vencer o clichê a partir do acaso: deleuze

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vencer o clichê a partir do acaso: deleuze
VENCER O CLICHÊ A PARTIR DO ACASO: DELEUZE, BACON E CAGE
Fernando Sepe 1
No belo capítulo intitulado “A pintura antes de pintar 2” Deleuze nos lembra como o
pintor nunca está frente a frente com uma tela em branco. Pois, “o pintor tem várias coisas na
cabeça, ao seu redor ou no ateliê 3.” Em sua cabeça, o pintor traz “dados figurativos”,
clichês-psíquicos a qual todos estamos sujeitos: fotografias, publicidade, imagens-cinema,
imagem-televisão. No ateliê, no mundo a sua volta, objetos que se apresentam como dados a
um sujeito da representação, como uma figuração irresistível e natural. Sendo assim, seu
trabalho não se define como um ato intencional e livre de organização de linhas e cores. Pelo
contrário, a luta contra o clichê deverá ser intensa e, para tanto, cabe esvaziar a tela, destruir
as velhas imagens, torcê-las até que se tornem irreconhecíveis. O pintor varre, deforma e luta
com o campo de possibilidades que, de antemão, já se apresenta virtualmente na tela. O gesto
de criação começa, portanto, com uma questão: como escapar do clichê? Como fazer com que
a Figura surja para além da representação reificada?
Deleuze nos lembra como uma das estratégias maiores da pintura contemporânea é a
deformação da figuração, por exemplo, no uso paródico da Pop art, ou ainda, em sua abolição
completa, como na pintura radicalmente abstrata da Escola de Nova York, através da técnica
conhecida como actionpainting. Tais procedimentos visam escapar do clichê distorcendo-os,
ou negando-os. Bacon, porém, após um primeiro flerte com a fotografia e sua distorção, irá
buscar uma solução mais audaciosa. Para ele, “a maior transformação do clichê não
constituirá um ato de pintura, não produzirá a menor deformação pictural. Seria melhor
aderir aos clichês, convocá-los todos, acumulá-los, multiplicá-los, como dados prépicturais 4”.
É assim que Bacon-Deleuze precisa distinguir entre probabilidades e acaso. A
probabilidade diz respeito “aos dados antes de serem jogados; e o acaso, designa, ao
contrário, um tipo de escolha, não científica e ainda não estética 5”. Em outras palavras, as
probabilidades e os clichês encontram-se de antemão na tela, porém Bacon irá aderir aos
clichês e, a partir de uma astúcia, buscar destruí-los. Para tanto, seu processo de criação irá
fazer uso do acaso.
Primeiramente, Bacon tem uma ideia, ele sabe o que quer pintar. Tal decisão faz com
que a probabilidade se desequilibre, que o campo do possível ganhe um contorno. Porém,
Bacon não sabe como pintar de antemão, não encontra em si mesmo meios autênticos de
escapar do clichê. Aqui, começa a astúcia do pintor, astúcia que se define como uma aposta:
Bacon faz marcas ao acaso (traços-linhas), demarcando o campo de batalha. Tais marcas,
absolutamente aleatórias, irão lhe dar uma chance de escapar do clichê. Uma chance, e não
uma certeza, o que seria o máximo de probabilidade. Pois tais dados pré-picturais não
consistem, em si, no escape do retorno infinito do mesmo. Pelo contrário, trata-se de marcas
que irão se integrar ao ato de pintar, que ao orientar o conjunto visual permite ao artista
“extrair a Figura improvável do conjunto das probabilidades figurativas. 6”Ao fazer a
passagem da probabilidade ao acaso, Bacon abre a obra ao acaso, buscando absorvê-lo dentro
da estrutura figurativa.
Dessa forma, após a demarcação aleatória, tais dados serão
varridos, recobertos, ou amarrotados pelo ato de pintar. Um novo mundo poderá surgir,
1
Mestrando em filosofia PPGFIL/ UFSCar, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]
DELEUZE, G. Lógica da sensação, p.91-101; edt. Jorge Zahar
3
Ibid., p.91
4
Ibid., p.96
5
Ibid., p.98
6
Ibid., p.99
2
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mundo que pode vir-a-ser através da utilização do acaso, desse campo pré-significativo que é
absorvido na representação. Por isso, não se trata de opor abstração à figuração, acaso e
necessidade. Pois a pintura, em Bacon, terá sempre dois momentos: “há um primeiro,
figurativo, pré-pictural: ele está na tela e na cabeça do pintor, antes que o pintor comece,
clichês e probabilidades.” Mas, há também um segundo momento, aquele em que o pintor
obtém a representação integrando o acaso.Tal integração não será sem consequências: uma
tensão interior ao quadrosurge, algo que continuamente escapa à racionalidade pictural, que
força as cores e as linhas de forma aberrante, que nos leva para longe do clichê, possibilitando
a emergência da Figura. Em última análise, para Deleuze, em Bacon o ato de pintar passa pelo
uso metódico do acaso, de sua assimilação dentro do processo criativo para que a Figura
possa advir, para que a figuração surja para além dos modos reificados de ver e sentir.
De tal descrição extremamente concisa do método de Bacon - descrição a ser
desenvolvida plenamente durante a comunicação - podemos pensar como tal estratégia do uso
do acaso fora utilizada em outra experiência estética marcante do séc.XX, a música de John
Cage. Tal paralelo se justifica pela total oposição entre pintura e música, arte espacial e
temporal respectivamente. Pois mesmo dentro de registros díspares, veremos como uma
mesma ideia pode funcionar como princípio de organização formal da obra. Aqui entramos no
segundo momento a ser desenvolvido em nossa comunicação. Tal momento é definido pelo
objetivo de apresentar a música de Cage como uma tentativa de introduzir o acaso dentro da
forma musical.
Nesse sentido, o projeto estético de Cage pode ser definido como uma crítica à razão
musical ocidental. Tal projeto buscar superar a racionalidade de organização e partilha do som
instituído no ocidente, aquilo que comumente chamamos de sistema tonal. Contra tal forma
de organização do material sonoro, Cage buscará uma música que mimetize a natureza,
chegando a afirmar que “Arte = imitação da natureza em seus modos de operação 7.” Porém,
tal mímesis não se dará como naturalização da forma tonal. Pelo contrário, Cage assumirá um
projeto destrutivo, buscando limpar o espaço da organização sonora de todo e qualquer clichê
historicamente sedimentado, para que só então a experiência do som puro possa acontecer.
Trata-se de pensar o som em si mesmo, sem submetê-lo a uma lógica pré-estabelecida das
relações: “A noção de relação retira a importância do som (...) eu comecei a me interessar
não pelas relações – ainda que visse a interpenetração das coisas – mais creio que elas se
interpenetram de uma maneira mais rica, mais abundante, se não estabeleço relação
alguma. 8”
Para tanto, o processo composicional de Cage não trabalhará com as clássicas distinções
entre ruído e som, silêncio e música, qualidades periféricas e centrais do som, etc. Tudo isso
será abandonado pelo compositor em sua tentativa de superar clichês da organização musical.
Trata-se, ao contrário, de criar condições para que a experiência do som puro possa se dar,
abrir a música ao acaso da relação natural do material sonoro, como uma mímesis não do
som, mas da própria maneira de operação deles na natureza.
Como exemplo, podemos pensar em Imaginary landscapes n. 4. Trata-se de uma peça
para doze rádios aleatoriamente sintonizados. Além disso, Cage utiliza na peça em questão o
I-Ching como método para a definição da estrutura de tempo, duração, dinâmica e sons de
rádios. Desta forma, “os sons entram no espaço-tempo centrados em si mesmos, desimpedido
pelo exercício da abstração, seus 360 graus de circunferência livres para um jogo infinito de
interpenetração 9.” Tal obra, nos revela o uso radical do acaso como princípio a organizar o
processo composicional. Mas, muito além de uma mera abertura completamente acasual,
7
CAGE, J. Composition in retrospect
KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, p.366
9
CAGE, J. Silence, p.50
8
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trata-se de criar condições de possibilidade para que o acaso possa emergir, possibilitando
assim que o material sonoro se dê fora de qualquer relação pré-estabelecida.
Dessa forma, nossa comunicação buscará, aprofundando as análises aqui esboçadas,
mostrar como o recurso ao acaso pode ser visto como uma estratégia maior da arte do séc.XX
na tentativa de superação do clichê. Porém, buscaremos mostrar como, se tal princípio é
compartilhado por projetos absolutamente díspares como os de Cage e Bacon, suas
consequências não serão as mesmas: em Bacon, encontraremos uma lógica da sensação
confusa e perturbada, uma pintura marcada pela busca da intensidade; já em Cage, teremos
um “estoicismo musical”, uma estética da indiferença e indeterminação: "Eu peço ao artista
para mudar minha maneira de ver, não minha maneira de sentir. Estou perfeitamente feliz
com minhas sensações. Na verdade, se quisesse acrescentar algo a elas, seria alguma forma
de tranquilidade. Não quero perturbar minhas sensações. Não tenho a intenção de passar o
resto da minha vida sendo jogado para todos os lados por um bando de artistas 10."
Referências
CAGE, Silence, Middletown: Wesleyan University Press, 1996
_________ Composition in Retrospect, Exact Change, 2008
DELEUZE, Gilles. Lógica da sensação, trad. Roberto Machado (coordenação). Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2007
KOSTELANETZ, Conversations avec John Cage, Paris: Syrte, 2000
SAUVAGNARGUES, Anne, Deleuze et l’art, Paris, Pressesuniversitaire de France, 2006
SAFATLE, Vladimir. Destituição subjetiva e dissolução do eu na obra de John Cage, in In.
Sobre arte e psicanálise/ orgs; Tânia RIVERA e Vladimir SAFATLE – São Paulo: Escuta, 2006.
10
KONSTELANETZ, Conversations avec John Cage, op. cit., p. 240
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