direito à habitação adequada: o desafio da

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direito à habitação adequada: o desafio da
DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA: O
EFETIVIDADE E O DISCURSO NO JUDICIÁRIO
DESAFIO
DA
GEORGE SARMENTO1
Sumário: 1. Introdução. 2. Déficit habitacional e condições inadequadas de moradia.
3. Supraestatalidade do direito à habitação adequada. 4. Direito à habitação adequada
no sistema jurídico brasileiro. 5. Evolução das Políticas Habitacionais no Brasil. 6.
Qualidade das moradias e direito à cidade. 7. A crise de efetividade e o discurso
concretizador no Judiciário. 8. Conclusões.
Resumo: O artigo propõe uma reflexão sobre a crise de efetividade do
direito fundamental à moradia no Brasil. Defende a tese de que a
solução do problema passa por profundas mudanças de paradigma no
modelo político e econômico do país. O Estado deve focalizar as
políticas públicas habitacionais nas populações mais vulneráveis, como
estratégia de combate às desigualdades sociais. Também tem o dever de
fortalecer o “direito à cidade”, criando a infraestrutura necessária à boa
qualidade de vida no espaço urbano. Por fim apresenta os instrumentos
utilizados pelo constitucionalismo contemporâneo para a construção de
um discurso concretizador desse importante direito social.
Palavras chaves: habitação adequada; direitos sociais; efetividade.
Abstract: This article offers a reflection for the effectiveness’ crisis of
the fundamental right to housing in Brazil. Also defends the thesis
that the solution passes through a profound paradigm change on
the country’s current political and economic models. The state should
orientate public housing policies towards the most vulnerable people, as
a strategy to combat social inequality. It also has the obligation
to reinforce the "right to the city" by creating the infrastructure required
to ensure a good quality of life in urban areas. Finally this article
displays the instruments used by contemporary constitutionalism on
the construction of this important social right's concretizing speech.
Keywords: adequate housing; social rights; effectiveness.
1 - INTRODUÇÃO
Ao meditar sobre o que é essencial para a sobrevivência humana
diante das variações climáticas, o filósofo transcendentalista norte-americano
Henry David Thoreau enumerou quatro itens: alimento, combustível, roupa e
1
George Sarmento é Doutor em Direito Público/UFPE, Professor da Faculdade de Direito de
Alagoas/UFAL, Coordenador do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL. Integra o corpo docente do
Mestrado em Direito PPGD/UFAL, sendo responsável pela disciplina Direitos Humanos Fundamentais.
Foi professor convidado da Universidade de Montpellier 1 e é autor de livros e artigos sobre direitos
humanos. É promotor de justiça, atuando na defesa da Fazenda Pública Estadual. É pesquisador do
PROCAD no projeto “Os Direitos Fundamentais no Discurso do Judiciário”, desenvolvido pela UFPE,
UFAL e UFPB.
1
abrigo. Quando eles estão assegurados o homem pode enfrentar, com liberdade e
grande perspectiva de sucesso, os problemas da vida2. A conjunção desses
elementos garante a subsistência da pessoa humana desde tempos imemoriais.
Constituem, portanto, as primeiras necessidades básicas reconhecidas pela
coletividade. Podemos considerá-los, até mesmo, a semente dos direitos sociais
contemporâneos.
“Onde os homens perdem a casa e se juntam sob o mesmo teto, sem
poderem pensar, sem aquele mínimo de solitude que os arrancou da animalidade
– o homem regride, desce”3. Essa reflexão de Pontes de Miranda, escrita em
1944, dá exata dimensão da moradia para a evolução civilizatória da espécie
humana. A casa foi o elemento que separou o homem da horda, transformando-se
em espaço íntimo que o protege do frio, das tempestades e dos salteadores. Nela
os alimentos são estocados, os doentes convalescem e as crianças encontram as
condições propícias para se desenvolver.
Ainda na Idade Média, os ingleses forjaram o princípio “minha casa é
o meu castelo” com o intuito de protegê-la do despotismo da Coroa, das prisões
arbitrárias e das expropriações patrimoniais. Foi a primeira limitação imposta ao
absolutismo real e uma prerrogativa individual que sobreviveria ao tempo. Hoje a
inviolabilidade de domicílio é um direito fundamental prescrito nos tratados
internacionais e nas Constituições dos Estados Democráticos de Direito.
Mas o que dizer dos milhões de habitantes do Planeta que, em pleno
Século XXI sequer têm acesso à moradia? E daqueles que vivem em condições
miseráveis, insalubres, privados de equipamentos comunitários e serviços
públicos básicos? Como desconhecer o drama das populações privadas de suas
terras por despejos violentos e ilegais?
A habitação adequada é reconhecida internacionalmente pelas Nações
Unidas como um dos mais importantes direitos sociais. Os Estados têm o dever
de criar leis e promover políticas públicas na área habitacional de forma a
ampliar cada vez mais o acesso à moradia, sobretudo para as camadas mais
pobres da população. Além do Estado outros atores contribuem para a sua
efetividade, a exemplo da sociedade civil, agências multilaterais, instituições
financeiras, construtoras etc.
O direito à habitação adequada não significa dizer que o Estado deva
promover a distribuição gratuita de casas à população. Tampouco se concretiza
pela existência de um “teto”, onde as pessoas possam se abrigar da chuva e do
calor. Consiste em um conjunto articulado de ações estatais para assegurar a
todos o acesso à moradia que proporcione dignidade e conforto aos seus
ocupantes, permitindo o desenvolvimento da liberdade, igualdade e
solidariedade.
22
THOREAU, Henry David. Walden ou a Vida nos Bosques. São Paulo: Global Editora, 1985, p. 25.
MIRANDA, Pontes de. Democracia, Liberdade e Igualdade: os três caminhos. São Paulo:
Bookseller, 2002. 636.
3
2
Da mesma forma não se deve confundir o direito à habitação com o
direito de propriedade. O direito à habitação pressupõe um conjunto de fatores
que asseguram as condições necessárias para que a pessoa humana se beneficie
de uma casa para abrigar a si e sua família, com satisfatórias condições de vida,
salubridade, serviços básicos, equipamentos comunitários e infraestrutura.
Portanto, não basta o título de propriedade do imóvel para que ele se concretize
na sociedade brasileira.
Este artigo analisa as causas da frágil concretização do direito à
habitação adequada no Brasil, bem como as perspectivas de avanços a partir da
execução de políticas públicas verdadeiramente comprometidas com o combate à
desigualdade social e com a participação da sociedade civil nas instâncias de
decisão. O tema é problematizado com a demonstração dos altos índices de
déficit habitacional, que afeta, principalmente as classes de baixa renda, exigindo
respostas urgentes do Estado brasileiro. Nossa hipótese é a de que,
historicamente, a moradia nunca foi uma prioridade dos governos republicanos.
O clientelismo, a especulação imobiliária, o patrimonialismo urbano e a
passividade estatal diante das invasões ilegais foram algumas das causas da crise
habitacional.
A inclusão do direito à habitação adequada nos tratados internacionais
e na Constituição de 1988 foi o primeiro passo para reverter essa situação.
Contudo, comemoramos os 10 anos do Estatuto da Cidade sem muitos avanços
nos direitos por ele assegurados. Os Planos Diretores são sistematicamente
desrespeitados pelos municípios. Milhões de brasileiros sequer têm acesso a
serviços como a coleta de lixo, saneamento básico, tratamento de esgotos e água
encanada4. As altas prestações dos financiamentos hipotecários e a burocracia
que reveste os contratos têm excluído os mais pobres do acesso à casa própria. O
boom imobiliário só tem beneficiado as grandes empreiteiras e setores da classe
média, deixando de fora os que ganham entre 1 e 5 salários mínimos. Além disso,
tem produzido espaços excludentes como condomínios fechados – horizontais e
verticais –, verdadeiras cidades dentro da cidade. Diante de tantos problemas,
podemos indagar: quais as perspectivas para concretização do direito à habitação
adequada nos próximos anos?
2. DÉFICIT
MORADIA
HABITACIONAL
E
CONDIÇÕES
INADEQUADAS
O déficit habitacional brasileiro é de 5,6 milhões de moradias: 82%
em áreas urbanas, o restante na zona rural. Desde 1995, o monitoramento tem
sido feito pela Fundação João Pinheiro. Os dados acima demonstram que o
estoque de habitações disponíveis não é suficiente para os 20 milhões de
brasileiros desprovidos de moradia adequada, isso se considerarmos cinco
4
60 milhões de brasileiros não são beneficiados por sistema de coleta de esgotos; 15 milhões não têm
acesso à água encanada; 65% do esgoto coletado não recebe nenhum tipo de tratamento.
3
habitantes por residência. Em Alagoas o déficit atinge 123.244 moradias,
portanto cerca de 600 mil pessoas sem acesso à habitação5.
Os pesquisadores trabalham com duas categorias estatísticas: o déficit
habitacional e a inadequação de moradias. A primeira refere-se à necessidade de
construção de moradias para satisfazer a demanda imediata da sociedade no
setor. Seu paradigma é o estoque de unidades habitacionais6. A segunda tem
como ponto de partida a qualidade de vida dos moradores alojados em
residências.
Existem duas modalidades de déficit habitacional: (a) déficit por
reposição de estoque e (b) déficit por incremento do estoque. A primeira
modalidade abrange os imóveis sem condições de serem habitados em razão do
desgaste de infraestrutura e precariedade de suas condições físicas. Enquadramse os domicílios rústicos, com paredes sem alvenaria ou madeira trabalhada. Não
proporcionam as condições mínimas de conforto e ainda expõem os moradores a
doenças tropicais devido ao seu estado de insalubridade. Por isso devem ser
substituídos por outros imóveis em melhores condições.
O déficit por incremento de estoque indica a necessidade de
construção de novas unidades familiares para suprir as necessidades das camadas
mais desfavorecidas da população que habitam espaços improvisados como
favelas, cortiços, cômodos, ruínas, choupanas, coabitação familiar ou pessoas
que pagam aluguéis onerosos e comprometedores de seu orçamento doméstico.
Verifica-se a inadequação das moradias quando as habitações não
reúnem as condições desejáveis de ocupação. Aquelas que possuem adensamento
excessivo de moradores, cobertura inadequada, inexistência de unidade sanitária
domiciliar ou que possuem irregularidades fundiárias. Também se enquadram as
casas com graves problemas de infraestrutura, como a inexistência de pelo menos
um dos seguintes serviços básicos: iluminação elétrica, rede geral de
abastecimento d’água com canalização interna, coleta de lixo e rede geral de
esgotamento sanitário ou fossa séptica. Essas unidades quase sempre são produto
da autoconstrução, da informalidade, do desrespeito às normas de segurança, da
utilização de materiais improvisados, entre outras deficiências estruturais.
Quando o Governo brasileiro apresenta os resultados referentes aos
avanços ou retrocessos das necessidades habitacionais, leva em consideração
tanto o déficit habitacional (incremento ou reposição de estoque das moradias)
como a inadequação das moradias7.
Estudos realizados por pesquisadores do IPEA demonstram que nos
últimos anos, o Brasil conseguiu avanços na concretização do direito à moradia
5
Déficit Habitacional no Brasil 2007. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de
Habitação. Brasília: 2009, mimeo, pp. 14-19.
6
Déficit Habitacional no Brasil 2007. Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de
Habitação. Brasília: 2009, mimeo, p. 24.
7
Informativo do Ministério das Cidades. Cf. www.cidades.gov.br. Acesso em 18/04/2011.
4
adequada. Dados de 2004 mostram que houve uma queda significativa do
número de pessoas residentes em cortiços, de moradores de rua e de pessoas com
irregularidades fundiárias. Por outro lado, as políticas públicas governamentais
não foram capazes de deter o aumento de pessoas residentes em favelas e outros
assentamentos informais nas metrópoles e em municípios densamente povoados.
O crescimento foi na ordem de 2 milhões de pessoas8.
Mesmo diante dos avanços no setor, 2/5 da população brasileira vivem
em moradias precárias. Segundo o estudo desenvolvido pelo IPEA, o problema
afeta mais gravemente a população negra e pobre, detentora de pequena
capacidade financeira para arcar com os custos da casa própria e dos serviços
urbanos essenciais. Tal situação exige grandes esforços dos três níveis de
governo para alocar recursos públicos destinados a reverter os vergonhosos
índices de exclusão a tão importante direito fundamental9. As políticas públicas
devem atuar não apenas na democratização dos serviços de saneamento,
distribuição d’água e fornecimento de energia elétrica, mas também promover a
regulamentação fundiária de comunidades indígenas, quilombolas, reservas
extrativistas, assentamentos agrários etc 10.
3. SUPRAESTATALIDADE DO DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA
Na dimensão supraestatal, o direito fundamental à habitação adequada
foi reconhecido pela primeira vez no art. XXV da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948.
O documento proclamou que todo homem tem direito a um padrão de vida que
lhe assegure, assim como a toda sua família, alimentação, vestuário, alimentação,
habitação, cuidados médicos e assistência social indispensáveis, além de outros
importantes direitos sociais. Ao regulamentá-la, o art. 11º do Pacto de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, promulgado pela ONU em 1966, prescreve a
garantia de alojamento para toda pessoa humana.
E não para por aí. O direito à habitação adequada é reconhecido,
explicitamente por outros tratados internacionais, a exemplo do art. 14 (2) da
Convenção sobre todas as formas de discriminação contra a mulher (1979) e do
art. 27 (3) da Convenção sobre os direitos da criança (1989). Também pode ser
8
Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA,
George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA,
pp. 236-237. O estudo mostra que 59,7 milhões de brasileiros enfrentam algum tipo de inadequação em
suas condições de habitação: moradia inadequada, esgoto inadequado, abastecimento d’água inadequado,
adensamento excessivo, irregularidade fundiária, favelas, paredes não duráveis, inexistência de banheiro
exclusivo e teto não durável.
9
Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA,
George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA,
p. 236-237.
10
Monitorando o Direito de Moradia no Brasil (1992-2004). MORAIS, Maria da Piedade; DA GUIA,
George Alex, DE PAULA, Rubem. In Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, v. 12. 2006: IPEA,
p. 236-237.
5
identificado implicitamente no art. 5º da Convenção Internacional sobre todas as
formas de Discriminação (1968) e pelo art. 26 do Pacto de São José da Costa
Rica de (1969).
O direito à habitação adequada não é estanque. Liga-se a outras
espécies de direitos humanos fundamentais por uma relação de transversalidade,
uma vez que sua efetividade depende da concretização do direito à saúde, à
segurança jurídica, à educação, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
etc. A degradação das condições de moradia acarreta graves conseqüências nas
condições de vida da população, aumentando os índices de doenças, desemprego
e violência nas comunidades mais desfavorecidas.
Ao emitir o Comentário Geral n. 4/91, o Comitê sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, órgão vinculado à ONU, elaborou as diretrizes
e os parâmetros adequados para a fruição do direito à habitação adequada,
previsto no art. 11 do Pacto. Na ocasião, as Nações Unidas constatam que cerca
de 100 milhões de pessoas não tinham moradia e mais de 1 bilhão vivia em
habitações inadequadas. A exclusão de grande parcela da população mundial,
violava o direito de todos à habitação, independentemente de idade, condição
financeira, raça, religião ou pertença a determinado grupo social.
Como o Estado pode satisfazer o direito à habitação adequada? O
Comentário n. 04/91 deixa claro que não se pode reduzir a habitação à ideia de
abrigo provido meramente de um teto sobre a cabeça dos moradores. Também
não se trata de direito meramente individual, pois sua função primordial é abrigar
a família com segurança, paz e dignidade. Daí a necessidade de se estabelecer
parâmetros racionais para identificar a adequação dos domicílios à qualidade de
vida da população.
Assim, a “adequação” surge como um paradigma central para a
avaliação da efetividade do direito à habitação. Antes do Comentário n. 04/91,
alguns fatores já tinham sido identificados como “privacidade adequada, espaço
adequado, segurança, iluminação e ventilação adequada, infraestrutura básica
adequada e localização adequada em relação ao trabalho e facilidades básicas,
tudo a um custo razoável (Comissão sobre Assentamentos Humanos e Estratégia
Global para Habitação para o ano 2000)”.
Até então o assunto tinha sido tratado no plano econômico, político,
cultural e social. Porém, o Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais decidiu criar sete parâmetros jurídicos a serem observados pelos
Estados-Membros na criação de leis e políticas públicas no setor habitacional.
São eles:
1. Segurança legal de ocupação: proteção contra despejos arbitrários e
ilegais, pressões incômodas, esbulho e turbação. A legislação deve
proteger as diversas formas de propriedade urbana e rural, bem como
posses consolidadas pelo tempo, sobretudo em grupos sociais vulneráveis
– sem poder aquisitivo para enfrentar as demandas judiciais.
6
2. Disponibilidade de serviços, materiais, equipamentos e infra-estrutura:
os moradores devem ter acesso ao fornecimento de energia elétrica, água
tratada, gás para a cozinha, recolhimento regular de lixo, saneamento
básico, instalação de equipamentos sanitários, drenagem de águas pluviais,
iluminação pública, acesso a serviços de emergência (atendimento médico
de urgência, atuação do corpo de bombeiros em caso de incêndio etc.).
3. Custo acessível: os custos dos imóveis devem atender às condições
financeiras da família de forma a não comprometer o orçamento
doméstico ou privá-la de outros direitos sociais básicos (educação, saúde,
transporte, vestuário). Para isso, os Governos devem criar sistemas de
financiamento da casa própria que levem em consideração a capacidade de
endividamento do mutuário e a criação de subsídios habitacionais para
atender aqueles que não dispõem de condições para arcar com os custos da
habitação.
4. Habitabilidade: o imóvel deve reunir as condições necessárias para
proporcionar aos seus moradores proteção contra a umidade, frio, calor,
chuva, vento e todos os outros elementos nocivos à saúde, especialmente
as doenças epidemiológicas. Também se enquadra nesse título a
prevenção a todos os problemas estruturais da construção que dificultem o
conforto dos ocupantes ou ponha sua segurança em risco.
5. Acessibilidade: os governos têm obrigação de promover ações concretas
que assegurem aos grupos sociais vulneráveis as condições necessárias de
acesso à moradia. A legislação deve assegurar prioritariamente a pessoas
portadoras de necessidades especiais, doentes terminais, crônicos e em
estado grave, portadores de HIV, vítimas de catástrofes e desastres o
direito de adquirir casa própria ou abrigo onde possam obter a assistência
médico-hospitalar necessária.
6. Localização: as áreas habitacionais devem ser instaladas em espaços
que permitam o acesso de seus moradores ao trabalho, escola, hospitais,
postos de saúde, mercados, creches, centros comerciais e de laser, através
de meios de transportes coletivos. Além disso, os conjuntos habitacionais
não podem ser construídos em locais poluídos ou suscetíveis desastres, a
exemplo de encostas, charcos, sopé de montanhas etc.
7. Adequação cultural: a diversidade cultural de cada comunidade deve
ser levada em consideração na implantação de projetos habitacionais, a
fim de preservar a identidade e as tradições de seus moradores.
A ONU tem insistido em obter dos Estados-parte o compromisso de
adotar tais parâmetros em seus sistemas jurídicos, inclusive o monitoramento dos
resultados alcançados. As políticas públicas devem priorizar as famílias sem teto,
as famílias que vivem em assentamentos ilegais, os grupos suscetíveis de
despejos arbitrários, a população de baixa renda, bem como os aglomerados
humanos que não têm acesso aos serviços públicos essenciais a uma vida digna e
7
saudável. Isso inclui o contigente populacional considerado “sem abrigo”,
formado por famílias sem residência fixa, obrigadas a pernoitar na via pública ou
em alojamentos precários e temporários.
Mas as políticas públicas também devem ser concebidas para
beneficiar toda a população, uma vez que a habitação adequada é um direito
social que tem como titular a pessoa humana, independentemente de sua
condição econômica. O Estado tem a obrigação de adimplir as prestações
positivas de natureza constitucional, devendo regular a ocupação do solo urbano
e rural, dotar as cidades de infraestrutura básica, oferecer serviços públicos de
boa qualidade e programas de financiamento da casa própria.
Ao editar a Observação Geral n. 07/97, o Comitê sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais complementou as orientações relativas ao
direito à habitação adequada, promovendo um conjunto de garantias contra os
despejos forçados. Isto é, contra a expulsão de pessoas, famílias e comunidades
de suas casas e terras – de forma permanente ou provisória –, sem lhes oferecer
meios de proteção legal ou de acesso à justiça. Tal proteção não se aplica aos
despejos legítimos, precedidos do devido processo legal e da correta aplicação da
lei em matéria possessória e das normas internacionais de direitos humanos.
Exemplo disso são os despejos decorrentes de esbulho possessório,
inadimplência de alugueis e outros atentados ao direito de propriedade.
Os despejos forçados violam gravemente os direitos fundamentais
pela sua violência e desrespeito à dignidade humana, especialmente quando
atingem crianças, adolescentes, jovens, anciãos, mulheres, povos indígenas e
minorias étnicas. Tais práticas envolvem outros crimes como homicídio,
extorsão, violência sexual, destruição de bens, roubos etc. Isso exige do Estado
atuação preventiva e repressiva para evitar tais abusos e punir os agressores. Nos
casos de despejos legais, a legislação deve prever o direito à indenização justa
pelas benfeitorias, reassentamento das famílias e acesso a terras produtivas
decorrentes de programas de reforma agrária.
Por fim a Observação Geral n. 07/97 recomenda as seguintes medidas
processuais a serem aplicadas nas hipóteses de despejo forçado: consulta às
pessoas afetadas pela medida; prazo razoável para o cumprimento da medida
judicial; fornecimento das informações necessárias ao procedimento de despejo,
inclusive a destinação a ser dada ao imóvel; garantir a presença de representantes
do governo para acompanhar o despejo e evitar excesso das autoridades policiais;
identificação exata dos funcionários responsáveis pela execução do despejo, não
realizar despejos à noite ou quando houver risco de chuvas ou tempestades;
assegurar às pessoas afetadas assistência jurídica gratuita e o amplo direito de
defesa com todos os recursos a ele inerentes.
8
4. O DIREITO À HABITAÇÃO ADEQUADA NO SISTEMA JURÍDICO
BRASILEIRO
O texto aprovado pelos Constituintes de 1988 não incluía a moradia
entre os direitos sociais elencados no art. 6º da Carta Política brasileira. O
acréscimo só aconteceu com a Emenda Constitucional n. 26, de 10 de fevereiro
de 200011.
Com relação à responsabilidade dos entes federativos para assegurar o
direito fundamental à habitação adequada, o art. 23, IX, do texto constitucional
atribui competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios para promover programas de construção de moradias, a melhoria das
condições habitacionais e o saneamento básico. Nesse aspecto, devem atuar em
três níveis: (1) suprir o déficit habitacional decorrente da ausência de estoque de
unidades habitacionais; (2) promover ações para melhorar a qualidade dos
imóveis já existentes, mas em estado de precariedade, decomposição ou
desprovido de segurança para os moradores; (3) dotar as comunidades de
saneamento básico mediante procedimentos eficazes de canalização e tratamento
de esgotos, coleta e tratamento de resíduos orgânicos, além de outras medidas
capazes de assegurar vida saudável, higiênica e ecologicamente sustentável,
evitando a contaminação e a proliferação de doenças.
A Constituição de 1988 ainda trata do tema ao disciplinar a Política
Urbana (arts. 182 e 183). Nesse aspecto, alguns avanços na questão habitacional
devem ser enfatizados. O primeiro deles é que a política de desenvolvimento
urbano deve ser executada pelo município em respeito às diretrizes fixadas em
lei. Ela tem o objetivo de ordenar as funções da cidade e garantir o bem-estar de
seus moradores.
Também determinou que os municípios com mais de vinte mil
habitantes editassem os seus Planos Diretores, considerados instrumentos básicos
da política de desenvolvimento e expansão urbana. Para prestigiar esses
instrumentos legais, condicionou a função social da propriedade à observância
das exigências fundamentais de ordenação da cidade neles expressas. Assegurou
a impenhorabilidade do bem de família, impedindo sua expropriação por dívidas
contraídas pelos proprietários.
Por fim merece destaque o direito à usucapião especial para aqueles
que detenham a posse, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, de área
urbana de até 250 metros quadrados, utilizando-a como sua moradia ou de sua
família. Nessa situação, o ocupante pode recorrer à justiça para converter a posse
em propriedade, desde que não seja dono de outro imóvel urbano ou rural. O
título do domínio pode ser concedido ao homem ou a mulher, independentemente
do estado civil (CF, art. 183). A possibilidade de registrar o imóvel no nome da
11
Art. 6º. “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma da
Constituição”. O art. 7º da Constituição de 1988 também estabelece que o salário mínimo, nacionalmente
unificado, deverá suprir as necessidades básicas do trabalhador, entre elas a moradia.
9
mulher tem sido uma estratégia recorrente nos programas de regularização
fundiária, por sua histórica resistência em alienar o imóvel, o que garante maior
segurança à família na manutenção do patrimônio. O registro em nome do casal é
outra estratégia que tem sido largamente utilizada em programas sociais, como
forma de impedir a negociação irresponsável do imóvel.
Na dimensão infraconstitucional, a Política Urbana foi regulamentada
pela Lei 10.257/2001 – o Estatuto da Cidade. Ele trouxe muitos instrumentos de
tutela ao direito à habitação adequada, sobretudo no que se refere à segurança
jurídica da posse e da propriedade (usucapião urbana, concessão do direito real
de uso para fins de moradia, zonas de interesse social, regularização fundiária
etc.), além da gestão democrática e participativa da cidade.
5. EVOLUÇÃO DAS POLÍTICAS HABITACIONAIS NO BRASIL
Até os anos 30, as intervenções estatais nos domicílios domésticos
resumiam-se a questões sanitárias com o objetivo de evitar a proliferação de
doenças. Exemplo disso foi o episódio conhecido como a Revolta da Vacina
(1904), em que autoridades invadiram as casas do Rio de Janeiro para compelir
os moradores a submeterem-se à vacina contra a varíola. Outro exemplo são as
grandes reformas urbanas comandadas pelo prefeito Pereira Passos entre os anos
de 1903 a 1906, apelidadas pelo povo de “bota-abaixo”, que reconfiguraram a
capital federal, substituindo as ruas estreitas e vielas acanhadas por imponentes
bulevares, além de retirar vários cortiços de áreas comerciais.
A partir dos anos 30, o Brasil começou a se industrializar. A oferta de
empregos nas fábricas e a expansão dos centros urbanos atraíram milhares de
operários vindos da zona rural em busca de oportunidades. O expressivo aumento
populacional provocou grande crise habitacional, que atingiu principalmente as
camadas mais pobres da população e arrefeceu a marginalização e exclusão
social. A falta de planejamento e de vontade política terminou favorecendo o
crescimento de favelas, vilas, alagados, cortiços, invasões de terras e ocupações
de encostas.
Foi nesse período que o Governo Vargas (1930-1945) estimulou a
criação dos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPS), vinculados a gênero
ou categorias profissionais. Entre 1933 a 1945, foram constituídos sete IAPs
(industriários, marítimos, bancários, comerciários, estivadores, servidores
públicos e transportadores de cargas). Esses institutos iniciaram os primeiros
programas de financiamento de casas próprias para os seus filiados.
Durante o Estado Novo, os IAPs assumem grande importância na
expansão das moradias, sendo pioneiros na construção de conjuntos habitacionais
em diversos Estados do país. Essas instituições eram importantes instrumentos
políticos para fortalecer os princípios do Estado Novo, baseado nos pilares da
industrialização, sindicalização e urbanização. Porém sua atuação não foi
suficiente para resolver os problemas de habitação, que se agravavam com o
crescimento de favelas e mocambos nas grandes cidades. A perda de
10
legitimidade dessas instituições entre os trabalhadores e a incapacidade de suprir
a escassez de residências provocaram uma crise sem precedentes no setor. Foi aí
que o Ministério do Trabalho promoveu a unificação de diversos Institutos de
Aposentadorias e Pensões na esperança de criar uma poderosa instituição de
previdência social que ficasse responsável pela construção de vilas operárias em
todo o território nacional12.
Em 1946, o Presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) editou o
Decreto-Lei 9.777, que criou a Fundação Casa Popular – o primeiro órgão
federal responsável pela condução da política habitacional brasileira. A FCP
tinha a missão de financiar residências populares a baixo custo ou destinadas à
locação sem objetivo de lucro. Também era responsável pelo financiamento de
obras urbanísticas, abastecimento d’água, esgotos, suprimento de energia elétrica
e outros serviços que melhorassem a qualidade de vida e bem-estar das classes
trabalhadoras13.
Por trás da criação da FCP estava a proposta de seduzir o operariado
brasileiro com a realização do sonho da casa própria, promovendo
financiamentos imobiliários cujas prestações cabiam no orçamento dos
trabalhadores de baixa renda. A iniciativa sofreu muitas críticas, tanto do setor da
construção civil e das classes conservadoras, como também dos membros do
Partido Comunista. Os construtores temiam a concorrência do Estado num setor
altamente lucrativo e que se encontrava em plena efervescência. A bancada
comunista – que vinha obtendo importantes vitórias nas urnas – acusava o
governo de clientelista e demagogo, pois os investimentos eram canalizados para
seus aliados políticos.
Com o passar do tempo, verificou-se que a falta de critérios objetivos
para a construção de conjuntos habitacionais terminou favorecendo o uso político
da instituição, que passou a beneficiar claramente os Estados de maior densidade
eleitoral. Esse importante instrumento político integrou-se ao projeto populista
que visava à manutenção das oligarquias no poder. Pouco a pouco a FCP foi
perdendo sua credibilidade e importância na condução da política habitacional
brasileira. Com o golpe militar de 1964, já era um órgão obsoleto incapaz de
cumprir as missões que inspiraram sua criação14.
Em 1964, o Governo Militar criou o Sistema Financeiro da Habitação
e o Banco Nacional da Habitação (Lei Federal 4.380/64). O objetivo era financiar
12
O plano getulista consistia na criação do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil, a partir da unificação
do IAPETEC, IAPB, IAPM, IAPC, IAPE e IAPI. Esse projeto de unificação das carteiras hipotecárias dos
IAPs ficou no papel durante anos e só se consolidou em 1967 com a criação do Instituto Nacional de
Previdência Social e do Banco Nacional da Habitação. Cf. MELO, Marcus André B. C. de. A Política de
Habitação
e
Populismo:
O
Caso
da
Fundação
da
Casa
Popular.
www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em 23/04/2011.
13
MELO, Marcus André B. C. de. A Política de Habitação e Populismo: O Caso da Fundação da
Casa Popular. www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em
23/04/2011.
14
MELO, Marcus André B. C. de. A Política de Habitação e Populismo: O Caso da Fundação da
Casa Popular. www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/download/.../2222. p. 43. Consulta em
23/04/2011.
11
casas próprias em grande escala para as mais diversas classes sociais. Cabia ao
BNH incentivar a população a investir em cadernetas de poupança, cujos
recursos alimentariam o SFH e chegariam aos mutuários através de sociedades de
crédito imobiliário públicas e privadas. Dois anos depois a Lei 5.107/66 instituiu
o FGTS, também canalizando seus recursos para área de habitação e
infraestrutura15. A ideia era aquecer o setor da construção civil, gerar empregos
em massa e satisfazer às aspirações represadas de milhares de famílias
brasileiras.
Em meados da década de 80 o modelo entrou em colapso. Diversas
associações de mutuários se organizaram para combater as prestações abusivas,
os constantes reajustes e as execuções hipotecárias movidas contra os devedores.
Em 1986, o Banco Nacional da Habitação foi extinto. Suas atribuições foram
redistribuídas para outros órgãos governamentais como o Conselho Monetário
Nacional, Banco Central do Brasil e Caixa Econômica Federal. Durante sua
existência, o BNH patrocinou importantes programas de construção de
residências de baixo custo, como as Companhias Habitacionais (COAHBs), o
Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP) e o Sistema Financeiro de
Habitação Popular16. As mudanças operadas pelo Decreto-Lei 2.291/86 tiveram o
objetivo de corrigir as distorções que provocaram um alto índice de
inadimplência dos mutuários17.
Embora o SFH tenha financiado cerca de 6 milhões de imóveis, o
déficit habitacional não parou de crescer. Em 2000, o Relatório da Sociedade
Civil sobre o Cumprimento do PIDESC (Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais), denunciou a falta de políticas públicas no
setor. Vários problemas foram apontados, entre eles os despejos violentos em
imóveis abandonados, o aumento da inadimplência das prestações da casa
própria, descaso com as habitações rurais e indígenas e inexistência de política de
moradia para a população de baixa renda. A equipe de especialistas sugeriu
programas de proteção à população em situação de risco, a urbanização de áreas
insalubres, promoção de moradias para os “sem teto”, instalação de
equipamentos comunitários para a população carente, entre outras medidas 18. Os
problemas relatados à época ainda persistem, o que mostra a incapacidade do
Governo em resolver a questão.
O Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) apresentou um
extenso programa habitacional19. Mas os anos que se seguiram mostraram que o
setor não era prioridade. Entre as medidas estavam a reconfiguração do modelo
15
Hoje o FGTS é regulamentado pela Lei 8.036/90. Os recursos são controlados pelo Governo Federal,
nos termos das Resoluções do Conselho Curador do FGTS. A Caixa Econômica Federal é o agente
operador.
16
Durante sua existência, o BNH financiou 4,4 milhões de unidades habitacionais.
17
O Banco do Nordeste do Brasil também desenvolveu um programa de financiamento de casas
populares, sem muito sucesso.
18
Relatório da Sociedade Civil sobre o Cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Brasília: 2000. Mimeo.
19
As principais propostas constavam do documento intitulado Política Nacional da Habitação (1996),
elaborado pela Secretaria Nacional da Habitação e Política da Habitação.
12
de déficit habitacional, a descentralização e diversificação dos programas de
aquisição da casa própria. Também houve o reconhecimento de que as principais
carências se encontravam nas classes mais pobres da população. Os principais
programas foram os seguintes: Pró-Moradia; Habitar Brasil; Carta de Crédito
Individual e Associativa; Apoio à Produção.
Na prática, o Governo FHC seguiu o mesmo modelo de seus
antecessores, utilizando-se dos recursos da poupança popular e do FGTS.
Embora tenha prometido financiar casas próprias com recursos a fundo perdido,
os valores destinados ao setor foram irrisórios. Para se ter uma ideia do descaso,
entre 1995 e 1997, a União destinou apenas R$ 612.648,00 de recursos
orçamentários para a habitação (cerca de 200.000,00 por ano). Além disso,
apenas 13% dos recursos previstos para a classe mais pobre da população, com
renda familiar entre um e cinco salários mínimos, foram investidos efetivamente.
A maior parte dos financiamentos foi destinada às classes sociais com maior
poder de compra20.
Outros problemas também foram detectados no período. As cartas de
crédito, apresentadas como grande novidade para os candidatos à casa própria,
esbarraram na falta de regularização fundiária dos imóveis de baixo custo, o que
inviabilizava as aquisições. Por outro lado, muitos municípios não puderam ter
acesso aos recursos do FGTS em razão de dívidas anteriores, prejudicando a
construção de milhares de casas populares. Finalmente, o Governo reduziu a
questão habitacional à lógica de mercado nos moldes neoliberais, deixando de
tratá-la como um imperativo constitucional que exigia prestações positivas do
Estado para erradicar a pobreza e a marginalização. (CF, art. 3º, III). Esse
rompimento ficou muito claro quando o Governo flexibilizou o teto do
financiamento e transferiu a questão para o setor da construção civil21.
O Governo Lula (2003-2010) estampou suas estratégias de combate
ao déficit de moradias no documento intitulado Política Nacional de Habitação
(2004)22. Entre os princípios inspiradores de sua política setorial estão a
universalização da moradia digna, o atendimento à população de baixa renda, a
ampliação do crédito habitacional, o combate aos problemas habitacionais, o
estímulo ao mercado para atender à classe média e o planejamento das cidades. A
coordenação e articulação das ações ficaram sob a responsabilidade da Secretaria
Nacional da Habitação, órgão subordinado ao Ministério das Cidades.
A tônica do Governo Lula foi a diversificação dos programas e ações
no setor habitacional23. Outra medida importante foi a criação do Fundo Nacional
20
MARICATO, Ermínia. Política Urbana e Habitação Social: um assunto pouco importante para o
Governo FHC. São Paulo: 1998, mimeo, pp. 5-7.
21
MARICATO, Ermínia. Política Urbana e Habitação Social: um assunto pouco importante para o
Governo FHC. São Paulo: 1998, mimeo, pp. 9-10.
22
O Governo também elaborou o PlanHab 2009-2023 – Plano Nacional de Habitação.
23
Alguns dos programas no setor habitacional: (a) Orçamento Geral da União: Habitar Brasil BID –
HBB, Programa Brasileiro da Qualidade e Produtividade do Habitat (PBQP-H), Programa de Subsídio à
Habitação de Interesse Social (PSH), Projetos Prioritários de Investimento (PPI); (b) FGTS: Carta de
Crédito Individual, Carta de Crédito Associativo, Programa de Atendimento Habitacional através do
13
de Habitação de Interesse Social (FNHIS), com a proposta de assegurar à
população de baixa renda o acesso à terra urbanizada e à habitação digna e
sustentável, nos termos da Lei 11.124/2005. Uma das medidas de maior impacto
foi o Programa Minha Casa, Minha Vida – criado em julho de 2009, com o
objetivo de incentivar a produção e aquisição de unidades habitacionais para
famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Hoje ele é considerado o
maior programa brasileiro de construção de casas populares, sendo responsável
pelo aquecimento da construção civil de baixo custo, pelo aumento de empregos
e pelo acesso à habitação adequada. O seu sucesso pode ser constatado pelo
número de financiamentos contratados. Entre março e dezembro de 2010 o
número de casas financiadas saltou de 80.389 para 217.52424. Segundo o
Governo a meta é construir, só na primeira etapa, 1 milhão de moradias25.
Com a criação do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, em
2007, o Governo Federal investiu cerca de 12 bilhões de dólares na urbanização
de favelas26. Também destinou recursos para a construção de casas populares.
Embora tenha havido significativos avanços no setor, não se pode dizer que o
direito à habitação adequada está consolidado no país. O assustador déficit
habitacional persiste em níveis muito altos. E a tendência é crescer cada vez
mais. A cada dia aumenta o número de pessoas que vivem em favelas, cortiços,
casas de fundo ou em espaços públicos como marquises, calçadas, pontes,
viadutos, beiras de estrada, encostas, margens de rios e áreas verdes. A falta de
políticas públicas eficientes tem contribuído para a proliferação de assentamentos
irregulares, loteamentos clandestinos e cidades de lona. Tudo isso mostra que a
questão habitacional é extremamente complexa e passa pela diminuição das
desigualdades sociais, pela melhor distribuição de renda, pelo acesso ao trabalho,
educação e saúde – direitos sociais historicamente negligenciados no país.
6. A QUALIDADE DAS MORADIAS E O DIREITO À CIDADE
Ao descrever o Brasil Holandês, Gaspar Barléu, biógrafo oficial de
Maurício de Nassau, observou que as casas dos brasileiros eram toscas
construções, com paredes de vara rebocada e telhado ripado de telhas ou palhas
de coqueiro27. Duzentos anos depois, a educadora alemã Ina Von Binzer anotava
que as habitações rurais situadas nas aristocráticas fazendas de café não
Poder Público (Pró-moradia); (c) FAR: Programa de Arrendamento Residencial (PAR); (d) FDS:
Programa de Crédito Solidário e Minha Casa, Minha Vida (e) FAT: Projetos Multissetoriais Integrados;
(f) FNHIS: Programa de Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários, Habitação
de Interesse Social, Ação de Provisão Habitacional de Interesse Social, Ação de Apoio a Planos
Habitacionais de Interesse Social PLHIS), Ação de Apoio à Produção de Moradia. Fonte: Ministério das
Cidades. Governo do Brasil.
24
Fonte: www.blogdaconstrucaocivil.com.br . Postagem de 21 de fevereiro de 2011.
25
Em março de 2010, a então Ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, declarou que o PAC 2 terá como
meta a construção de mais 2 milhões de moradias.
26
Fonte: Ministério das Cidades. Ministro anuncia novo déficit habitacional durante o Fórum Urbano
Mundial 5. Informe de 23/03/2010. www.cidades.gov.br.
27
BARLÉU, Gaspar. O Brasil Holandês sob o Conde Maurício de Nassau. Brasília: Editora do Senado
Federal, 2009, p. 93. A 1ª edição da obra foi publicada em 1647.
BIZER, Ina Von. Os meus romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1982, p. 50. A primeira edição da obra foi publicada em 1856.
14
passavam de cabanas sem janelas, feitas de tábua e recobertas por uma esteira de
palha de milho. Essa realidade ainda persiste em muitas favelas e assentamentos
irregulares. Homens, mulheres e crianças vivendo em condições miseráveis,
absolutamente excluídos dos serviços públicos básicos.
Os contrastes entre as elites rurais – baseadas no patriarcalismo, na
monocultura e nas práticas feudais – acentuaram-se com a separação entre a casa
grande e a senzala. Esse fenômeno foi profundamente investigado pelo sociólogo
Gilberto Freyre. A casa grande era o espaço onde se desenvolviam as relações de
poder e de dominação. Simbolicamente a senzala representa não apenas a
habitação do negro escravizado, como também a precariedade da moradia dos
trabalhadores livres que residiam nas fazendas de cana-de-açucar ou de café. A
decadência da aristocracia rural começou com a chegada de D. João VI ao Brasil,
quando surge uma elite formada por autoridades, bacharéis e comerciantes,
fortemente influenciada pelos valores europeus. Ela expandiu-se para cidades
como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, implantando novos valores e modos de
vida. Ocupou áreas urbanas valorizadas, construindo casas, mansões e sobrados.
Em contrapartida, os escravos alforiados e os mestiços aglomeram-se em áreas
insalubres, construindo suas favelas e mucambos. Essa nova burguesia manteve o
modelo social excludente e discriminatório, que se refletia na qualidade da
moradia.
Embora a migração para as cidades tenha começado lentamente em
meados do Século XIX, ela tornou-se mais expressiva na década de 30, quando
começou a industrialização do Brasil. A partir daí o processo migratório passou a
aumentar em proporções incontroláveis. Entre 1950 e 1970, cerca de 30 milhões
de pessoas deixaram a zona rural para tentar a sorte nas cidades. Geralmente
mão-de-obra desqualificada, parcialmente absorvida pelo mercado de trabalho
em bases salariais degradantes. Desprovidos de poder aquisitivo, detentores de
empregos precários ou mergulhados na economia informal, esses trabalhadores
ocuparam espaços periféricos onde passaram a habitar em condições deploráveis.
Hoje, cerca de 81% da população brasileira habita em zonas urbanas,
tornando o acesso à moradia uma das questões centrais da cidadania. Nesse
sentido o direito à habitação adequada está fortemente vinculado ao direito à
cidade: o seu exercício depende diretamente da gestão pública e não apenas da
iniciativa privada. Possuir casa própria não basta. A efetividade depende de
medidas governamentais concretas que assegurem aos moradores as condições
mínimas de iluminação, água encanada, esgoto, transporte, saneamento etc.
Por que o direito à habitação adequada não avança na intensidade
desejada? Existem algumas explicações para o déficit de efetividade. O poder
político local não tem sido capaz de romper com os históricos vícios de
apropriação do espaço urbano pela especulação imobiliária e pelo clientelismo
assistencialista. A pressão das construtoras, empreiteiras de obras públicas,
concessionários de serviços públicos e grupos hoteleiros tem sido um grande
empecilho para a aplicação dos Planos Diretores Municipais. Essas empresas
atuam junto às Câmaras de Vereadores e Poder Executivo para flexibilizar as
15
regras e padrões legais para a aprovação de seus empreendimentos. Os projetos
de revitalização e gentrificação aumentam significativamente o valor dos imóveis
e empurram os pobres para espaços cada vez mais distantes, para periferias
desprovidas de equipamentos comunitários ou sistemas de infraestrutura.
Por outro lado, o clientelismo com fins eleitoreiros tem sido
responsável pela proliferação de loteamentos clandestinos e de favelas em áreas
públicas, encostas ou espaços esbulhados dos legítimos proprietários. A omissão
do poder público em cumprir a lei alimenta um sistema de dominação política
dos setores mais pobres da população e ajuda a eleger candidatos vinculados ao
crime organizado, que se comprometem a encobrir diversas formas de violação
das leis municipais. Estimulam a irregularidade da posse de imóveis, transportes
clandestinos, invasões de áreas verdes, comércio irregular, pirataria etc. Diante
da precariedade das condições de vida, os moradores ficam dependentes de
“pequenos favores” prestados por cabos eleitorais para melhorar a qualidade de
vida da comunidade. O assistencialismo prolifera na ausência do Estado,
suprindo a falta de profissionais de saúde, de segurança pública e transportes
coletivos, alimentando um sistema de apropriação privada dos direitos sociais.
O resultado de tudo isso é a péssima qualidade de moradia, a
contaminação das águas, os esgotos a céu aberto, a proliferação das áreas de
risco, o aumento dos resíduos sólidos e as condições insalubres de vida, num
claro desrespeito às normas ambientais. Os Planos Diretores estão
completamente desacreditados pela falta de cogência e pela relativização dos
seus dispositivos legais. Assim, a função social da cidade, o planejamento e a
regulação urbana ficam severamente prejudicados.
Enquanto isso surgem produtos imobiliários destinados à classe média
alta como condomínios residenciais, prédios de luxo, chácaras e grandes
loteamentos, edificados em imensas áreas urbanas. Os mais ricos criam um
cordão de isolamento, protegidos por sofisticados equipamentos de segurança e
de todas as facilidades necessárias ao conforto e bem-estar. Sem espaço para
construir, os moradores de baixa renda são empurrados para periferias,
alimentando ciclos de violência e exclusão social.
7. A CRISE DE EFETIVIDADE E O DISCURSO CONCRETIZADOR NO
JUDICIÁRIO
Embora a moradia adequada seja um dos mais importantes direitos
sociais proclamados pela Constituição de 1988, sua concretização ainda é tímida
no Brasil. O déficit habitacional continua a crescer, mesmo diante da execução
de políticas públicas no setor da construção civil. Os dados estatísticos
demonstram que o quadro tende a se agravar. A questão não se resume ao acesso
à casa própria; também abrange a qualidade das unidades residenciais. A nova
exigência introduz ao debate temas como acessibilidade, localização, preço,
infraestrutura, registro imobiliário e qualidade da construção.
16
Tudo isso implica a adoção de um discurso jurídico comprometido
com a máxima efetividade do direito à moradia adequada, que tenha como
paradigmas as diretrizes internacionais recomendadas pela ONU e o Estatuto da
Cidade. A construção de unidades habitacionais está vinculada à urbanização
racional, voltada para a promoção da boa qualidade de vida e para o acesso dos
moradores aos serviços públicos básicos (escolas, postos de saúde, transportes
coletivos, áreas de lazer, centros de compras etc.).
O constitucionalismo brasileiro vive um momento de grandes
transformações. As idéias pós-positivistas asseguram vastos mecanismos
hermenêuticos e argumentativos destinados à aplicação eficaz dos direitos sociais
nas relações jurídicas entre Estado e cidadãos. Entre as ferramentas que podem
ser utilizadas pelo Judiciário para compelir o poder público a cumprir as
prestações positivas contidas no texto constitucional, destacam-se a força
normativa dos princípios, a retórica jurídica e os novos métodos de
interpretação28. A jurisprudência brasileira também superou a visão ultrapassada
e imobilista da separação dos poderes como obstáculo ao controle jurisdicional
dos atos do Poder Executivo. Esse fenômeno, mais conhecido como
judicialização da política, permite que as ações ou omissões da Administração
Pública sejam discutidas em juízo à luz da legalidade, moralidade, bem comum e
preservação ambiental.
A ideia de força normativa da Constituição, tão cara à doutrina alemã,
consolidou-se definitivamente na jurisprudência brasileira. Por sua influência, as
normas de direitos sociais deixaram de ser meras cartas estatais de boas intenções
para adquirir cogência e eficácia vinculante em relação ao Executivo, Legislativo
e Judiciário. Até mesmo as normas programáticas – antes consideradas diretrizes
longínquas, de difícil concretização – passaram a conter uma fortíssima carga de
compulsoriedade, legitimando os magistrados a exigir dos governos a satisfação
das “promessas” estampadas no texto constitucional. Ao se ver privada das
prestações positivas essenciais à dignidade, sobrevivência e qualidade de vida, a
população pode recorrer ao Ministério Público a quem cabe a tutela dos direitos
da cidadania, mediante a instauração de inquéritos civis ou propositura de ações
coletivas.
A aplicabilidade imediata é um elemento estruturante do
constitucionalismo contemporâneo. O simples fato de os direitos fundamentais
estarem prescritos na Constituição já lhes confere plena executoriedade,
independentemente de norma infraconstitucional que os regulamente ou os
clarifique. Significa que juiz poderá aplicá-los na solução de conflitos
intersubjetivos de interesses que envolvam o Estado, os cidadãos ou as pessoas
jurídicas. Nesse aspecto, o Judiciário assume o compromisso de concretizar os
direitos humanos na realidade social, atuando como verdadeiro mediador entre a
lei e o caso concreto que lhe é submetido. A visão inflexível de neutralidade do
28
SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: Leituras
Complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. Marcelo Novelino (org.).
Salvador: Juspodium, 2009, p. 32.
17
juiz deu lugar à ideia de ativismo judicial na medida em que o magistrado passou
a direcionar sua atuação para soluções vinculadas à plena efetividade da norma
constitucional. Para isso deve desenvolver um discurso jurídico consistente e
racional, baseado em normas-princípios ou sofisticadas técnicas hermenêuticas
que atendam às demandas de concretização das liberdades públicas e dos direitos
sociais.
Em países periféricos como o Brasil, a efetividade dos direitos sociais
obedece à lógica da gradualidade. As condições econômicas, políticas e sociais
impedem que eles sejam implementados imediatamente e de uma vez por todas.
As circunstâncias fáticas e jurídicas ditam a dimensão de sua observância. É a
chamada eficácia progressiva, que depende de fatores conjunturais. Ao
magistrado cabe a otimização de tais direitos, expandindo ao máximo a sua
abrangência mediante a superação dos obstáculos jurídicos e financeiros que se
projetam em situações específicas. Alguns parâmetros balizam as decisões
judiciais, entre eles o mínimo existencial e a proibição do retrocesso.
Com frequencia a efetividade dos direitos sociais esbarra em
dificuldades orçamentárias – algumas reais, outras retóricas e enganadoras. De
fato, a implementação de políticas públicas exige a alocação de recursos
financeiros previstos nos orçamentos dos entes federativos. Muitas vezes o
governante se vê impossibilitado de assegurar à população determinadas
prestações positivas em virtude da escassez ou inexistência de receitas
orçamentárias específicas. Os gastos estão sujeitos a rigorosos critérios legais que
não podem ser contornados pela mera vontade do governante, que fica sujeito às
sanções contidas na Lei de Responsabilidade Fiscal e de Improbidade
Administrativa.
Outras vezes a omissão do gestor é falaciosa, enganadora. Um véu que
esconde o deliberado propósito de descumprir os direitos sociais. Ao serem
responsabilizados em ações civis públicas, os governantes costumam invocar a
“reserva do possível” para justificar o descumprimento prestacional. O problema
é que tal argumento quase sempre está desacompanhado de provas objetivas da
impossibilidade de satisfação do direito invocado. A tese de insuficiência de
recursos financeiros tem sido rechaçada pela jurisprudência pátria quando
desacompanhada de elementos probatórios objetivos que justifiquem a omissão.
O STF já decidiu que “a cláusula da reserva do possível – ressalvada a ocorrência
de justo motivo objetivamente auferível – não pode ser invocada, pelo Estado,
com a finalidade de exonerar-se de suas obrigações constitucionais, notadamente
quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até
mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de
essencial fundamentalidade29”.
Ora, o acesso à moradia adequada é um direito social indissociável do
mínimo existencial. Sem ele, a sobrevivência e a qualidade de vida digna ficam
seriamente ameaçadas. O Estado tem o dever de adimplir as prestações
29
Extrato da decisão monocrática do Ministro Celso de Mello na ADPF 45.
18
necessárias a assegurar as condições básicas de habitação contidas nas diretrizes
internacionais e na legislação brasileira. Portanto a efetividade não se submete a
juízos de oportunidade, conveniência ou discricionariedade do governante. O
mandato popular não assegura plena liberdade ao gestor em apontar
discricionariamente os setores em que as receitas devam ser aplicadas. As
escolhas políticas básicas têm assento constitucional e devem ser satisfeitas pelos
detentores do poder político no limite das condições orçamentárias existentes. O
Judiciário exerce importante papel institucional na concretização dos direitos
sociais, na medida em que impõe aos governos o dever de conformação ao texto
constitucional, determinando o cumprimento das prestações civilizatórias
fundamentais. Essa postura fortalece o Estado Democrático de Direito e promove
a dignidade da pessoa humana.
8. CONCLUSÕES
O modelo constitucional brasileiro inspira-se no Estado do Bem-Estar
Social, cujos princípios fundamentais são a universalidade, seguridade e
proteção à cidadania. Embora os direitos sociais beneficiem a todos
indistintamente, a atual conjuntura política exige que os programas sociais
focalizem as camadas mais desassistidas da população. O Estado deve promover
a igualdade de pontos de partida, assegurando aos mais pobres as condições
mínimas para que cada um possa se desenvolver de acordo com seus talentos e
aspirações no jogo da vida.
O Governo brasileiro tem propalado o compromisso político de
erradicar a miséria e reduzir a pobreza, numa clara evocação atenuada ao
comando contido no art. 3º, III, da Constituição Federal. Isso só é possível
mediante a canalização de recursos cada vez maiores para o financiamento de
políticas públicas voltadas para os “miseráveis” e “pobres”. A crise social deve
ser, por conseguinte, enfrentada a partir da estratégia de priorizar as ações
estatais focalizadas em populações vulneráveis, sem desprezar as prestações
universais (erga omnes). O primeiro desafio consiste em definir essas categorias
sociais diante da diversidade de critérios propostos.
Grosso modo, o indivíduo é considerado miserável quando a renda
familiar é insuficiente para adquirir cesta básica que atenda as suas necessidades
nutricionais. Já o pobre é aquele que tem acesso precário e insuficiente à
alimentação, moradia, trabalho, transporte e outros direitos sociais. Para o Banco
Mundial, miserável é aquele que recebe até US$ 1,00 por dia; pobre, o que não
supera a marca dos US$ 2,00/dia. A priorização das políticas públicas sobre essas
camadas populacionais é uma questão de justiça social, de concretização do
“mínimo existencial” – corolário de uma sociedade solidária e igualitária. A
partir do momento em que as necessidades básicas estiverem satisfeitas,
poderemos caminhar para a convergência entre as ações focalizadas e universais.
Por enquanto as desigualdades podem ser combatidas através de transferências
de rendas, relocação de recursos públicos para programas de promoção da casa
19
própria, saúde, geração de empregos, educação fundamental e profissionalizante,
segurança alimentar etc30.
A opção pela erradicação da miséria e a redução da pobreza não
implica o rompimento com a universalidade dos direitos sociais. As prestações
positivas não são prerrogativas exclusivas dos miseráveis e pobres. Ao contrário.
As políticas públicas devem beneficiar toda a população indiscriminadamente.
Porém, o atual momento histórico exige que os recursos disponíveis sejam
prioritariamente canalizados em benefício daqueles que se encontram em
situação de maior vulnerabilidade. É uma questão de justiça social, de acesso aos
bens de consumo e aos serviços estatais de boa qualidade. As políticas públicas
destinadas às pessoas carentes funcionam como verdadeiras “normas de
calibragem”, na medida em que contribuem para o equilíbrio das relações sociais
e promovem a igualdade de oportunidades na fruição dos bens da vida. Mas isso
não impede que as ações governamentais ampliem-se gradativamente até atingir
a totalidade do povo brasileiro.
É evidente que a execução dessas ações sociais tem como maior
obstáculo a escassez de recursos financeiros. Mas é necessário que a República
se comprometa com o aumento de verbas orçamentárias destinadas às políticas
públicas concretizadoras dos direitos humanos fundamentais. É preciso buscar
novas fontes de financiamento, o que só será possível com uma reforma tributária
consistente que reduza a forte concentração de renda nas mãos de poucos e que
possibilite reverter a lógica de desenvolvimento concentrador e excludente,
tornando os direitos sociais realidades aferíveis empiricamente na sociedade
brasileira31.
Nesse contexto, o direito à moradia adequada surge como um
verdadeiro pilar do constitucionalismo brasileiro, devendo figurar entre as ações
prioritárias do Governo. A estratégia exige medidas como geração de empregos e
renda, transferência monetária para as famílias carentes, créditos hipotecários
subsidiados, economia solidária, entre outros investimentos sociais. Como a
moradia depende da efetividade do direito à cidade, o Estado deve combater a
crise urbana com fortes investimentos em pavimentação, transportes coletivos,
saneamento básico, fornecimento d’água e coleta de lixo.
Os programas de construção da casa própria são uma poderosa
ferramenta para incluir as famílias carentes no consumo de bens e serviços
básicos, fortalecendo o “sentimento de pertença” à comunidade. As políticas de
habitação devem ser configuradas no âmbito de um pacto federativo que integre
a União, os Estados, os Municípios e a sociedade civil como vetores de
efetividade dos direitos sociais.
30
BAVA, Silvio Caccia. Recuperar as perdas. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro
2001, p. 5; FAGNANI, Eduardo. Como conquistar o desenvolvimento social. In: Le Monde
Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 7.
31
BAVA, Silvio Caccia. Recuperar as perdas. In: Le Monde Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro
2001, p. 5; FAGNANI, Eduardo. Como conquistar o desenvolvimento social. In: Le Monde
Diplomatique Brasil, número 43, fevereiro 2001, p. 7.
20
Instituições como o Ministério Público e os Tribunais de Contas têm o
dever institucional de exercer o controle externo das políticas habitacionais, a fim
de prevenir e reprimir os atos de improbidade administrativa e a gestão
perdulária dos recursos públicos destinados ao setor. A população também pode
contribuir denunciando os abusos e participando ativamente das decisões
governamentais que afetem sua qualidade de vida. O exercício da cidadania é
essencial para os avanços e as transformações sociais, sobretudo para a
formatação de políticas redistributivas dos tributos arrecadados pelo Estado.
Enfim, o direito à moradia adequada só será efetivado de forma
satisfatória, priorizando-se os setores mais carentes da população brasileira na
fruição dos benefícios trazidos pela execução das políticas públicas. As omissões
administrativas devem ser mediadas pelo Judiciário, a quem cabe fortalecer cada
vez mais o discurso jurídico concretizador dos direitos fundamentais. Diante de
um cenário em que os recursos financeiros são escassos e as necessidades sociais
ilimitadas, a atividade judiciária deve se voltar para a garantia do mínimo
existencial, a aplicação racional das verbas públicas e o sistemático combate à
corrupção.
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