Entre a revolução e o consenso: os rumos da Primavera Árabe*

Transcrição

Entre a revolução e o consenso: os rumos da Primavera Árabe*
Entre a revolução e o consenso:
os rumos da Primavera Árabe*
Silvia Ferabolli**
Resumo
O presente artigo objetiva discutir o novo papel que o Conselho de Cooperação do Golfo e os
partidos islâmicos desempenham no processo revolucionário em curso no Mundo Árabe – ou
a Primavera Árabe.
Palavras-chave: Primavera Árabe. Conselho de Cooperação do Golfo. Islã Político.
O início repentino e a concatenação dos levantes políticos que se
convencionou chamar de “Primavera Árabe” tiveram apenas três precedentes históricos: as guerras de libertação das colônias hispano-americanas
da primeira metade do século XVIII, as revoluções europeias de 1848-1849 e
a queda dos regimes no bloco soviético – 1989-1991 (ANDERSON, P., 2011).
Além do efeito dominó característico desses eventos, o uso do termo
“Primavera” se relaciona com os ocorridos em 1968, quando Alexander
Dub²ek, primeiro secretário do partido comunista da antiga Tchecoslováquia, tentou promover reformas a Þm de descentralizar a economia e
permitir maiores liberdades individuais. A iniciativa de Dub²ek, apoiada
tanto por intelectuais locais como pela população, foi uma tentativa
racional de ßexibilizar e modernizar a gigantesca máquina burocrática
e opressiva que havia se tornado o Estado sob o jugo soviético. Naquela
que Þcou conhecida como “Primavera de Praga” – ou espírito de 1968 –,
estudantes e o povo em geral viveram uma euforia utópica que acabou
poucos meses depois com a invasão militar pelas forças do pacto de Varsóvia, as quais restituíram a antiga ordem.
De forma bastante semelhante, a esperança trazida pela Primavera
Árabe também está sendo gradualmente sobrepujada pelo temor de uma restauração da antiga ordem vigente – sob diferente roupagem. De qualquer ma*
**
Agradeço a Cláudio César Dutra de Souza pelas críticas à primeira versão deste texto,
assim como pela revisão dos dados e pelas traduções em francês.
Mestre em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Professora Assistente no Departamento de Política da Escola de Estudos Orientais e
Africanos da Universidade de Londres – SOAS. (E-mail: [email protected]).
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neira, não há dúvida de que, no Mundo Árabe de hoje, “uma mudança
irreversível está em curso, mesmo que ninguém seja capaz de identiÞcar
exatamente o que está acontecendo nestes protestos das massas ou predizer
seu resultado Þnal” (RAMADAN, 2011).
O que há de irreversível na nova dinâmica instaurada pela Primavera Árabe é uma percepção de que um novo contrato social é necessário
não só entre os governantes e as populações árabes como entre os Estados
árabes e a comunidade internacional. A política do medo engendrada
após o 11 de Setembro fez do mundo árabe o “Outro” absoluto, uma
região habitada por fanáticos e intolerantes que deveriam ser controlada
a qualquer custo. Essa politica foi o sustentáculo do governo de Hosni
Mubarak, cuja permanência no poder se legitimava por sua capacidade de
“controlar radicais islâmicos”, além de honrar os acordos de Camp David
que sustentam a paz com Israel até os dias de hoje. O foco na ameaça de
supostos radicais islâmicos e a necessidade construída de uma opressão
permanente para que esses fossem contidos deixou em aberto uma importante questão relativa às condições econômicas e sociais na qual vive grande parte da população árabe e que agora, Þnalmente, se torna o centro de
qualquer análise válida para os acontecimentos que antecederam e sucederam a imolação de Mohamed Bouazizi.
Adam Hanieh (2012) nos convida a reßetir sobre o impacto que
a crise Þnanceira de 2008 teve sobre o mundo árabe, chamando a atenção
para os efeitos que tiveram sobre as economias da região a queda drástica
na importação de commodities, na remessa de trabalhadores migrantes e nos
ßuxos Þnanceiros na forma de IDE e AOD1. Esses reveses, combinados com
o aumento do preço dos alimentos e energia, fez com que as populações
mais pobres do mundo árabe fossem as mais severamente atingidas. Dessa
forma, não é possível separar a luta engendrada contra várias ditaduras
árabes da maneira como o capitalismo vem se desenvolvendo na região nas
últimas décadas.
Para Marwan Bishara (2012), as políticas neoliberais permitiram que
os ditadores árabes Þcassem mais ricos e mais corruptos na exata medida
em que a população Þcava cada vez mais empobrecida e despossuída.
Da mesma forma, Perry Anderson (2011) salienta que a ausência de um
modelo de desenvolvimento capaz de gerar oportunidades de trabalho
para uma das populações mais jovens – e mais desempregadas – do mundo
e a crise social que dela advém é o pano de fundo sobre o qual os levantes
árabes devem ser apresentados. É dentro desse contexto que Adam Hanieh
(2011) insiste que é errado ver a Primavera Árabe como sendo apenas uma
questão de luta por direitos democráticos – “como se o ‘político’ pudesse
ser separado do ‘econômico’ ou o ‘nacional’ do ‘regional’”.
Este último ponto levantado por Hanieh refere-se à crescente internacionalização do capital do Golfo, tendência essa que não se limita à região
1
Investimento Direto Externo e Assistência OÞcial para o Desenvolvimento, respectivamente.
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do Golfo Árabe – Khalij –, mas interpenetra o mundo árabe como um todo.
O capital do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) – o Khaliji – tem-se
expandido agressivamente por todo o Oriente Médio e Norte da África. O
CCG já supera os Estados Unidos e a União Europeia em termos de IDE no
mundo árabe, respondendo por 70% do total de IDE na Síria e no Líbano
e por grande parte do IDE no Iraque, além de praticamente controlar o
setor bancário iraquiano. Aos países “atingidos” pela Primavera Árabe,
o CCG já garantiu ajuda Þnanceira: US$ 20 bilhões para Bahrein e Omã
(BAHGAT, 2011) e investimentos na casa dos bilhões de dólares para Egito
e Tunísia. Contudo, esses investimentos não devem ser entendidos dentro
de uma lógica de solidariedade árabe-muçulmana. No Egito, o CCG tenta
controlar os caminhos da revolução assumindo um papel de liderança na
reconstrução da economia do país. A Arábia Saudita prometeu aos egípcios
4 bilhões de dólares, e o Kuwait, mais um bilhão por meio de seu poderoso
SWF (Fundo de Riqueza Soberana). As condições estipuladas para o acesso
a tais aßuxos de capital, porém, são claras: maior abertura e liberalização da
economia egípcia (HANIEH, 2011).
Ainda segundo Adam Hanieh (2011), está em andamento na região
uma luta contrarrevolucionária promovida pelo CCG. Na invasão da Líbia,
por exemplo, liderada pela OTAN, o Catar e os Emirados Árabes Unidos desempenharam um papel crucial nas ações que terminaram com a deposição e o assassinato de KadhaÞ. Os membros do CCG “enviaram tropas,
dinheiro e equipamentos e – talvez o mais importante – ofereceram a legitimidade política para o ataque” (HANIEH, 2011). Estaria formando-se na
região um consenso em torno das demandas do CCG, cuja sede situa-se na
capital saudita? Em outras palavras, estaria o mundo árabe migrando do
Consenso de Washington para o Consenso de Riad?
Na verdade, a China vem há bastante tempo mostrando que o Consenso de Pequim pode ser uma alternativa viável para aquele desacreditado
de Washington. Da mesma forma, poder-se-ia supor a construção de uma
nova estrutura político-econômica no mundo árabe que adviria de um futuro Consenso de Riad como base de um novo capitalismo árabe (centrado
no Khalij), com particularidades que o tornariam atrativo às lideranças do
sistema capitalista internacional. Tal fato não excluiria a participação de
religiosos moderados, cujo alinhamento com as demandas “Ocidentais”
(dentro da lógica Huntingtoniana) seria o sustentáculo de seu poder, assim
como o foi para os antigos ditadores.
No Egito, a saída de Hosni Mubarak, por si só, já não é suÞciente
pra conter a frustração daqueles que ocuparam a Praça Tahir exigindo mais
liberdade política e prosperidade econômica. Passado o primeiro aniversário da queda de Mubarak, em 11 de fevereiro último, a junta militar que
governa o país de forma “provisória” continua Þrme no poder e irá certamente continuar atuando nos bastidores, seja qual for o resultado das
eleições presidenciais egípcias, marcadas para os meses de maio (primeiro
turno) e junho (segundo turno) de 2012. Em relação à emergência de forças
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islâmicas potencialmente ameaçadoras ao “Ocidente”, é de notar-se que
os religiosos conquistaram o maior número de assentos na eleição para a
Câmara Alta do parlamento egípcio. O partido Justiça e Liberdade, da
Irmandade Muçulmana, garantiu 105 assentos, o salaÞsta Al-Nur Þcou com
45, o liberal Wafd levou 14 e o Bloco Egípcio, 8, sendo que mais 8 assentos
Þcaram com partidos mais inexpressivos. A Irmandade Muçulmana é a
grande beneÞciada pela abertura eleitoral e, aos poucos, vai conquistando
simpatias também fora do país.
As chances reais de tomada de poder pelo viés democrático contribuíram para suavizar signiÞcativamente o discurso da Irmandade Muçulmana (al-Ikhwan al-Muslimun ou, como seus membros são comumente
chamados, al-Ikhwan), que conta com o apoio de intelectuais laicos tradicionalmente avessos ao islamismo, mas que emprestam o seu apoio à
Irmandade como a melhor garantia de mandar os militares de volta para
os quartéis. Com um raro senso de oportunidade, os líderes da Irmandade Muçulmana no Egito garantiram, em pronunciamento oÞcial, a manutenção dos acordos internacionais estabelecidos pelo Estado egípcio (o que
incluiria os Acordos de Camp David), além de terem condenado publicamente o ataque contra a embaixada israelense no Cairo. Para Wickham
(2011):
Embora a Irmandade tenha entrado no sistema político
para alterá-lo, ela acabou sendo alterada pelo sistema. Os
líderes que foram eleitos para os sindicatos proÞssionais
se engajaram no diálogo e cooperação com membros de
outros movimentos políticos, incluindo nacionalistas árabes
seculares. Através de tais interações, os islamistas e os arabistas encontraram um terreno comum na chamada para
uma expansão das liberdades públicas, democracia e respeito pelos direitos humanos e pelas leis de Estado, os quais,
eles admitiram, seus movimentos tinham negligenciado no
passado.
É interessante observar que, ao discursar aos jovens acampados
na Liberty Plaza em Nova Yorque, no auge do movimento “ocupa Wall
Street”, o Þlósofo Slavoj Zizek, aÞrmava que aquilo era um protesto
moral inofensivo, tão efetivo quanto café sem cafeína, cerveja sem álcool e
sorvete sem gordura(!). Seguindo a linha de raciocínio de Zizek, poder-se-ia dizer que presenciamos o surgimento de uma versão light da Irmandade
Muçulmana, uma que não mais desaÞa a ordem vigente, mas adapta-se a ela, visando a chegar ao poder e nele manter-se. Note-se que nos
planos da organização não estão incluídos, pelo menos no curto prazo, o
lançamento de um nome próprio para as eleições presidenciais. No entanto,
Mohammed Badie, atual líder da Irmandade, aÞrmou que apoiará um
candidato à presidência do Egito que seja identiÞcado com o Islamismo
e que tenha “um passado islâmico” – não dando maiores detalhes das
características necessárias ao candidato para preencher tais requisitos.
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Opositores acusam a Irmandade de estar aliada a Washington no sentido
de fazer a mediação entre um discurso islâmico moderado que os afastaria
do secularismo opressivo de Mubarak ao mesmo tempo em que manteriam
os pilares de sustentação da política externa egípcia – o principal deles, a
paz com Israel.
Amr Moussa, ex-ministro das Relações Exteriores do Egito e ex-secretário geral da Liga Árabe, é o único candidato declarado à presidência
egípcia até o presente momento (março/2012). Considerado o favorito nas
eleições, sua situação se complica devido ao fato de que sua retórica, contrária a Israel, se choca com os interesses americanos tanto quanto, surpreendentemente, com a nova postura da Irmandade Muçulmana. Embora Amr
Moussa tenha declarado recentemente que pretende respeitar os compromissos de paz com Israel, ele ambiciona rever os meandros do fornecimento de gás natural a Israel, o que o faz aÞnado com as vozes que exigem
o Þm do contrato. Porém, tais posições acendem o alerta laranja em
Washington, e, para piorar a situação de Moussa, muitos revolucionários
lhe consideram um cacique do antigo regime.
Em entrevista ao semanário francês Jeune Afrique, em 11 de fevereiro
de 2012, Tewlif Aclimandos, especialista em Egito do College de France,
destacou como concorrentes de Moussa os nomes de Mansour Hassan e
Nabil al-Arabi. De acordo com Aclimandos, mesmo que esses candidatos
ainda não se tenham declarado, seus nomes circulam no meio político
egípcio. Mansour Hassan foi ministro da Informação sob o governo Sadat
e é apreciado por diferentes correntes políticas por sua moderação. Já Nabil
al-Arabi tem a seu favor o fato de ser o atual secretário geral da Liga Árabe,
posição que lhe garante contato direto com representantes dos 22 Estados
árabes e, mais especialmente, dos membros do CCG, cujo apoio Þnanceiro a
sua candidatura multiplicaria suas chances de ascensão à presidência egípcia. Para Aclimandos, tanto Mansour Hassan e Nabil al-Arabi são nomes
“do agrado” dos militares assim como da Irmandade Muçulmana.
O que se percebe é um clima inédito de consenso que se estabelece,
não apenas no Egito, mas em todo o mundo árabe, para que se torne possível a governabilidade. Talvez essa não seja a revolução que muitos sonharam; entretanto, para Maha Azzam (2011),
os grupos islâmicos tiveram de jogar um jogo de sobrevivência por muitas décadas e isso contribuiu para torná-los atores políticos experientes e astutos. Eles evoluíram ao
longo do tempo no sentido de aceitar a democracia como
um processo político e não apenas como mais uma ferramenta, embora isso só possa ser efetivamente testado
após as eleições. Os Partidos Islâmicos [também] enfrentam
desaÞos internos advindos de uma nova geração de jovens
que estão sintonizados com os ativistas seculares que desejam uma rápida mudança radical na sociedade. Ao mesmo
tempo, eles [os Partidos Islâmicos] têm a necessidade de manter o apoio dos elementos religiosos mais conservadores.
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O cenário pós-eleitoral no mundo árabe não irá excluir a participação dos islamistas e isso não deve ser entendido como algo necessariamente ruim. A gradual aceitação de Estados religiosos modernos (partindo-se
da premissa de que não existe contradição entre esses termos) como uma
opção válida de governo, ou mesmo como uma realidade indissociável do
Oriente Médio, não é mais uma opção – mas uma necessidade. O caso de
Israel é exemplar nesse sentido. Se, nos tempos da fundação desse Estado,
os judeus ortodoxos pareciam relegados ao museu da história pela ação
dos seculares pioneiros sionistas, hoje a situação mudou. Os ortodoxos
em Israel compreendem atualmente 40% dos participantes da coalizão
de governo de Netanyahu, e esse número aumenta em relação aos novos
membros do exército, oÞciais, cujo número já ultrapassa o de judeus
seculares. A direita religiosa israelense pressiona cada vez mais para que o
país se torne um “Estado judaico”, o que o distanciaria deÞnitivamente dos
ideais seculares e democráticos que (supostamente) sempre marcaram a sua
diferença em relação aos países vizinhos.
“Dos males o menor” é o raciocínio que sustenta a aceitação tanto
de seculares egípcios quanto de lideranças políticas israelenses de um
possível governo da Irmandade Muçulmana no Egito e de partidos religiosos na Tunísia – e provavelmente na Líbia e na Síria –, muito em breve.
“Homens religiosos entendem melhor um ao outro”, chegou a aÞrmar
Yaakov Margov, o ministro de Assuntos Religiosos de Israel para a revista
The Economist em outubro de 2011. Margov, que pertence ao partido
ortodoxo Shas, parte da coalisão que hoje governa Israel, ainda complementou: “estou pronto para encontrar Irmandade a qualquer hora e em
qualquer lugar”.
Não parece mais haver dúvida de que conciliar Deus com democracia é algo que o (suposto) laicismo ocidental terá de aprender a conviver
muito mais cedo do que imaginava. Note-se, entretanto, que abrir mão de
lutas históricas e ideários mobilizadores em nome da “governabilidade”,
como parece ser o caso da atual posição assumida pela Irmandade, não está
na agenda de todos os grupos que disputam o poder no Egito. Os salaÞstas,
detentores de enorme apelo nas camadas mais humildes da população
egípcia, foram negligenciados na avaliação de muitos observadores porque
eles não eram visíveis como uma força política até que os primeiros resultados eleitorais egípcios tivessem sido divulgados (AZZAM, 2011). Os
salaÞstas têm se organizado em partidos políticos (Al-Nour, Al-Fadila e Al-Asala), e o Al-Nour é hoje (2012) a segunda maior bancada do parlamento
egípcio, com 21% dos assentos, atrás apenas dos representantes da Irmandade Muçulmana.
Os ultraconservadores salaÞstas representam atualmente o radicalismo religioso que os Estados Unidos e a Europa tanto temem. Os salaÞstas defendem a Sharia como base única do dispositivo legal do Estado,
bem como a obrigatoriedade do uso do véu pelas mulheres (a mulher
como símbolo de virtude moral e declaração pública de que o Estado em
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questão é “islâmico” de verdade) e a segregação entre os sexos. Se durante
os protestos que culminaram na derrubada de Hosni Mubarak muito se
falou na Irmandade Muçulmana como uma ameaça aos valores liberais-democráticos que se pretendem universais, a emergência dos salaÞstas
como atores políticos relevantes aumentou o (já paranoico) temor que
Estados Unidos e Israel sentem de que uma possível “frente-islâmica” posso ameaçar o status quo regional.
De certa forma, nos últimos meses, o entendimento da Primavera
Árabe privilegia o Egito como um foco central de análise – até porque se
imagina que o maior e mais desenvolvido dos Estados árabes irá ditar “o
tom” dos próximos desdobramentos políticos na região. Entretanto, para
Lisa Anderson (2011), o caráter cosmopolita da revolução egípcia, com
a expressiva participação de um segmento da juventude, não se constitui
em um paradigma para entender-se as revoltas árabes. As manifestações
na Tunísia, por exemplo, demonstraram o poder do movimento trabalhista
do país e a inexperiência das forças armadas nacionais. Na Líbia, os rebeldes armados das províncias orientais que se insurgiram contra o regime
de KadhaÞ revelaram as clivagens tribais e regionais que aßigiram o
país por décadas. Para Anderson (2011), o fato de os levantes terem em
comum o reclamar da dignidade pessoal e da accountability por parte dos
governos, as revoluções tunisiana, egípcia e líbia reßetem problemas econômicos e sociais diferentes oriundos dos diferentes legados deixados pelo
colonialismo europeu e pelas diferentes formas de domínio de regimes
únicos que governaram esses países por décadas.
Enquanto isso, na Síria, a provável saída de Assad já está revelando-se muito mais problemática do que foi aquela de Mubarak no Egito. Pode-se especular que a crescente violência na Síria e o temor de um colapso
total do país explique-se pelo fato de que, diferentemente do Egito, onde
as forças armadas são, historicamente, identiÞcadas com o Estado, na Síria
elas sustentam o regime de Assad. Quando as forças armadas se identiÞcam
com um regime personalista, a supressão deste último tende a causar
uma grande confusão relativa ao papel do Estado enquanto detentor do
monopólio do uso legítimo da força coerciva. Consciente dessa situação,
Burhan Ghalioun, líder do principal grupo de oposição sírio, o Conselho
Nacional Sírio (CNS), aÞrmou em entrevista à BBC que o CNS buscará
“distinguir o regime [de Assad] do Estado na Síria. Não haverá caos [na
Síria] como o foi na Líbia. Nós ainda temos instituições militares poderosas
que queremos preservar” (MIDDLE East, 2012). O problema é que a
oposição síria permanece profundamente dividida – assim como as forças
armadas do país –, gerando temores quanto a um possível colapso das
instituições de Estado sírias com a saída de Assad (ver HOW to Set Syria
Free, 2012).
Revoluções são atos de ruptura institucional cujos efeitos só poderão
ser satisfatoriamente medidos nos desdobramentos subsequentes ao seu
epicentro. Mao Tse Tung já pregava essa cautela. Quando (supostamente)
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perguntado quais teriam sido as consequências da Revolução Francesa,
sua (suposta) resposta foi imediata: “é cedo demais para dizer”. Seja como
for, algumas conclusões serão aqui levantadas a título de encerramento do
artigo. Primeiramente, a Primavera Árabe expôs os limites do poder americano na região. Caso pudesse escolher, Washington, sem dúvida, iria
preferir que tudo tivesse permanecido como o foi nas últimas décadas.
Mesmo que se aÞrme que a CIA já vinha monitorando as redes sociais
no mundo árabe, tais como TwiĴer e Facebook, e com isso supostamente
identiÞcado focos de insatisfação com as políticas locais, o certo é que os
norte-americanos foram pegos de surpresa com a magnitude das revoltas e
nenhum de seus especialistas havia previsto essa possibilidade.
Em relação ao suposto monitoramento das redes sociais, é necessário esclarecer que o papel dessas foi supervalorizado no decurso dos
eventos. O estopim da crise não teve nada a ver com o ativismo online de
uma pequena parcela da juventude árabe com acesso a tais tecnologias,
embora essas tenham servido como fonte de encorajamento e informação
no decorrer dos processos. Ou, como insiste Marwan Bishara (2011), “o
Facebook não fez a Primavera Árabe”.
A despeito de a palavra “democracia” ter sido fartamente utilizada
como a força propulsora das revoluções árabes, é preciso considerar que
a região em pauta possui singularidades que precisam ser contempladas
em qualquer análise do processo de mudança em curso, ou seja, as lentes
eurocentristas precisam ser substituídas por multifocais que permitam uma
visão ampla, completa e inclusiva das dinâmicas políticas, econômicas e
sociais do mundo árabe atual. Isso signiÞca que a religião terá um papel
de destaque na formação dos novos governos, o que não signiÞca, necessariamente, um retrocesso. O Islã político deve ser entendido dentro de
seu dinamismo – já que não é algo estático, mas em permanente processo
de mudança. A Irmandade Muçulmana, sob o regime de Mubarak, não é a
mesma Irmandade Muçulmana que hoje detém o maior número de assentos no parlamento egípcio.
O novo capital político adquirido pelos partidos islâmicos pela
legitimidade eleitoral deve ser usado para responder às demandas das
populações locais por liberdade política e melhoria das condições socioeconômicas do país. Caso isso não venha a ocorrer, poderemos assistir a uma
repetição dos erros da Revolução Iraniana, na qual Khomeini foi inicialmente apoiado por partidos de esquerda e nomes da intelectualidade
internacional, incluindo o Þlósofo francês Michel Foucault, mas que, após
as perseguições a que se dedicou o novo regime, a palavra de ordem
passou a ser “nem Xás e nem Aiatolás” – mas era tarde demais. A Primavera Árabe, por outro lado, ainda está em curso, e erros dessa magnitude
podem – e devem – ser evitados.
Recebido em fevereiro de 2012.
Aprovado em março de 2012.
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Between the Revolution and the Consensus: the Paths of Arab Spring
Abstract
This paper discusses the new role played by the Gulf Cooperation Council and the Islamic
parties in the on-going revolutionary process in the Arab World – or the Arab Spring.
Keywords: Arab Spring. Gulf Cooperation Council. Political Islam.
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