Cristianismo: unidade e diversidade
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Cristianismo: unidade e diversidade
EMRC - AMOSTRA UNIDADE LECTIVA 2 Cristianismo: Unidade e Diversidade • A unidade do Cristianismo EMRC - AMOSTRA Nesta unidade vamos reflectir sobre: • O cisma do Oriente e a separação das Igrejas católica e ortodoxa • O cisma do Ocidente • A identidade das Igrejas católica, ortodoxa e protestantes • A organização interna da Bíblia • A formação do Antigo e do Novo Testamentos • A revelação, a inspiração e o cânone da Bíblia • A unidade dos cristãos nos textos bíblicos • O ecumenismo • A construção de pontes para a unidade • A criação das Igrejas da reforma Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 4 Roger Schutz, irmão da comunidade de Taizé Olá! Chamo-me Roger. Nasci na Suíça em 1915, mas em 1940, durante a segunda guerra mundial, fui viver para França. Já desde alguns anos que sentia em mim o desejo de me juntar a outras pessoas para concretizarmos um grande desafio: viver todos os dias a reconciliação entre os cristãos. Sabes… eu nasci numa família protestante (o Cristianismo dividiu-se em três grupos principais: católicos, ortodoxos e protestantes), mas sentia-me fascinado pelo Catolicismo e pela Ortodoxia e sempre me fez sofrer ver pessoas sinceras e honestas a recusarem relacionar-se fraternalmente só porque pertenciam a famílias religiosas diferentes. O sofrimento que vi, durante o terrível conflito mundial, deu-me ainda mais consciência de que, unidos, podíamos fazer um bem maior. Juntei-me a outras pessoas e fundámos, em Taizé, uma comunidade onde, na simplicidade, cada um expressa a sua fé cristã, oramos em conjunto a Jesus Cristo, acolhemos quem nos procura e servimos os desfavorecidos. Queremos, os irmãos de Taizé, ser um sinal concreto de reconciliação entre cristãos divididos e povos separados. Unidade 2 5 Comunidade de Taizé Comunidade de Taizé — Borgonha, França SABER + EMRC - AMOSTRA Nesta Unidade Lectiva procura entender as razões históricas, culturais e religiosas que provocaram as várias divisões no Cristianismo, mas, sobretudo, abre-te à beleza da unidade na diferença e descobre o que podes fazer para tornar possível a fraternidade entre os povos, a comunhão entre os cristãos e a harmonia nas relações entre as pessoas da tua escola. O irmão Roger Schutz foi assassinado em 2005, durante a oração da tarde, por uma mulher que sofria de perturbações mentais. A comunidade de Taizé continua a ser um sinal de encontro entre os povos e de construção da paz. Para além dos programas semanais em Taizé, a comunidade promove, desde 1978, encontros anuais de oração pela paz em diferentes cidades da Europa. Em 2004, este encontro — Peregrinação de Confiança através da Terra — realizou-se em Lisboa. Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 6 SABER + A palavra ‘cisma’ — do grego skhisma («fenda; separação»), por via do latim schisma — significa dissidência religiosa, separação de uma determinada religião. CRISTIANISMO – UMA FÉ, VÁRIOS CAMINHOS Pormenor do Crucifixo, por Miguel Ângelo O Cristianismo, que assenta a sua fé e a sua esperança em Jesus Cristo, é uma religião que está profundamente inserida na vida das pessoas e dos povos. Jesus e os apóstolos viveram num período histórico em que o império romano dominava grande parte do mundo conhecido e Roma era a capital desse imenso império. Os cristãos, porque pessoas reais e concretas, sempre viveram no espaço público em que estavam inseridos, adaptando-se às condições sociais. Herdeiro do Judaísmo e enriquecido pela civilização greco-romana, o Cristianismo, apesar de três séculos de perseguições, criou raízes na vida de muitos homens e mulheres que, em Jesus Cristo, encontraram sentido para a vida. A universalidade que o Cristianismo alcançou deu-lhe vitalidade, mas também é verdade que a submissão a interesses particulares, de indivíduos ou de grupos, fragilizaram a comunidade cristã. Ao longo do primeiro milénio, apesar de pequenas divergências e separações, o Cristianismo manteve-se globalmente unido. Logo no início do segundo milénio acontece a grande ruptura na Igreja cristã — o cisma do Oriente. Unidade 2 7 O diálogo entre o Oriente cuja capital era Constantinopla (antiga Bizâncio e actual Istambul, na Turquia) e o Ocidente, com capital em Roma, já várias vezes tinha sido posto em causa. Com a queda do império romano no Ocidente, em 476 — após a divisão do império romano em duas partes (império romano do Ocidente, com capital em Roma, e império romano do Oriente, com capital em Constantinopla) — a cidade de Constantinopla adquiriu progressivamente uma maior importância. As diferenças entre o mundo ocidental (que falava latim) e mundo oriental (que falava grego) vão-se acentuando a nível cultural, político e até religioso. Pictos Limite de Províncias GERMANICUM Fr bi -23 Argentorate s 25 0 vius a Danu 0 Ostrogodos T (Dn yras iestr e) Tis i 27 0 Parisii G A L L I A E 80 3 us Treveri s1 Vândalos en Rotomagus do s Rh 286 ATLANTICUS Go Al Londi num OCEANUS Eslavos Burgúndios p id o B R I TA N I A es xõ s Sa e isõ Savaria Hé 400 375- ru lo s A l a n o s Olbia Gé Hibernia 260 c s Limite de Dioceses 23 Es o ot Igreja de Hagia Sophia em Istambul, Turquia Limite do Império no tempo de Diocleciano (284-305) MARE Chersonesus Brigurdium P A N N O N I A E PONTUS EUXINUS Virunum Visigodos Verona Trapezus Mediolanum Verona Aquileia Mursa Viminacium Burdigala Vienna Padus Nicopolis VIENNENSIS Bononia Satala Comana Heraclea Ravenna Genua Elusa THRACIAE SalonaeNaissus P O N T U S Bracara MARE Serdica Florencia Melitene Ib Scupi Augusta Ancona Narbo Massilia er L us ADRIATICUM M O E S I A E Corsica Caesaraugusta I Dyrrachium Aleria Caesarea A Thessalonice H I S P A N I A E Tarraco Beneventum Ta g u s Pergamum Tarentum Iconium Tarsus Larissa Neapolis A S I A N A E m e r it a 2 res Sardinia MARE Perge Nicopolis Antiochia lea os Augusta a c B n Ephesus TYRRHENUM Palmyra Corinthus Fra Athenae Attalia Constantia Caralis M C o rd o b a MARE Panormus Damascus A Rhegium Carthago Rhodae R Cyprus Gades Sicilia Nova E Tyrus IONIUM Hippo Syracusae Regius Tingis Creta Carthago Melita I Caesarea Gortyn N T Sitifis Constantina E R Hadrumetum r Lige Turones Lugdunum I A s T Haly Constantinopolis Roma 56 Ins ula e Á F N R U M Aelia Capitolina (Jerusalém) I M a u r i t a n o s A Syrtis maior Alexandria Cyrene O P I Petra Memphis ilu 600 Leptis Magna N 0 C s Ptolemais Império Romano no início do século IV EMRC - AMOSTRA O Cisma do Oriente SINUS ARABICUS 8 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Progressivamente, as relações entre Roma e Constantinopla foram-se degradando. Os bispos de Roma (papas) e os bispos de Constantinopla (patriarcas do Oriente) foram, cada um à sua maneira, procurando afirmar a sua autoridade sobre o outro. O conflito acentuou-se de tal forma que cada um deles acusou o outro de se estar a afastar da mensagem de Jesus Cristo. DOC 1 Bizâncio e Roma: razões de uma separação As diferenças entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente, já evidentes no século IV, tornam-se mais precisas durante os séculos seguintes. As suas causas eram múltiplas: tradições culturais distintas (greco-oriental por um lado, romano-germânica por outro); a ignorância mútua, não só das línguas, mas também das respectivas literaturas teológicas; as divergências de ordem cultural ou eclesiástica (o casamento dos padres, proibido no Ocidente; o uso do pão ázimo no Ocidente, e do pão com fermento no Oriente; a água acrescentada ao vinho da Eucaristia no Ocidente, etc.). Certos desenvolvimentos do culto e das instituições eclesiásticas conferem ao Cristianismo oriental uma fisionomia peculiar. A importância da veneração dos ícones no Império Bizantino e a adição do filioque ao Credo de Nicéia-Constantinopla — o trecho passava a ter a seguinte leitura: «O Espírito procede do Pai e do Filho». Tudo isto levou a que aumentasse a animosidade dos ocidentais contra os orientais. Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas Interior de Igreja Russa Ortodoxa, em Florença No ano de 1054, numa tentativa de diálogo e conciliação, um enviado do papa (cardeal Humberto) foi a Constantinopla, mas a tentativa saiu frustrada e aconteceu a separação (cisma). O cardeal, em nome do papa Leão IX, dirige-se à Basílica de Santa Sofia e excomunga o patriarca Miguel Cerulário. Este, como resposta, excomunga o cardeal. Com estes gestos, repletos de falta de compreensão e de caridade, cada um considera-se portador da verdade e expulsa dessa fé e dessa comunhão o outro. Surgem assim dois ramos no tronco do Cristianismo: a Igreja latina a que vulgarmente chamamos ‘católica’ e a Igreja oriental a que chamamos ‘ortodoxa’. Esta fractura na unidade do Cristianismo ainda hoje tem as suas consequências. Católicos e ortodoxos, apesar dos encontros e abraços fraternos entre os seus líderes, continuam separados. Unidade 2 9 DOC 2 A veneração dos ícones Por volta do final do século VII, as imagens tornaram-se objecto de devoção e culto, tanto nas igrejas como nos lares. Os fiéis oravam, prostravam-se diante dos ícones, beijavam-nos, levavam-nos a desfilar por ocasião de certas cerimónias. Durante esse período, cresce o número de imagens milagrosas — fontes de poder sobrenatural — que protegiam cidades, palácios, exércitos. Essa crença no poder sobrenatural das imagens, que pressupõe uma certa continuidade entre a imagem e a pessoa que ela representa, é a característica mais importante do culto dos ícones. O ícone é uma extensão da própria divindade. No que diz respeito aos ícones dos santos, escreve João Damasceno: «Enquanto viviam, os santos estavam plenos do Espírito Santo e, depois de mortos, a graça do Espírito Santo está sempre próxima das suas almas, das suas sepulturas, das suas santas imagens». Os ícones, sem dúvida, não devem ser adorados da mesma forma como se adora Deus. Pertencem, porém, à mesma categoria de lugares e objectos santificados pela presença de Jesus Cristo — como, por exemplo, Nazaré, o Gólgota, o lenho da Cruz. Esses lugares e objectos tornaram-se «recipientes da energia divina», porque é através deles que Deus opera a nossa salvação. Actualmente, os ícones tomam o lugar dos milagres e dos outros actos de Jesus Cristo que os seus discípulos tiveram o privilégio de ver e admirar. Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas Igreja Católica (latina) Detalhe da Transfiguração de Cristo, Mosteiro de Daphni Cisma do Oriente (séc. XI) Roma (papa) Renascimento O final do século XIV e o século XV é um tempo de grandes transformações culturais. Após a peste negra, que assolou a Europa na década de 40 do século XIV, surgiram novas visões da vida que conduziram ao aparecimento da burguesia, ao incremento da vida Igreja Ortodoxa (oriental) Constantinopla (Patriarca) Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 10 1 2 urbana e a um maior apreço pelo pensamento racional, pela arte e pela beleza. A imitação dos modelos da antiguidade clássica, grega e latina (Renascimento), vem colocar o homem no centro da vida e do pensamento (Humanismo). Esta nova perspectiva sonha com uma época de esplendor e luz que se irá concretizar com a exaltação do ser humano através da literatura, da escultura, da história, da religião, das ciências naturais. Partindo das grandes cidades italianas (Florença, Veneza, Roma, Siena…) este movimento difundiu-se por toda a Europa, assumindo particularidades e estilos específicos. São desta época os grandes artistas e pensadores que ainda hoje admiramos nas suas criações: o poeta Dante (A Divina Comédia); os pintores, escultores e arquitectos Giotto, Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci… 3 5 4 6 Anunciação, 1489-1490 [Sandro Botticelli, 1445-1510] Cúpula da Catedral de Florença, 1434 [Filippo Brunelleschi, 1377-1446] Detalhe da Fuga para o Egipto, 1304-1306 [Giotto di Bondone, 1266-1337] Detalhe de David, c. 1430 [Donatello 1386-1466] Jesus e José de Arimateia, 1554-1559 [Baccio Bandinelli, 1488-1560] Porta do Paraíso, baptistério de S. João Baptista, em Florença, 1429-1452 [Lorenzo Ghiberti, 1378-1455] Unidade 2 11 A partir do século XII foram surgindo, na Europa medieval, vários movimentos religiosos que apelavam a uma vida cristã mais autêntica, menos opulenta, mais centrada na Bíblia e menos ritualista. O século XIV é um período conturbado para a Igreja: durante cerca de setenta anos os papas passaram a residir em Avinhão, cidade francesa (até 1377), e desde 1378 a 1417 houve dois papas: um em Roma, outro em Avinhão. A Igreja estava também demasiado envolvida em questões políticas e económicas, em prejuízo das preocupações espirituais. Havia, por isso, um forte movimento de crítica às instituições da Igreja, exigindo a sua reforma. Palácio dos Papas, Avinhão, França EMRC - AMOSTRA O Cisma do Ocidente 12 Unidade 2 SABER + EMRC - AMOSTRA Em 1305, o bispo de Bordéus foi eleito papa com o nome de Clemente V. Sendo francês e submisso ao rei de França — Filipe, o Belo (1285-1314) — e argumentando com a época de instabilidade que se vivia em Roma, o papa decidiu ficar em França, na cidade de Avinhão. Foram sete os papas, todos eles franceses, que orientaram a vida da Igreja a partir desta cidade do sul de França que assim se tornou a capital da cristandade. Em 1377, o papa Gregório XI, depois de contínuas insistências por parte de muitos cristãos, retornou a Roma, que passou a ser novamente o centro do mundo cristão no Ocidente. Quando este morreu, é foi eleito, em 1378, um italiano (Urbano VI). Homem de bom coração, mas pouco sensato, incompatibilizou-se com os cardeais que acabaram por escolher outro papa — Clemente VII — que foi viver para Avinhão. À morte de cada um dos papas sucederam-se outros… a cristandade (países, reis, bispos, cidades) viveu, assim, dividida em duas obediências religiosas. Esta divisão, na vida da Igreja, terminou quando o Concílio de Constança, em 1417, elegeu o papa Martinho V. Papa Clemente V A Reforma Protestante O movimento humanista, fundado na redescoberta da cultura greco-romana (Renascimento), aliado ao descontentamento das pessoas pelos abusos da Igreja, faz emergir a necessidade de um retorno à mensagem original de Jesus Cristo. Causas da Reforma Protestante Cisma do Ocidente Abusos da Igreja católica Pensamento renascentista Movimentos renovadores – Descrédito do papado – Indulgências – Poder temporal dos papas – Ritualismo – Redução da ingerência dos papas em assuntos nacionais – Conquista, pelo poder, dos bens da Igreja – Purificação da vivência cristã Lutero, o grande reformador Martinho Lutero traduzindo a Bíblia, 1898 [Eugene Siberdt, 1851-1931] Martinho Lutero (1483-1546), padre católico, e monge agostiniano e professor, preocupado em corrigir alguns comportamentos e ritos da Igreja, afixa em 1517, na porta da igreja de Wittenberg (Alemanha), 95 teses onde apresenta as suas ideias sobre a salvação e condena a venda das indulgências. A prática das indulgências era habitual desde há vários séculos e significava o perdão dos castigos relacionados com os pecados. Para a Igreja, o perdão dos pecados era oferecido ao crente através da celebração do sacramento da reconciliação (confissão). Este perdão era condição para a salvação do indivíduo. No entanto, segundo se acreditava, se a pessoa morresse reconciliada com Deus mas não tivesse expiado os seus pecados com o sofrimento adequado, teria de passar transitoriamente pelo purgatório antes de ingressar no céu. As indulgências eram uma maneira de obter a remissão dos castigos, sem ter de passar por eles nesta vida ou no purgatório, depois da morte. Nunca a Igreja pregou que a indulgência correspondia ao perdão dos pecados. O baptismo e o sacramento da reconciliação sempre foram as únicas formas de obter a remissão do pecado. A indulgência permitia apenas o perdão da pena correspondente ao pecado. A comutação do castigo em penas pecuniárias era conforme às regras de remissão do direito romano. Em termos populares, as indulgências eram «um bilhete para o céu» sendo certo que, para recolher benefícios, a Igreja não contrariava convenientemente esta explicação. No início do século XVI, esta prática envolvia vastas somas de dinheiro e de interesses financeiros internacionais. Para Roma, a venda tornara-se uma fonte de rendimentos regulares e extraordinários nomeadamente para a construção da nova basílica de S. Pedro. Lutero revolta-se contra esta prática da Igreja, põe em causa a função e o poder do papa, apresenta a Bíblia como única autoridade em matéria de fé e afirma que a salvação se alcança pela fé e não pelas obras. Em 31 de Outubro de 1517, com o objectivo de promover um debate entre professores e estudantes que contribuísse para a renovação da Igreja, Lutero afixa 95 Teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, na Alemanha. Estátua de Martinho Lutero, na Praça de Wittenberg 13 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Estátua de Martinho Lutero na praça da cidade de Wittenberg (Alemanha) 14 Unidade 2 DOC 3 Teses de Lutero EMRC - AMOSTRA Com um desejo ardente de trazer a verdade à luz, as seguintes teses serão defendidas em Wittenberg sob a presidência do Rev. Frei Martinho Lutero, Mestre de Artes, Mestre de Sagrada Teologia e Professor oficial da mesma. Ele, portanto, pede que todos os que não puderem estar presentes e disputar com ele verbalmente, o façam por escrito. Martinho Lutero 7. Deus não perdoa a culpa de qualquer pessoa sem, ao mesmo tempo, sujeitá-la, em tudo humilhada, ao sacerdote, seu vigário. 21. Erram, portanto, os pregadores de indulgências que afirmam que a pessoa é absolvida de toda a pena e salva pelas indulgências do papa. 24. Por isso, a maior parte do povo está a ser ludibriada por essa magnífica e indistinta promessa de absolvição da pena. 37. Qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem carta de indulgência. 43. Deve ensinar-se aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências. 44. Ocorre que, através da obra de amor cresce o amor e a pessoa torna-se melhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, mas apenas mais livre da pena. 45. Deve ensinar-se aos cristãos que quem vê um necessitado e o negligencia para gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa, mas a ira de Deus. 50. Deve ensinar-se aos cristãos que, se o papa soubesse das exigências dos pregadores de indulgências, preferiria reduzir a cinzas a basílica de S. Pedro a edificá-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas. 53. São inimigos de Cristo e do papa aqueles que, por causa da pregação de indulgências, fazem calar por inteiro a palavra de Deus nas igrejas. 54. O fende-se a palavra de Deus quando, num mesmo sermão, se dedica tanto ou mais tempo às indulgências do que a ela. 62. O verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. Unidade 2 15 DOC 4 Teologia luterana EMRC - AMOSTRA Lutero interpreta assim o sentido da expressão «a justiça de Deus»: é o acto pelo qual Deus torna um homem justo, ou seja, o acto pelo qual o crente recebe, graças à sua fé, a justiça obtida pelo sacrifício de Cristo. Essa interpretação de São Paulo — «o justo viverá da fé» (Rom. 1, 12) — constitui o fundamento da teologia de Martinho Lutero. «Eu senti-me renascer», dizia ele mais tarde, «e percebi que tinha penetrado no Paraíso pelas suas portas abertas». O homem é justificado e salvo unicamente pela fé em Cristo. Tal como a fé, a salvação é concedida gratuitamente por Deus. Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas Martinho Lutero prega com a sua tradução da Bíblia, enquanto preso em Wartburg, por Hugo Vogel (1882) DOC 5 Exageros de Lutero Lutero afirma: «Não admito que a minha doutrina possa ser julgada pelos homens, ou mesmo pelos anjos. Aquele que não aceita a minha doutrina não pode obter a salvação». Tendo recebido a revelação que é a liberdade absoluta de Deus-Pai, que julga, condena e salva segundo a sua própria decisão, Lutero não pode tolerar mais nenhuma outra interpretação. Afirmava: «Se a vontade não é livre, o pecado não pode ser imputado aos homens, já que ele só existe se for voluntário. Além disso, se o homem não fosse livre para escolher, Deus seria responsável tanto pelas más como pelas boas acções». Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas 16 Unidade 2 A insatisfação sentida por gente do povo, comerciantes, príncipes e reis foi terreno fértil para a adesão às ideias de Lutero que, excomungado pelo papa em 1521, inicia outra vivência cristã a que vulgarmente se chama Igreja protestante. SABER + EMRC - AMOSTRA Por razões políticas, Lutero defendia que cada príncipe deveria escolher e impor a religião no seu Estado. Em 1529, no encontro de Spire (Alemanha), Lutero e os seus seguidores protestaram contra a negação da liberdade de os príncipes escolherem a religião adoptada nos seus domínios… daí o nome de Protestantes. Estátua de Joao Calvino, Genebra Os dois caminhos da Religião, representação da divisão entre Protestantismo e Catolicismo, pela Escola Francesa Outros reformadores João Calvino (1509-1564), francês, seguidor dos ideais de Lutero, afirma que a salvação da pessoa se deve ao trabalho justo e honesto. Esta declaração foi muito bem aceite por banqueiros e burgueses a quem a Igreja condenava pela sua riqueza, muitas vezes conseguida através de juros elevados. Calvino defende a ideia da predestinação: a pessoa, quando nasce, já tem o seu destino definido. Esta crença nega a liberdade da pessoa e, ao afirmar que o ser humano nada pode fazer para alterar o seu destino, torna-o completamente impotente perante um Deus que não permite a liberdade do ser humano. Calvino vai para Genebra (Suíça), onde as suas ideias religiosas são muito bem acolhidas, e aí estabelece uma comunidade fortemente trabalhadora e próspera, de comportamentos sóbrios e rigidamente controlados, negando todos os prazeres da vida (puritanismo). Ulrich Zuínglio (1484-1531), humanista e padre suíço, apelava ao regresso da Igreja à simplicidade original. Na linha de Lutero, defende que a Bíblia é o único fundamento da fé e da autoridade religiosa. Na liturgia, faz uso do alemão e não do latim. Preocupou-se muito com a santificação dos cristãos e com a transformação da sociedade. Os únicos sacramentos aceites, tal como acontece em todo o Protestantismo, são o baptismo e a ceia, como recordação da morte e ressurreição de Cristo. Recusa imagens, vestes e músicas sagradas. 17 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Ulrich Zwingli, reformador suíço (1484-1531) DOC 6 O Protestantismo: unidade e diversidade O Protestantismo, que constitui um dos três grandes ramos do Cristianismo, nasceu no século XVI na Europa e estendeu-se, de maneiras diversas, a todos os continentes. Forma religiosa muito diversificada, está organizado em múltiplas Igrejas e muitos movimentos. No momento do nascimento do Protestantismo, podemos já verificar a sua pluralidade: existem vários reformadores, enfrentam-se várias convicções. Existem amplos pontos de vista comuns sobre os fundamentos da Reforma, mas basta uma só divergência para não se conseguir estabelecer uma Igreja protestante única. O pluralismo é fruto da recusa de uma hierarquia e da possibilidade de cada crente interpretar a Bíblia. Ainda em vida de Lutero, surgiram várias divergências. Este conflito mostra igualmente que, se é certo que Lutero é o primeiro a ousar o rompimento com a Igreja católica e é, portanto, o «pai fundador», bem depressa passa a ser um reformador entre outros e não o chefe incontestado de todos os protestantes. A Reforma proclamou três grandes palavras de ordem: apenas a Fé, apenas a Escritura, apenas a Graça — Sola Fide, Sola Scriptura, Sola Gratia. A sua radicalidade identifica-se pela vontade de suprimir os acrescentos que, segundo os seus adeptos, terão, ao longo dos séculos, desfigurado o Cristianismo primitivo. O mesmo é dizer que o seu movimento consiste precisamente em purificar, em «depurar» o Cristianismo. Sendo certo que a família protestante tem muito em comum, a verdade é que cada um dos seus membros tem a sua própria especificidade; existem, de resto, por vezes, querelas internas. Adaptado de Jean Delumeau, História das Ideias e Crenças Religiosas. 18 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA O Anglicanismo Henrique VIII Contemporaneamente à reforma luterana e calvinista, aconteceu outra separação no Cristianismo: o Anglicanismo. O seu nome deriva do facto de ter ocorrido em Inglaterra. Em 1509, Henrique Tudor torna-se, com 18 anos, rei de Inglaterra com o nome de Henrique VIII. Grande devoto e defensor da fé católica, mandou queimar em 1521 os escritos de Lutero e escreveu contra ele um tratado denominado «Sete Sacramentos». Por esta atitude, o papa atribuiu-lhe o título de «defensor da fé». Henrique VIII era casado com Catarina de Aragão, mas apaixonou-se por uma dama da corte, Ana Bolena. A relação amorosa levou Henrique VIII a rejeitar a esposa, solicitando ao papa a declaração de nulidade do casamento. O pontífice não lhe reconhece a nulidade matrimonial, afirmando a indissolubilidade do matrimónio. Após várias ameaças ao papa, Henrique VIII, em 1531, obriga o parlamento inglês a aprovar várias leis que o tornam chefe da Igreja de Inglaterra, separada do papa. A Igreja anglicana é a Igreja oficial de Inglaterra e tem, ainda hoje, como primeiro responsável o rei ou rainha de Inglaterra, tendo, em questões religiosas, o arcebispo de Cantuária um papel primordial. No culto, segue fundamentalmente a perspectiva da Igreja católica; na doutrina, segue a orientação calvinista. É hoje uma federação internacional de Igrejas independentes mas em comunhão. Catedral de Cantu†ria, Reino Unido Unidade 2 19 DOC 7 O espelho quebrado EMRC - AMOSTRA No final do século XVI, o mapa religioso da Europa parecia um espelho quebrado, deformando a imagem da Igreja. No Norte, o Protestantismo dominava: o Luteranismo conquistou dois terços da Alemanha; o Imperador Carlos V reconheceu, pelo tratado Augsburgo, em 1555, a existência oficial de Igrejas e Estados protestantes no império onde os súbditos deveriam acatar a religião dos seus príncipes. O Catolicismo manteve fortes posições no sul e no oeste da Alemanha. Os países bálticos e a Escandinávia romperam com Roma. A Holanda e a Escócia tornaram-se calvinistas. A Suíça, a Boémia e a Hungria foram profundamente marcadas pelo Zuinglianismo. Na França, a par do Catolicismo, viveu-se um Calvinismo por vezes em lutas atrozes. O reino de Inglaterra confundiu-se com a Igreja anglicana. A Irlanda — à excepção do Norte — permaneceu fiel a Roma, assim como a Itália, a Espanha e Portugal. Facto relevante para o Catolicismo: a Espanha e Portugal — países de navegadores — foram pioneiros dos descobrimentos e fundadores de impérios, nos quais os soberanos católicos se comprometiam a converter ao Catolicismo os povos e as terras descobertas. Adaptado de Pierre Pierrard, História da Igreja. NORUEGA ESCÓCIA SUÉCIA Edimburgo IRLANDA Ordem Teutónica DINAMARCA Königsberg Dublin Calvinistas Pomerania União dos Varsóvia Mecklemburgo Países Baixos Igreja anglicana Brandenburgo Luteranos Amesterdão Berlim INGLATERRA Wittemberg Amberes Münster Londres Católicos Sajonia P O L Ó N I A Católicos com minorias protestantes Hesse Praga Praga Sacro Império Romano/Germânico Bohemia Bohemia Fronteiras ocidentais da Baviera Estrasburgo Igreja ortodoxa grega Áustria Paris Nantes La Rochelle Basileia Munique Zurique SUÍÇA Viena HUNGRIA Genebra Savoya Milanesado F R A N Ç A I MPÉRI O OTOMANO Génova POR TUG AL Estados da Igreja Roma NÁPOLES ESPANHA Mar Mediterrâneo 600 Mapa da Europa com a diversidade religiosa do séc. XVII 20 Unidade 2 1054 JESUS CRISTO Ortodoxos Cristãos Católicos 1517 Protestantes Ortodoxia Protestantismo ‘Católico’ significa ‘universal’. ‘Ortodoxo’ significa ‘puro’, ‘verdadeiro’. O nome deriva do protesto na Dieta de Spire, em 1529. É a Igreja cristã latina, que reconhece o bispo de Roma como principal autoridade. É o conjunto das Igrejas cristãs do Oriente (desde 1054), separadas de Roma. Surge com Martinho Lutero, no século XVI, e desenvolve-se com Calvino e Zuínglio. É o conjunto de Igrejas ocidentais separadas de Roma. Valoriza não apenas a Bíblia mas também a Tradição. Valoriza a Bíblia e a Tradição. A Bíblia é a única fonte de verdade. A salvação provém da fé e das obras. A salvação provém da fé e das obras. A salvação acontece unicamente por via da fé em Jesus Cristo. O papa, sucessor de S. Pedro, preside à unidade e à comunhão das comunidades. Não reconhece o papa como pastor universal. A dignidade mais elevada nesta Igreja é a de patriarca ecuménico (bispo de Istambul, Constantinopla). Não reconhece o papa como pastor universal. Não há nenhuma autoridade máxima; cada Igreja é autónoma. Os padres ou presbíteros e os bispos são mediadores entre Deus e as pessoas e são celibatários. Os membros do clero são mediadores entre Deus e as pessoas e podem casar (excepto os bispos e os monges). Os pastores não são mediadores entre Deus e as pessoas; todos os cristãos são ‘sacerdotes’. Reconhece Maria, mãe de Jesus, e os santos como mediadores entre Deus e as pessoas, prestando-lhes veneração. Venera os santos dando particular importância à Virgem Maria. Não presta culto aos santos nem à Virgem Maria. Jesus é o único mediador entre Deus e as pessoas. O centro da vida litúrgica é a missa (eucaristia). O centro do culto é a eucaristia. Na liturgia há variedade de ritos onde é particularmente característico o uso de ícones (imagens sagradas). Reconhece os sete sacramentos. No culto, sublinha o valor do anúncio e a escuta da palavra de Deus. EMRC - AMOSTRA Catolicismo Reconhece sete sacramentos como sinais visíveis e eficazes da graça divina: baptismo, eucaristia, confirmação, reconciliação, ordem, matrimónio e unção dos enfermos. Só reconhece dois sacramentos: o baptismo e a ceia (eucaristia). Unidade 2 21 30-313 Concílio de Jerusalém. Expansão do Cristianismo através das viagens missionárias de Paulo. Perseguição aos cristãos. 313 Édito de Milão: Constantino decreta o fim das perseguições. 380 Decreto de Teodósio I: o Cristianismo torna-se a religião oficial do império. 395 Divisão do império: império romano do ocidente e império romano do oriente. 476 Queda do império romano do ocidente. 1054 Cisma do Oriente: separação das Igrejas católica e ortodoxa. 1378-1417 Cisma do Ocidente: um papa em Roma e outro em Avinhão. 1453 Queda do império romano do oriente. 1517 Lutero inicia a Reforma na Alemanha. 1519 Zuínglio dirige a Reforma na Suíça. 1531 Henrique VIII cria a Igreja anglicana. 1541 Calvino introduz a Reforma em Genebra. 1545-1563 Concílio de Trento: reforma da Igreja católica romana. A BÍBLIA — FONTE DE COMUNHÃO A Bíblia é a fonte e a norma da fé de todos os cristãos: católicos, protestantes e ortodoxos. É o testemunho escrito da palavra de Deus a todos os discípulos de Jesus Cristo. EMRC - AMOSTRA Marcos históricos do cristianismo Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 22 Antigo Testamento Novo Testamento 46 livros, escritos antes do nascimento de Jesus. Contém a história do encontro e da aliança de Deus com o povo de Israel. 27 livros, escritos depois da morte e ressurreição de Jesus. Contém a mensagem, as acções e o destino de Jesus, bem como a nova aliança com o novo povo de Deus: os crentes em Cristo. Iluminura do séc. XV David e Golias, decoração do salmista Macclesfield, c.1330, pela Escola Inglesa – Séc. XIV Organização interna da Bíblia A Bíblia é uma colecção de 73 livros, é, portanto, uma autêntica biblioteca. Tanto judeus (só relativamente ao «Antigo Testamento»), como cristãos consideram-na Escrituras Sagradas. Há várias maneiras de arrumar os livros nesta biblioteca. Os do Antigo Testamento, na tradição judaica, aparecem agrupados por ordem de importância: primeiro a Lei ou Torah, que é constituída pelos 5 livros do Pentateuco; depois, os livros históricos (Profetas Anteriores); a seguir, os livros proféticos (Profetas Posteriores) e, finalmente, os livros sapienciais (os Escritos). Mas nem todas as edições cristãs mantêm esta ordem. Os livros do Novo Testamento aparecem agrupados da mesma maneira em todas as Bíblias, sejam elas da tradição católica, ortodoxa ou protestante. Em primeiro lugar, temos os quatro evangelhos, que narram a vida e a mensagem de Jesus Cristo; depois o livro dos Actos dos Apóstolos, que narra o nascimento e a vida da Igreja, após a ressurreição de Jesus; a seguir, catorze epístolas ou cartas que São Paulo escreveu às primeiras comunidades cristãs, mais sete cartas redigidas por vários autores e dirigidas aos cristãos em geral; e, finalmente, o livro do Apocalipse, que tem como tema central o fim dos tempos. Na Igreja [Theodore Gerard, 1829-95] Unidade 2 23 Shema Israel, 2000 [Richard Mcbee, 1947- ] A Bíblia não foi redigida num curto lapso de tempo. Foi fruto de muitos anos de relação entre o povo de Israel e Deus e da fixação dessa experiência por escrito. Sabe-se que os textos da Bíblia, antes de terem sido escritos, eram relatos orais, transmitidas de geração em geração, até ao momento em que alguns redactores (muitos deles, desconhecidos) as escreveram. Foram surgindo da experiência comunitária de vida e da vontade de transmitir essa experiência religiosa às gerações vindouras. Tal como a história do povo de Israel se desenrolou em muitos séculos, assim também os livros do Antigo Testamento foram gradualmente aparecendo ao longo de mais de mil anos. Por trás dos textos escritos temos os acontecimentos que marcaram a vida e a história do povo judeu na sua relação com os outros povos e, especialmente, na sua relação com Deus. EMRC - AMOSTRA Formação do Antigo Testamento Sh’ma Yisroel , por Richard Mcbee 24 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Formação do Novo Testamento Bíblia, página do genesis Hebraico – Maior parte do Antigo Testamento. Os vinte e sete livros que constituem o Novo Testamento foram redigidos ao longo da segunda metade do séc. I. Os primeiros escritos foram as Cartas de S. Paulo, redigidas na década de 50. Tendo Jesus morrido por volta do ano 30, temos pelo menos vinte anos de distância entre os acontecimentos e a sua narração. Foi o período da pregação oral. É que antes de ser fixada por escrito, a Boa Nova foi proclamada, escutada e vivida. Após a morte violenta de Jesus, os apóstolos começaram a anunciar que Jesus havia ressuscitado e estava vivo, pelo poder de Deus. A este anúncio fundador da fé cristã, chama-se o kerigma. A consciência da presença de Jesus no meio deles, leva-os a fundar uma comunidade nova em Jerusalém, que rapidamente se difunde pela Samaria, Galileia, Ásia Menor, Grécia, Roma… Atraídos por esta mensagem de esperança, pessoas de vários povos e culturas integram as comunidades cristãs. Por ser necessário dar formação aos novos discípulos de Cristo, por se tornar urgente a organização de textos litúrgicos e ainda por estarem a desaparecer os que contactaram com Jesus, a tradição oral é fixada por escrito: nasce, assim, o Novo Testamento. Línguas da Bíblia Aramaico Grego – Livro de Tobias (AT); – Livro da Sabedoria (AT); – Livro de Judite (AT); – 1º e 2º Macabeus (AT); – Fragmentos de Esdras, Daniel e Jeremias (todos do AT). –E clesiástico ou Ben Sira (AT); –P artes dos Livros de Ester e de Daniel (AT); – Todo o Novo Testamento. Unidade 2 25 Os cristãos acreditam que Deus se deu a conhecer na história do povo de Israel e, de forma definitiva, em Jesus de Nazaré. A este processo de manifestação de Deus à humanidade chama-se ‘revelação’. A Bíblia também faz parte deste processo, pois é nela que encontramos escrita a história da relação de Deus com a humanidade, através da história do povo de Israel e dos acontecimentos da vida de Jesus. Os redactores bíblicos tinham consciência de que não estavam a escrever uma história qualquer, mas a história da manifestação de Deus, como salvador e libertador da humanidade. EMRC - AMOSTRA Revelação Judeu a ler torah Inspiração Uma vez que a Bíblia contém a história da relação de Deus com a humanidade, os crentes acreditam que Deus assistiu os escritores sagrados no acto de escreverem a mensagem que ele queria transmitir à humanidade. Esta acção de Deus junto dos escritores chama-se ‘inspiração’. Num texto do Novo Testamento afirma-se que «toda a Escritura é inspirada por Deus» (2 Tim 3, 16). Mas o facto de os textos bíblicos serem inspirados não significa que sejam autoridade segura a respeito de todos os temas. Na verdade, a inspiração apenas diz respeito a matéria religiosa. Os autores, pelo facto de serem inspirados, não sabiam mais de ciência do que as pessoas da sua época. Eles apenas dispunham do saber comum do seu tempo. A verdade das Escrituras consiste no valor religioso da sua mensagem, ou seja, no facto de transmitir a vontade salvadora de Deus, orientando o percurso de cada pessoa através das vicissitudes da vida. 26 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Cânone O cânone é a lista de livros considerados sagrados pelas comunidades de crentes. Por vezes passavam muitos anos desde o momento em que um era livro era escrito até ao momento em que era integrado no cânone. Outras vezes, um determinado livro nunca chegava a ser integrado (livros apócrifos). No tempo de Jesus, havia dois cânones para a Bíblia judaica (o correspondente ao nosso Antigo Testamento): o da Palestina, que só aceitava como sagrados textos escritos em hebraico; e o de Alexandria, que incluía também livros escritos em grego. A Igreja cristã acabou por aceitar o cânone alexandrino, enquanto o Judaísmo oficial adoptou o cânone palestiniano. Por isso, hoje, o Antigo Testamento usado pela Igreja católica não coincide exactamente com a Bíblia hebraica. Chamam-se ‘deuterocanónicos’ os textos que não fazem parte do cânone judaico, mas que faziam parte do cânone alexandrino e, por isso, estão integrados nas Bíblias católicas. As Igrejas da reforma rejeitaram os textos deuterocanónicos, adoptando, para o Antigo Testamento, apenas o cânone palestiniano. O cânone do Novo Testamento demorou três séculos a ser fixado. Hoje, o cânone do Novo Testamento é universalmente aceite por todas as Igrejas cristãs. SABER + Os textos deuterocanónicos são os seguintes: Tobias, Judite, Ester (grego), Sabedoria, Ben Sira, Baruc, Carta de Jeremias, Suplementos de Daniel, 1º Livro dos Macabeus e 2º Livro dos Macabeus. Escritos bíblicos em hebraico TEXTOS BÍBLICOS SOBRE A UNIDADE DOS CRISTÃOS Os dois textos seguintes inserem-se no chamado ‘Discurso de Despedida’. Este discurso é uma espécie de testamento de Jesus; são as últimas palavras de um amigo que, à beira da morte, transmite a sua sabedoria de vida e a sua última vontade. U m mandamento novo Jesus disse: «Deixo-vos agora um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu vos amei, é preciso que vocês se amem também uns aos outros. 35Se tiverem amor uns aos outros, toda a gente reconhecerá que vocês são meus discípulos.» 34 Jo 13, 34-35 Dirigindo-se aos discípulos, com quem estava a celebrar a última ceia — depois de lhes ter lavado os pés em sinal de serviço e anunciado a traição de um deles —, Jesus despede-se e deixa as suas últimas recomendações: «Amem-se uns aos outros». Estas palavras de despedida — resumo coerente de uma vida feita de amor e partilha — são, assim, o seu testamento final. 27 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 28 O ponto de referência do mandamento do amor é o próprio Jesus («assim como eu vos amei»). Amar consiste em acolher, em pôr-se ao serviço dos outros, em reconhecer-lhes dignidade, sem limites nem discriminação alguma, respeitando absolutamente a liberdade de cada um (cf. episódio de Judas). Este amor é a marca distintiva do discípulo de Cristo. Na comunidade cristã, na medida em que é uma comunidade autêntica, não deve haver espaço para o ódio, a inveja, o ciúme. A Última Ceia, 1610-1621 [Peter Paul Rubens, 1577-1640] P ara que sejam um Jesus levantou os olhos para o céu e disse: «Eu deixo o mundo e vou para junto de ti, mas aqueles que me confiaste ainda ficam no mundo. Pai santo, protegeos pelo teu poder, poder que tu me deste, para que eles sejam um, como tu e eu somos um. 20 Não te peço apenas por eles, mas também por aqueles que acreditarem em mim por meio da sua pregação. 21Peço-te para que todos eles vivam sempre unidos. Pai, que eles estejam tão unidos a nós, como tu o estás a mim e eu a ti. Desta maneira, o mundo há-de acreditar que tu me enviaste. 22Dei-lhes a mesma glória que tu me deste, para que vivam intimamente unidos entre si como eu e tu vivemos unidos também. 23Eu vivo neles e tu vives em mim. Deste modo a sua união será perfeita. E o mundo há-de saber que tu me enviaste e que os amas como a mim.» 11 Jo 17, 11.20-23 A Última Ceia [Francesco Bassano, 1549-1592] Depois de ter dado aos discípulos as suas últimas recomendações, Jesus dirigiu-se ao Pai, em quem depositava toda a esperança. Nesta oração, solicita a presença protectora de Deus, de modo que os seus discípulos vivam o mandamento do amor, mantendo a unidade. A relação entre o Pai e Jesus — relação de profundo amor e íntima unidade — é o modelo da relação entre os elementos das comunidades cristãs. O apelo de Jesus é que os seus discípulos vivam quotidianamente a superação dos seus próprios limites, até construírem relações duradouras de verdadeira amizade. A unidade dos cristãos corresponde à derradeira e definitiva vontade de Jesus: como um testamento para ser executado todos os dias na relação entre os crentes. Mas, ao olharmos para a história da Igreja cristã, verificamos que as limitações da natureza humana foram mais fortes do que o apelo de Cristo. A unidade sofreu várias fracturas, como ficou explícito atrás. Para que a vontade de Cristo se cumpra só há uma atitude possível: procurarmos restabelecer a unidade perdida até que o amor vença todas as barreiras. 29 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 30 Unidade 2 J esus o único alicerce Irmãos, peço-vos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que vivam sempre em harmonia. Não haja divisões entre vocês, mas vivam unidos no mesmo ideal e no mesmo pensamento. 11É que, meus irmãos, eu recebi informações a vosso respeito pela família de Cloé. Disseram-me que há desentendimentos entre vocês. 12Refiro-me àquilo que vocês andam por aí a dizer: «Eu sou de Paulo!», «Eu sou de Apolo!», «Eu sou de Pedro!», «Eu sou de Cristo!». 13Será que Cristo está dividido? Será que Paulo morreu na cruz por vocês, ou foram baptizados em nome de Paulo? 5 Quem é Apolo? E quem é Paulo? São apenas pessoas encarregadas de vos transmitir a fé, que vocês receberam. E cada um deles fez o que o Senhor lhe encomendou. 6Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é que faz crescer. 7Por isso, nem o que planta nem o que rega tem importância, mas sim Deus que faz crescer. 11 Ninguém pode colocar outro alicerce além daquele que já existe e que é Jesus Cristo. 21 Portanto, ninguém se deve orgulhar de ser seguidor de qualquer homem. Pois tudo está ao vosso serviço: 22seja Paulo, ou Apolo, ou Pedro; seja o mundo, a vida, ou a morte; seja o presente ou o futuro. Tudo é vosso. 23Mas vocês são de Cristo e Cristo é de Deus. EMRC - AMOSTRA 10 1Cor 1,10-13; 3,5-7.11.21-23 São Paulo, o Apóstolo, por Marco Pino (1520-1579) SABER + Cidadão romano de uma família judaica da tribo de Benjamim, Paulo (ou Saulo) nasceu em Tarso (Cilícia, na actual Turquia), por volta do ano 10. Até aos 30 anos perseguiu ferozmente os cristãos, porque acreditava ser essa a vontade de Deus. A partir do seu encontro com Cristo ressuscitado, o qual provocou uma alteração radical na sua visão do mundo, anunciou a boa nova em Tarso, em Antioquia, na Ásia Menor, na Grécia e em Roma. Entretanto, para comunicar com as comunidades que ia fundando, escreveu cartas. Foi decapitado em Roma, por volta do ano 67. Unidade 2 31 Mapa dos lugares-chave na êpoca de S. Paulo O Cristianismo corria o perigo de se tornar mais uma escola de sabedoria, cuja validade dependia do brilho dos mestres e da sua capacidade de persuasão. Mas o Cristianismo não é apenas mais uma filosofia de vida, que se impõe pela retórica, se for defendida brilhantemente por um mestre qualquer. O Cristianismo é a adesão a uma pessoa e não a uma doutrina: Jesus Cristo, o único e verdadeiro mestre. Por isso, Paulo reage com veemência: é Cristo e só Cristo a única fonte de salvação. Ser baptizado não é aderir à doutrina de um mestre qualquer, mesmo que seja tão ilustre como Paulo; é estar em comunhão com Cristo e participar no acontecimento salvador do qual Cristo é o único mediador. Dizer que se pertence a Paulo ou EMRC - AMOSTRA Depois de, na cidade de Corinto, ter anunciado Cristo e de se ter dirigido para outros locais, Paulo manteve-se em contacto com a comunidade cristã de Corinto, acompanhando a sua vida. Os cristãos coríntios eram fervorosos, mas debatiam-se com todos os problemas resultantes da inserção da mensagem cristã numa cultura diferente daquela em que tinha sido anunciada originalmente. Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 32 a Pedro é, portanto, deturpar gravemente a identidade da fé cristã. Paulo deixa ficar bem claro que o importante não é quem baptizou ou quem anunciou o Evangelho; o ponto de referência absoluto é Cristo, do qual os apóstolos são simples e humanos servidores. Os coríntios são, pois, intimados a não fixar a sua atenção em mestres humanos, mas a redescobrir Cristo, morto na cruz para dar a vida a todos, como eixo de uma fé comprometida. Só assim a comunidade poderá ser uma verdadeira família de irmãos, que recebe de Cristo a vida, a unidade e a comunhão. A experiência cristã é, marcada pelo encontro com Cristo e a vivência da fé não pode depender da personalidade de quem dirige as comunidades. Para além da forma mais ou menos brilhante ou coerente como tal pessoa anuncia o Evangelho, a aposta definitiva do cristão é Jesus de Nazaré. Sabendo que o Mestre não pode estar dividido, as facções, os ciúmes, os conflitos que surgem nas comunidades são um sinal evidente da fraqueza da nossa humanidade, muitas vezes refém de interesses mesquinhos. U m só corpo e um só espírito Peço-vos, portanto, eu que estou preso por causa da minha fé no Senhor, para que vivam de maneira digna do mandamento que Deus vos dirigiu. 2Sejam modestos, humildes, pacientes e tolerantes, manifestando assim que se amam uns aos outros. 3Esforcem-se por conservar a unidade que vem do Espírito, vivendo em paz uns com os outros. 4 Vocês formam um só corpo e um só espírito, do mesmo modo que a esperança para a qual foram chamados é uma só. 5Existe um único Senhor, uma só fé e um só baptismo; 6Há um só Deus, Pai de todos, que está acima de todos e que actua através de todos e em todos. 1 Ef 4,1-6 O Apóstolo Paulo na Prisão [Rembrandt, 1606-69] Este texto, da carta aos Efésios — que Paulo teria escrito na prisão, em Roma, por volta do ano 62 —, é uma exortação aos crentes para que vivam o seu compromisso com Cristo, promovendo a unidade com os outros membros da comunidade. Na perspectiva de Paulo, a mensagem cristã exige que os crentes vivam unidos. Ora, há comportamentos e atitudes que são condição necessária para que essa unidade se torne efectiva. Antes de mais, Paulo refere a modéstia e a humildade, como caminhos de superação do egoísmo, do orgulho e da auto-suficiência que afastam os irmãos e erguem, entre eles, barreiras intransponíveis. Depois, Paulo refere a paciência e a tolerância, que permitem compreender o outro, com os seus limites e falhas, e aceitar as diferentes maneiras de ser e agir. Em resumo, trata-se, fundamentalmente, de cumprir o «testamento» de Jesus: o amor como suporte das relações humanas. A unidade é um dom de Deus; mas, a sua efectivação depende do contributo e do esforço de cada um. 33 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 34 Basílica de São Paulo fora de muros, Roma Na segunda parte do texto, Paulo apresenta os fundamentos da unidade dos crentes: «Vocês formam um só corpo e um só espírito». Tal como o corpo é formado por muitos membros, todos eles diversos, assim a comunidade cristã inclui uma diversidade de membros. No entanto, o corpo só funciona se todos os membros colaborarem entre si. O mesmo acontece na Igreja: a comunhão, a convergência de todos os membros para a realização de um mesmo objectivo, a cooperação entre todos é essencial à saúde da vida das comunidades. Formam, portanto, uma unidade que se baseia na existência de uma única fé, um único baptismo — sinal de adesão a essa fé —, um único Senhor — Jesus Cristo — e um único Deus, que é Pai de todos e em todos actua. Os cristãos têm um projecto comum (o projecto de Jesus) com vista a construir laços de fraternidade e a alcançar a vida em plenitude, caminham na mesma direcção, animados pelo mesmo Espírito e têm a mesma missão que consiste em dar testemunho do projecto de amor que Deus tem para a humanidade. Por isso, nesta comunidade, não fazem qualquer sentido as divisões, os ciúmes, as rivalidades, as invejas que, tantas vezes, dividem os irmãos. A Igreja é, pois, uma unidade; mas é, também, uma comunidade de pessoas muito diferentes, em termos de etnias, de cultura, de língua, de condição social ou económica, de maneiras de ser… Estas diferenças não podem ser interpretadas como algo negativo, promotor de conflito e divisão. São, pelo contrário, fonte de enriquecimento para a vida comunitária. A diversidade é um valor que não anula a unidade e o amor nas relações interpessoais. Se for aceite como enriquecedor e desde que não ponha em causa os valores fundamentais da relação com os outros, a pluralidade é determinante para a vida da Igreja. O ECUMENISMO O termo ‘ecumenismo’ provém do vocábulo grego oikouménê, que significa «terra habitada» ou «casa habitada» e que, na cultura helénica, se referia ao mundo conhecido de então. Para os gregos, oikouménê era não apenas uma zona geográfica, mas também cultural (o mundo civilizada helénico). Já sob a influência da cultura romana, a mesma palavra adquiriu também um significado político (o império romano). O Cristianismo acrescentou, aos sentidos anteriores, a dimensão espiritual. Fica assim completo o conjunto de significados que o termo ‘ecumenismo’ envolve, o qual remete para as dimensões geográfica, cultural, política e espiritual. O ecumenismo refere-se, assim, à humanidade enquanto família que partilha um espaço comum, habitado harmoniosamente por todos. Neste sentido, era entendido como ‘ecuménico’ aquilo que contribuísse para a unidade e tivesse uma dimensão universal. São exemplos disso os primeiros concílios, designados ecuménicos por neles estar representada a universalidade dos cristãos. Com o decorrer do tempo, o ecumenismo foi assumindo uma preocupação marcadamente religiosa e, fruto de diferentes desavenças entre os cristãos, passou a designar, mais recentemente, um movimento conciliador que pretende congregar e unir a Igreja de Cristo. Passa a ser visto como um movimento promotor da unidade dos cristãos e da vivência da paz. O ecumenismo é, portanto, um movimento de reconciliação dentro do Cristianismo, promovido pelo diálogo entre as diferentes tradições cristãs. Enquanto movimento cristão, o ecumenismo fundamenta-se na vontade de Jesus: «que todos sejam um». 35 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 36 Unidade 2 DOC 8 Movimento Ecuménico EMRC - AMOSTRA Por «movimento ecuménico» entendem-se as actividades e iniciativas que são suscitadas e ordenadas no sentido de favorecer a unidade dos cristãos. Tais são: primeiro, todos os esforços para eliminar palavras, juízos e acções que não correspondem à condição dos irmãos separados e, por isso, tornam mais difíceis as relações com eles; depois, o «diálogo» estabelecido entre peritos competentes, em que cada qual explica mais profundamente a doutrina da sua Comunhão e apresenta com clareza as suas características. Com este diálogo, todos adquirem um conhecimento mais verdadeiro e um apreço mais justo da doutrina e da vida de cada Comunhão. Então, estas Comunhões conseguem também uma mais ampla colaboração em certas obrigações que a consciência cristã exige em vista do bem comum. E onde for possível, reúnem-se em oração unânime. Excerto de Concílio Vaticano II, Unitatis Redintegratio, n.º4. O ecumenismo é o esforço de entendimento, respeito, diálogo e reconhecimento da dignidade do outro; não é fusão nem anulação. Em síntese, o ecumenismo é: – Diálogo que reconhece e respeita a diversidade; – Valorização de tudo o que já une as Igrejas; – Trabalho conjunto na construção de um mundo melhor; – Criação de laços de afecto fraterno entre as Igrejas; – Oração em comum a partir da mesma fé; – Busca sincera de caminhos para curar as feridas da separação; – Valorização leal de tudo o que de bom as diferentes denominações cristãs realizam. Unidade 2 37 O ecumenismo nasceu no coração de todos aqueles que, tocados por Deus, sentiram a necessidade de pôr fim às divisões dentro do Cristianismo. Viam na unidade a concretização do sonho e projecto de Deus. Estas vontades individuais motivaram o nascimento do ecumenismo institucional, entre as diferentes Igrejas cristãs. Foram muitas as iniciativas, diversos os esforços e significativos alguns acontecimentos que marcaram o movimento ecuménico, a partir do século XIX. Um dos primeiros passos concretos nasceu na tradição protestante, em 1864 — a criação da Aliança Evangélica com o objectivo de congregar as várias denominações que fragmentavam a tradição protestante. O ano de 1948 viu nascer, em Amesterdão, o Conselho Mundial das Igrejas. Foi a primeira grande ponte de unidade entre cristãos, que contou com 197 denominações cristãs, as quais estavam unidas pela vontade de estabelecer a comunhão. Genebra foi a cidade escolhida para sede do então recém-criado organismo. A Igreja católica não faz parte integrante dele, embora esteja representada. Movimento ecuménico nas ruas EMRC - AMOSTRA Um movimento com história Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 38 Papa João XXIII Abraço entre o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras I A Igreja católica, por sua vez, preocupada com as divisões históricas dos cristãos, desempenhou um papel significativo no desenvolvimento do espírito e movimento ecuménicos, através de acções distintas: — Em 1908, o padre Wattson, um episcopaliano (ramo do Anglicanismo) convertido ao Catolicismo, fundou o «Oitavário pela Unidade dos Cristãos»: oito dias de oração e estudo para promover a unidade dos cristãos, de 18 a 25 de Janeiro. Este «Oitavário» atinge actualmente dimensões mundiais. — Em 1925, organizaram-se os «Diálogos de Malinas», entre o cardeal Mercier, arcebispo de Malinas (Bélgica), e os anglicanos. — Em 1930, o padre José Metzger fundou a associação «Una Sancta». — Em 1960, o papa João XXIII fundou o «Secretariado para a União dos Cristãos». — Em 1962, ocorreu o encontro histórico do papa Paulo VI com o patriarca ortodoxo Atenágoras. — Durante o Concílio Vaticano II, a Igreja católica convidou observadores das Igrejas anglicana, luterana, reformada, metodista, entre outras. — Em 1964, durante o Concilio Ecuménico Vaticano II, o papa Paulo VI promulgou o «Decreto Conciliar sobre o Ecumenismo» — Unitatis Redintegratio — que apresenta as bases doutrinais e as linhas de acção prática do ecumenismo católico. — Em 1965, Roma e Constantinopla levantaram mutuamente as excomunhões lançadas em 1054. — Em todas as suas viagens, o papa João Paulo II promoveu momentos de oração comum com os representantes dos irmãos separados. — Em 1980, aconteceu em Patmos, Grécia, a reunião entre representantes da Igreja católica e das Igrejas ortodoxas. — Por todo o mundo, a Igreja católica tem promovido encontros ecuménicos de oração. Unidade 2 39 Max Josef Metzger Nasceu a 3 de Fevereiro de 1887, na Alemanha. Tornou-se padre católico em 1911 e trabalhou como capelão militar durante a primeira guerra mundial. Esta experiência levou-o a perceber que a paz e a unidade entre todos os povos, a começar pela unidade entre os cristãos, eram essenciais para o futuro da humanidade. EMRC - AMOSTRA Defendeu convictamente a ideia ecuménica da paz, estabelecendo laços com movimentos pacifistas mundiais. Em 1938, fundou a associação «Una Sancta» para promover o restabelecimento da união entre as Igrejas cristãs separadas. Depois da subida ao poder do ditador Adolfo Hitler, Metzger foi encarcerado várias vezes pela Gestapo (Polícia Secreta do Estado). Através de meios não violentos, lutou, desde o primeiro instante, contra o Nazismo, promovendo a cultura da paz e da unidade entre os povos. Em 1943, escreveu um memorando com as suas ideias para a reorganização da Alemanha e a sua integração num futuro sistema de paz mundial. Quando enviou este memorando ao arcebispo sueco de Upsala, Erling Eidem, foi denunciado pelo carteiro e encarcerado a 29 de Junho de 1943. O memorando nunca chegou às mãos do seu destinatário. Julgado por traição, foi condenado à morte e decapitado, na guilhotina, a 17 de Abril de 1944, em Brandenburg-Görden. Durante o tempo em que esteve preso, à espera da execução da pena, escreveu várias cartas. Com as mãos permanentemente algemadas, manteve sempre a lucidez, a alegria de viver e o cuidado pelos outros, ao contrário do que acontecia com muitos outros prisioneiros. Estas cartas são um testemunho inequívoco da força imortal da verdade: nelas podem-se ler perspicazes ideias sociopolíticas, de forte espessura ecuménica e de grande profundidade mística e espiritual. Metzger morreu como mártir pela paz no mundo e pela unidade da Igreja. Fé, esperança e amor Tolerância Humildade UNIDADE Paciência 40 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA A experiência dos Focolares Chiara Lubich O movimento dos Focolares foi fundado por Chiara Lubich, em Trento (Itália), em 1943. Chiara tinha 23 anos quando, num ambiente de ódio, dor e destruição causado pela segunda guerra mundial, encontra no amor de Deus o sentido e o ideal para a sua vida. Esta descoberta foi uma luz de esperança. Chiara e as suas amigas começaram por dar apoio a quem mais necessitava: pobres, doentes, feridos e crianças. Tratava-se, portanto, de amar a Deus através do amor às pessoas, aos irmãos. Este amor fez nascer nela a convicção da necessidade de construir a unidade entre as pessoas. Para Chiara, viver a unidade era viver a presença amorosa de Jesus Cristo. Concílio de Trento – Itália Este estilo de vida despertou a atenção de muitas pessoas e, desta vontade de viver o amor e a unidade fraterna entre todos, nasceu o movimento dos focolares. Depressa ultrapassou as fronteiras de Trento, de Itália, da Europa e, actualmente, é um movimento composto por pessoas de todo o mundo de diversas condições sociais, faixas etárias e opções religiosas. Pela sua universalidade e missão, é um movimento verdadeiramente ecuménico, que muito tem contribuído para a fraternidade universal, promovendo o diálogo constante entre cristãos de várias Igrejas e, também, destes com membros de outras religiões ou com pessoas de convicções não religiosas. O grande objectivo deste movimento é contribuir para a fraternidade universal e para a unidade da humanidade, entendida como uma família fundada no amor. Este objectivo inspira-se nas palavras de Jesus «amem-se uns aos outros» e «que todos sejam um». O movimento foi reconhecido oficialmente pela Igreja católica com o nome de “Obra de Maria”. O contributo dos focolares para a unidade entre os cristãos foi reconhecido pelos diferentes líderes das Igrejas cristãs, que viram em Chiara e no seu movimento um testemunho de comunhão fraterna. 41 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Fundadora Focolares — Chiara Lubich 42 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA A comunidade de Santo Egídio Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio A comunidade católica de Santo Egídio constitui outro testemunho em prol do ecumenismo. Foi fundada pelo professor Andrea Riccardi, em 1968, ano em que se viveram tempos de grandes mudanças na Europa, muitas delas protagonizadas por jovens empenhados na construção de um mundo mais justo, pacífico e fraterno. Andrea Riccardi foi um destes jovens que, aos 18 anos de idade, se deixa interpelar pelo Evangelho de Jesus Cristo e funda uma comunidade de vida, com vista à construção da fraternidade e da paz universal. A comunidade Santo Egídio orienta-se por quatro princípios nos quais encontra o seu fundamento: – A oração: A escuta e meditação das Escrituras, em particular dos Evangelhos, com vista à conversão permanente, à mudança de vida, ao encontro com o outro, sobretudo com os irmãos mais fragilizados da sociedade. – O anúncio do Evangelho: Do encontro com Deus pela escuta das Escrituras nasce a alegria de ser discípulo e, portanto, a necessidade de anunciar o Evangelho. A actividade missionária dos membros da comunidade leva-os a fazer a experiência da fraternidade universal, pois a vontade de testemunhar o carinho de Deus pela humanidade é tão forte que não conhece fronteiras, culturas, raças ou credos. – A atenção aos pobres: São os pobres quem mais sofre com as injustiças sociais e foram eles que, desde o início, motivaram Andrea Riccardi e seus amigos a viver o Evangelho. A solidariedade para com os pobres é fruto do serviço voluntário e gratuito de quem abraça a comunidade. – O ecumenismo e o diálogo inter-religioso: Santo Egídio é uma comunidade que valoriza e integra, une e respeita a diferença entre crentes, sejam eles cristãos ou crentes de outras religiões. O ecumenismo é vivido com amizade, oração e procura da unidade entre os cristãos. O diálogo é valorizado na procura de caminhos de entendimento, através da realização de encontros entre líderes religiosos e políticos, tal como foi experimentado pela primeira vez em Assis, no encontro inter-religioso promovido pelo papa João Paulo II, em 1986. Por isso, esta comunidade é referida como aquela que, pelos encontros que promove, continua o «espírito de Assis», um espírito ecuménico e inter-religioso. SABER + Oceanos de Paz Entre os dias 24 e 26 de Setembro de 2000, ano jubilar, decorreu em Lisboa o encontro ecuménico e inter-religioso que juntou líderes de várias confissões religiosas. Este foi o XIII encontro promovido pela comunidade de Santo Egídio, que, tal como os anteriores, procurou congregar pessoas para a oração a favor da paz. «Oceanos de Paz» foi o tema escolhido. 43 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Encontro Ecuménico pela Paz em Assis, entre João Paulo II e líderes religiosos O diálogo, a amizade, o respeito recíproco fizeram emergir as diferenças e as riquezas de cada um: isto não nos afastou uns dos outros, pelo contrário, tornou-nos mais próximos, mais empenhados no trabalho comum para tornar mais humano e mais habitável o nosso planeta. Viemos a Lisboa como quem procura a paz e vimos crescer nestes dias uma comunidade da qual o mundo precisa, a comunidade dos que procuram a paz. É uma comunidade feita de religiões, de histórias, línguas e sensibilidades diferentes. É a nossa riqueza, é o nosso futuro. Nesta comunidade dos que procuram a paz, está depositada a semente que nos ajuda a sermos mais humanos e mais crentes. Quem se unir a ela aprende melhor a viver sem inimigos. Empenhamo-nos em alargar, com os nossos irmãos e irmãs, este espaço do diálogo com a arte do encontro. Um jovem 44 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Taizé — Primavera da Comunhão O papa João XXIII, em 1960, acolheu o irmão Roger com estas palavras: «Oh, Taizé, essa pequena Primavera». Estas palavras dirigidas pelo líder dos cristãos católicos a um pastor protestante significavam a esperança na renovação da vontade ecuménica. A comunidade de Taizé nasceu no coração do jovem protestante Roger Louis que encontrou, nesta pequena aldeia, numa colina da província da Borgonha, em França, o espaço que tanto procurava. Tocado pela calma, simplicidade e beleza de Taizé, não resistiu ao seu convite (através da voz de um casal acolhedor) de ali permanecer e viver a aventura do amor. Taizé, França A comunidade de Taizé iniciou-se no Domingo de Páscoa de 1949, quando sete jovens protestantes, tocados pelo testemunho de Roger e depois de uma caminhada de encontro e reflexão, decidem comprometer-se por toda a vida numa entrega a Deus pela oração e serviço aos irmãos, partilhando um estilo de vida simples e humilde. Em 1960, entram para a comunidade membros da Igreja anglicana; em 1969 entrou o primeiro católico, um jovem médico. A comunidade não parou de crescer dali em diante, contando hoje com irmãos provenientes de diversos continentes, nacionalidades e confissões religiosas. Na origem de Taizé está, pois, a intenção ecuménica do irmão Roger. O seu objectivo foi reunir uma comunidade que acolhesse pessoas das diferentes confissões cristãs e mesmo não cristãs. Desde o seu nascimento que Taizé está orientada para a unidade dos cristãos. Esta comunidade não pertence a nenhuma confissão religiosa. Todos têm lugar na fé que os une – a fé em Jesus Cristo. Por isso, a missão de Taizé é ser parábola e primavera de uma vida cristã reconciliada. A Igreja da Reconciliação em Taizé é o sinal visível deste desejo de unidade entre os cristãos. Nela todos são chamados para o encontro com Jesus Cristo na oração silenciosa, cantada, partilhada… Esta tem sido a experiência de muitos jovens que por lá têm passado. Oração num encontro Taizé DOC 9 Compromisso – Queres, por amor a Cristo, consagrar-te a ele com todo o teu ser? – Quero. – Queres realizar, de ora em diante, o serviço de Deus na nossa comunidade, em comunhão com os teus irmãos? – Quero. – Queres renunciar a toda a propriedade e viver com os teus irmãos, não só na partilha dos bens materiais mas também na partilha dos bens espirituais, esforçando-te por viver a abertura do coração? – Quero. (…) – Queres, reconhecendo sempre Cristo nos teus irmãos, zelar por eles nos bons e nos maus dias, na abundância e na pobreza, no sofrimento e na alegria? – Quero. Irmão Roger, La Règle de Taizé 45 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 46 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA O Concílio Vaticano II SABER + Concílio Vaticano II Este concílio, como é tradição na Igreja, tomou o nome do lugar onde se realizou, ou seja no Estado do Vaticano, local em que já se havia realizado um outro concílio: o Concílio Vaticano I, entre 1869 e 1870. Por isso, ficou conhecido como Concílio Vaticano II. A Basílica de São Pedro foi preparada para receber os 2540 padres conciliares que nele participaram com direito a voto. Concílio Ecuménico Vaticano II, basílica de S. Pedro Em resposta a um desejo antigo de muitos cristãos católicos, o papa João XXIII convocou o Concílio Vaticano II com o objectivo de de atender às mudanças e exigências dos tempos modernos e de renovar a Igreja católica nas suas várias dimensões. O concílio Vaticano II (1962-65), chamado ‘ecuménico’ por causa da sua dimensão universal, reflectiu sobre a seguinte questão de alcance ecuménico: qual o contributo dado por cada Igreja para a divisão dos cristãos e o que poderá cada uma fazer em ordem à reconciliação e unidade? Esta foi uma das tarefas principais do Concílio: identificar os obstáculos ao diálogo e à unidade e encontrar caminhos para a reconstrução da comunhão, através do contributo da Igreja católica. O papa João XXIII manifestou a sua vontade ecuménica: o reconhecimento público dos erros cometidos no passado pela Igreja católica; da criação do Secretariado Romano para a Unidade dos Cristãos e do convite dirigido a vários representantes de outras confissões cristãs para participarem no Concílio como observadores. A posição e compromisso da Igreja católica a respeito das questões ecuménicas ficou registado num importantíssimo documento, o Decreto Unitatis Redintegratio («Restauração da Unidade»), no qual a Igreja católica refere que o fundamento da unidade de todos os cristãos vem do baptismo em Jesus Cristo e é dom do Espírito Santo. Unidade 2 47 SABER + Concílios Um concílio é uma reunião geral de bispos de todo o mundo para tomar decisões importantes a respeito da vida da Igreja e da sua relação com o mundo. Eis alguns dos principais concílios: – Concílio de Niceia (325), em que se afirmou a divindade de Jesus; – Concílio de Constantinopla (381), em que se afirmou a divindade do Espírito Santo; – Concílio de Calcedónia (451), em que se afirmou que a única pessoa de Jesus tem duas naturezas: humana e divina; –C oncílio de Constança (1414-1418), em que se resolveu o cisma do Ocidente e se elegeu o papa Martinho V. – Concílio de Trento (1545-1563), em que se respondeu ao Protestantismo, afirmando, entre outros aspectos, a existência de sete sacramentos. Os cristãos na construção do ecumenismo Viver o ecumenismo é trabalhar pela unidade de todos os que reconhecem Cristo como o fundamento da sua fé. Neste contexto, unidade não significa uniformidade; não se trata de anular as tradições das diferentes confissões cristãs e impor aos cristãos de todas as denominações uma única maneira de viver a fé. Isto não seria ecumenismo, mas uniformismo. A unidade refere-se apenas ao essencial da fé, ao núcleo central do Evangelho de Cristo. Tudo o que for acessório deve estar aberto à diversidade e à pluralidade. EMRC - AMOSTRA –C oncílio de Jerusalém (49), em que se decidiu que os não judeus convertidos ao Cristianismo não precisavam de se submeter à Lei judaica; Concilio de Trento 48 Unidade 2 DOC 10 Como se Cristo estivesse dividido EMRC - AMOSTRA Todos, na verdade, se professam discípulos do Senhor, mas têm pareceres diversos e caminham por rumos diferentes, como se o próprio Cristo estivesse dividido. Esta divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo e é escândalo para o mundo. Cada qual afirma que o grupo onde ouviu o Evangelho é Igreja sua e de Deus. Quase todos, se bem que de modo diverso, aspiram a uma Igreja de Deus una e visível, que seja verdadeiramente universal e enviada ao mundo inteiro, a fim de que o mundo se converta ao Evangelho e assim seja salvo, para glória de Deus. Concílio Vaticano II, Unitatis Redintegratio, n.º 1 DOC 11 Devemos promover a formação ecuménica sobre aquilo que nos une e o que ainda nos divide. A ignorância e a indiferença da própria fé e da fé do próximo são impedimentos para um verdadeiro ecumenismo. O ecumenismo progride graças ao intercâmbio de dons, que não consiste num empobrecimento, mas que constitui um enriquecimento. Cardeal Walter Kasper, (teólogo católico), Retrospectiva e Perspectiva no Caminho Ecuménico Que se pode esperar do diálogo ecuménico? Permitam-me responder a esta questão com toda a confiança, dizendo que não se trata de um diálogo unilateral, de um diálogo em que cada um se empenhe em falar mais forte do que os seus interlocutores, sem querer ouvir os outros. Mas não creio que corramos este risco, pois, a partir do momento em que duas pessoas começam a dialogar, sabem já que entre elas há algo em comum. Roger Mehl (teólogo protestante) O movimento ecuménico depende menos de estruturas estabelecidas do que de pessoas inspiradas, cristãos jovens e velhos, ricos e pobres, de todas as denominações e culturas, que acreditam numa Igreja continuamente renovada na sua fé, unidade, missão e serviço. Conselho Ecuménico das Igrejas DESAFIOS PARA UMA VIVÊNCIA ECUMÉNICA Relativismo e Fundamentalismo: dois extremos a recusar O relativismo é uma corrente de pensamento que afirma ser impossível aceder à verdade. Isto porque a verdade ou não existe ou está fora do alcance do conhecimento humano. Em última instância, nega a possibilidade de as pessoas chegarem a consensos fundados em argumentos racionais. Relativismo não significa o reconhecimento da relatividade do conhecimento humano. Negar que o conhecimento humano é imperfeito e que qualquer afirmação é apenas uma aproximação à verdade é uma atitude de arrogância intolerável. O relativismo vai mais além: nega a possibilidade de nos aproximarmos, por tentativas sucessivas, da verdade. Por isso, acredita que tudo o que se diga, se pense ou se faça é igualmente válido e igualmente bom. Todas as decisões, todas as atitudes estão justificadas à partida: cada um tem «a sua verdade». Assim sendo, tudo é relativo; não existem verdades absolutas, nem pontos de orientação seguros. Caminhamos às cegas pelo mundo. No fundo, o relativismo é, em muitos casos, uma forma de desculparmos as nossas acções ou palavras menos boas. Qualquer que seja a nossa posição, temos sempre razão, uma vez que não existe um padrão de conduta, não existe uma hierarquia de valores, não há bens maiores e bens menores. Poderemos até manipular a verdade (as opiniões) conforme mais nos convier; aquilo que hoje afirmamos, amanhã poderemos negar, dependendo dos nossos interesses pessoais. 49 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA 50 Para quem acredita em Jesus Cristo, a verdade é ele mesmo, a verdade é Deus. É claro que nunca chegaremos a compreender plenamente Deus. Só nos aproximamos dele, através de um esforço de compreensão e de compromisso na vida. Todas as nossas produções são relativas, o que não significa que não sejam válidas. Dentro destes limites, será mais simples conversar com os cristãos de outras Igrejas cristãs. Sem renunciar à verdade, mas sabendo que ninguém está na posse da verdade total, estamos dispostos a ouvir as razões dos outros. O fundamentalismo é o oposto do relativismo. Consiste não apenas na convicção de que a verdade absoluta existe, mas também de que o grupo a que se pertence está na posse dessa verdade. Não admite, por isso, qualquer dúvida ou posição diferente. Nesta perspectiva, o diálogo é impossível, uma vez que se acredita que todos os grupos (religiosos ou não) que têm posições diferentes navegam no erro. Utiliza-se este termo principalmente em relação a grupos religiosos (fundamentalismo religioso) ou a grupos políticos que afirmam a sua posição de forma absoluta. Acreditam estar na posse dos fundamentos da sua religião ou ideologia política. Não admitem qualquer outra interpretação ou alteração nos usos e costumes de um grupo religioso, recusando toda e qualquer tentativa de diálogo. Os fundamentalistas tornam-se, quase sempre, dissidentes e fanáticos e, não raras vezes, dão origem a pequenos grupos muito fechados a que vulgarmente se chamam «seitas», em constante conflito com o resto da sociedade. É muito saudável e de grande importância que não nos deixemos levar por posições extremistas. A recusa tanto do relativismo como do fundamentalismo é essencial para a construção de sociedades humanistas, que aceitam a existência da verdade e a possibilidade de se aceder a ela, mas também consideram que toda e qualquer posição é relativa porque marcada pelos limites do conhecimento humano. Só assim se torna possível o diálogo, a escuta sincera de opiniões diferentes da nossa, bem como a abertura a novas formas de pensar, desde que se mostrem melhores aproximações à verdade. Esta consciência está na base do ecumenismo, que significa a busca da unidade entre as Igrejas cristãs, procurando a superação das divisões. O diálogo tem diferentes níveis: começa, em primeiro lugar, dentro das fronteiras da própria Igreja, alarga-se à relação com as outras Igrejas cristãs e, por fim, dirige-se à relação com as outras religiões, com a finalidade de criar comunidades humanas fraternas e cooperantes, para além das diferentes perspectivas e opiniões. 51 EMRC - AMOSTRA Unidade 2 52 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Purificação da memória Premissa fundamental para a realização do diálogo é o reconhecimento dos próprios erros. Sem a aceitação dos erros cometidos pela própria Igreja, não é possível estar aberto ao diálogo com as outras Igrejas. Assim, perdoar e pedir perdão — a que o papa João Paulo II chamou de «purificação da memória» — são duas atitudes complementares e construtivas. A memória não é só a faculdade que armazena acontecimentos do passado; pelo contrário, influencia determinantemente o presente. O que recordamos afecta frequentemente as nossas relações com os outros. Se uma ferida do passado permanecer na memória, é, sem dúvida, um obstáculo ao estabelecimento de relações de amizade. João Paulo II, no Ano Santo de 2000, afirmou: «Como sucessor de Pedro, peço que neste ano de misericórdia a Igreja se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos», renovando o pesar pelas “dolorosas memórias” que marcaram a história das divisões entre cristãos e atendendo também o pedido de perdão a um conjunto de factos históricos nos quais a Igreja ou grupos particulares de cristãos estiveram implicados. É urgente que este reconhecimento de culpa contribua para um real caminho de reconciliação. Visita de João Paulo II ao Rabi Elio Toaff — Sinagoga de Roma DOC 12 Perdoemos e peçamos perdão Reconhecer os desvios do passado serve para despertar as nossas consciências diante dos compromissos do presente, abrindo a cada um o caminho da conversão. Perdoemos e peçamos perdão! Enquanto louvamos a Deus, não podemos deixar de reconhecer as infidelidades ao Evangelho. Pedimos perdão pelas divisões que surgiram entre os cristãos, pelo uso da violência que alguns deles fizeram no serviço à verdade e pelas atitudes de desconfiança e de hostilidade às vezes assumidas em relação aos seguidores de outras religiões. Ao mesmo tempo, enquanto confessamos as nossas culpas, perdoamos as culpas cometidas pelos outros em relação a nós. No decurso da história, inúmeras vezes os cristãos sofreram maus-tratos, prepotências, perseguições por causa da sua fé. Assim como as vítimas dessas injustiças perdoaram, de igual modo perdoamos também nós. Homilia do «Dia do Perdão» do papa João Paulo II, 12 de Março de 2000 Unidade 2 53 Sempre que fracassamos na conquista de um objectivo, vivemos inquietos com o forte desejo de o alcançar. Quando nos aborrecemos com alguém por quem nutrimos afecto, procuramos reconquistar a sua atenção e amizade. Ora, assim acontece no Cristianismo, justamente depois das diversas cisões. Entre s várias iniciativas em ordem ao entendimento, compreensão e cooperação comuns destacam-se, o Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos e a Tradução Ecuménica da Bíblia. SABER + Tradução Ecuménica da Bíblia EMRC - AMOSTRA Passos de unidade A Bíblia foi traduzida, ao longo dos séculos, em mais de 2400 línguas e idiomas diferentes, incluindo a língua portuguesa. Desde as primeiras traduções parciais em português arcaico, no século XIII, diversas versões estão disponíveis ao público em livrarias, bibliotecas e na internet. Duas traduções para o português ficaram famosas: a de João Ferreira de Almeida (protestante do séc. XVII) e a do padre António Pereira de Figueiredo (séc. XVIII). Em 1993 é publicada a Tradução Interconfessional da Bíblia em português corrente, produzida por uma comissão que integrou católicos e protestantes. Os especialistas implicados nesta tradução afirmam que «pertencendo a várias confissões cristãs, descobrimos com alegria que isso nunca constituiu qualquer dificuldade para este trabalho, antes constituiu um factor de mútuo enriquecimento e agradável surpresa.» 54 Unidade 2 DOC 13 Cristãos rezam há mais de cem anos pela unidade EMRC - AMOSTRA A Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos tem já um século de caminho e gerou um movimento ecuménico notável. A colaboração entre anglicanos, protestantes, ortodoxos e católicos na preparação e na celebração desta Semana de Oração tornou-se familiar e apresenta-se como fruto de uma longa caminhada. A primeira Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, com o nome de oitavário, foi promovida em 1908, de 18 a 25 de Janeiro, pelo americano Paul Wattson, então sacerdote episcopaliano (anglicano). Outro promotor notável da iniciativa foi o abade católico Paul Couturier, de Lyon, França, em meados dos anos trinta. A partir de 1968, a Semana de Oração começou a ser preparada em conjunto pelo Conselho Mundial das Igrejas e pela Igreja católica. Todos os anos, fiéis das diversas Igrejas escolhem um tema (2009 — «Eles serão unidos na tua mão» — Ez. 37, 17) e preparam um pequeno livro com sugestões para a celebração desta Semana. É significativo que João Paulo II tenha convidado, repetidas vezes, à purificação da memória. Só se contribui para a unidade da Igreja, quando se transmite o amor de Deus aos outros. Desde o início do seu pontificado, Bento XVI mostrou-se determinado a «trabalhar sem poupar energias na reconstituição da unidade plena». A capacidade de diálogo vai para além do ecumenismo. Dirige-se também aos seguidores de outras religiões e ao mundo secularizado. Aí, espera-nos uma tarefa imensa, que só podemos enfrentar se estivermos unidos a Deus, entre nós, os católicos, e com todos os cristãos. Adaptado de Revista Fátima Missionária, Janeiro de 2009 Visita do papa Bento XVI ao Rabi Arthur Schneier na Sinagoga de Nova Iorque Unidade 2 55 DOC 14 O Ecumenismo é um imperativo do Evangelho de Cristo Agência Ecclesia — A impressão com que se fica é que o Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos é o momento «essencial» do ecumenismo. Que iniciativas marcam o caminho ecuménico em Portugal? EMRC - AMOSTRA D. António Marto (bispo católico) — Para melhor se perceber esta questão temos de distinguir três dimensões essenciais no ecumenismo: em primeiro lugar a do amor, a fraternidade reencontrada entre os cristãos das várias confissões; em seguida, a dimensão da verdade, que diz mais respeito ao diálogo teológico; por último, o ecumenismo da vida, que consiste em aproximar as Igrejas e comunidades eclesiais na sua vida, percebendo que é mais forte o que nos une do que o que nos divide. Quanto mais nos aproximarmos de Jesus Cristo e da vida no seu Espírito mais nos aproximamos entre nós. Convém ainda recordar que as iniciativas dependem muito das exigências do meio em que se vive e o dinamismo ecuménico entre nós não é muito grande em parte devido à maioria católica que retira algum elan ao ecumenismo. Ainda assim, há sinais concretos que alicerçam e promovem o diálogo comum a nível das bases, como foi o pavilhão inter-religioso na Expo 98 e continua a ser o Programa «A Fé dos Homens» na RTP2. AE — Como viver bem, então, o Oitavário de Oração? AM — Esta iniciativa é sinal para despertar para a dimensão ecuménica. Para além dos encontros de oração deveria fazer-se uma formação ecuménica e fomentar uma espiritualidade aberta aos valores das outras confissões cristãs. Além disso, é importante estar unidos em causas concretas como a paz ou o acolhimento do imigrante, o estudo comum da Bíblia, a entreajuda no campo da paz, da conservação do ambiente, da justiça. AE — É necessário aproximar o ecumenismo do diálogo inter-religioso ou são «apostas» diferentes? AM — Há uma diferença qualitativa entre eles, porque no diálogo inter-religioso procura-se uma convivência pacífica e respeitosa entre os crente das várias religiões, para trabalhar nas grandes causas da humanidade; o diálogo ecuménico procura a plena comunhão na mesma Fé, mas não pode ficar fechado em si, devendo levar os cristãos a dialogar com os homens das diferentes religiões. AE — E ainda é longo o caminho ecuménico? AM — Estamos numa fase de menos entusiasmo, mas isso às vezes é providencial para um maior aprofundamento. Não nos podemos fechar às surpresas de Deus, que manda homens que destroem os muros… http://www.ecclesia.pt/(14-01-2003) D. António Marto 56 Unidade 2 EMRC - AMOSTRA Projectos ecuménicos de solidariedade Não podemos, no entanto, ficar de braços cruzados, à espera que os líderes religiosos se entendam em relação àquilo que os divide! É preciso que cada crente, nas comunidades onde está inserido, procure impulsionar a unidade e a paz, através de acções concretas. Para promover a unidade, os cristãos devem: – Eliminar juízos, palavras e acções que afastem os cristãos e as comunidades umas das outras; – Promover o diálogo entre peritos, sobre a identidade de cada comunidade a fim de procurar consensos; – Organizar momentos de oração comum entre pessoas de comunhões diferentes; – Facilitar a transformação interna de cada comunidade para que seja testemunha fiel da fé cristã; – Desenvolver o acolhimento generoso do outro; – Proporcionar atitudes de amor fraterno; – Reconhecer os próprios erros e os erros das comunidades de que se faz parte. Unidade 2 57 – Defender e promover os direitos humanos; – Participar em iniciativas a favor dos marginalizados, dos imigrantes, dos pobres, dos sem-abrigo; – Salvaguardar os valores humanos e cristãos no mundo do trabalho, da política, da cultura, da educação, do desporto, da saúde; – Promover campanhas em favor de grandes causas da humanidade: perdão da dívida aos países pobres; aplicação das despesas com armamento na luta contra a pobreza; rejeição da pena de morte; recusa da guerra como solução de problemas; repúdio de todas as formas de discriminação; – Orar pela unidade dos cristãos; rezar juntos pela paz e pela justiça. EMRC - AMOSTRA É urgente deitar mãos à obra para: «Como é bom e agradável viverem os irmãos em harmonia» (Sl 133,1)