A Sublimação e a Clínica em Lacan

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A Sublimação e a Clínica em Lacan
A Sublimação e a Clínica em Lacan
Eliane Mendlowicz
O conceito de sublimação aparece na obra freudiana em 1897, nas cartas a Fliess
(manuscrito L), quando Freud se perguntando sobre a histérica, descobre que a causa
desse tipo de neurose se deve à vontade inconsciente da histérica de esquecer a cena de
sedução sexual paterna. Para evitar a rememoração da cena, a histérica constrói
fantasias baseadas na cena que ela quer esquecer. Assim, a histérica consegue
temperar, sublimar a lembrança. Daí em diante, o termo evolui para diferentes
significações que oscilam de concepções que se fundam em meios de defesa, capazes
de temperar os excessos e transbordamentos pulsionais, até elaborações que implicam
uma teorização da sublimação como um meio de expressão altamente valorizado
socialmente da pulsão.
Embora possa ser considerado como um termo essencial à psicanálise e para
muitos autores esteja diretamente vinculado à questão da cura na clínica psicanalítica, o
mais nobre dos destinos de um processo analítico, é sem dúvida um termo inacabado na
obra freudiana, dando margem a diversas interpretações.
Em 1915, Freud escreveu um estudo metapsicológico sobre a sublimação, escrito
este provavelmente destruído. Bem mais tarde, em 1930, no “Mal Estar na Civilização”, é
ainda diante de um conceito inacabado que se encontra Freud. A satisfação sublimada,
diz Freud, possui “uma qualidade particular que um dia chegaremos certamente a
caracterizar do ponto de vista metapsicológico” (Freud, 1930). Jamais foi completamente
elaborado e o que restou dessa concepção, que alguns autores consideram que não
poderia se caracterizar corretamente como um conceito, envolve impasses lógicos
suficientes que justificam um questionamento acerca deste termo, com um valor
indubitável para a psicanálise, uma vez que se refere a um dos destinos pulsionais
possíveis.
Freud, em 1923, afirma que a vicissitude mais importante que uma pulsão pode
sofrer parece ser a sublimação, processo em que tanto o objeto como a finalidade são
mudados. O que era originalmente uma pulsão sexual acha sua satisfação em alguma
realização que não é mais sexual, com um valor social ou ético mais elevado.
O artigo foi publicado no livro – A PSICANÁLISE E SEUS DESTINOS – Organizadores: José Durval Cavalcanti de Albuquerque e Edson Lannes,
Ed. Coqueiral
A sublimação se mostra difícil de definir na teoria e na clínica, onde as descrições
sobre os percursos psicanalíticos que redundam em criações sublimatórias são não só
imprecisas, como parecem da ordem da magia, onde subitamente um grande talento
eclode, visão no mínimo ingênua, a serviço de um desejo de coerência entre a prática e
um esboço teórico.
Lacan, no “Seminário sobre a Ética” (1959-1960) é extremamente mordaz, ao
criticar um artigo de Melanie Klein, “Situações de Angústias Infantis Refletidas num
Trabalho de Arte e no Impulso Criativo”. Nesse artigo, a autora referindo-se a um exemplo
de uma analista, Karin Mikailis, comprova sua teorização sobre a sublimação, que implica
uma reparação ao corpo materno despedaçado.
Mikailis relata o caso de uma cliente melancólica, que se queixava de um vazio
dentro de si. Tal cliente tinha em sua casa uma parede coberta por quadros pintados por
seu cunhado, um pintor tido como talentoso. Um dia, seu cunhado vende um dos quadros
e a parede fica com um vazio, precipitador de crises depressivas na paciente. Ela resolve
então a situação pintando uma tela. Jamais tinha pintado nada em sua vida, e seu
cunhado completamente perplexo não acredita que ela tivesse sido a autora e argumenta
que se ela fora capaz de pintar aquele quadro, ele seria capaz de reger uma sinfonia de
Beethoven na Capela Real, embora ele não pudesse reconhecer nenhuma nota musical.
Lacan ironiza o resultado, observando a absoluta falta de crítica a algo que mais
parece uma obra do divino Espírito Santo. Entretanto, Melanie Klein desconsidera
completamente a possibilidade de ser uma pura invencionice e faz uma análise dos
quadros, tentando comprovar sua teorização e, para isso, esse exemplo se adequava
perfeitamente. O primeiro quadro era uma pintura de uma negra, depois se seguia uma
velha decrépita para, finalmente, culminar na pintura de uma mulher que era a mãe da
cliente, em seus anos esplendorosos. Ora, isso servia, portanto, como uma demonstração
quase perfeita da reparação do corpo materno despedaçado através de um processo
sublimatório.
No desenvolvimento da obra freudiana a sublimação passa a implicar um processo
que envolve uma modificação da meta e do objeto pulsional. A meta mais imediata da
pulsão é a satisfação sexual. A sublimação supõe uma modificação e até mesmo uma
mutação da meta. O objeto é um objeto contingente e a modificação da meta mais a
contingência do objeto implicam um processo de dessexualização. Ora, é preciso manter
neste processo uma ligação com a sexualidade, se quisermos sustentar a construção
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psicanalítica fundamental de que as forças criadoras têm como fonte necessariamente a
sexualidade.
Diante deste paradoxo da dessexualização da libido, Lacan utiliza o termo Das
Ding, a partir do texto freudiano, “Projeto de Uma Psicologia Científica” (1895), e afirma
que é justo “a sublimação que traz à pulsão uma satisfação diferente de sua meta –
sempre definida como meta natural – é precisamente o que revela a própria natureza da
pulsão que não é puro instinto, mas que tem relação com Das Ding como tal, com a Coisa
enquanto distinta do objeto” (Lacan, 1959-1960). Vincula o termo Das Ding ao campo
pulsional e o remete ao que vai além do sujeito do significante, consequentemente além
da vigência do princípio do prazer.
A Coisa tem uma longa tradição na filosofia, de Aristóteles a Heidegger, passando
pela concepção kantiana da Coisa em si que está além da aparência fenomênica e é, em
si mesma, incognoscível. Em psicanálise, Das Ding se situa como objeto mítico pulsional,
objeto perdido para sempre, ou como especifica Lacan, este objeto não foi perdido, por
sua própria natureza é um objeto reencontrado, é reencontrado sem que soubéssemos, a
não ser pelos seus reencontros, que foi perdido. Portanto, a Coisa nos reencontros de
objeto é representada por outra coisa.
Não faremos uma análise crítica do termo Das Ding, construção assaz enigmática,
mas reconhecemos seu valor operacional e ousamos dizer que a junção do campo
pulsional a Das Ding afasta qualquer possibilidade de se interpretar a pulsão como algo
da ordem do natural, do biológico, assim como exclui qualquer equação do Real com o
natural.
Das Ding se apresenta como uma “unidade velada”. O significante construído pelo
homem é feito à imagem da Coisa, embora esta Coisa seja da ordem do irrepresentável,
portanto, impossível de ser imaginada. No nível da sublimação “o objeto é inseparável das
elaborações imaginárias, especialmente das culturais” (Lacan 1959-1960). Portanto, o
objeto refere-se ao que é da ordem narcísica, diferentemente da Coisa, que como já foi
dito, pertence ao campo do mais além do princípio do prazer. Nessa direção Lacan ergue
sua fórmula, bastante geral, da sublimação, afirmando que “ela eleva o objeto à dignidade
da Coisa” (Lacan 1959-1960). Implica a criação de imagens, formas significantes
construídas a partir da imagem inconsciente de nosso corpo, mais exatamente de nosso
eu inconsciente narcísico, não tendo uma utilidade social prática e imediata, embora
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dependa de valores sociais da época, mas os ganhos utilitários são secundários, os
significantes criados têm como função primordial representar a Coisa.
Nesta formulação, a sublimação implica um processo diferente do sintoma, que
envolve uma substituição significante como meio de satisfação pulsional, tal substituição é
desmontável e aponta para outra cadeia de significantes. No caso da sublimação, há uma
irredutibilidade a qualquer outra cadeia de significantes e ela é criada, a partir de ex-nihilo.
Sabemos que no texto “O Instinto e suas Vicissitudes” (1915), Freud distingue o
recalque e a sublimação como destinos pulsionais diferentes, mas esta é outra área
problemática da concepção freudiana, pois de uma forma ou outra o sexual aparece
transformado. No texto “Futuro de uma Ilusão” (1927), Freud nos adverte de que a arte é
a atividade criativa que mais se adapta para reconciliar o homem com os sacrifícios que
tem que fazer em nome da civilização. Se não há recalque, de qualquer forma há um
constrangimento, um impedimento imposto à atividade pulsional, que tem que desviar seu
fluxo para uma atividade não sexual, cujo resultado não é uma realização disfarçada de
desejo, mas sim a criação de uma nova forma, irredutível a qualquer outra significação
possível.
O destino pulsional no recalque encontra sua satisfação numa sequência
significante fixada, enquanto a sublimação, segundo nosso ponto de vista, se caracteriza
fundamentalmente pela criação de um novo significante na cultura.
Lacan, retomando Freud do “Mal Estar na Civilização” (1930), situa a questão
sublimatória em torno da arte, da religião e da ciência. São as formas sublimatórias
características de nossa civilização e todas as três implicam uma relação com o vazio. O
homem é o médium entre o Real e o significante. “Esta Coisa, aonde todas as formas
criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada por um
vazio, já que não pode ser representada por outra coisa – ou melhor – só pode ser
representada por outra coisa” (Lacan 1959-1960). Prossegue dizendo que a arte consiste
em um modo de organização em torno desse vazio, a religião numa construção a fim de
evitar o vazio e a ciência rejeita a presença da Coisa, já que pressupõe a possibilidade de
um saber absoluto, mas em todas as formas de sublimação, o vazio será determinante, o
vazio estará sempre no centro.
A sublimação pressupõe, portanto, uma criação que tem como referência central o
vazio, ao passo que o sintoma presentifica a fixação de uma relação de objeto imaginária,
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que satisfaz de uma forma ou outra a pulsão, e mantém a esperança de uma satisfação
absoluta.
Diante de nossa argumentação resta-nos indicar, para finalizarmos, a questão da
relação da sublimação com a clínica psicanalítica, como o destino mais nobre de qualquer
processo analítico em direção à cura.
Interpretamos a fórmula geral de Lacan, que a sublimação consiste em elevar o
objeto à dignidade da Coisa, como uma fórmula que está mais próxima do Freud de
“Leonardo da Vinci” (1910) e do Freud de “Mal estar na Civilização” (1930), quando ele
aponta “que nada parece caracterizar melhor a civilização que sua estima e estímulo às
atividades mentais humanas superiores – suas realizações intelectuais, científicas e
artísticas e o papel líder que é designado às ideias nas realizações artísticas, entre estas
ideias estão os sistemas religiosos”, do que o Freud de “O Ego e o Id” (1923), texto onde
ele levanta a hipótese da sublimação ser uma dessexualização sob a forma de um retorno
narcísico ao eu.
Em “O Ego e o Id” (1923), Freud coloca em questão a possibilidade da
transformação da libido objetal em libido narcísica implicar o abandono de objetivos
sexuais, ou seja, uma dessexualização, um tipo de sublimação. Levanta a hipótese de
que toda a sublimação ocorreria através de uma mediação do eu, que iniciaria o processo
trocando a libido sexual de objeto em libido narcísica e daí em diante prosseguiria para
dar-lhe outro objetivo. Freud nunca ficou inteiramente satisfeito com esta formulação, pois
no “Mal Estar na Civilização” (1930) coloca esta questão em dúvida e parece privilegiar
mais a sublimação, como um processo que só poucas pessoas conseguem realizar.
Lacan repudia a sublimação como mediada pelo eu, pois critica duramente
Bernfeld, quando esse autor, através de um exemplo clínico, supõe que a sublimação
deveria ser considerada a partir da parte pulsional que pode ser utilizada às finalidades do
eu. Lacan sustenta que “... o problema da sublimação se coloca muito mais precocemente
que no momento onde a divisão entre as finalidades da libido e do eu se tornam claras,
patentes.... A Coisa
é um lugar decisivo de onde deve ser articular a definição da
sublimação, antes que o eu tenha nascido e antes que as finalidades do eu apareçam”
(Lacan 1959-1960).
É sobre este argumento de Lacan, é sobre os três campos escolhidos por este
autor para situar o problema da sublimação, a arte, a religião e a ciência, é sobre sua
insistente discriminação que não é qualquer produção do homem que implica a
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sublimação e sim somente aquelas que provocam um choque, uma novidade, é que
repousa nosso argumento que a sublimação envolve a criação de um novo significante
na cultura.
Esta formulação nos aproxima do Freud de “Leonardo da Vinci” (1910), quando ele
discrimina que as pulsões que tem como destino a sublimação ficam no limite do que é
discernível pela psicanálise. Freud afirma neste texto que embora o talento artístico e a
capacidade sejam intimamente ligados com a sublimação, teria que admitir que a
natureza da função artística e criadora é inacessível às linhas psicanalíticas. “Nossa meta
permanece a de demonstrar a conexão do caminho da atividade pulsional entre as
experiências externas de uma pessoa e suas reações. Mesmo que a psicanálise não
esclareça o poder artístico de Leonardo, pelo menos ela torna suas manifestações e suas
limitações compreensíveis” (Freud 1910).
Elevar um objeto à dignidade da Coisa pressupõe necessariamente uma
simbolização, mas é um processo que vai além, que tem algo a mais que uma
simbolização, pois implica uma disrupção, emergindo algo de novo e surpreendente.
Consequentemente, a sublimação é um processo que implica uma simbolização a mais.
No caso da simbolização, o que se observa é um processamento dos dados já
disponíveis na cultura e essa é uma diferença significativa, ou seja, supomos que no
processo sublimatório algo de novo se inscreve com efeitos cujas marcas se manifestam
necessariamente no cultural, daí a tese de que a sublimação é a criação de um novo
significante na cultura.
Na clínica psicanalítica, a remissão sintomática cria condições favoráveis a uma
redistribuição econômica, que facilita o campo sublimatório. Desfeita a fixação com a
relação de objeto imaginária, que promete a satisfação absoluta, a pulsão terá a via
sublimatória mais desimpedida, o que não implica que a psicanálise tenha acessibilidade
ao porque a via sublimatória foi a escolhida. Estamos diante de mais um impasse, mais
um limite de nosso ofício, e relembrando Freud no “Mal Estar da Civilização” (1930),
terminamos com a observação de que o ponto fraco da sublimação é que não tem
aplicabilidade geral, é acessível a poucas pessoas com disposições e talentos especiais e
que mesmo assim, os poucos que possuem essas qualidades não estão livres do
sofrimento.
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Bibliografia:
Freud, Sigmund. Project for a Scientific Psychology – 1895 – Standard Edition,
London, H.P., 1975, V.1.
_____________ Extracts from the Fliess Paper – Draft L – 1897 – Standard Edition,
London, H.P., 1975, V.1.
_____________ Leonardo da Vinci and a Memory of his Childhood – 1910 –
Standard Edition, London, H.P., 1975, V.11.
_____________ Instincts and their Vicissitudes – 1915 – Standard Edition, London,
H.P., 1975, V.21.
_____________ The Ego and the Id – 1923 – Standard Edition, London, H.P.,
1975, V.19.
_____________ The Future of an Illusion – Standard Edition, London, H.P., 1975,
V.21.
_____________ Civilization and its Discontents – 1930 – Standard Edition, London,
H.P., 1975, V.21.
Lacan, Jacques. LÉthique de la Psychanalyse – Le Séminaire livre 7, 1959/1960,
Éditions du Seuil, Paris,1986.
Laplanche, Jean. A Sublimação – Martins Fontes, São Paulo, 1989.
Vital Brazil, H. As Estruturas de Sublimação em Psicanálise – Tempo Psicanalítico,
Revista da SPID, Rio de Janeiro, 1989.
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Coqueiral

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