comentários a convenção de viena de 1980

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comentários a convenção de viena de 1980
COMENTÁRIOS A CONVENÇÃO DE VIENA DE 1980
(Artigo 1)1
Francisco Augusto Pignatta2
O domínio de aplicação da Convenção de Viena
Os artigos referentes ao domínio de aplicação da Convenção de Viena de 1980 sobre a
Compra e Venda Internacional de Mercadorias (CISG) são 6 (artigos 1 a 6). É neles que
encontramos o arcabouço das matérias regidas pela Convenção e as matérias excluídas de seu
domínio de aplicação.
O domínio de aplicação da CISG é o lugar comum das dúvidas doutrinárias e jurisprudenciais,
sendo uma das matérias mais controvertidas de todo o texto convencional. É por esta razão
que um autor já havia predito que “o essencial do contencioso que nascerá da Convenção de
Viena será certamente alimentado pelo domínio de aplicação da Convenção”3.
Porém, a jurisprudência, depois de 30 anos de existência da Convenção, já teve ocasião de se
pronunciar sobre muitas questões. O resultado é um corpo jurisprudencial digno de ser
analisado.
A finalidade maior das regras referentes ao domínio de aplicação da Convenção de Viena é a
de estabelecer as situações em que a Convenção será aplicada e as situações em que ela será
excluída. Entretanto, outras finalidades colaterais existem. Os redatores da Convenção, além
de estabelecerem as regras referentes ao âmbito de aplicação convencional, tiveram também
outros objetivos. A doutrina elenca três4:
- limitar a possibilidade de “escolher” o foro mais favorável a uma das partes (forum
shopping);
- reduzir a necessidade de recorrer às regras de direito internacional privado;
- oferecer regras modernas sobre a compra e venda, apropriadas às transações
internacionais;
O primeiro elemento refere-se à determinação do juiz competente. O direito internacional
privado em geral, e a Convenção em particular, procuram evitar que as partes, ou uma delas,
tenham a possibilidade de escolher o foro mais favorável aos seus interesses. Assim, diante de
um litígio que apresente vínculos com diversos sistemas jurídicos, o autor poderia propor a
ação diante da uma jurisdição que lhe pareça ser susceptível de decidir de forma mais
favorável a seus interesses, se comparado com a jurisdição de outro sistema jurídico. É por
esta razão que se consignou chamar esta possibilidade de “forum shopping”. No caso, por
exemplo, da inexecução de um contrato de compra e venda entre um vendedor de um país
“X” e um comprador de um país “Y”, o autor da ação, não havendo regras específicas para
1
Para citação: PIGNATTA, Francisco A., “Comentários à Convenção de Viena de 1980 – Artigo 1” in
www.cisg-brasil.net, outubro/2011.
2
Doutor em Direito Internacional Privado pelas Universidades de Estrasburgo (França) e UFRGS, professor,
advogado/consultor no Brasil, Portugal e França, membro da CCBF-Paris. É autor de um livro e vários artigos
sobre a Convenção de Viena.
3
WITZ, Claude, “L’exclusion de la Convention des Nations Unies sur les contrats de vente internationale de
marchandises par la volonté des parties”, Répertoire Dalloz, 1990, chronique, p. 108.
4
Comentários do Secretário da Conferência de Viena sobre o projeto de Convenção in http://www.uncitral.org.
1
determinar o juiz competente, poderá, em teoria, propor a ação no país onde as regras lhe são
mais favoráveis. Apesar de ser uma “escolha” juridicamente possível, este tipo de situação
não é desejável tendo em vista a falta de segurança jurídica e o desequilíbrio entre as partes.
Para evitar este tipo de situação, a CISG determinou em seu domínio de aplicação quais as
matérias que serão regidas por ela, caso as partes sejam localizadas em países que a
ratificaram. Assim, independentemente do juiz “escolhido” as regras aplicadas serão sempre
as da Convenção.
Outro elemento oriundo do direito internacional privado, além da determinação do juiz
competente, e que a Convenção tenta reduzir é a aplicação da regra de conflitos de leis para
estabelecer a lei aplicável ao litígio. Cada país contém regras específicas para determinar a lei
aplicável a um determinado litígio. Na maioria das vezes, cada sistema jurídico dá soluções
distintas em se tratando do mesmo caso concreto. Tomemos um exemplo. O direito brasileiro
estabelece que, “para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se
constituírem” (art. 9 da LICC) e que “a obrigação resultante do contrato reputa-se
constituída no lugar em que residir o proponente” (art. 9, par. 2 da LICC). Assim, a lei
aplicada ao contrato internacional em uma relação não consumerista, segundo o direito
brasileiro, é em geral a lei do país onde residir o ofertante. Ocorre que não são todos os países
que seguem este mesmo critério de fixação da lei aplicável. O direito francês, por exemplo,
considera que as partes podem determinar no contrato a lei que será aplicada em caso de
litígio, idem o direito da União Europeia 5. Neste aspecto, a norma brasileira diverge da
europeia e esta diversidade causa insegurança jurídica, pois as partes contratantes precisam,
antes de contratar, buscar qual será a lei aplicada de acordo com as normas internas de cada
país concernente. Além do mais, este mecanismo próprio da regra de conflitos pode dificultar
a celebração de certos tipos de contratos, pois a possibilidade de se aplicar determinadas leis
nacionais protecionistas não entusiasmam os atores do comércio internacional. A Convenção
vem evitar este tipo de disparidade nas relações internacionais privadas, pois é ela que será
aplicada, desde que os países a tenham ratificado, e não a lei do país “X” ou do país “Y”. Ela
simplifica as relações jurídicas comerciais não necessitando que as partes tenham que
conhecer a lei interna de cada país onde elas comerciam. Basta somente conhecer um
instrumento: o texto da Convenção.
Por fim, a Convenção tem como objetivo oferecer regras modernas sobre a compra e venda e
que sejam apropriadas às transações internacionais. O resultado final do texto convencional
aprovado em Viena em 1980 foi muito feliz e conserva sua modernidade apesar de seus 30
anos de existência. Seu sucesso é comprovado pelo grande número de ratificações e pela
utilização de alguns de seus conceitos e formulações em recentes códigos e em determinados
textos regionais e de caráter universal. Assim, a OHADA 6 uniformizou o direito da compra e
venda tendo como ponto de apoio a Convenção de Viena através do Ato Uniforme de Direito
Comercial Geral7. No mesmo diapasão, o UNIDROIT8, organização cujo objetivo é o de
harmonizar as regras de direito privado no âmbito internacional, elaborou os Princípios
Relativos aos Contratos do Comércio Internacional sob influência da Convenção de Viena 9.
5
Artigo 3 do Regulamento (CE) 593/2008 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais, conhecido como Roma
I (substituto da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais).
6
Organização Africana pela Harmonização do Direito Comercial.
7
Acessível no sítio Internet da OHADA: http://www.ohada.com/textes.php.
8
Instituto Internacional pela Unificação do Direito Privado.
9
Acessível no site Internet do UNIDROIT: http://www.unidroit.org. V. também, GAMA JÚNIOR, Lauro,
“Contratos internacionais à luz dos princípios do UNIDROIT 2004: soft law, arbitragem e jurisdição”, Ed.
Renovar, Rio de Janeiro, 2006.
2
Também sofreu influência da Convenção os Princípios Europeus dos Contratos10 e a Diretiva
Europeia sobre certos aspectos da venda de bens de consumo 11. No que se refere aos direitos
nacionais influenciados pela Convenção, temos os países escandinavos – exceto a Dinamarca
– que integraram o direito uniforme em seus direitos internos sobre a compra e venda. A
Estônia se inspirou na Convenção em sua reforma do direito das obrigações como também o
fez a Alemanha em sua grande reforma do direito das obrigações12. Este sucesso comprova
que as regras da Convenção de Viena são apropriadas ao comércio internacional atual, pois
garante às partes segurança, previsibilidade e agilidade.
Os primeiros seis artigos da Convenção tratam de seu domínio de aplicação.
Os artigos de 1 a 6 preveem em quais situações a Convenção será aplicada como também
quais tipos de contratos de compra e venda são excluídos pelo texto convencional. Para isto, a
Convenção determina qual tipo de contrato entra em seu domínio de aplicação (art. 1; art. 3.1;
art. 4, caput) e qual tipo de contrato está excluído (art. 2; art. 3.2; art. 4.a e 4.b; art. 5). Ela
prevê, também, a possibilidade das partes excluírem a aplicação da Convenção (art. 6).
ARTIGO 1
1- A presente Convenção aplica-se aos contratos de compra e venda de mercadorias
celebrados entre partes que tenham o seu estabelecimento em Estados diferentes:
a) quando estes Estados sejam Estados contratantes
ou
b) quando as regras de direito internacional privado conduzam à aplicação da lei de
um Estado contratante.
2- Não é tomado em conta o fato de as partes terem o seu estabelecimento em Estados
diferentes quando este fato não ressalte nem do contrato, nem de transações anteriores
entre as partes, nem de informações dadas por elas em qualquer momento anterior à
conclusão do contrato, ou no momento da conclusão deste.
3- Não são tomadas em consideração para a aplicação da presente Convenção nem a
nacionalidade das partes nem o caráter civil ou comercial das partes ou do contrato.
Em seu artigo primeiro, a Convenção determina dois aspectos essenciais relativos ao contrato
de compra e venda internacional de mercadorias:
1) em que situações o contrato é considerado internacional
2) que gênero de contrato faz parte do domínio de aplicação convencional.
10
Versão francesa elaborada pela “Commission pour le droit européen du contrat” presidida pelo professor Ole
LANDO: “Principes du droit européen du contrat”, organizado por ROUHETTE, Georges e com participação
de LAMBERTERIE, Isabelle ; TALLON, Denis e WITZ, Claude, Ed. Société de législation comparée, Paris,
2003.
11
Diretiva nº 1999/44/CE sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas. V.
http://eur-lex.europa.eu
12
BABUSIAUX, Ulrike, “L’influence des instruments internationaux d’uniformisation du droit sur le nouveau
droit allemand général des troubles de l’exécution du contrat”, p. 167 e WITZ, Claude, “Le nouveau droit
allemand de la vente sous le double éclairage de la Directive et de la Convention de Vienne”, p. 203 in
RANIERI, Filippo e WITZ, Claude, “La réforme du droit allemand des obligations”, Ed. Société de législation
comparée, Paris, 2004.
3
Estes são os dois “volets” tradicionais de aplicabilidade de uma norma, ou seja, um que
corresponde ao domínio de aplicação no espaço (A) outro ao domínio de aplicação material
(B).
A – Domínio de aplicação no espaço
A Convenção impõe uma dupla condição de internacionalidade para sua aplicação. A primeira
prevê que o vendedor e o comprador tenham seus estabelecimentos em Estados diferentes (a).
E a segunda é que estes Estados sejam parte da Convenção (b). A Convenção tem, também,
vocação de reger a relação contratual através da aplicação das regras de Direito Internacional
Privado (c).
a) Estabelecimentos em Estados diferentes
Sabemos que muitos podem ser os critérios que determinam a internacionalidade de um
contrato: a nacionalidade, o domicílio ou a residência das partes, o estabelecimento comercial,
o local da celebração do contrato, o local de sua execução, etc. Foi o critério simples de
internacionalidade o escolhido pelos redatores da Convenção: o do estabelecimento em
Estados diferentes13. A escolha não foi meramente arbitrária. Ela leva em consideração um
aspecto prático. Na maioria das operações do comércio internacional o estabelecimento é
aquele que determina de forma real o vínculo com um sistema jurídico determinado. No
âmbito do comércio é o critério que se adapta melhor à realidade. É por esta razão, também,
que, sendo o contrato concluído por meio eletrônico, a localização do servidor não poderá
determinar, por si só, o lugar do estabelecimento 14. É necessário haver um fator que determine
o real (contrário de virtual) estabelecimento das partes.
A própria Convenção descarta, em sua alínea 3 do mesmo artigo, outros critérios ao prever
que não será tomada “em consideração para a aplicação da presente Convenção nem a
nacionalidade das partes nem o caráter civil ou comercial das partes ou do contrato”, somente
a dualidade de estabelecimentos em Estados diferentes.
A Convenção, porém, não define o que seja estabelecimento. VISCASILLAS 15 observa com
razão que a versão oficial espanhola (“establecimiento”) é mais adaptada a ideia de
permanência que a versão oficial inglesa (“place of business”). A versão oficial francesa
segue o mesmo sentido que a espanhola (“établissement”). Mesmo não havendo uma versão
oficial em língua portuguesa, o termo utilizado nas traduções existentes é “estabelecimento”.
13
A palavra “Estado” deve ser entendida aqui como Estado soberano e não como uma divisão territorial de uma
Federação ou de uma Confederação como conhecemos no Brasil ou como se conhece de forma ainda mais
autônoma nos Estados Unidos. Assim, diante de um litígio envolvendo um comerciante estabelecido no estado
da Luisiana com outro estabelecido no estado do Texas não se aplicará a Convenção de Viena e sim as regras
materiais internas dos Estados Unidos.
14
Esta afirmativa tem como base a Convenção das Nações Unidas sobre a Utilização de Comunicações
Eletrônicas nos Contratos Internacionais de 23 de Novembro de 2005. Apesar de que ela não entrou em vigor,
seu texto pode ser considerado como auxiliar na interpretação de uma norma convencional. Assim, seu artigo 6
intitulado “Lugar da situação das partes” prevê em sua alínea 4 que: “Um lugar não constitui um
estabelecimento somente pelo fato que seja o endereço: a) onde se encontra o material e a tecnologia dos quais
é baseado o sistema de informação utilizado por uma das partes em relação com a formação do contrato; ou b)
onde outras partes podem aceder a este sistema de informação” e em sua alínea 5 que: “Somente pelo fato que
uma das partes utilize um nome de domínio ou um endereço eletrônico associado a um país determinado não
constitui uma presunção que seu estabelecimento seja situado neste país”. (tradução nossa). Acessível no site:
http://www.uncitral.org.
15
VISCASILLAS, Maria del Pilar Perales, “El contrato de compraventa internacional de mercancias – Art. 1”
in www.cisg.law.pace.edu.
4
A doutrina majoritária considera que “estabelecimento” deve ser entendido como uma
atividade comercial estável e permanente, dotada de certa independência 16. Também em
outros artigos da Convenção o termo “estabelecimento” é utilizado (art. 24, 31, 42 e 69). Em
todos eles, a ideia de uma atividade estável está presente17.
Neste sentido o Tribunal Regional de Stuttgart considerou que: “Estabelecimento, de acordo
com os arts. 1 e 10, é o local onde a atividade empresarial é efetivamente e essencialmente
exercida, que o estabelecimento deve ter certo tempo e estabilidade assim que certa
liberdade de ação”18. De forma negativa, a Cour d’appel de Paris não considerou como
estabelecimento um simples “escritório de representação e de informações”19.
Uma divergência doutrinária existe em relação à filial. Pode ela ser considerada como um
estabelecimento? A maioria da doutrina responde afirmativamente20.
A Convenção prevê, também, que as partes possam ter mais de um estabelecimento. Assim,
segundo o artigo 10, letra a), “se uma parte tiver mais de um estabelecimento” aquele que
deve ser tomado em consideração é o “que tiver relação mais estreita com o contrato e a
respectiva execução, tendo em vista as circunstâncias conhecidas das partes ou por elas
consideradas em qualquer momento anterior à conclusão do contrato ou no momento da
conclusão deste” 21.
Teriam as partes obrigação de informar seu cocontratante que possuem vários
estabelecimentos? É de se esperar que as partes sejam transparentes durante as relações précontratuais, porém obrigação de comunicação não há. É a letra do inciso 2 do art. 1. Porém,
não poderá a parte ocultar a verdadeira localização do estabelecimento com o objetivo de
fazer aplicar a CISG ou de descartá-la. Esta manobra seria contrária à equidade comercial,
pois enganosa22. Esta forma de agir não pode ser aceita. O objetivo é evitar que haja uma
surpresa no momento da aplicação da lei.
Não prevê a Convenção sobre quem pesa o ônus da prova. Em princípio, a prova incumbe
àquele que sustenta a inaplicabilidade da Convenção23. Apesar de ser a posição mais lógica
16
FERRARI, Franco, «Contrat de vente internationale - Applicabilité et applications de la Convention de
Vienne sur les contrats de vente internationale de marchandises», Ed. Helbing & Lichtenhahn, Bruylant e FEC,
2ª edição, 2005, p. 34; VISCASILLAS, Maria del Pilar Perales, “El Contrato de Compraventa Internacional de
Mercancias », op. cit.; HONNOLD, John O., “Uniform Law for International Sales under the 1980 United
Nations Convention”, Ed. Kluwer Law International, Haia, 3ª edição, 1999, § 43, p. 31; NEUMAYER, Karl
Heinz e MING, Catherine, “Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de marchandises.
Commentaire”, Ed. Cedidac, Lausanne, 1993, p. 41.
17
HONNOLD, “Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations Convention”, op. cit., p.
31.
18
OLG Stuttgard, 28/02/2000, CISG-Online, n. 583; « Répertoire Dalloz », 2002, Somm. 315, comentários
Francis LIMBACH (nossa tradução). V. também Tribunale di Rimini, 26/11/2002 in CISG-online n. 737.
19
Cour d’appel de Paris, 22/04/1992 (CISG-France) e Cour de cassation, 1ª Câmara Civil, 04/01/1995,
« Répertoire Dalloz », 1995, n. 289, comentários Claude Witz ; WITZ, Claude, « Les premières applications
jurisprudentielles du droit uniforme de la vente internationale », Ed. L.G.D.J., Paris, 1995, 1ª edição, p. 29
(nossa tradução).
20
NEUMAYER e MING, “Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de marchandises.
Commentaire”, op. cit., p. 41. Posição contrária v. ENDERLEIN, MASKOW e STARGARDT, “Konvention der
Vereinten Nationen über Verträge über den internationalen Warenverkauf, Kommentar”, Staatsverlag der DDR,
Berlin, 1985, n° 2, art. 10.
21
V. maiores comentários no capítulo referente ao artigo 10.
22
Sobre a possibilidade de aplicação do princípio da boa-fé, v. comentários ao artigo 7.
23
SCHLECHTRIEM, Peter in SCHLECHTRIEM, Peter e SCHWENZER, Ingeborg (org.), “Commentary on the
UN Convention on the International Sale of Goods (CISG)”, 3ª edição, Oxford University Press UK, Oxford,
2010, art. 1, n. 49; HEUZÉ, Vincent, “La vente internationale de marchandises”, Ed. LGDJ, 2000, p. 97; WITZ,
5
processualmente, é de difícil verificação, pois sendo uma incumbência negativa, a parte
deverá provar que a outra não lhe informou do lugar da situação do estabelecimento.
Na letra b) do artigo 10, a CISG prevê uma situação diversa, isto é, o caso em que uma das
partes não tenha nenhum estabelecimento. Neste caso, deve-se tomar em consideração a
residência habitual24.
Além do requisito aqui estudado para a aplicação das regras convencionais, outro é exigido:
que os Estados, em que se encontram os estabelecimentos das partes contratantes, tenham
ratificado a Convenção.
b) Os Estados devem ser parte da Convenção (art. 1.1.a)
Os Estados, onde se encontram os estabelecimentos do vendedor e do comprador, devem ser
parte da Convenção para que esta seja aplicada (art. 1.1.a). Cumprindo-se também esta
condição, a Convenção aplicar-se-á de forma autônoma, isto é, sem precisar recorrer às regras
de conflitos de leis de direito internacional privado.
Estado parte da Convenção é aquele onde a Convenção tenha sido ratificada e que ela tenha
entrado em vigor. Como a Convenção poderá entrar em vigor não na mesma data nos diversos
países que a ratificaram, é necessário que a conclusão do contrato seja posterior a esta data
para ser regido pelas regras de direito uniforme.
Entretanto a Convenção prevê certas exceções à sua aplicabilidade, mesmo que os
estabelecimentos sejam em Estados diferentes e que estes Estados sejam parte da Convenção:
são os artigos 90, 92, 93 e 94. O artigo 90 refere-se à hipótese da existência de acordos
internacionais entre certos países parte da Convenção. O artigo 92 prevê a possibilidade dos
Estados emitirem reservas à aplicabilidade da Segunda e da Terceira Parte da Convenção. O
artigo 93 trata dos casos de países que contém duas ou mais unidades territoriais e, enfim, o
artigo 94 dispõe sobre o caso de Estados contratantes que apliquem, nas matérias reguladas
pela Convenção, regras jurídicas idênticas ou próximas e que declarem que o direito uniforme
não será aplicado aos contratos celebrados entre partes que tiverem seus estabelecimentos
nestes Estados. Em todas estas situações, não se aplicará a Convenção25.
c) Aplicação das regras de Direito Internacional Privado (art. 1.1.b)
Outra hipótese de aplicabilidade da Convenção é prevista pelo art. 1.1.b: a Convenção regerá
a relação contratual internacional “quando as regras de direito internacional privado
conduzam à aplicação da lei de um Estado contratante”.
A aplicação da Convenção neste caso é feita pelo “viés” das regras de conflitos de leis de
direito internacional privado. Quando as regras de direito internacional privado de certo país
determinem que a lei aplicável seja a de um país contratante, a Convenção será aplicada.
Neste caso, as regras de direito uniforme serão aplicadas, pois a Convenção é parte integrante
do conjunto de normas do Estado que a ratificou. Na França, por exemplo, a Cour de
cassation julgou que “a Convenção de Viena constitui o Direito substancial Francês da
compra e venda internacional de mercadorias e a este título impõe-se ao juiz francês”26.
Claude e SCHLECHTRIEM, Peter, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, Ed. Dalloz, 2008, p. 17.
24
V. maiores comentários no capítulo referente ao artigo 10.
25
V. maiores comentários na parte relativa a estes artigos.
6
Da análise do art. 1.1.b., surgem duas possibilidades: a primeira, somente um dos países é
parte da Convenção; a segunda, a jurisdição competente é de um terceiro país não parte da
Convenção. Nestes dois casos a consequência será a mesma: a lei designada como aplicável é
a de um país parte da Convenção. Exemplificando. Imaginemos, no primeiro caso, dois
comerciantes, um estabelecido no país “X”, país contratante, outro estabelecido no país “Y”,
país não parte da Convenção. Se pelo viés da regra de conflitos de leis a lei aplicável é a do
país “X”, aplica-se a Convenção, do contrário não. No segundo caso, imaginemos outros dois
comerciantes, um estabelecido no país “X”, país contratante, outro estabelecido no país “Z”,
também país contratante, porém o juiz competente é o do país “H”, país não parte da
Convenção. Caso a regra de direito internacional privado do país “H” determine que a lei
aplicável seja a do país “X” ou “Z”, a Convenção será aplicada. Se a lei aplicável for a do país
“H” a Convenção não será aplicada, pois este país não a ratificou27.
Exemplo
Um exemplo muito apropriado foi citado pelo Professor Claude WITZ 28. Este exemplo é interessante na
medida em que considera um comerciante estabelecido na França, que ratificou a Convenção, e um
comerciante inglês (a Inglaterra não ratificou a Convenção): um costureiro parisiense vende uma
coleção de verão a uma loja londrina. As roupas que são entregues em Londres não correspondem ao
tamanho solicitado. Sob a base das normas europeias (Regulamento n. 44/2001 – Bruxelas I) o
comprador entra com uma ação no Tribunal de Londres. O juiz inglês, de acordo com outro
regulamento europeu (Regulamento n. 593/2008 – substituto da Convenção de Roma) que prevê ser a
lei aplicável à lei francesa, aplica as regras da compra e venda internacional de mercadorias francesas
que, em espécie, é a Convenção de Viena.
Uma problemática que merece ser aqui analisada é a que se refere à possibilidade do
“Reenvio”. O “Reenvio” ocorre quando a Lex fori29 determina que a lei aplicável seja a de um
país “X” e esta, por sua vez, determina que a lei aplicável não seja a dele, mas a de outro país.
O termo “Reenvio” é normalmente utilizado, pois as regras do sistema jurídico do país “X”
reenvia às regras de outro país, seja ele o próprio país que a “enviou”, seja a de um terceiro
país. No primeiro caso temos o chamado “Reenvio de primeiro grau”30; no segundo caso, o
“Reenvio de segundo grau”31. Ocorre que, não são todos os sistemas jurídicos que admitem a
hipótese do “Reenvio”. Países como a França, a Alemanha e a Itália, por exemplo, aceitam
26
Cour de cassation, 1ª Câmara civil, 25/10/2005, Bull. civ., I, n. 381 ; Repertoire Dalloz, 2005, AJ 2872, nota
CHEVRIER ; RTD. Com., 2006, p. 249, obs. DELEBEQUE ; JCP E, 2005, n. 48, p. 2055; RDC, 2006, p. 515,
comentários DEUMIER (nossa tradução).
27
Em todas estas hipóteses, é necessário estar atento ao fato de que a Convenção de Viena não rege todos os
aspectos do contrato, como a validade e os efeitos do contrato sobre a propriedade das mercadorias vendidas (v.
art. 4). Assim, pode ocorrer que determinadas matérias sejam regidas pela Convenção e outras não. Neste caso é
a lei do foro do juiz que determinará se poderá ou não ocorrer a “depéçage”, isto é, o desmembramento dos
elementos do contrato e aplicar a cada um deles leis diversas: por exemplo, aplicar a Convenção à formação do
contrato e aplicar a lei de determinado país à validade das cláusulas contratuais.
28
WITZ e SCHLECHTRIEM, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, op. cit., p. 19.
29
Este termo, utilizado em direito internacional privado, significa a “lei do foro”, isto é, a lei do sistema jurídico
do juiz. O juiz quando chamado a dirimir um litígio envolvendo regras de países diferentes, deve verificar qual a
solução prevista em seu sistema jurídico para o caso concreto.
30
O “Reenvio de primeiro grau” ocorre, segundo Jacob DOLINGER, “quando as regras de conflito de cada um
dos sistemas atribui competência para reger a matéria não à sua própria lei, mas à lei interna do outro sistema,
ou seja, o país A considera aplicável a lei do país B, enquanto este considera aplicável a lei do país A; nesta
hipótese temos o país A remetendo para a lei do país B, e esta reenviando, devolvendo, para a lei do país A”
(“Direito Internacional Privado, Parte Geral”, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 2002, p. 298).
31
No mesmo diapasão do exemplo mencionado por DOLINGER (nota precedente), o “Reenvio de segundo
grau” ocorre quando as regras de conflito do país A “envia” à lei do país B e esta “reenvia” à lei do país C.
7
esta possibilidade 32. O Brasil, expressamente veda esta prática. É o que estabelece o artigo 16
da LICC: “Quando, nos termos dos artigos precedentes, se houver de aplicar a lei
estrangeira, ter-se-á em vista a disposição desta, sem considerar-se qualquer remissão por
ela feita a outra lei”33. Deste modo, a Convenção de Viena será aplicada pelo viés de um
“Reenvio” somente se as regras do foro permitirem esta possibilidade; caso contrário, é o
direito material nacional indicado pelo “envio” (e não reenvio) que será aplicado.
Fora as exceções já mencionadas acima, agrega-se outra: a do art. 95. Segundo este artigo,
“qualquer Estado pode declarar, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação,
de aceitação, de aprovação ou de adesão, que não ficará vinculado pela alínea “b” do
parágrafo 1 do artigo 1° da presente Convenção”. Assim, caso algum Estado tenha feito esta
reserva, a Convenção não será aplicada e aplicar-se-á a lei do Estado determinado pela regra
de conflitos.
Após ter visto os casos de internacionalidade do contrato de compra e venda, falta-nos
analisar o campo de aplicação material deste contrato.
A – Campo de aplicação material
Sabemos que não são todos os contratos internacionais que serão regidos pela Convenção de
Viena. Segundo seu próprio título, ela rege somente os contratos internacionais de compra e
venda (a) de mercadorias (b).
a) Contratos de compra e venda
A Convenção é silente a respeito da definição de contrato de compra e venda. Entretanto,
podemos deduzir de alguns de seus artigos referentes às obrigações do comprador e do
vendedor o que a Convenção entende por contrato de compra e venda: é todo aquele que faz
nascer uma obrigação de entrega de mercadorias e de transferência de sua propriedade (art.
30) através do pagamento de um preço (art. 53).
Existe, porém, alguns contratos vizinhos da compra e venda em que persiste a dúvida da
aplicabilidade ou não da Convenção, como por exemplo, a troca, a compensação, os
contratos de distribuição, os pré-contratos, dentre outros. Nesta seara as opiniões são
divergentes. A troca ou permuta, por exemplo, apesar de não ser expressamente excluída pela
Convenção, a posição da doutrina não é pacífica: uns defendem sua aplicação 34, outros
defendem sua exclusão 35. A doutrina mais recente é pela exclusão, levando em consideração
que na troca ou permuta não há a obrigação do pagamento de um preço 36. A compensação é
32
Na França, o “Reenvio” (Renvoi) foi aceito pela jurisprudência no caso “Forgo” (Cour de cassation,
24/06/1878, D.P., 1879.I.56, S., 1878.I.429 e Cour de cassation, 22/02/1882, D.P. 1881.I.393, comentários
LABBÉ). Na Alemanha e na Itália, o “Reenvio” foi introduzido por via legislativa, respectivamente o artigo 4°
da Lei de Direito Internacional Privado da Alemanha e o artigo 13 da lei Italiana.
33
Sobre os comentários ao artigo 16 da LICC, v. DINIZ, Maria Helena, “Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro Interpretada”, Ed. Saraiva, São Paulo, 14ª edição, 2009, p. 420 e DOLINGER, Jacob, “Direito
Internacional Privado, Parte Geral”, op. cit., p. 318.
34
AUDIT, Bernard, “La vente internationale de marchandises”, Ed. LGDJ, 1990, p. 137 (desde que haja
pagamento de um preço); KRITZER, Albert H., “Guide to practical application of the U.N. Convention on
Contracts for the International Sales of Goods”, Deventer-Boston, 1989, p. 70.
35
WITZ e SCHLECHTRIEM, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, op. cit., p. 26; WINSHIP, Peter, “Article 1” in GALSTON e SMIT (coord.), “International
Sales: the U.N. Convention on Contracts for the International Sale of Goods”, New York, 1984, nota 49.
36
Entretanto, SCHLECHTRIEM e SCHWENZER constatam que a CVCIM não excluiu expressamente o
contrato de troca ou permuta do seu campo de aplicação. Ademais, eles consideram que o termo “preço” não
8
outro contrato que, em princípio, é excluído pela Convenção 37. Os “pré-contratos” são, nos
casos em que eles determinem os direitos e obrigações das partes, cobertos pela Convenção.
Entretanto, sendo a compra e venda o contrato escolhido para ser o ato jurídico principal da
Convenção de Viena, os outros contratos que porventura possam entrar no âmbito
convencional relacionam-se de algum modo com ele. Mesmo assim, são exceções.
A aplicação da Convenção de Viena aos contratos de distribuição é objeto de divergências
doutrinárias e jurisprudenciais, razão pela qual merece ser analisada a parte.
Contratos de distribuição
A doutrina considera que a Convenção não se aplica aos acordos de distribuição comercial38
como nos casos dos contratos de concessão exclusiva ou nos contratos de Franchising. Estes
tipos de contrato são contratos complexos onde existem certos elementos da compra e venda,
porém não de forma perfeita. Este entendimento é baseado no fato de que nestes contratos há
a presença de um “Contrato-quadro” que é essencialmente um fornecimento de serviços e um
“Contrato de aplicação”, este sim, contendo elementos próprios de um contrato de compra e
venda normal.
Os autores que fazem esta distinção afastam a aplicação da Convenção, quando há o elemento
“Contrato-quadro”. Por outro lado, a relação de distribuição que tiver as características de um
“Contrato de aplicação” (nas situações que equivale a um contrato de compra e venda), poderse-ia aplicar as regras da CISG. Esta é, atualmente, a doutrina dominante 39, o que levou certa
jurisprudência a adotar este entendimento 40, contrariando a posição até então estabelecida de
afastar todo e qualquer contrato de distribuição do domínio de aplicação da Convenção, pois
não é um contrato de compra e venda.
pode ser restringido necessariamente ao conceito de dinheiro e que as partes podem ser tratadas como vendedor,
de acordo com a mercadoria que entrega, e comprador, de acordo com a mercadoria que recebe (“Commentary
on the U.N. Convention on the International Sale of Goods (CISG)”, op. cit., p. 32).
37
WITZ e SCHLECHTRIEM, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, op. cit., p. 27 defendem que, se a operação da compensação implica a conclusão de dois
contratos de compra e venda distintos, mas unidos entre eles pela vontade das partes, a Convenção é aplicada a
cada um dos contratos. Eles citam os exemplos do “counterpurchase” e do “antecipating purchase”.
38
HEUZÉ, ““La vente internationale de marchandises”, op. cit., p. 75 ; HONNOLD, “Uniform Law for
International Sales under the 1980 United Nations Convention”, op. cit., § 56.2 ; FERRARI, «Contrat de vente
internationale - Applicabilité et applications de la Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale
de marchandises» , op. cit., p. 93.
39
SCHELECHTRIEM e WITZ, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, op. cit., p. 27 ; HEUZÉ, “La vente internationale de marchandises”, op. cit., p. 75 ; HONNOLD,
“Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations Convention”, op. cit., § 56.2 ; FERRARI,
«Contrat de vente internationale - Applicabilité et applications de la Convention de Vienne sur les contrats de
vente internationale de marchandises», op. cit., p. 94.
40
OLG Klobens, 17/09/1993, Recht der Internationalen Wirtschaft, 1993, p. 934; Amsteram, 16/07/1992,
Niederlande International Privatrecht, 1992, nº 420; OLG Dusseldorf, 11/07/1996, Recht der Internationalen
Wirtschaft, 1996, p. 958; Obergericht Kanton Lucerne, 08/01/1997, Dalloz 1998, somm, p. 325, obs. WITZ; US
District Court, S.D. New York, 23/07/1997, Repertório de jurisprudência da CNUDCI, nº 187; Tribunal
Metropolitano da Hungria, Repertório de jurisprudência da CNUDCI, nº 126.
9
Porém, algumas decisões mais recentes41 sustentam outra posição42: aplica-se a Convenção ao
contrato de distribuição como um todo, levando em conta o aspecto preponderante deste.
Temos, portanto, divergências doutrinárias e jurisprudenciais em relação à aplicação da CISG
ao contrato de distribuição: juízes que afastam totalmente o acordo de distribuição do domínio
de aplicação da Convenção; outros que aplicam o texto convencional somente ao elemento da
relação de distribuição com características de um “Contrato de aplicação”; enfim, outros que
aplicam a Convenção ao contrato de distribuição como um todo, sob o argumento da
prevalência do elemento “compra e venda” em relação à distribuição propriamente dita.
Esta divergência de entendimento se deve a que os acordos de distribuição, por serem
contratos complexos, são de difícil qualificação. Somente o caso concreto é que decidirá qual
o elemento essencial do contrato.
Jurisprudência
Um caso sintomático e que faz parte do entendimento mais recente foi julgado pela CCI de Paris 43. O
litígio referia-se a uma ruptura unilateral, e sem pré-aviso, de um contrato de concessão de venda
exclusiva pelo concedente, em razão do alegado não pagamento do preço nos prazos especificados. O
concessionário invocou a tese clássica pela qual a Convenção não se aplica ao contrato de concessão,
enquanto que o concedente argumentou que, sendo o distribuidor um comprador, a Convenção deveria
ser aplicada ao contrato como um todo, segundo o artigo 3.2. da CISG. Os árbitros consideraram que
“a Convenção favoriza a aplicação de uma lei única [...] para dirimir o litígio”. Deste modo, e,
sobretudo, “se se considerar a relação comercial de maneira global, o elemento ‘venda’ prevalece
sobre o elemento ‘distribuição’”.
Esta jurisprudência da CCI de Paris utiliza o mesmo início de raciocínio daqueles que
defendem a exclusão da Convenção, isto é, analisa o contrato de distribuição como um todo,
mas procura o elemento essencial da operação e, em vez de afastar a CISG, aplica-a. É outra
forma de ver o problema.
Entre as três soluções elencadas, consideramos que a primeira é por demais restritiva. Ao
afastar a aplicação da CISG a todos os acordos de distribuição, o juiz se depara com a
complicada missão de utilizar o intrincado método de conflito de leis do direito internacional
privado para determinar a lei aplicável. Este mecanismo, aplicado ao contrato de distribuição,
poderá levar o juiz a soluções incongruentes. A segunda solução tem a grande vantagem de
ser a mais coerente44. Porém, ao proceder ao “dépeçage” entre o “Contrato quadro” e o
“Contrato de aplicação” o juiz se defronta a certas dificuldades práticas e, segundo alguns,
contraria o sistema do artigo 3 da CISG45. A terceira solução é a mais inovadora, porém
esbarra na dificuldade de igualar o contrato de distribuição ao contrato de compra e venda,
41
US District Court, E.D. Louisiana, 17/05/1999, Civ. A, 90-0380 (aplicação da CISG a um contrato de
concessão de venda exclusiva entre um fabricante italiano de aparelhos radiológicos e um concessionário
americano); Corte Suprema di Cassazione, Itália, nº 895, 14/12/1999 (aplicação da CISG a um “Contratoquadro” de distribuição por uma concessionária inglesa de mercadorias fabricadas por um produtor italiano);
Oberster Gerichtshof, Áustria, 6 Ob 311/99z, 09/03/2000 (aplicação da CISG a um litígio referente à diferença
de preço entre o fixado no “Contrato-quadro” e o imposto em sua execução). Todas estas decisões se encontram
no site www.unilex.info.
42
THIEFFRY, Jean, "La Convention de Vienne et les contrats de distribution", Droit et Pratique du Commerce
International (DPCI), 1993, tome 19, nº 1, p. 63 ; KILLIAN, M., “CISG and the Problem with Common Law
Jurisdictions”, 10 J. Transnat’l L. & Pol’y 217 (2001), p. 241.
43
CCI Paris, julg. nº 8817, dezembro/1997, www.unilex.info. V. comentários em WATTÉ, Nadine e NUYTS,
Arnaud, “Le champ d’application de la Convention de Vienne sur la vente internationale. La théorie à l’épreuve
de la pratique”, JDI, 2003, p. 392.
44
“Cour de cassation”, França, 20/02/2007, nº 04-17.752, Mimusa c/ YSLP, JDI, 2007, p. 1211.
10
alargando o domínio de aplicação da Convenção a contratos diversos da compra e venda. É de
se notar que a jurisprudência da CCI de Paris é muito cuidadosa em procurar o elemento
essencial do contrato, distribuição ou compra e venda, para depois aplicar ou não a CISG.
Pensamos que este gênero de jurisprudência é uma exceção que confirma a ‘regra’. A ‘regra’
seria efetuar o “dépeçage” entre o “Contrato quadro” e o “Contrato de aplicação” e somente
aplicar a Convenção às relações jurídicas que contenham o último elemento como
preponderante.
b) Mercadorias
Segundo o texto convencional, a compra e venda deve ter como objeto “mercadorias”. Em
sentido gramatical mercadoria é tudo aquilo que é objeto de comércio. Muitos são os
exemplos de contratos de compra e venda de mercadorias já analisados pela jurisprudência:
conservas alimentícias 46, móveis 47, gasolina 48, casacos49, telefones celulares 50, fio 51, corante52,
madeira53, borracha para sola de sapatos54, peixes congelados55, molduras56, peças de
climatizador para veículos57, etc. Entretanto, a Convenção, em seu artigo 2, exclui certos tipos
de mercadorias de seu campo de aplicação, quais sejam: navios, eletricidade, títulos de
crédito, moedas, valores imobiliários, como também a compra e venda em leilão, em processo
executivo e de mercadorias compradas para uso pessoal58.
Jurisprudência:
Uma aplicação clássica do artigo 1º da Convenção de Viena foi feita por uma Jurisdição Chinesa de
primeiro grau e confirmada pelo Tribunal Chinês de Recursos59. Em 16 de junho de 1993, duas
empresas, uma americana, outra chinesa firmaram um primeiro contrato de compra e venda de 1.300
toneladas de alho. Em 5 de agosto do mesmo ano, as mesmas partes concluíram outros dois contratos
adicionais ao primeiro, um de 1.300 toneladas e outro de 1.200 toneladas da mesma mercadoria. Fruto
de um litígio entre as partes, uma ação foi proposta diante da Corte da Província de Shandong na
China. Mesmo que o contrato foi celebrado em território americano e a entrega feita em território
americano, o Juiz de primeiro grau, confirmado em apelação, acertadamente aplicou a Convenção de
Viena com base em seu artigo 1º. O curioso deste processo é que as partes não declararam
expressamente o local de seus estabelecimentos. O Tribunal de Recursos confirmou a decisão de
primeiro grau sob o motivo de que a Convenção de Viena foi aplicada após terem sido examinados os
países onde o vendedor e o comprador eram estabelecidos. Deste modo, todos os requisitos para a
aplicação da Convenção de Viena estavam reunidos: tanto os Estados Unidos quanto a China são
partes da Convenção; as partes eram localizadas em Estados diferentes e o contrato celebrado era de
compra e venda internacional de mercadorias.
45
WATTÉ e NUYTS, “Le champ d’application de la Convention de Vienne sur la vente internationale. La
théorie à l’épreuve de la pratique”, art.cit., p. 393.
46
Helsinki Court of Appeal, 30/06/1998, decisão n. S 97/324, Finlândia (http://www.cisg.law.pace.edu).
47
Pretura di Locarno-Campagna, 27/04/1992, decisão n. 6252, Suiça, (http://www.cisg.law.pace.edu).
48
US Circuit Court of Appeals, 11/06/2003, EUA, (http://www.cisg.law.pace.edu).
49
Hof s’Hertogenbosch, 15/12/1997, decisão n. C9700046/HE, Holanda, (http://www.cisg.law.pace.edu).
50
Landgerich Trier, 29/03/2001, decisão n. 7 HKO 204/99, Alemanha, (http://www.cisg.law.pace.edu).
51
RB Kortrijk, 06/10/1997, decisão n. A.R. 4143/96, Bélgica, (http://www.cisg.law.pace.edu).
52
Audiencia de Barcelona, 20/06/1997, decisão n. 755/95-C, Espanha, (http://www.cisg.law.pace.edu).
53
Oberster Gerichtshof, 21/03/2000, decisão n. 10 Ob 344/98, Austria, (http://www.cisg.law.pace.edu).
54
Tribunale de Vigevano, 12/07/2000, decisão n. 405, Itália, (http://www.cisg.law.pace.edu).
55
Maritime & Commercial Court of Copenhagen, 31/01/2002, decisão n. H.0126-98, Dinamarca,
(http://www.cisg.law.pace.edu)
56
Ontario Superior Court of Justice, 31/08/1999, decisão n. 98-CV-14293CM, Canadá,
(http://www.cisg.law.pace.edu).
57
Cour d’appel de Colmar, 12/06/2001, Répertoire Dalloz, 2003, somm. comm., p. 2367, França.
58
V. comentários ao artigo 2.
59
Supreme People’s Court of the People’s Republic of China, Lianhe Enterprise (US) Ltd. v. Yantai Branch of
Shandong Foreign Trade Co., 08/08/2000 (http://www.cisg.law.pace.edu).
11
A mercadoria, no sentido que é dado pela Convenção, não se resume a objetos corpóreos.
Hoje já se considera que certos bens incorpóreos, como os Softwares, podem também ser
qualificados de mercadorias60 e que, em consequência, a compra e venda destes objetos entra,
em princípio, no campo de aplicação da Convenção 61. Entretanto, dificilmente será aplicada a
Convenção aos direitos relacionados à propriedade intelectual como a cessão de marcas, de
patentes, os direitos do autor, etc62. Estas cessões estariam excluídas do campo de aplicação
convencional de acordo com a mesma lógica pela qual a Convenção exclui de seu campo de
aplicação a cessão de crédito: pelo fato de ela não ser mercadoria. Não teria sentido aplicar a
elas as regras da entrega e principalmente a regra da conformidade da mercadoria. Assim,
estariam excluídos do âmbito Convencional os direitos relacionados à propriedade
intelectual63. É o que se conclui do seguinte julgamento.
Jurisprudência:
O vendedor, um Instituto Suíço sobre estudos de mercado, elaborou uma análise de mercado que havia
sido encomendada por uma empresa alemã. O comprador se recusou a pagar o preço estipulado, pois
o trabalho não estava de acordo com as condições estabelecidas entre as partes. O Tribunal alemão de
Colônia64 considerou que a Convenção não era aplicada à matéria, pois o contrato subjacente não é
nem um contrato de venda de mercadorias (artigo 1) nem um contrato para a produção de
mercadorias (artigo 3). Segundo o Tribunal, a transferência de propriedade do estudo em questão não
é a transferência de um conjunto de folhas escritas, mas a transferência do direito de utilizar as ideias
transcritas sob o papel. Assim, o contrato para realizar um estudo de mercado não é uma compra e
venda de mercadoria conforme o que estabelece os artigos 1 e 3 da Convenção.
60
WITZ e SCHLECHTRIEM, “La Convention de Vienne sur les contrats de vente internationale de
marchandises”, op. cit., p. 48.
61
V. a este respeito os comentários do artigo 3 sobre a compra e venda de Softwares.
62
FERRARI, Franco, « The Sphere of Application of the Vienna Sales Convention”, Ed. Kluwer, 1995, p. 24;
HONNOLD, “Uniform Law for International Sales under the 1980 United Nations Convention”, op. cit., p. 50.
63
HEUZÉ, “La vente internationale de marchandises”, op. cit., p. 79.
64
OLG Köln, 26/08/1994, sistema CLOUT, decisão n. 122 (http://www.cisg.law.pace.edu).
12

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