sua liberdade responsável: Tudo o que é sempre passível de mau
uso ou distorção de seu projeto humano rumo à felicidade.
Dentro do contexto que iremos analisar fiquemos com tal definição, pois o
que nos interessa é falarmos de um conjunto de regras que dizem como o deveria
ser as práticas e comportamentos que regem as atitudes de uma determinada
sociedade localizada em determinado período.
Tendo como base que moral é uma espécie de senso, e a mesma tem
como responsabilidade manter as estruturas comportamentais de uma sociedade,
podemos assim dizer, que moral é tudo aquilo que tem como objetivo fazer com que
as pessoas sigam um modelo. E assim passem a viver em torno do mesmo, tendo
como meta segui-lo para assim poder alcançar um bem comum a todos.
O conceito de moral não se reduz apenas ao moralismo, como também
não se restringe apenas a repressão sexual:
Mas a moral não se reduz apenas ao moralismo, assim como não
se restringe à vida sexual, à repressão sexual do desejo. É claro
que a vida sexual guarda profundas relações com a moral, mas
trata-se apenas de uma de suas dimensões. Nessa mesma linha de
enfoque, imoral não significa necessariamente obsceno, como
somos levados a entender, fruto de uma herança negativa dos
códigos de conduta, travestida nos valores educacionais, familiares,
religiosos, militares, etc. (PEREIRA, 1998: 15-6)
O uso dessa palavra se estende ao comportamento e as atitudes dos
indivíduos de toda e qualquer sociedade, pois dentro de todas as sociedades temos
indivíduos que são morais, imorais e amorais. Sendo que moral é aquele que
cumpre com as regras estabelecidas pela sociedade em questão, os imorais são os
que não as cumprem e os amorais são aqueles que as desconhecem.
29
Portanto, considerar uma atitude moral ou imoral dependerá de diversos
fatores, entre eles o fator histórico, pois as normas e regras sociais evoluem
bastante, e se modificam ao longo do tempo. Assim, uma atitude que no início do
século XX era considerada imoral, hoje já não é mais, por exemplo, o uso de
vestimentas curtas para a década de 20, era completamente inaceitável, hoje é
completamente comum.
A sexualidade foi e ainda é um dos pontos mais combatidos pela moral,
desde que a Igreja Católica se apoderou do uso dos costumes humanos o sexo
passou a ser visto como algo feio, sujo e pecaminoso. Logo aqueles que o
praticavam sem o intuito de procriação eram considerados libertinos e devassos. A
mulher por sua vez era vista como o ser que podia tirar um homem de seu rumo. Ela
foi considerada durante o período da Idade Média a representação do diabo na
Terra. (ALEXANDRIA, 1993: 35)
Mas a moral perseguia apenas uma camada da sociedade, porque os
homens tinham sua primeira relação sexual com uma prostituta, e pior do que a
prostituta é a bela da tarde, aquela mulher casada e que trai o marido, que nem é
puta nem dama. Mas era muito comum no século XIX, os padres defendiam as
prostitutas como forma de preservação das donzelas, pois era inadmissível que um
homem chegasse até o casamento virgem, sem conhecer o pecado da carne. Mas a
mulher não, tinha que se manter pura para sua noite de núpcias, isso é as que
pertenciam à classe da nobreza, pois as das demais classes eram assediadas e
tentadas pelos nobres.
O século XIX ficou extremamente conhecido como o século da repressão,
pois o mesmo foi detentor de uma falsa moral e uso de valores que não condiziam
em nada com a sua sociedade, não só na Europa, mas também aqui no Brasil
diversos valores já estavam decadentes. Um deles era o valor matrimonial, este
estava falido, o adultério perdurava em todas as famílias, os casamentos eram
realizados por influências e conveniências, não mais por amor como pregava o ideal
burguês.
A moral de uma época é responsável pelo controle social, ela abrange os
demais setores da sociedade. Cada indivíduo pode criar sua própria moral,
constituindo assim, sua ética, mas isso não é tão fácil, tampouco é aceitável pelos
grupos que compõem a sociedade em questão. Devemos lembrar que um costume
para ser aceito e torna-se norma ou lei ele precisa ser aceito pela comunidade.
30
Nenhum costume nasceu do nada, ele surge a partir de uma atitude que
será considerada por muitos a mais sensata e a partir daí ela tornar-se norma, e
caso alguns indivíduos queiram quebrá-la passará a ser lei e assim todos têm de
cumpri-la. Vejamos o exemplo que Otaviano Pereira (1998: 21) nos dá:
Antigamente, quando ainda se trafegava com carros de bois pelas
cidades, alguém iniciou o costume de usar sebo nos eixos para
neutralizar o ruído estridente das rodas. Com o tempo, o que era
costume de um ou mais puxadores de bois passou a virar norma
(não obrigatória) para a maioria. Entendiam, para o bem da
comunidade, a pertinência dessa prática. Ainda com o passar do
tempo, quem não lubrificava os carros para trafegar em silêncio
pela cidade começou a receber, com certeza, reclamações dos
moradores. Conclusão: Ainda hoje, no Fórum de Bragança Paulista,
está em vigor uma lei que obriga os puxadores de carros de bois a
untar os eixos com sebo, a fim de não perturbar o silêncio da
comunidade. Dessa forma, por várias décadas, o descumprimento
daquilo que foi acordado juridicamente entre os indivíduos e a
comunidade implicava sanções. Uma sanção é sempre a
recompensa ou o castigo em face de um pedido, uma advertência
ou uma lei. No caso do descumprimento da lei, ela é a punição (não
apenas de "efeito moral", como o castigo); punição legalizada.
Assim, na ordem hierárquica, um costume pode vir a ser uma
norma e uma norma virar Lei.
As questões de moral mudam com o passar dos anos, pois as normas de
comportamento são flexíveis e mudam à medida que as pessoas evoluem
socialmente. As normas sociais não podem ficar congeladas como se fossem
produtos a serem consumidos, elas realmente necessitam de tal versatilidade. Como
citamos anteriormente os pontos da moral que menos se modificam são os
costumes que estão ligados à questão sexual.
Michel Foucault (2003), ao tratar da história da sexualidade expõe tal
ponto de uma forma clara e direta, mostrando que nós ainda estamos muito ligados
aos resquícios da época Vitoriana, herança que a Rainha Vitória nos deixou com
seus valores clérigos e dogmáticos.
Falar de sexualidade não é falar sobre sexo ou pornografia – os três
pontos se distanciam notoriamente. O primeiro procura entender as questões que
envolvem o elemento sexo e quais são os pontos que o desconhecimento de tal
atributo pode causar nos indivíduos de uma dada sociedade, grupo ou ser
individualmente.
31
Sexo é algo que está relacionado ao ato em si e não aos acontecimentos
que a prática ou ausência de tal ato possa causar, há um envolvimento das
questões de gênero e não suas manifestações. Já a pornografia por sua vez é tudo
aquilo que extrapola os pontos que estão ligados ao sexo e ao erotismo. Aquilo que
deixa de ser erótico torna-se pornográfico. Vejamos a citação abaixo, de Lúcia
Castello Branco (1983: 72):
Uma das distinções mais corriqueiras que se fazem entre os dois
fenômenos refere-se ao teor "nobre" e "grandioso" do erotismo, em
oposição ao caráter "grosseiro" e "vulgar" da pornografia. O que
confere o grau de nobreza ao erotismo é, para os defensores dessa
distinção, o fato de ele não se vincular diretamente à sexualidade,
enquanto a pornografia exibiria e exploraria incansavelmente esse
aspecto.
Essas definições desembocam, invariavelmente, em afirmativas do
tipo pornografia: sexo explícito: erotismo: sexo implícito (a
pornografia está para o sexo explícito assim como o erotismo está
para o sexo implícito) e estão de tal maneira cristalizadas em nossa
sociedade que são freqüentes os apelos comerciais utilizados em
todo material pornográfico, sobretudo em filmes, explorando este
aspecto: "cenas de sexo explícito".
O erotismo e a pornografia são aspectos que surgem dentro do
movimento Naturalista, para os puritanos as cenas eróticas nos romances, eram
consideradas pornográficas, talvez pela pouca distinção que há entre os dois pontos.
Mas o que sabemos é que, a sexualidade e a moral sempre tiveram grandes
embates, principalmente no século XIX período em que a França teve o seu grande
florescimento literário e cientifico.
Quando Gustave Courbert fez sua exposição em Paris, denominada de
Lhe Realism, todos ficaram chocados com suas telas, por fazer a exposição de
corpos nus. Logo em seguida surgiu Gustave Flaubert com sua Madame Bovary,
obra que causou enorme repúdio entre os puritanos de plantão, por tratar de uma
personagem que cometia adultério.
A obra de Flaubert foi considerada insana e imunda, um ataque ao pudor
e aos bons costumes da sociedade da época. Dez anos depois surgiu Emile Zola
com o romance Thérèse Raquin, numa perspectiva diferente da Realista, surgia
então o movimento Naturalista na Europa. Explorando o quê até então todos faziam
questão de deixar adormecido, mas não só Zola como Flaubert fez questão de expor
tais assuntos. (SODRÉ, 1965)
32
Os romancistas franceses passaram a influenciar um mundo todo, criaram
e tiveram grandes seguidores, entre eles o português Eça de Queiroz que com o seu
Crime do Padre Amaro, chocou toda a sociedade lisboeta. Não demorou muito para
que o Brasil também fosse um terreno fértil das idéias francesas e portuguesas de
tais movimentos literários.
Assim temos um embate filosófico e político, porque a questão do pudor
era uma questão política, pois os nobres de todas as sociedades pediam punições
para os infratores da moral e dos bons costumes, enquanto os Românticos
questionavam a nova expressão literária. Os livros dos autores Realistas foram
cassados das prateleiras e eram repudiados por educadores e chefes familiares.
Flaubert. Com certeza, poucas vezes evidenciou-se na literatura, de
forma tão límpida, um inquietante drama social e moral. Um caso
de adultério de uma mulher (adultério de homem não contava).
Trata-se do romance Madame Bovary, moeurs de provtnce (Mme.
Bovary, costumes de província, 1857), uma obra de reação antiromântica que chocou a consciência burguesa da época. Emma
Bovary, no caso em foco, educada para servir aos ideais de um
falso romantismo, casada com um médico estúpido, incompetente,
vê-se seduzida por um dos "conquistadores profissionais" de salão
da época e inicia um processo de decadência pessoal, inclusive
financeira, até o suicídio. (PEREIRA, 1998: 52-3)
Como podemos notar na descrição acima o ideal burguês estava ferido
devido a críticas e o posicionamento de tais artistas em relação ao casamento,
epicentro do ideal burguês, a instituição matrimonial estava abalada, pois a mesma
já estava sendo denunciada.
O século XIX foi responsável por grandes avanços na literatura e nas
ciências sociais em geral, mas este período foi também marcado por grandes
repressões e acontecimentos que mancharam toda a sociedade da época. De um
lado ficavam os defensores da moral e dos bons costumes, do outro, filósofos,
cientista e literatos que defendiam as novas teorias, pregando que não havia mais
lugar para uma moral decadente e hipócrita, exigiam portando uma moral atuante.
Os ensaios e livros publicados acerca de assuntos cientificistas, causaram
grande repulsa na população ocidental, a Igreja se posicionou contra toda e
qualquer manifestação que não fosse religiosa, mesmo que, suas práticas de
catolicismo estivessem aquém da realidade “desejada” por eles.
33
No período do século XIX a sexualidade das pessoas ficou totalmente
reduzida, era “proibido” falar ou praticar qualquer ato sexual, só existia um local que
as pessoas sabiam que havia práticas sexuais, o quarto dos pais, (FOUCAULT,
2003:10) local no qual era concebida toda a prole familiar. Nesse período o sexo era
praticado apenas como forma de procriação, se fosse concebido com outros intuitos
que não fossem e de procriar era considerado nojento e perverso. Vejamos o que
nos diz Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapeiz (1984: 111-12):
Como, por exemplo, se espicharmos o olho aleatoriamente para
janeiro de 1857, encontraremos o promotor Er-nest Pinard
preocupado em acusar Gustave Flaubert de imoral, por conta do
romance Madame Bovary. Em agosto do mesmo ano, o ativo
promotor francês volta à cena, agora desencadeando outro
processo, este contra Baudelaire e seu As flores do mal, que
resulta em dolorosa condenação nos tribunais. Além da multa em
dinheiro por atentar contra a "moral e os bons costumes", o texto
de Baudelaire é censurado em alguns versos e seis poemas são
cortados da obra. Mais notável nessa estória toda é que a
sentença, tão rigorosa, só foi reformada judicialmente em 1949,
portanto, noventa e dois anos depois!
A Igreja Católica foi a grande responsável pela repressão sexual existente
ao longo dos séculos. Ela criou normas e determinou punições contra a prática
sexual. Isso provocou, nos diversos setores das sociedades, restrições contra a
manifestação do prazer carnal, o homem ficava limitado a prática de um sexo sem
prazer e com objetivos de apenas proliferar sua espécie não de realização sexual, o
ser que se entregava aos prazeres sexuais estava se desviando de sua salvação
espiritual, e não, demorou muito para que o prazer do sexo fosse considerado um
dos pecados capitais. (ALEXANDRIAN, 1993: 36)
A época vitoriana determinou punições contra os infratores da moral e dos
bons costumes, pensando assim, que iria reprimir e controlar todos sexualmente,
mas os impositores de tal moral falharam, porque eros encontrava forças para se
manifestar através do discurso cientifico e da denúncia social, através de romances
e tratados médicos acerca das perturbações sexuais.
Na realidade foi através dos muitos discursos sobre as perversões sexuais
que a moral vitoriana fortificou sua moral e seu discurso. Pois o cientificismo da
época não serviu apenas para impedir a repressão sexual, ele também foi
34
responsável por grande parte da repressão sexual. O discurso médico foi também
responsável por uma interdição da sexualidade do século XIX.
Os moralistas se apoiavam no discurso médico para fortificarem o seu, é
neste período que o Dr. Krafft-Ebing inventa que a masturbação era responsável por
todas as formas de degenerescência sexual. (BRANCO, 1983: 88)
Nesse momento atos classificados como sadismo, masoquismo ou
homossexualismo eram extremamente perseguidos e muitas vezes considerados
crimes contra a moral. Sabemos que até os dias atuais as questões moralistas ainda
estão cravadas em muitos setores de nossa sociedade, isso porque quando os
primeiros escritos a respeito das perversões sexuais surgiram houve uma divulgação
enorme através da leitura e principalmente da oralidade.
Como já discutimos acerca de moral sabemos que quando um costume é
absolvido por uma camada da sociedade ele torna-se norma e muitas vezes lei,
assim foi com as divulgações de tais perversões. Nessa época surge o romance
naturalista com Emile Zola, tais romances abordavam uma temática cientificista os
personagens criados pelos escritores eram detentores de perversões que ficaram
conhecidos como personagens patológicos e os romances chamados romance
experimental.
Os discursos acerca da sexualidade surgiram numa época em que
predominava a imposição da época vitoriana, época repressiva e perseguidora dos
infratores da moral, quando tais discursos surgem, sejam eles em forma de
romance, ensaio e artigos, eles são cassados e destruídos. Mas a procura pelo
conhecimento de tais perversões fez com que a moral perdesse terreno no campo
da repressão, pois a partir do momento que as pessoas buscavam entender tais
manifestações elas tiveram contato com uma forma de prazer diferenciada.
No momento que os indivíduos que formavam a nova camada da
sociedade entram em contato com tais leituras eles passam a apreciar uma nova
forma de prazer. Estudantes e jovens distintos são tentados pela nova manifestação
de leitura, dessa forma a sexualidade encontra uma forma de burlar as leis da moral
dominante.
Dizer que a moral com sua repressão foi modificada, isso é um fato, mas
não podemos esquecer que a repressão caminha conosco todos os dias, dentro da
literatura, encontramos fatos e mais fatos que, nos fazem refletir acerca de como
nossa sociedade se estrutura e se evidencia em relação aos costumes. Atos
35
repressivos que ocorreram no século XIX ainda refletem nos dias atuais, vejamos,
por exemplo, o fato de alguns autores terem ficados conhecidos como perversores
de uma sociedade e mau exemplo para a moral dos bons costumes. Vejamos o que
nos diz Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapeiz (1984: 134):
Retomando a questão inicial, veremos que a moral não é então (ou
pelo menos não tem sido nas nossas sociedades atuais) apenas
uma lei dos costumes, mas sim uma imposição autoritária de
rígidas formas de comportamento. Não fosse assim, como
entendermos a censura? Afinal, ela fala em nome da moral e dos
bons costumes, salvaguardando os interesses das camadas
privilegiadas da sociedade, e contribuindo sempre para que a
balança pese do lado mais forte.
Essas medidas totalitárias pretendem aniquilar toda consciência
crítica, preparando o ser humano para a submissão, e sobretudo
para a grande renúncia exigida pelas sociedades que se norteiam
por essa estratégia de moralização. Aí reside, aliás, um exercício
de poder bastante eficaz. Penetrando na vida cotidiana, ele se
exerce sobretudo nos corpos dos cidadãos, tornando-os úteis e
produtivos, para viver de maneira autovigilante e persecutória. E a
moral, devidamente interiorizada, acaba sendo considerada "uma
coisa natural", a regra passa a ser "o normal", e o proibido é
instaurado para organizar as perversões. Tudo no seu devido lugar.
A instauração de uma moral vigilante, era vista como algo imprescindível
para o controle dos indivíduos pertencentes à sociedade do século XIX. Eles
deveriam assim assumir uma postura condizente com aquilo que as camadas sociais
pregavam. Isto era, na verdade uma forma de controlar o comportamento de cada
um. Os moralistas tinham uma preocupação, controlar o comportamento desses
indivíduos, pois logo que fosse estabelecido o controle dos corpos dos cidadãos,
seus atos estariam controlados e, portanto dentro de uma normalização.
Ao analisarmos um livro didático de literatura de Ensino Médio com a
incumbência de encontrarmos na unidade dedicada aos movimentos Realismo e
Naturalismo, recortes, de leitura de livros como, A Carne de Júlio Ribeiro, O Bom
Crioulo e A Normalista, ambos de Adolfo Caminha, Luzia – Homem de Domingos
Olimpio entre outros naturalistas, teremos uma grande decepção. Isso é fruto de
uma moral repressivo, pois até hoje tais obras são consideradas como um forte
apelo sexual.
Se hoje tais obras ainda são repudiadas por uma boa parte da massa
educacional, imagine como era há mais de cem anos atrás. Michel Foucault (2003:
10-1) em seu livro História da sexualidade aborda uma discussão muito intrigante
36
quando o assunto é repressão sexual segundo Focault, teríamos suportado o regime
Vitoriano até os dias de hoje. Porque o século XVII foi um período em que as
pessoas não possuíam medo de usarem em seus discursos o peso e o valor das
palavras que compõe a sexualidade, mas os séculos XVIII e XIX foram
completamente contrários ao século anterior. FOUCAULT,(2003: 111.)
Estaríamos liberados desses dois longos séculos onde a história da
sexualidade devia ser lida, inicialmente, como a crônica de uma
crescente repressão? Muito pouco, dizem-nos ainda. Talvez por
Freud. Porém com que circunspecção, com que prudência médica,
com que garantia científica de inocuidade, e com quanta precaução,.
para tudo manter sem receio de "transbordamento", no mais seguro
e mais discreto espaço entre divã e discurso: ainda um murmúrio
lucrativo em cima de um leito. E poderia ser de outra forma?
Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o
modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só
se pode liberar a um preço considerável: seria necessário nada
menos que uma transgressão das leis, uma suspensão das
interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao
real, e toda uma nova economia dos mecanismos do poder; pois a
menor eclosão de verdade é condicionada politicamente.
Durante o século XIX, a sexualidade esteve diretamente ligada ao poder e
ao conhecimento, a classe dominante, como detentora dos dois, foi responsável por
toda repressão sexual. Sua instauração visava preservar a moral e os bons
costumes. A palavra prazer foi suprimida do vocabulário dos membros da sociedade
do século em questão, e para que tal palavra seja restituída às sociedades atuais, é
necessário, que as leis sejam quebradas, e as interdições seriam suprimidas de
nosso cotidiano.
Muitos fatos ocorreram nos dois séculos seguintes, as teorias acerca da
sexualidade com Freud, o determinismo de Augusto Comte e a teoria da evolução,
de Charles Darwin. Muitos escritores Realistas e Naturalistas mudaram o contexto
social do século XIX, mas o pudor ainda prevaleceu sobre nós. Durante anos a
nossa sexualidade ficou restrita ao quarto de nossos pais e o nosso discurso passou
a ser algo clandestino e proibido.
37
2. LEITURAS INTERDITADAS, SOCIEDADE DOMESTICADA
“A aversão do século XIX ao realismo é a fúria de Calibã ao reconhecer
sua imagem no espelho”.
(Oscar Wilde)
Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais
para escrever (como, por exemplo, fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da
Antiguidade estavam repletas de textos gravados em pequenas tábuas de barro
cozido. Eram os primeiros "livros", depois progressivamente modificados até
chegarem a ser feitos — em grandes tiragens — em papel impresso,
mecanicamente, proporcionando facilidade de leitura e transporte. Com eles, tornouse possível, em todas as épocas, transmitir fatos, acontecimentos históricos,
descobertas, tratados, códigos ou apenas entretenimento. (ABRIL, 1972:28)
Inicialmente a leitura não era vista como um meio de persuasão, era tida
mais como uma necessidade do que mesmo um instrumento de transformação. Mas
logo os livros e suas leituras foram vistos como uma arma contra os líderes de
muitos sistemas, como, por exemplo, os capitalistas, que viam que as leituras das
idéias de Marx poderiam trazer-lhes grandes problemas, fazendo com que a massa
enxergasse aquilo que estava oculto.
Segundo Chartier (Apud Revista Nova Escola 2007), a leitura faz parte do
cotidiano das pessoas desde quando as sociedades se organizaram e passaram a
viver em comunidade, mas foi nos séculos XIX e XX que ela mais foi difundida. Foi o
momento no qual mais se produziu livros, pois as sociedades das épocas passaram
a ler muito mais do que as anteriores.
Mas, em nossa sociedade, publicar um livro naquela época não queria
dizer que poderia circular livremente: havia algumas ressalvas quanto ao seu
conteúdo. No Brasil do século XIX, algumas obras eram publicadas, mas não eram
lidas abertamente – lembremos o caso da obra de Júlio Ribeiro, A Carne, que
chegou a ser apreendida pelo juizado de menores de São Paulo, em 1962. Ela foi
tida como um dos “livros considerados pornográficos e perigosos à formação moral
do adolescente”.
38
Além do fato da apreensão, outro que nos chama a atenção naquele
mesmo ano, é o curioso protesto feito pela presidente em exercício da União
Brasileira de Escritores, endereçada ao juiz da Vara Privativa de Menores da
Comarca da Capital do Estado de São Paulo. Há no discurso da presidente a
presença de uma forma repressiva nos próprios termos do protesto.
Havia uma grande resistência contra as obras Naturalistas, esta era tão
grande que a própria presidente, ao protestar contra a apreensão do livro, defende
arbitrariamente na carta, a necessidade de precaução em função dos riscos
representados por uma leitura “desorientada”. Há no interior do documento uma face
conservadora, onde se manifesta um moralismo bastante acirrado. (BULHÕES,
2003: 17). Cumpre reproduzir o documento para que possamos ter uma
interpretação mais abrangente da carta:
Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Aldo de Assis Dias,
Meretíssimo Juiz de Direito Titular da Vara Privativa de Menores da
Comarca da
Capital do Estado de São Paulo
M. Juiz:
Noticiam os jornais que o Juizado de Menores procedeu à
apreensão de livros considerados pornográficos e perigosos à
formação moral do adolescente, entre os quais o romance A Carne,
de Júlio Ribeiro.
Não pode a União Brasileira de Escritores deixar passar sem o
seu protesto a decisão de apreender um livro que, editado há 74 anos,
jamais deixou de ser considerado um marco dum dos nossos mais
fecundos períodos literários, o do naturalismo. Ao lado de Aluísio
Azevedo, Inglês de Sousa, Adolfo Caminha e outros, Júlio Ribeiro com
o seu romance, reflete não a expressão de uma personalidade
doentia, particularmente interessada em chocar a sociedade e em darse em espetáculo de desconsideração dos valores morais vigente;
mas representa a atitude estética brasileira diante da concepção
européia (Emile Zola, Eça de Queiroz) do romance como experimento
tanto sociológico como psico-patológico em relação e sob a influência
das conquistas científicas da última metade do século XIX.
Merece, pois, maior consideração um romancista que está ao
lado de tantas expressões elevadas da nossa e da literatura européia,
embora se reconheça que a leitura de A Carne pelo adolescente
desavisado possa constituir um perigo para a sua formação pelo
realismo cru de muitas de suas cenas. Júlio Ribeiro foi, é e será
discutido sempre. Alguns críticos e historiadores literários consideramno menos, e José Veríssimo disse do seu romance que "é um parto
monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo" e Álvaro Lins, em
nossos dias, considera-o um autor fora da literatura; entretanto, Tito
Lívio de Castro afirma" que o naturalismo estava vitorioso, e a vitória
era assegurada pela A Carne, e há pouco tempo, quando da sua
39
posse na Academia Brasileira de Letras, Manuel Bandeira disse dela
que é um livro que merece ficar ao lado de tantos outros do
naturalismo e do Romantismo.
Trata-se, M. Juiz, de um livro cujo valor pode ser discutido
pelos especialistas em nossa literatura. Não, porém, de uma obra que
possa estar sujeita à apreensão pura e simples, depois de ter sido
livre o seu curso por mais de 70 anos e de ter estado sob os olhos de
várias gerações, tão lido quanto La Faute de l'Abbé Moiret, O Crime
do Padre Amaro, O Cortiço e A Normalista; senão mais lido.
Sem dúvida cabe ao Juizado de Menores preservar a
adolescência de obras prejudiciais à formação do seu caráter,
principalmente em razão de os jovens geralmente as lerem sem
serem guiados por seus mestres de literatura. É preciso porém
considerar que a apreensão pura e simples dessas obras, sem a consulta aos especialistas e sem que se dê ao público explicações claras
sobre o significado dessa defesa da adolescência, leva o leitor
comum, o homem não prevenido pelo estudo literário, a julgá-las
deletérias, nocivas, sem expressão artística, e a equipará-las à triste
literatura obscena e pornográfica vendidas às escondidas, como são
vendidos os tóxicos.
Protesta pois a União Brasileira de Escritores contra a
apreensão abrupta e sem explicações, senão a de que se trata de
obra obscena, de um livro que figura – e destacadamente, embora as
opiniões divergentes sobre o valor de sua mensagem, não sobre o
seu valor literário - na nossa história literária.
Agradecendo a Vossa Excelência pela sua atenção, valemonos do ensejo para expressar-lhe a nossa distinta consideração.
Atenciosamente,
Helena Silveira,
Presidente em exercício.
O discurso da presidente demonstra que o romance de Júlio Ribeiro,
assim como a leitura de tantos outros, deveria ser autorizada ou acompanhada por
um especialista em Literatura para que o jovem não viesse a fazer uma leitura
“desorientada”. Logo eles a fariam guiados por seus mestres de Literatura.
O romance Naturalista possui uma capacidade, em especial o de Júlio
Ribeiro, de conjugar um dos dilemas com relação à utilização da literatura em sua
função educativa. Isso porque o sistema escolar enfrentou – e parece continuar
enfrentando – o desconforto da presença de obras que, tidas como de fundamental
importância à formação humanística, pertencentes ao cânone da literatura universal
ou, mas especificamente, ao cânone da literatura brasileira, expõem, em sua
40
estrutura, um forte componente sexual, que atua como algo excitante a imaginação
erótica de seus leitores. (BULHÕES, 2003: 19-20)
A carta demonstra que a presidente possui consciência da importância da
obra de Júlio Ribeiro para a formação do cânone da literatura brasileira, mas, por
outro lado, também assume que a obra pode ser imprópria para alguns leitores. Isso
nos mostra as raízes do moralismo do século XIX que se estenderam até nossos
dias.
Não é à toa que atualmente ainda se encontram ausentes da maioria dos
livros didáticos de Literatura de Ensino Médio, obras literárias como a de Júlio
Ribeiro, ou que possuam, em suas páginas, conteúdo erótico que desperte a
imaginação de nossos leitores incautos.
2.1. Repudiados e massacrados, mas canônicos.
Ao observarmos um livro didático de Literatura do Ensino Médio
poderemos notar que obras como as de Adolfo Caminha, A Normalista e O Bom
Crioulo, assim como A Carne, de Júlio Ribeiro, Luzia – Homem, de Domingos
Olímpio e O Mulato, de Aluísio Azevedo estão ausentes de suas páginas.
Ao longo dos anos, obras como as citadas acima foram extremamente
combatidas pela moral. Elas eram proibidas, no século XIX, nas repartições
escolares, pois eram tidas como frutos da imoralidade, já que despertariam naqueles
que as liam desejos inadequados a um cidadão de “boa conduta”. (BULHÕES, 2003:
42-3)
Quando O Mulato, de Aluísio de Azevedo foi publicado, muitos se
incomodaram, com a obra. O livro foi aceito como inaugurador do Naturalismo,
mesmo carecendo de algumas caracterizações desse movimento. Essa obra ainda
preservava alguns aspectos românticos.
Segundo Sodré (1965: 170), o romance O Mulato representou a vitória da
nova escola, tendo, entretanto, apenas disfarçado com cenas realistas o seu
romantismo. Para Sodré, o romantismo presente em O Mulato é emblema de que o
Naturalismo foi inaugurado no Brasil apenas como modismo, sem que a estética
dessa escola se efetivasse plenamente nas obras, ou ainda como escreveu Araripe
Júnior: Ali há páginas tão suaves, tão doces, tão cheias da claridade rosicler,
41
alencarina, que sou levado a crer que o mergulho dado pelo poeta nas águas
encapeladas do Estige da nova escola foi apenas à superfície (ARARIPE Jr. Apud
SODRÉ, 1965: 176).
O hibridismo de O Mulato, característica que suavizou o impacto de sua
recepção, talvez tenha propiciado sua adoção como obra inauguradora e canônica
do Naturalismo.
Caminha teve suas idéias repelidas por ter tratado de um assunto dos
mais difíceis: o homossexualismo. Fez girar em torno desse tema central uma série
de aspectos laterais, como a denúncia dos maus tratos na Marinha, o cotidiano da
sexualidade dos marujos. Sabendo que Adolfo Caminha fora expulso da Marinha, o
romance significou um acerto de contas. Os navios foram representados como
espaços imorais, o que demonstra o aspecto moralista do Naturalismo.
[...] Herculano foi surpreendido, por outro marinheiro, a praticar uma
ação feia e deprimente do caráter humano. Tinham-no encontrado
sozinho, junto à amurada, em pé, a mexer com o braço numa
posição torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos
atentados.
O outro, um mulatinho esperto, que tinha o hábito de andar
espiando, à noite, o que faziam os companheiros, precipitou-se a
chamar o Sant´Ana, e, riscando um fósforo, aproximaram-se ambos
"para examinar"... No convés brilhava a nódoa de um escarro ainda
fresco: Herculano acabava de cometer um verdadeiro crime não
previsto nos códigos, um crime de lesa-natureza, derramando
inutilmente no convés seco e estéril, a seiva geradora do homem.
(CAMINHA, 1998: 13)
Os dois marinheiros, Herculano e Sant´Ana, do excerto acima, são, na
progressão da narrativa, punidos por tal episódio. O primeiro foi flagrado
masturbando-se, e, ao ter sido surpreendido pelo companheiro, acabaram se
desentendendo, os dois foram castigados com chibatadas. A narrativa de Caminha,
mesmo possuindo um tom moralista, é repudiada pelas cenas de sexo. Somente
depois de muito tempo e de esforços para uma revisão crítica, Adolfo Caminha
ganha espaço entre os literatos Naturalistas, mas não obteve sucesso de público.
(SODRÉ, 1965: 192)
Júlio Ribeiro produziu A Carne, uma das obras primas da literatura
Naturalista. O movimento vivia o seu declínio na época da publicação deste livro. Ele
foi um dos autores que mais sofreram com o repúdio e a detração. Seu trabalho foi
tão importante para o Naturalismo brasileiro como foi a produção de Emile Zola para
42
o Europeu, justamente por ele ter sido o primeiro a levar as últimas conseqüências
as figurações do homem como instintivo e animalesco. (BULHÕES, 2003: 52-3)
2.2. O Cânone.
O que seria um cânone? Cânone é um conjunto de obras literárias que, ao
longo dos anos, por serem consideradas essenciais para entendermos um
determinado assunto, a leitura se tornou necessária. Como hoje é praticamente
impossível que um ser humano consiga atender, em leitura, à demanda de
publicações, a escolha de tais obras é feita por críticos, grupos sociais dominantes
ou instituições escolares. Não há critérios claros na escolha do cânone. (BLOOM,
2001: 27-8)
Segundo Harold Bloom (2001: 25-6), o cânone é uma imposição de toda e
qualquer instituição. Assim, acontece com as obras que compõem os movimentos
literários. Considerar uma obra canônica e outra não, muitas vezes, acaba sendo
uma imposição elitista. Para ele o cânone é construído por escolhas instituicionais –
universidades, grupos sociais, críticos literários etc. Sendo assim, a escolha do
cânone seria algo que estaria mais relacionado com a política
do que com a
estética. Muitos deles são impostos, não escolhidos por seu valor artístico. Isso
acontece devido a coloboração dada pelo cânone para a formação moral e
intelectual de cada leitor.
Dentro da perpectiva que abordamos, os autores que aparecem
com
recorrência nos livros didáticos da disciplina são canônicos. Isso nos leva a crer que
o autor do livro didático imagina que assim esteja facilitando a leitura e o
entendimento do texto, pois já que a obra é canônica, em tese, grande parte dos
estudantes teriam acesso às referidas obras. Mas, por que não trabalhar com
autores como Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro e Domingos Olimpio? Seria pelo
conteúdo erótico demonstrado em suas obras, ou pelo fato de tais obras não terem
passado pelo crivo da sociedade ao longo dos anos?
Quando uma obra recebe inúmeras críticas negativas à respeito de sua
temática, ela está, na realidade, sendo difundida. Já que tanto positivamente como
negativamente a obra passaria a fazer parte de uma malha discussiva, garantindo a
difusão de suas temáticas no meio social. Tenhamos como exemplo A Carne, de
43
Júlio Ribeiro que recebeu inúmeras críticas negativas em seu tempo, tais críticas só
contribuiram para uma maior visibilidade da obra por um maior periodo de tempo,
despertando o desejo adormecido de muitos leitores em conhecê-la.
O desejo de tornar-se canônico
é
tão antigo quanto a antiguidade
clássica. Tal feito é algo muito antigo: fazer que um poema, uma peça teatral sejam
lidos e eternizados é o anseio de todo e qualquer escritor, mas poucos conseguem;
alguns conseguem pelo viés de uma escrita bem trabalhada, outros pelas posições
que ostentam dentro de uma determinada sociedade. (BLOOM, 2001: 26-7)
Temos obras em nossa literatura que tornaram-se canônicas pelo
radicalismo que provocaram na época e não pelo seu valor literário. Algumas
causaram pudor e escândalos e foram extremamente requisitadas, enquanto outras
surgiram porque cairam no “gosto popular”:
O Cânone, palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma
escolha entre textos que lutam uns com os outros pela
sobrevivência, Quer se interprete a escolha como sendo feita por
grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de
crítica, ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se
sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais. Alguns
partidários recentes do que se encara como radicalismo
acadêmico chegam mesmo a sugerir que as obras entram no
Cânone devido a bem-sucedidas campanhas de publicidade e
propaganda.
Uma esclarecedora teoria de formação do cânone é apresentada
por Alastair Fowler, ele observa que as “mudanças no gosto
literário podem muitas vezes estar relacionadas a reavaliações de
gêneros que as obras canônicas representam". Em cada era,
alguns gêneros são encarados como mais canônicos que outros.
(BLOOM, 2001: 27-8)
Ao analisarmos as obras pertecentes à literatura brasileira percebemos
que algumas se tornaram canônicas por fatores laterais como grande aceitação de
público, por serem escritas por escritores já consagrados no meio literário, como é o
caso de Machado de Assis que já possuia um púbilco seleto, já consquistado em
sua fase romântica. Enquanto as obras dos autores Naturalistas como Adolfo
Caminha e Júlio Ribeiro tornaram-se canônicas pelas polêmicas construídas em
torno de suas obras.
Quando eles publicaram suas obras não foram aclamados, pelo contrário,
o público ficou extremamente chocado com os temas desenvolvidos. Caminha em O
44
Bom Crioulo tratou de uma temática nova dentro dos moldes da sociedade, o
homossexualismo, altamente polêmico para os padrões da época.
A narrativa de Júlio Ribeiro era exacerbadamente erótica para os
costumes da época. Os indivíduos estavam acostumados a uma narrativa um pouco
mais eufêmica dentro do campo literário. Sua narrativa foi condenada principalmente
pela Igreja Católica, tornando-se canônica somente no século XX.
Quando Júlio Ribeiro publicou sua obra, alguns críticos relataram que, no
romance, algumas páginas haviam sido desenvolvidas dentro dos figurinos
Naturalistas, onde havia apenas admiráveis descrições de cenários e episódios de
um agudo regionalismo de fazenda e senzala e que isso era o que quebravam a
monotonia dos lances eróticos, dos baixos impulsos, de uma libertinagem doentia e
triste. (SODRÉ, 1965: 199).
Cláudio de Souza1 (Apud BULHÕES, 2003: 42-4), ao lembrar da leitura do
romance de Júlio Ribeiro, diz que para consegui-lo foi um sacrífio, pois o mesmo era
proibido pelos pais. Ele o fez com um amigo da faculdade, que lhe emprestou o
romance mal afamado. Para chegar ao interior de sua sua residência teve que
enfrentar alguns obstáculos. Ao chegar em casa, percebeu logo, que na sala havia
visita, era o pároco da cidade, que ao notar o volume embaixo do braço, logo
perguntou que livro era aquele. Dizendo em seguida, que esperava não ser a
“carniça”. Cláudio de Souza respondeu que era um livro de medicina. O pároco
vendo o embaraço do jovem, disse para os pais que deixasse, medicina era um
assunto que não o interessava.
Em seguida o padre fez questão de fazer uma advertência ao jovem,
dizendo que nem que lhe dessem de graça A Carne, ele deveria ler. A obra era
imundície que sujava as mãos e os olhos, revoltava o estômago e intoxicava a alma,
segundo o padre. Cláudio de Souza afirma que o que lhe salvou, naquela noite, foi o
fato dele saber que o padre visitava uma mulatinha do lago do Piques.
Podemos notar como era o ambiente que permeava a sociedade da
época, durante anos a obra de Júlio Ribeiro foi repudiada, mas talvez por tais
motivos ela tenha se tornado canônica com o decorrer do tempo.
Ao analisarmos os livros didáticos poderíamos desenvolver a seguinte
hipótese: os autores escolhem tais obras, porque elas foram as mais importantes
para a formação de determinados movimentos. No entanto, tomamos partido por
1
Cláudio de Souza foi um dos fundadores da Academia Paulista de Letras, em 1913.
45
outros críticos literários que afirmam que outras obras possuem as características
dos movimentos até mais bem desenvolvidas, e, portanto, a escolha do cânone é
perpassada por interesses que vão além dos estéticos.
O romance Realista não se resume apenas a produção de Machado de
Assis, mas o fato deste pertencer ao cânone de nossa literatura, é um dos mais
requisitados.
Tendo como ponto de partida os acima descritos, podemos partir do
pressuposto que os autores dos livros didáticos possuem uma preferência não só
pelos mesmos autores, mas pelas mesmas obras, isso devido as mesmas serem
canônicas.
Ainda em nossa análise notamos que, além da coincidência da repetição
de três autores, Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio de Azevedo, e de suas
obras, há ainda outra: as indicações para leitura. É o que alguns autores denominam
em suas obras de produção literária do movimento, esse normalmente é o espaço
ocupado pelos autores Naturalistas no livro didático, sendo que muitos nem isso
fazem. As obras e os autores em questão sonegam muitas vezes os nomes dos
autores que fizeram parte desse movimento.
As obras literárias se tornam canônicas de duas maneiras, uma delas, é
por imposição de uma elite dominante, como acontece com algumas obras
consideras clássicas, e a outra, é através da própria crítica negativa como já
discutimos anteriormente. Quando observamos os livros didáticos, notamos que
alguns autores canônicos, como Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, são totalmente
suprimidos. De agora em diante teremos como exemplo de autores canônicos
interditados nos livros didáticos esses dois e suas obras, A Carne e O Bom Crioulo
respectivamente.
2.3. Instrução Vigiada.
Os jesuítas chegaram ao território brasileiro em março de 1549, juntamente
com o primeiro governador geral, Tomé de Souza. Comandados pelo Padre Manoel
de Nóbrega, quinze dias após a chegada edificaram a primeira escola elementar
brasileira, em Salvador, tendo como mestre o Irmão Vicente Rodrigues, primeiro
46
professor nos moldes europeus, que durante mais de 50 anos dedicou-se ao ensino
e a propagação da fé religiosa. (FERREIRA, 1986:36)
Em 1553, chegaram aqui o segundo governador geral, Duarte da Costa, e o
padre José de Anchieta. No ano seguinte, os jesuítas fundaram o Colégio de São
Paulo, em 25 de janeiro (FERREIRA, 1986:36-7). Os padres em suas primeiras
aulas instauraram - além do ensino de alfabetização, já que só poderiam catequizar
os índios se os ensinassem a ler - os cursos de Letras e Filosofia que serviam para
instruir novos padres.
Desde o início de nossa colonização, a educação já desempenhava um papel
moralista, ela se encaixava nos padrões de interdição, porque tinha como base uma
moral voltada para os valores bíblicos, cujos ensinamentos eram feitos a partir de
proibições e condenações. Os padres repassavam em suas aulas os valores da
bíblia e os sacramentos. O padre José de Anchieta teve a sua produção totalmente
voltada para tal ofício, mas era de fraco valor estético/literário.
Em 1759, os jesuítas foram expulsos da colônia pelo Marquês de Pombal. A
partir desta data, as escolas começaram a funcionar dentro de um regime intitulado
como aulas régias. O Marquês de pombal destruiu todo o sistema de ensino dos
jesuítas e nada que era criado se aproximava do extinto método Ration Studiorum.
Cada aula régia era autônoma e isolada, com professor único, e uma não se
articulava com as outras. Os professores eram geralmente mal preparados para a
função, já que eram improvisados e mal pagos. Eram nomeados por indicação ou
sob concordância de bispos e se tornavam "proprietários" vitalícios de suas aulas
régias. (PILETTI, 1996: 36-7)
A educação brasileira sofreu algumas mudanças com a chegada da família
real ao Brasil em 1808. Quando foi fundada uma escola de educação, onde se
ensinavam as línguas portuguesa e francesa, Retórica, Aritmética, Desenho e
Pintura.
As escolas, desde as suas criações, tiveram uma relação muito próxima com
os quartéis, desde sua arquitetura até a sua estrutura organizacional, onde deve
haver respeito para cada hierarquia. A escola é a responsável pela formação
intelectual e cívica de cada cidadão, portanto, a conduta do mesmo deve ser
administrada e acompanhada por seus orientadores.
Entres os séculos XVIII até meados de XX, quando um estudante cometia
qualquer ato considerado impróprio a sua conduta, a instituição escolar detinha o
47
poder de puni-lo ou castigá-lo. Os alunos eram vigiados de diversas maneiras, a
arquitetura das instituições era elaborada com o intuito de observarem os alunos de
diversos ângulos e lugares.
A estrutura era elaborada com técnicas que possibilitavam aos observadores
e aos observados, verem e serem vistos: uma espécie de adestramento ocular.
Nas salas de refeições, fora preparado um estrado um pouco alto
para colocar as mesas dos inspetores dos estudos, para que eles
possam ver todas as mesas dos alunos e de suas divisões, durante
as refeições:haviam sido instaladas latrinas com meias-portas, para
que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as pernas dos
alunos, mas com separações laterais suficientemente elevadas para
que os que lá estão não se possam ver.
Escrúpulos infinitos de vigilância que: a arquitetura transmite por mil
dispositivos sem honra. Só os acharemos irrisórios se esquecermos o
papel dessa instrumentação, menor mas sem falha, na objetivação
progressiva e no quadriculamento cada vez mais detalhado dos
comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram
uma maquinaria de controle que funcionou como microscópio do
comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas
formaram, em torno dos homens um aparelho de observação, de
registro de treinarnento. (FOUCAULT, 2006:145)
Os alunos eram vigiados até no momento de suas refeições, os
inspetores tinham o intuito de observar se o comportamento dos alunos era o
mesmo das salas de aula, ou se oscilavam conforme o ambiente habitado por eles.
Isso era feito porque a escola, por ser um ambiente macroscópico, possuía inúmeros
lugares onde se poderia falar sobre as imoralidades do mundo, o que incomodava
bastante os administradores e inspetores.
Ao demarcarem o ambiente escolar com latrinas e pontos de observação,
os mestres passavam a ter uma visão microscópica de toda a instituição e, por
conseguinte, de seus alunos. Assim, eles poderiam controlar as conversas e o
comportamento de cada um dos internos. Com a prática da observação, os mestres
podiam controlá-los, tentando domesticá-los.
As escolas eram vigiadas com a intenção de impedir que a imoralidade
habitasse seu interior. Eles se preocupavam com o conteúdo das conversas e com
os atos dos discípulos, controle que permaneceu enraizado em nossa cultura
escolar até o final do século XIX.
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Durante o século XIX, os inspetores escolares, preocupados com a
imoralidade, interditaram a questão sexual, impedindo que os alunos lessem obras
que possuíssem cenas de sexo em seu conteúdo, ou que tratassem do assunto.
Eles se preocupavam mais em controlar os internos do que em educálos, e foi assim que a sexualidade floresceu no ambiente escolar: o lugar em que o
sexo era proibido, passou a ser onde ele mais se proliferou, tornando-se tema
recorrente, justamente por sua proibição, principalmente através da ação verbal. Os
colégios possuíam em sua estrutura diversas entradas e portas secretas, que eram
justamente elaboradas com o propósito de surpreenderem os alunos falando sobre a
questão sexual.
Os administradores escolares combatiam toda e qualquer manifestação
de imoralidade a duras penas e castigos, e possuíam uma grande preocupação em
passar para os que ali fossem estudar, ou visitar a instituição, que a imoralidade não
habitava as paredes daquele lugar.
Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura
que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos
palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das
fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e
detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram: mais
geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a
transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar
domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do
poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras
podem se tornar dóceis e conhecíveis. O velho esquema simples do
encarceramento e do fechamento - do muro espesso, da porta
sólida que impedem de entrar ou de sair - começa a ser substituído
pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens
e das transparências. (FOUCAULT, 2006:144-5)
Foucault demonstra como é o ambiente escolar do século XVIII, a
instituição é o local onde o indivíduo recebe as pressões do meio no qual está
inserido, sentindo as sensações do encarceramento. Os diretores e os professores
faziam com que os alunos tivessem um comportamento adestrado, modificado a
partir das restrições e interdições que sofriam dentro da instituição. Ao receberem o
tratamento considerado pelos administradores escolares da época correto, os alunos
passavam a respeitar o poder e receberem as informações que os mestres
acreditavam serem as corretas para a formação intelectual e moral.
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A discussão de Michel Foucault (2006), em Vigiar e Punir, se baseia no
ponto que o homem deixou de aplicar a morte como forma de punição e passou a
punir os indivíduos com duras penas, intentando corrigir os erros dos mesmos,
fazendo com que o indivíduo se adestrasse com os castigos. Segundo ele, no
capítulo que dedicou à instituição Escola, toda punição não deve passar de um
corretivo, logo, o professor, antes de castigar, deveria conquistar o discípulo,
conseguindo assim seu respeito.
Mas, as instituições escolares não agiam da maneira que Foucault nos
sugere, elas determinavam castigos para os infratores da moral escolar. Os alunos
eram vigiados, porque os mestres não confiavam que sua doutrina fosse capaz de
adestrar os internos, eles precisavam aprender através das punições. Não havia
entre os mestres a prática de estímulo-resposta, eles preferiam pregar o medo e a
repressão entre os internos.
Os castigos disciplinares tinham a função de reduzir os desvios dos
alunos. Copiados do modelo judiciário, estes privilegiavam as punições das
transgressões, castigos estes objetivando a reeducação do aluno, ou por meio do
medo da dor física, ou pela repetição de exercícios. (FOUCAULT, 2006:150)
O professor deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao
contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que
as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser
recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos;
por isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar
de castigo, que ele ganhe, se puder, o coração da criança, antes de
aplicar-lhe o castigo. (DEMIA Apud FOUCAULT, 2006: 150)
A punição disciplinar se estrutura a partir de um sistema onde veiculam
gratificações, sanções e interdições. Os alunos eram adestrados conforme a visão
do mestre, as interdições eram feitas sob o pretexto de sua educação, de que os
professores saberiam o correto para seus discípulos.
Ao invés de os inspetores conquistarem o respeito dos alunos, obtinham o
temor. Por medo das punições que poderiam receber caso não fizessem o
estabelecido pelos mestres, os alunos obedeciam sem questionamentos aos
professores. Eles tinham a chance de conquistar os corações dos alunos, mas não o
faziam, executavam as sanções.
Ao preferirem as sanções às recompensas, os inspetores passaram a
cultivar nos discípulos um sentimento de rebeldia. O aluno que passasse a enfrentar
50
as penas dos mestres era tido como rebelde e muitas vezes “herói”, e foi isso que
propiciou o desejo de ruptura das normas impostas pelos mesmos. O sentimento de
ruptura passou então a habitar os corredores e as salas de aula. As interdições
impostas pelos administradores passaram a serem burladas pelos alunos de
diversas maneiras, desde conversas acerca de temas proibidos como libertinagem
até experiências sexuais dos internos.
Raul Pompéia, em sua obra O Ateneu, descreve o ambiente das escolas
do século XIX. Na personagem do professor e diretor Aristarco Argolo Ramos, ele
nos mostra como os administradores escolares lutavam para que os internos não
tivessem contato com a cultura externa, desconhecendo, assim, as artimanhas
mundanas.
Pouco se sabe sobre a concepção da obra de Raul Pompéia, alguns
dizem que o livro foi uma espécie de autobiografia, onde o autor relata seus dias
como interno do Colégio Abílio, no Rio de Janeiro, onde estudou em sua infância. Na
verdade, pouco se sabe se Pompéia retratou seus dias como aluno, ou se partiu de
uma experiência para a produção de sua obra. Na realidade, o que nos interessa é o
fato dele ter simplesmente concebido o ambiente escolar do século XIX, seja de
forma pessoal ou impessoal.
Quando Sérgio, personagem principal do romance, é apresentado ao
diretor Aristarco na companhia de seu pai, o diretor fala acerca de sua dedicação e
luta para combater a imoralidade. Ele diz que ali, em seu colégio, não havia lugar
para as “imundícies mundanas”, e que durante os anos de sua mocidade se
dedicara a controlar e amordaçar os ímpetos desejos que desviavam os jovens de
seus caminhos.
Durante o tempo da visita, não falou Aristarco senão das suas lutas,
suores que lhe custara a mocidade e que não eram justamente
apreciados. "Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta
massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das
inclinações; encontrar e encaminhar a natureza na época dos
violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; adivinhar os
temperamentos; prevenir a corrupção; desiludir as aparências
sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres
ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios
obscuros; fiscalizar as amizades; desconfiar das hipocrisias; ser
amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de
compaixão para ser correto; proceder com segurança, para depois
duvidar; punir para pedir perdão depois... Ah! meus amigos, concluiu
ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes
a minha preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a
imoralidade!" Aristarco tinha para esta palavra uma entonação
51
especial, comprida e terrível, que nunca mais esquece quem a ouviu
dos seus lábios. "A imoralidade!" (POMPÉIA, 1985:31).
Havia uma preocupação especial com a questão da imoralidade, os
mestres interditavam todo pensamento ou ato que estivesse associado a
sexualidade. Os internos eram proibidos pelos mesmos de falarem ou insinuarem
qualquer ato que estivesse relacionado com o assunto. Observemos na citação
acima que o diretor Aristarco Argolo usa os verbos prevenir, vigiar, desiludir, punir,
fiscalizar e até adivinhar. Isso mostra como era o cenário do século XIX, com relação
ao comportamento dos jovens discípulos nas instituições.
As escolas daquele século tinham um papel muito importante na
formação dos jovens: eram responsáveis em passar os conhecimentos necessários
para que pudessem se tornar homens de bom caráter e conduta exemplar. Os pais
viam as instituições escolares como lugares de adestramento de seus filhos, local
em que poderiam adquirir os conhecimentos necessários para exercer seus papéis
de senhores e cidadãos.
Os alunos tinham os comportamentos vigiados pelos inspetores e aquele
que fosse surpreendido praticando atos que não estivessem de acordo com as
normas do colégio, sofreria grandes punições, servindo de exemplo para os demais
alunos, sendo obrigado a enquadrar-se às normas da instituição. As amizades eram
fiscalizadas para que, assim, fossem evitadas influências negativas e práticas não
condizentes com a moral estabelecida, como atos homossexuais.
Por diversos fatores podemos considerar o ambiente escolar como
espaço de interdição. Raul Pompéia, através da personagem do diretor Aristarco
Argolo, nos mostra que os meninos tinham que se enquadrar dentro de seu regime
moralista, sendo que os rapazes tinham que apresentar um comportamento mais
próximo ao de uma noviça do que ao de um mancebo, o que fica claro numa das
falas do diretor:
Ah! Mas eu sou tremendo quando esta desgraça [imoralidade] nos
escandaliza. Não! Estejam tranqüilos, os pais! No Ateneu, a
imoralidade não existe! Velo pela candura das crianças, como se
fossem não digo meus filhos: minhas próprias filhas! O Ateneu é um
colégio moralizado! (POMPÉIA, 1985:31)
52
O adestramento estender-se-ia também ao controle das subjetividades,
das pulsões dos alunos. Controlando os impulsos e emoções, combatendo as
atitudes provenientes do instinto e suprimindo os desejos, os jovens eram ensinados
a se portarem dentro dos padrões morais de sua época. Eles eram proibidos de
tomarem conhecimento de assuntos que os mestres e professores não julgassem
dignos de suas mentes.
Como na citação já feita sobre a fala de Aristarco, a função da escola
aparece acima de tudo como moralizadora, afinal, disse o diretor: “não é o espírito
que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não
é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!” (POMPÉIA, 1985:31). O saber
enciclopédico teria o lugar secundário nas diretrizes educacionais em relação ao
saberes morais. O olhar que Pompéia despende sobre escola estaria próximo à
problemática foucaultiana
à medida
que
pensa
o espaço escolar como
eminentemente disciplinar. Notemos que o fato de os rapazes saírem sem o devido
domínio conteudístico do colégio, não era a preocupação do diretor, mais
interessado na formação do caráter, na doutrinação moral. Em O Ateneu, a noção
de moralidade referiu-se especialmente à interdição de discursos e práticas
referentes ao sexo, se restringe em podar as vontades libertinas. Para ele, um
comportamento que exponha a sexualidade, seja através de palavras ou atos, seria
algo extremamente reprovável.
Como o pensamento dominante do século XIX era o burguês, a escola
pretendia ser estandarte do regramento de acordo com a moral dominante, era
inadmissível que um cidadão pertencente à alta sociedade demonstrasse um
comportamento que não estivesse de acordo com os padrões da época. Os jovens
“bem nascidos” deveriam ter uma postura condizente com sua posição social, não
era admitido pelos membros de tal sociedade, que um jovem se postasse como um
libertino.
Assim, os mestres estavam mais preocupados em formar o caráter dos
jovens do que torná-los grandes conhecedores de Geografia, Línguas, Matemática,
entre outras disciplinas. O quê estava em jogo era o comportamento e não o
conhecimento. Em outra cena do livro de Raul Pompéia, Sérgio nos mostra como
Aristarco preocupara-se com a conduta em detrimento do saber, demonstrando até
desconhecimento do conteúdo que ensinara. Vejamos:
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Uma vez, muito entusiasmado, o ilustre mestre mostrou-nos o
Cruzeiro do Sul. Pouco depois, cochichando com o que sabíamos
de pontos cardeais, descobrimos que a janela fazia frente para o
norte; não atinamos. Aristarco reconheceu o descuido: não quis
desdizer-se. Lá ficou a contragosto o Cruzeiro estampado no
hemisfério da estrela polar. (POMPÉIA, 1985:45)
Podemos notar como o professor demonstra despreparo ao lecionar a
disciplina, mas, mesmo demonstrando desconhecimento do assunto, ele se impõe
em sua posição de mestre e não recua de seu posicionamento quanto à localização
do Cruzeiro do Sul. Tal atitude era típica da época: professores não assumirem seus
erros perante seus discípulos.
Os jovens que freqüentavam as escolas no século XIX deveriam possuir
um caráter diferenciado dos indivíduos, que não tinham acesso aos referentes
recintos. As informações eram repassadas pelos mestres, mas elas estavam mais
relacionadas à moral do que ao campo científico. Os professores se preocupavam
demais com a conduta de seus discípulos. Raul Pompéia com seu romance O
Ateneu, já nos deu prova de como os mestres se preocupavam com tal assunto.
Michel Foucault (2006) discute a função da escola como instituição, ele
nos mostrando sua semelhança com o sistema penitenciário, quanto as punições e
interdições. Assim como o sistema penitenciário, ela teria a pretensão de educar e
transformar o indivíduo, enquadrá-lo às suas normas morais. As pessoas que a
administram não a conduziam da maneira adequada.
O colégio Ateneu, descrito na obra de Pompéia, seria emblema das
modelações que a Escola assumiu no Oitocentos, enquanto disciplinadora. A
estrutura física da instituição é cheia de portas e entradas secretas, que o diretor
Aristarco Argolo usava para surpreender a todos, principalmente aos alunos, e
muitas vezes aos professores também, sendo que esses eram observados com
intuito de descobrir alguma irregularidade quanto ao assunto repassado em sala de
aula.
A sala geral do estudo tinha inúmeras portas. Aristarco fazia aparições, de súbito, a qualquer das portas, nos momentos em que
menos se podia contar com ele.
Levava as aparições às aulas, surpreendendo professores e
discípulos. Por meio deste processo de vigilância de inopinados,
mantinha no estabelecimento por toda a parte o risco perpétuo do
flagrante com uma atmosfera de susto. Fazia mais com isso que a
espionagem de todos os bedéis. Chegava o capricho a ponto de
54
deixar algumas janelas ou portas como votadas a fechamento para
sempre, com o fim único de um belo dia abri-las bruscamente sobre
qualquer maquinação clandestina da vadiagem. (POMPÉIA,
1985:51)
Podemos notar que a descrição do colégio Ateneu é a perfeita representação
da estrutura da escola do século XIX, onde os alunos recebiam proibições quanto
aos conhecimentos que deveriam adquirir ao longo de suas vidas estudantis. Foi em
ambientes inóspitos como esse que os movimentos literários Realismo e
Naturalismo foram interditados e tal interdição causou grandes manchas nos
movimentos ao longo dos anos, principalmente no Naturalismo, manchas que
refletem até os dias atuais em nossos livros didáticos de literatura.
55
3. OS RECORTES NAS OBRAS LITERÁRIAS: INTENCIONAIS OU
ALEATÓRIOS?
“A vida moral do homem forma parte do argumento e do material do
artista. Mas a moralidade da arte pretende provar o que quer que seja.”
(Oscar Wilde)
Se folhearmos um livro didático de Literatura de Ensino Médio com calma
e paciência, poderemos perceber que ao chegarmos nos movimentos Realista e
Naturalista, não encontraremos alguns autores consagrados de nossa literatura,
nem recortes de leitura que exponham a questão sexual.
Notaremos que os fragmentos selecionados pelos autores são recortados
providencialmente, ou seja, há uma preocupação no tocante a expor somente
pontos que não expressem uma conotação sexual para os leitores das obras
didáticas. Desta maneira há uma interdição de muitos autores considerados os
verdadeiros representantes destes movimentos.
Isso pode ser, grosso modo, explicado pelo legado da colonização
catequética e patriarcalista; um país e, por conseguinte, uma escola, imersa nas
tradições católicas e nas diretrizes conservadoras, uma aprendizagem moralista,
nós, ainda vitorianos extemporâneos, clericalistas secularizados e pregadores de
uma moral hipócrita.
Entendemos desta forma que os livros didáticos são armas ideológicas
utilizadas a favor das vontades disciplinadoras, a obra tornou-se mecanismo de
interdições, de silêncios que precisam ser lidos, para a compreensão dos modos de
controle das subjetividades, objetivo que a instituição escolar assumiu, nos tornando
assim, receptores de uma cultural descontextualizada em nossa época.
56
3.1. A Literatura brasileira e a educação catequética
A literatura brasileira tem, desde sua formação, características européias.
Isso se deu devido a nossa colonização, por termos incorporado os valores
europeus que os portugueses aqui impuseram, desde a chegada dos jesuítas com a
Companhia de Jesus, quando implantaram colégios no Rio de Janeiro, na Bahia e
no Pará, semelhantes aos colégios das Artes existentes na Metrópole.
A instalação dos padres jesuítas no Brasil teve grande importância no
tocante à educação, já que a tentativa de alfabetização foi imiscuída com a
catequese dos gentios que se encontravam em nossa terra recém descoberta.
Devemos ainda nos lembrar que a intervenção da Igreja católica nas colônias teve
entre tantos motivos os de fazer com que o homem residente nelas não se sentisse
seduzido pelas idéias do protestantismo.
As idéias do monge Martinho Lutero floresceram e encontraram um
terreno fértil perante as atitudes dos entes da Igreja Católica no tocante a fé dos
cidadãos europeus. O protestantismo revelou as contradições em que estavam
construídos os discursos e práticas do catolicismo medieval, que condenava a
usura, mas vendia indulgências e relíquias sagradas; que proibia a luxúria, enquanto
a vida sexual de padre e freiras eram de conhecimento público, como já havia sido
narrado em Decameron, de Boccaccio.
A Igreja ao perceber que o número de adeptos do protestantismo
aumentava significativamente em toda Europa, elabora a chamada Contra-Reforma,
que consistia em catequizar os habitantes das terras recém descobertas, dentre elas
o Brasil. A Igreja encaminhou um grupo de padres, membros da Companhia de
Jesus, para catequizarem os pagãos que ali se encontrassem. (BORTOLOTI,
2003:4)
Ao chegarem ao Brasil, os jesuítas tinham entre tantos objetivos, o de
converterem os índios à fé católica, porque o número de fiéis diminuía rapidamente
na Europa, principalmente depois de Lutero ter afixado à porta da catedral de
Wittenberg, em 1517, as suas 95 proposições contra o comercio de indulgências
praticada por entes da Igreja Católica. (SOUSA, 2003: 02)
Mesmo com a repercussão de obras eróticas como poemas de Bocage e,
posteriormente, os de Gregório de Matos, os jesuítas tentavam controlar a circulação
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dessas obras, conservando assim uma cultura imposta pela moral catequética que
mantinha seus fiéis afastados de assuntos que levassem a qualquer questionamento
de sua fé, pois já enfrentavam grandes problemas com o protestantismo de Lutero
na Europa. (PILETTI, 1996 Apud PAIVA BELLO, 2007: 3)
Devemos lembrar que desde a nossa literatura de informação, que tem
início com a Carta, de Pêro Vaz de Caminha, já havia manifestações descritivas de
erotismo na colônia, pois a epístola do escrivão possui características eróticas,
representando a beleza das índias: “Andavam ali entre eles três ou quatro moças,
bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas, e
suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de nós
muito bem as olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. (CAMINHA, 2000: 6)
A descrição que Caminha faz das índias que encontrou ao aportar no
território brasileiro com os tripulantes das naus portuguesas, é uma representação
erótica. Logo o erotismo já existia desde a literatura de informação. Mas ele não vem
à tona nos anos que se seguem.
Após a Carta, de Caminha, documento que data o início de nossa
literatura, a produção literária erótica brasileira teve como representante Gregório de
Matos Guerra, que foi, em 10 de agosto de 1797, acusado de heresia e de ter levado
uma vida escandalosa, sendo encarcerado em várias prisões portuguesas.
(DURIGAN, 1985:22) Assim, concluímos que a Literatura Brasileira, desde a sua
formação já se inicia com censuras impostas pela sociedade dominante.
A era Realista/Naturalista foi, na verdade, uma arena de lutas onde se
confrontavam pensamentos e ideais. De um lado os românticos querendo continuar
impondo suas teses e seus ideais, numa perspectiva que refletisse em sua escrita,
as co-relacionando com o cotidiano das pessoas.
Do outro lado, tínhamos os Realistas, que, mesmo Sodré apontando a
sentimentalismo ainda presentes nos representantes brasileiros deste movimento,
pretendiam ser contra todo e qualquer pensamento e ideologia romântica. O
cientificismo naturalista quis conceber o homem sobre uma visão biológica e social.
A etimologia das palavras Realismo/Naturalismo nos remete à idéia de uma
realidade natural, portanto, dando ênfase às questões sociais e biológicas, que o
movimento nos sugere. (COUTINHO, 1997: 6-9)
58
3.2 A sociedade brasileira e o reflexo do Realismo/Naturalismo nos
livros didáticos
Ao analisarmos um livro didático de Literatura de Ensino Médio
encontramos os movimentos Realismo/Naturalismo sendo desenvolvidos de uma
forma sintética, na qual o primeiro é praticamente uma extensão do segundo. Que
motivo levaria os autores a tratarem estes movimentos desta maneira? Por que os
autores não desenvolveram os movimentos em suas peculiaridades? Acreditamos,
para intentarmos essa compreensão, que é necessário inicialmente entender a
história do livro didático no Brasil.
Poder-se-ia mesmo afirmar que o livro didático não tem uma história
própria no Brasil. Sua história não passa de uma seqüência de
decretos, leis e medidas governamentais que se sucedem, a partir
de 1930, de forma aparentemente desordenada, e sem a correção
ou a crítica de outros setores da sociedade (partidos, sindicatos,
associações de pais e mestres, associações de alunos, equipes
científicas etc.). Essa história da seriação de leis e decretos
somente passa a ter sentido quando interpretada à luz das
mudanças estruturais como um todo, ocorridas na sociedade
brasileira, desde o Estado Novo até a "Nova República". (FREITAG,
MOTTA, COSTA, 1997:11)
A adoção do livro didático nas escolas brasileiros se deu de ordenada
somente com o final da República Velha. Como notamos na fala dos autores,
inicialmente foram decretos e leis para só bem depois ser criada realmente uma
política direcionada para esta causa.
Os livros didáticos passaram a circular no Brasil por volta de 1821, data
das reedições de Leitura para Meninos, obra francesa traduzida para o português,
com a qual as crianças aprendiam a ler, assimilavam padrões morais e estudavam
os conteúdos de disciplinas curriculares, como geografia, cronologia, historia de
Portugal e história natural. (ZIBERMAN, 1996:1)
Nessa época, a maioria dos livros no Brasil era destinada apenas ao
ensino de retórica e gramática. A lista desses livros era composta por: Alfabeto para
instrução da mocidade; Arte poética de Horácio, por Cândido Lusitano; Coleção de
cartas para meninos; Compêndio de retórica; Elementos de sintaxe; Gramática
latina; Gramática portuguesa; Instrução da retórica; Instrução literária; Retórica, de
Gilbert, e Retórica, de Quintiliano (SILVA, M.A.,1811 Apud ZIBERMAN, 1996:1).
59
A oferta de livros ainda não era suficiente mesmo para os filhos das elites.
A educação das crianças não sendo obrigatória, tampouco o ensino disseminado
entre a população, gerou inúmeras queixas, denunciando o estado deficitário da
educação infantil e a ausência de livros didáticos apropriados.
Segundo Moacyr (Apud ZIBERMAN, 1996:1) o escritor Gonçalves Dias ao
realizar uma viagem ao Nordeste, revela ao imperador, em 1862, que: “Um dos
defeitos é a falta de compêndios: no interior porque os não há, nas capitais porque
não há escolha, ou foi mal feita; porque a escola não é suprida, e os pais relutam em
dar os livros exigidos, ou repugnam aos mestres os admitidos pelas autoridades”.
A educação só passou a ser obrigatória no Brasil a partir de 1870, com a
reforma do ensino proposta pelo imperador, sendo a medida confirmada em seguida
pela República, fato que provocou uma grande produção de livros didáticos.
A obrigatoriedade do ensino era uma coisa, a aquisição do livro didático
era outra, assim percebemos que a aquisição do mesmo era algo extremamente
difícil para as camadas inferiores da sociedade da época (ZIBERMAN, 1996:1).
Lembremos ainda, que foi a partir do período de 1930 que no Brasil se desenvolveu
uma política educacional consciente, progressista, com pretensões democráticas
aspirando um embasamento científico. (FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:11)
Os programas educacionais, que incluíam o uso do livro didático, foram
adotados pelo governo de Getúlio Vargas. Esses foram na verdade uma conquista
da revolução de 1930: “Com efeito, a queda da nossa moeda, conjugada com o
encarecimento do livro estrangeiro, provocado pela crise econômica mundial,
permitiu ao compêndio brasileiro – antes mais caro do que o francês – competir
comerciante com este.” (HOLANDA apud FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:11)
Quando falamos em política educacional do livro didático, não devemos
esquecer que a realização da mesma depende diretamente do regime político em
vigência. Especialmente no final da década de 1930, quando o Brasil passou por
uma ditadura, o Estado Novo de Vargas, período de grande repressão aos campos
intelectuais e culturais, em que a escola se mantém como mecanismo da disciplina
moral, assim como, de exacerbação do nacionalismo e da religiosidade.
(MAINWARING, 1989:43)
Os responsáveis pela elaboração dos livros didáticos manifestavam uma
preocupação quanto ao conteúdo dos mesmos, pois havia de conter nas obras
somente o estipulado pelo Conselho de Educação.
60
A preocupação dos autores e editores de livros está muito mais
voltada para a matéria definida pelos Conselhos de Educação e,
portanto, para os conteúdos do livro e as áreas de saber que eles
procuram mediatizar, que para o usuario efetivo desse livro, o aluno
com suas necessidades, suas afinidades determinadas pela
psicogênese pelo contexto cultural e socioeconômico (OLIVEIRA
apud FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:116)
Como observamos na citação acima, segundo OLIVEIRA (Apud FREITAG,
MOTTA, COSTA, 1997), os autores não demonstravam preocupação alguma com o
contexto cultural, nem com os aspectos cognitivos e socioeconômicos dos alunos,
uma educação em que as propostas curriculares eram impostas e elaboradas a
partir do interesse estatal, apoiadas em uma ideologia dominante e controladora.
Desta maneira, eles faziam com que fosse desenvolvido um currículo, em
que a realidade da maioria dos brasileiros não estivesse em evidência, criando
assim uma realidade totalmente desvinculada da maior parte dos alunos de nossas
escolas. Logo, procuravam desta maneira, omitir os problemas sociais, silenciando
as contradições de classe nos livros didáticos.
A maior parte dos estudos sobre a ideologia do livro didático revelou
que os conteúdos dos livros estão desvinculados da realidade das
crianças. Muitas vezes eles procuram disfarçar, omitir ou distorcer
os problemas e as contradições sociais em que se encontram certas
classes sociais e minorias às quais pertencem grande parte das
crianças, como é o caso das crianças carentes. (FREITAG,
MOTTA, COSTA, 1997:116)
A ideologia educacional no Brasil firmava inicialmente que as crianças
fossem alfabetizadas para que se tornassem leitores, mesmo que isso acontecesse
com a restrição das obras em circulação, devido à censura. Ou seja, a formação de
um público leitor não significaria o distanciamento da ideologia de controle, presente
no Estado Novo, isso pois, as obras escolhidas pelos responsáveis pela educação
naquela época, estavam sujeitas a aprovação estatal.
Os idealizadores do livro didático demonstravam a intenção de fazer
apenas com que os alunos dominassem a leitura, mas descontextualizada. Abílio
César Borges foi o mais célebre autor de livros didáticos no período imperial. Na
introdução da primeira edição de Terceiro livro de leitura, ele expõe sua concepção
de leitura:
61
Em minha opinião, nos primeiros tempos da escola, não devem os
meninos aprender senão a leitura, que lhes é já não pequena
dificuldade, para ser ainda acrescentada com outra igual ou maior,
qual a da escrita, que só deverão começar a aprender depois que
souberem ler e jamais antes dos seis, ou mesmo dos sete anos de
idade. (ZIBERMAN, 1996: 2)
O século XIX, período em que o Realismo e o Naturalismo surgem, contou
com produções literárias, associadas a esses movimentos, mas a maioria das obras
Naturalistas que foram sucesso de público e reconhecidas pela crítica literária não
tinha seus textos incluídos nas séries de livros didáticos produzidas no início do
século XX.
Havia uma preocupação quanto ao conteúdo das obras, como já
discutimos anteriormente, e não era só com relação à denúncia da sociedade na
qual os jovens estavam inseridos, havia também uma preocupação com a moral e
os bons costumes dos cidadãos. A série de livros didáticos de João Kopke,
produzida no início do século XX, exemplifica bem esse pensamento, pois em sua
obra, Primeiro livro de leituras morais e instrutivas, havia textos modelares de
escritores brasileiros nos quais enfatizavam as virtudes de uma boa moral.
Os escritores elencados por Kopke foram: Alexandre Herculano, Almeida
Garret, Álvares de Azevedo, Américo Brasiliense (José Bonifácio de Andrada e
Silva), Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Antônio Feliciano de Castilho, Araújo
Porto Alegre, Bernardo Guimarães, Bocage, Camões, Casimiro de Abreu, Castelo
Branco, Castro Alves, Curvo Semedo, Eça de Queirós, Evaristo da Veiga, Fagundes
Varela, Gonçalves Crespo, Gonçalves Dias, Gregório de Matos, Guerra Junqueiro,
João de Deus. João de Lemos, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar,
Machado de Assis, Nicolau Tolentino, Pimentel Maldonado, Pinheiro Chagas,
Ramalho Ortigão, Sousa Viterbo e Francisco Adolfo de Varnhagen. (ZIBERMAN,
1996: 3-5)
Notamos que na lista de Kopke os autores Naturalistas em momento
algum são mencionados, isso demonstra que autores como Júlio Ribeiro, Aluisio de
Azevedo, Adolfo Caminha, Domingos Olimpio entre outros menos estudados, foram
interditados nas obras didáticas desde o inicio do século XX.
Nesta época os professores eram incumbidos de fazerem as sinopses
históricas e a apreciação geral da Literatura portuguesa e brasileira. Na seqüência, o
62
Ministério discriminava os conteúdos de cada uma das séries. O livro de leitura era
ainda objeto de uma especificação maior, detalhando-se não apenas seu conteúdo,
mas igualmente suas finalidades, a longo prazo, pois os dois volumes deste livro
eram orientados em dois sentidos, um que interessasse as meninas e o outro, aos
rapazes.
Os textos destinados de preferência à vontade das meninas devem
encarecer as virtudes próprias da mulher, a sua missão de esposa,
de mãe, de filha, de irmã, de educadora, o seu reinado no lar e o seu
papel na escola, a sua ação nas obras sociais de caridade, o cultivo
daquelas qualidades com que ela deve cooperar com o outro sexo
na construção da Pátria e na ligação harmônica do sentimento da
fraternidade universal. Os excertos que visarem principalmente à
educação dos alunos do sexo masculino procurarão enaltecer aquela
têmpera de caráter, a força de vontade, a coragem, a compreensão
do dever, que fazem os grandes homens de ação, os heróis da vida
civil e militar e esse outros elementos, não menos úteis à sociedade
e à Nação, que são os bons chefes de família e os homens de
trabalho, justos e de bem. (ZIBERMAN, 1996: 7)
Percebemos que os textos dos livros de leitura, exponham em seu
conteúdo a intenção de modelar a conduta dos jovens, construindo assim um
modelo ideal de cidadão. Assim, notamos a finalidade do Ministério da Educação em
controlar os conteúdos das obras didáticas e interditar muitos de nossos autores
Naturalistas.
A lista de autores determinada pela obra didática é bastante variada,
composta por escritores Românticos e Realistas, sem, no entanto, nenhum
Naturalista. Através do trecho de Regina Ziberman, notamos quais eram as
verdadeiras intenções dos autores das referidas obras didáticas. Eles esperavam
despertar nos adolescentes, comportamentos próprios de cidadãos que se
assemelhassem ao perfil do homem do século XX, um homem de conduta patriarcal
e moralizante, e as mulheres deveriam possuir um espírito materno com relação aos
filhos e de submissão ao esposo.
Desta maneira entendemos que as temáticas apresentadas pelos autores
Naturalistas, iriam de encontro às desenvolvidas pelos mestres do magistério da
época. Isso porque, para eles, caso fossem abordados os temas desenvolvidos no
Naturalismo, poderiam de alguma forma contribuir para o desenvolvimento de uma
conduta não aprovada aos moldes daquela sociedade.
63
Assim, encontramos uma coletânea de textos onde os Naturalistas estão
totalmente ausentes, isso nos explica o motivo de até hoje encontrarmos a ausência
destas obras nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio. Logo, essa
interdição não ficou conhecida apenas como uma exclusividade encontrada nos
livros do século XX, ela é tão forte que conseguiu transpor as barreiras do tempo e
chegar ao século XXI como prática ainda existente nas obras didáticas atuais e
desenvolvidas dentro de nossas escolas de Ensino Médio.
3.3 Interditar, para quê?
Os autores dos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio sintetizam
os movimentos do Realismo/Naturalismo, os transformando muitas vezes num só.
Eles também o fazem com os autores e as obras que compuseram principalmente o
Naturalismo. Em relação uma questão especialmente nos interessa: qual seria o
motivo dos autores dos livros didáticos abordarem em suas obras, apenas recortes
de leitura de romance sem cenas eróticas explícitas?
Na realidade muitas hipóteses podem surgir quanto ao fato dos autores
citarem sucintamente as obras de cunho erótico do movimento Naturalista. Uma
delas seria por pudor ou mesmo tabu, e outra seria o fato da não permissão das
editoras - uma espécie de censura e assim os autores se limitariam a trabalharem
com as obras que não apresentam uma sensualidade evidente.
Em nossa pesquisa foram analisados 15 livros didáticos de Literatura do
Ensino Médio, obras essas, em que desenvolvemos uma análise minuciosa de seus
tópicos, descrevendo-os e caracterizando-os de maneira em que notamos
semelhanças com relação a forma como o Realismo e o Naturalismo foram
abordados, inclusive com a repetição dos excertos citados.
A obra Gramática, literatura & Produção de textos, de Ernani & Nicola
(2004), da série de olho no mundo do trabalho, traz em seu conteúdo os movimentos
Realismo/Naturalismo num só capítulo, fazendo a abertura do mesmo com dois
fragmentos de leitura, um de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de
Assis e o outro de O Cortiço, de Aluisio Azevedo.
Após uma atividade de quatro questões interpretativas e comparativas
entre os textos os autores iniciam a parte teórica com um breve comentário acerca
do movimento destacando suas características e destacando como principais
64
autores, Machado de Assis, com as obras Dom Casmurro e Memórias Póstumas de
Brás Cubas, Aluisio Azevedo, com O Mulato e O Cortiço e Raul Pompéia com O
Ateneu.
Em seguida, eles fazem um pequeno comentário, diferenciando os
romances Realista e Naturalista, não se estendendo muito, dizendo apenas que o
Realismo é uma denominação genérica que abrange as duas tendências, como
escreve o autor: “Finalmente, é importante salientar que Realismo é a denominação
genérica de uma escola literária que abrange as tendências seguintes: Romance
Realista e Romance Naturalista” (ERNANI & NICOLA, 2004: 313).
Ao final do capítulo, eles destinam uma seção a qual nomeiam de
Produção literária no Brasil, onde discutem as fases de Machado de Assis e fazem
uma pequena análise dos romances, Quincas-Borba e Dom Casmurro. Logo em
seguida fazem um pequeno comentário sobre as vidas de Raul Pompéia e Aluísio
Azevedo, expondo dois fragmentos dos romances, O Ateneu e O Cortiço,
respectivamente. No fragmento do Ateneu, os autores destacam a abertura do
capítulo I do livro, onde o narrador personagem Sérgio, recorda o dia em que seu pai
o deixou a porta do colégio (Ver Anexo I).
Os autores Ernani & Nicola, selecionam ainda um fragmento de O Cortiço,
de Aluísio Azevedo, usando simplesmente a primeira página do terceiro capítulo do
livro, uma descrição do Cortiço ao raiar do dia, ao invés de retratarem a
sensualidade da Personagem Rita Baiana (Ver Anexo II).
Logo em seguida, finalizam a descrição dos movimentos sem fazer se
quer um comentário acerca do tratamento despendido pelos literatos à questão do
sexo. Além do mais, não cita autores como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro, que
foram representativos ao movimento.
Os livros didáticos de Literatura de Ensino Médio possuem em sua maioria
um texto condensado, quando retratam o panorama histórico dos movimentos
literários e as obras que o constituem, com informações suprimidas de modo que as
idéia desenvolvidas tornam-se vagas.
Os recortes de leitura dos romances Realistas e Naturalistas são feitos de
modo que sejam suprimidas as passagens dos romances de grave tom erótico. Os
autores preferem momentos de descrições do cenário, ou mesmo em que a temática
do sexo apareça de forma velada, ou em referências exíguas, evitando salientar
essa característica do movimento.
65
Sendo o Naturalismo o movimento que tem como principal característica
representar as patologias sociais e humanas, o sexo fora construído pelos autores
dessa escola como a manifestação do lado instintivo, o furo pelo qual a animalidade
humana invade a Razão; logo, a cama foi vista como lugar dos desejos insensatos e
meramente corporais, das pulsões que precedem o pensamento. O moralismo da
interdição nos livros didáticos torna-se mais evidente quando comparado à atenção
que os autores dão ao Romantismo. O amor devocional, tido por puro e dentro dos
padrões da moralidade burguesa, é salientado como característica das páginas
românticas, referendado com vastos exemplos de sentimentalismos platônicos, de
sofrimento por amores impossíveis, das lagrimas e inteireza moral dos enlaces, em
detrimento às exíguas referências aos casais naturalistas, obliterando as cenas de
fornicação, os corpos que cinicamente se esquecem de ser pudicos. O livro de
Cereja e Magalhães (2005:188-358) é exemplo disso. Enquanto o romantismo conta
com quase cem páginas, as digressões sobre o Realismo e o Naturalismo passam
pouco de trinta.
Na segunda obra analisada, Português: Língua, Literatura e Produção de
Textos (2003), também de Ernani Terra & José de Nicola, os autores dividem os
movimentos do Realismo e do Naturalismo em dois capítulos, sendo que no primeiro
relata os movimentos em Portugal, citando a Questão Coimbrã e as Conferências
Democráticas. A seguir, os autores apresentam uma seção denominada por eles de
Produção Literária os escritores Antero de Quental e Eça de Queirós, com trechos
de O crime do padre Amaro.
Eles abrem o capítulo com dois fragmentos, um do romance, Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e o outro de O Cortiço, de Aluísio
de Azevedo que se refere à personagem Rita Baiana (anexo II). Em seguida, eles
relatam o contexto histórico do país naquela época e ao final na seção Produção
Literária, citam os autores Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo,
onde apresentam informações bio-bibliográficas dos mesmos, e, para cada um
deles, um fragmento de leitura. Como a análise dos trechos de Machado de Assis
não interessam a nossa proposta, eles serão apenas referendados, no entanto, sem
maiores discussões, nem a apresentação dos fragmentos utilizados nos livros.
Para representarem Machado de Assis, eles utilizaram Memórias
Póstumas de Brás Cubas, e com relação a Raul Pompéia e Aluísio Azevedo
66
apresentando os mesmos recortes de leitura utilizados em sua obra Gramática,
literatura & Produção de textos.
Apresentamos em seguida a obra Literatura Brasileira: em diálogo com
outras literaturas e outras linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar
Magalhães
(2005).
No
início
do
capítulo
destinado
aos
movimentos
Realismo/Naturalismo, um pequeno comentário acerca do panorama histórico na
Europa, destacando os autores Gustave Flaubert e Émile Zola. Em seguida, em uma
seção denominada A Linguagem da prosa realista, os autores expõem uma
atividade onde é colocado na integra o conto Missa do galo, de Machado de Assis.
Logo adiante em outra seção chamada de, A Linguagem da prosa
naturalista, os autores analisam dois fragmentos de leitura, um do romance
Germinal, de Émile Zola e o outro de O Cortiço, de Aluísio Azevedo. A análise
consiste em identificar as características do movimento Realista nos textos
associando as semelhanças que há entre a produção dos autores nas duas obras.
O fragmento de Germinal relata as difíceis situações que o protagonista
Etienne passa ao longo da narrativa, presenciando e sofrendo condições
desumanas e de trabalho que ele seus amigos mineradores do século XIX sofrem.
Já o fragmento de O Cortiço é o mesmo trabalhado pelos autores Ernani & Nicola,
percebendo-se assim, que há a reincidência dos recortes deste romance (Ver Anexo
II).
A quarta obra analisada é Literatura Brasileira, de Maria Luiza M. Abaurre
e Marcela Pontara (2005). A obra tem uma divisão que as outras não apresentaram,
nela
os
movimentos
do
Realismo
e
do
Naturalismo
são
desenvolvidos
separadamente. No capítulo dedicado ao Realismo, elas fazem a abertura do
mesmo com uma imagem de George Clausen, Busto de uma camponesa, onde
temos uma mulher de aparência humilde e sofrida. A seguir há algumas questões
acerca da figura e um fragmento de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. A seção
onde se encontra os elementos descritos é nomeada de leitura da imagem e da
imagem para o texto.
Em seguida há um tópico destinado a Revolução Industrial e alguns subtópicos, que fazem relação com a mesma, só a partir daí é que as autoras iniciam a
discussão sobre o movimento Realista na Europa e no Brasil, estabelecendo uma
relação entre as obras, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e Memórias Póstumas
de Brás Cubas, de Machado de Assis.
67
Seguindo
a
mesma
linha,
elas
iniciam
o
desenvolvimento
das
características do movimento fazendo uma comparação entre os romances, O Primo
Basílio, de Eça de Queirós e Dom Casmurro, de Machado de Assis, expondo
fragmentos dos mesmos, finalizando o capítulo com mais dois recortes de leitura de
Machado, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
No capítulo destinado ao Naturalismo, as autoras executam o mesmo
procedimento, usando então como imagem a tela Ferro e carvão, de William Bell
Scott, e um fragmento de Germinal, de Émile Zola, notemos que há uma relação
com a obra dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Logo
a seguir, elas desenvolvem algumas características do Naturalismo como, a
aproximação entre ciência e o projeto literário do Naturalismo, e ao desenvolver um
sub-tópico denominado, Linguagem: a descrição impiedosa, elas utilizam o mesmo
fragmento de O Cortiço utilizado pelos autores já citados para descreverem o
ambiente onde se passa à narrativa (Ver Anexo III).
As autoras ainda se utilizam de mais um recorte que coincide com os
outros livros didáticos: mais uma vez, a mesma citação de O Cortiço, onde a
personagem Rita Baiana salta no meio da multidão mostrando sua sensualidade
(anexo V), e a de O Ateneu, no qual a personagem Sérgio relata os primeiros dias
no colégio, mantendo os primeiros contatos com os colegas (Ver Anexo I).
Diferentemente dos autores já analisados, elas acrescentam um recorte de Casa de
Pensão, de Aluísio Azevedo (Ver Anexo IV), e assim, finalizam o Naturalismo sem se
quer discutir ou interpretarem os fragmentos de leitura. Desta maneira mais uma
obra é analisada e constatamos que os demais autores deste movimento foram
interditados, pois não são trabalhados nem indicados como possíveis leituras
complementares. Em nenhum dos fragmentos foi verificada a ocorrência de cenas
de sexo na narrativa.
Analisemos agora a obra, Textos: Leituras e Escrita, de Ulisses Infante
(2000). Nela, o autor, diferentemente das obras analisadas até aqui, se utiliza de
uma organização didática, na qual executa uma divisão das manifestações literárias
dos movimentos nos diferentes países, ou seja, não faz comparações ou relações
entre autores europeus e brasileiros.
Ele discute inicialmente os movimentos Realismo e Naturalismo na
Europa, apresentando e desenvolvendo suas características, para só depois
68
selecionar os fragmentos de leitura. Ao fazê-los, os dividem em França, Portugal e
Brasil, nos interessando apenas o último, no qual está centrada nossa pesquisa.
Na parte dedicada ao Realismo e ao Naturalismo brasileiro, o autor a inicia
com uma pequena introdução acerca dos movimentos no Brasil. Apresenta logo em
seguida uma seção denominada de Vida e Produção, onde faz uma biografia de
Raul Pompéia, usando em seguida três fragmentos de O Ateneu, onde no primeiro,
recortando o início do terceiro capítulo, ele destaca o momento no qual a
personagem Sérgio recorda do dia em que foi conhecer o banheiro onde os internos
se banhavam (Ver Anexo V). O segundo fragmento é igual ao selecionado pelos
autores já descritos, momento que Sérgio é levado até o Ateneu por seu pai (Anexo
I). O terceiro trata do momento em que o narrador relembra o período de férias, no
Ateneu (Ver Anexo VI).
A seguir, o autor trabalha na seção Vida e Produção, Aluísio Azevedo,
onde seleciona alguns fragmentos de O Cortiço, sendo inclusive um deles
trabalhados pelos autores, já citados anteriormente, a descrição do Cortiço ao raiar
do dia (anexo III). O quê o autor acrescenta de novo ao que vimos até aqui,
comparando com os autores citados na pesquisa, é um comentário sobre O Mulato e
Casa de Pensão, onde destaca a história dos romances e alguns pontos das
narrativas, e finaliza com um recorte descritivo da organização do cortiço.
Continuando, o autor da uma atenção especial às narrativas de Machado de Assis,
assim como faz com os outros dois autores na seção, Vida e Produção, destacando
fatos de sua vida e algumas características do Realismo peculiares à produção
machadiana. Ele utiliza, como exemplos, fragmentos dos romances Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó.
Usando a mesma estratégia didática empregado com os autores Raul
Pompéia e Aluísio Azevedo, Ulisses Infante analisa Machado de Assis, a narrativa
de seus romances, tecendo comentários críticos acerca dos mesmos. Em sua obra
não há sugestões de outras leituras, nem comentários sobre outros autores
pertencentes aos movimentos, principalmente ao Naturalismo.
Continuando nossa análise, temos a obra Português: Na trama do texto,
de Helena Bonito Pereira e Marcia Marisa Pelachin (2004). O livro, assim como a de
Ulisses Infante, traz uma divisão dos movimentos por países. Inicialmente as autoras
tratam dos movimentos na Europa para depois abordarem as suas manifestações no
Brasil. Elas abrem o Realismo brasileiro com um fragmento de Memórias Póstumas
69
de Brás Cubas, chamando a atenção do leitor para alguns aspectos estruturais do
texto, como a forma de narrar e a objetividade descritiva do autor.
A seguir temos um tópico denominado de Apresentação, onde é feito um
pequeno comentário sobre o surgimento do movimento literário. Mais adiante temos
mais dois tópicos, o primeiro chamado de Contexto Histórico, onde as autoras
estabelecem uma relação histórica entre o Brasil e a Europa. Já no segundo, temos
a seção Produção Literária, que vem falar sobre os principais autores deste
movimento, mais citando apenas Machado de Assis e Raul Pompéia, este último
diferentemente, como nos demais autores fizeram, foi inserido no Realismo ao invés
do Naturalismo.
As autoras finalizam o capítulo com uma seção chamada de Principais
autores, onde são apresentados Machado de Assis e Raul Pompéia. Juntamente
com essa seção há dois sub-tópicos, Obras e Comentário Crítico, nos quais
comentam algumas obras dos autores e suas características como escritores. De O
Ateneu, se usam de um trecho retirado do momento em que Sérgio descrevendo a
rotina no colégio, e assim finalizam a parte que compete ao Realismo sem fazer
qualquer referência a outros autores deste movimento.
No capítulo destinado ao Naturalismo, a estrutura é a mesma do anterior,
sendo que apenas um autor é trabalhado neste capítulo: Aluísio Azevedo. No subtópico Comentário crítico, as autoras comentam três obras do autor: O Mulato, Casa
de Pensão e O Cortiço, sendo que o comentário está mais para a descrição do
enredo do que para um comentário crítico das obras. Logo em seguida aplicam uma
atividade interpretativa de dois fragmentos de O Cortiço, eles tratam justamente do
momento em que Jerônimo caiu doente e Rita Baiana foi visitá-lo (Ver Anexo VII).
A referida obra apresenta ao final dos dois capítulos uma seção que até
então não tínhamos encontrado em nenhum dos autores analisados, que é a seção
Outros Escritores Naturalistas, onde são citados: Inglês de Sousa, destacando a sua
obra O missionário, e Adolfo Caminha com seus dois romances, A normalista e O
Bom Crioulo.
Diferentemente das demais obras analisadas, há referências informando
outros autores não desenvolvidos no livro didático, sem, no entanto, que os
romances sejam analisados e ainda a completa interdição de Júlio Ribeiro,
considerado por muitos o Zola brasileiro.
70
Passemos agora para análise de Português: Novas palavras e Literatura
Gramática Redação, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino
Antônio (2000). A obra não apresenta divisão entre os movimentos estudados. Eles
são divididos em, O Realismo e o Naturalismo em Portugal e O Realismo e o
Naturalismo no Brasil.
O capítulo destinado aos movimentos no Brasil, que é o que nos interessa,
se inicia com uma seção chamada de Primeira Leitura, onde há um fragmento de O
Cortiço, descrevendo a estalagem de São Romão e como esta se tornou uma
grande lavanderia (Ver Anexo VIII).
. A seguir, temos um pequeno comentário sobre a obra e suas
personagens, mais adiante outra seção nomeada, de Momento histórico do
Realismo e do Naturalismo no Brasil.
Neste tópico, os autores falam do contexto político/histórico do Brasil do
século XIX, apresentam O Realismo e o Naturalismo no Brasil, onde falam da
maneira como o movimento se manifestou no país e suas obras inaugurais. Em
seguida, trazem uma pequena biografia de Aluísio de Azevedo, com um resumo de
O Cortiço, encerrando o capítulo com dois sub-tópicos: o primeiro nomeado de
Outros autores e obras Naturalistas, em que há exploração do impressionismo na
obra de Raul Pompéia, O Ateneu, e um pequeno comentário acerca da obra com um
minúsculo resumo. No segundo, chamado de A ficção regionalista, há indicação de
cinco autores com suas respectivas obras, Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha
no Poço; Domingos Olímpio, Luzia – Homem; Afonso Arinos: Pelo Sertão; Valdomiro
Silveira, Os caboclos, e Simões Lopes Neto, Contos gauchescos.
Antes dos autores darem continuidade a outro movimento, eles dedicam
um capítulo inteiro a Machado de Assis, onde trabalham uma pequena atividade
sobre o conto, Uns braços. Apresentam em seguida três resumos de obras do autor,
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, finalizando
assim o estudo dos movimentos.
Continuemos nossa análise com Estudos de Língua e Literatura, de
Douglas Tufano (1990). Temos nesta obra em comum com as descritas o fato do
autor dividir os movimentos em capítulos distintos, entretanto, Tufano tece
comentários mais perspicazes, se o compararmos com os autores já citados.
Ele inicia a parte dedicada ao Realismo com um fragmento de O Cortiço, o
mesmo usado por muitos dos autores já analisados (Ver Anexo III), mas logo em
71
seguida nos surpreende com um contexto histórico extremamente aprofundado,
onde não só relata as transformações sociais que o século XIX passava como as
conquistas nos campos cientifico, filosófico e sociológico, acrescentando ainda, um
quadro com as principais descobertas da época.
O curioso nisso tudo, é que o autor não distingue o Realismo do
Naturalismo, citando os autores e suas obras dentro de um único movimento. Após
todo esse processo, ele aborda o início do movimento Realista na França com a
polêmica obra, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, usando inclusive um
fragmento do romance. Porém, o autor abre um parêntese para destacar algumas
características do Realismo que possuem uma tendência Naturalista, salientando a
obra, O missionário, de Inglês de Sousa, denominando o fragmento para estudo, de
A força do sexo.
Seguindo o desenvolvimento dos capítulos, o autor dedica um deles,
exclusivamente ao Realismo em Portugal. Passemos adiante para descrevermos o
dedicado ao Brasil, onde a nossa pesquisa está centrada. Neste, o autor aborda as
transformações políticas e sociais que o país enfrentava na época, exibindo um
quadro com a cronologia dos principais romances do Realismo no Brasil (Ver Anexo
IX).
Em seguida, o autor traz uma pequena biografia de Aluísio Azevedo,
citando alguns de seus romances, expondo dois fragmentos de leitura, um de O
Mulato e, outro, de O Cortiço. Sobre eles, fez dois comentários, analisando-os do
ponto de vista literário.
No capítulo seguinte, denominado de O Realismo no Brasil: Machado de
Assis, relata fatos da vida desse autor e de sua produção literária, usando
fragmentos de contos e romances do autor. Destacando entre eles: Memórias
Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba. Realizando para cada
fragmento uma atividade interpretativa, gramatical e sugestões para produções
textuais.
Analisemos a obra Linguagens Estrutura e Arte: Língua, Literatura e
Redação, de Rose Jordão e Clenir Bellezi de Oliveira (1999). As autoras dividem o
movimento Realista em dois capítulos, Realismo Português e Realismo/Naturalismo
Brasileiro.
As autoras iniciam o capítulo dedicado ao movimento no Brasil com um
pequeno comentário sobre o contexto político/histórico no Brasil, relatando os
72
principais fatos daquele momento. A seguir, abrem uma seção denominada A prosa
Realista/Naturalista brasileira, onde citam a produção de Machado de Assis, falando
mais detidamente de seu estilo como escritor, usando para exemplificar as
características das escolas o conto Missa do Galo. Em seguida usa alguns
fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom
Casmurro.
Continuando nossa descrição, temos mais adiante, a seção A prosa
Naturalista brasileira, em que as autoras falam da produção de Aluísio Azevedo e
Raul Pompéia. Do primeiro, exploram a obra O Cortiço, onde apresentam
inicialmente um pequeno enredo e depois alguns fragmentos, sendo um deles o
mesmo utilizado pelos autores já descritos (Ver Anexo III), os demais fazem
referência às personagens, Rita Baiana, Jerônimo e Pombinha.
Com relação a Raul Pompéia, para ilustrarem a obra O Ateneu, as autoras
utilizam apenas do momento no romance em que Rabelo faz injúrias a respeito de
seus colegas, deixando Sérgio a par das situações do colégio, mostrando a
verdadeira face de cada um dos internos.
Vejamos agora a obra Português: Literatura, Gramática e Produção
Textual, de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano (2004). Os autores também
dividem o Realismo em dois capítulos, um para o português e outro para o brasileiro.
Sobre o movimento no Brasil, eles fazem um pequeno comentário sobre o período
histórico do país com algumas informações sobre Aluísio Azevedo e a sua obra O
Cortiço.
Para exemplificar, os autores trabalham com um recorte do momento no
qual a personagem João Romão se mostra preocupada com a presença de
Bertoleza em sua vida. Mais adiante, citam Raul Pompéia, sem, entretanto, utilizar
recortes da obra, citando apenas fatos de sua vida e produção literária.
Passemos agora para a décima primeira obra analisada em nosso
trabalho: Português para o ensino médio: Literatura, Gramática e Produção de
Textos, de Nicola, de Floriana e de Ernani (2002). Nesta, os seus autores trabalham
o movimento Realista em apenas um capítulo, iniciando a descrição do movimento
com um fragmento de O primo Basílio, de Eça de Queirós, analisadas em correlação
com as teorias que surgiram na Europa durante o século XIX.
A seguir, falam do Realismo nas artes plásticas e do movimento em
Portugal e no Brasil, neste último, assim como nos demais, falam das mudanças
73
político/sociais enfrentadas pelo país. Mais a diante, citam e desenvolvem as
características do movimento, diferenciando rapidamente romance Realista de
Naturalista. Em seguida, abrem uma seção chamada de A produção Literária em
Portugal, onde citam Antero de Quental e Eça de Queirós, para exemplificar o
segundo utilizam um fragmento de O crime do padre Amaro.
Na seção dedicada à produção literária no Brasil, destacam Machado de
Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo. Sobre suas obras, tecem pequenos
comentários em relação a Dom Casmurro e a Memórias Póstumas de Brás Cubas,
ambos de Machado de Assis; O Ateneu, de Pompéia, e O Cortiço, de Aluísio
Azevedo.
Das obras comentadas, foram extraidos fragmentos de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, O Ateneu e O Cortiço, sendo que para os dois últimos,
utilizam os mesmos recortes apresentados aqui (Ver Anexos II e III).
Passemos para a Análise da obra: Curso Prático de Português: Literatura,
Gramática e Redação, de Luís Agostinho Cadore (1998). O autor divide o Realismo
em duas partes: a primeira, dedicada ao movimento em Portugal e a segunda ao
brasileiro, cisão já canônica entre os livros didáticos, como se pode ver nos
exemplos anteriores. Relatemos a última parte, por está associada a nossa
pesquisa.
O capítulo dedicado ao movimento Brasileiro é dividido em três partes. A
primeira, iniciada com um pequeno comentário sobre o contexto histórico brasileiro e
uma pequena biografia de Machado de Assis. Apresentam, ainda, para exemplificar
as características do literato, expõe fragmentos de Memórias Póstumas de Brás
Cubas e de Dom Casmurro.
Na segunda parte, o autor faz algumas reflexões sobre os movimentos no
Brasil, em uma seção denominada, de Principais Representantes ele cita dois
autores: Aluísio Azevedo e Manuel Oliveira Paiva. Para cada um, um fragmento de
seus respectivos romances, O Cortiço e Dona Guidinha. Para o primeiro romance, o
autor apresenta o momento que Rita Baiana é interrogada pelas lavadeiras do
cortiço (Ver Anexo VIII), já sobre o segundo, seleciona o momento que Margarida
contrata Lulu para matar o Major (Ver Anexo X).
Na terceira parte, temos a figura de Raul Pompéia, onde nos é
apresentado um pequeno resumo sobre sua vida e produção literária. Mais adiante,
74
apresenta um fragmento do romance, o momento em que a personagem Sérgio
narra sua rotina diária, enfatizando a caída da noite no Ateneu (Ver Anexo XI).
Vejamos agora a obra: Arte Literária: Portugal & Brasil, de Clenir Bellezi de
Oliveira (1999). Seguindo a proposta apresentada no título do livro, a autora divide o
movimento em dois capítulos. No dedicado ao português, ela cita as manifestações
literárias em Portugal, no século XIX, e seus principais autores.
Com relação ao movimento no Brasil, ela inicia o capítulo com o contexto
histórico do país, apresentando a seguir Machado de Assis, relatando fatos
biográficos e características próprias do autor. Para exemplificar a produção do
autor, ela utiliza o conto: “Missa do Galo”, onde faz uma análise da narrativa
machadiana. A autora continua sua linha de trabalho apresentando fragmentos de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e
Memorial de Aires.
Mais adiante, a autora apresenta Aluísio Azevedo, onde cita fatos
biográficos do autor e a análise da narrativa de O Cortiço, citando três fragmentos do
romance, sobre João Romão, Jerônimo e Rita Baiana (Ver Anexos II e VII).
Com relação a Raul Pompéia, a autora faz o mesmo: tece alguns
comentários sobre sua vida e produção literária, selecionando alguns fragmentos de
O Ateneu e finaliza o capítulo com alguns comentários sobre Adolfo Caminha, Inglês
de Sousa e Manuel Oliveira Paiva. Sobre o primeiro, cita apenas fatos biográficos;
do segundo faz o mesmo, mas acrescenta um pequeno comentário sobre a obra O
Missionário, e, sobre o último, apenas uma minúscula biografia.
Dando continuidade ao nosso trabalho, analisaremos a obra Português:
série novo ensino, de João Domingos Maia (2001). O autor divide os movimentos
Realista e Naturalista em quatro partes: inicia a primeira com um trecho de
Memórias Póstumas de Brás Cubas, falando do contexto histórico dos movimentos
na Europa, caracterizando as manifestações científicas da época, assim como as
características das escolas.
Para a segunda parte, o autor utiliza um fragmento, de “Missa do Galo”,
trabalhando também o contexto histórico do Brasil no século XIX, destacando mais a
diante em uma seção denominada de Principais autores do Realismo – Naturalismo
os autores Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo. Encerra esta parte
com um pequeno comentário sobre o Realismo – Naturalismo em Portugal,
75
destacando como principais autores Eça de Queirós, Antero de Quental e Cesário
Verde.
Na terceira parte, temos um recorte de Dom Casmurro, e um comentário a
parte sobre o escritor Machado de Assis, no qual são citados fatos biográficos e sua
produção literária. Para trabalhar a quarta e última parte, finalizando sua digressão
sobre os movimentos do Realismo e Naturalismo, o autor apresenta Aluísio Azevedo
e Raul Pompéia. Sobre o primeiro, expõe fragmentos de O Cortiço e uma pequena
biografia do autor, já sobre Raul Pompéia cita apenas alguns comentários sobre sua
vida e sua produção literária.
Concluiremos nossa análise com a obra Português: Literatura, Produção
de Textos & Gramática, de Samira Yousseff Campedelli e Jésus Barbosa Souza
(2001). Os autores deste volume não dividem o movimento Realista entre europeu e
brasileiro e não estabelecem uma diferença nítida entre Realismo e Naturalismo.
Apresentam apenas um pequeno quadro comparativo das características dos
mesmos.
A seguir temos a situação histórica dos movimentos na Europa, onde os
autores relatam cada uma das suas características, apresentando também o
contexto histórico do movimento português, onde expõem um recorte, de O primo
Basílio de Eça de Queirós.
Dando continuidade ao desenvolvimento do capítulo, os autores abrem
uma seção denominada por eles de Implantação do Realismo-Naturalismo no Brasil,
abordando nela a situação histórica do país durante o século XIX. Em seguida em
um sub-tópico, Estudo Crítico de Autores, apresentam Machado de Assis, Aluísio
Azevedo e Raul Pompéia, trabalhando fragmentos das obras Memórias Póstumas
de Brás Cubas, Dom Casmurro, O Cortiço e O Ateneu, sendo que nosso interesse
se delimita ao tratamento dos dois últimos.
Do romance de Aluísio Azevedo, O Cortiço, selecionam um trecho sobre a
personagem João Romão, e da obra de Pompéia retiram o recorte de quando a
personagem Sérgio descreve o dia a dia do colégio Ateneu(Ver Anexo VI).
Ao analisarmos os fragmentos dos romances notamos que eles não
estabelecem nenhuma relação com a proposta do movimento. Não há no recorte de
leitura pontos que possam enfatizar o Naturalismo, tampouco fazer com que a
questão sexual seja exposta, temática explorada na obra de Pompéia, O Ateneu
com o homossexualismo inevitável entre os internos.
76
Na verdade para os autores é muito mais conveniente falar de assuntos
que em sua essência possuam características não causadoras de impactos nos
leitores, do que as que agucem a curiosidade. Isso faz com que alguns assuntos que
retratam questões polêmicas, tabus, como a questão sexual, sejam interditados das
obras didáticas, assim percebemos porque assuntos desta natureza ainda são muito
pouco abordados nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio.
Ao observarmos estes livros, percebermos que tais obras ao tratarem da
literatura
brasileira
possuem
certas
limitações
quanto
ao
movimento
do
Realismo/Naturalismo, retratados de forma tímida.
Lembremos que inicialmente algumas camadas da sociedade brasileira,
assim como as demais demonstraram uma grande resistência quanto aos
movimentos
Realismo/Naturalismo,
pois
os
romances
pertencentes
a
tais
movimentos eram considerados profanos e de má conduta.
As obras literárias de alguns autores foram repelidas de imediato pelas
famílias “distintas e de bom costume”, sendo que para os moralistas tais obras
poderiam perverter uma mulher distinta, transformando-a em libertina, ou seja,
poderia fazer com que uma esposa amável e dedicada se tornasse uma vil criatura.
Notamos em nossa análise que o movimento Naturalista com seus autores
e suas obras foi exiguamente tratado, pouco exemplificado com citações nos livros
didáticos, diferentemente dos autores que são tidos como Românticos, ou Realistas.
Mas devemos lembrar que o Naturalismo como movimento literário sobressaiu-se ao
Realismo, por ser mais detalhista quanto à descrição, pela denuncia da hipocrisia da
sociedade burguesa e pelo anti-clericalismo.
A sociedade do século XIX estava moldada dentro dos padrões
burgueses, o romance romântico era o grande representante de tal sociedade. Os
românticos desenvolviam em suas obras personagens tipicamente burgueses.
Enquanto os românticos colocavam a virtude, a valorização da virgindade
e do primeiro amor, como ideais de seus personagens, os Naturalistas desenvolviam
personagens pérfidas, libertinas e patológicas, ou seja, seres que eram “escondidos”
nas narrativas românticas.
O instrumento aparentemente poderoso do naturalismo consistia
na descrição fria e fidelíssima, na mera reprodução, naquela
"bisbilhotice de trapeiros" já referida por alguém. A reprodução fiel,
a cópia habitual, tornaram-se uma receita. Ela se definiu sob as
77
condições da sociedade do ocidente europeu na segunda metade
do século XIX. Havia que reproduzir, e não apenas aqueles
cenários antes objeto de reprodução, mas outros, alargando o
campo de observação e integrando nele outras faixas da atividade
humana. O naturalismo, assim buscou crescer em extensão,
quantitativamente. Não apenas reproduzir o conhecido, o
costumeiro aquilo que vinha sendo objeto da narração romântica,
mas também, e principalmente, aquilo que ela escondera com o
seu véu denso e deformante. Ora, o mais velho dos temas, o do
amor, tinha um mundo escondido. Foi esse mundo que o
naturalismo atacou principalmente, atacou a fundo, trazendo para
a ficção os aspectos recônditos, violentos e orgânicos do amor. O
que, antes, era apenas sentimento, passou a ser apenas
fisiologia. SODRÉ (1965: 136-7)
Lembremos que no romance romântico, seus personagens eram
desprovidos de práticas sexuais explicitadas narrativamente. Dentro das temáticas
do movimento era completamente inadmissível que tais pontos fossem abordados. A
literatura da época estava completamente voltada para o público burguês. Assim
como os românticos, os romances realistas e naturalistas representavam as
tendências da literatura burguesa.
Começaria, pois, com o triunfo absoluto da burguesia, abrindo, os
campos mais largos à iniciativa individual, ao tremendo rush da
ordem privada com o acabamento da desarticulação das
instituições feudais. O clássico reflete essa mudança profunda, na
sua infatigável busca de normas e de cânones a que deveriam
obediência tôdas as manifestações artísticas. As mudanças eram
lentas,a princípio,"refletindo uma sociedade em que a acumulação
de fortunas indivíduos aparecia raramente, era fato isolado e
esporádico. (SODRÉ, 1965: 132-3)
Em nossa análise, percebemos que os livros didáticos de Literatura de
Ensino Médio possuem grandes limitações no tocante à seleção dos fragmentos de
leitura das obras literárias. É sabido por nós que os autores têm objetivos
específicos ao selecionarem alguns romances. Mas o que nos chamou a atenção foi
o fato da maioria dos autores escolheram apenas três obras para trabalharem os
movimentos Realismo e Naturalismo em seus livros didáticos.
Todos os quinze livros didáticos analisados por nós abordaram nos
movimentos Realista/Naturalista os romances Memórias póstumas de Brás Cubas,
de Machado de Assis, O Cortiço, de Aluisio de Azevedo e O Ateneu, de Raul
Pompéia, salvo alguns que trabalharam com outras obras de Machado.
78
Devemos lembrar que o livro é um instrumento de poder, e, muitas vezes,
um aliado às tentativas de disciplinamento moral, ou seja, um elemento que
possibilitem os indivíduos enquadra-se nas normatizações de seu tempo e de seu
grupo social.
Em nossa análise notamos que os livros didáticos não abordam ou tocam
sumariamente nas obras Naturalistas, como: O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, A
Carne, de Júlio Ribeiro, Luzia–Homem, de Domingos Olímpio e até mesmo as de
Aluisio de Azevedo, O Mulato e Casa de Pensão (esses dois últimos livros mais
conhecidos da escola naturalista brasileira). Observamos que estas obras estão
ausentes das páginas que compõem os livros didáticos, uma ausência regular, como
um acordo tácito, uma regra latente ao tratamento do Naturalismo nestes livros,
exceto por O Cortiço, que foi citado em todos os livros.
Seria coincidência que a maioria dos autores dos livros didáticos
negligenciarem de suas obras tais escritores? Preferimos defender que não.
Percebamos que os autores dos livros didáticos possuem um leque de alternativas
para trabalharem com os recortes de leitura, mas não as utilizam. Os recortes são
providenciais, pois podemos notar ao efetuarmos as leituras das obras.
É sabido por nós que livros como O Bom Crioulo e A Normalista, ambos
de Adolfo Caminha, foram extremamente repudiados pela sociedade da época. Um
foi um acerto de contas com a marinha, o outro com a sociedade cearense.
“Caminha provocou escândalo ao escrever sobre a paixão entre o crioulo e o
grumete. As cenas de sexo entre dois homens chocaram críticos sérios e
atrapalharam a recepção do livro.” (CARVALHO, Revista Cult. 2002: 32-3)
As obras de Adolfo Caminha, carregam consigo este estigma até os dias
atuais. Fato que nos leva a crer que isso seja um dos motivos delas serem
interditadas
dos
livros
didáticos
de
Ensino
Médio,
a
forte
temática
do
homossexualismo.
A grande questão que permeia todo nosso trabalho é percebermos que os
livros didáticos de Literatura de Ensino Médio não abordam em suas análises obras
que possuam um cunho erótico, e quando abordam não citam trechos que possam
“ferir a moral”. Muitos autores, mesmo sendo considerados canônicos e respeitados
pela crítica, não só pela brasileira como as de outros países, são interditados das
obras didáticas.
79
O cearense Adolfo Caminha, assim como ocorreu na vida pública, foi
também excluído dos livros didáticos. Na época do lançamento de suas obras, elas
foram consideradas imorais e impróprias para a leitura de rapazes e moças distintas
da sociedade cearense do século XIX.
Adolfo Caminha não é apenas o único autor considerado cânone de nossa
literatura, que teve seu nome e suas obras interditadas. Júlio Ribeiro também é um
nome que se encontra ausente das obras didáticas. Na realidade, ser um cânone,
não é o suficiente para ser estudado e analisado nos livros didáticos de Literatura, é
preciso está de acordo com os moldes e padrões da sociedade dominante de nosso
país. Em nome da moral, da instituição-escola, da Igreja; em nome do correto, da
inteireza e do belo; em nome da pureza e da civilização, os livros didáticos foram
lanceando autores e romances que se usam do erotismo nas redes do
esquecimento, ou no silêncio, para assim, igualmente apagar suas cenas do cenário
escolar, reproduzindo o tabu do sexo, moralizando pela interdição. Felizmente, isso
não foi possível. Mas esse não é mais assunto para esse texto.
80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A primeira e mais importante constatação a qual chegamos em nossa
análise é que os autores Naturalistas e suas obras são interditados nos livros
didáticos de Literatura de Ensino Médio. É importante observar, ainda, que essa
predominância se mantém em todos os 15 livros analisados aqui por nós.
Quanto a este fato, percebemos, também, que os movimentos do
Realismo e Naturalismo não possuem desenvolvimento de suas temáticas, e que o
Naturalismo é trabalhado muitas vezes como uma pequena extensão do Realismo.
Ressaltamos, ainda, que as obras dos escritores Naturalistas são evitadas pelos
autores dos livros didáticos.
A partir do momento que os escritores Naturalistas são interditados dos
livros didáticos, os autores tentam impedir que estudantes brasileiros tomem
conhecimento das grandes representações literárias que nosso país teve durante o
final do século XIX. Portanto, sabemos que Sodré (1965) apontou o movimento
Naturalista brasileiro, como mais completo do que o Realismo, no tocante ao
desenvolvimento de suas características. Observando o depoimento de uma das
maiores personalidades de crítica literária do país, faz com que repensemos o
ensino de Literatura tendo que confiar nas obras didáticas.
Esta consideração nos faz refletir sobre a forma como os conteúdos de
Literatura são inseridos nos livros didáticos. Os autores possuem inúmeras formas
de adicioná-los em suas obras, mas não os fazem, procurando entender tais
questões nos surgem muitas formas de questionarmos a escolha e a seleção dos
autores e obras trabalhadas nos livros didáticos.
Entender a formulação do livro didático é desvendar o porquê da
interdição dos autores Naturalistas. Compreendendo o processo, desde a escolha
dos autores e suas obras, pelo autor do livro didático, até a verificação e aprovação
das editoras.
Logo, ao constatarmos a interdição dos autores Naturalistas e a supressão
do conteúdo de suas obras, devemos observar como está estruturado o livro didático
de Literatura do Ensino Médio com relação a sua composição no tocante a formação
do cidadão crítico perante a sociedade atual.
81
Assim, vale ressaltar que devemos a partir deste ponto repensarmos o
ensino de Literatura em nossas escolas, baseando-se apenas nos conteúdos
formulados nos livros didáticos. É preciso desde já, que o professor de Literatura
tenha sensibilidade ao ministrar suas aulas, acrescentando aos conteúdos propostos
pelo livro didático os conhecimentos necessários sobre nossos escritores
Naturalistas, conseguindo assim, que os mesmos passem a fazer parte do contexto
escolar do aluno, e não como algo proibido e profano. Mas vale ressaltar, que as
questões de moral e pudor estão enraizadas em nossa cultural, as influências que
recebemos durante o processo de colonização, se refletem até o atual momento de
nossa educação.
82
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86
Anexos
Anexo I
O Ateneu
87
Capítulo (fragmento)
"Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu.
"Coragem para a luta!"
Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num
gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o
regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que
parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem
única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento,
têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramonos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma
incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não
viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que
nos alimentam a saudade dos dias que correram como melhores. Bem
considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos
desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente
do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é
uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um
pouco mais de púrpura ao crepúsculo - a paisagem é a mesma de cada lado
beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
POMPÉIA, Raul. O Ateneu - crônica de saudades. São Paulo: Scipione, 1995.
Anexo II
88
RITA BAIANA
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de
ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento,
envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se
acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de
pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as
ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como
numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante;
já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda,
como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não
toma pé e nunca se encontra o fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um
gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo,
subindo, sem nunca parar os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado,
freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro,
sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia
de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as
palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de
loucura.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Scipione, 1995.
Anexo III
O cortiço
89
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos,
mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas
de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras
notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da
aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia.
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e
punha-lhe um fartum acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas
no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez
grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviamse amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por
toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia,
suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras
palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada
cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que
ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de
vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos,
cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá
fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos,
cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zum-zum crescente; uma
aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara,
incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos.
O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas
para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas
despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não
se preocupavam em molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da
água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as
palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de
cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham
ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá
90
ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou
no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zum-zum de todos os dias
acentuava-se: já não se destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto
que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se
discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se.
Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras
que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal
de existir, a satisfação de respirar sobre a terra.
AZEVEDO, Aluísio, O cortiço. São Paulo: Scipione, 1995.
Anexo IV
91
VI
Logo depois de conhecer Amando, João Coqueiro trama
com sua esposa, Madame Brizard, um plano para fazer
com que o moço se case com sua irmã, Amélia.
João Coqueiro, quando saiu do Hotel dos Príncipes na manhã do almoço,
ia preocupado [...] e correu logo para casa. Ao chegar foi direto à mulher [...].
— Sabes? disse ele sem transição, assentando-se ao rebordo da cama.
— É preciso arranjarmos cômodo para um rapaz que há de vir por aí domingo. [...]
— É um achado precioso! Ainda não há dois meses que chegou do Norte,
anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por muito tempo: — é filho único e tem
a herdar uma fortuna! [...]
Mme. Brizard escutava, sem despregar os olhos de um ponto, os pés
cruzados e com uma das mãos apoiando-se no espaldar da cama.
— Ora, continuou o outro gravemente. — Nós temos de pensar no futuro
de Amelinha... ela entrou já nos vinte e três!... se não abrirmos os olhos... adeus
casamento!
— Mas daí... perguntou a mulher, fugindo a participar da confiança que o
marido revelava naquele plano.
— Daí — é que tenho cá um palpite! explicou ele. — Não conheces
Amâncio!... A gente leva-o para onde quiser!... Um simplório, mas o que se pode
chamar um simplório!
Mme. Brizard fez um gesto de dúvida.
—Afianço-te, volveu Coqueiro, — que, se o metermos em casa e se
conduzirmos o negócio com certo jeito, não lhe dou três meses de solteiro!
— Negócio decidido! A questão é arranjar-lhe o cômodo, e já! Tu, — fala
com franqueza à Amelinha; a mim não fica bem... [...]
Nessa mesma tarde Mme. Brizard entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe
sutilmente no "futuro", disse-lhe que "uma menina pobre, fosse quanto fosse bonita,
só com muita habilidade e alguma esperteza poderia apanhar um marido rico". [...]
Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que estivesse ao
seu alcance para agradar ao tal sujeitinho.
Ardia, com efeito, por achar marido, por se tornar dona-de-casa. A posição
subordinada de menina solteira não se compadecia com a sua idade e com as
desenvolturas do seu espírito. Graças ao meio em que se desenvolveu, sabia
92
perfeitamente o que era pão e o que era queijo; por conseguinte; precauções e as
reservas, que o irmão tomava para com ela, faziam-na sorri.
Às vezes tinha vontade de acabar com isso. "Que diabo significava tais
cautelas?... Se a supunham uma toleirona, enganavam-se — ela e muito capaz de
os enfiar a todos pelo ouvido de uma agulha!"
— Agora, por exemplo, neste caso do tal Amando, que custava; Coqueiro
explicar-se com ela francamente?... [...] Mas, não senhor! — meteu-se nas encolhas
e entregou tudo nas mãos da mulher!
E Amélia, quanto mais refletia no caso, tanto mais se revoltava contra a
reserva do irmão:
— Ele já a devia conhecer melhor! pelo menos já devia saber aquela que
ali estava era incapaz de cair em qualquer asneira; aquela que não "dava ponto sem
nó". Outra que fosse, quanto mais — ela, que conhecia os homens, como quem
conhece a palma das próprias mãos! — Ela, que viu de perto, com os seus olhos de
virgem, toda a sorte de tipos! — ela, que lhes conhecia as manhas, que sabia das
lábias empregadas pelos velhacos para obter o que desejam e o modo pelo qual se
por depois de servidos! — Ela! tinha graça!
AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão. São Paulo: Ática, 1992. (Fragmento).
Anexo V
O Ateneu
Capítulo III
93
(fragmento)
Se em pequeno, movido por um vislumbre de luminosa prudência,
enquanto aplicavam-se os outros à peteca, eu me houvesse entregado ao manso
labor de fabricar documentos autobiográficos, para a oportuna confecção de mais
uma infância, célebre, certo não registraria, entre os meus episódios de
predestinado, o caso banal da natação, de conseqüências, entretanto, para mim, e
origem de dissabores como jamais encontrei tão amargos.
Natação
chamava-se
o
banheiro,
construído
num
terreno
das
dependências do Ateneu, vasta toalha d´água ao rés da terra, trinta metros sobre
cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada por grandes torneiras de
chave livre. O fundo, invisível, de ladrilho, oferecia uma inclinação, baixando
gradualmente de um extremo para outro. Acusava-se ainda mais esta diferença de
profundidade por dois degraus convenientemente dispostos para que tomassem pé
as crianças como os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto a água cobria um
homem.
Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e março e do fim do ano,
havia aí dois banhos por dia. E cada banho era uma festa, naquela água gorda,
salobra da transpiração lavada das turmas precedentes, que as dimensões do
tanque impediam a devida renovação; turbulento debate de corpos nus,
estreitamente cingidos no calção de malha rajado a cores, enleando-se os rapazes
como lampreias, uns imergindo, reaparecendo outros, olhos injetados, cabelos a
escorrer pela cara, vergões na pele de involuntárias unhadas dos companheiros,
entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de terror; os menores agrupados no
raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos, se algum mais forte chegava.
Dos maiores, alguns havia que faziam medo realmente, singrando a
braçadas, levando a ombro a resistência d'água; outros se precipitavam cabeça para
baixo, volteando os pés no ar como cauda de peixe, prancheando sem ver a quem.
E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de ressaca se emborcavam e iam
transbordar pelas imediações do banheiro alagando tudo.
Ao longo do tanque, corria o muro divisório, além do qual ficava a chácara
particular do diretor. À distância, viam-se as janelas de uma parte da casa, onde às
vezes eram recolhidos os estudantes enfermos, fechadas sempre a venezianas
verdes.
94
Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de bambus e ramos de
hera, vinha Ângela a canarina, ver os banhos da tarde. Lançava pedrinhas aos
rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam, buscando o seixo.
Ângela torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria perdidamente um grande
riso, desabrochado em corola de flor através dos dentes alvos.
Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem movimentada.
Procurei o recanto dos menores. Determinava a disciplina a divisão dos
banhistas em três turmas, conforme as classes de idade. Mas, o descuido da
fiscalização permitia que as turmas se confundissem e o inspetor de serviço, com a
varinha destinada aos retardatários, vigiava, afastado, de sorte que ficavam
expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos que as espadana d'água
acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo, prendiam-me o
tornozelo, o joelho. A um impulso violento caí de costas; a água abafou-me os gritos,
cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num desespero de asfixia, pensei morrer.
Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso; e bracejava, à toa, imerso
a desfalecer, quando alguém me amparou. Um grande tomou-me ao ombro e me
depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei algum tempo para me inteirar do
que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo.
"Ia afogar-se!" disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os
cabelos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me
haviam feito. "Perversos!" observou-me o colega com pena, e atribuiu a brutalidade
a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores, desvelando-se em
solicitudes por tranqüilizar-me. Tive depois motivo, para crer que o perverso e a
peste fora-o ele, próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço.
POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 13. ed. São Paula: Atiça, 1991.
Anexo VI
O Ateneu
Raul Pompéia Capítulo VII (fragmento)
95
O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se
pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.
Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a
toalha esmeraldina do campo e o diorama acidentado das montanhas daTijuca,
ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de
exceção, por momentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio central, quente, insuportável de luz, ao
fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da caiação, do tédio, claras,
cada vez mais claras.
Quando se aproxima o tempo das férias, o aborrecimento é maior.
Os rapazes, em grande parte dotados de tendências animadoras para a
vida prática forjicavam mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança
fazia época como as modas, metamorfoseando-se depressa como uma série de
ensaios.
A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito, subindo como
foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam-se as bolas elásticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas esferas de vidro.
Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de linhas a giz
no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as suas variantes,
primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanso, inferno, céu, levando-se à
ponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dos
jogos de corrida, entre os quais figurava notavelmente o saudoso e rijo chicote
queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio central animava-se com a
revoada das penas, o estalar elástico das bolas, passando como obuses, ferindo o
alvo com pontaria amestrada, o formigamento multicor das esferas de vidro pela
terra, com a gritaria de todas as vozes do prazer e do alvoroço.
Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as
penas, os selos postais, os cigarros, o próprio dinheiro. As especulações moviam-se
como o bem conhecido ofídio das corretagens. Havia capitalistas e usurários,
finórios e papalvos; idiotas que se encarregavam de levar ao mercado, com a
facilidade de que dispunham fora do colégio, fornecimentos inteiros, valiosíssimos,
de Mallats e Guillots que os hábeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e
selos inestimáveis que os colecionadores práticos desmereciam para tirar sem
96
custo; fumantes ébrios de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça,
repimpados à turca sobre os coxins da barata fartura.
As transações eram proibidas pelo código do Ateneu. Razão demais para
interessar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos,
mais expressamente característicos, dados que espirravam como pipocas, naipes
em leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos, entremostrando a pança do
rei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha da sota, a paisagem ridente do
ás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma aluvião de fichas em cartão,
pululantes como os dados e coradas como os padrões do carteiro.
A principal moeda era o selo.
Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia prêmios de lição que
valessem o mais vulgar daqueles cupons servidos. Sobre este preço, permutavamse os direitos do pão, da manteiga ao almoço, da sobremesa, as delícias secretas
da nicotina, o próprio decoro pessoal em si.
A raiva dos colecionadores, caprichando em exibir cada qual o álbum mais
completo, mais rico, transmitia-se a outros, simples agentes de especulação; destes
ainda a outros com a sedução do interesse. No colégio todo, só Rebelo talvez e o
Ribas, o primeiro fundeado no porto da misantropia senil que o distanciava do
mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de Nossa
Senhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à geral necessidade de
premunir-se com valor corrente para as emergências.
No comércio do seio é que fervia a agitação de empório, contratos de
cobiça, de agiotagem, de esperteza, de fraude. Acumulavam-se valores, circulavam,
frutificavam; conspiravam os sindicatos, arfava o fluxo, o refluxo das altas e das
depreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros adiados, espapando
banhas de prosperidade.
POMPÉIA, Raul.
Anexo VII
O Cortiço
97
— Foi da friage da noite, afirmou a Bruxa; e deu um pulo à casa do
trabalhador para receitar. Doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que
ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a
segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em
sua casa um e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência ia protestar brutalmente
contra semelhante invasão quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita aproximava
também.
— Ah!
E desfranziu-se-lhe o rosto.
— Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha
chegada? Se tal soubera não vinha!
Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera.
A mulata aproximou-se da cama.
Como principiara esse trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na
cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho
branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela.
Jerônimo apertou-lhe a mão.
— Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado.
— Já tomou algum remédio?
— A mulher falou aí em chá preto...
— Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma
resfriagem. Vou lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um
gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra!
Espere aí!
E saiu logo, deixando todo o quarto impregnado dela.
Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando
Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que
principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do
costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e
desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco.
— Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim
m'assustas... Que tens, di-lo!
— Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa...
— Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus!
98
— Já te disse que tomo outra mezinha. OM Piedade não insistiu.
— Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia!... Melhor seria que
estivesses à tua tina em vez de ficar aí a murmurar do próximo... Anda! vai tomar
conta das tuas obrigações.
— Mas estou-te a dizer que não há transtorno!...
— Transtorno já é estar eu parado; e pior será pararem os dois!
— Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!...
— E eu acho que isso é tolice! Vai! anda!
Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que
entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café
com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente.
— Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata.
E deixou-se ficar.
Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a
vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.
— Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por
qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E aí, ai,
Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!
Ele riu-se, assentando-se na cama.
— Pois não é assim mesmo? perguntou ela à Piedade, apontando para o
carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr'aquela cara e diga-me se não está a pedir
que o enterrem!
A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida
contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a
inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o extinto, o faro sutil e
desconfiado de toda fêmea pela outras, quando sente o seu ninho exposto.
AZEVEDO, Aluíso. O Cortiço.
99
Anexo VIII
O Cortiço
Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras".
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago
adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As
moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. [...]
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta,
com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos
de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura
das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru,
armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de
roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva,
uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e
multiplicar-se como larvas no esterco.
O cortiço. São Paulo, Ática, 1997.
100
Anexo IX
CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS ROMANCES DO REALISMO
1881 O mulato, de Aluísio Azevedo
Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
1884 Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo
1888 O missionário, de Inglês de Sousa
O Ateneu, de Raul Pompéia
1890 O cortiço, de Aluísio Azevedo
1891 Quincas Borba, de Machado de Assis
1893 A normalista, de Adolfo Caminha
1895 Bom – Crioulo, de Adolfo Caminha
1899 Dom Casmurro, de Machado de Assis
1903 Luzia – Homem, de Domingos Olímpio
1904 Esaú e Jacó, de Machado de Assis
1908 Memorial de Aires, de Machado de Assis
101
Anexo X
Dona Guidinha do Poço
O Lulu Venâncio estava na terra, muito em segredo. Guida mandara
buscá-lo ao Riacho do Sangue, enquanto o demo esfrega um olho. Chegara de noite
ao Poço.
A matrona foi logo dizendo:
— Lulu, mandei-o chamar para um serviço importante.
O rapaz, entressorrindo e meio acanhado:
— Seá Dona, Vosmicê bem sabe que pra Vosmicê eu não me arrecuso
pra serviço ninhum. Eu cá estou acostumado a servir aos meus protetores.
Guida havia tocado, anteriormente, para o mesmo mister que queria
confiar ao Venâncio, a dois sujeitos avezados ao uso faca e do clavinote, o João
Grosso e o Caetano; mas o primeiro se acurvou com uma dor de uma que sofria há
tempos e lhe tirara a destreza, e o segundo foi logo francamente que o homem não
saía da vila, tinha o mundo inteiro a favor, que ela mandatária estava debaixo, que
por tudo isto o negócio não era nada seguro, e não era o filho de seu pai que
pisasse em ramo verde.
Guida esperava, pois, tudo do Lulu, e empregaria a maior habilidade. Não
foi preciso muito. Quando ela trouxe lá de dentro, na bainha encastoada um rico
punhal antigo, que pertencera ao fundador do Poço da moita, e o depôs nas mãos
do criminoso, disse estas palavras:
— Dê cabo de mim ou dele: um de nós deve desaparecer!
O cangaceiro, sorrindo, recebeu a arma, que desembainhou, mirou como
quem lê, admirou, e deu palavra:
— Suas ordens serão cumpridas, Seá Dona Guidinha!
PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. São Paulo, Ática, 1981.
102
Anexo XI
O Ateneu
Capítulo l (Fragmento)
Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de recolher.
Desfilaram aclamados, entre alas de povo, e se foram do campo, a alegremente
uma canção escolar.
À noite houve baile nos três salões inferiores do lance principal edifício e
iluminação no jardim.
Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes de Bengala
diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendente interior, dava-se ares de
encantamento com a iluminação de fora. Erigia escuridão da noite, como imensa
muralha de coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações
errantes de sombra, como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à
selva intensa dos n cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para
uma entrevista de espectros e recordações. Um jacto de luz elétrica, derivado de
foco invisível, seria a inscrição dourada. Athenaeum em arco sobre janelas centrais,
no alto do prédio. A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão
olímpica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a
sensação prévia, no banho luminoso, rivalidade a que se julgava consagrado. Devia
ser assim: — luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente glorioso do
Panteão. A contemplação da posteridade embaixo.
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com
ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um cartaz que experimentasse o
entusiasmo de ser vermelho. Naquele momento, não era simplesmente a alma do
seu instituto, era a própria feição palpável, a síntese grosseira do título, o rosto, a
testada, o prestígio material de seu colégio, idêntico com as letras que luziam em
auréola sobre a cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal: única diferença.
Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta apoteose com o
atordoamento ofuscado, mais ou menos de um sujeito partindo à meia-noite de
qualquer teatro, onde, em mágica beata, Deus Padre pessoalmente se houvesse
prestado a concorrer para a grandeza do último quadro. — Conheci-o solene na
primeira festa, jovial na segunda; conheci-o mais tarde em mil situa-: mil modos; mas
103
o retrato que me ficou para sempre do meu grande foi aquele — o belo bigode
branco, o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia estática, na
aventura de um raio elétrico.
É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão te
interessante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando
me disse meu pai que eu ia ser apresentado ao diretor do Ateneu e à matrícula. O
movimento não era mais a vaidade, antes o legítimo instinto da responsabilidade
altiva; era uma conseqüência apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de
solidariedade que me parecia prender a comunhão fraternal da escola. Honrado
engano, esse ardor franco por uma empresa ideal de energia e de dedicação
premeditada confusamente, no cálculo pobre de uma experiência de dez anos.
POMPÉ1A, Raul. O Ateneu. 16. ed. São Paulo, Ática, 1996.

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